A Profetisa - Barbara Wood
A Profetisa - Barbara Wood
A Profetisa - Barbara Wood
A Profetisa
Tradução/Pesquisa:GRH
Revisão Inicial: Tania Candida
Revisão Final: Déia
Formatação:Ana Paula G.
ARGUMENTO
No século I D.C Ulri a faz uma longa viagem até Roma para encontrar seu pai e descob
rir o significado de suas visões.
Desde muito pequena, Ulri a teve que esconder as estranhas visões que tinha repent
inamente e cujo significado desconhecia. Agora, além disso, sente que o mundo deix
ou de estar em harmonia. Quando compartilha suas inquietações com uma profetisa, ela
responde com uma perturbadora pergunta: «Terá suficiente coragem para responder qua
ndo a chamarem?» Mas essa pergunta só consegue desconcertá-la mais ainda.
Do mesmo modo, tem visões recorrentes de um lobo, cujo significado não entende até que
sua mãe conta a ela a verdade sobre seu pai, um grande líder militar germano chamad
o Wulf, «o Lobo». Durante um jantar, Ulri a escuta os planos do exército romano para d
errotar a rebelião germana que seu pai comanda, assim decide empreender uma longa
viagem para avisá-lo dos perigos que se abatem sobre ele. Mas embora o objetivo pr
incipal de Ulri a seja proteger seu pai, em seu caminho cruzarão também a descoberta
de seu próprio destino e um homem que a ajudará em sua aventura e do qual se apaixo
nará para sempre.
Comentário da Revisora Tania Candida:
Pra quem gosta de um pouco de história vai gostar, pois o que o livro mais c
onta é sobre um pouco da história das religiões. Romance só muito de longe mesmo epouquíssi
mo, o livro é mais baseado na busca de cada um separadamente. Não me empolgou não.
Comentário da Revisora Déia: Ao contrário da Tania, eu gostei! Gosto bastante de
história antiga e apesar de concordar que o romance não é o forte do livro, me empenhe
i ao máximo em tentar colocar notas de tradução de termos que nem conhecia, afinal o l
ivro se passa no ano I D.C! Tem referências a expressões que nem imaginava..Valeu pe
la aula de história!!rsrsrsrsrs
LIVRO 1
Roma, ano 54 D.C
Em busca de respostas.
Ulri a, de dezenove anos, despertou essa manhã com a sensação de que algo não es
tava bem. A sensação aumentou enquanto tomava banho e se vestia, enquanto suas serva
s penteavam seu cabelo, amaravam suas sandálias e serviam o café da manhã de papa de t
rigo e leite de cabra. Já que a inexplicável sensação não diminuía, tinha decidido ir à Rua d
s Adivinhos, onde videntes, místicos, astrólogos e pitonisas1 prometiam soluções aos mis
térios da vida.
Enquanto era transportada pelas buliçosas ruas de Roma em um palanquín2 com
cortinas, perguntou-se de onde provinha seu mal-estar. Nada extraordinário tinha a
contecido no dia anterior. Visitou umas amigas, bisbilhotou em livrarias e dedic
ou um momento ao tear, o típico dia de uma jovem de sua classe e educação. Mas então tev
e um sonho estranho
Logo depois da meia-noite sonhou que se levantou da cama, subiu ao baten
te da janela e caiu descalça em um chão coberto de neve. No sonho estava rodeada de
altos pinheiros em lugar das árvores frutíferas que havia detrás da casa; de um bosque
em lugar de uma horta, e as nuvens deslizavam sigilosas sobre o rosto de uma lu
a invernal. Viu passos, rastros de grandes pés que entravam no bosque. Consciente
da carícia da lua em seus ombros nus seguiu os rastros até encontrar um lobo grande
e peludo de olhos amarelos. Sentou-se na neve e o lobo se aproximou, deitou-se j
unto a ela e pôs a cabeça em seu colo. A noite estava limpa como os olhos do lobo qu
e a olhavam de seu colo e podia notar o batimento regular de seu potente coração. Os
olhos amarelos piscavam e pareciam dizer: «A confiança está aqui, o amor está aqui, seu
lar está aqui».
Ulri a despertou desorientada.
«Por que sonhei com um lobo? se perguntou . Meu pai se chamava Wulf. Fal
eceu faz muitos anos na longínqua Pérsia. »
O sonho seria um sinal? Mas um sinal do que?
Seus escravos pararam o palanquín e Ulri a desceu; uma moça alta, embelezada
com um vestido de seda longa de cor rosa pálido e uma estola que cobria recatadam
ente a cabeça e os ombros, ocultando um cabelo loiro avermelhado e um pescoço elegan
te. Caminhava com uma desenvoltura e um aprumo que escondiam uma crescente inqui
etação.
A Rua dos Adivinhos era um beco estreito abraçado pela sombra de abarrotad
as casas de vizinhos. Pintados de vivas cores e adornadas com objetos que muito
brilhavam; as bancas e postos de videntes e profetas, adivinhos e pitonisas eram
prometedores. O negócio ia de vento em popa para os vendedores de talismãs, amuleto
s da boa sorte e relíquias mágicas.
Conforme Ulri a entrava no beco, impaciente para descobrir o significado
de seu sonho com o lobo, os marreteiros a chamavam de suas bancas e barracos af
irmando serem «caldeus autênticos» que gozavam de canais diretos com o futuro e possuíam
o terceiro olho. Foi primeiro ao indivíduo das pombas engaioladas cujas vísceras li
a por umas poucas moedas. Com as mãos meladas de sangue, o homem assegurou a Ulri
a que encontraria um marido antes que finalizasse o ano. Em seguida parou no pos
to do homem que lia a fumaça, que declarou que o incenso augurava a ela cinco filh
os sãos.
Percorridas três quartas partes do beco vislumbrou uma pessoa de aspecto h
umilde sentada em uma esteira puída, sem sombra nem barraco nem banca. A vidente v
estida com uma túnica branca que tinha conhecido tempos melhores, estava sentada c
om as pernas cruzadas e as mãos, longas e ossudas, sobre os joelhos. Mantinha a ca
beça encurvada, exibindo o cabelo penteado com uma raia branca no meio e mais negr
a que o azeviche, que caía sobre os ombros e as costas. Ulri a ignorava que razão po
dia ter para escolher uma profetisa tão pobre talvez a essa profetisa interessasse
mais a verdade que o dinheiro mas o caso é que parou frente a ela e aguardou.
Logo a vidente levantou a cabeça e Ulri a se sobressaltou com o peculiar a
specto de seu rosto. Emoldurada pela negra cabeleira, era estreita e alargada, t
oda osso e pele amarela. Uns olhos negros e tristes coroados por duas sobrancelh
as extremamente arqueadas pousaram em Ulri a. A mulher parecia quase desumana e
era impossível calcular sua idade. Tinha vinte anos ou oitenta? Um gato de pelagem
marrom com bolinhas negras dormia aconchegado a seu lado. Ulri a reconheceu a r
aça dos maus egípcios, da qual se dizia que era a mais antiga das raças felinas, poden
do ser inclusive a mãe de todas as demais.
Devolveu sua atenção a esses olhos negros que transbordavam tristeza e sabed
oria.
Tem uma pergunta disse a profetisa em um latim impecável, olhando-a com cal
ma das profundas conchas de seus olhos.
O bulício do beco amainou. Ulri a ficou apanhada nesses olhos egípcios enqua
nto o gato marrom cochilava alheio ao que ocorria a seu redor.
Quer me perguntar pelo lobo continuou a egípcia com uma voz que soava mais
antiga que o Nilo.
Me apareceu em um sonho, sábia. É um sinal?
Um sinal do que? Formule sua pergunta.
Não sei onde é meu lugar, sábia. Minha mãe é romana, meu pai germano. Eu nasci na Pé
sia e passei a maior parte de minha vida viajando de um lado a outro com minha mãe
por causa de sua profissão. Ali onde fomos tenho me sentido uma estranha. Preocup
a-me, sábia, que se não descobrir aonde pertenço, nunca chegue, a saber, quem sou. Era
o sonho do lobo um sinal de que meu lugar está na Germânia, com o povo de meu pai? É
hora de que abandone Roma?
Os sinais estão em todas as partes filha. Os deuses nos guiam em todo momen
to e em todo lugar.
Fala em enigmas, sábia. Não poderia, ao menos, ler meu futuro?
Terá um homem disse a profetisa que te oferecerá uma chave. Agarre-a.
Uma chave? Do que?
Saberá quando chegar o momento.
Ulri a pensava que a doença secreta que havia embaçado sua infância, e da qual
não tinha falado com ninguém, nem sequer com sua mãe, tinha desaparecido quando tinha
doze anos.
