Petrarca 700 Anos
Petrarca 700 Anos
Petrarca 700 Anos
1995, pp. 150. A este livro e à tradução da Commedia foi atribuído em 1995
(tendo em atenção o conjunto da obra do autor) o prémio Pessoa.
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4 Vasco Graça Moura, Sonetos a Orfeu de Rainer Maria Rilke, Lisboa, Quetzal,
1994, pp. 78.
5 Vasco Graça Moura, 50 Sonetos de Shakespeare, Lisboa, Bertrand, 1996.
A este livro foi atribuído em 1996 o Prémio de tradução do Pen Club de Portugal.
6 Vasco Graça Moura, Poemas de Gottfried Benn, Lisboa, Relógio de Água,
1998.
7 Cf. prefácio de Vasco Graça Moura, Letras de fado vulgar, Lisboa, Quetzal,
Empiria, 1984; L’ombra delle figure (Poesie 1976-1992), a cura di Maria José
de Lancastre, Fondazione Piazzolla, Poesia europea vivente, collana diretta
da Giacinto Spagnoletti, n. 7, Roma, 1992; Vasco Graça Moura in Inchiostro
che danza sulla carta. Antologia di poesia portoghese contemporanea, a cura di
G. Lanciani, Milano, 2002.
10 Partenza di Sofonisba alle 6,12 della mattina, a cura di Daniela Stegagno,
serem conhecidas entre nós muitas das suas letras do “fado vulgar”
onde encontramos, em decassílabos, alguns dos melhores fechos com
chave de ouro desta tradição: “O tempo de vivermos e mais nada”;
“entre o fado e a língua portuguesa”11. De qualquer forma, portanto,
um crítico italiano que queira enfrentar a obra de Vasco Graça Moura,
terá sempre perante si, preliminarmente, o problema da tradução. E é
claro que nós também nesta sede e nesta ocasião nos propomos de
discutir a mais recente e mais comprometedora empresa de tradução
de Vasco Graça Moura: a versão integral dos Rerum Vulgarium
Fragmenta de Petrarca.
Bompiani, 2003.
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13 Vasco Graça Moura, Sonetos familiares, Quetzal, Lisboa, 1955, p. 36.
14 O projecto geral de tradução criativa (transcriação) de poesia tinha sido
exposto e desenvolvido pelo autor brasileiro no ensaio: Haroldo de Campos,
Da tradução como Criação e como Crítica, São Paulo, 1962. Explicava o Autor:
”Trata-se de um modo de traduzir que se preocupa eminentemente com a
reconstituição estética do original em português, não lhe sendo portanto
pertinente o simples escopo didáctico de servir de auxiliar de leitura desse
original. Sua mira é produzir um texto isomórfico em relação à matriz dan-
tesca, um texto que, por seu turno, ambicione afirmar-se como um original
autónomo, par droit de conquête”, Dante Alighieri, 6 Cantos do Paraíso, tradução
de Haroldo de Campos, São Paulo, Fontana, 1976.
vasco graça moura tradutor de petrarca | 17
E però sappia ciascuno che nulla cosa per legame musaico armonizzata si può
de la sua loquela in altra trasmutare sanza rompere tutta sua dolcezza e armo-
nia. E questa è la cagione per che Omero non si mutò di greco in latino come
l’altre scritture che avemo da loro. E questa è la cagione per che li versi del
Salterio sono sanza dolcezza di musica e d’armonia; ché essi furono transmu-
tati d’ebreo in greco e di greco in latino e ne la prima transmutazione tutta
quella dolcezza venne meno15.
19 É preciso lembrar que o medievismo brasileiro tem aqui como matriz Ezra
Pound que traduziu duas vezes a canção de Cavalcanti incorporando-a final-
mente ao 36º canto dos seus Cantos.
20 Alfred Noyer Weidner, “Il sonetto I”, in Lectura Petrarce, 4, 1984, pp. 327-
-353.
21 Francesco Petrarcha, Sonetti e Canzoni col commento Franc. Philelphi,
Venezia, 1481.
22 Il Petrarca con l’esposizione d’Alessandro Vellutello di nuovo ristampato,
Venezia, 1538.
23 Sonetti, Canzoni Triomphi di M. Fr. Petrarcha con la sposizione di Bernardino
24 Le Rime del Petrarca brevemente sposte per Ludovico Castelvetro, Basilea,
1582.
25 Francesco Filelfo, cit.
26 Francisco Rico, “Rime sparse Rerum vulgarium fragmenta. Para el título y el
Cf. Cesare Segre, “I sonetti dell’aura”, in Lectura Petrarce, 3, 1983, pp. 57-78.
29
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dos não só pela última redacção autógrafa do autor (Vat. Lat. 3195),
como também pelo venerável “codice degli abbozzi”, “código dos es-
boços” (Vat. Lat. 3196). A série de textos que examinamos e sobre os
quais se detiveram igualmente outros ilustres petrarquistas como
Romanó e Contini30 é fortemente unitária, constituindo uma pequena
estrutura dentro do Canzoniere. No código dos esboços, os referidos
sonetos encontram-se na mesma folha (2r) com a sucessão 196-194, 197.
Falta o número 198. A pré-história da aura de Petrarca foi magistral-
mente estudada por Contini no ensaio citado escrito para o Congresso
Internacional de “Langue et Littérature du Midi de la France”, em que
o filólogo italiano via o caso da aura como um caso-limite: “On connaît
le calembour, pour ainsi dire, constitutif qu’est l’équation L’aura = Laura
à côté des jeux de mots avec auro (ou oro) avec lauro, avec aurora, tous
également symboles phoniques de la bien-aimée. L’usage d’aura s’étend
sur toute l’activité de Pétrarque en langue vulgaire, depuis le madrigal
CII”. Já neste madrigal RVF 52, Graça Moura parece eludir os proble-
mas decorrentes, para um tradutor, da coincidência de Laura = l’aura,
quando traduz “ch’a l’aura il vago e biondo capel chiuda” com “que a
tal aura o cabelo loiro obstrua”, perdendo assim a sugestão de que a
aura “chiuda” “il vago e biondo capel” a Laura. Também nestes sonetos
da aura se tem a impresssão de que o tradutor não quis entrar no desa-
fio oferecido pelos incipit: “L’aura gentil” (RVF 194), “L’aura serena”
(RVF 196), “L’aura celeste” (RVF 197), “L’aura soave” (RVF 198),
“Sento l’aura mia antica” (RVF 307), pondo simplesmente na tradução
o nome de Laura com L entre parêntesis: “(L) Aura gentil que faz sereno
o monte”, “(L) Aura serena a vir na verde fronde”, etc. E tendo ignorado
a referência a Laura em RVF 321:
È questo ’l nido, in che la mia fenice Foi neste ninho que deixar já quis
mise l’aurate e purpuree penne? púrpura e penas de oiro a fénix minha?
30
A. Romanó, “I sonetti dell’aura”, in L’Approdo, 2, 3, 1953, pp. 71-78;
G. Contini, “Préhistoire de l’aura de Pétrarque”, in Actes et Mémoires du Ier
Congrès International de Langue et Littérature du Midi de la France, Avignon,
Palais du Roure, 1957, pp. 113-18, e depois em Varianti e altra linguistica. Una
raccolta di saggi (1938-1968), Torino, Einaudi, 1970, pp. 4-31.
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aura
Laura poeta
lembrança
Mas aura é parte de Laura; é o próprio vento que com a sua textura
fónica é uma parte da mulher. Estes efeitos de lonjura-aproximação já
não são individuáveis em RVF 197 e 198 porque aqui a aura tem Laura
não como ponto de partida, mas de chegada: em RVF 197 ela sopra no
lauro / louro quase homónimo e quase sinónimo de Laura no sistema
de Petrarca; em RVF 198 move l’auro, o ouro, dos cabelos de Laura.
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7. O último grupo de textos sobre os quais nos vamos deter, é o dos
sonetos de um só período (RVF 100, 213, 224, 351). Há um estudo
muito pormenorizado de Lorenzo Renzi32 sobre estes sonetos consi-
derados sob o ponto de vista sintáctico, métrico e retórico. Mas ele
conclui que é no nível retórico e fonológico (prosódico) que se eviden-
ciam as maiores afinidades entre os quatro sonetos, todos eles carac-
terizados pelo processo retórico da accumulatio, apresentando um
efeito prosódico comum, definido por Leo Spitzer “detonação final”.
Vamos ver quanto o nosso tradutor respeitou a letra de Petrarca tam-
bém nestes casos.
No soneto RVF 100, “Quella fenestra ove l’un sol si vede”, a tradu-
ção, com a versão de quella por esta, aproxima a janela do poeta, “Esta
janela aonde um sol se vê”. Contemporaneamente, a tradução neutra-
31
E. H. Wilkins, The Making of the “Canzoniere” and other Petrarchan Studies,
Roma, Edizioni di Storia e Letteratura, 1951.
32
Lorenzo Renzi, “La sintassi continua. I sonetti d’un solo periodo nel
Petrarca, C, CCXIII, CCXXIV, CCCLI”, in Lectura Petrarce, 8, 1988,
pp. 187-220.
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8. O último soneto sobre o qual nos vamos deter é o RVF 190, “Una
candida cerva sopra l’erba”, “Uma cândida cerva a mim viera”, consi-
derado um dos cumes da imagerie de Petrarca onde se aliam emblema
e alegoria, figura e símbolo, mistério e metáfora. A cândida cerva é
símbolo de castidade e, desde a antiguidade até Leopardi, todos os
comentadores viram nela a visão estática e profética da morte de Laura
ou, se quisermos, um arabesco de imagens oníricas. Para todos é claro
que os cornos de ouro aludem às tranças louras de Laura, “le due
riviere”, os dois rios, seriam o Sorga e o Durance ou, segundo Carducci,
o Sorga e o Ródano, e que o poeta quis mostrar o lugar, a hora e a
estação de primavera em que, encantado pela vista da cerva-Laura,
deixou de bom grado, para a seguir, qualquer outro trabalho, tal como
o avaro, procurando o tesouro, não sente qualquer afã perante o prazer
exaltante da procura. E é igualmente claro como, à semelhança dos
cervos deixados em liberdade por César com um colar em que estava
escrito noli me tangere quia Cæsaris sum, Laura tinha sido feita por
Deus, seu e nosso César, livre de qualquer vício. Fatalmente, no meio
da vida morreu e o poeta caiu na água, isto é no choro. Gesualdo, por
seu lado, alude ao contexto metafórico da caça, à polivalência do
cervo sacro de Diana. Desde o início, os comentadores rejeitaram a
interpretação de que, sendo Laura casada, o César dela fosse o marido
e não Deus. Insistem ainda na densidade da figuração, manifestação
da dualidade, simétrica e antitética, da estática imobilidade do cervo
(primeiro quarteto e primeiro terceto) e do movimento dinâmico
do poeta (segundo quarteto e segundo terceto). Esta dualidade não
seria respeitada pela tradução portuguesa “uma cândida cerva a mim
viera”.
Mas eu também duvido desta interpretação tão fixa. Ao nosso ami-
go Vasco, tradutor dos Triunfos, lembro aqui que as pedras do colar
de diamantes e topázio voltam na visão alegórica do Triumphus
Pudicitiæ (v. 122) numa ulterior retomada alusiva à força e à castidade,
conforme as sugestões simbológicas de Plínio, Solino e Isidoro. Todas
vasco graça moura tradutor de petrarca | 27
João R. Figueiredo
verso. Mas mais uma vez, não é apenas a mera semelhança fonética
com “assale” que legitima a escolha de “mal”. O sentido de “assale”,
bem entendido, está preservado na forma verbal “assalta”, no meio do
verso, mas “ah, por meu mal!” traduz o “Lasso!” que abre o soneto.
Estes exemplos de virtuosismo técnico agradam-se especialmen-
te porque, além do seu mérito próprio, me fazem lembrar um caso
canónico que mereceu a Michael Riffaterre uma análise também ela
virtuosística. Refiro-me à adaptação que Baudelaire fez do excerto
do verso de Virgílio “monstrum horrendum, informe, ingens” no seu
Hymne à la Beauté, e que resultou em “monstre énorme, effrayant,
ingénu”. Os contextos são diferentes, e Baudelaire não tinha feito voto
de fidelidade ao original. Mas o processo é o mesmo. Para Riffaterre,
estes desvios paronomásicos estão na base de toda a criação literária.
Atrevo-me a dizer que Vasco Graça Moura consegue o prodígio de
manter a absoluta fidelidade ao seu precursor precisamente porque é,
ele próprio, um verdadeiro poeta, quero dizer, infiel e desviante.
O Canzoniere de Petrarca
traduzido por Vasco Graça Moura
2 Por sinal, neste mesmo texto, Graça Moura não deixa de aludir à surpreen
dente ausência, em território português, de reflexões abundantes sobre a tra-
dução literária: “Em Portugal, escasseiam as obras sobre a tradução literária,
não obstante sermos um país que depende em grande medida da actividade
tradutória para ampliar o seu conhecimento da produção literária nessas outras
línguas, tanto do passado como do presente” (Moura, 2003a: 66).
3 Repare-se no seguinte depoimento do tradutor: “Talvez se possa perguntar
tem reconhecido que Petrarca é o autor europeu que exerceu mais influên
cia nas letras portuguesas (Santos, 2003: 12)4. Existiriam ainda outras
causas associadas a esta determinação de Graça Moura, como a satisfação
confessada de ter traduzido Shakespeare, Dante e Petrarca, os três vultos
do Pré-Renascimento ao Maneirismo com maior ascendência, em seu
entender, na literatura ocidental. Enfim, seria oportuno fazer sobressair,
além disso, a circunstância de Graça Moura conceber a sua ocupação na
qualidade de rumo de forma a alcançar um conhecimento de Petrarca
mais aprofundado. O tradutor observou relativamente a tal aspecto:
4 João Barrento pensa que esse facto contribuiu para criar algumas expectati-
vas nos leitores, concordando, dessa maneira, com a opinião de Graça Moura
a respeito da mesma circunstância (Barrento, 2004: 66).
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Tudo no poema se harmoniza: som, ritmo, tensão, rima... O ideal, para mim,
é me aproximar, no texto traduzido, de cada um desses itens do texto original.
(...). E não cometer escândalos, como rimar Freud com celulóide. (Já vi isso
em alguma parte). O bom-senso é a mãe de todas as coisas. Em arte, seu nome
é estética. (Wanderley, 2002: 181)
Traduzir (poesia, mais que tudo) é negociar. Perder aqui para ganhar ali, fazer
uma negociação menor com um verso rípio para ganhar no verso desagüe
que, este sim, não pode deixar de ter força. Algumas palavras brilham como
intocáveis no verso, alguns versos como intocáveis no poema. Para esses casos,
o poeta-tradutor dá o melhor de si e quando não consegue resultado satisfa-
tório é ali que se sente derrotado e triste. Negocia-se em torno, regateia-se,
faz-se quase qualquer negócio para preservar aquela jóia-maior da gargantilha,
como queria Shakespeare. Onestaldo de Pennafort já disse isso: todo verso tem
algo que você não pode deixar de resolver bem. Com o resto você negocia.
(Wanderley, 2002: 182)
respeito por João Barrento: “Vasco Graça Moura sabe que traduzir não é
transpor de língua a língua, tem uma visão livre e autoral desta prática, mas
essa visão nunca é, nem arbitrária, nem meramente técnica. Contrariamente ao
que por vezes sugere, as suas versões nunca sacrificam a substância semântico-
-poética aos ditames formais [...]” (Barrento, 2002: 229).
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autor traduzido para português, aliás, por Graça Moura. Para Walter Benjamin,
com efeito, o propósito primordial na tradução poética deve ser a preserva-
ção, no texto de chegada, da pureza expressiva do texto de origem, a qual
será sempre mais importante que o sentido comunicativo, apenas de carácter
acessório (Dasilva, 2002: 269).
11 É interessante confrontar este objectivo com a ideia referida por Haroldo
cados ao rei Filipe II14. Eis o 35º soneto na versão clássica de Henrique
Garcês, nos tempos modernos reeditada por Justo García Morales e
depois por Antonio Prieto:
Con tardos pasos solo voy midiendo
pensativo los campos más desiertos,
y los ojos contino llevo abiertos
por de humanos encuentros ir huyendo.
América nos vino el tercer traductor en verso de Los Lusíadas, Enrique Garcés,
lusitano de Oporto que había residido más de cuarenta años en el virreinato
del Perú. Su versión, impresa en Madrid, 1591, lleva un acompañamiento
de memoriales dirigidos a Felipe II, pidiéndole mercedes por haber acre-
centado el patrimonio real mediante descubrimientos útiles en mineralogía.
Porque Garcés, además de poeta, fue hombre de negocios, arbitrista y minero.
Amontonó en el Perú tanta plata que, al llegar a Madrid, pudo costearse la
impresión de tres libros por él traducidos: dos eran en verso, nada menos que
la lírica del Petrarca y Los Lusíadas. Afirma, sin duda con palmaria hipérbole,
que ha gastado más de cuatro mil ducados en la impresión. Luis Monguió ha
sacado la cuenta que parece una cuenta galana en la que ha metido otros gastos.
El dinero deja constancia y por ello sabemos de la biografía de Garcés mucho
más que de la de sus dos predecesores” (Asensio, 1973: 308). Dámaso Alonso,
por seu turno, desenhou o seguinte retrato: “Enrique Garcés se sabe que nació
en Portugal; vivió habitualmente en Perú; y él se jacta de haber descubierto allí
un método para beneficiar la plata por el azogue; todo lo que escribió fue en
castellano, y todo traducciones: la de Os Lusíadas; del italiano, el Canzoniere
de Petrarca, y del latín una obra de Francisco Patrizi” (Alonso, 1974: 14).
O Canzoniere de Petrarca traduzido por Vasco Graça Moura | 43
15
Reyes Cano delineou assim a tradução de Ángel Crespo: “Dos son los pila
res sobre los que se sustenta la traslación de Crespo, reconocido traductor,
teórico de esta ciencia y sensible y sutil lector: el respeto de los valores rítmicos
y de los recursos formales (lo que obliga a mantener de forma escrupulosa
los esquemas estróficos, las rimas e incluso las aliteraciones y demás recursos
estilísticos, lo que provoca el hecho de que algunos de los versos resulten a
veces un tanto rígidos) [...]” (Reyes Cano, 1991: 3).
O Canzoniere de Petrarca traduzido por Vasco Graça Moura | 45
Seis anos mais tarde, Jacobo Cortines viria a editar uma versão do
Canzoniere que, ao contrário da tradução de Ángel Crespo, encontrou
um apoio não só na fidelidade aos valores formais do texto de partida.
O mais importante aqui, efectivamente, é o universo conceptual de
Petrarca, a elaboração de uma linguagem poética em que se transfiram
todas as subtilezas sentimentais do Canzoniere. Estes são os fundamen-
tos que se indicam para a versão:
Darío Xohán Cabana aludiu ao seu conceito do que deve ser a fidelidade
17
Ser fiel y cabal, y si fuese posible, contar las palabras para dar otras tantas, y
no más ni menos, [las cuales han de ser] de la misma cualidad y condición
y variedad de significaciones que las originales tienen, sin limitarlas a su propio
sentido y parecer, para que los que leyeren la traducción puedan entender toda
la variedad de sentidos a que da ocasión el original.
Bibliografia
1 Obras ineditas dos nossos insignes poetas Pedro da Costa perestrello coevo do
grande Luis de Camões e Francisco Galvão estribeiro do Duque D. Theodozio
[...], dadas à luz fielmente trasladadas dos seus antigos orignaes [...] por Antonio
Lourenço Caminha [...] Lisboa, 1791.
54 | petrarca 700 anos
Poesie Latine, (La letteratura italiana / Storia e testi, v. 6), Milano, Riccardo
Ricciardi, 1951, p. XV.
7 Rita Marnoto, O Petrarquismo Português do Renascimento e do Maneirismo,
p. 101.
9 Cit. por C. Calcaterra, op. cit., p. 180.
traduzir Petrarca | 59
Creio que, nos Triumphi, os fragmenta têm mais a ver com o casuísmo
mítico ou histórico das referências do que com a dispersão melancólica
do eu individual e se desenvolvem na espiral da procura dessa unidade.
Esta resulta da própria sequência encadeada, não propriamente das
idades do homem, mas de certas fases ou andamentos essenciais ligados
à sua existência e condição terrenas, numa ordenação do mundo que
intui em especial o Amor, a Morte, o Tempo e a Eternidade, como
tempos fortes, o primeiro e o terceiro pontuados, respectivamente,
pela Castidade, que supera aquele, e pela Fama, que afinal incorpo-
ra a História, ou, como diz Kenelm Foster, trata-se de “um tratado
poético sobre o homem em termos de três fatalidades (Amor carnal,
Morte, Tempo) e de três libertações correlativas (Castidade, Fama,
Eternidade)”10. Os longos catálogos processionais dos primeiros quatro
Triumphi são ilustrações remissivas da construção progressiva de uma
filosofia da experiência individual e histórica, de uma antropologia,
de uma ética e de uma metafísica, que culminam na discursividade
reflexiva dos dois Triumphi finais. E compreendem-se as dificuldades
que o poeta teve com o Triumphus Famæ, que reviu insistentemente
e de que chegou a substituir passagens inteiras: na verdade, a Fama,
como correlato da memória e da História, “triunfava” também nas
partes do poema que a precediam, nem de outro modo a enumeração
casuística que as percorre seria possível.
Literariamente, o “fantasma” de Dante também está presente:
na organização em tercetos, no encontro sucessivo das figuras que
povoam um Além oniricamente percorrido, no amigo não identificado
que serve de guia a Petrarca no princípio da narração, na referência
a algumas personagens, na remissão para um catálogo de poetas que
o antecederam. Mas as principais personagens da Commedia surgem
banhadas pela força do concreto, enquanto as dos Triumphi formam
elencos nominativos que pouco mais são do que isso, embora aqui e
ali articulados a alusões que lhes dão o sentido pleno.
O leitor português reconhecerá várias passagens que vêm ecoar em
Camões e noutros autores do nosso século XVI. Refira-se no entanto
a importância do Triumphus Cupidinis para o episódio camoniano da
1987, p. 19.
60 | petrarca 700 anos
Ilha dos Amores11. Entre nós, posteriormente a 1560, foi realizada uma
tradução comentada dos Triumphi que ficou incompleta, parando no
v. 33 do terceiro capítulo do Triumphus Famæ, e foi publicada pelo
Visconde de Juromenha em 1864 e, no século XX, em cuidada edição,
por Giacinto Manupella, em 197412.
Ora também a leitura de Camões, embora fragmentariamente, nos
condiciona, aqui e ali, para a leitura de certas passagens dos Triumphi.
Num texto muito recente, João Barrento põe uma hipótese interessante:
“traduzir o cânone é traduzir na história”. E continua: “isto é, um
texto canónico traduz-se no tempo, é atravessado por vários estratos
temporais que sobre ele se sedimentam. Uma vez que a tradução feita
hoje pretende, em princípio, trazer o texto do passado a este nosso
momento […], todos os outros momentos por que ele passou se inter
põem, funcionando, ou como janelas que abrem perspectivas, ou como
empecilhos a uma tradução mais liberta de modelos que podem colocar
sérios problemas de dependência”.
A mim, parece-me que o tradutor tem de correr esse risco e de
propô-lo ao leitor. Mas será o leitor quem mais interessa? De qual-
quer maneira, a nossa leitura de uma obra extensa, em especial de um
grande monumento literário do passado, é, muitas vezes, um tanto
ou quanto “superficial” em vários dos seus segmentos. Percorremos
o texto, retemos este ou aquele aspecto que a tradição nos aponta
como mais admirados ou mais importantes, mas, regra geral, não fica-
mos a conhecê-lo em extensão e profundidade, numa profundidade
que toque e implique a nossa língua materna e o que somos nela com
alguma sistematicidade. É aí que o exercício da tradução permite que
11 Cf. José Maria Rodrigues, Fontes dos Lusíadas, 2. ed., Lisboa, Academia
das Ciências, 1979, p. 365 e ss.; Vítor Manuel de Aguiar e Silva, “Função e
significado do episódio da ‘Ilha dos Amores’ na estrutura de Os Lusíadas”,
Camões, labirintos e fascínios, Lisboa, Cotovia, 1994, p. 134; Rita Marnoto,
op. cit., pp. 629 e ss.; Vasco Graça Moura, “O verso mais discutido de Os
Lusíadas e um manuscrito muito pouco discutido”, Os penhascos e a serpente,
Lisboa, Quetzal, 1987, pp. 163 e ss.
12 Giacinto Manupella, Uma anónima versão quinhentista dos Triunfos
Fernando J. B. Martinho
Nemésio, por sua vez, no melhor da desenvoltura que pôs nos ver-
sos da velhice, em Limite de Idade, 1971, cita expressamente Petrarca,
acompanhando-o do seu mais conhecido continuador entre nós, num
desenfadado devaneio estival entre “praia e pinho”:
[...]
Enevoado lá fora, preocupado cá dentro, ainda mais dentro metabólico,
Veraneando a taxímetro na saudade de ilhas pelágicas,
Com a coroa asterídea dos meus oito netos na cabeça
E – sobre tudo isto – velho e tolo pela esperança:
Que não é sensato esperar de nada alguma coisa
Mas só de morte fiar puro perdão de Deus,
Entre pinhas reais e Afonso LV, Dinis II,
Com um búzio e uma vieira – or piango or canto – muito fina,
Por conta de Camões e um pouco de Petrarca,
Devendo aliás chorar muito mais do que canto
E calar a buzina!
