Gaillard Aparelhagem Psíquica Destrutividade Kulturarbeit
Gaillard Aparelhagem Psíquica Destrutividade Kulturarbeit
Gaillard Aparelhagem Psíquica Destrutividade Kulturarbeit
psíquica, destrutividade
e Kulturarbeit
elementos para uma clínica da
instituição
Georges Gaillard
Resumo Os avanços da psicanálise surgiram da pro¬ Enquanto Eros inventa processos de ligação, organizações de 17
gressiva ampliação do seu campo para as confi¬ desejo, vias de alianças possíveis entre as exigências pulsionais do
4
gurações intra- e transubjetivas. O interesse pela Id e as exigências narcísicas do Ego, Tânatos exige do indivíduo e
dimensão psíquica das instituições faz parte deste do conjunto humano que a Kulturarbeit, obra conjunta do singular 201
recentramento sobre os vínculos, os quadros e os e do coletivo, invente uma alternativa à atração do assassinato e à de
aspectos profundos da psique. O autor propõe atração da autodestruição, mas que possa contentar Tânatos.
alguns elementos para fundamentar uma clínica
das instituições. Para isso, focaliza as instituições de
[Nathalie Zaltzman, De la guérison psychanalytique] junho
:
mortífero) e de Kulturarbeit (trabalho da cultura). eclosão e a multiplicação dos trabalhos sobre as dimensões inter- e 52
Palavras-chave intersubjetividade; transubjetividade;
hipermodernidade; instituição; aparelhagens psíqui¬
cas; destrutividade; pulsão de morte; Kulturarbeit.
1
O contraste entre a psicologia individual e a psicologia
social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer
muito importante, perde grande parte de sua nitidez
quando examinado mais de perto. [...] Na vida psíquica
sismo (A. Green), “do desejo de ser tudo” (G. No plano da metapsicologia, podemos conside¬
Bataille) quando o narcisismo não mais se apoia rar que a atenção ao registro da negatividade e ao
em suas amarras com a alteridade (falta de apoio conjunto das dinâmicas próprias a Tânatos carac-
que constitui justamente uma das características teriza a metapsicologia freudiana, e diferencia a
da nossa hipermodernidade). psicanálise das demais abordagens do cuidado e
Esta dupla dimensão - inscrever o sujeito da terapia10. Ao propor a hipótese da pulsão de
—
e designar-lhe limites coloca as instituições
na posição de encarnar o “bem comum” (E.
morte e enfatizar aquilo que no humano resiste à
humanização (fracassa e se retira principalmente
Enriquez). Em outras palavras: os aspectos ins- quando dos “maus encontros” precoces), Freud
tituintes das instituições as configuram como reafirma que - a despeito do que gostaríamos
essenciais aos diferentes processos envolvidos de acreditar - o fundo de destrutividade e de bar¬
na subjetivação, ao mesmo tempo que servem bárie inerente à constituição do sujeito nunca é
de depósito para os aspectos arcaicos (simbióti¬ totalmente transformado: existe uma atração pela
cos) da psique, estudados entre outros por Elliot destrutividade e pelo aniquilamento, pela abo¬
Jaques e José Bleger. Elas estão, portanto, simul¬ lição do desejo (o desejo do não desejo) e pela
taneamente a serviço do desconhecimento, da renúncia ao difícil trabalho de viver".
Sem dúvida essa abordagem, que confronta
o humano à atração do incesto, do assassinato nos grupos instituídos,
e da destrutividade, continua a suscitar resis¬
a dimensão da negatividade
tências maciças. Por sua vez, a“hipermoderni-
dade” ( J. Lyotard), a “modernidade tardia" em deve também ser considerada
sua forma ultraliberal, procura negar esta nega - no conjunto das configurações
tividade demasiado incómoda, e menospreza as
incidências das suas ações (e da complexidade) constitutivas desta grupalidade;
a médio e longo prazo, preferindo o engodo de necessitam, portanto,
uma cultura do imediato, do gozo, e da destrui¬
ção que acompanha este último. A compreensão
de uma atenção pluri focal
das relações humanas que considera o registro
do inconsciente encontra-se mais uma vez desa¬
creditada; ela se torna alvo de uma vontade de
romper com as filiações anteriores, precipitando
uma verdadeira “crise genealógica". E recorrente
a tentação de erradicar a história12, e de operar
uma ruptura de filiação, as quais permitiriam ao não for objeto de uma atenção e de uma con¬
TEXOS
sujeito desembaraçar-se dos seus laços de per- sideração que autorizem sua transformação, ela
tencimento (de suas atribuições e dívidas, das pode apenas se repetir indefinidamente, com o
obrigações, dos vínculos que elas configuram).
Podemos pensar aqui na tentação que certos
que se subvertem as configurações do vínculo,
porque são levadas ao extremo: à massificação Gail rd
adolescentes encarnam à perfeição: a que pre¬
tende se autofundar e questionar a legitimidade
de toda posição de autoridade, a fim de escapar
que confunde, e/ ou a um hiperindividualismo
fragmentador. Georges
Nos grupos instituídos (as equipes em :
a qualquer atribuição'3.
Se a negatividade que trabalha ao contrário
do processo de simbolização, da Kulturarbeit,
instituição), a dimensão da negatividade deve
também ser considerada no conjunto das con¬
figurações constitutivas desta grupalidade;
necessitam, portanto, de uma atenção plurifocal
Kultrabei
e
depstsruíiqvuaica,
7 A contribuição dos sociólogos para a compreensão deste registro
"instituinte" das instituições é, obviamente, das mais importantes. Cf.
que considere as modalidades de ligação e de
os trabalhos pioneiros de Cornelius Castoriadis, Claude Lefort, etc. articulação entre os diferentes níveis (indiví¬
Minha intenção, no entanto, não é me aprofundar neste histórico, duo/grupo/instituição; profissionaI/“usuário”;
além dessas poucas referências.