Não podia recordar a primeira vez que tinha visto algo que outros meninos
não podiam ver ou sonhado algo antes que acontecesse ou acariciado a mão de uma pess
oa e sentido seu sofrimento interno. Aos oito anos, no açougue, com sua mãe, o açougue
iro procurando uma faca enquanto os clientes aguardavam impacientes, Ulri a dize
ndo «caiu debaixo da mesa da venda», o açougueiro entrando embaixo da mesa e retornand
o com a faca na mão e rosto de estranheza. Ulri a havia visto suficientes rostos c
omo esse para saber que as coisas que via e sentia, quer fosse em sonhos ou em v
isões, não eram normais. Dado que se sentia como uma estranha em cada cidade em que
ela e sua mãe viviam temporariamente, tinha aprendido a se calar e deixar que o po
vo encontrasse por si só suas facas perdidas.
Então, sete anos atrás num um dia de verão, Ulri a estava com sua mãe desfrutand
o de um lanche no campo quando, à tarde, entre o zumbido das abelhas e o perfume e
mbriagador das flores, viu uma moça que corria entre as árvores com o cabelo agitado
; a boca aberta em um grito silencioso e os braços manchados de sangue.
Mãe, do que foge essa mulher? perguntou enquanto pensava que deveriam ir aju
dar . Parece muito assustada e tem as mãos cobertas de sangue.
Que mulher? perguntou Selene olhando a seu redor.
Quando a aterrorizada mulher desapareceu diante de seus olhos, Ulri a co
mpreendeu, assustada, que tinha tido outra de suas visões, embora mais intensa e vív
ida que todas as anteriores.
Ninguém, mãe. Já se foi.
Isso fazia sete anos, e depois disso não havia tido mais alucinações nem sonho
s sobre acontecimentos futuros ou lugares fantásticos; sentido as emoções de outras pe
ssoas, nem conhecido o paradeiro de objetos extraviados. Ulri a tinha entrado na
puberdade e por fim era uma garota normal e sã como as demais. Mas nesse momento,
na casa de tia Paulina, acabava de ter uma visão.
A voz do comandante Gaio Vatinio a arrancou de seu pensamento.
Terá que derrotar os germanos estava dizendo a seus companheiros de mesa . Du
rante o reinado do Tibério assinamos tratados de paz com os bárbaros, e agora estão de
scumprindo o acordo. Eu me encarregarei de sufocar os distúrbios de uma vez por to
das.
Na sala de jantar de Paulina os convidados se reclinavam sobre os divãs ap
oiando-se no braço esquerdo e pegando a comida com a mão direita. O comandante Vatin
io ocupava o lugar de honra na mesa de Ulri a. Selene, que se fazia de anfitriã, j
azia no divã situado à sua esquerda. Ulri a estava em frente. No meio havia um casal
chamada Máximo e Juno, um contador aposentado chamado Horacio, e Aurélia, uma viúva d
e idade avançada. Com a mão agarravam cogumelos fritos com alho e cebola, anchovas r
angentes e gordos pardais recheados de pinhões.
Ao reparar em como o olhava Ulri a, o comandante Gaio Vatinio, um soltei
ro contumaz, calou e a olhou também. E não pôde menos que admirar sua peculiar beleza,
a pele de marfim, o cabelo da cor do mel escuro. Também seus olhos azuis eram uma
raridade entre as mulheres romanas. Uma veloz olhada a sua mão esquerda indicou q
ue não estava casada, o qual chamou sua atenção, pois parecia ter ultrapassado a idade
de casamento.
Esboçou um sorriso encantador e disse:
Estou te aborrecendo com meu bate-papo militar.
Absolutamente, comandante repôs Ulri a . Sempre me interessou a Germânia.
Por que não podem sentar a cabeça e civilizar? disse Aurélia com cara de chatei
o . Não há mais que ver o que nós contribuímos ao resto do mundo. Nossos aquedutos, nossos
meios-fios.
Vatinio se virou para a anciã.
O que mantém tão desgostados os bárbaros é que quatro anos atrás o imperador Cláudio
elevou uma praça forte de Rin à categoria de colônia, a que pôs o nome de Colônia Agrippin
ensis em honra a sua esposa Agripina, nascida ali. Foi então quando começaram realme
nte as incursões. Pelo visto, a romanização de um velho território germânico despertou ranço
sos sentimentos de patriotismo tribal e orgulho racial. Vatinio agitou seus longo
s dedos carregados de anéis . Cláudio depositou em mim a honrosa responsabilidade de f
azer com que a Colônia seja defendida a qualquer preço.
Ulri a pegou sua taça de vinho, mas não pôde beber. Primeiro o lobo e agora Vat
inio falando de reatar os combates na Germânia.
Os bárbaros estavam há muito tempo sem dar problemas interveio Máximo, o advogad
o gordo e rico. Elevou uma mão e seu escravo pessoal se aproximou para limpar a go
rdura dos dedos . Ouvi que as tribos estão sendo incitadas por um rebelde. Sabe quem
é?
O atraente rosto de Vatinio se escureceu.
Não sabemos quem é, nem sequer sabemos como se chama. Nunca o vimos. Segundo
nossos informantes, apareceu de repente, como saído do nada, e agora está dirigindo
tribos germânicas em novos levantamentos. Atacam quando menos esperamos e logo se
escondem no bosque.
Vatinio bebeu um gole de vinho, aguardou que seu escravo secasse seus lábi
os e acrescentou em tom contundente:
Mas eu encontrarei esse líder, e então ordenarei que o executem publicamente
como advertência a outros germanos que estejam pensando em rebelar-se.
Como pode estar tão seguro de seu êxito, comandante? perguntou Ulri a . Tenho li
do que os germanos são gente ardilosa. O que está baralhando em sua mente para ter a
certeza que vencerá?
Um plano que não pode falhar respondeu o militar com um sorriso firme , porqu
e se apoia no efeito surpresa.
O coração de Ulri a acelerou. Pegou uma azeitona com mão trêmula e disse:
Eu acredito que a estas alturas os germanos já sabem de todas as estratégias
que utilizam as legiões, inclusive as que pretendem surpreender.
Este plano será diferente.
Em que sentido?
O comandante meneou sua atraente cabeça.
Não entenderia.
Ulri a insistiu.
Os temas militares não me aborrecem comandante. Tenho lido as memórias de Jul
io César. Por exemplo, tem intenção de utilizar máquinas de guerra em sua campanha?
Vatinio a olhou um instante, admirando seus cabelos cor mel, seu delicad
o rosto oval, sua expressão franca não podia dizer que a moça fosse tímida e, adulado por
seu interesse no plano, além de impressionado por sua capacidade para compreendê-lo,
não pôde resistir a tentação de responder:
Isso é precisamente o que esperarão os bárbaros. Portanto, tenho em mente um pl
ano diferente. Desta vez pagarei na mesma moeda.
Ulri a lançou um olhar inquisitivo.
O imperador Cláudio me concedeu liberdade plena nesta campanha. Gozo de aut
oridade para recrutar a quantos legionários e quanta maquinaria de assédio precisar.
E isso é o que os bárbaros verão. Catapultas e torres móveis, tropas montadas e unidade
s de infantaria. Tudo muito organizado e muito romano. O que não verão fez uma pausa
para beber um gole de vinho e prolongar a espera da encantada jovem são as guerril
has, adestradas e dirigidas por bárbaros e desdobradas pelos bosques atrás deles.
Ulri a olhou ao Gaio Vatinio dos pés à cabeça sentiu que um punho gelado espre
mia seu coração. Aquele homem tinha intenção de utilizar as estratégias de guerra germânicas
contra os próprios germanos.
Baixou a vista para suas mãos, onde sentiu o pulso com força em seus dedos,
e pensou: «Será uma chacina».
Ulri a olhava o teto com o longínquo rumor do tráfego noturno que percorria
as ruas da cidade como ruído de fundo. Sentia que a cabeça ia estalar. Tinha chorado
um momento e depois se pôs a pensar. Estendida em seu leito com os olhos fixos na
escuridão, tentava pôr em ordem suas emoções. Remoia a terrível forma com que tinha trata
do a sua mãe, partindo desse modo, faltando ao respeito.
«Pedirei desculpas pela manhã, assim que me levantar. E pode ser então que fal
emos de meu pai, e isso nos ajudará a reparar o distanciamento que não teria que ter
se produzido entre nós.
»Pai »
Como podia sua mãe estar tão segura que estava morto? Até que ponto era Gaio V
atinio prova suficiente disso? Que o comandante estivesse vivo não significava forço
samente que Wulf não tinha retornado à Germânia.