à celebração da mais célebre das formas fixas. Num dos 147 sonetos do
volume, o 113º, alude o poeta ao nascimento da forma na Sicília e a um
dos poetas que tiveram um papel preponderante no seu surgimento,
Jacobo da Lentini, e nesse mesmo texto sobressai um dos motivos que
mais associamos à tradição petrarquista, o da “chama”, do “fogo” do
amor, aquele que Gaspara Stampa fixou na fórmula “arder amando”.
Noutro poema, o 26º, o poeta toma como confidente da “tortura” causada
pela “ausência” do ser amado a terra natal de Petrarca, Arezzo:
eu procurava
[...] uma razão a única razão (e não sentimental como afinal o é)
a convenção que adopto de petrarquizar
neste meu verso aparentemente livre
mas no fundo apoiado no decassílabo
[...]
Giulio Ferroni
Son propri esclusivamente del Petrarca in quanto all’affetto, non solo la copia,
ma anche quei movimenti pieni tou páqouß e quelle immagini affettuose (come:
E la povera gente sbigottita ec.) e tutto quello che forma la vera e animata e
calda eloquenza. E dall’influsso che ha il cuore nella poesia del Petrarca viene
la mollezza e quasi untuosità come d’olio soavissimo delle sue Canzoni, (anche
nominatamente quelle sull’Italia) e che le odi degli altri appetto alle sue paiano
asciutte e dure e aride, non mancando a lui la sublimità degli altri e di più
avendo quella morbidezza e pastosità che è cagionata dal cuore. (c. 24)2
1 Pelo que diz respeito aos vários textos de Leopardi (excepção feita ao
Zibaldone) citar-se-á sempre da edição, que oferece grande facilidade de
manejo, integrada na colecção “I Diamanti”, I Canti e le Operette morali, a
cura di G. Tellini, Salerno, Roma, 1994; da mesma colecção se cita Petrarca,
Il Canzoniere e I Trionfi, a cura di E. Fenzi, Salerno, Roma, 1993.
2 O Zibaldone di pensieri é citado da edição crítica, a cura di G. Pacella,
Altro ostacolo alla durata della fama de’ grandi scrittori, sono gl’imitatori,
che sembrano favorirla. A forza di sentire le imitazioni, sparisce il concetto,
o certo il senso, dell’originalità del modello. Il Petrarca, tanto imitato, di cui
non v’è frase che non si sia mille volte sentita, a leggerlo, pare egli stesso un
imitatore: que’ suoi tanti pensierini pieni di grazia o d’affetto, quelle tante
espressioni racchiudenti un pensiero o un sentimento, bellissime ec. che
furono suoi propri e nuovi, ora paiono trivialissimi, perchè sono in fatti comu
nissimi. Interviene agl’inventori in letteratura e in cose d’immaginazione,
come agl’inventori in iscienze e in filosofia: i loro trovati divengono volgari
tanto più facilmente e presto, quanto hanno più merito. (cc. 4491-4492, 20
de Abril de 1829).
forse tu l’innocente
secol beasti che dall’oro ha nome,
or leve intra la gente
anima voli? o te la sorte avara
ch’a noi t’asconde, agli avvenir prepara? (vv. 7-11)
Firenze, 1996, passim; a não esquecer, R. Bettarini, “Clizia e la vita che fugge”,
in Echi di memoria. Scritti di varia filologia, critica e linguistica in ricordo di
Giorgio Chiarini, a cura di G. Chiappini, Alinea, Firenze, 1998, pp. 255-263.
Muito feliz a fórmula proposta para Montale por R. Gigliucci, “Petrarchismo
metafisico e Montale”, Sincronie, 8, 2004, 15, pp. 77-92, e “Petrarchismo de-
gli emblemi e dantismo della parola: appunti su Montale”, in Petrarca nel
Novecento italiano, a cura di A. Cortellessa, Bulzoni, Roma, 2005, pp. 143-149,
e com maior amplitude, num volume no prelo intitulado, Realismo metafisico
e Montale.
6
Célebre o passo da Intervista immaginaria de 1946, agora em Il secondo mes
tiere. Arte, musica, società, a cura di G. Zampa, Mondadori, Milano, 1996,
p. 1483: “Ho completato il mio lavoro con le poesie di Finisterre, che rappre-
sentano la mia esperienza, diciamo così, petrarchesca. Ho proiettato la
Selvaggia o la Manetta o la Delia (la chiamo come vuole) dei Mottetti sullo
sfondo di una guerra cosmica e terrestre, senza scopo e senza ragione, e mi
sono affidato a lei, donna o nube, angelo o procellaria”.
7 Cf. L. Greco, Montale commenta Montale, Pratiche, Parma, 1980, p. 35.
moderna casual e dispersa, mas ainda capazes de suscitar, por si, fugas
imprevistas, clarões, rasgos evanescentes de absoluto. Pode tratar-se
de mulheres só esporadicamente encontradas e conhecidas, cuja dis-
tância se define em expressões, gestos, pequenos objectos através dos
quais é retomado e fixado o seu mundo quotidiano, a sua movência
por entre contingências que, enquanto tal, pareceriam negar qualquer
reconhecimento.
Pondo de parte a Esterina de Falsetto, que ainda recorda D’Annunzio,
o primeiro “tu” dos Ossi di seppia é dirigido, mesmo In limine, àquela
a quem se desejam e se oferecem as vias da fuga, convidada que é a
procurar “una maglia rotta nella rete” (p. 5), isto é, a actriz Paola
Piccoli. Por detrás desse convite, ficam contidos alguns rastos petrar-
quescos que têm tanto de ténue como de essencial, ou seja “rimena”,
no segundo verso, “vi rimena l’ondata della vita”, que recorda, irresis-
tivelmente, um dos incipit mais famosos de Petrarca, o do 310º soneto,
“Zephiro torna, e ’l bel tempo rimena”9; e a rima “grembo” / “lembo”
(vv. 7-8), que encontra o seu mais intenso precedente em “Chiare,
fresche et dolci acque” (126.42-46; a acrescentar “nembo”, no 45º
verso)10. A mesma rima “grembo” / “lembo” volta a ser utilizada, em
posição de emparelhada, numa outra composição para Niccoli, Crisalide
(mas não na primeira redacção manuscrita; p. 86), na qual também
encontramos (desta feita na primeira redacção) outra mais banal, mas
de eleição petrarquesca, “onde” / “fronde”.
Um possível petrarquismo montaliano, em muito anterior a Finisterre,
pode ser rastreado não tanto por entre esses e outros minuciosos da-
dos intertextuais, sobre os quais não me vou deter (embora de modo
nenhum mereçam ser descurados), quanto na definição espacial e
temporal da distância da figura feminina. Primordial relevo, em Ossi
di seppia, é conferido a Arletta / Annetta / Aretusa, marcada para a
morte pelo destino, figura da mulher que não pôde viver, com uma
adolescência rapidamente esgotada e uma experiência de vida que lhe
foi recusada (a identificar, na realidade, com Anna degli Uberti, que
“sghembo” no v. 70).
90 | petrarca 700 anos
In Dora Markus I, Dora non è ancora Gerti, non risulta ebrea. Non ho mai
conosciuto Dora, nella seconda parte è presente solo Gerti, ebrea […]. Io Dora
non l’ho mai conosciuta; feci quel pezzo di poesia per invito di Bobi Bazlen
che mi mandò le gambe di lei in fotografia. La fede feroce [v. 30 della parte II]
coincide col ritiro di Gerti in una Carinzia immaginaria. Non c’è la condanna
di ogni fede, ma la constatazione che per lei tutto è finito e deve rassegnarsi al
suo destino. Resta pur sempre uno iato fra la vita inesplosa di Dora e la vita
già vissuta di Gerti. La fusione delle due figure non è perfetta, a metà strada
qualcosa è avvenuto che non viene detto e che io non so.
La casa dei doganieri fu distrutta quando avevo sei anni. La fanciulla in ques-
tione non potè mai vederla; andò […] verso la morte, ma io lo seppi molti anni
dopo. Io restai e resto ancora. Non si sa chi abbia fatto scelta migliore. Ma
verosimilmente non vi fu scelta.
passo que, à “pietra”, é confiada, na mesma canção (que é, mais uma vez,
“Di pensier in pensier, di monte in monte”), a própria imagem pessoal:
“me freddo, pietra morta in pietra viva, / in guisa d’uom che pensi et
pianga et scriva” (vv. 51-52). No congedo da 135ª canção, “Qual più
diversa et nova”, o poeta indicava o “sasso” (em rima com “passo”)12 da
fonte de Vaucluse como verdadeiro lugar absoluto e de eleição:
Aliás, podia acontecer que visse Laura sentada sobre um seu “sasso”
(“e ‘l sasso, ove a’ gran dì pensosa siede / madonna, et sola seco si ragio-
na”, 100.5-6), ou podia ela própria ser representada como um “sasso”
(na 135ª canção, da mesma feita: “un sasso a trar più scarso / carne che
ferro”, vv. 27-28). A Irma / Clizia de Le occasioni e de Finisterre deixa
em aberto a possibilidade de operar vários confrontos, no âmbito desse
petrarquismo da distância: desde o motete “L’anima che dispensa”
(p. 143), no qual Macrì13 identificou uma filigrana petrarquesca, com
a inserção de vocábulos tais como “anima”, “dispensa”, “passione”,
“voce”, “intensa”, etc. (paira ainda, “Di pensier in pensier, di monte
in monte”: “tirar mi suol un desiderio intenso”, v. 55); até Tempi di
Bellosguardo, com os vários nexos subtilmente postos em evidência por
Macrì (quem teria pensado no reenvio para a 53ª canção de Petrarca,
“Orsi, lupi, leoni, aquile et serpi / ad una gran marmorea colonna”,
vv. 72-73; e, quanto ao início do segundo movimento, “Derelitte sul
La vita della parola, pp. 114-115; aos dados de Macrì acrescentaria que “il
13
poggio”, nos “poggi solitari et ermi” de 263.4)14; até aos gestos e aos
clarões de La bufera, construído a partir de desfasamentos e desloca-
ções espaciais (entre uma Europa em tempestade, da qual fala a voz
do poeta, e lugares longínquos, uma América onde Clizia então está)
e temporais (a recordação daquele momento em que Clizia, apanhada
pelo vendaval, entrou na escuridão, “mi salutasti – per entrar nel buio”,
e a tempestade de então, com a guerra que destrói a Europa). Gestos e
clarões (entre a mão, o vulto, os cabelos) percorrem todo o declarado
“petrarquismo” de Finisterre, reconhecível, ao nível temático, desde
Nel sonno até Serenata indiana, Gli orecchini, La frangia nei capelli, Il
ventaglio ou Il tuo volo. Em relação a esses rasgos fulgurantes, mortais
e preciosos de distância, mostram-se marginais, apesar de não serem
desprovidos de interesse, confrontos linguísticos, como os que já foram
notados por Mengaldo (em Nel sonno, o “vago orror dei cedri smossi
/ dall’urto della notte”, filigrana de 176.12-13, “Raro un silentio, un
solitario orrore / d’ombrosa selva”; em Il ventaglio, a associação, “l’alba
l’inostra”, em consonância com “vedi quant’arte dora e ‘mperla e ‘nos-
tra”, 192.5, e com “Vien poi l’aurora, et l’aura fosca inalba”, 223.12)15, ou
ainda, em Personae separatae (p. 199, no qual se faz mais intensamente
sentir a sugestão das grandes canções da lonjura, “In quella parte dove
Amor mi sprona” e “Di pensier in pensier, di monte in monte”), a
presença de um sintagma como “a terra stampi” (que evoca o célebre
“Solo e pensoso”, “ove vestigio uman l’arena stampi”, 35.4), bem como
o uso do vocábulo “forma” para indicar a imagem da mulher.
Se para Clizia podem remeter todas as figuras e as “formas” femini-
nas a que é feita alusão na precedente produção poética, dela decorrem,
para depois se deferenciarem, até aos limites da oposição, novas pre-
senças, mais próximas e mais “reais”, como Volpe e Mosca, apesar de
Clizia continuar a tornare, com aquela consabida negatividade e com a
impossibilidade de um regresso, entre Iride (“Ma se ritorni non sei tu, è
mutata / la tua storia terrena, non attendi / al traghetto la prua, // non
hai sguardi, né ieri né domani”, p. 240) e L’anguilla. A partir de Satura,
adensa-se, ademais, o regresso de presenças / ausências vindas de toda
14 Ib., p. 368
15 P. V. Mengaldo, “Un libro importante su Montale”, p. 203.
A vaga de fundo do petrarquismo: Leopardi e Montale | 99
Ora sto
a chiedermi che posto tu hai avuto
in quella mia stagione. Certo un senso
allora inesprimibile, più tardi
non l’oblio ma una punta che feriva
quasi a sangue. Ma allora eri già morta
e non ho mai saputo dove e come.
Oggi penso che tu sei stata un genio
di pura inesistenza, un’agnizione
reale perché assurda. (p. 490-491)
Sapeva messer Stefano i poeti molte volte essere di spirito divino e profetico
ripieni, tal che giudicava dover […] intervenire quella cosa che il Petrarca
profetizzava in quella canzone, ed essere egli quello che doveva essere di si
gloriosa impresa esecutore […] superiore per eloquenza, dottrina, grazia, amici
ad ogni altro romano.
ções tirânicas. É tema central para Leonardo Bruni, é tema que trará
desassossego a Alberti, Erasmo, Maquiavel, Guicciardini e que há-de
perdurar no tempo, inspirando desenvolvimentos de vária ordem, bas-
tante diversificados, até Montaigne e Pascal. O furor com que Petrarca
afronta o tema da glória deve ser remetido, por isso, não só para uma
posição pessoal que diz respeito ao sentido da sua glória, como tam-
bém para uma questão dirimente na determinação das características
de leaderships adequados às novas identidades cívicas. Se se fala de
petrarquismo e de Petrarca, é necessário explorar todas essas latitudes,
bem para além do recondutível àquelas inquietações pessoais que, na
realidade, por ele próprio eram individuadas de modo tão dramático,
precisamente por ter colhido, no seu cerne, a contiguidade com o des-
tino público e com a ética civil dos homens posmedievais.
Imbrica-se com essa questão toda a relevante interpretação de César,
tal como Petrarca a concebeu, muito bem explorada, sob um ponto de
vista crítico, por Enrico Fenzi. Não que Petrarca tenha eludido os
problemas relativos à vida dos “grandes homens” e à sua ambição, nem
à interpretação histórica daí decorrente. Cipião, Aníbal, Alexandre
trazem à luz uma excelência e uma dignidade, nesse domínio, a que dá
o maior relevo, de forma a mostrar a superioridade de Cipião e do
imperium romano. Como tal, César é objecto de uma leitura que dele
faz o mais autêntico intérprete de uma romanitas que tinha tido por
arquétipo Cipião. Mas a passagem da República ao Império é justificada
e explicada como inevitável, na situação de emergência histórica em
causa, quando o confronto com o sistema republicano, mergulhado
numa irreversível crise, não tinha espaço institucional, podendo-o adqui
rir, porém, num quadro imperial: “leitor, quanto pensas que fosse mais
justa a causa de Pompeu do que a de César?”. Por outras palavras, há
um momento em que força e violência (“à Schimitt”, sugere Fenzi)
podem refundar o direito e as leis. Mas é necessário quem saiba decidir
quando é que a lei já não tem força e a força age fora da lei (a “neces-
sidade” de César). Chegados a este ponto, encontramo-nos perante
aquela figura de “extraordinário dador de leis” que, uma vez mais, será
essencial para o percurso de Il Principe. Petrarca identificava-o mais
com César do que com os seus adversários. Naqueles tempos e naque-
las procelas, César era o único capaz de relegitimar, no mundo, a roma
nitas e a sua excelência. Então, Petrarca escolhe César sem trair Cipião.
110 | petrarca 700 anos
12
Pelo que diz respeito aos dados expostos, cf. E. Fenzi, Saggi petrarcheschi,
Fiesole, Cadmo, 2003.
13
Cf. os trabalhos citados nas notas 2 e 6.
a herança de petrarca | 111
(a cura di), Il piacere del testo. Saggi e studi per Albano Biondi, Roma, Bulzoni,
2001, pp. 813-944; “Magna et minima moralia. Qualche ricognizione intorno
all’etica del classicismo”, in Filologia e Critica, 25, maggio-dicembre 2000,
pp. 179-221; introdução a L’arte della conversazione nelle corti del rinascimento,
a cura di F. Calitti, Roma, Istituto Poligrafico dello Stato, 2003.
18 Seja-me permitido reenviar para quanto já defendia em Le frontiere de-
dissociar esses dois aspectos20. Não é por acaso que a soma de ambos
os filões ganha vigor na próprias práticas de escrita e na consciência
da centralidade do livro e da biblioteca (projectadas pela invenção e
pelo desenvolvimento da imprensa, que crescem em paralelo com a
difusão do petrarquismo, alimentando-se reciprocamente através de
uma extraordinária simbiose). É a biblioteca do poeta de Arquà, é o
conjunto das suas apostilhas, é a sua indefectível vontade de ser posto à
prova pelo “livro” (também pelo “livro” da sua vida e da sua memória,
repartido entre rimas em vulgar e cartas) que se encontram na origem
daquelas identidades quinhentistas, com várias estações intermédias,
em cujo âmbito cabe um papel de primeira grandeza ao Poliziano do
Panepistemon.
Trata-se de uma tabela de saberes característica do Humanismo,
fortemente apoiada sobre o primado petrarquesco da literariedade,
da dialogia, da filosofia, como relativismo e pragmática (e o catálogo
da “biblioteca dos clássicos” de referência é certamente muito amplo,
de Cícero a Horácio, Virgílio, Séneca, aos poetas elegíacos, com o
fundamental Ovídio, aos gregos novamente descobertos, a Lívio e aos
historiadores, que merecem particular atenção, como se viu, a Valério
Máximo, aos gramáticos, aos mestres de retórica, aos filósofos, até aos
grandes textos médio-latinos, com destaque para Agostinho e Boécio,
construindo, dessa feita, uma tabela por disciplinas e uma hierarquia
formativo-pedagógica que não eram as da escolástica)21.
umanista e editore, Milano, Il Polifilo, 1995; id., Gli umanisti e il volgare fra
Quattro e Cinquecento, Milano, 5 Continents, 2003.
a herança de petrarca | 115
22
Remeto para o primeiro capítulo de G. M. Anselmi, Ricerche sul Machiavelli
storico, Pisa, Pacini, 1979. Quanto a Santagata, vd. nota 28. O De Sermone
de Pontano foi recentemente editado e traduzido por A. Mantovani, Roma,
Carocci, 2002.
23
Reenvio uma vez mais para os Saggi petrarcheschi de E. Fenzi.
116 | petrarca 700 anos
24
G. M. Anselmi, Gli universi paralleli della letteratura, Roma, Carocci, 2003.
25
Do Secretum e do De suis ipsius, vd. as recentes edições e traduções elabo-
radas por E. Fenzi para a editora, Mursia, Milano, 1992 e 1999.
26
Cf. C. Berra (a cura di), I Triumphi di F. Petrarca, Milano, Cisalpino, 1999.
Nesse volume, além do mais, E. Pasquini dá conta da grande oficina filológica
que montou para chegar à edição crítica do texto. Nova e fértil perspectiva de
estudo em M. C. Bertolani, Il corpo glorioso. Studi sui Triumphi del Petrarca,
Roma, Carocci, 2001.
a herança de petrarca | 117
por parte do poeta, talvez aporias que são hoje, para nós, inexplicáveis,
tivessem sido resolvidas).
Também influenciado por aquele Platão que não conhece directa-
mente, mas que, em tantos textos, não hesita chamar à liça para ampliar
a partitura ossificada de alguns saberes medievais, faz da narração
do amor terreno viagem simbólica, metafórica e profética, até à sua
conclusão na eternidade, com estações decisivas no doloroso passo da
Morte e na reflexão inquietante da Fama (e da sede de uma justa glória,
como já se disse), cujo fim ou morte, no Triumphus Temporis, é quase
uma espécie de “segunda morte” (1.141-145). Com efeito, a chegada à
Eternidade, com o seu triunfo sobre o Tempo, já foi associada à chegada
ao wastland de Eliot, uma Eternidade onde tudo se perde, sem que
pareça existir verdadeira consolação (o que levou à nossa precedente
remissão para Leopardi)29.
Uma viagem bem diversa da dantesca. Uma dolorosa e grandiosa
interrogação sobre as mudanças do homem e das coisas, de índole
clássica e agostiniana, da mesma feita, que penetra até às decisivas
questões acerca do tempo e do eterno e, definitivamente, acerca do
nada que ameaça o homem como indivíduo ou enquanto membro de
toda uma comunidade ou de toda uma civilização.
Assim se compreende como é que essa obra pôde marcar tão profun-
damente o mundo ocidental a ponto de perturbar o seu sono, levando
fileiras de homens de letras, filósofos, músicos, pintores, mestres de
tapeçarias e criadores de séries ornamentais (recorde-se o tempo de
Luís XIV, em França, pelo que diz respeito a este último aspecto,
por exemplo, conforme mo sugeriu Marc Fumaroli) a retomar, com
infinitas variações, a partitura dos Triumphi. O Triumphus Cupidinis
II, no “catálogo” dos amores trágicos de marca bíblica, clássica, his-
tórica (com tantas sugestões colhidas nas Heroides de Ovídio) que o
caracteriza, encontra-se, provavelmente, na base dos “catálogos” da
grande produção teatral trágica dos séculos XVI e XVII, em França
(Corneille e o ideal do magnânimo), em Espanha (Calderón de la Barca
em El Mágico prodigioso), no Shakespeare das tragédias “romanas”
Roberto Gigliucci
1968.
petrarquismo plural e petrarquismo de koine | 125
a J. V. de P. M. agradeço os caminhos
Jean-Luc Nardonne, Pétrarque et le pétrarquisme, PUF, col. “Que Sais-Je”,
nº. 3338, Paris, 1998 (1ª. ed.).
S. H. Steinberg, 500 años de imprenta, Barcelona, Zeus, 1963, p. 65, estabe-
lece que “Itália foi o primeiro país estrangeiro a que os impressores levaram o
novo invento” [a tipografia, na segunda década da segunda metade de qui-
nhentos]. E acrescenta que a Itália “foi também o primeiro país onde os impres-
sores alemães perderam o seu monopólio”.
unidade e diversidade das edições impressas, de e sobre petrarca | 133
São estas duas concepções as que destacamos do conceito de editio apresen-
tado pelo latinista Francisco Torrinha, in Dicionário Latino-Português, Porto,
Marânus, 1937, p. 277.
Petrarca nel tempo. Tradizione lettori e immagini delle opere, sob a direcção
de Michele Feo, Florença, “Comitato Nazionale per le celebrazioni del VII
Centenario della nascita di Francesco Petrarca”, 2003, pp. 46-47 e 49.
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Instituto Antonio Houaiss de
Lexicografia de Portugal, Lisboa, Temas e Debates, t. 7 (DEM-EFE), p. 3156,
considera-se edição – já perspectivado no Agiólogo dos Santos e Varões Ilustres,
de Jorge Cardoso, t. 3, 1666 – entre outros (na sua variante 4), o “conjunto dos
exemplares de uma obra, impressos numa só tiragem, ou ainda em várias se
não houver modificação no texto ou na composição tipográfica iniciais”.
134 | petrarca 700 anos
William Dana Orcutt, The Book in Italy, Londres [1928], pp. 28-32; José
V. de Pina Martins, Humanisme et Renaissance de l’Italie au Portugal, les Deux
Regards de Janus, Lisbonne, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian (2 v.), 1989,
v. 2, p. 871, n. 34; Jean-Claude Faudouas, “Arnold Pannartz, Konrad
Sweymheym”, in Dictionnaire des grands noms de la chose imprimée, Paris,
Retz, 1991, p. 137. Assinala este último autor que Arnold Pannartz e Konrad
Sweymheym deixaram Mogúncia entre 1461 e 1463, onde tinham sido vítimas
de perseguições políticas, período em que optaram por se instalar em Itália.
Chegaram até aos dias de hoje, de um ponto de vista sincrónico (em relação
Michele Feo, cat. cit., p. 63 (referenciado às reproduções M 1º-12).
Ib. Assinale-se que este incunábulo de 1472 foi objecto de uma edição em
fac-símile, sob os cuidados de G. Belloni, em Veneza, em 2001.
10 Prince d’Essling, Les livres à figures vénitiens de la fin du XVe siècle et du
17
A imagem do tempo, livros manuscritos ocidentais, coordenação científica de
Aires Nascimento, Lisboa, Museu Calouste Gulbenkian, 2000: “A perseguição
do Amor” (AC), pp. 278-279.
18
N.º 23: v.os 30-31; 38-40.
19
Petrarca nel tempo, p. 68.
unidade e diversidade das edições impressas, de e sobre petrarca | 143
Dei grandi autori di rime del passato arriva a stampa, com’è noto, solo il
Petrarca. È già stata sottolineata la fortuna quattrocentesca dei Trionfi, e a
Firenze in particolare; il fatto trova conferma anche nel campo della stampa:
le edizioni dei Trionfi sono 34 (in 12 casi accompagnati dal Canzoniere); altre
12 propongono il solo Canzoniere.
23 Il Libro di poesia dal copista al tipografo, sob a direcção de Marco Santagata
e de Amedeo Quondam (Ferrara, 29-21 de Maio de 1987), Ferrara, Panini, 1989
(o estudo de Antonia Tissoni Benvenuti encontra-se nas pp. 25-33), p. 31.
24 G. Folena, “Filologia testuale e storia linguistica”, in Studi e problemi di
também não tem dúvidas de que foi o texto desse códice que, após
uma cuidada preparação crítica, esteve na base do incunábulo da edi-
ção paduana de Valdezoco de 1472 (por sinal o ano do desaparecimento
do grande humanista que foi o Cardeal Bessarione). A qualidade do
trabalho filológico então realizado é passível de ser hoje melhor apre-
ciada e compreendida – face às dificuldades que já então apresentava.