8 José Bleger, "Psychanalyse du cadre psychanalytique" (1966), in R.
configuração narcísica e edípica, vínculo com a
Kaês et a/., Crise, rupture et dépassement, p. 257. história, etc.).
9 A reversão (Umkehr) constitui segundo Freud um dos processos ine¬ Duas questões centrais subjazem, assim, ao
rentes ao funcionamento do aparelho psíquico.
olhar clínico sobre as instituições:
10 No campo da psicologia, desenvolve-se atualmente uma corrente que
se designa como "Psicologia positiva", caricaturando a "negação do
negativo" que evocamos aqui.
11 S. Freud (1 933), Novas Conferências de Introdução à Psicanálise.
12 Cf. G. Gaillard, "La généalogie institutionelle et les écueils du travail
d'historisation: entre filicide et parricide".
♦ que trabalho de reconhecimento e de inte¬
OWN
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' Oto
1
AT-UJG 'VWOA
« essas instituições se dirigem
experiências extremas, a configurações nas quais
o sujeito se debate em confusões desumanizan-
tes. Os trabalhos baseados na metapsicologia
aos sujeitos para quem a inscrição
psicanalítica que esclarecem essa clínica nos
como sujeito entre outros familiarizaram com a ideia de que as instituições
encontrou-se de alguma forma são “organizadas" por seu “objeto", com a ideia de
que as experiências brutas, as partes da psique do
impedida , o que engendra sintomas sujeito à espera de humanização, são transferidas
que perturbam a ordem simbólica , para diferentes cenas institucionais, acarretando
conforme os três registros confusão e destrutividade'4.
Para dar um pouco de substância a estas
do sintoma: psíquico, afirmações, permito-me mencionar algumas das
somático e do agir situações evocadas num grupo de análise da prá¬
tica enquanto eu redigia este texto. Isso permite ter
a medida do que tende a ser recalcado, e mesmo
recusado, tão considerável é o confronto com a
5. As dinâmicas que especificam carga de afeto encontrada nestas situações. Uma
as instituições de saúde e de trabalho das psicólogas deste grupo mencionava como em
22 social sua última intervenção (uma sessão de análise
da prática junto a educadores que intervêm por
2014
de
As instituições de saúde, de trabalho social, ordem judicial no quadro da proteção da infân¬
etc.foram designadas por Alain-Noèl Henri cia) se reatualizaram, no espaço da sessão, traços
junho
:
como constitutivas do campo da “desinscriçáo”
(ÿmésinscription). Escolher tal designação leva a
de um infanticídio acontecido numa família no
momento em que o serviço se encarregou de uma
52 enfatizar a função ocupada por estas institui- medida educativa. Este infanticídio fez desabar
6. Destinos da negatividade
Aparelhgm
evidenciaram esta "estrutura em imagem especular". Pinei sugere, nas instituições: um esboço
portanto, denominar esta dinâmica "efeito Stanton-Schwartz".
15 N. Zaltzman, "De surcroít ...? Le travail de culture? La guérison?
L'analyse elle-même?", p. 237. Para avançar na localização dos processos em
16 Cf. C. Agamben, Auschwitz: Homo Sacer I - Le pouvoir souverain
jogo nas instituições da desinscrição, reitero
et la vie nue (1 997), e Auschwitz: Homo Sacer III: Ce qui reste
d'Auschwitz (1998). que nestes lugares a negatividade diz respeito à
aglutinados”, como diz Bleger). Como escre¬
uma parte da negatividade veu Freud na sua nota de 22/08/1938, uma
será expulsa sobre os objetos externos. parte da psique do sujeito está “fora de sua
psique” e se configura na inter- e na transub-
Trata-se de colocar algo para fora, jetividade.
de exportar o que ameaça C. Uma parte da negatividade será expulsa sobre
os objetos externos. Trata-se de colocar algo
a integridade do grupo, de colocá-lo para fora, de exportar o que ameaça a inte¬
fora do campo da representação gridade do grupo (e/ou do ego de certos
consciente, e de emprestá-lo ao outro
profissionais), de colocá-lo fora do campo da
representação consciente, e de emprestá-lo ao
como sendo característico deste outro como sendo característico deste. Ao se
considerar por exemplo a fundação, este movi¬
mento é facilmente perceptível: toda fundação
é também (em parte, mais consequente ou
menos) uma fundação “contra”, na medida em
que todo grupo fundador busca encarnar uma
totalidade dos registros concernidos. Quanto à parte criativa, e passa assim a acreditar que
evolução dessa negatividade, vamos encontrar está gerando o “novo”, regenerando o mundo
movimentos análogos aos que se manifestam na (à sua medida). Este movimento supõe que
2014
de
construção da economia psíquica do sujeito. outros projetos, outras instituições, outras
equipes, outras práticas, sejam consideradas
junho
:
'A. Uma parte é progressivamente incluída, e é
- objeto de uma tripla ligação simbolizante:
caducas, inadequadas, tóxicas, etc.
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Georges
:
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Abstract Advances of psychoanalysis emerged from the progressive
expansion of its field to include intra- and transubjective settings.
Interest in psychological dimension of institutions is a part of this refo¬
Kultrabei
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depstsruíiqvuaica,
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