Levantou-se e caminhou até a janela, onde aspirou o perfume dessa noite da
primavera. O chão estava branco e se estendia colina acima como um manto de neve;
pétalas de árvores frutíferas em flor, de cor rosa e laranja, caíam como flocos de neve
e pareciam brancos sob a lua.
Pensou na Germânia nevada, imaginou seu pai guerreiro tal como sua mãe o hav
ia descrito tantas vezes: alto, musculoso, com uma fronte feroz, orgulhosa. Se,
como dizia sua mãe, abandonou a Pérsia vinte anos atrás, teria chegado a Germânia depois
da assinatura dos tratados de paz, quando a região já não estava em guerra com Roma e
gozava de estabilidade. Wulf teria tido que estabelecer-se, como muitos de seus
compatriotas, e dedicar-se a outras ocupações, como a criação de animais. Foi o recente
decreto de Cláudio que elevava de categoria a Colônia e ordenava o corte dos bosque
s circundantes para permitir o assentamento, que abriu velhas feridas, reavivou
velhos rancores e reiniciou a luta.
Era possível? Podia estar seu pai entre esses lutadores? Podia ser o novo
herói da rebelião de seu povo?
Agora compreendia o significado do sonho do lobo. Era, em efeito, um sin
al de que devia ir à Germânia.
Quando, adolescente, se dispôs a aprender tudo sobre o povo de seu pai, su
a mãe foi a uma das muitas livrarias de Roma e comprou o mapa mais recente da Germân
ia. Juntas, mãe e filha analisaram as características topográficas e, apoiando-se em c
omo havia descrito Wulf seu lar a Selene, o que incluía até o último meandro do afluen
te que alimentava o rio Rin, foram capazes de marcar o lugar onde vivia seu clã. A
li, segundo palavras de Wulf, sua mãe era a guardiã de um antigo lugar sagrado.
Selene assinalou com tinta o lugar, o bosque sagrado da Deusa das Lágrimas
de Ouro, ao mesmo tempo em que explicava à sua filha: «Contam que Freya amava tanto
a seu marido que sempre que este empreendia uma longa viagem derramava lágrimas d
e ouro».
Ulri a correu até o arca de mogno que descansava aos pés de sua cama, caiu d
e joelhos frente a ele e levantou a pesada tampa para pinçar entre as roupas de su
a infância e as valiosas lembranças de uma vida itinerante. Achou o mapa e o desenro
lou com dedos trêmulos. Aí estava o lugar, ainda marcado, que indicava onde vivia o
clã de Wulf.
Apertando o mapa contra seu peito, sentiu que a coragem corria de repent
e por suas veias, e também uma nova razão de ser. E obrigação. Gaio Vatinio estava reuni
ndo a suas legiões nesse preciso instante. No dia seguinte iniciariam sua marcha p
ara o norte.
Agarrou sua toga. «Devo contar a ele a mãe. Devo me desculpar por meu compor
tamento egoísta, lhe pedir perdão por ter faltado ao respeito e rogar que me ajude a
organizar minha viagem.»
Mas Ulri a não viu luz nem ouviu ruído nos aposentos de sua mãe e não quis despe
rtá-la. Selene trabalhava longas horas ajudando infatigavelmente a outros.
Retornaria pela manhã.
Ulri a despertou quando suas escravas entraram com o café da manhã e água quen
te para o banho, mas estava impaciente por desagravar a sua mãe e compartilhar com
ela a maravilhosa notícia.
«Necessitarei de dinheiro pensou quando se aproximava de sua porta . Levarei
poucos escravos para poder viajar a bom ritmo. Mamãe saberá qual rota é a mais rápida.
Gaio Vatinio partirá hoje com uma legião de sessenta centuriões, isto é, seis mil homens
. Tenho que chegar a Germânia antes que ele. Devo encontrar o acampamento secreto
de meu pai para o pôr de sobre aviso. »
Sinto muito, senhora disse Erasmo, o velho servente, depois de abrir a po
rta do dormitório de Selene . Sua mãe não está. Teve que partir por causa de uma emergência
antes da alvorada. Um parto difícil Pode ausentar-se por dois dias.
Dois dias! Ulri a retorceu as mãos. Não queria perder nem sequer um dia.
Sabe aonde foi? A casa de quem?
Mas o velho servente o ignorava.
Ulri a se pôs a refletir. Roma era uma cidade grande, com uma população enorme
. Sua mãe poderia estar em qualquer lugar desse interminável labirinto de ruelas.
De retorno ao seu aposento, mudou de planos. «Posso fazer isso só pensou . Ma
mãe entenderá. Quantas vezes nós partimos repentinamente de um povoado ou cidade sob o
amparo da noite? Quantas vezes fomos daqui pra lá devido à busca pessoal de sua mãe?»
Agarrou uma folha de papiro de seu escritório, umedeceu uma pastilha de ti
nta que abrandou com a ponta de uma varinha de cana e, depois de meditar uns ins
tantes, escreveu: «Mãe vou embora de Roma. Acredito que meu pai está vivo e devo o avi
sar da emboscada que Gaio Vatinio planeja contra seus guerreiros. Quero contribu
ir à luta. E também quero conhecer o povo de meu pai, o meu povo».
Interrompeu-se para escutar como a casa voltava para a vida conforme os
escravos se dirigiam às suas tarefas e a voz rascante do velho Erasmo gritava orde
ns. Observou as cortinas de suas janelas balançadas pela brisa e estremeceu de emoção
e de orgulho por sua nova razão de ser. Pensou no povo que ia conhecer nos mágicos b
osques com os quais tinha sonhado tantas vezes. E compreendeu com surpresa que t
inha outras razões para querer chegar o quanto antes à terra de seu pai; razões que ti
nham a ver com sua doença secreta, com as visões e os sonhos que tanto a tinham assu
stado desde menina e que pareciam ter voltado. Possivelmente por isso tinha sonh
ado com o lobo a noite anterior, possivelmente a resposta à sua doença e o remédio est
ivesse no povo de seu pai, nos bosques brumosos do longínquo norte.
Continuou escrevendo. «Estou a dezenove anos sem um pai. Desejo recuperar
o tempo perdido. E desejo dar algo ao homem que me deu a vida. Amo você, mãe. Proteg
eu-me quando não tinha plumas e meu ninho era frágil. Disse que eu era um presente d
a Deusa, o milagre que foi concedido em seu solitário exílio, e como tal sempre soub
e que não te pertencia de tudo; que a Deusa me chamaria algum dia para uma missão es
pecial. Acredito que a chamada chegou. Acredito que logo descobrirei onde é meu lu
gar, e uma vez ali, compreenderei quem sou.
»Querida mãe, amarei você e te honrarei sempre, e reza que algum dia voltemos
a nos reencontrar. Aonde quer que me leve meu caminho, mãe, seja qual for o destin
o que me aguarde, levarei você sempre em meu coração. »
Orvalhou a tinta com pó para secá-la e afiançá-la e, quando estava enrolando o p
apiro e selando-o com lacre vermelho, derramou uma lágrima. A pequena mancha se es
tendeu sobre o papiro criando uma curiosa figura em forma de estrela.
Encontrou Erasmo no átrio, fiscalizando a limpeza das pilhas de mármore para
os pássaros. Ulri a confiava nele para que entregasse a carta à sua mãe.
Sim, sim, senhora disse o homem inclinando sua calva cabeça e guardando o p
apiro em um dos muitos bolsos secretos que continha sua vistosa túnica . Entregarei
assim que retorne.
Enquanto preparava cuidadosamente sua bagagem, a mente dava voltas. Como
chegaria ao longínquo norte? A Colônia se achava virtualmente no topo do mundo. Dev
ia levar escravos ou viajar sozinha? Baralhou a possibilidade de pedir conselho
a tia Paulina; a seu padrasto ou a sua melhor amiga, mas em seguida o descartou,
pois sabia que tentariam fazê-la desistir da ideia.
Guardou em uma esteira sua roupa mais resistente, sandálias, artigos de li
mpeza e cuidados pessoais, dinheiro e uma capa de reserva. Feito isto, agarrou a
lguns itens das reservas medicinais de sua mãe: potes com remédios, bolsas de ervas,
mofo de pão, bandagens, um escalpelo e linha.
Saiu de sua casa sem despedir-se e caminhou resolutamente até o foro, em c
ujo mercado comprou mantimentos e um odre de água. Depois de dobrar pela via princ
ipal que atravessava os muros da cidade em direção norte. Ulri a apertou o passo enq
uanto rogava à Deusa que a acompanhasse e rezava para que a Mãe de Todos proporciona
sse forças para dar as costas à única família e o único mundo ao qual conhecia e fazer fre
nte a um destino desconhecido com aprumo e coragem.