Afirmamo-lo na medida em que os investigadores desta problemática
dispõem hoje, pelo menos, de três edições que melhor permitem a
avaliação de tão fastidioso trabalho. São elas as de Modigliani (1904)25,
Vatasso (1905)26 e mais recentemente de Belloni (2001)27.
Constatou-se atrás como, depois do eclosão em Veneza, em 1470, da
era do movimento tipográfico do petrarquismo, este tinha alcançado
também algum relevo, se não pelo menos desde 1470, seguramente a
partir de fins de 1471 (mais seguramente), em que Valdezoco terá prin-
cipiado a desenvolver todos os trâmites técnicos28 com vista à sua edição
incunabular do ano seguinte. Entretanto, o público leitor terá respon-
dido, decerto, de uma forma favorável, às primeiras edições dessa cidade
com textos poéticos de Petrarca. Tal facto terá incentivado um outro
tipógrafo, de nome até hoje desconhecido, a uma outra edição da obra
do mesmo autor. Essa nova edição é vulgarmente referenciada por uma
passagem do texto publicado (...) Francisci Petracæ pœtæ excellentissimi
Triumphus sextus et ultimus de eternitate expliciunt. MCCCC.LXXIII29.
p. 82.
unidade e diversidade das edições impressas, de e sobre petrarca | 151
Dois anos depois, em 1475, ocorre uma edição que, pela sua impor-
tância, merece uma nossa particular atenção. Trata-se de um comen-
tário aos Triumphi, a obra de Bernardo Glicino ou Illicino (que, cro-
nologicamente na esfera dos comentadores da poética petrarquiana
ocupa, sem dúvida, um papel à parte), autor cujo nome também surge,
por vezes, como Lapini de Siena. Este comentador avalia aspectos
decorrentes do texto dos Triumphi embora – e há, sem dúvida, que o
lamentar – não desenvolva comentários críticos sobre os programas
iconográficos até então em circulação com vista à ilustração dos vários
capítulos dessa mesma obra (quer na fase do códice quer na do impresso
recém surgida).
Por sua vez, em 1477 (e não sendo objectivo deste trabalho recensear
todas as edições quatrocentistas ocorridas), na mesma cidade do
Adriático, foi a vez de o tipógrafo Domenico Siliprando (= Dominicus
Siliprandus) tentar a sua sorte neste aspecto particular dos seus negócios
editoriais. Não se conhece se a sua iniciativa de editar a poesia de
Petrarca lhe coube ou se, em alternativa, lhe foi proposta. O que se
pode afirmar, com segurança, é que naquele ano – admitindo-se que
depois de 8 de Maio – saiu da sua oficina a edição Canzoniere. Trionfi.
Observando-se este incunábulo (existente em Sevilha) constatam-se nele
dois elementos novos. Nesta edição é claramente mencionado que os
textos são publicados “col commento di Antonio da Tempo”. Até então,
com efeito, o nome do editor comentador tinha sido omitido. O segundo
elemento inovador nesta nova edição de textos poéticos de Petrarca é
o facto de o trabalho de impressão resultar de uma encomenda de um
tal Gaspar Siliprandi (que pagou as respectivas despesas), tudo indica
que um seu familiar e porventura livreiro na mesma cidade.
32 José V. de Pina Martins, “Petrarca, esse primeiro moderno” (Paris, 1974),
nova edição sob o título “Modernidade de Petrarca”, in Revista Portuguesa de
História do Livro, 15, 2004, pp. 55-104, em particular, pp. 60-61 (n. 11).
33 Prince d’Essling, Les livres à figures vénitiens, Première partie, t. I (1907),
pp. 82-88.
156 | petrarca 700 anos
34
Prince d’Essling e Eugène Muntz, Pétrarque, ses études d’art, son influence
sur les artistes, Paris, 1902. Esta matéria foi retomada pelo primeiro destes dois
autores na obra e v. ant. cit., p. 84.
35
Prince d’Essling e Eugène Muntz, op. cit. (2002).
36
Ib.
37
Ib.
38
Prince d’Essling, Les livres à figures, ed. e v. ant. cit., p. 86.
unidade e diversidade das edições impressas, de e sobre petrarca | 157
39 Contemporânea dessa edição de 1488 foi uma outra (apenas em parte simi-
lar), ocorrida não muito longe dali, em Florença, mas que os bibliógrafos datam,
com mais precisão, de c. 1488. Tratou-se de Triompho dello amore e os traba-
lhos tipográficos estiveram a cargo de Francesco Bonnacorsi e Antonio di
Francesco. Desta edição, existe um exemplar na Biblioteca Pública de Évora
(BPADE, Inc. 463).
40 Este impressor não deve ser confundido com o pintor Paolo Veronese,
44
Ib., p. 93. Um exemplar desta nova edição encontra-se na Biblioteca de
Trieste e um outro numa das bibliotecas de Florença.
45
Ib. Uma reedição desta obra virá a ocorrer, pelo menos uma vez, na mesma
cidade (e da que adiante trataremos), entre 12 de Janeiro de 1492 e 17 de Junho
de 1494, sob os cuidados do impressor Piero Quarengi.
46
Não tivemos acesso, durante a nossa estadia em Itália em fins da década de
noventa, ao estudo deste exemplar. Não deixa de ser interessante verificar que
a (nova) edição dos Triumphi, associada a Frei Gabriele Bruno, virá a ser
reeditada, como veremos adiante, entre 12 de Janeiro de 1492 e 17 de Junho
de 1494, na mesma cidade, na oficina de Quarengi.
unidade e diversidade das edições impressas, de e sobre petrarca | 167
47 A realização desta nova edição da referida obra com os mesmos comentários
de Hyeronimo Centone só não ficaria a dever-se a aspectos concorrenciais se,
porventura, o novo impressor (Ioannes Codecha) se encontrasse em duas situa
ções diferenciadas: ou tenha adquirido a oficina onde aquele outro técnico
(Piero Veronense) laborava com os respectivos materiais técnicos aí existentes;
ou, eventualmente, trabalhasse com ele na mesma oficina e tivesse sido agora
encarregado de aprestar uma nova edição com as ramas e gravuras já aí exis-
tentes.
48 Existem desta edição exemplares na Biblioteca de Trieste e numa das biblio-
tecas de Florença.
49 Príncipe d’Essling, p. 93.
data desta edição tinha, portanto, já 62 anos. Ele foi o pai de Bonifácio
Amerbach, também ele humanista e cultor das belas letras, com quem Damião
de Góis travou correspondência por várias vezes. Remete-se, a respeito deste
impressor, para Amadeu Torres, Noese e crise na epistolografia Goisiana, I As
cartas latinas de Damião de Góis, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro
Cultural Português, 1982, p. 244.
53 Exemplares deste incunábulo existem na Biblioteca Nacional em Lisboa
(BN Inc. 67 e Inc. 68; bem como em Évora (onde existem, além deste, três
outros incs. petrarquianos): Biblioteca Pública (Inc. 179). Remete-se, a propó-
sito, para Maria Valentina Mendes, Catálogo de incunábulos [Biblioteca
unidade e diversidade das edições impressas, de e sobre petrarca | 171
62 Ib.
176 | petrarca 700 anos
63 Esta obra incunabular conta com adic. de Leonardus Crassus, Johannes
65 Remete-se, no que respeita a alguns aspectos controversos desta obra, para
o mais recente trabalho de Jocelyn Godwin, The Real Rule of Four, The
Disonformation Company Ltd., 2004.
66 Martin Davies, Aldus Manutius Printer and Publisher of Renaissance Venice,
73 Assinale-se que cada um dos carros se apresenta, nesta edição Kerver-1546,
em gravura dupla: apresenta-se, na página da esquerda, o essencial do carro,
as rodas, o estrado, parte dos animais de tracção e dos acompanhantes; na da
direita, por sua vez, apresentam-se o resto dos animais de tracção do mesmo
carro, bem como a parte restante das figuras de acompanhamento.
74 Gilles Polizzi, p. 435, n. 2 (da p. 159 da sua ed.).
75 P. Commelin, Mitologia grega e romana, S. Paulo, Martins Fontes, pp. 24,
80 G. Polizzi, op. cit., p. 156 (e p. 437, n. 1 correspondente). Esta questão será
retomada, adiante nesta mesma obra, ao ser abordado um troféu alusivo ao
Triunfo de Cupido em Cítera (op. cit., p. 301).
81 Songe de Poliphile, ed. Polizzi, p. 154.
89 Norbert Schneider, A arte do retrato, Colónia, Lisboa, 1997, pp. 48-51.
91 Songe de Poliphile, ed. Polizzi, p. 439 (n. 1 referente à passagem do texto
da p. 166).
92 Ib., p. 168.
93 Ib.
95 É hoje sabido que o miniaturista ou iluminador deste códice foi Bartolomeo
with the Aldine Press”, in Aldus Manutius and Renaissance Culture. Essays in
Memory of Franklin D. Murphy, Florença, Leo S. Olschki, 1998, pp. 47-80.
184 | petrarca 700 anos
Algumas conclusões
Amedeo Quondam
* A assinalar que publico, presentemente, uma primeira redacção das interven-
ções que tive o prazer de apresentar a vários congressos organizados ao longo
do ano de 2004, por ocasião do sétimo centenário do nascimento de Francesco
Petrarca (precisamente, em Coimbra, Varsóvia, Duke University e Bolonha),
com o objectivo de vir a elaborar, mais cedo ou mais tarde, algo de abrangente
e orgânico acerca do petrarquismo. Por essa razão, em vez de retomar por
quatro vezes um texto que não seria muito diferente, conforme apresentado
às referidas reuniões científicas, preferi dividir em quatro a sua rearticulação,
fazendo-a mais ampla e – espero – mais vária e original. Por esse motivo, agra-
deço aos amigos que tornaram possível a minha participação nos congressos
por eles organizados e que depois quiseram aceitar a minha proposta distribu-
tiva, Rita Marnoto, Piotr Salwa, Valeria Finucci, Gian Mario Anselmi, Loredana
Chines, Paola Vecchi Galli. Não será este, com certeza, momento oportuno
para um balanço do ano petrarquesco, embora desde já gostasse de exprimir
a minha profunda gratidão a quantos investiram os seus melhores esforços para
darem vida à longa experiência dos tantos seminários romanos dedicados a
Petrarca, Petrarchismi. Modelli di poesia per l’Europa (que desembocaram, to-
dos eles, na edição das actas), a começar por Floriana Calitti e Roberto Gigliucci.
Mais do que um saudoso regresso a conspícuas porções de vida, foi, para mim,
um positivo olhar para diante, graças à sabedora paixão dos tantos jovens que
neles participaram.
188 | petrarca 700 anos
com o correr do século, algo bem mais forte do que uma mera marca
tipográfica1.
O autor (Nicolò Franco), o editor (Giovanni Giolito, juntamente
com Gabriele) e o livro: o seu título, Il Petrarchista. Três inícios, ou
quase.
Começo pelo autor.
dora pelo que tem de impróprio o tom de escândalo de alguns críticos, reenvio
para Alessandro Capata, “Nicolò Franco e il plagio del Tempio d’Amore”, in
Furto e plagio nella letteratura del Classicismo, a cura di Roberto Gigliucci,
“Studi (e Testi) Italiani. Semestrale del Dipartimento di Italianistica e Spettacolo
dell’Università di Roma La Sapienza”, 1, 1998, Bulzoni, Roma, pp. 219-232.
4
A edição de referência, também pelo exaustivo apuramento do enredo edi-
torial que envolve o primeiro livro, é a preparada por Paolo Procaccioli, em
6 v., Salerno Editrice, Roma, 1997-2002.
5
Cf. o facsímile da 3. ed. (Venezia, Gardane, 1542) das Pìstole vulgari, a cura
di Francesca Romana de’ Angelis, Forni, Bologna, 1986.
6
Remeto, obviamente, para a edição citada, que com todo o cuidado, também
pelo que diz respeito ao amplo comentário, organizou Franco Pignatti.
7
Bastará considerar, a esse propósito, a feição argumentativa do terceiro diá
logo, ao qual me referirei adiante, que toma forma em torno da pergunta, “Hai
tu il Petrarca per buono autore e per degno d’essere imitato ne le sue rime?”
(Franco, Dialogi piacevoli, p. 200).
190 | petrarca 700 anos
8
Mas Giovanni também permanece fiel aos seus livros profissionais, em latim.
No ano de 1538, publica duas obras do cardeal dominicano Tommaso De Vio
(chamado “il Caetano”, rival de Lutero nas disputas teológicas da altura).
Petrarquistas e gentis-homens | 191
9
Para todas essas informações editoriais, continua a ser obrigatório o manejo
de Salvatore Bongi, Annali di Gabriel Giolito de’ Ferrari da Trino di Monferrato,
stampatore in Venezia, Roma, 1890-1895; enquanto espero ter oportunidade
de ler o volume de Angela Nuovo, Christian Coppens, I Giolito e la stampa
nell’Italia del XVI secolo, Droz, Genève, 2005 (no prelo).
10
O que é posto em relevo, da mesma forma, e desenvolvido por Franco
Pignatti na “Nota al testo” da citada edição dos Dialogi piacevoli, pp. 67-69.
11
Nicolò Franco usará ainda esse mesmo termo na Priapea editada com os
Sonetti contra l’Aretino (Torino, Guidone, 1541): “Lunge Ser Petrarchisti dal
bel stile, / che le rime con gli uopi profumate, / perché voi, mastri giudici,
stimate / il Caballino mio mandria e porcile” (3.4-8); “Indietro, o Petrarchisti,
se m’amate, / ch’io per gran male che mi stiate a i fianchi, / e tal che cosa alcuna
non mi manchi, / bisogna che mi diate sicurtate” (101.1-4). Por finais do século,
192 | petrarca 700 anos
Ho con molto piacer mio letto le vostre lettere, onorato messer Giulio e gentile,
per le quali mi date contezza della nuova compagnia che s’è costì fatta, nella
città, di molti giovani che si danno alla volgar lingua, e si ragunano insieme
tutti i dì delle feste a comune utilità e diletto: dove il nostro messer Emilio
legge loro il Petrarca, e anco le mie Prose, che della lingua ragionano. E di vero
che io sento molta contentezza, e grandemente mi rallegro udendo che gl’Italiani
uomini pongono cura si saper ben parlare con la favella nella quale essi nascono,
e di bene intendere le buone volgari scritture, e massimamente il Petrarca, capo
e maestro della volgar poesia. La qual cosa farà che anco essi ne comporranno,
e sapranno ciò fare correttamente; e così s’arricchirà questa lingua che è ancora
povera di buoni e illustri rimatori e prosatori a comperazion della Latina e
della Greca, che ne sono così ricche e così abbondanti14.
14
Bembo, Lettere, II, p. 161 (n. 1122).
15
Remeto de imediato para os estudos fundadores de Paolo Trovato, Con ogni
diligenza corretto. La stampa e le revisioni editoriali dei testi letterari italiani
(1470-1570), Il Mulino, Bologna, 1991.
Petrarquistas e gentis-homens | 195
16
De Brescia, entregue por mão do próprio Porcelaga, tinha recebido, alguns
anos antes, uma dupla oferta de Emilio de’ Mili, um cesto de erva-cidreira e
um soneto (presente este “ancor più bello e più grato”); cf. Bembo, Lettere,
III, p. 481 (n. 837; a carta é datada de Pádua, 27 de Novembro de 1527).
17 Vd. as “leis” dessa “compagnia degli amici” (para além de Bembo, dela
scriptorium alla tipografia”, Il naso di Laura. Lingua e poesia lirica nella tradizione
del Classicismo, Panini, Modena, 1991, pp. 110-114.
19 Cf. Amedeo Quondam, “La forma Accademia”, in Letteratura italiana,
tado, com um rico aparato crítico e documental, Rime diverse di molti eccel-
lentissimi autori (Giolito 1545), a cura di Franco Tomasi, Paolo Zaja, Edizioni
Res, San Mauro Torinese, 2001. Assinalo também o inovador volume de estu-
dos, “I più vaghi e i più soavi fiori”. Studi sulle antologie di lirica del Cinquecento,
196 | petrarca 700 anos
a cura di Monica Bianco, Elena Strada, Edizioni dell’Orso, Torino, 2001. Para
uma visão de conjunto dessa fundamental e feliz tipologia, é essencial a consulta
dos resultados apresentados no sítio do projecto ALI RASTA (Antologie della
lirica italiana: raccolte a stampa), de Simone Albonico, na Universidade de Pavia
<http://rasta.unipv.it>. Assinalo também o sítio homólogo, ainda em constru-
ção, igualmente dedicado às recolhas de rimas, de Domenico Chiodo <http://
www.sursum.unito.it/archivi/>.
21
Apesar de ser mais tardia (os primeiros testemunhos parecem surgir na se-
gunda metade do século XVIII), a nova palavra petrarchismo é formada a
partir de uma relação especular e correlata com petrarchista, derivada de
Petrarca. Desperdiça, contudo, a intensidade conotativa de “petrarquista”,
enquanto pessoa titular, por si, da nova competência, numa junção indistinta
(“petrarquismo”, precisamente), que se presta a um olhar fortemente (e logo,
ferozmente) crítico.
22
Para um levantamento dos tantos nomes da categoria “Renascimento”, re-
meto para um meu ensaio, no prelo, “Classicismi e Rinascimento: forme e
metamorfosi di una tipologia culturale”, in Il Rinascimento italiano e l’Europa,
v. 1, Storia, storiografia e geografia del Rinascimento, Fondazione Cassamarca,
Treviso.
Petrarquistas e gentis-homens | 197
23 Quanto à história dessa palavra, que logo se tornou fundamental para a
“Due re in Parnaso. Aretino e Bembo nella Venezia del doge Gritti”, in Sylva.
Studi in onore di Nino Borsellino, a cura di Giorgio Patrizi, Bulzoni, Roma,
2002, v. 1, pp. 207-231.
Petrarquistas e gentis-homens | 199
27
Bembo, Lettere, I, p. 265 (n. 270).
28
No levantamento do repertório bibliográfico dos Libri di poesia, a cura di
Italo Pantani, Editrice Bibliografica, Milano, 1996, fica patente, com toda a
evidência, o carácter inovador do trabalho gráfico de Aldo Manuzio e de Pietro
Bembo. Das 38 edições das rimas de Petrarca que a precedem, de facto, apenas
uma em pequeno formato há a registar (n. 3517, s. l., 1475), sendo a maior
parte delas em grande formato (sem ter em linha de conta a complexidade das
definições bibliológicas relativas ao formato dos fólios com uma única dobra;
contudo, com umas 20 edições). Do formato em quarto, há 16. A situação do
formato das sucessivas 86 edições (até meados do século) é muito diversa, ou
melhor, inverte-se. Sintetizando bastante, dominam os pequenos formatos de
bolso (ou de “manga”, como dirá Aretino). Mais de metade (ou seja, 44) são
em oitavo; 11, em doze; 6, em dezasseis; 2, em vinte e quatro. E se o formato
em quarto se mantém (com 18 edições), o grande formato desaparece (5 edi-
ções, sendo a última, porém, de 1515). Para uma análise do entrelaçamento
entre género lírico e livro tipográfico, num momento de tão grande dinamismo,
reenvio para Nadia Cannata, Il canzoniere a stampa (1470-1530). Tradizione
e fortuna di un genere fra storia del libro e letteratura, Bagatto Libri, Roma,
1996; bem como para as intervenções compiladas em Il libro di poesia dal
copista al tipografo, a cura di Amedeo Quondam, Marco Santagata, Panini,
Modena, 1989.
200 | petrarca 700 anos
E io, non mi potendo saziare di vedere i cortigiani, perdea gli occhi per i fori
della gelosia vagheggiando la politezza loro in quei sai di velluto e di raso, con
la medaglia nella berretta e con la catena al collo, e in alcuni cavalli lucenti
come gli specchi, andando soavi con i loro famigli alla staffa, nella quale tene-
ano solamente la punta del piede, col petrarchino in mano, cantando con vezzi:
“Se amor non è, che dunque è quel ch’io sento?”29.
29 Tomo por referência, Pietro Aretino, Sei giornate, a cura di Giovanni
Aquilecchia, Laterza, Bari, 1969, pp. 94-95. A citação contida no texto corres-
ponde ao incipit de Rerum vulgarium fragmenta 132. A mesma situação é evo-
cada por Messer Maco na Cortigiana (1.22 da segunda redacção, que Marcolini
bateu diversas vezes, depois da sua princeps de 1534): “Questo ve lo insegnerà
ogni cortigianuzzo furfantino, che sta da un vespro a l’altro come un perdono
a farsi nettare una cappa e un saio d’accottonato, e consuma l’ore in su gli
specchi in farsi i ricci e ungersi la testa antica, e col parlar toscano, e co ‘l
Petrarchino in mano, con un: sì a fé, con un: giuro addio, e con un: bascio la
mano, gli pare essere il totum continens” (Pietro Aretino, Teatro, a cura di
Giorgio Petrocchi, Mondadori, Milano, 1971, pp. 118-119). Na primeira re-
dacção da Cortegiana (de 1525), lê-se também a seguinte tirada de messer
Maco: “Voi mi fate una rima falsa, ché bisogna non è toscano, ed ecco qui in
la manica el Petrarca che lo conferma” (p. 722).
Petrarquistas e gentis-homens | 201
30 A primeira forma surge no Dialogo nel quale la Nanna insegna a la Pippa:
“Ti dirò: i Viniziani hanno il gusto fatto a lor modo e voglino culo e tette e
robbe sode, morbide, e di quindici o sedeci anni e fino in venti, e non de le
petrarchescarie”, diz Nanna (p. 181). A segunda no Ragionamento: “la petrar-
chesca Madrema non vole” (p. 74). A terceira tirada serve de início ao
Ragionamento delle corti (cuja primeira edição é de 1538; são seus interlocu-
tores, Lodovico Dolce, Francesco Coccio e Pietro Piccardo): “Noi potremmo
chiamare questo giardinetto del Marcolino ventaglio de la state, poiché il re
spirare del suo vento, l’ombra del suo verde, la soavità dei suoi fiori et il canto
dei suoi augelli petrarchevoli rinfresca, ricopre, diletta et adormenta e tanto
più giova il passegiarci ora, quanto meno il caldo del suo agosto fa bollire la
nona d’oggi che quella d’ieri” (cito da edição de Fulvio Pevere, Mursia, Milano,
1995, p. 45; quem fala é Dolce, no jardim de Marcolino).
Assinalo mais duas ocorrências de petrarchesco, a primeira na Galeria de
Giovanni Battista Marino (Ciotti, Venezia, 1619), na parte dedicada aos
Ritratti burleschi, num soneto a Cesare Caporali: “Gazettier d’Aganippe, seu
Menante, / Gran Caporal de la squadra burlesca, / mi burlai de la Musa
Petrarchesca / sonando un colascion dolce e piccante” (Giovanni Battista
Marino, La Galeria, a cura di Marzio Pieri, Liviana, Padova, 1979, I, p. 204),
a segunda na Piazza universale di tutte le professioni del mondo e nobili e igno-
bili di Tomaso Garzoni (primeira edição, Venezia, Somasco, 1585), no último
Discorso (que é o 154), dedicado aos Poeti in generale e aos formatori d’epitaffi
e pasquinate in particolare, que fixa, por assim dizer, o paradigma do poeta
quinhentista como poeta petrarchesco: “E più ragionevolmente fanno i poetucci
moderni, che attendono solamente a sfodrar fuori ne’ sonetti un loro ‘sovente’,
un ‘dogliose note’, un ‘verdi piagge amene’, un ‘lieti boschi’, un ‘ritrosetto
amore’, un ‘pargoletti accorti’, un ‘bei crin d’oro’, un ‘felice soggiorno’, dove
non dan molestia ad altri che alle dive loro, né sono almeno di tanto stoma-
chevole invenzione come gli antichi i quali, se non fanno convertir gli uomini
in piante, le dee in fiumi, le ninfe in fonti, i satiri in augelli, non hanno fatto
202 | petrarca 700 anos
Habent sua fata não só os libelli, mas também as palavras dos seus
títulos.
Estão às vezes ligados, livros e títulos, por verdadeiras tramas inter-
textuais, que só escapam ao nosso olhar de indagação porque raramente
associamos a unidade bibliográfica que atrai a nossa curiosidade ao
conjunto editorial de que é parte. Assim, pelo que toca a Il Petrarchista
31 Sobre esses temas, não posso deixar de recordar o estudo de Luigi Baldacci,
Il petrarchismo italiano nel Cinquecento, Liviana, Padova, 19742.
204 | petrarca 700 anos
32 Para uma análise do tão inovador comentário de Vellutello (contributo de-
terminante para a formação do mito do Petrarca, personagem do Canzoniere,
da sua amada Laura, da paisagem de Vaucluse, com o relativo mapazinho
geográfico, etc.), que logo adquiriu uma importância dominante, com mais de
vinte reedições ao longo do século XVI, são essenciais as páginas de Gino
Belloni, Laura tra Petrarca e Bembo. Studi sul commento umanistico-rinascimen-
tale al “Canzoniere”, Antenore, Padova, 1992, pp. 58-95. A edição organizada
por Vellutello manter-se-á no catálogo de Giolito durante muito tempo, com
seis reimpressões até 1560.
33 Cf. Angela Nuovo, Il commercio librario nell’Italia del Rinascimento, Franco
34 Os librari, o que quer dizer que também os editores estão constantemente
presentes nos Dialogi piacevoli, conforme se diz na dedicatória do oitavo diá-
logo a Giovan Tomaso Bruno: “Non so […] che humor melanconico sia stato
il mio, che in questi Dialogi m’habbia voluto impacciare fin sopra l’arte de i
librari” (Franco, Dialogi piacevoli, p. 291). Estão representados por Gabriele
Giolito, dedicatário do oitavo diálogo, com uma carta na qual Nicolò Franco
elogia a sua liberalidade.