Com as cartas astrais flutuando ante sua vista nublada, Timónides acredito
u que ia estalar em soluços. Nunca tinha experimentado tanto desespero, tanto desc
onsolo. As estrelas eram sua vida, sua alma, e as mensagens que continham eram p
ara ele mais valiosos que seu próprio sangue. Tinha dedicado sua existência aos céus e
a interpretar os segredos escritos neles, mas nesse momento era incapaz de dist
inguir Cassiopéia de Leão!
Quando levantou a cabeça com a esperança de aliviar a dor, só sentiu que aumen
tava, viu que seu senhor caminhava para ele, e o acompanhava uma jovem dama.
Timónides se esqueceu por um momento de seu mal-estar ao ver que Sebastian
o agarrava as esteiras, o odre com água e a bolsa com comida da moça e o carregava t
udo no ombro, deixando ela livre para que pudesse sustentar modestamente o véu sob
re o queixo, uma habilidade das mulheres romanas que nunca deixava de assombrá-lo.
«Que jovem tão curiosa», pensou. Pelo drapeado e a cor do vestido e a pala par
ecia patrícia, mas conduzia sua própria bagagem. Com certeza se dirigia a visitar fa
miliares, ou a um nascimento, pois essas eram as razões que estavam acostumados a
impulsionar às mulheres a viajar. Para sua surpresa, a moça se separou de Sebastiano
e se aproximou dele.
Doem os dentes?
Timónides tropeçou com uns olhos azuis emoldurados por um cabelo da cor de u
m cervo jovem. Grande Zeus, onde tinha encontrado seu senhor a essa jovem?
Dos que ficam, senhora respondeu , nenhum me aflige, graças aos deuses. O que
me dói é a mandíbula.
Meu nome é Ulri a disse ela com doçura . Permite-me que o examine? Para surpresa
do astrólogo, a moça se sentou em frente e, com muita delicadeza, apalpou-lhe a man
díbula e o pescoço com as pontas dos dedos . Aumenta a dor quando come?
Em efeito respondeu Timónides consternado. Estava gordo por uma boa razão. En
quanto que a astrologia era o centro de sua vida religiosa e espiritual, a comid
a era o centro de sua vida terrestre. Vivia para comer. Do café da manhã, composto p
or tortas de trigo e mel, até o jantar, que compreendia porco frito em azeite com
cogumelos, seu dia consistia em mastigar e tragar e encher a pança em um constante
festim de texturas e sabores. Quando não comia, recordava seu último amor e sonhava
com o seguinte. Timónides renunciaria às mulheres antes que à comida. E agora era inc
apaz de comer! Merecia a pena viver?
Acredito que posso te ajudar disse a jovem em um tom doce, mas firme.
Duvido muito! gemeu o astrólogo . Meu senhor me levou a um médico da cidade que
me envolveu o pescoço e a mandíbula com um cataplasma de mostarda que me produziu um
a erupção abrasadora. O segundo médico me receitou um vinho de papoula que me sumia em
um sono profundo. O terceiro me extraiu um molar. Não quero mais médico!
Com receio, deixou que a moça prosseguisse sua exploração, mas tinha de reconh
ecer, o seu tato era suave e delicado, não como o desses torpes médicos que abriam t
anto sua boca que temia quebrar sua mandíbula.
Quando os dedos de Ulri a apalparam um lugar sensível e Timónides soltou um
grito, a jovem assentiu lentamente com a cabeça e pediu a Sebastiano que trouxesse
algo doce ou amargo. Sebastiano entrou em uma tenda e retornou com uma fruta pe
quena de cor amarela. A estendeu e Ulri a reconheceu nela uma fruta cara importa
da da Índia. Em lugar de cortá-la, introduziu o limão inteiro na boca do velho grego e
disse:
Mastigue.
Depois de muito protestar ignorava a moça que os limões eram uma medicina e
não um alimento? , Timónides obedeceu, e enquanto se esforçava por não cuspir a ácida fruta,
os dedos de Ulri a foram imediatamente a um ponto situado debaixo da mandíbula, q
ue procedeu a esfregar e a espremer sem piedade.
Sebastiano observou, fascinado, que à medida que os dedos mediam e manipul
avam, da boca do astrólogo emanava saliva e baba. Depois de uma pausa angustiosa,
a moça disse:
Já pode cuspir o limão.
Timónides não necessitou que insistissem. Cuspiu polpa e saliva na mão da jove
m.
Eis aqui a causa de seu mal-estar. Mostrou-lhe uma bolinha que descansava
em sua mão . Tinha formado um cálculo diminuto na glândula salival, necessitava o fluxo
da saliva para purgá-lo.
Grande Zeus murmurou Timónides esfregando o queixo.
Incomodará ainda ligeiramente durante uns dias explicou Ulri a ao tempo que
se levantava com gesto gracioso , mas passará e já não voltará a te importunar. limpou a mã
na barra do vestido.
Como desejas que te pague? perguntou Sebastiano sem dar crédito ao que acaba
va de presenciar. Como tinha sabido o que devia fazer?
Não quero que me pague. Só quero que me apresente a um comerciante honrado qu
e me leve a Colônia o quanto antes possível.
Sebastiano recolheu a bagagem e disse:
Conheço a pessoa idônea. virou-se para Timónides . Suponho que agora já poderá faze
ma leitura certeira.
Certamente, senhor, assim que coloque algo substancioso no estômago!
Sebastiano assentiu e, sob o olhar atento de Timónides, perdeu-se com a es
tranha moça entre a buliçosa multidão.
LIVRO 2
Germânia
Ao ver seu senhor entrar no acampamento e parar para falar com o centurião
, Timónides tinha largado a carne de cordeiro e ido até a tenda que compartilhava co
m seu filho Néstor com o fim de preparar-se para a leitura astral da manhã. Era o pr
imeiro assunto que seu senhor atendia quando retornava; antes mesmo que o café da
manhã. Quando Sebastiano o chamasse, ele teria o horóscopo preparado.
Estava inclinado sobre suas cartas astrais à luz de uma luz de azeite, dir
igindo seus instrumentos e rabiscando equações em uma folha de papiro, quando sentiu
uma pontada de culpa pelas falsidades que tinha pronunciado nas últimas semanas.
Embora parecessem invenções inofensivas, nunca antes tinha utilizado seu sagrado pos
to de astrólogo em benefício próprio. Mas queria que a moça fosse com eles se por acaso
a mandíbula voltasse a dar problemas ou contraísse alguma outra doença. Tentou tranqui
lizar sua consciência recordando-se que em todos os anos que tinha servido aos deu
ses e as estrelas jamais tinha pedido nada em troca. Com certeza não davam importânc
ia a essa pequena recompensa por seu leal serviço, mas o sentimento de culpa
Interrompeu-se bruscamente. Algo não estava bem.
Releu suas notas, recolocou o transportador, comprovou os graus, as casa
s e os ascendentes. E notou que seu sangue gelava. Grande Zeus. Não havia dúvida. No
dia anterior o horóscopo de seu senhor tinha sido tão claro e aprazível como um dia d
e verão. Entretanto agora, de repente
Pressagiava uma catástrofe. Algo grande e aterrador que não tinha estado aí os
dias anteriores. Timónides umedeceu os lábios. Por que agora? O que tinha mudado? T
inha a ver com o registro do acampamento?
«Ou é meu castigo por falsificar as leituras?»
Começou a suar profundamente. Sabia que quando transmitisse esta leitura,
Sebastiano ia quer saber por que seu horóscopo tinha mudado de maneira tão súbita. Se
Timónides contasse a verdade, se contasse que em Roma tinha mentido em relação à moça, que
castigo lhe daria Sebastiano? O astrólogo não estava preocupado consigo mesmo; já era
velho, tinha tido uma boa vida e estava disposto a aceitar qualquer castigo den
tro do razoável. Quem o preocupava era Néstor. Devia estar em boas relações com seu senh
or pelo bem de seu filho. Gordinho e com cara torta, com o doce temperamento dos
anjos e a inocência das pombas, Néstor não poderia se cuidar sozinho.
Timónides lutou com o remorso e a indecisão.
O dia em que colocaram o recém-nascido nos seus braços, a cara de asco da pa
rteira, os comentários de suas irmãs e primas de que seria preferível para o menino de
ixá-lo em uma pilha de lixo Timónides quase se deixou convencer, até que sentiu a delic
ada pele, os diminutos ossos da indefesa criatura. Nesse momento o coração bateu for
te e soube que não podia fazer ao pequeno o mesmo que tinham feito a ele. E ficou
com seu filho, o qual tinha chegado tarde na vida para o grego e sua esposa, uma
surpresa, de fato, pois Damaris já não se acreditava em idade de procriar. E quando
Damaris faleceu, tende Néstor apenas dez anos, Timónides voltou a jurar que cuidari
a do moço custasse o que custasse.
Agora, vinte anos depois, os deuses o estavam pondo a prova. E não havia dúv
ida. Não podia contar a seu senhor a verdade, isto é, que se aproximava uma grande c
atástrofe porque seu fiel astrólogo tinha cometido sacrilégio ao falsificar os horóscopo
s. Pelo bem de Néstor, Timónides devia criar outra mentira.
Esfregando a pança e lamentando ter molhado suas costeletas de cordeiro en
quanto molho de alho, saiu à bruma da manhã para fazer a entrega da leitura.
Encontrou Sebastiano sentado em uma mesa instalada frente à tenda onde o r
ico mercador nunca dormia, com um pergaminho repleto de relatórios comerciais dian
te de si e o acostumado ábaco na mão. O jovem cheirava a sabão e vestia uma túnica limpa
. Fez a barba e lavagem a consciência as mãos e os pés. Ao vê-lo com a capa azul atada a
o pescoço, Timónides soube que estava preparado para levantar acampamento e fazer a úl
tima etapa da viagem.
As estrelas têm uma mensagem nova esta manhã, senhor. Está a ponto de te aconte
cer algo grande.
Sebastiano arqueou as sobrancelhas.
Grande? Do que está falando? Não mencionou nada disso na leitura de ontem à noi
te.
As coisas mudaram disse Timónides desviando o olhar.
Mudaram? Sebastiano meditou . Os soldados disse. Virou-se para a tenda de Ul
ri a, onde podia adivinhar sua silhueta andando no interior, e um novo pensament
o começou a formar-se em sua mente.
Os soldados
Um pouco relacionado com os soldados e a moça chamada Ulri a.
«Tenho que avisá-los», havia dito.
O que tinha querido dizer com isso? Avisar do que? Sebastiano acreditava
que simplesmente se dirigia à sua terra. Era o que ela tinha contado.
Não obstante , nas últimas semanas, uma palavra aqui, um comentário lá. «As terras d
e meu povo rodeiam um vale sagrado e oculto, abraçado por dois rios pequenos com f
orma de meia lua. No coração do vale descansa um bosque de carvalhos sagrado onde di
zem que a deusa Freya vertia lágrimas de ouro. » E em outra ocasião, com grande orgulh
o: «A minha é uma tribo de guerreiros».
Nesse momento, recordando sua reação ao ouvir que o comandante Vatinio estav
a em Colônia, perguntou-se: era sua tribo a impulsora do novo levantamento? Eram e
les os rebeldes aos quais Vatinio devia derrotar de uma vez por todas?
E estavam esses insurgentes nesse momento acampados no vale oculto do qu
al Ulri a tinha falado?
Sebastiano ficou em pé e, ao mesmo tempo em que novas ideias brotavam em s
ua mente, escolheu cuidadosamente suas palavras.
Velho amigo disse a Timónides , esse grande sucesso do que falas, poderia sig
nificar que estou a ponto de conhecer alguém muito importante?
Timónides titubeou. Em nome do Grande Zeus, de que diabo falava seu senhor
? O velho grego ignorava, mas de repente vislumbrou uma faísca de esperança, inclusi
ve de entusiasmo, nos olhos de seu senhor.
Exato, isso mesmo disse, assentindo energicamente e detestando-se por sem
elhante mentira, por semelhante sacrilégio. Mas não podia fazer outra coisa. Se os d
euses acabassem com sua vida agora mesmo, não o reprovaria . Dispõe-se a conhecer alguém
muito importante que mudará sua vida.
Sebastiano sentiu de repente uma poderosa agitação. Só podia ser Gaio Vatinio,
comandante de seis legiões! Acaso havia alguém mais importante que ele naquela região
? «E possuo uma informação de inestimável valor. Sei onde se escondem os insurgentes bárba
ros!»
Sabia que com essa informação Gaio Vatinio teria a vitória assegurada. E que o
imperador Cláudio outorgaria uma generosa recompensa ao homem que a tinha facilit
ado. O diploma imperial para a rota da China.
«Partirei imediatamente para o norte para falar com o comandante de um val
e oculto abraçado por dois rios com forma de meia lua »
Estava perdida.
Ulri a estava há vários dias caminhando, seguindo o mapa, esforçando-se para r
ecordar os detalhes que sua mãe tinha contado muito tempo atrás uma infinidade de ri
os pequenos com forma de meia lua! e agora se achava no coração do bosque, ao leste d
e Rin, sem ter a mínima ideia de onde estava.
Ao chegar ao Rin tinha pagado a um barqueiro para que a levasse à outra ma
rgem e no trajeto tinha perguntado se sabia um pouco de Vatinio e suas legiões, ma
s o homem falava depressa, com um acento que ela desconhecia, e só pôde pescar palav
ras soltas.
Uma coisa ela sabia: estava a ponto de livrar uma grande batalha.
Mas onde?
Esquadrinhou o ensolarado bosque onde os abetos e os carvalhos projetava
m sombras escuras e os pássaros trilavam pousados em seus ramos. O estalo de um ra
mo rompia de vez em quando o silêncio, a recordando que havia criaturas observando
-a. Criaturas famintas
Onde estava? Depois de atravessar o rio e ir rumo ao este, deixando atrás
todo rastro de civilização, tinha ido encontrando cada vez menos pessoas em seu cami
nho, e agora se achava completamente só na profundidade do bosque, com uma adaga e
sua força interior como únicas armas. Sabia que devia avançar para o nordeste, mas ig
norava aonde. À diferença de Roma, nestes bosques não havia postes indicadores.
Sentia pavor só de pensar em passar outra noite naquele terreno hostil. Em
bora só faltassem duas semanas para o solstício de verão e os dias fossem cada vez mai
s quentes, o frio se apoderava da noite. Ulri a tinha dormido em buracos que tam
pava com folhas, aproximada de árvores e no amparo das rochas, envolta em sua pala
e rogando por que no dia seguinte encontrasse seu pai. Não tinha mais comida. Tin
ha o vestido feito farrapos e as sandálias quebradas. E agora caminhava cansativam
ente por um bosque que lhe desejava o mesmo do dia anterior.
Com cada raiz tortuosa que tropeçava, com cada arbusto espinhoso que engan
chava a saia, com cada coruja que ululava e cada sombra que a ameaçava, Ulri a se
sentia um pouco mais perto das lágrimas. Tinha acreditado que na terra de seus pai
s se acharia em casa. Depois de tantos anos ignorando qual era seu lugar, sentin
do-se uma estranha inclusive na casa que compartilhava com sua mãe em Roma, estava
convencida que a Germânia pareceria um lugar seguro, familiar e acolhedor. Em lug
ar disso, esse bosque selvagem e imprevisível inspirava medo.
Não podia crer em sua ingenuidade. Como tinha pensado que seria tão fácil enco
ntrar seu pai quando nem um só espião ou agente do serviço de inteligência de César tinha
conseguido?
Apoiou-se em uma árvore para recuperar o fôlego. O sol estava justo no alto.
Quantas horas de luz restavam ainda antes que tivesse que procurar um lugar seg
uro para passar a noite? Deveria retornar? Saberia sequer como retornar?
O mapa, comprado de um cartógrafo de Lugdunum que apregoava sua mercadoria
em um posto do mercado garantindo «os últimos e mais precisos detalhes geográficos», er
a imprestável. Os rios e as correntes indicados no mapa não existiam, enquanto que a
queles dos quais tinha bebido brilhavam por sua ausência. Quanto ao vale situado e
ntre dois rios com forma de meia lua, era possível que já tivesse cruzado sem precav
er-se disso.
Arrependia-se por ter abandonado às escondidas o acampamento da caravana,
de não ter dito pelo menos a Timónides aonde ia. De fato, quando teve suas coisas pr
ontas, assegurou-se de que ninguém a visse descer até o rio. Estariam Sebastiano Gal
o e o astrólogo grego preocupados com ela nesse momento? Suporia Galo que tinha pa
rtido em busca de sua família? Estaria Sebastiano Galo em Colônia, recuperando forças
para a viagem de volta a Roma?
«Pensa sequer em mim?»
Ulri a não surpreendia que o mercador aparecesse em seus pensamentos naqu
ele lugar e nessa hora, pois tinha sonhado com ele cada noite desde que deixou o
acampamento.
Recordando sua missão e o fato que acabava seu tempo, parou para escutar o
bosque. Imaginou milhares de soldados empurrando máquinas de guerra, oficiais a c
avalo bramando ordens e tropas de infantaria formando colunas. Sabia que a batal
ha começaria com o lançamento de armas: catapultas, aríetes e lanças.