35 É evidente que evoco as fundamentais considerações de Carlo Dionisotti,
Geografia e storia della letteratura italiana, Einaudi, Torino, 1976. Sobre o nas-
cimento da gramática, nas suas relações com a tipografia (era o título de um
meu ensaio de 1978), são essenciais, Paolo Trovato, Con ogni diligenza corretto;
Brian Richardson, Print Culture in Renaissance Italy. The Editor and the
Vernacular Text (1470-1600), Cambridge University Press, Cambridge, 1994.
206 | petrarca 700 anos
36 Pelo que diz respeito à extraordinária história dessa tipologia de livro, remeto
para o já citado, Gino Belloni, Laura tra Petrarca e Bembo. Limito-me a assina-
lar as datas das primeiras edições desses comentários, obviamente, todas vene-
zianas: Fausto da Longiano, 1532 (Bindoni e Pasini); Alunno, 1539 (Marcolini);
Gesualdo, 1533 (Nicolini da Sabbio); Daniello, 1541 (Nicolini da Sabbio).
37 Os dados resultam da consulta em rede de Edit 16 (levantamento das edições
39 Por razões que não são apenas sentimentais, recordo os meus dois estudos,
“Nel giardino del Marcolini. Un editore veneziano tra Aretino e Doni”, in
Giornale Storico della Letteratura Italiana, 1980, pp. 75-116; “‘Mercanzia
d’onore’/‘Mercanzia d’utile’. Produzione libraria e lavoro intellettuale a Venezia
nel Cinquecento”, in Libri, editori e pubblico nell’Europa moderna, a cura di
Armando Petrucci, Laterza, Bari, 1977, pp. 51-104; bem como o quadro geral,
“La letteratura in tipografia”, in Letteratura italiana, v. 2, Produzione e consumo,
Einaudi, Torino, 1983, pp. 555-696. Com respeito à restituição, a Nicolò
Zoppino, do papel que desempenhou no nascimento da moderna literatura,
depois das investigações de Trovato, Con ogni diligenza corretto, são de grande
auxílio os resultados das pesquisas de Lorenzo Baldacchini, “Chi ha paura di
Nicolò Zoppino? Ovvero: la bibliologia è una ‘coraggiosa disciplina’?”, in
Bibliotheca, 2002, 1, pp. 187-199; “Zoppino editore: ultime notizie dal cantiere”,
in Bibliotheca, 2003, 2, pp. 221-233; “Un editore ‘volgare’: Nicolò d’Aristotele
de’ Rossi detto lo Zoppino (1503-1544)”, in L’Europa del libro nell’età
dell’Umanesimo, a cura di Lucia Secchi Tarugi, Cesati, Firenze, 2004, pp. 233-
-244. Sobre as relações de Nicolò Franco com os editores venezianos da década
de trinta, cf. as informações contidas na citada edição dos Dialogi piacevoli, ad
indicem.
Petrarquistas e gentis-homens | 209
mesmo nada, importa, se, nessa década de trinta e nesse contexto vene
ziano, as intenções do autor do disfarce espiritual de Petrarca eram
tremendamente sérias, porque é a situação, aqui e agora, a produzir o
efeito paródico: como pode sempre resultar das particulares modali-
dades performativas mediante as quais se realiza a produção/recepção
da mensagem. Numa jocosa e transtornada leitura do projecto de frei
Girolamo.
A parte do leitor, portanto. Na verdade, para que essas duas obras,
o diálogo de Nicolò Franco e a resposta integral a Petrarca (transfor-
mado, por Malipiero, em teólogo e espiritual) pelas mesmas rimas, que
foram publicadas em Veneza num tão breve arco de tempo, possam
ter sentido, é necessário que pelo menos uma condição seja observada,
a qual constitui decisivo factor de discriminação para uma recepção
paródico-jocosa: o leitor deve possuir uma profunda competência pe-
trarquesca, precisamente, a que dele faz um petrarquista, enquanto
titular de um saber específico. Só quem leu atentamente Petrarca, só
quem assimilou plenamente Petrarca, só quem traz sempre consigo o
petrarchino (na mão ou na manga) e o sabe convenientemente reusar
pode, de facto, praticar aquela performance de leitura intertextual
(através da memória) que institui o jogo paródico e o torna agradável,
num contínuo vaivém entre texto parodiante e texto parodiado, e vice-
-versa, simbioticamente correlacionados.
Com uma provável dupla diferença, porém, entre Nicolò Franco
e Malipiero, nas suas respectivas formas de recepção. A primeira
diz respeito à sincronia, no momento das suas primeiras edições, na
década de trinta. Se as brilhantes deformações do diálogo de Franco
arrancam seguramente aos leitores um sorriso de comprazimento, o
disfarce espiritual produzido por Malipiero não pode deixar de sus-
citar sonoras gargalhadas, porque diz respeito, directa (e integral-
mente), ao corpo textual que qualquer leitor “petrarquista” sabe de
cor. A segunda diferença decorre do facto de essa competência, como
todas as outras, ser fluida e descontínua no dinamismo da sua dia-
cronia (e não só), num século, aliás, tão longo. Se, por um lado, o
jogo de Nicolò Franco, a partir de um certo ponto, se apaga, quando
as fileiras dos petrarquistas são directamente representadas por sóli-
das pilhas de volumes com rimas de diversos autores (a terceira e
última edição do diálogo é de 1543, a primeira recolha de Giolito é
210 | petrarca 700 anos
46 Ib.
47 Reenvio para os ensaios contidos em Storia della lettura nel mondo occiden-
tale, a cura di Guglielmo Cavallo, Roger Chartier, Laterza, Roma-Bari, 1995.
214 | petrarca 700 anos
48
Franco, Dialogi piacevoli, p. 197.
49
Paralela e perfeitamente integrada numa maior, a dos romances de cavalaria,
oferece-se ao reconhecimento uma outra tipologia, a daquela compilação que
tem o mesmo título (autónomo relativamente à brincadeira de Nicolò Franco)
na monumental reedição facsimilada do corpus de pequenos poemas que
Petrarquistas e gentis-homens | 215
Sì che son risoluto di componere per prima data un bel libro di guerre in ottava
rima, ove, oltre che in tante diverse materie che ivi occorrono, potrò mostrare
la somma dell’intelletto, farò cosa che in ogni tempo et in ogni luogo harrà il
piede. Harrò per questa via il favore di tutte le genti. I Prencipi prima, che
volentieri leggono queste cose, che leggeranno se non quest’opra? Essi così ne
le caccie come ne le giostre ricordandosi di quel che che io scriverò di Baiardo
e di Brigliadoro50, haranno non solamente fitto il pensiero in quegli affronti,
ma terranno i miei versi su la punta de i labri in ciò che faranno e dovunque
anderanno. Se a tutte le spetie de gli huomini poi guarderemo, fino a i ceretani
non potranno accordar le lire, se i miei romanzi non gli stiraranno le corde.
I bottegari, i mercatanti e tutte le brigate mecaniche, non havendo che fare,
havranno il ricorso de i lor diporti ne le vaghe consonanze de i miei versi. Fino
a i marinari non faranno viaggio alcuno che con la carta da navigare non
habbiano le mie carte. Havrò ultimamente in mia gloria fino al favore di tutte
le belle donne, le quali, vaghe d’udire gli innamoramenti di quegli antichi
paladini, leggendo quel che io focosamente ne scriverò, le farò non solamente
innamorare del nome mio, ma ne l’ascoltare le bellezze ch’io fingerò in quelle
cavalieresse erranti, disiose che anchor di loro si scriva il simile, diventeranno
pietose inverso de i lor seguaci51.
prima farà fede a quegli che non hanno lettre ch’io n’habbia assai, anchora che
n’habbia poche. E poi co ‘l tradure de le cose che per le scole si spettino e per
le piazze dilettino mi farò celebrare fino in quei luoghi dove non ho mai posto
il piede56.
56
Franco, Dialogi piacevoli, pp. 198-199.
57
Cf., por exemplo, Luciana Borsetto, Tradurre Orazio, tradurre Virgilio.
“Eneide” e “Arte poeica” nel Cinque e Seicento, CLEUP, Padova, 1996.
58
A tradução para vulgar de Terêncio, na verdade, é empresa de Giovanni
Giustiniano, só publicada em 1544, mas bem conhecida de quantos lhe eram
próximos, que gracejam, eles próprios, da escolha do verso esdrúxulo. Dela
fala, várias vezes, o próprio Nicolò Franco, nas Pìstole vulgari. Merece parti-
220 | petrarca 700 anos
será posta em causa nas conclusões de Sannio, com reuso da tópica metáfora
de “mau imitador = macaco” (e a sua imitação é má, porquanto “non solamente
zoppa, ma cieca anchora”), e com uma nova proposta dos critérios para uma
boa imitação (só serás “verissimo imitatore” se souberes “penetrare con la tua
mente là dove egli penetrò con la sua” [Petrarca / Cícero], ib., p. 215).
63 Franco, Dialogi piacevoli cit., p. 209.
64 Cf. ib., pp. 211-212. A instância representativa dessa opção cultural é exas-
perada pelo sonho, contado por Sannio, que tem como protagonista um homem
mascarado, afinal um premonitor de quanto Eolophilo pretende ser; cf. ib.,
pp. 212-213.
Petrarquistas e gentis-homens | 223
del Sarto, para concluir com o pintado por Bronzino, em ano não muito
distante de 1560, de Laura Battiferri (uma escritora). Interessa colocar
em evidência, porém, o dado mais significativo de duas imagens enqua
dradas numa fase decisiva da moderna literatura, isto é, o facto de que
condividem o mesmo gesto da mão esquerda, que exibe um petrarchino
(mas manuscrito), aberto numa página a ser lida com atenção (o texto
é, efectivamente, legível) a fim de que o retrato tenha sentido, a partir
do momento em que os dedos da mão de ambas as figuras femininas
mimam a mãozinha geralmente usada para assinalar, nas páginas de um
livro, a intenção de marcar um passo de relevo para o leitor65.
As referências a imagens contemporâneas poder-se-iam alargar, e
muito, de modo a formar uma galeria de retratos de mulheres e gentis-
-mulheres, de homens e gentis-homens, que assumem o livro como
marca pessoal identitária: classicistas (com o livro na mão) e petrar-
quistas (com o petrarchino na mão), ou melhor, gentis-mulheres e gen-
tis-homens acabados, na moderna forma que lhes é própria e consti-
tutiva, porquanto petrarquistas, titulares de um “saber fazer” que é
“supremo ornamento” da nova cultura e verdadeiro emblema da sua
polidez.
A competência estética e ética que estrutura essa segunda natureza
adquirível (com estudo e esforço), enquanto forma de vida orgânica,
é tão vincadamente programática a ponto de se tornar um estável lugar-
-comum identitário do moderno gentil-homem (e da moderna gentil-
-mulher), capaz de atrair também pessoas cuja condição não é nobre.
Do seu alastramento, são testemunhos directos, em primeiro lugar, as
centenas e centenas de livros de rimas (impressos e manuscritos) publi
cados ao longo do século XVI, todos eles, no seu conjunto, ícones
representativos do processo produtivo da nova e obrigatória compe-
tência estética (e ética). Saber escrever e saber ler um livro de rimas
65 Remeto para a análise de Roberto Fedi, “Le scritture dipinte. Modelli cul-
turali e messaggi (anche ideologici)”, in Beato Angelico e Benozzo Gozzoli.
Artisti del Rinascimento in Umbria, a cura di Vittoria Garibaldi, Silvana, 1998,
pp. 51-61. Para uma perspectiva geral (com muitos exemplos) da rica e inin-
terrupta tradição iconográfica da representação do livro pela pintura, é útil
o livro de Anna Gattinoni, Giorgio Marchini, Il libro dipinto, Cattaneo,
Lecco, 1998.
224 | petrarca 700 anos
Hora tu dei sapere che, se ben l’arte di vender libri pare la più facile che si
ritruovi, per essercitarla ben bene bisogna altro che haver bottega con la bella
insegna apiccata sinanzi a la porta, carte qua, libri indorati là, legatori dentro
e legatori fuori, starti là fitto come un bastone e dire: “Tanto ne voglio e tanto
ne volsi”. Vi bisogna havere mill’altre industrie e che tutte si sappiano mostrare
a tempo, per guadagnare un bel thesoro ogni anno71.
Ib., p. 296.
71
coloro che componono e che stampano sono hoggi le due parti de gli huomini,
chi potrà mai raccogliere tanti libri?” (ib., p. 297).
Petrarquistas e gentis-homens | 227
Prima v’è di mistiero che tengniate di tutti i libri. Non guardate che il tale è
buono e il tal altro è tristo, quegli si spacciano e questi no, perché opre domani
si venderanno che hoggi non hanno corso, e quelle che hoggi corrono domani
saranno zoppe. Non guardare che l’opre de’ goffi, de’ ceretani e de’ gnoranti
han qualche spaccio tal volta, perché di là a tre dì si scopre la cosa in rame e
quanto più stanno, più vanno a monte, e le cose de i veramente dotti restano
sempre in piede73.
Os tais “veramente dotti” que se opõem, com os seus livros, aos livros
dos charlatães e dos ignorantes, não activam, de modo nenhum, um
mercado especializado de alta cultura, nem nada têm a ver com o nicho
do livro humanístico (além do mais, em latim). Sannio quer-se referir
explicitamente aos livros da cultura literária contemporânea em vulgar,
domínio amplamente dominado pelo livro de poesia. Mas para poder
proceder nesse sentido, deve distinguir, previamente, os livros moder-
nos das tantas impressões que são “populares” em virtude da medíocre
condição do seu pobre e grosseiro corpo material, mais do que em
virtude da compleição linguística e formal do seu texto. E, de facto,
Sannio esclarece logo o assunto, exemplificando quais são os títulos
mais representativos dessa livraria actualizada e na moda, aberta ao
novo povo dos leitores comuns: títulos emblemáticos, todos eles, da
Ib., p. 296.
73
228 | petrarca 700 anos
Sì che per la miglior parte si è l’havere d’ogni insalata. Gli appetiti de gli huo-
mini sono diversi. A chi piace l’Orlando furioso et a chi l’Ancroia, a chi il
Seraphino et a chi il Petrarca, a chi l’Historia del Sabellico et a chi quella di
Gioan Villani. A chi i Capitoli del Bernia et a chi quegli del signor Quinto.
A chi le Regole del Fortunio, a chi le Tre fontane del Liburnio. Et a chi la
Cazzaria de l’Ariosto et a chi la Vita de’ santi Padri74.
80 Mas as tendências emergentes nos títulos dos livros de poesia escritos pelos
protagonistas da moderna literatura são também diferentes. Se Bernardo Tasso
publica, em 1531, 1534 e 1537, em Veneza, três livros de rimas, intitulando-os,
conotativamente, Amori, Luigi Alamanni publica as suas Opere toscane (Lion,
1532; um título que não é simplesmente denotativo, tendo em linha de conta
a situação do autor, exilado em França).
81 Estando ainda por fazer, conforme explicarei adiante, um levantamento
82
Só um punhado de exemplos. Se são sempre vistosos, os títulos de Caio
Baldassarre Olimpo Alessandri (Gloria, Linguaccio, Nova Phenice, Camilla,
Olimpia, Ardelia, Parthenia, Pegasea, Aurora, várias vezes reimpressos, quase
todos os anos, ao longo de um considerável lapso temporal), igualmente o são
tantos outros (e aos títulos corresponde também uma métrica, nem sempre
petrarquesca): Ercole Bentivoglio, Il sogno amoroso (1530), Eustachio Celebrino,
Pantheon (1530), Gregorio di Riccardi, Viaggio amoroso intitulato el Diamante
(1530), Girolamo Britonio, Gelosia del sole (1531), Giovanni Paolo Vasio,
Theatri d’Amore (1531), Francesco Fei, Lucilla Politiana (1532), Ascanio Botta,
Rurale (1533), Giuseppe Fedeli, Giardino di pietà rithmico (1533), Giovanni
Battista Verini, Ardor d’Amore (1534), Iacopo Beldando, Lo specchio de le
bellissime donne napoletane (1536), Diomede Guidalotti, Potentia d’Amore
(1538), Eurialo Morani, Vita disperata (1538), etc.
Petrarquistas e gentis-homens | 233
83
Vd. a sua reedição facsimilada, a cura e con introduzione di Massimiliano
Mancini, Vecchiarelli, Manziana, 1996.
84
Um só dado geral e em bruto, de toda a maneira extremamente significativo:
da consulta dos dados do Censimento delle edizioni italiane del Cinquecento,
que se encontra on line, são mais de 750 as edições que levam Rime no título,
entre 1540 e 1600.
234 | petrarca 700 anos
86 Sobre esse aspecto da cultura literária e editorial, não há ainda a registar um
desenvolvimento do interesse historiográfico e crítico comparável ao suscitado
pela lírica. O quadro geral de informações e problemas continua a ser o descrito
em Le “carte messaggiere”. Retorica e modelli di comunicazione epistolare: per
un indice dei libri di lettere del Cinquecento, a cura di Amedeo Quondam,
Bulzoni, Roma, 1981.
87 Do incansável trabalho que levou a cabo nas redacções editoriais, em prol
88
A partir dos dados publicados no citado estudo on line de Simone Albonico,
<http://rasta.unipv.it>, faço a projecção do conteúdo desses sete volumes de
rime di diversi: 537 autores e 3757 textos (com uma média de sete textos, por
si significativa da presença, em cada volume, quer de poetas “profissionais”,
quer de poetas “diletantes”). É também muito importante a informação rela-
tiva às formas métricas: 3225 textos são, de facto, sonetos (cerca de 85% do
total)!
89
Para além das já citadas, Rime di diversi illustri signori napoletani, editadas
por Giolito em 1552 e em 1556.
90
O primeiro livro impresso que diz respeito à actividade de uma academia
continua a envolver Nicolò Franco, Dialogi maritimi di messer Giovan Iacopo
Bottazzo, et alcune rime maritime di messer Nicolò Franco et d’altri diversi spiriti
Petrarquistas e gentis-homens | 237
embora o número de autores passe para metade (só 39), aumentando, assim,
o índice médio de representatividade (que salta para 22%). Aumenta igual-
mente a parte que toca aos sonetos, mais de 92%.
95 Para obter todas as notícias acerca desses volumes e dos textos que neles se
98
Finalmente contemplada, numa secção autónoma inserta na antologia, Lirici
europei del Cinquecento, “La poesia neolatina”, pp. 187-217, de Giorgio Forni
(inclui textos de Pietro Bembo, Andrea Navagero, Giovanni Cotta, Marco
Antonio Flaminio, Francesco Berni, Girolamo Angeriano, Baldassarre
Castiglione, Andrea Alciato, Giulio Cesare Scaligero). A secção alarga-se ulte-
riormente: cf. pp. 241-246 (textos de Lodovico Ariosto, Celio Calcagnini), pp.
329-331 (Tarquinia Molza), p. 345 (Francesco Maria Molza), pp. 411-413
(Giovanni Della Casa), p. 542 (Mario Colonna), pp. 580-584 (Berardino Rota,
Giano Anisio). É duplicada pela secção conclusiva da antologia que por
Federico Cinti é dedicada ao “Petrarchismo neolatino fuori d’Italia”, pp. 1233-
-1335. Falta ainda, contudo, para a Itália, um repertório geral, semelhante à
recente compilação de Pierre Laurens, Anthologie de la poésie lyrique latine de
la Renaissance, Gallimard, Paris, 2004; ou à fundamental recolha Pierre
Laurens, Claudie Balavoine, Musæ reduces. Anthologie de la poésie latine de la
Renaissance, Brill, Leiden, 1974. Entretanto, fervilham projectos, conforme o
documenta a colecção de poesia latina (Parthenias), Edizioni Res, onde já foram
publicadas as obras de Bembo, Cotta e Navagero, Flaminio, Berni e Castiglione
e Della Casa, Molza.
Petrarquistas e gentis-homens | 241
Hinz, Roberto Righi, Danilo Zardin, Bulzoni, Roma, 2004, em particular para
o meu ensaio, “Il metronomo classicista”, pp. 379-507.
242 | petrarca 700 anos
100
É o macrodado do citado repertório de Italo Pantani, Libri di poesia.
101
Cf. Simone Albonico, “La poesia del Cinquecento”, in Storia della lettera-
tura italiana, diretta da Enrico Malato, v. 10, La tradizione dei testi, coordinato
da Claudio Ciociola, Salerno, Roma, 2001, pp. 693-740; e, mais em geral, os
diversos estudos contidos em, Il libro di poesia dal copista al tipografo.
102 Também disponível em formato digital, Brill, Leiden, 1995. A edição em
papel, como hoje se diz, foi publicada no Warburg Institute de Londres pelo
editor Brill, de Leiden, entre 1963 e 1992, com diversas reimpressões dos vários
volumes. Saíu A cumulative index dos seis volumes, Brill, Leiden, 1997.
Petrarquistas e gentis-homens | 243
103 “Si tratta spesso di manoscritti in cui l’autore elabora i propri testi, come
ad esempio il Viennese delle Rime di Bembo, gli autografi e i manoscritti di
bottega di Michelangelo, il Casanatense e il postillato Trivulziano delle Rime
di Bernardo Capello, il ‘codice degli abbozzi’ di Domenico Venier, i tanti
manoscritti della mano di Varchi conservati nelle biblioteche fiorentine”
(Albonico, “La poesia del Cinquecento”, p. 693).
104
Ib., pp. 693-694, com remissão para o manuscrito veneziano (BNM It. IX
143 = 6993) da primeira recolha de Bembo e para o florentino (BNC Magl.
VII 794) de Giovanni Della Casa. Dei-me conta da vastidão dessa tipologia
submersa de livro, quando trabalhava na edição das Rime de Trissino (que
saíram em 1981), ao indagar a série de manuscritos que contém um ou mais
textos seus. Codices descripti, na sua maior parte, mas susceptíveis de serem
cotejados com práticas totalmente autónomas, pelo que diz respeito aos pro-
blemas de constituição de um aparato crítico.
105
Ib., p. 694, recomendando a melhor atenção ao “manoscritto di Jena delle
Rime di Trissino, al Rossiano delle rime di Ariosto, ai manoscritti pergamena-
cei delle Rime di Bembo o di Vittoria Colonna”.
244 | petrarca 700 anos
dal copista al tipografo; Guglielmo Gorni, “Le forme primarie del testo poetico”,
in Letteratura italiana, v. 3, Le forme del testo, 1, Teoria e poesia, Einaudi,
Torino, 1984, pp. 504-518; Marco Santagata, “Introduzione”, Dal sonetto al
Canzoniere. Ricerche sulla preistoria e la costituzione di un genere, Liviana,
Padova, 19892; Roberto Fedi, La memoria della poesia. Canzonieri, lirici e libri
di rime nel Rinascimento, Salerno, Roma, 1990.
246 | petrarca 700 anos
Un buon poeta per mezzo scudo. Un buon poeta per tre carlini. Un buon
poeta per un papale. Un buon poeta per cinque soldi. Un buon poeta per
quattro soldi. Un buon poeta per tre soldi. Et per due soldi un buon poeta.
Et un buon poeta per mezzosoldo. O che sia ucciso quel poltrone che pose in
uso la poesia! Può far san Francesco, o Cautano, che hoggi i poeti sien giunti
a tale che al prezzo d’un’insalata non si possa stravendere la poesia?107
Egli m’è grandemente caro il conoscere che non solo a coloro, i quali niente
altro amano che la poesia, sommamente piaccia e diletti il Petrarca, ma eziandio
appo quegli altri egli sia in prezzo, che a tutte le altre arti più si danno, o sonosi
dati, che a questa108.
Rita Marnoto
Primum illum vite annum neque integrum Arretii egi, ubi in lucem natura me
protulerat; sex sequentes Ancise, paterno in rure supra Florentiam quattuor-
decim passuum milibus, revocata ab exilio genitrice” (Francesco Petrarca,
Prose, a cura di G. Martellotti e di P. G. Ricci, E. Carrara, E. Bianchi, Milano,
Napoli, Riccardo Ricciardi, 1955, p. 8). A representação da vida do poeta
através das suas próprias palavras situa-nos no cerne das fascinantes questões
colocadas pelas modalidades da biografia petrarquesca. Para uma perspectiva
actualizada dos territórios críticos que se abrem nesse domínio, vd., do catálogo
da exposição, Petrarca nel tempo. Tradizione, lettori e immagini delle opere, a
cura di Michele Feo, VII Centenario della Nascita di Francesco Petrarca,
Commitato Nazionale, 2003, as secções dedicadas à vida e ao vulto de Petrarca
(dirigidas por Michele Feo e Giovanna Lazzi), bem como as consagradas às
epístolas Familiares e Seniles (coordenadas por Vincenzo Fera). Sempre úteis
os perfis biográfico-intelectuais traçados por Ernst Hatch Wilkins, Vita del
Petrarca e La formzione del “Canzoniere”, a cura di Luca Carlo Rossi, traduzione
di Remo Ceserani, nuova edizione, Milano, Feltrinelli, 2003 (1. ed. it. 1964) e
de Ugo Dotti, Vita di Petrarca, Roma, Laterza, 2004 (1. ed. 1987). O catálogo
do sétimo centenário é instrumento fundamental para um balanço das pesqui-
sas realizadas em torno das várias obras e para uma projecção dos trabalhos
em curso.