Recomeçou a marcha. Um vento frio percorria o bosque. Arrebentou uma corre
ia da sandália e de repente ficou descalça. A dor atravessou seu pé direito e gritou.
As esteiras pareciam agora mais pesadas e as pernas mais lentas. Nunca em sua vi
da tinha estado tão faminta. Uma voz do passado, de tia Paulina, sussurrou-lhe: «As
senhoritas nunca limpam o prato. É próprio de uma dama deixar comida».
Tia Paulina, que era como uma segunda mãe para Ulri a porque Selene, sua mãe
de verdade, andava sempre ocupada com sua prática médica e seus numerosos pacientes
. «Uma jovem romana educada dizia Paulina nunca exibe o cabelo em público. Não se altera
. Não fala mais da conta. Cada tarde trabalha em seu tear. Sempre se mostra amável e
cortês e espera com impaciência o dia em que se case e tenha filhos. »
Enquanto caminhava a tropeções pelo chão irregular do bosque, com os ramos e p
edrinhas cravando no pé, pensou: «É este meu castigo por quebrar as normas?».
O vento mudou subitamente de rumo e sacudiu as copas das árvores, mas dest
a vez trouxe consigo o aroma de fumaça. Ulri a parou e levantou a cabeça. Sim! Perto
dali havia fogueiras! Possivelmente um fogo com uma panela fumegante, carne gir
ando em um espeto. E, o mais importante, gente
Avançou entre as árvores e ouviu vozes. Atravessou o pinhal e encontrou-se e
m uma grande pradaria verde. Olhou a seu redor procurando alguma choça, alguma sin
al de vida, e viu um homem estendido sobre a erva. Aproximou-se com cautela. O h
omem tinha uma postura estranha.
Agachou-se muito devagar e o tocou. Estava frio e rígido.
Retirou rapidamente a mão. Examinou a pradaria.
E viu
Outro corpo.
E outro
Dirigiu a vista para o limite da pradaria e vislumbrou o começo de um terr
eno enegrecido: uma paisagem desoladora de árvores disformes, muitos dos quais ain
da despediam colunas de fumaça. Tinham posto fogo à terra, selo característico dos rom
anos, que tinham como política esfaquear e incendiar depois da batalha.
Com o corpo intumescido, entrou na pradaria, onde encontrou mais cadáveres
, e saiu em um vale coberto de centenas de mortos, talvez milhares.
Seguiu caminhando entre a fetidez, as moscas, as mutilações, os corpos ensan
guentados, as cabeças imateriais, os corpos decapitados, um manto grotesco de extr
emidades e vísceras. Viu cabeças sem olhos e línguas apontando para ela como se zangas
sem que as visse em semelhante estado. Via corvos bicando olhos, levantando o vo
o com línguas inchadas nas garras, grasnando e brigando por um testículo, arrancando
e devorando a tenra carne. Lobos roendo ossos.
Assaltaram-lhe as náuseas. Soluçou ao ver homens empalados e sem braços, o san
gue que tinha saído em fervuras agora estava negro e coagulado. Ouviu gemidos. Alg
uns deles estavam vivos!
Seguiu os fracos gemidos e chegou até um guerreiro germano que jazia em um
a postura antinatural. Tinha as pernas viradas de uma maneira impossível, como se
tivesse partido a coluna. A metade superior do corpo estava em posição para cima enq
uanto que as pernas ficavam de barriga para baixo. Tinha os olhos abertos. Ulri
a olhou horrorizada ao moribundo, sem poder mover-se, sem poder respirar.
O homem abriu os lábios. O queixo tremeu. Sussurrou algo. Queria que o mat
asse que pusesse fim a seu sofrimento.
Ulri a desembainhou sua adaga e, empunhando-a firmemente com as duas mãos,
elevou-a para o céu e com um grito afogado afundou a folha no peito do guerreiro.
Manteve os olhos abertos, mas notou que sua luz se apagava e que deixava de res
pirar.
Cegada pelas lágrimas, retrocedeu e contemplou o campo de batalha. Milhare
s de mortos. Estava seu pai entre eles?
Procurou desesperadamente o herói chamado Wulf, mas só via corpos em process
o de decomposição cravados às árvores. Cadáveres de mulheres violadas, mulheres que se uni
ram a seus maridos e filhos na batalha e que tinham sofrido uma morte espantosa.
Parou em seco. Tinha interpretado mal ao barqueiro que atinha ajudado a
cruzar o Rin. Não a tinha advertido de uma batalha iminente, mas sim de uma batalh
a já acontecida. Vatinio não só tinha chegado a Colônia com suas legiões, mas sim tinha en
trado em combate e ganhado!
«Teria conseguido salvá-los! Cheguei muito tarde!»
Avançou entre os massacrados cadáveres chorando amargamente.
Sinto sussurrava aos caídos . Sinto muito. Peço-lhes perdão.
O sol se ocultou atrás dos pinheiros e projetou uma sombra lúgubre sobre o c
ampo de batalha. De repente se viu envolta por um silêncio inquietante. Virou lent
amente, varrendo os cadáveres com o olhar, e notou um estranho calafrio nos ossos.
Era a morte, que vinha roubar sua alma.
Um forte estalo rompeu o silêncio. Ulri a se virou bruscamente e vislumbro
u movimento dentro do bosque. Petrificada, notou que um suor frio brotava entre
suas omoplatas. Os espíritos dos mortos!
Das árvores emergiram por fim umas figuras brancas e sigilosas, de estatur
a alta e cabelo longo. Sentiu que seu coração subia à garganta. O pânico se apoderou del
a. Quando saíram ao claro, ficou estupefata. Não eram espíritos, mas mulheres. Caminha
vam em silencio entre os cadáveres, agachavam-se, levantavam-se, assinalavam o céu.
O que faziam?
Ulri a observou que duas mulheres incrivelmente formosas pararam seus cu
riosos movimentos, olharam-na e se puseram a andar para ela. Eram altas e robust
as, de pernas longas, vestiam saias amplas e blusas de cores vistosas e uma long
a cabeleira loira caía sobre um busto generoso. Ulri a sabia que eram «mulheres da v
itória» ou «donzelas do escudo». No dialeto local eram Valquírias, isto é, servas de Odín que
escolhiam os heróis caídos em combate para levá-los a sentar-se no grande Valhalla e b
eber hidromel pelo resto da eternidade.
Enquanto se aproximavam andando por cima de membros amputados, inclinand
o-se para acariciar testas geladas, cantarolando baixinho, avançando entre os caídos
para sussurrar o que? A imagem foi se transformando até que Ulri a viu que não eram
mulheres jovens e robustas, mas anciãs com uma coroa de tranças brancas na cabeça, com
o estragado corpo coberto por uma túnica presa com um cinto, uma saia longa e um
xale tosco jogado sobre os ombros. Apesar de sua avançada idade, caminhavam com as
costas erguidas e os ombros retos. Embora envelhecidas pelos anos, pensou, o or
gulho as tinha mantido fortes.
Ulri a vislumbrou na coroa da primeira um belo aro de prata retorcida, c
om folhas e caules de prata entrelaçados que se uniam na frente para sustentar uma
coruja diminuta sobre duas folhas de carvalho. Entre as duas folhas descansava
uma forma de ovo, como se a coruja se dispusesse a incubá-lo.
As duas mulheres pararam para examiná-la. Quando uma delas viu a cruz de O
dín em seu peito, assinalou-a com o dedo e murmurou algo ao mesmo tempo em que sua
companheira apertava os lábios. Os leitosos olhos azuis escrutinaram Ulri a por d
ebaixo de sobrancelhas brancas.
Perdeu-se, filha?
Era um dialeto que Ulri a entendia.
Estou procurando... Sua voz se quebrou.
Não deveria estar aqui disse docemente a mulher , entre os mortos.
Tenho que encontrar a
A anciã tinha as maçãs do rosto e o queixo proeminente e o nariz fino e aquili
no, e Ulri a pensou que em sua juventude devia ter sido muito bela. Mas a carne
tinha desaparecido, reduzindo-a a ossos e tendões, embora continuasse desprendendo
força. Pousou uma mão no braço de Ulri a.
Está cansada, filha. Vêem, nos afastemos de toda esta morte.
Estou procurando meu pai. Wulf, o filho do Armínio.
A anciã meneou a cabeça com tristeza.
Wulf morreu. De fato, toda sua família pereceu. Agora vem conosco, precisa
comer e descansar.
Morto! Não é possível, deve estar enganada. Vim em sua procura. Não pode estar mo
rto.
Mas as duas mulheres já se viraram para encabeçar a marcha; então elevaram as
saias para passar por cima dos cadáveres e Ulri a vislumbrou suas botas de pele fo
rradas de cabelo. Seguiu-as em silêncio conduzindo sua carga e sua dor, descalça de
um pé sobre um chão empapado de sangue.
Ao chegar ao limite do prado entraram na terra que os romanos tinham inc
endiado antes de retirar-se com prisioneiros e armas roubadas dos mortos. Ulri a
sabia que não muito longe dali os legionários deram a seus mortos a devida sepultur
a em fossas comuns, com orações e oferendas aos deuses.
Enquanto seguia às anciãs pelo calcinado chão, onde não tinha sobrevivido nenhum
a fibra de erva, percebeu que tinham entrado no que restava de uma aldeia. O incên
dio perpetrado pelos romanos não tinha deixado mais que os alicerces carbonizados
do que um dia foram robustas cabanas de troncos. A fumaça entrava em seus olhos ao
passar pelos lugares onde ainda ardiam rescaldos, palha e madeira. Árvores que ti
nham sido magníficos pinheiros e carvalhos apareciam agora negros e raquíticos, reto
rcidos e grotescos. O fedor era entristecedor.
A anciã de diadema de prata parou frente ao que se assemelhava a um montão d
e ervas e ramos que, não obstante, resultou ser um refúgio rudimentar.
Dentro há comida e bebida.
Ulri a agachou a cabeça e entrou na cabana. Estava na penumbra, mas uma ve
z que seus olhos se acostumaram viu um chão de terra coberto de peles, odres de água
e cestas cheias de frutas e hortaliças.
Aceitou agradecida o que suspeitava que fossem suas últimas provisões. Embor
a estivesse faminta, comeu frugalmente, e logo bebeu do odre que deram.
Quem são? perguntou às duas mulheres que a observavam.
As guardiãs de um bosque sagrado respondeu a anciã . E fomos ao longo de incontáv
eis gerações, desde que a deusa Freya derramou suas lágrimas de ouro sobre os carvalho
s ancestrais. Agora deve dormir. Nós, enquanto isso retomaremos a tarefa de enterr
ar nossos filhos e maridos.
Sim. Ulri a se recostou sobre uma grossa manta de pele de urso . Estou muito
cansada
Ignorava quanto tempo dormiu, mas quando despertou tinha anoitecido e as
guardiãs do bosque sagrado estavam acendendo tochas e mexendo algo em uma panela
fumegante. Quando Ulri a se sentou trabalhosamente doíam todos os ossos e músculos , a
mulher de diadema se aproximou.
Tome disse com um sorriso . Caldo de cogumelos. Te dará forças.
Ulri a esfregou os olhos ao ver que as duas mulheres rejuvenesciam de no
vo. À luz das tochas, a pele enrugada estirou, os olhos leitosos se iluminaram e o
s cabelos brancos se tornaram milagrosamente negros.
Por que vieste? perguntou a mulher de diadema. Sua companheira não tinha pro
nunciado ainda uma só palavra.
Ulri a piscou. Estavam envelhecendo outra vez.
Para avisar ao povo de meu pai da iminente invasão. Mas cheguei tarde.
Os olhos da anciã, cheios de sabedoria, pousaram no rosto de Ulri a e ali
permaneceu longo momento enquanto de fora as aves noturnas ululavam e o vento as
sobiava. Finalmente disse:
Não vieste por isso. Essa não é sua missão. Foi gasta até aqui com outro propósito,
ilha. Assinalou a cruz de Odín que pendia de seu pescoço . Leva contigo o símbolo sagrado
de Odín. É serva dos deuses e está cumprindo sua vontade.
Por que foram me escolher para ser sua serva?
Porque herdou um dom especial, minha filha. A anciã fez uma pausa . Porque tem
um dom especial, não é verdade?
A mulher aguardou enquanto sua companheira observava a cena em silêncio.
A terrina de caldo parou nos lábios de Ulri a. Devolveu-o ao colo e pergun
tou:
Que dom especial?
A anciã levou um braço longo e ossudo e durante um breve instante Ulri a viu
uma pele firme e uns músculos fortes. A mulher a tocou na testa e sussurrou:
Chama-se o dom da profecia.
A fumaça da tocha pareceu fazer-se mais densa. Ulri a notou um breve enjoo
na cabeça.
Fala das minhas visões? É uma doença.
A mulher meneou a cabeça e de seus cabelos saíram brilhos chapeados.
É um dom, filha. Suas visões a assustam, mas não deveria ter medo. Tem que acei
tar porque procedem dos deuses e são, portanto, sagradas.
Como sabe?
Diz que é filha de Wulf. O dom da profecia está em sua linhagem.
Mas minhas visões não têm sentido. E não posso as controlar. São sonhos aleatórios q
e vêm e vão e carecem de interpretação. Que tipo de dom é esse?
Aprenderá a controlar e a interpretar.
Com que fim? Eu não desejo conhecer o futuro.
Esse não é o propósito das visões.
Qual é então? Ulri a deixou a terrina . Do que podem me servir essas visões desati
nadas?
Não é para você, filha. Deve utilizar seu dom para ajudar aos outros, não para te
ajudar.
Ulri a esfregou as têmporas.
Continuo sem entender.
O dom foi passado através de uma longa estirpe de mulheres. Mas seu dom é jov
em e indisciplinado, por isso suas visões não têm sentido. Tem que aprender a domesticá-
lo, controlá-lo e utilizá-lo para ajudar outras pessoas.
Mas o que é?
Saberá quando tiver aprendido a disciplina.
Quem me ensinará essa disciplina?
Deve surgir de seu interior, mas contará com professores. Entrará em contato
com eles, mas não saberá que são professores até que os tenha deixado para trás. Por isso
tem que abrir sua mente e seu coração a todos os seres que encontrar em seu caminho.
Volte a dormir, menina. Descanse. Amanhã tem que retornar ao lugar ao qual perten
ce. Amanhã empreenderá uma viagem nova e especial.
Sob a suave carícia da pele de urso, na acolhedora intimidade da cabana, U
lri a fechou os olhos e se inundou em um sono profundo.
Quando o sol que penetrava pela ramagem do teto a despertou, veio-lhe a
lembrança da noite anterior.
Enquanto se banhava em um riacho próximo e repunha as forças com um humilde
café da manhã de cogumelos e bolotas, refletiu sobre as misteriosas palavras da anciã.
Na hora de partir, a guardiã do bosque entregou frutos secos e bagos, um o
dre com água e botas.
Não retorne pelo campo de batalha a aconselhou . Daqui vá rumo ao sul e encontr
ará outro riacho. Siga seu curso, te levará até o rio que seu povo chama de Rin. Nada
mau te acontecerá pelo caminho, filha, pois os espíritos do riacho a protegerão.
Como medida de precaução, introduziu a mão em uma bolsinha de couro que pendur
ava do cinturão e extraiu um punhado de pedras de aspecto curioso. Eram plainas, d
e formas diferentes, e tinham símbolos desenhados no centro. Jogou-as sobre o chão e
, enquanto o gorjeio dos pássaros alagava o ar, estudou os símbolos. Franzindo as so
brancelhas, endireitou-se e disse:
As runas dizem que se desviou de seu caminho. Tem que voltar ao início e co
meçar de novo. Desta vez permanecerá fiel a seu destino.
Ulri a olhou as runas.
Onde está o início?
No lugar onde foi concebida, pois é aí onde começa sua vida.
Mas esse lugar é na Pérsia, um território imenso! Como vou encontrá-lo?
É o lugar ao que deve ir. Ali encontrará seu destino.
Desconcertada, Ulri a agradeceu às duas mulheres e partiu para o sul.
Enquanto a viam afastar-se, a anciã que não tinha aberto a boca pousou uma mão
ossuda no braço de sua companheira e disse:
Irmã, como pode estar tão tranquila?
Não estou tranquila, Hilde. Queria abraçá-la, mas tive que me conter por seu be
m.
Sabia Wulf que viria?
Wulf nem sequer sabe que existe.
Quando a silhueta de Ulri a desaparecia entre as árvores calcinadas, a seg
unda anciã disse:
Por que mentiu? Por que não contou a verdade a ela?
Não podia, pois a verdade era um grande segredo: depois que sua esposa ,Th
usnelda e seu único filho morreram, Armínio, o herói germano, nunca voltou a casar-se.
Mas um dia que estava chorando amargamente a perda encontrou consolo no bosque
sagrado dedicado à Deusa das Lágrimas de Ouro, onde a formosa e jovem sacerdotisa o
acolheu em seus braços. Wulf era o fruto dessa união secreta.
Não pôde lhe dizer ao menos que seu pai está vivo? insistiu docemente Hilde.
Os olhos da anciã se encheram de lágrimas.