252 | petrarca 700 anos
Arezzo, já que a sua família tinha sido exilada de Florença, dali passa
a Incisa e depois a Pisa, até que o núcleo familiar se restabelece em
Avinhão. A idade madura, repartiu-a entre a Itália e a Provença, com
viagens que o levaram desde a Gasconha e a Garona até ao Norte da
Eurora continental e a Praga. Nunca se aventurou, que haja notícia,
pelos trilhos da Península Ibérica.
Se o acaso o levou pelos mais inesperados caminhos, não raro sur-
preendentes, a vontade fez dele um peregrino empenhado em causas
nobres. Nem quando o peso dos anos o impede de empreender longas
viagens se dá por vencido e acrescenta a palavra fim à sua hodepórica.
Como explica ao amigo Francesco Bruno, na Senile 9.2, as suas viagens
continuam:
itaque consilium cœpi, ad eas terras non navigio, non equo pedibusve per
longissimumque iter, semel tantum, sed per brevissimam chartam, sæpe libris
ac ingenio proficisci, ita ut quotiens vellem, horæ spatio, ad eorum littus irem,
ac reverterer, non illæsus modo, sed etiam indefessus, neque tantum corpore
integro, sed calceo insuper inattrito, et veprium prorsus, et lapidum et luti et
pulveris inscio.
ao longo dos séculos, sem que seja possível reconstruir a sua fisionomia.
A existência actual é descrita no Inventário dos códices alcobacenses, Lisboa,
Biblioteca Nacional de Lisboa, v. 1-5, 1930-1932, v. 6, 1978, por Ataíde e
Melo.
Descrito ib., v. 1, pp. 363-365. Também a descrição do item 71/CCLXV (ib.,
v. 1, pp. 66-67) reenvia para Petrarca, enquanto miscelâneo cartáceo onde são
transcritos fragmentos de avisos espirituais e passos de Laércio e de Valério
Máximo, bem como o texto incompleto do De remediis utriusque fortunæ,
tendo-lhe sido agregados dois incunábulos, o Speculum de honestate vite de
S. Bernardo e o De imitatione Christi, na edição veneziana de 1486. Não se
trata, contudo, conforme até agora se pensava, do De remediis utriusque for
ntunæ de Petrarca “na sua versão genuína mas apenas [de] um opusculum com
uma compilação de sentenças constituídas sobre a obra de Petrarca por um
dos pais do renascimento humanista alemão, Albrecht / Alberto von Eyb (1420-
-1475), que a fez imprimir juntamente com a sua Margarita poetica, em 1472,
e teve depois difusão autónoma”, conforme foi recentemente apurado por
Aires A. Nascimento, “Manuscrito quatrocentista de Petrarca na colecção
Calouste Gulbenkian, em Lisboa: Canzoniere e Triumphi”: Cultura Neolatina,
64, 3-4, 2004, pp. 325-410.
254 | petrarca 700 anos
1, 1983, p. 2.
Petrarca em Portugal. Ad eorum littus irem | 257
15 Fernão Lopes, Cronica del rei Dom Joham I de boa memoria e dos reis
de Portugal o decimo, parte segunda, agora fielmente copiada dos melho-
res manuscritos por William J. Entwistle, Lisboa, Imprensa Nacional, 1968,
pp. 307-308.
258 | petrarca 700 anos
19 “Chamou o povo à sua invenção trova, / por ser achado consoante novo, /
em que Espanha téqui deu alta prova. // Eu por cego costume não me movo.
/ Vejo vir claro lume de Toscana, / neste arço; a antiga Espanha deixo ao
povo.”, António Ferreira, Poemas lusitanos, edição crítica, introdução e co-
mentário de T. F. Earle, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, Carta
2.10, p. 360.
20 Via desbravada por Sá de Miranda, adquire então uma nova dinâmica, que
Canzoniere, “Voi ch’ascoltate in rime sparse il suono”, foram por mim anali-
sados, no seu rumo evolutivo, em “ ‘Spero trovar pietà, nonché perdono’.
Tradução e imitação no lirismo português do século XVI”: Critica del Testo,
6, 2, 2003, pp. 837-851. Por sua vez, Xosé Manuel Dasilva, no artigo, ’Para
uma caracterização do soneto-prólogo na poesia camoniana”: Revista Camoniana,
3. s., 12, 2002, pp. 55-99, estudou os textos líricos de Camões onde é possível
reconhecer os traços mais importantes do soneto-prólogo, ao nível de
modelo.
Petrarca em Portugal. Ad eorum littus irem | 263
32 Francisci Petrarchæ florentini, philosophi [....], Opera quæ extant omnia
34 Em 1594, foram impressas as Várias rimas ao Bom Jesus de Diogo Bernardes.
No ano sucessivo, a primeira edição das Rimas de Camões e as Obras de Sá
de Miranda. Em 1596, O Lima e, em 1597, as Rimas Várias. Flores do Lima
de Diogo Bernardes. Em 1598, os Poemas lusitanos de António Ferreira e a
segunda edição das Rimas de Camões. Mas Pero de Andrade Caminha só será
impresso no século XVIII, ao passo que a edição de André Falcão de Resende
está actualmente a ser preparada por Barbara Spaggiari, de acordo com as
informações que adianta em “Uma alquimia poética diversa. Apontamentos à
margem da edição crítica de André Falcão de Resende”: Estudos Italianos em
Portugal, n. s., 0, 2005, pp. 43-63.
35 Valham por todas as referências a Il naso di Laura. Lingua e poesia lirica
portuguesa do século XVI, Petrarca sempre foi uma presença viva que
nunca se cristalizou em formulários repetitivos. Intervêm nesse processo
factores de diversa ordem, com relevo quer para a vitalidade de fenó-
menos de substrato, quer para o carácter tardio da circulação do livro
tipográfico de poesia lírica, em prol da via manuscrita. O apreço me-
recido pela tradição peninsular ibérica, juntamente com o interesse
suscitado pelos Padres da Igreja e pelos autores da Antiguidade, fazem
do código petrarquista um modelo recriado através de complexos pro-
cessos de contaminatio e em constante evolução. Esse dinamismo, ao
mesmo tempo que marginaliza reusos mecanicistas, erige-se em motivo
propulsor equilibrante, fruto do qual substrato e inovação se desen-
volvem em simbiose. O que tem por correspondente, no plano da
transmissão material, não só a ausência do recurso a uma estratégia de
edição que bate centenas de exemplares homólogos, como também,
no campo bibliográfico, a escassa representação, nos fundos portugue-
ses, daqueles instrumentos-chave da “massificação” petrarquista, ima-
gem de marca dos prelos venezianos, que são o rimário, a antologia de
textos ou o repertório de imagens.36 Será também no âmbito do mesmo
quadro metodológico que melhor poderemos compreender a incidên-
cia tardia, no panorama musical português, do madrigal, tendo em linha
de conta que a sua fortuna tem por precedente, em termos prototípicos,
uma estação literária caracterizada pela intensidade dos processos de
circulação e reuso que andam associados à afirmação da imprensa37.
Na passagem do século XVI para o século XVII, o petrarquismo
oferece-se como modelo da poesia religiosa, uma das vias através das
quais já Camões e Diogo Bernardes procuravam combater o dissídio.
36 Explanei esses tópicos em “‘O sol como lume dos olhos’. Shakespeare e
António Ferreira”: Actas do I Congresso Internacional de Estudos Anglo-
-Portugueses, Lisboa, Centro de Estudos Anglo-Portugueses, FCSH, 2001,
pp. 689-703.
37 Ao congresso, “Il Petrarchismo: un Modello di Poesia per l’Europa”, rea-
ano de 1567, o seu sucesso teria sido relevante. Diferindo essas edições, uma
da outra, pela formulação do nome do tradutor (Salusque Lusitano / Salomon
Usque Hebreo) e pela ordem dos aparatos, não é de descurar a hipótese de
que se trate, afinal, de variantes de uma mesma tiragem. Cf. o mais recente
índice bibliográfico: Klaus Ley in Zusammenarbeit mit Christine Mundt-Espín
und Charlotte Krauss, Die Drucke von Petrarcas “Rime” 1470-2000. Synoptische
Bibliographie der Editionen und Kommentare, Zürich, New York, 2002,
Bibliotheksnachweise, Georg Olms, Hildesheim, pp. 261-262, itens 0271
e 0272.
42 Cf. ib., p. 313, item 0341.
Petrarca em Portugal. Ad eorum littus irem | 271
tista, cf. sobretudo Alfred Einstein, The Italian Madrigal, Princeton, Princeton
University Press, 1949, pp. 170 ss.; Dean Mace, “Pietro Bembo and the Literary
Origins of the Italian Madrigal”, in Renaissance Music II, New York, Garland
Publishing, 1985, pp. 65-86; James Haar, s.v. “Madrigal II. Italy, 16th century”,
in The New Grove Dictionary of Music and Musicians, London, XI, 1980,
pp. 463-468; id., “Ripercorrendo gli esordi del madrigale”, in Il Madrigale tra
Cinque e Seicento, ed. Paolo Fabbri, Bologna, Il Mulino, 1988 [trad. do origi-
nal inglês, ed. Cambrige,1981]; Lorenzo Bianconi, “Parole e musica. Il
Cinquecento e il Seicento”, in Letteratura Italiana: Teatro, Musica, Tradizione
dei Classici in Letteratura Italiana VI (Teatro, Musica, Tradizione dei Classici),
ed. Asor Rosa, Torino, Einaudi, 1986, pp. 322 ss.; Stefano La Via, “ ‘In tale
stella presi l’esca, e gli hami’. Petrarchismo e musica all’Accademia degli Elevati
276 | petrarca 700 anos
A sua Musica nova, célebre colecção de motetes sobre textos do Antigo
Testamento e de madrigais sobre poesia de Petrarca (composta na década de
quarenta e difundida por uma forte cultura oral até à sua publicação em 1559),
encarna uma escrita musical fortemente centrada nos ideais bembistas, elevando
o madrigal à gravità do motete e a intérprete musical da poesia lírica de carác-
ter sério. Correlato musical da variazione bembesca, o pulsar contínuo da sua
trama contrapontística é animado por variações dos perfis motívicos, alterações
delicadas de peso e cor, sucessivos fluxos e refluxos, pequenas tensões dina-
mizadas através de frequentes cadências evitadas. O cuidado que coloca no
potencial simbólico da música, a sua sensibilidade ao peso gramatical da pala-
vra, os seus efeitos de chiaroscuro musical – coenvolvendo parâmetros como
timbre, altura e duração – entrançam equilibradamente as dimensões de ratio
e sensus, preservando sempre uma regulação cuidada da conveniência e do
decoro, ao serviço da elevação do gesto lírico petrarquiano.
Cipriano da Rore encarna um perfil mais extrovertido do que Willaert, orien-
temente os ideais estéticos da música e das outras artes, que assim se tornam
catalizadores indirectos de uma nova paideia. Por sua vez, a recepção de
Petrarca nos círculos venezianos, bem como as expectativas éticas e estéticas
a ela adstritos, funcionam como espelho onde esta cultura pode confirmar e
rever a sua identidade: “The qualities of taste and expressive reserve that
Venetians so admired in Petrarch’s poetry seemed then to mirror these notions
of their own character.” (ib., pp. 593-594). Para uma análise aprofundada e
interessante sobre a imbricação entre este contexto político-cultural, os ideais
bembistas e a acção do compositor Willaert e do teórico Zarlino, cf. sobretudo
id., City Culture and the Madrigal at Venice, Berkeley, University of California
Press, 1995.
Zarlino aplica este termo aos fenómenos contrapontísticos em que a cadên-
cia é evitada. Aqui, a cadência musical não é levada a seu termo, uma vez que
as suas cláusulas constitutivas desviam subitamente os seus movimentos meló-
dicos na última fase cadencial, resultando daqui uma sonoridade inesperada,
que literalmente foge à lógica da escrita musical anteriormente anunciada.
Devido ao seu carácter aberto e inconclusivo, esta técnica é muito utilizada
para articular o discurso musical nos lugares correspondentes aos das vírgulas
do texto poético. Contudo, nas mãos de madrigalistas maneiristas, este proce-
dimento é ainda elevado a um subtilíssimo meio expressivo, frequentemente
utilizado para obter effetti meravigliosi, como interpretação musical de imagens
singulares da poesia.
280 | petrarca 700 anos
“Italian poetry prepared for the absortion of word meaning into music”,
Dean Mace, op. cit., p. 68. Naturalmente, esta observação de Dean Mace não
deve ser lida no sentido de que seria a primeira vez na história que os signifi-
cados da palavra são absorvidos pela música. O ponto da questão reside na
especificidade da relação palavra-música que, de facto, é inaugurada no
momento histórico e literário-musical em causa no presente estudo, bem como
no grau de intensidade em que são extraídas consequências musicais a nível
simbólico, expressivo e retórico (em pequena e grande escala) no interior da
obra. De facto, a valorização consciente da capacidade mimética da música em
relação à palavra vai estar no âmago dos novos estilos associados ao género do
madrigal musical, inaugurando uma nova era na música profana. A tese bem
argumentada de Mace acerca do enraizamento desta nova era na ars poetica
protagonizada por Bembo – sobretudo no segundo livro das Prose della volgar
lingua, prossegue: “in my view it was this more than anything else that caused
the Italian to revert to the northerners for their musical settings of secular
poetry – music seeks to find the values in poetry that contemporary readers
find. It is possible, moreover, to find in Bembo’s new poetic an important
source of the whole 16th - century movement which allowed music to take over
the work of poetry in the lyric and in the drama.”, ib. Entre outros, Bianconi
sustenta uma interpretação histórica semelhante. Cf. Lorenzo Bianconi, op.
cit., p. 322.
As vozes de Ya las sombras de la noche | 281
11 Sobre a indagação das escolhas poéticas de Marenzio, cf. pp. 158 ss.; Hans
Engel, Luca Marenzio, Firenze, Leo Olschki, 1956; James Charter, “Fonti poe-
tiche per i madrigali di Luca Marenzio”, in Rivista Italiana di Musicologia, XIII,
1978, pp. 60-103; id., Luca Marenzio and the Italian Madrigal 1577-1593, I,
Ann Arbor, UMI, 1981; Denis Arnold, Marenzio, London, Oxford University
Press, 1965, pp. 36 ss.; Massimo Privitera, “Melancolia e acedia. Intorno a Solo
e pensoso di Luca Marenzio”, in Studi Musicali, XXIII, 1994, pp. 29-71.
As vozes de Ya las sombras de la noche | 285
Exemplo 1
286 | petrarca 700 anos
Exemplo 1
As vozes de Ya las sombras de la noche | 287
Ex. 2 – Wert, Solo e pensoso, in Il settimo libro de madrigali a cinque voci, 1581
9º 11º
Exemplo 3
290 | petrarca 700 anos
65 65
Exemplo 3
As vozes de Ya las sombras de la noche | 291
Exemplo 3
292 | petrarca 700 anos
2ª n
2ª n
2ª n
64
Exemplo 3
As vozes de Ya las sombras de la noche | 293
tardanza
brevitá
75 4-3
cadência
suspensa
frigizada
Exemplo 4
As vozes de Ya las sombras de la noche | 297
15 No plano musical, esta oposição barroca de texturas vocais em estilo con-
certato afirma enfaticamente a modernidade deste madrigal veneziano. No auge
da seconda prattica e sob a acção da postura patética do seu tempo, a leitura
monteverdiana do poema de Petrarca está bem longe do decoro protagonizado
por Bembo, transportando a subjectividade do herói lírico petrarquiano para
um mundo de turbulência dionisíaca.
298 | petrarca 700 anos
orn.
Exemplo 5
As vozes de Ya las sombras de la noche | 299
Exemplo 5
300 | petrarca 700 anos
Exemplo 6
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Exemplo 6
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Exemplo 6
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Exemplo 7
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Exemplo 7
306 | petrarca 700 anos
Exemplo 7
As vozes de Ya las sombras de la noche | 307
Exemplo 8
308 | petrarca 700 anos
Exemplo 9
310 | petrarca 700 anos
17 Para uma contextualização histórica deste repertório, cf. Rui Vieira Nery,
“A polifonia renascentista. Os Cancioneiros profanos” e “Dos últimos
Cancioneiros ao Vilancico Religioso”, in Rui Vieira Nery e Paulo Ferreira de
Castro, História da Música, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, sobre-
tudo pp. 27-31 e pp. 69-75, respectivamente.
18 Cf. Vilancetes, Cantigas e Romances do Séc. XVI (Portugaliæ Musica XLVII),
1928, tendo sido publicado por este com o título de Cancioneiro Musical e
Poético da Biblioteca Públia Hortência, em edição subsidiada pelo Instituto de
Alta Cultura (Coimbra, 1940). A sua transcrição e estudo por Manuel de
Morais, realizados em 1976, são inseridos numa segunda edição, sob o patro-
cínio do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian, sendo utilizado
como fonte para o presente estudo. Cf. Cancioneiro Musical d’Elvas (Portugaliæ
Musica XXXI), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.
20 O corpus deste manuscrito terá sido copiado em 1603, sendo descoberto
cf. Arthur L-F. Askins e Jack Sage, “The Musical Songbook of the Museu
Nacional de Arqueologia e Etnologia, Lisbon (ca.1603)”, in Luzo-Brazilian
Review, 2, 1976, pp. 129-133). Para a sua transcrição em notação moderna,
cf. Música Portuguesa Maneirista: Cancioneiro Musical de Belém, transcr.
e est. Manuel Morais, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1988.
Para uma síntese musicológica caracterizadora do seu conteúdo e seu posi-
cionamento no contexto português da polifonia profana quinhentista, cf. Rui
Vieira Nery, Notas ao CD, Música Portuguesa Maneirista. Cancioneiro Musi-
cal de Belém, dir. Manuel de Morais, Segréis de Lisboa, s. d., Movie Play,
CD-3-11001.
21 Rui Vieira Nery, Notas ao CD, in Saudade, Amor e Morte. Cancioneiros
ibéricos dos Séculos XVI e XVII, Jennipher Smith (soprano) e Manuel Morais
(vilhuela), 1996, Philips 158 767-2.
312 | petrarca 700 anos
géneros que representa e não obstante o seu estilo culto, exibe uma
dinâmica diferente do Petrarquismo actualizado pela lírica portuguesa
quinhentista, nomeadamente em António Ferreira ou Pêro de Andrade
Caminha, entre outros. Mesmo considerando que o Petrarquismo lite-
rário não se reduz a um processo de sucessivos mecanismos de crista-
lização, sendo antes animado por todas as transformações inerentes
aos contextos culturais que atravessa e por toda a alquimia viva dos
seus cruzamentos com outras matrizes, não se encontram nestes
Cancioneiros grandes indícios do rasgo poético e da vaghezza que iden-
tifica o modelo italiano ou a qualidade poética dos poetas petrarquistas
portugueses acima referidos.
É certo que a temática destes Cancioneiros – sempre contida num
ethos de decoro harmónico e identificáveis com o ideal neoplatónico
de soavità – demonstra uma sensibilidade lírica sobretudo dolente e
saudosista, sensível à precariedade das coisas, recorrendo ao tópico de
amores não realizados, quer em ambiente bucólico, quer na linha enrai-
zada no amor cortês. Contudo, nem o sentimento da Natureza, nem o
sentido da interioridade – mesmo quando enuncia sentimentos ambi-
valentes – apresentam o grau de aprofundamento e de problematização
próprios do Petrarquismo italiano ou português. Possivelmente, a
menor extensão dos géneros integrados neste corpus não torna ade-
quado tal aprofundamento: de facto, as peças inseridas nestes
Cancioneiros identificam-se mais com miniaturas destinadas a instalar
uma certa atmosfera poética.
Por outro lado, este corpus demarca-se da poesia portuguesa petrar-
quista do Séc. XVI também pelo menor grau de elaboração técnica e
retórica, não apresentando muitas das estratégias de composição e de
harmonização petrarquistas.
À excepção do passo 1.5 da écloga de Garcilaso de la Vega22 O más
dura que mármor a mis quejas, inserido no Cancioneiro de Belém,
encontram-se alguns escassos exemplos de reminiscências poéticas
petrarquianas isoladas, muito filtradas e sem elaboração sistemática,
cruzando-se com a vitalidade manifesta de outras correntes poéticas
de origem ibérica.
22 Cf. Garcilaso de la Vega, écloga 1.5, Poesias castellanas completas, ed. Elias
25 Para uma leitura desta evolução sob chave maneirista, cf. Rui Vieira Nery,
in Rui Vieira Nery e Paulo Ferreira de Castro, op. cit., p. 70.
26 Cf. Vilancetes, Cantigas e Romances do Século XVI, p. CXLIV.
As vozes de Ya las sombras de la noche | 315
4-3
Fá[Lá]
Mi
cad. frigia
4-3 Fá[Lá] Mi
cadência frigia
Exemplo 11
318 | petrarca 700 anos
Exemplo 12
320 | petrarca 700 anos
33 (Uranio): “Or pensate al mio mal qual esser deve, / ché come cera al foco /
cução desta peça por Jennifer Smith (soprano) e Rui Vieira Nery (cravo) recria
bem o ethos de nostalgia contida que a permeia. Cf. op. cit.
As vozes de Ya las sombras de la noche | 323
Exemplo 13
324 | petrarca 700 anos
Exemplo 13
As vozes de Ya las sombras de la noche | 325
37 Esta peça foi transcrita por Jorge Matta, tendo sido recentemente executada,
em primeira audição e com excelente nível artístico, pelo Coro Gulbenkian,
sob direcção daquele maestro e musicólogo (Lisboa, Grande Auditório da
Fundação Calouste Gulbenkian, 28.2.2004). Agradeço a Jorge Matta e à
Fundação Calouste Gulbenkian esta audição inédita, a qual me suscitou ime-
diatamente o interesse em averiguar possíveis indícios petrarquistas e sua res-
posta na música.
38 Cf. Miguel Querol, “Dos nuevos cancioneros polifónicos españoles de la
primera mitad del siglo XVII”, in Anuario Musical, XXVI, 1972, sobretudo
pp. 99 e 110.
O compositor português Frei Manuel Correa (Lisboa,1593-Zaragoza,1653) foi
discípulo do notável polifonista Filipe de Magalhães, emigrando depois para
Espanha, onde veio a professar como Carmelita Calçado na casa de Madrid
desta ordem. Graças à sua alta reputação como músico desempenhou os cargos
de Mestre de Capela na catedral de Siguenza (1649-1650) e de Zaragoza (1650
até à sua morte, em 1653). Frei Manuel Correia é considerado em Espanha
como um dos grandes compositores de toda a primeira metade do Séc. XVII,
sendo apreciado sobretudo pela graciosidade dos seus tonos humanos e vilan-
cicos. Os seus manuscritos sacros e profanos guardam-se em diversas institui-
ções da Península Ibérica, assim como em várias cidades da América do Sul.
Cf. Robert Stevenson, “Compositores de vilancicos e o seu repertório”, in AA.
VV., Vilancicos portugueses (Portugaliæ Musica), Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1976, sobretudo pp. XV e XVI.
As vozes de Ya las sombras de la noche | 327
44 (Ergasto) “Poi che ’l soave stile e ’l dolce canto / sperar non lice più per
48 Ib., écloga 1.5. Pense-se também na errância melancólica do passo – bem
petrarquista – da Arcadia, (Logisto): “e quanti passi tra la notte e ’l giorno /
spargendo indarno vo per tanti campi”, Iacopo Sannazaro, op. cit., 4.3-4.
49 “la sombra se veía / venir corriendo apriesa / ya por la falda espesa del altísimo
monte”, Garcilaso de la Vega, op. cit., écloga 1.414-415; “[El sol] cuál por el
aire claro va volando”, ib., écloga 1.6.
50 Ib., écloga 2.1867-1869.
332 | petrarca 700 anos
53 Cf. “con canto acordado / al rumor que sonaba / del agua que pasaba”,
Exemplo 14
334 | petrarca 700 anos
4-3
Exemplo 14
As vozes de Ya las sombras de la noche | 335
5
Exemplo 14
336 | petrarca 700 anos
4-3
Exemplo 14
As vozes de Ya las sombras de la noche | 337
Exemplo 14
338 | petrarca 700 anos
54 Este salto intervalar constitui uma figura de retórica musical muito utili-
zada nos madrigais a partir do Maneirismo musical italiano, associando-se
a um carácter dramático e inquieto, permanecendo com esta conotação no
recitativo barroco. (Note-se a sua presença também em Hor che ’l ciel de
Monteverdi, para evocar um passo semântico negativo do poema: “e chi mi
sface”). A conotação simbólica que lhe é atribuída pelos teóricos do Séc. XVII
reveste-se de particular interesse para o nosso caso: esta figura é denominada
uma relatio non harmonica, por exceder a ordem natural do sistema diatónico
e por provocar um efeito melódico dissonante. Enquanto exílio da harmonia,
é frequentemente associada ao lamento e ao tema do pecado nas oratórias
sacras barrocas.
As vozes de Ya las sombras de la noche | 339
Conclusões
cf. Rui Vieira Nery, “Spain, Portugal and Latin America”, in A History of
Baroque Music, ed. George J. Buelow, Bloomington, Indiana University Press,
2004, pp. 374-376.
O Poeta e o Pintor coroados
de louros. Do culto de Petrarca
à filosofia de Platão
Sylvie Deswarte-Rosa
fora católico, porém a grilanda [grinalda ou guirlanda] que trazia, que pertence
aos poetas, era seca”, Boosco Deleytoso, ed. Augusto Magne, Rio de Janeiro,
1950, cap. 30, pp. 45, 71. Vd. Mário Martins, Estudos da literatura medieval,
Braga, 1956, cap. 11, “Petrarca no Boosco Deleytoso”, pp. 131-143.
Esse acontecimento inspirou a Luís Filipe Castro Mendes, em 1983, o soneto,
Y siendo ya la fama suya muy estendida y en todas partes muy desseado resci-
bio en un mismo dia cartas del Senado de Roma & del Estudio de Paris en que
los unos & los otros con mucha instancia le rogavan que a su Ciudad fuesse a
rescebir la corona de Laurel: con la qual los famosos Poetas antiguamente se
coronavan.
O louro (lauro) faz parte dos jogos de palavras usados nos sonetos
que consagra a Laura nas suas Rime: Laura, l’aura, lauro, laurea…, em
sucessivas alusões ao mito de Apolo e daquela Dafne que, na sua fuga,
é transformada em loureiro, árvore que logo se tornou atributo do deus
da poesia, com os seus ramos a entretecerem a coroa do poeta laureatus,
“espécie de emblema […] da frustração amorosa e da recompensa
literária”. Petrarca inaugura esse jogo no quinto soneto das Rime, por
cujo texto dissemina as sílabas, grafadas em maiúsculas, de Laureta
Laureata, para depois o desenvolver em vários poemas compostos em
torno da morte de Laura.
O ramo de louros, atributo de Apolo, é desenhado por Francisco
de Holanda nas Antigualhas (f. 9r), aos pés da célebre estátua do deus
22 e pp. 48-49, n. 4.
Sylvie Deswarte-Rosa, “Francisco de Holanda et le Cortile di Belvedere”, Il
Cortile delle Statue. Der Statuenhof des Belvedere im Vatikan. Akten des inter-
nationalen Kongresses, Rome, 1992, ed. Matthias Winner, Bernard Andreae,
Carlo Pietrangeli, Mainz, Philipp von Zabern, 1998, pp. 389-410.
344 | petrarca 700 anos
Mas quando elle tever igoalado a bondade de sua fantesia e imaginação com
a das suas mãos, então lhe devem de pôr uma capella de loureiro na cabeça em
sinal de vencimento e gloria, e se lhe agradecerem tamanha cousa então lhe não
deve de pesar com a morte11.
and the Language of Art (Princeton, 1981), concluindo essa obra com a evoca-
ção do passo de Holanda seguidamente citado.
11
Francisco de Holanda, Da Pintura Antigua, ed. crítica de Angel González
García, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1983, 1.14, p. 94. Itálico
nosso.
O Poeta e o Pintor coroados de louros | 345
enfarpelado com o seu chapéu de feltro e com a sua capa, duas coroas,
uma de cada lado, à esquerda uma de rosas, à direita uma de louros.
Trata-se de uma evocação da união entre mundo sensível, “mecânico”,
e mundo espiritual, operada pelo artista no próprio acto de pintura. A
coroa de rosas representa a vida activa e “mecânica” (fabrico de beleza),
a de louros a vida contemplativa e “espiritual” (ideias e vitória do
espírito), de acordo com um simbolismo que Miguel Ângelo fez seu,
conforme resulta das esculturas de Lia e de Raquel, colocadas uma de
cada lado da estátua de Moisés, no túmulo de Júlio II em San Pietro
in Vincoli em Roma. A vida activa é Lia, com o espelho e a coroa de
flores, a contemplativa é Raquel, com as mãos juntas e os olhos voltados
para o céu, nessa adaptação que por Miguel Ângelo foi levada a cabo
da descrição das duas irmãs feita por Dante, na Commedia (Purgatorio
27.97-108)12.
12 Em Dante, Lia olha para o espelho e vai buscar mais flores, ao passo que
Raquel contempla o espelho fixamente. Miguel Ângelo inspira-se em Dante,
mas sem o seguir servilmente. Vd. Sylvie Deswarte-Rosa, “Rome Déchue”, pp.
154-155; Ideias e Imagens, pp. 96-98.
13 A influência de Petrarca em Portugal foi estudada, em particular, com
18
Vd. Angelo Maria Bandinio, De Florentina Iuntarum Typographia eiusque
censoribus ex qua græci, latini, tusci scriptoresque ope codicum manuscriptorum
a viris clarissimis pristinæ integritati restituti in lucem prodierunt, Lucæ, 1791,
I, p. 176; I Giunti Tipografi editori 1497-1570. Annali, Firenze, 1978, n. 165;
Sylvie Deswarte, Il “Perfetto Cortegiano” D. Miguel da Silva, Roma, Bulzoni,
1989, pp. 39-40, 78-79, 190 n. 137 e fig. 19.
19 Por exemplo, Francesco Petrarca, Triumphos de Petrarca, Sevilla, en casa
de Juan Varela de Salamanca, 1526 (BN, Lisboa, Res. 264 A); id., De los rreme
dios contra prospera y adversa fortuna. [trad. de Francisco de Madrid], Sevilla,
Juan Varela de Salamanca, 1524 (BN, Lisboa, Res. 254 A). Quanto às edições
castelhanas de Petrarca, vd. Carlos V y su época. Exposición bibliográfica y
documental, Barcelona, 1958; A. J. Cruz, “The Trionfi in Spain: Petrarchist
Poetics, Translation Theory, and the Castilian Vernacular in the Sixteenth
Century”, K. Eisenbichler, A. A. Iannucci, Petrarch’s “Triumphs”. Allegory and
Spectacle, University of Toronto Italian Studies, 4, Dovehouse, 1990; Rita
Marnoto, O petrarquismo português, p. 27.
O Poeta e o Pintor coroados de louros | 349
onde Carlos V ficou alojado depois do seu casamento com D. Isabel de Portugal,
que ocorreu o decisivo encontro entre Boscán e Andrea Navagero. Na carta
dedicatória dos seus poemas, bem recorda Boscán o convívio do Alhambra,
afinal, a sua experiência italiana, enquanto viagem imaginária até Itália, que se
encontra na origem das mudanças operadas nos seus rumos poéticos. Vd. M.
Menéndez Pelayo, “Juan Boscán. Estudio crítico”, em Antología de poetas
líricos castellanos, t. 10, Santander, 1945, p. 62; Jorge de Sena, Os sonetos de
Camões e o soneto quinhentista peninsular, Lisboa, 1981, pp. 114-115 n. 2.
O Poeta e o Pintor coroados de louros | 351
26 II Petrarca con l’esposition d’Alessandro Veluttello e con piu utili cose in
diversi luoghi di quella nuovissimamente da lui aggiunte, Venezia, Bartolomeo
Zanetti, 1538. No final: “qui finiscono le volgari opere del Petrarcha, cioè i
Son., le canz. & i Triomphi: Stampate in Vinezia per Bartolomeo Zanetti
Casterzagense, Ad instantia di Messer Alessandro Vellutello e di Messer
Giovanni Giolito da Trino de l’anno del signore MDXXXVIII” (BN Lisboa
Res. 2696 v), com o retrato de Petrarca gravado no fontispício e o mapa geo-
gráfico de Avinhão e de Vaucluse (f. A. IIII).
27 Muitos dos exemplares da obra latina de Petrarca depositados nas biblio-
[…] llamalos triumfos porque triumfo no es otra cosa sino lo que los romanos
usavan antiguamente quando algun capitan sujo venia con vitoria delas guerras
que le cometiã al qual cõ grãdissima pompa & gastos innumerables recibiã ala
entrada de Roma haziendo le un arco triunfal por donde el passava puesto
pp. 51 ss. (trad. fr. Maurice Brock, Les humanistes à la découverte de la com-
position en peinture 1340-1450, Paris, Seuil, 1989, pp. 73-89, “Le discours
des humanistes sur la peinture. 1. Pétrarque: La peinture comme modèle
des Arts”).
O Poeta e o Pintor coroados de louros | 353
encima de un muy rico carro levando consigo los prisioneros muy subjectos &
las imagines de las ciudades vencidas por el & muy acompañado de sus caval-
leros laureados puestos por su orden segun antigua costumbre. A cuya seme-
jança el nuestro excelente poeta ordeno & compuso estos sus triumfos morales
e de mucha doctrina […]29
1532, f. ii v. Esse passo é posto em relevo pela apostilha “Nota”, registada por
punho do século XVI (Francisco de Holanda ?), no exemplar conservado na
Biblioteca Pública de Évora (Sec. XVI 1064). Itálico nosso.
30 Essling e Müntz, Pétrarque. Ses études d’art, son influence sur les artistes, ses
[…] tinha as casas muy muj bem armadas. Huma salla grande toda
armada de pannos novos de seda e todos tras torquados dos treunfos
de Petrarca […]32
Rodrigues, Fontes dos Lusíadas, Lisboa, 1979 (2. ed.), pp. 65 ss.; Vítor Manuel
de Aguiar e Silva, Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Cotovia, 1994, p. 134,
“Função e significado do episódio da ‘Ilha dos Amores’ na estrutura de Os
Lusíadas”; Rita Marnoto, O petrarquismo português, pp. 588-628, “Triunfos da
ilha angélica pintada”.
O Poeta e o Pintor coroados de louros | 357
Églises et chapelles funéraires aux XVe et XVIe siècles, dir. Jean Guillaume,
Actes du XXIVe Colloque d’histoire de l’architecture du Centre d’Études
Supérieures de la Renaissance, Tours, 11-14 juin 1996, Paris, Picard, 2005,
pp. 157-198.
358 | petrarca 700 anos
Perdoa-me M. Francisco, que vos não tinha visto porque tinha visto a senhora
Marquesa. […].
[…] parece-me que a senhora Marquesa causa com um lume contrairos effei-
tos, como faz o sol que com uns mesmos raios derrete e endurece, porque a
vós cegou-vos vê-la, e eu não vos entendo, nem vejo, senão porque a vejo
a ella.
38 Enzo Noé Girardi, ed., Michelangiolo Buonarroti, Rime, con varianti, appa-
rato, nota filologica, Bari, Laterza, 1960. Vd. os poemas G. 248 e G. 250 de
Miguel Ângelo.
39 Robert J. Clements, The Poetry of Michelangelo, New York, 1965, p. 319.
-420.
42 “Lugar como Vaucluse não existe, para mim, em todo o mundo”, Frammento
De facto, nesse “lugar santo” vê-se o Sorga que brota de uma cavi-
dade escancarada na rocha e a casa de Petrarca entre as árvores, junto
do rio, ao fundo.
A imagem de Roma Desfeita, no livro das Antigualhas (f. 4r), uma das
imagens de Holanda mais rica de referências literárias e de sentido
alegórico, ilustra muito bem a influência de Petrarca sobre Francisco
de Holanda em toda a sua amplitude (fig. 10).44
Sylvie Deswarte-Rosa, “Rome Déchue”, pp. 97-181; id., Ideias e Imagens, II,
44
45
Theodor E. Mommsen, “Petrarch’s Conception of the Dark Ages”, Speculum.
A Journal of Mediaeval Studies, v. 16, n. 2, 1942, pp. 226-242, em particular,
pp. 230-233; Erwin Panofsky, La Renaissance et ses avant-courriers dans l’Art
d’Occident, Paris, 1976 (título original, Renaissance and Renascences in Western
Art, Stockholm, 1960), p. 21; Robert Weiss, The Renaissance Discovery of
Classical Antiquity, London, 1973, pp. 32-35, “The Age of Petrarch”.
46
Francesco Petrarca, Le Familiari, ed. Vittorio Rossi, v. 2, Libri V-XI, Firenze,
1934, p. 58, ll. 120-123.
O Poeta e o Pintor coroados de louros | 365
Quis enim dubitare potest, quin illico surrectura sit, si ceperit se Roma
cognoscere?47
própria?”
O Poeta e o Pintor coroados de louros | 367
A Pintura se foi de todo a perdição, e veo a jazer sem nome sepultada e morta
de descostume […]. Onde o mundo (e principalmente Italia, como aquella
que mais tinha perdido) resentindo-se das perdas e feridas que tinha do tempo
recebido, começou a um pouco oulhar por si e a ver as reliquias da antiquidade
e os muimentos amirabeis onde as mortas sciencias enterradas jazião que, já
que lhas os annos tinhão roubadas, não poderão tanto danar que algumas
pedras e jaspes das sepulturas preciosas não ficassem por sinal e memoria sobre
a terra. Então primeiramente a pintura começou a resurgir mui contrita e cas-
tigada. Resurgir não, mas a mover-se um pouco na cova onde estava e isto foi
por ventura no ditoso tempo do gentil Francisco Petrarca […]51
[…] no ditoso tempo do gentil Francisco Petrarca por seu amigo Symon,
pintor d’aquella idade, e Giotto […] pintor toscano e depois um Mantegna
paduano com ajuda d’outros, que por não serem de tanta importancia não
nomeo, començarão a desamortalhar e desatar esta fremosa senhora; e vendo
a gente e os homens que era uma donzela tão venerabil e graciosa começarão
ha haver piadade d’ella e a honrala afirmando que dina era de honor; e para
ser conhecida de qualquer principe cristão; e cuidavão que dezião muito e
dezião inda muito pouco. Finalmente no tempo dos papas Alexandre, Julio e
Leo, primeiro Lionardo de Vince florentino, e Rafael de Orbino abrirão os
fermosos olhos da Pintura alimpando-lhe a terra que dentro tinhão; e ultima-
mente mestre Miguel Angiolo florentino, parece que lhe deu spirito vital e
restituiu quasi em seu primeiro ver e prisca animosidade52.
PETREIUS SANCTIUS
In nemus Elysium postquam migrauit Apelles
Vmbraque Protogenis Parrhassiique simul
Æmula naturæ jacuit per secula multa
Pictura in tenebris semisepulta diu.
Nec quisquam in lucem valuit revocare camoenam
Lassaret quamquam hic pectora multa labor.
Præmia seu deerant pulchram invitantia ad artem
Seu potius tantis artibus ingenium.
Tandem magna parens rerum indignata iacere
Et misera Nympham conditione premi,
Educat Hollandum cujus dea sacra potenti
Ad superos redeat ingenio, arte, manu54.
53 Julius Schlosser Magino, La letteratura artistica, Firenze, 1977 (1. ed. Wien,
1924), 3, “La storiografia dell’arte prima del Vasari”, 1, “I precursori del Vasari”.
54 “Quando para os bosques elísios migrou Apeles / ao mesmo tempo que a
57 Vasari cita, a partir da edição de 1550 das Vite, no começo da Vita di Simone
Martini, os dois primeiros versos de ambos os sonetos, aos quais, em sua opinião,
se deve a fama do pintor, mais do que às suas obras (“hanno dato più fama alla
povera vita di maestro Simone, che non hanno fatto nè faranno mai tutte l’opere
sue”). Maurizio Bettini analisa esses sonetos, detendo-se sobre o tema de
Pigmalião e do artista-mago. Vd. Maurizio Bettini, “Tra Plinio e Sant’Agostino:
Francesco Petrarca sulle arti figurative”, in Memoria dell’antico nell’arte italiana,
ed. Salvatore Settis, t. 1, L’uso dei classici, Torino, Einaudi, 1984, pp. 222-265,
1. “Pigmalione e l’albero della virtù”, em particular pp. 222-231.
58 Vd. Erwin Panofsky, Idea. Contribution à l’histoire du concept de l’ancienne
théorie de l’art, Paris, 1983 (1. ed. Idea, ein Beitrag zur Begriffsgeschichte der
alten Kunsttheorie, Studien der Bibliothek Warburg, 5, Leipzig-Berlin, 1924),
p. 77 e n. 135.
374 | petrarca 700 anos
65 Ib., pp. 68-69: “et philosophie principem Platonem. Et quis, inquient, prin-
cipatum hunc Platoni tribuit? Ut pro me respondeam, non ego, sed veritas”.
No De suiipsius et multorum ignorantia, Petrarca usa algumas imagens de cunho
neoplatónico que Holanda estima muito, como seja a dos “olhos da alma que
nos permitem ver o invisível”.
376 | petrarca 700 anos
E volvendo-se o Poeta da mão esquerda vio Platam [4], filósofo ateniense, […]
que na esquadra dos leterados vai mais perto ao sino [5], que he o fim da
filosófica contemplaçam e consideraçam, porque se cremos Santo Agostinho,
quanto há na nossa verdade cristã, elle o disse primeiro, e somente lhe faltou
“Verbum caro factum est”: e de Eusébio he chamado Mousés ateniense, ao
qual sino chega somente aquelle a que he dado do Céo e cá na terra a poucos
foi concedido, os quais somente sam Mousés e Paulo.
Aristóteles [7] […] he aqui posto por segundo, seguindo o Poeta nisso o juízo
de Marco Túlio e o de Santo Agostinho, porque Boécio, Tomás de Aquino e
alguns outros o propõem a todos os filósofos, onde Dante: “Vi o Mestre daquel-
les que sabem estar antre a filosófica família, a que todos olham e a que todos
fazem honrra”; de engenho divino, com o qual elle, milhor que nenhum outro,
soube envestigar os secretos da Natureza, e mais distintamente tractá-los e
insiná-los a outrem. Escreveo em toda doctrina e guardou maravilhosamente
a ordem e o decoro em todos os livros que escreveo e em todo o que falou.
Parecerá por ventura que qualquer homem poderá ser pintor, aprendendo;
mas muito será enganado quem isto cuidar; porque […] para ser perfeito e
consumado em tal sciencia e tão profunda lho convem com uma nova graça
nascer de Deus e de natural indole e rarissima […] por que para dino de ser
pintor mester ha nascer pintor, pois o pintar não se aprende […].
Para além de Petrarca
* O presente trabalho foi sugerido pela intervenção de Gian Mario Anselmi,
“A herança de Petrarca”, propondo-se como comentário ou, mais exactamente,
decorrência, das ideias expostas, com respeito à literatura espanhola dos
séculos XVI e XVII.
1 Para uma visão de conjunto, consulte-se K. Foster, Petrarca. Poeta y huma-
él todas las cosas que amare. As donzelas que guardam o edifício expli-
cam ao rei que nele residem três cavaleiros, Tormento, Cuidado e
Sofrimento, com quem deverão combater os aspirantes ao gozo de
amor. Esse aparato remete, pelo seu carácter simbólico, para o
Triumphus Cupidinis. A obra de Núñez de Reinoso é pródiga em epi-
sódios alegóricos da mesma natureza, baseados em modelos muito
diversos, aos quais há a acrescentar, em alguns casos, Petrarca. Assim
acontece no 30º capítulo, onde fica contida uma descrição da casa da
Fama, inspirada no 12º livro das Metamorfoses de Ovídio, que apresenta
também ecos do Triumphus Famæ.
O episódio das bodas de Camacho (2.20, pp. 795-798)11, no Quijote
(1615), inclui nas celebrações diversas danças, de entre as quais uma
de artificio, “de las que llaman habladas” (p. 795), onde participam
duas fileiras de ninfas, guiadas por Cupido e Interesse. Preside à comi-
tiva o “Castillo del Buen Recato”, derrubado por Interesse, porém,
reconstruído ao último momento. Este passo, com ecos de Clareo y
Florisea, proclama a vitória de amor, envolvendo o conflito entre Basilio
e Camacho, enquanto forma de projecção do espectáculo, e remete
para o primeiro triunfo petrarquesco, do qual se afasta ao pretender
ilustrar o poder do afecto desinteressado, e não a tirania pelo deus
exercida sobre as suas vítimas.
Durante a estadia no palácio dos duques, é posto em cena um outro
desfile mais aparatoso, crucial para a evolução dos protagonistas e do
enredo narrativo, que prepara o fim do encanto de Dulcinea. A aventura,
que se reparte pelos capítulos 34 e 35 da segunda parte (pp. 912-929),
começa com a visita de um postilhão disfarçado de demónio, que anun-
cia a chegada de Dulcinea del Toboso, acompanhada por Montesinos
e precedida por seis turbas de encantadores. Ao emissário, seguem-se
várias carruagens com aparelhos fúnebres, puxadas por bois, que levam
magos em tronos. O ruído da artilharia e das rodas desaparece quando
faz a sua entrada o último veículo: “Al compás de la agradable música
vieron que hacia ellos venía un carro de los que llaman triunfales, tirado
de seis mulas pardas, encubertadas empero de lienzo blanco” (p. 920).
Doze penitentes vestidos de branco flanqueiam uma ninfa entronizada,
1991.
Petrarca na literatura espanhola do Siglo de Oro | 389
aberto e outro fechado, ora vestida, ora nua, jovem e velha, próxima e
distante (p. 327). A “donosa figura” identifica-se como sendo a Morte,
que vem buscar o testemunho da visão para o guiar na visita aos defun-
tos, sem deixar de o repreender, antes disso, pelos seus falsos juízos
acerca da condição mortal: “sois vosotros mismos vuestra muerte”
(p. 328), “lo que llamáis morir es acabar de morir y lo que llamáis nacer
es empezar a morir” (pp. 328-329). No Triumphus Mortis, a morte
surge no caminho, como “una donna involta in veste negra” (1.31), e
profere uma terrível arenga perante o séquito de Laura, para lhe recor-
dar o seu poder, do que dá conta a multidão de mortos que enche o
campo (1.73-84), prova da falsidade da jactância terrena: “Miser chi
speme in cosa mortal pone!” (1.85).14 Ao saber-se marcada pela Morte,
Laura aceita segui-la e assume o seu novo estado como via de aperfei-
çoamento, conforme o reflecte o seu rosto, “Morte bella parea nel suo
bel viso” (1.172), e o confirmam, no capítulo seguinte, as suas palavras:
“ ‘Viva son io, e tu se’ morto anchora’, / diss’ella ‘e sarai sempre, infin
che giunga / per levarti di terra l’ultima hora’ ” (2.22-24)15. No Sueño,
a Morte, cujo aspecto quase irrisório a distancia da temível gravidade
da figura do Triunfo petrarquesco, não pretende ceifar a vida do pro-
tagonista, mas tão só convertê-lo em testemunho de uma sátira social
que tem por principal alvo os usos idiomáticos e que se conclui com o
seu despertar. A alegórica proclamação da soberania da Morte sobre
Amor e Castidade é superada por um tratamento festivo dos destinos
finais do homem, pondo em dúvida determinados valores terrenos, sem
afãs de trascendência. Precisamente entre as expressões tópicas que se
pretende emendar, figura a “morte de amores”, no âmbito do grupo
Madrid, RAE, 1969), obra cristã e ascética que contém a doutrina para uma
morte resignada e trata da libertação dos medos da morte, que pode ser for-
mosa, como a morte no rosto de Laura.
390 | petrarca 700 anos
cacia”, comenta o guia: “Estas del Petrarca, Justo Lipsio y otros, si tuvieran
Petrarca na literatura espanhola do Siglo de Oro | 393
p. 218. C. Yarza, autor da tradução (Secreto mío, em Obras, pp. 41-150), acres-
centa aos Soliloquia o De consolatione Philosophiæ de Boécio e as Tusculanæ
de Cícero (p. 35).
394 | petrarca 700 anos
24 Vd., a esse respeito, as digressões sobre a fortuna (1.1.7, pp. 202-203; 1.2.7,
pp. 329-330), a Providência divina (2.3.1, p. 335; 2.3.3, p. 382), a calúnia (1.1.8,
p. 224), o engano (2.1.8, p. 133) ou os vícios da juventude (2.2.2, p. 174).
Guzmán de Alfarache, ed. J. M. Micó, Madrid, Cátedra, 1998, 2 v.
25 Cf. A. Farinelli, Italia e Spagna, Torino, Bocca, 1928; A. Castro, El pensa-
petrarca, Secretum
* Toda a correspondência sobre este artigo deve ser enviada para Maria Manuel
Baptista, Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 3810
Aveiro, Portugal, ou para o seguinte endereço electrónico: mbaptista@dlc.ua.pt
1 No presente trabalho utilizaremos a seguinte tradução do Secretum: Mon
P. 182.
P. 128.
P. 183.
P. 165.
P. 164.
P. 76.
Petrarca e a cultura portuguesa: tempo, desejo e melancolia | 405
10 Pp. 88-89.
11 Pp. 108 e 164.
12 Pp. 39, 52, 54 e 72.
13 P. 102.
14 P. 99.
15 P. 64.
16 P. 90.
18 P. 67.
19 P. 72.
20 P. 104.
21 P. 35.
22 P. 60.
23 P. 108.
24 P. 94.
406 | petrarca 700 anos
25 Pp. 51 e 87.
26 P. 114.
27 P. 145.
28 Pp. 147-148.
30 P. 136.
31 Pp. 142-143.
32 P. 43.
33 Pp. 38 e 45.
34 P. 40.
35 Pp. 56 e 86.
36 Pp. 105-116.
37 P. 115.
38 P. 123.
Petrarca e a cultura portuguesa: tempo, desejo e melancolia | 407
39 P. 125.
40 Pp. 49, 64, 79 e 94.
41 Pp. 54 e 121.
42 P. 55.
43 P. 40.
44 P. 50.
46 P. 56.
47 P. 76.
408 | petrarca 700 anos
51 P. 107.
Petrarca e a cultura portuguesa: tempo, desejo e melancolia | 409
Bibliografia
Hélio J. S. Alves
amantes muito para além do que Tito Lívio, a fonte textual ali privile-
giada, havia assinalado, constitui o Livro central do poema e a charneira
que liga a fase profética e escatológica da formação heróica de Cipião
Africano, o protagonista, nos primeiros quatro livros, à segunda fase, a
dos últimos quatro, que corresponde à concretização militar e moral
das virtudes do mesmo herói. Pelo meio encontra-se este aparente des-
vio de percurso e de protagonismo, no qual, como que em mise-en-
-abyme, se desenrolam os grandes temas de combate entre o amor e a
glória, a cupiditia e a razão, mas também, numa estruturação ideológica
que vinha já de longe, entre a lei e a ordem euro-ocidentais, e a disso-
lução e as sombras afro-orientais, entre a civilização representada por
Roma e a barbárie simbolizada por Cartago, e até, entre os sólidos
valores masculinos e as tibiezas femininas. Massinissa, o númida, fraqueja
e oscila entre Sofonisba, a voluptuosa rainha líbia, e Cipião, o romano
de virtudes divinas, sendo que quase todo o livro quinto se dedica ao
conflito íntimo entre as duas tendências, até ao triunfo final da via mas-
culina e épica, projectando o caminho da virtude.
Não, todavia, sem o sentimento de perda que a metáfora apolínea
ilustra. Os louros literários que na Africa estão do lado da epopeia,
num esforço consciente de resolução dos dilemas do sujeito petrar-
quiano, não deixam de parecer, ao Sol que ilumina toda esta “cena
primordial de instrução” moral, intelectual e literária, valores menos
certos e definitivos do que o impulso narrativo principal do poema
parecia instaurar e confirmar. O crepúsculo surge, aqui e noutros
momentos de Petrarca, como metáfora do entre-lugar em que se joga
a identidade do sujeito, cuja escrita, concebida no contínuo entre luz
reticente e sombra em crescendo, vai deixando perder aquilo que ela
mais ardentemente deseja. A atenção de Apolo à memória literária
nos quais o crepúsculo é símbolo central da crise sentida por Petrarca entre a
vida virtuosa idealizada e a força real dos desejos e das paixões.
Petrarca e a figura do poeta em Portugal | 417
E. M. W. Tillyard, The English Epic and its Background, Chatto and Windus,
London, 1954, p. 189.
V. Fera, La Revisione Petrarchesca dell’“Africa”, Centro di Studi Umanistici,
tio auctoris, quer o literal sígnico, quer o alegórico simbólico, já que é neces-
sário ter em conta a modernidade do sujeito humano petrarquiano e pós-
-petrarquiano, um sujeito de consciência cindida e complexa, passível de
intenções diferentes e até autocontraditórias. Não faz sentido, neste contexto,
promover uma falsa desresponsabilização do autor perante a obra, ou perante
um suposto e anacrónico inconsciente, ou ainda perante o leitor intérprete,
este último até pelas razões aqui expostas. É o poeta que fabrica a sua persona
autoral, conforme a vontade, os desejos, os receios e também as circunstâncias
sócio-culturais.
Petrarca e a figura do poeta em Portugal | 421
Merece atenção erudita a pergunta final de Vasco Graça Moura no seu livro
13
14 Com efeito, a grafia do seu nome nunca assentou, nunca adquiriu autoridade:
15 “Como não temos qualquer experiência de um texto venerável que garanta
a sua própria perpetuidade, podemos dizer com sensatez que o meio pelo qual
sobrevive é o comentário” (Frank Kermode, Formas de Atenção, Edições 70,
Lisboa, 1991, p. 63, original inglês de 1985). Daniel Javitch começa por apre-
sentar as posições principais nas teorias actuais do cânone, mas a natureza do
seu estudo induz a pensar que os factores extrínsecos ao poema é que serão
determinantes na sua canonização (Ariosto classico – trad. italiana de Proclaiming
a Classic, 1991 – Bruno Mondadori, Milano, 1999). Ambos os autores, ao
falarem dos aspectos internos das obras literárias, estão a pensar na sua valia
estética e nas suas qualidades particulares. As propriedades intrínsecas a que
me refiro, todavia, não se ajustam exactamente ao “estético” ou às caracterís-
ticas literárias indicadas por aqueles estudiosos, pois pretendo defender que
são de natureza retórica e têm o sujeito da enunciação (ainda que através do
enunciado) como objecto de “argumentação” demonstrativa.
Petrarca e a figura do poeta em Portugal | 427
ção reproduzidos em K. David Jackson (ed.), Camões and the First Edition of
“The Lusiads”, 1572, CD-ROM, Center for Portuguese Studies and Culture,
University of Massachusetts Dartmouth, 2003.
Petrarca e a figura do poeta em Portugal | 431
22
Maria Vitalina Leal de Matos denunciou a situação, ao verificar, a partir de
intervenções num encontro de estudiosos da literatura, que o lirismo de Camões
chega a ser “cativante a ponto de adormecer a nossa própria capacidade de
análise” (Ler e Escrever, INCM, Lisboa, 1987, p. 55). Este “adormecimento”
construído pela linguagem camoniana é evidentemente de natureza retórica.
23
A. S. Macedo em 1631: “[...] podemos melhor chamar a Homero e Virgílio
primeiros Camões do que a Camões segundo Homero ou Virgílio” (apud Maria
Lucília Gonçalves Pires, A Crítica Camoniana no Século XVII, col. “Biblioteca
Breve”, Lisboa, 1982, p. 16). H. Macedo em 1980: “Dante e Petrarca foram
os poetas supremos do seu tempo. Mas Camões estava na vanguarda do seu,
antecipando o nosso” (Camões e a Viagem Iniciática, Moraes Editores, Lisboa,
p. 20). Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas estes valem pela interligação
dos motivos: a declaração da superioridade de Camões, conjugada com a repe-
tição dos termos em que a retórica do poeta faz assentar esta superioridade.
432 | petrarca 700 anos
niano constitui pois, simbolicamente, uma fuga para a frente, uma vez
que não elide, antes torna gritante, a dependência da sua exibida supe-
rioridade perante uma impossível superação das águas e da voz de
Apolo e Dafne24. A deslocação simbólica que decorre do acto volitivo
de interpretação, resulta na denúncia das grilhetas que Camões está
perenemente a tentar quebrar25.
O conhecido discurso de Leonardo à ninfa Efire, objecto duma
estimulante exegese por parte de Faria e Sousa no século XVII, supõe-
-se figurar o sujeito épico num contexto de revisão do Parnaso, essa
montanha de Apolo onde reside a inspiração poética. Depois de abun-
dantes considerações sobre a forma como a Ilha do Amor constituiria
uma reconstrução, pessoal e portuguesa, da residência dos poetas e das
Musas, Faria e Sousa escreve26:
Alegoricamente se vè, que este Leonardo, i su Efire, son nuestro Poeta, i su Musa
(...) En la estanc. 78. hablando Leonardo Portugues con Efire, introduze un verso
Italiano. Esto claramente... fue mostrar el Poeta, que Leonardo era un Poeta
noticioso de los estraños, i que sabia que hablava con una Musa, que no le desen-
tenderia... I assi es menos culpable la introducion del verso estraño... Todo lo
otro en estas ocho estancias, contiene quexas de Leonardo, de que la Musa le
fuesse huyendo... Finalmente la estãcia 81 (ultima desta invencion) nos remata el
pensamiento, diziendo, que yá Efire no huya tanto a Leonardo por huirle quanto
por irle oyendo; i que alfin èl la alcançò. Todo es propiedad del Poeta: porque
hasta la propia Musa se holgava de oirle; quiere dezir esto, que aplaudia el Parnaso
su Poesia divina. I por fin de cuentas se dexò alcãçar Efire de Leonardo: esto es,
que consiguiò el Poeta la cumbre de la Poesia en este canto, i en este Poema.
27
A Épica Portuguesa no Século XVI, ed. facsimilada, INCM, Lisboa, 1987,
p. 281. A inferioridade e a superioridade com que as obras poéticas de Ferreira
e Camões foram respectivamente rotuladas durante quatrocentos anos – raras
vozes discrepantes nunca vingaram – possuem uma relação apenas indirecta,
como espero ter clarificado, quer com os méritos estéticos efectivos de cada
uma, quer com as atmosferas políticas e ideológicas que conduziram os pro-
cessos de recepção.
Petrarca e a figura do poeta em Portugal | 435
28
Sobre a história da recepção do Sepúlveda, cf. Jerónimo Corte-Real – Poesia,
a/c Hélio J. S. Alves, Angelus Novus, Braga, Coimbra, 1998, e Hélio J. S. Alves,
‘As memórias gloriosas’ e o inglório esquecimento: na(rra)ção e canonização nos
Lusíadas de Camões e no Sepúlveda de Corte-Real, E-book em http://www.
terranovacomunicacao.com.br/Memoria%20gloriosas.html.
Petrarca e a figura do poeta em Portugal | 437
29
O nome de Dafne surge, tanto quanto me pude aperceber, três vezes no
Sepúlveda, sempre sob a forma “Daphnes”: no trecho citado, onde cons-
titui paragoge, e em outros (canto 9: “De ver a bella Daphnes se apressava”;
canto 10, “Que a Daphnes quer mostrar mais fermosura”), onde não há razões
prosódicas aparentes para o facto. O mais provável é estarmos aqui perante
um erro de declinação no grego antigo, por analogia com a frequente termi-
nação de nomes próprios em - es no nominativo (Orestes, Héracles etc.). Tal
sucedeu na carta poética de Sá de Miranda a Pêro de Carvalho, onde surgem
correctamente os nomes Giges e Crates, mas onde se lê Circes em vez de Circe.
O erro repete-se n’Os Lusíadas de Camões (veja-se o comentário de Epifânio
Dias a 6.24). Mas embora a insuficiência no conhecimento do grego por parte
destes poetas possa explicar a forma “Daphnes”, em poema anterior de Corte-
-Real, publicado em vida do autor (o Sucesso do Segundo Cerco de Diu, canto
13), lê-se o correctíssimo “Daphne”. Terá o poeta consultado entretanto uma
nova fonte que o levou a alterar a redacção da palavra, ou poderemos afirmar
que o esquecimento simbólico da Musa original tem destes efeitos literais?...
Cadeias de vida, cadeias de amor. Para
o estudo de um motivo petrarquista
nas letras ibéricas
Giulia Poggi
Muéstrame la esperanza
de lejos su vestido y su meneo,
mas ver su rostro nunca me consiente.
A propósito deste tipo de soneto, vd. as observações de L Renzi, “La sintassi
Penso, em particular, no 1º soneto, “Cuando me paro a contemplar mi
estado”, examinado, tal como outros derivados do petrarquesco, “Quand’io
mi volgo indietro a mirar gli anni”, por E. Glaser,“ ‘Cuando me paro a con-
templar mi estado’: trayectoria de un Rechenschafts-Sonett”, Estudios his-
pano-portugueses. Relaciones literarias del siglo de oro, Madrid, Castalia, 1957,
pp. 59-65.
Cadeias de vida, cadeias de amor | 447
Amor; pero el dezir que eran baxas, parece contra el decoro de la causa de sus
amores, pues ella no fue menos que una Dama de Palacio. Puedese responder
que si bien era tan superior el objeto dellos, tuvo él por baxeza [...] el aver sido
enamorado”: é este o ambíguo comentário ao soneto de Faria e Sousa, o qual,
detendo-se demoradamente na imagem das cadeias do terceiro verso, retoma
o já citado passo de Pérsio e vários lugares petrarquescos e petrarquistas
(Boscán, Garcilaso, Francisco de la Torre) sem mencionar, todavia, Tibulo
(Rimas várias de Luís de Camões, príncipe de los poetas heroycos y lyricos de
España [....] commentadas por Manuel de Faria e Sousa, Lisboa, com Privilégio
Real, 1685, ed. facsimilada, Lisboa, Imprensa Nacional, 1972, Primeira parte,
t. 1, p. 15). Contrário a uma interpretação literal das “prisões baixas” mostra-
-se Silvio Pellegrini no comentário ao soneto contido na sua antologia camo-
niana de Liriche, Modena, Società Tipografica Modenese, 1951, pp. 75-76.
Relativamente ao perigo das interpretações românticas de Camões, adverte
L. Stegagno Picchio, “Biografia e autobiografia. Due studi in margine alle
biografie camoniane (I. ‘O canto molhado’; 2 ‘Super flumina’)”, in Quaderni
Portoghesi, 7-8, 1980, pp. 21-111.
448 | petrarca 700 anos
em que a sua felicidade foi enganadora (“É tão triste este meu presente
estado / que o passado, por ledo, estou julgando”, escreve, com remi-
niscências de Garcilaso) e o seu canto arauto de prisão. “Cantava, mas
já era ao som dos ferros”, afirma no décimo primeiro verso, historici-
zando, e quase lamentando, a sua vocação órfica, com uma locução
(“ao som dos ferros”) já presente no 36º soneto. Mas, ao fazê-lo, elabora
ulteriormente a imagem do prisioneiro que canta acorrentado, com
origem em Tibulo. À diferença de Garcilaso, o qual, apesar de ter
transferido essa imagem para o terreno da poesia, tinha respeitado a
sua composição verbal e paratáctica, Camões restaura o seu valor adver-
sativo, mas, ao mesmo tempo, coloca-a numa lonjura esfumada que
exalta ainda mais o motivo das esperanças frustradas. Miragem a con-
quistar, em Garcilaso, a esperança é, neste soneto de Camões, um
objectivo tornado vão pelo papel da fortuna. Porque é a fortuna, ou
melhor, conforme resulta do soneto precedente, o caso, o destino, a
obstinarem-se contra o poeta, ainda antes de ele ser constrangido a
abandonar as suas esperanças, as quais surgem inexoravelmente vin-
culadas ao seu canto, de acordo com uma imagem sincrética da qual
não poderá prescindir, no posterior lirismo peninsular, a definição de
poeta. Assim sendo, poderemos concluir dizendo que, por mais hete-
rogéneos que sejam, na sua estrutura, e por mais diversos que sejam,
nas recuperações rítmicas e lexicais (pensamos na rima “erros”/“ferros”
que, na primeira quadra do 85º soneto, veicula a mensagem final da
segunda parte do 109º), nestes três sonetos o motivo das cadeias amo-
rosas é profundamente elaborado, relativamente a um contexto que é
não só petrarquesco, como também garcilasiano. Porque, se na imagem
do poeta que arrasta cadeias Garcilaso tinha substituído Tibulo a
Pérsio, introduzindo o motivo do canto, Camões faz seu este motivo
de tal modo que acaba por o projectar para além dos confins temporais
e espaciais que delimitavam o petrarquismo, substituindo o conceito
cristão de pecado e de providência pela ideia neoplatónica de sorte,
destino e fortuna.
3. A reelaboração camoniana do conceito de prisão amorosa,
enquanto lugar aberto (dele é bom exemplo a imagem da sereia que
projecta a noção de canto sobre um cenário marinho, tão afastado do
imaginário petrarquesco e, da mesma feita, tão próximo do poeta dos
Lusíadas), não passa inobservada. Quero dizer que a síntese entre canto
450 | petrarca 700 anos
13
Segundo a numeração e o texto de Biruté Ciplijauskaité na sua edição dos
Sonetos completos de L. de Góngora, Madrid, Castalia, 1985.
14
Se as cadeias, tanto essenciais, como amorosas, constituem um motivo tópico
recorrente, a esperança faz-se tema na medida em que, tal como na dupla
invenção de Góngora, assume este e outros topoi de constrangimento. Veja-se,
a propósito da dialéctica tema/motivo (e do carácter recursivo que caracteriza
o último), as definições fornecidas por C. Segre na entrada “Tema/motivo”
compilada em Enciclopedia Einaudi, Torino, Einaudi, 1981, v. 14, pp. 3-21.
452 | petrarca 700 anos
15
Trata-se do 94º soneto, do qual transcrevo a primeira quadra, modernizando
a grafia: “En mi prisión y en mi profunda pena/sólo el llanto me hace compañía/
y el horrendo metal que noche y día/en torno al pie molestamente suena”,
F. de Rioja, Poesía, ed. B. López Bueno, Madrid, Cátedra, 1984.
16 É o 297º soneto (“A todas partes que me vuelvo veo”), segundo a edição de
“Ego sum unus utinamque integer”, Rerum senilium libri 15.11 (F. Petrarca,
Opera, Basileia, 1554, p. 1046). Na falta de uma edição completa moderna das
obras de Petrarca, os seus escritos serão citados pelas edições que nos eram
acessíveis na altura em que redigimos este ensaio. De alguns dos escritos petrar-
quianos por nós usados e citados há edições recentes (com texto original e
tradução, nomeadamente para o francês e o italiano), as quais serão oportuna-
mente referidas. Para algumas peças, a edição das Prose (Milano, Napoli,1955)
continua a ser útil. Útil nos foi também a Antologia proposta por Alberto Asor
Rosa na Storia e antologia della letteratura italiana – v. 3/1: Petrarca e la cultura
del Trecento, La Nuova Italia, Firenze, 1978.
460 | petrarca 700 anos
Numa das suas cartas, o humanista florentino Coluccio Salutati faz o elogio
de Petrarca e depois de falar da pessoa, do seu carácter e costumes, da sua obra
poética e da eloquência dos seus escritos, apresenta-o também como um exímio
filósofo, não por certo daquela filosofia sofística que se praticava nas Escolas
do tempo, mas da verdadeira filosofia que é de vocação moral, a qual ele expõe
seja nos poemas, seja nas suas cartas, seja nos seus livros: “in philosophia [...]
quantum excessit! non dico in hac, quam moderni sophiste ventosa iactatione
inani et impudente garrulitate mirantur in scolis; sed in ea, que animos excolit,
virtutes edificat, vitiorum sordes eluit, rerumque omnium, omissis disputatio-
num ambagibus, veritatem elucidat. [...] in hac, inquam, revolve carmina,
considera epistolas, meditare libellos, quos divini prorsus ingenii vir ille vivens
emisit, et quantum in illa profecerit abunde videbis. illam autem omnium scien-
tiarum antistitem et, ut ita loquar, philosophie philosophiam, que divinitatis
arcana rimatur, quamquam omnium scibilium apicem videatur excedere, quam
capaci mente biberit quamque perspicuo conceperit intellectu, ceu potest,
libratis suis opusculis, coniectari, non facile possim exprimere.”, Coluccio
Salutati, Epistolario, ed. Novati, Istituto Storico Italiano, Roma, v. 1, 1891,
pp. 178-179.
462 | petrarca 700 anos
A avaliar pelas sucessivas edições não só dos Opera omnia (Basileia, 1496;
Veneza, 1501, 1503, 1554, 1581), como também de algumas obras isoladas –
Secretum, Epistolæ, e sobretudo De remediis utriusque fortunæ. Veja-se: Mary
Fowler, Catalogue of the Petrarch Collection, Oxford University Press, London/
Edinburgh/Glasgow/New York/Toronto/Melbourne/Bombay, 1916.
Na “Introdução” a uma edição da Imagem da Vida Cristã (Frei Heitor Pinto,
Imagem da Vida Cristã ordenada por diálogos, Lello & Irmão, Porto, 1984,
pp. XXV-XXXII), o Prof. José V. Pina Martins põe em justo destaque a “pre-
sença constante e explícita” de Petrarca na obra do frade jerónimo, onde a
remissão mais constante é para o De remediis utriusque fortunæ, mas também
para o De uita solitaria e mais ocasionalmente para os Triumphi. Veja-se tam-
bém: Giuseppe Carlo Rossi, “Il Petrarca e l’Umanesimo Italiano nell’opera di
Fr. Heitor Pinto”, Annali dell’Istituto Universitario Orientale, Sezione Romanza,
1, 1, Napoli, 1959, pp. 65-96; e do mesmo Rossi, sobre a presença de Petrarca
em Frei Amador Arrais: “Presenza del Petrarca nella mistica portoghese del
Cinquecento”, Studi Petrarcheschi, Bologna, 6, 1956, pp. 189-193; Mário
Martins, “Petrarca no Boosco Deleitoso”, id., Estudos de literatura medieval,
Braga, 1956.
De remediis utriusque fortunæ / Les remèdes aux deux fortunes (1.69: “De
Veja-se: Panajotis Kondylis, Die neuzeitliche Metaphysikkritik, Klett-Cotta,
Stuttgart, 1990, sobretudo o primeiro capítulo: “Nominalismus, Humanismus
und die Kritik an der aristotelischen Logik und Metaphysik vom 14. bis 16.
Jahrhundert”, pp. 29-145; Louis Dupré, Passage to Modernity. An Essay in the
Hermeneutics of Nature and Culture, Yale University Press, New Haven/
London, 1993. Algo do anti-intelectualismo petrarquiano e do sentimento da
irredutível individualidade do poeta vai ao encontro da filosofia ockhamista e,
de resto, o nominalismo e o humanismo irão cruzar-se mais do que uma vez
ao longo dos séculos XV (Lorenzo Valla) e XVI (Mario Nizolio).
466 | petrarca 700 anos
11
Numa das suas cartas, Petrarca revela o seu projecto irrealizado de escrever
uma refutação das blasfémias do averroísmo, exortando o amigo a escrevê-la.
Nessa mesma carta, chama ao filósofo árabe “cão raivoso que ladra com abo-
minável furor contra Cristo e a fé católica” (“canem illum rabidum Auerroim,
qui furore actus infando, contra dominum suum Christum, contraque catholicam
fidem latrat”), Rerum familiarium libri 4.2 (Opera, Basileia, 1581, p. 627).
12
Carta a Tomás de Messina, Rerum familiarium libri 1.6 (Opera, 1581, v. 2,
pp. 579-580) “Si enim Dialecticæ scholas, quod in eis pueri lusimus, senes
relinquere nescimus. [...] Sic nemo reperitur, qui uel senem infantibus collu-
dentem non oderit, aut rideat [...] quid autem quæso ad omnem disciplinam
tam utile, imò tam necessarium est, quàm ipsarum literarum prima cognitio,
in quibus omnium studiorum fundamenta consistunt?”
Petrarca e a filosofia | 469
14
“Hi sunt ergo veri Philosophi, morales, & virtutum optimi magistri, quorum
prima et ultima intentio est, bonum facere auditorem & lectorem, quique non
solum docent, quid est virtus, aut vitium, præclarumque illud hoc fuscum
nomen auribus instrepunt, sed rei optimæ amorem, studium, pessimeque rei
odium, fugamque pectoribus inferunt. Tutius est voluntati bonæ ac piæ quam
claro intellectui opœram dare. Voluntatis siquidem obiectum, ut sapientibus
placet, est bonitas, obiectum intellectus, est veritas. Satius est autem bonum
velle, quam verum nosse. Illud enim meritò nunquam caret, hoc sæpè etiam
culpam habet, excusationem non habet. Itaque longè errant: qui in cognos-
cenda veritate, non in adipiscenda, & multò maximè, qui in cognoscendo non
amando Deo tempus ponit. Nam & cognosci ad plenum Deus in hac vita nullo
potest modo, amari autem potest, piè atque ardenter, & utique amor ille felix
semper. Cognitio verò nonnunquam misera, qualis est dæmonum, qui cognitum
apud inferos contremiscunt.” De sui ipsius et multorum ignorantia (Opera,
Basileia, 1581, v. 2, p. 1052; ed. de Christophe Carraud, Millon, Grenoble,
2000, p. 158).
Petrarca e a filosofia | 471
15
“Sexdecim vel eò amplius Platonis libros domi habeo, quorum nescio an
ullum isti unquam nomen audierint [...] neque Græcos tantum, sed in Latinum
versos aliquot nunquam alios visos aspicient.”, De sui ipsius et multorum igno-
rantia (Opera, Basileia, 1581, v. 2, pp. 1053-1054; ed. C. Carraud, p. 170). Sobre
a biblioteca pessoal de Petrarca, veja-se: Pierre de Nolhac, Pétrarque et
l’Humanisme, pp. 293-296 (“Le Catalogue de la première bibliothèque de
Vaucluse”); Giuseppe Billanovich, Petrarca letterato I, Lo scrittoio del Petrarca,
Roma, 1947; J. V. Pina Martins, op. cit., pp. 193-198.
16 “Incubui unice, inter multa, ad notitiam vestustatis, quoniam michi semper
17
“Natur und Natureinsicht entstehen, zugleich, wie Antike, und Antiken
kenntniss; denn man irrt sehr, wenn man glaubt, dass es Antiken giebt. Erst
jetzt fängt die Antike an zu entstehen. Sie wird unter den Augen un der Seele
des Künstlers. Die Reste des Alterthums sind nur die specifischen Reitze zur
Bildung der Antike. […] Der Geist bringt sie durch das Auge hervor – und
der gehaune Stein ist nur der Körper, der erst durch sie Bedeutung erhält, und
zur Erscheinung derselben wird.”, Novalis, Schriften, bd 2: Das philosophische
Werk I, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1981, p. 640.
Petrarca e a filosofia | 473
ria das suas apreciações dos antigos filósofos gregos, ele reproduz
ideias ou juízos sumários colhidos nas obras filosóficas de Cícero e
de Séneca ou nos escritos de autores cristãos (Lactâncio, Santo
Agostinho). Mas também a este propósito o que importa não é tanto
o conteúdo da sua noção de Antiguidade quanto a sua atitude em
relação a ela, a qual vai ser decisiva para a recuperação cada vez mais
ampla e intensa do pensamento dos Antigos nos dois séculos seguin-
tes. Os seus mestres de pensamento foram sobretudo Cícero, Séneca
e Agostinho. A sua relação com Aristóteles é muito reservada. Confessa
ter lido todos os livros de Ética (por certo, na versão medieval – de
Roberto de Grosseteste –, que tão criticada viria a ser pelo seu discí-
pulo e biógrafo Leonardo Bruni, nascido como ele em Arezzo) e os
comentários aos mesmos, reconhecendo naqueles uma boa descrição
das virtudes, mas não um discurso verdadeiramente capaz de animar
os espíritos a ser virtuosos, qualidade que, em contrapartida, encon-
trava nos pensadores romanos. Cita amiúde a Retórica, nomeadamente
nas Invectivæ contra medicum, bastante menos a Metafísica e quase
nunca outros escritos do Estagirita. Embora admita que o estilo e o
pensamento de Aristóteles nada têm a ver com as esquálidas versões
que os escolásticos apresentam dos seus escritos e ideias, não aprecia
contudo o modo de pensar do filósofo grego e considera mesmo que
a sua filosofia dificilmente se concilia com as verdades essenciais da
doutrina cristã, nomeadamente, a imortalidade das almas individuais
e a relação de Deus criador com o Mundo, pois que o filósofo grego,
segundo a interpretação dominante na época, apenas consentiria a
imortalidade do intelecto universal e defenderia a eternidade do
mundo, o que se revela incompatível com a ideia de criação deste por
Deus. Aristóteles, escreve Petrarca, não viu com suficiente pertinên-
cia as coisas divinas e eternas. Reconhece que ele foi sem dúvida um
grande homem, mas não mais do que um homem como os outros,
que também disse muitos erros e mentiras, pelo que nem deve ser
adorado, nem deve jurar-se pelo seu nome. Todavia, sabe fazer uma
clara distinção entre o filósofo grego e os seus pretensos e maus segui-
dores contemporâneos, os “estultos aristotélicos” que andam sempre
com o nome de Aristóteles na boca, mas distorcem as ideias do mes-
tre e sobretudo são incapazes de pensar pelas suas próprias cabeças.
O filósofo grego preferiria ser levado ao inferno do que andar em tais
474 | petrarca 700 anos
bocas e odiaria a sua mão direita por ter escrito coisas que tais discí-
pulos ignorantes não entendem, ou interpretam mal, desviando-as do
seu verdadeiro significado18. Considera, por outro lado, que Aristóteles
não é dono da verdade, pois, antes dele, houve muitos outros poetas
e pensadores que disseram coisas tão ou mais importantes quanto as
dele. E cita Homero, Hesíodo, Pitágoras, Anaxágoras, Demócrito,
Diógenes, Sólon, Sócrates, mas sobretudo aquele que considera o
“príncipe dos filósofos” – Platão. Esta predilecção por Platão, muitas
vezes confessada, funda-se antes de mais na natural simpatia que tem
pelas doutrinas morais platónicas, que reconhece como naturalmente
afins do Cristianismo, mas é-lhe também abonada por uma vasta gale-
ria de escritores, tanto pagãos como cristãos, tanto poetas como filó-
sofos, entre os quais se conta, em primeiro lugar, Cícero e Virgílio, e
depois Plínio, Plotino, Apuleio, Macróbio, Porfírio, Censorinus,
Josefo, e sobretudo Ambrósio, Jerónimo e Agostinho.
De Platão, Petrarca cita amiúde – nomeadamente no De sui ipsius
et multorum ignorantia – o Timeu, obra que possuía na sua biblioteca
na versão latina parcial e comentários de Calcídio, um escritor cristão
do séc. IV, e que leu e anotou ele próprio com as suas reflexões 19.
Conhecia também a versão parcial que Cícero fizera da mesma obra
platónica, com o título De essentia mundi, obra que Petrarca terá
tomado não como uma tradução mas como obra própria do escri-
tor latino.20 Provavelmente terá conhecido e lido também o Fédon
18
Invectivæ contra medicum 3 (ed. critica a cura di Pier Giorgio Ricci, Roma,
1950, pp. 60-61): “Ydiote procaces, in ore semper habetis Aristotilem, qui
credo in ore vestro quam in Inferno esse tristius ducat, et puto dextram suam
oderit, qua illa scripsit que, paucis intellecta, per ora multorum ignorantium
volitarent.”, De sui ipsius et multorum ignorantia (Opera, Basileia, 1581,
p. 1052; ed. C. Carraud, p. 162): “Quid ergo? Dicat aliquis, ‘An et tu contra
Aristotilem mutis?’ Contra Aristotilem nichil, sed pro veritate aliquid, quam
licet ignorans amo, et contra stultos aristotelicos multa quotidie in singulis
verbis Aristotilem inculcantes, solo sibi nomine cognitum, usque ad ipsius, ut
auguror, audientiumque fastidium, et sermones eius etiam rectos ad obliquum
sensum temerarie detorquentes.”
19 Veja-se: Sebastiano Gentile, “Le postille del Petrarca al ‘Timeo latino’ ”,
21
Giovanni Gentile, “Le traduzioni medievali di Platone e Francesco Petrarca”,
in id., Studi sul Rinascimento, Sansoni, Firenze, 1936, pp. 23-88.
22
Para uma apreciação global do platonismo de Petrarca, veja-se: Clemens
Zintzen, “Il platonismo del Petrarca”, Quaderni Petrarcheschi, 9-10, 1992-1993,
pp. 93-114.
23
Sobre este debate, veja-se: Remigio Sabbadini, Storia del Ciceronianismo e
di altre questioni letterarie, Ermano Lœscher, Torino, 1886; Izora Scott,
Controversies Over The Imitation of Cicero in the Renaissance, Columbia
University, 1910 (reimpr. Hermagoras, Davis, Cal., 1991); Marc Fumaroli,
L’Âge de l’éloquence: Rhétorique et “res litteraria” de la Renaissance au seuil de
l’époque classique, Droz, Genève, 1980; Martin L. McLaughlin, Imitation in
Literary Theory and Practice in Italy, 1400-1530, Oxford, 1983.
476 | petrarca 700 anos
24
“Si mirari autem Ciceronem, hoc est ciceronianum esse, ciceronianus sum
[...] At ubi de religione, ide est de summa veritate et de vera felicitate deque
eterna salute cogitandum incidit aut loquendum, non ciceronianus certe nec
platonicus, sed cristianus sum; quippe cum certus mihi videar, quod Cicero
ipse cristianus fuisset, si vel Cristum videre, vel Cristi doctrinam percipere
potuisset. De Platone enim nulla dubitatio est apud ipsum Augustinum, si aut
hoc tempore revivisceret, aut dum vixit, hæc futura prenosceret, quin cristianus
fieret; quod fecisse sua ætate plerosque platonicos idem refert, quorum ipse
de numero fuisset credendus est.”, De sui ipsius et multorum ignorantia (Opera,
Basileia, 1581, p. 1054; ed. C. Carraud, p. 176).
25 Secretum 2.98-100 (ed. de E. Fenzi, Mursia, Milano, 1992, p. 170): “A.- Quid
enim aliud celestis doctrina Platonis admonet, nisi animum a libidinibus cor-
poreis arcendum et eradenda fantasmata, ut ad pervidenda divinitatis archana,
cui proprie mortalitatis annexa cogitatio est, purus expeditusque consurgat?
Petrarca e a filosofia | 477
Scis quid loquor, et hec ex Platonis libris tibi familiariter nota sunt, quibus
avidisse nuper incubuisse diceris.
F.- Incubueram, fateor, alacri spe et magno desiderio; sed peregrine lingue
novitas et festinata preceptoris absentia presiderunt propositum meum. Cetrum
ista michi, quam memoras, discipline et ex scriptis tuis et ex aliorum platoni-
corum relatione notissima est.”
26
Secretum 2.100 (ed. cit., p. 172). Uma síntese da imagem petrarquiana de
Platão, feita a partir de testemunhos colhidos das suas leituras dos Antigos,
encontra-se em Rerum memorandarum libri 1.25.
27
Alexandre Koyrè, Estudios de historia del pensamiento científico, Siglo
Veinteiuno, Madrid, 1977, p. 195. Koyrè diz isto a propósito de Galileu e da
sua ciência da natureza e evidentemente não era a filosofia platónica da natureza
o que Petrarca tinha em vista quando lia e anotava a versão latina do Timeu.
Há que ter em conta por certo as várias fases e os diferentes aspectos do renas-
cimento do platonismo entre os séculos XIV e XVII. Mas por muito distantes
que estejam nessa história, tanto Petrarca como Galileu fazem parte dela.
478 | petrarca 700 anos
28
Veja-se: Olivier Boulnois, “Scolastique et humanisme. Pétrarque et la croi-
sée des ignorances”, que serve de prefácio à tradução francesa e edição bilingue
do De sui ipsius et multorum ignorantia/Mon ignorance et celle de tant d’autres,
Millon, Grenoble, 2000, pp. 5-43; Pietro Millefiorini, “Francesco Petrarca tra
medioevo e modernità”, La Civiltà Cattolica, 155, 2004, pp. 334-346.
29 Eckhard Kessler, Petrarca und die Geschichte. Geschichtsschreibung, Rhetorik,
30
“Ego [...] uelut in confinio duorum populorum constitutus, ac simul ante
retroque prospiciens.”, Rerum memorandarum libri 1.2 (Opera, Basileia, 1554,
p. 448).
31
“Vivo, sed indignans, quæ nos in tristia fatum/Sæcula dilatos peioribus
intulit annis./Aut prius, aut multo decuit post tempore nasci;/Nam fuit, et
fortassis erit, felicius ævum./In medium sordes, in nostrum turpia tempus /
Confluxisse vides; gravium sentina malorum/Nos habet; ingenium, virtus et
gloria mundo / Cesserunt; regnumque tenet fortuna, voluptas;/Dedecus ingenti
visu! nisi surgimus actum est.”, Epistolæ metricæ 3.33 (F. Petrarca, Pœmata
minora, 2, ed. D. Rossetti, Milano, 1831, p. 262).
32 Veja-se: Theodor E. Mommsen, “Petrarch’s Conception of the ‘Dark Ages’”,
33 Rerum senilium libri 7 (Opera omnia, Basileia, 1554, p. 903): “Incipit, credo,
Christus Deus noster suorum fidelium misereri, uult ut arbitror, finem malis
imponere, quæ multa per hos annos uidimus, uult pro aurei sæculi principio
Ecclesiam suam, quam uagari propter culpas hominum diu sinit, ad antiquas
et proprias sedes suas et priscæ fidei statum revocare.”
34 Rerum senilium libri 17.2.
Petrarca e a filosofia | 481
37
Opera, Basileia, 1581, p. 579.
38
“Nam quid oro, naturas belluarum et volucrum, et piscium, et serpentum
nosce profuerit, et naturam hominum ad quid sumus, unde et quo pergimus
vel nescire, vel spernere?” De sui ipsius et multorum ignorantia (Opera, 1581,
2, p. 1038).
39 “Hec est enim vera philosophia, non que fallacibus alis attollitur et sterilium
41 De sui ipsius et multorum ignorantia (Opera, Basileia, 1581, p. 1037; ed.
C. Carraud, p. 60).
42 De remediis utriusque fortunæ 1.12 ( ed. cit. p. 60).
486 | petrarca 700 anos
enfim Deus a minha parte e aquilo que eles não me invejam, a virtude
iletrada.”43
Vai na mesma linha a tendência para o cepticismo deste confesso
“prosélito da Academia”. Trata-se, porém, do cepticismo no plano
cognoscitivo ou especulativo, e não no plano moral, religioso ou afec-
tivo. Nestes outros domínios, Petrarca não descrê das suas convicções
e sentimentos. Na parte final da citada carta, insinua-se mesmo o que
poderia considerar-se um verdadeiro cogito moral e afectivo: “duvido
de tudo menos daquilo que julgo ser sacrilégio duvidar” (“dubitans de
singulis, nisi de quibus dubitare sacrilegium reor”). É a própria cons-
ciência moral-afectiva que credita a verdade. Creio-o, sinto-o, logo é
verdadeiro! Embora a mais de um século e meio de distância, ao nível
do pressuposto, não estamos longe de Martinho Lutero, formado, tal
como Petrarca, na leitura das obras de Agostinho de Hipona.
O segundo tópico que o texto citado revela é a condição solitária
do pensador. Petrarca vê-se como um homem sem seita, como um
inquiridor da verdade em campo aberto e por conta própria, sem garan-
tias que não sejam as suas próprias faculdades e o seu juízo, mas sobre-
tudo sem a confortante segurança e arrimo das autoridades e das esco-
las. Os pensadores antigos, que escolhe por mestres de pensamento,
são seus companheiros de pesquisa que o estimulam e não donos do
seu espírito que o aprisionam; ou são mesmo provocadores e acusado-
res, como é o Agostinho do Secretum. Não são depósitos de certezas
definitivas prontas a usar sem o investimento do próprio juízo. No De
vita solitaria dirá: “não há liberdade maior do que a do juízo, e de tal
modo a reivindico para mim que não a nego aos outros”.44 Esta auto-
nomia do sentimento e do juízo próprios a respeito das opiniões dos
Antigos, é igualmente reivindicada no Prefácio ao De remediis: “Que
direi? Ousarei abrir a boca entre homens tão importantes? É por certo
difícil, e está preparada a suspeição de temeridade para o novo homem
43
“Mea vero sit humilitas et ignorantie proprie fragilitatisque notitia [...] pos-
tremo portio mea Deus, et, quam michi non invident, virtus illiterata.”, De sui
ipsius et multorum ignorantia (Opera, Basileia, 1581, pp. 1039-1040; ed. C.
Carraud, pp. 76-78).
44 “Nulla maior quam iudicii libertas, hanc itaque michi vindico, ut aliis non
negem.”, De vita solitaria 1.4 in: Alberto Asor Rosa, op. cit., p. 183.
Petrarca e a filosofia | 487
que ousar tocar coisas tão antigas. [...] Mas como posso eu julgar acerca
de uma qualquer coisa, se não de acordo com o que sinto? A não ser
que, como juiz, eu seja arrastado pelo juízo alheio; mas quem assim faz,
já não julga ele mesmo, apenas relata os juízos dos outros”45.
Finalmente, há um terceiro aspecto que na citada carta se revela: o
sentido da irredutível individualidade e da incontornável subjectivi-
dade. Esta carta diz de forma inequívoca o que constitui uma peculiar
característica do pensamento petrarquiano, a que já acima se aludiu:
ele não segue os cânones da Escola, mas as exigências e os ritmos da
sua própria natureza, e as suas mais importantes evidências e convic-
ções, mesmo se são confirmadas pela leitura das obras dos Antigos
(Cícero, Séneca, Platão, Agostinho...), a que soube, como ninguém
antes dele o fizera, dar um novo sentido, não deixam por isso de ser
extraídas da “experiência das coisas e da vida”46, do “comum livro da
experiência”, como se lê num passo do Secretum47, ou, segundo um
outro passo desta mesma obra, “tiradas da íntima profundidade da sua
própria experiência”48.
45
“Quid dicam? Ausimne tantos inter viros hiscere? Durum quidem, et teme-
ritatis parata suspitio novo homini vetusta tangenti. [...] Quid enim de re qua-
libet iudicare possum, nisi quod sentio? Nisi forte compellar ut iudicio iudicem
alieno; quod qui facit, iam non ipse iudicat, sed iudicata commemorat:”, De
remediis utriusque fortunæ, ed. cit., p. 12.
46
De remediis, ed. cit., p. 14: “O que me leva a opinar assim não é a fama dos
escritores, nem os jogos de palavras e os intrincados sofismas, mas sim os
experimentos das coisas e da vida, que aduzem disso os exemplos [...]” (“Quod
ut sic opiner, non me scribentium fama, non verborum laquei nodique sophis-
matum, sed rerum experimenta viteque huius adigunt exempla [...]”).
47 “[...] cuncta, que memoras, de medio experientie libro michi videris excer-
p. 238.
A Aurora e o Amigo na redacção
do planctus. Uma pesquisa filológica
sobre as rimas de Petrarca
dedicadas a Sennuccio del Bene
Giona Tuccini
Verus amicus […]: est enim is qui est tamquam alter idem.
Engenhoso poeta tardio do Stil Novo, dotado de um pico daquela malícia flo-
rentina, que se transferiu para Avinhão, era um dos raros amigos com quem
Petrarca podia trocar algumas palavras escritas em vulgar. Bem pouco sabemos
sobre a sua vida. Nasceu em Florença no ano de 1279 e lá morreu em 1349 (esta
última data é atestada pela apostilha que Petrarca registou no manuscrito autógrafo
Vaticano Latino 3196, o chamado “codice degli abbozzi”, ou seja, códice dos
esboços; vd. infra), tendo sido condenado em 1313, juntamente com outros seus
concidadãos, por ter apoiado o imperador Henrique VII na expedição contra as
muralhas da cidade. Mas é provável que Sennuccio já antes daquela data vivesse
no exílio, se – num documento da época – em 1311 a sua presença é assinalada
em Milão. Alguns anos volvidos, está na corte pontifícia de Avinhão, onde esta-
belece uma relação de amizade muito próxima, que será também muito longa,
com Petrarca, mais novo do que ele. Quando, em 1326, é revogada a sua conde-
nação ao exílio, Sennuccio não regressa à pátria, permanecendo temporariamente
em Avinhão, a fim de desempenhar algumas incumbências na Cúria, de entre as
quais a de embaixador à corte imperial da Alemanha. Giuseppe Billanovich pensa
que, de 1338 a 1339, Sennuccio tenha estado em Nápoles, juntamente com Dionigi
di Borgo San Sepolcro, um outro amigo de Petrarca. É de crer que, nos círculos
de florentinos estantes em Nápoles, Sennuccio e Dionigi tenham encontrado
Bocácio, com quem condividiam o apreço dedicado a Petrarca. Vd. G. Billanovich,
Prime ricerche dantesche, Roma, Edizioni di Storia e Letteratura, 1947, pp. 222-223.
490 | petrarca 700 anos
uma pequena parte da sua obra. Dos sete sonetos que dele conhece-
mos, dois são dirigidos ao amigo Francesco Petrarca: “Oltre l’usato
modo si rigira” é resposta a “Signor mio caro, ogni pensier mi tira”
(RVF 266) e “La bella Aurora, nel mio orizonte”, à dispersa (conforme
são designadas as rimas que Petrarca não quis inserir no Canzoniere,
apesar de lhes ter dado grande atenção), “Sì come il padre del folle
Fetonte”. O nome de Sennuccio goza de uma posição elevada, em
termos numéricos, de entre os correspondentes e dedicatários que
figuram no Canzoniere. São, pelo menos, vinte e quatro, as composi-
ções – com fina variação de tons e conteúdo – dedicadas ou dirigidas
a outros destinatários. Os verdadeiros textos de correspondência, os
que requerem uma resposta da parte do receptor, escasseiam. Joseph
A. Barber, por ocasião de uma lectura pronunciada a 30 de Abril de
1982, tinha aventado a fascinante hipótese de que, no seio dos Rerum
Vulgarium Fragmenta, se encontrasse um microcancioneiro consagrado
a Sennuccio, formado por quatro sonetos dedicados ao amigo floren-
tino, dispostos entre as rimas em vida e em morte de Madonna
Laura:
Algumas notícias biobibliográficas sobre Sennuccio del Bene encontram-se
na introdução às edições do seu cancioneiro. De entre elas, recordamos as de
M. Szombathely, Bologna-Trieste, Cappelli, 1925; A. Cuomo, Salerno,
Spadafora, 1927; A. Silvestro, Catania, Sorace e Siracusa, 1931; e A. Altamura,
Napoli, Perella, 1950. D. Bianchi também atribui a Sennuccio o soneto, “I’ ho
mille penne e più stancate”, no artigo “Petrarca o Boccaccio”, in Studi
Petrarcheschi, 5, 1952, pp. 13-84. Acabou de ser dado aos prelos o trabalho de
Daniele Piccini, Un amico del Petrarca: Sennuccio del Bene e le sue rime, Roma,
Antenore, 2004.
J. A. Barber, “Il sonetto CXIII e gli altri sonetti a Sennuccio”, in Lec-
Barber não pretendia fazer crer que um desses sonetos tivesse dado
origem aos outros do grupo, embora sugerisse, em voz baixa, a exis-
tência de uma linhagem mais geral e mais complexa que ligava os seus
versos, como uma fraternidade entre composições afim à que ligava
o próprio poeta e o seu amigo. Os sete sonetos remontam a um
Petrarca ainda bastante novo, excepção feita ao RVF 113, “Qui dove
mezzo io son, Sennuccio mio”, composto não depois de 1342 (data-
ção que lhe foi atribuída não só por Barber, mas também por Giovanni
Ponte).
O soneto RVF 291, “Quand’io veggio dal ciel scender l’Aurora”
– à semelhança do RVF 287, “Sennuccio mio, benché doglioso et
solo” – é datável de Novembro de 1349, com base na apostilha registada
no início da folha 12v do códice Vaticano Latino 3196, o chamado
“codice degli abbozzi”:
1349 novembris 28, inter primam et tertiam. Videtur nunc animus ad hec
expedienda pronus, propter sonitia de Morte Sennuccii et de Aurora, que his
diebus dixi et erexerunt animum
O espaço e o tempo intervêm no simile com que se abre o canto, uma Aurora
que, do meio do céu, mostra a cabeça coroada de estrelas que resplandecem
na constelação de Escorpião, a fim de precisar algo e predispor o ânimo para
a contemplação.
A Aurora e o Amigo na redacção do planctus | 493
Mas Laura não volta para o amante, a quem não deixou mais do que
o nome:
O pai do pobre Faetonte é Hélios, que conduzia o carro do sol. Mas, em
épocas mais recuadas, Hélios era confundido com Apolo, pois pensava-se que
também ele guiava o carro solar.
496 | petrarca 700 anos
Ma recando a la mente
che pur morta è la mia speranza, viva
allor ch’ella fioriva,
qual io divento ella sel vede, e spero
veder colei ch’è or sì presso al vero (vv. 51-55)
Carmina 1.3.8.
Agostinho, Confessiones 4.6.11: “Sic ego eram illo tempore et flebam ama-
rissime et requiescebam in amaritudine. Ita miser eram et habebam cariorem
illo amico meo vitam ipsam miseram. Nam quamvis eam mutare vellem, nollem
tamen amittere magis quam illum et nescio an vellem vel pro illo, sicut de
Oreste et Pylade traditur, si non fingitur, qui vellent pro invicem vel simul
mori, qua morte peius eis erat non simul vivere. […] Mirabar enim ceteros
mortales vivere, quia ille, quem quasi non moriturum dilexeram, mortuus erat,
et me magis, quia ille alter eram, vivere illo mortuo mirabar. Bene quidam dixit
de amico suo dimidium animæ suæ. Nam ego sensi animam meam et animam
502 | petrarca 700 anos
numa das suas cartas Familiares, ao contar o prazer que lhe proporcio-
nam os amigos, mesmo quando distantes.10 Nesse “meio”, reside o
motivo da separação física que domina o intercâmbio de correspon-
dência poética. Não é apenas uma cifra emotiva, como também um
distintivo no plano da introspecção (exactamente como para Agostinho),
indício do contínuo desdobramento que junta – numa só unidade,
como Orestes e Pilades – os dois amigos,
[…] tu ’l troverai
mezzo dentro in Fiorenza e mezzo fori
illius unam fuisse animam in duobus corporibus, et ideo mihi horrori erat vita,
quia nolebam dimidius vivere, et ideo forte mori metuebam, ne totus ille more-
retur, quem multum amaveram”.
10 Primeira redacção das epístolas 2-5 do oitavo livro.
A Aurora e o Amigo na redacção do planctus | 503
Ainda que, no planctus RVF 268, Sennuccio acabe por ser deposto,
deixando de aparecer abertamente, ao contrário do que estava progra-
mado na primeira solução do comiato. Sennuccio é abandonado e
exonerado do lugar que lhe tinha sido atribuído, por, entretanto, ter
morrido, permanecendo, contudo, no ideário poético da composição,
enquanto destinatário não declarado. Chegados a este ponto, poder-
-se-ia fazer uma outra consideração, bem mais importante no aspecto
valorativo: depois do desaparecimento do amigo, a dedicatória da
segunda redacção do planctus RVF 268 torna-se – num crescendo de
dor – cada vez mais violenta e ainda mais aflitiva na terceira redacção.
Em palavras pobres, a morte de Sennuccio agrava o tom lacrimoso12
do congedo da canção em análise e a inquieta urdidura da escrita petrar-
quesca aparece aqui suspensa, como nunca, entre acribia e maciço
investimento emotivo.
Precisámos, anteriormente, que o planctus da Vita Nuova, “Li occhi
dolenti per pietà del core”, é o exemplo em torno do qual Petrarca
orbita para regular a temperatura emotiva em “Che debb’io far”. Pois
bem, no planctus RVF 268 forma resíduo o tema da viuvez do amante
e de Amor precedentemente expresso por Dante em “Li occhi dolenti”.
11 À minha Senhora podes dizer “in quante lagrime io vivo” é uma expressão
usada no sexto verso do soneto RVF 130, “e di lagrime vivo a pianger nato”.
“Et son fatt’una fera” (neste caso, pelo facto de se afastar da vida em sociedade)
equivale ao quinto verso do soneto RVF 306, “ond’io son fatto un animal sil-
vestro”. De “fere selvestre” escreve também o poeta no terceiro verso do soneto
RVF 301, “fere selvestre, vaghi augelli et pesci”.
12 Na referência de Petrarca à “canzon mia lacrimosa” ressoa a “Lacrimosa
1349 novembris 28, inter primam et tertiam. Videtur nunc animus ad hec
expedienda pronus, propter sonitia de Morte Sennuccii et de Aurora, que his
diebus dixi et erexerunt animum. (fol. 12v)
Purg. 7.94-95, “Rodolfo imperator fu, che potea / sanar le piaghe c’hanno Italia
15
morta”.
508 | petrarca 700 anos
E talvez ainda os sonetos RVF 109, RVF 110 e RVF 111, susceptí-
veis de serem cooptados para esta rica corporação – por continuidade
temática, em virtude da alta voltagem unitiva e expressiva em torno do
louro –, de acordo com as possibilidades interpretativas avançadas por
Marco Santagata e Rosanna Bettarini.16
Nascida em Pisa em 1946, cidade onde se formou e onde vive, Giulia Poggi
ensinou das Universidades de Verona e de Siena. Actualmente, é Professora
de literatura espanhola na Faculdade de Letras da Universidade de Pisa.
Estudou vários aspectos da literatura dos Siglos de Oro (Calderón, Tirso de
Molina, Cervantes) e, em particular, a lírica petrarquista de Góngora e de
Quevedo. Traduziu Agudeza y arte de ingenio de Baltasar Gracián (1986) e
organizou a primeira edição integral italiana dos sonetos de Góngora (1997).
Introdução 5
Petrarca na actualidade
O tempo de Petrarca
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