Um destino grande e desconhecido aguarda minha neta. Se soubesse que seu
pai vive, ficaria aqui para ir a sua busca e jamais cumpriria seu destino. Se ac
har que está morto, seguirá o caminho correto.
Voltaremos a vê-la?
Pode ser que algum dia, se os deuses quiserem respondeu a profetisa da tr
ibo dos Queruscos, também chamada de Ulri a e da qual sua neta tinha herdado o nom
e.
Do outro lado do fogo, Sebastiano via Ulri a dormir. Tinha um sono agita
do, as pálpebras tremiam e de sua boca saíam pequenos sons. «O que estará sonhando?», perg
untou-se. Estava em certo modo encantada, tocada por uma magia especial. A admis
são de seu dom especial não o surpreendia. Mas a que lugar do mundo pertencia essa c
riatura singular?
Quando começou a tremer violentamente se deitou a seu lado, tampou-a com s
ua capa azul, e a envolveu com seus braços. A mão de Ulri a subiu até seu pescoço e Seba
stiano lutou contra o desejo. Estava dormindo, achava-se em uma situação vulnerável, e
ele era seu protetor. Jamais trairia essa confiança.
Acariciou o cabelo dela e sussurrou palavras tranquilizadoras, e no mome
nto Ulri a se acalmou e deixou de tremer. Contemplando suas pálpebras fechadas, as
longas pestanas sobre a pele branca, pensou no maravilhoso presente que ela tin
ha dado sem saber, um artigo de inestimável valor que Sebastiano pensava mostrar a
Cláudio César em sua volta a Roma e o qual lhe asseguraria o diploma da China.
Com esses estimulantes pensamentos dando voltas em sua cabeça, Sebastiano
dormiu abraçado à moça encantada, protegendo-a com sua força e calor. Inspirou profundam
ente e ao expelir o ar, de sua garganta emergiu um gemido grave.
Ulri a abriu os olhos e notou o arranhão de uma barba curta na frente. Qua
ndo notou os fortes braços que a rodeavam, aspirou seu aroma masculino e percebeu
que estava deitada junto a um homem, afogou um grito.
Ulri a tinha crescido em companhia de mulheres. Não tinha irmãos, primos nem
tios. Ela e sua mãe sempre tinham vivido em casas habitadas por mulheres. Jamais
a tinha acariciado um homem. Jamais tinha deitado com um varão, nem sentido sua fo
rça e seu calor. Afligida pelo poder desse homem que a envolvia com seus braços musc
ulosos, conteve o fôlego e se apertou contra seus ombros para sentir sua firmeza.
Descansou o rosto em seu peito e desfrutou do batimento regular de seu coração.
Recordou o sonho que acabava de ter. O que podia significar? O que tinha
a ver esse comerciante com um xamã milenar? Cheia de perguntas, sentiu que suas dúv
idas começavam a dissipar. Começou a compreender que não tinha vindo à Germânia por sua próp
ria vontade, mas sim a haviam trazido.
«Trouxeram-me aqui para que conhecesse a verdadeira natureza disso que eu
via como uma doença. Não posso dar as costas a minha vocação. Mamãe me dirá onde estão os Lag
s Cristalinos de Shalamandar e dali iniciarei meu verdadeiro caminho. »
Pousou os dedos no braço de Sebastiano e a dureza que notou sob o tecido d
a túnica a tranquilizou. Sebastiano Galo transmitia uma segurança nova, quase entris
tecedora. Foi acalmando e, então, conciliou um sono aprazível.
Despertaram com vozes e os raios de sol que alagavam a caverna. Estava s
ozinha junto a um fogo apagado.
Levantou-se e, arrumando o vestido, a pala e o cabelo, caminhou até a entr
ada da caverna e viu Sebastiano entre árvores e matagais verdes, brilhando como o
ouro sob o sol, falando em voz baixa com Timónides, Néstor e uma companhia de escrav
os e soldados.
Quando se virou para ela, Ulri a sorriu. Por fim sabia o que devia fazer
. Não daria as costas ao dom dos deuses, não voltaria a considerá-lo uma doença. Estava
decidida a procurar o significado e o propósito de suas visões e encontrar com isso
seu próprio significado e propósito na vida e, finalmente, seu lugar no mundo.
LIVRO 3
Itália
LIVRO 4
Síria
Quando Ulri a viu a aparição atrás do hospedeiro enquanto este limpava o mostr
ador alheio à mesma, deixou a taça de vinho quente sobre a mesa, recostou-se na cade
ira e, fechando os ouvidos às tênues vozes da estalagem, concentrou-se em acalmar su
a respiração.
No salão de audiências de Nero tinha aprendido que controlar os pulmões a ajud
ava a controlar as visões, e durante as semanas transcorridas depois tinha pratica
do o que denominava «respiração consciente». Tinha necessitado vários intentos dois em Rom
a, três no navio que cruzava o Grande Verde e um em uma rua de Antioquia para compr
eender que não só devia respirar devagar, mas ritmicamente, inspirando pelo nariz e
exaltando pela boca.
Assim, procedeu a inalar os aromas da estalagem nessa noite chuvosa arom
a de cerveja rançosa, cordeiro assado, à fumaça da lareira , onde as chamas rugiam e m
antinham o frio do inverno a raia e, conforme se serenava e se concentrava em seu
interior, enviou uma voz silenciosa pela sala cheia de fumaça, pelo éter sobrenatur
al, e disse: «Quem é? Que desejas que faça?».
Ulri a continuava sem saber o que era a adivinhação, sem conhecer a natureza
de seu dom especial, mas como apareciam para ela sobre tudo pessoas de todas as
idades e condições , supunha que era capaz de falar com os mortos. Supunha que estes
sentiam que podia se fazer de intermediária com o mundo dos vivos e tentavam comun
icar-se através dela com seus seres queridos.
Observou que o jovem, que tinha o cabelo longo e vestia uma túnica singela
, olhava o hospedeiro com olhos tristes. Seu filho, possivelmente? «transmita-me s
ua mensagem», disse para si, mas o moço não respondeu e, igual a suas visões anteriores,
acabou por desaparecer.
Ulri a suspirou presa da frustração. Embora fosse capaz de prolongar as visões
, de fazê-las mais sólidas e nítidas, estas se desvaneciam sem mais. Também tinha descob
erto, para seu desespero, que embora tivesse feito progressos com as visões que ti
nha, ainda não podia as provocar, não podia controlar quando e onde fazer com que um
a visão se materializasse.
Na Germânia, a guardiã dos bosques sagrados havia dito que não saberia quem er
am seus professores até depois de receber seus ensinos. Ulri a só via Minerva. E a v
idente egípcia havia dito que aceitasse uma chave quando fosse oferecida. Seus qua
rtos tinham portas com fechaduras, mas o hospedeiro não tinha entregado nenhuma ch
ave. Quem seria seu seguinte professor? E quando receberia uma chave? E de que?
Enquanto Timónides e Néstor, que compartilhavam a mesa com ela, engoliam seu
jantar de pescado oleoso e porros guisados, alheios ao silêncio de Ulri a, esta d
irigiu sua atenção à porta da estalagem; fora fazia frio e chovia.
Onde estava Sebastiano? Fazia horas que entrou na cidade. Teria se perdi
do?
A estalagem se achava na zona norte do gueto de Antioquia, em uma levant
ada ruela chamada O Mago Verde por razões que ninguém conhecia, já que ali não vivia nen
hum mago nem havia árvores ou vegetação de outro tipo. Assim, tudo, estava em um labir
into de ruas onde era fácil se perder, e dado que era quase meia-noite e fazia um
tempo inclemente, Ulri a temia que Sebastiano tivesse se perdido ou algo pior.
Tentou não inquietar-se, mas na estalagem reinavam silêncio e sombras. Nenhu
ma só pessoa tinha cruzado a porta na última hora e poucos clientes ficavam naquela
atmosfera carregada de fumaça. Acotovelados no balcão com uma jarra de cerveja, dois
carpinteiros completamente ébrios se queixavam da falta de trabalho, e havia três m
esas com clientes dormitando sobre suas taças. O hospedeiro, um homem corpulento e
jovial, também estava um pouco chapado depois de provar sua mercadoria.
Ulri a notou que o coração e a respiração se aceleravam. O dia que descobriu que
respirando conscientemente obtinha um maior controle de suas visões, também se deu
conta que conseguia uma grande serenidade interior. Assim, começou a respirar deva
gar enquanto se recordava que Sebastiano saía da estalagem cada manhã e sempre encon
trava o caminho de volta pelo tortuoso labirinto de ruelas. A caravana da China
seria a maior tinha já dirigido e, portanto, tinha muito que organizar e fiscaliza
r.
E uma vez mais se maravilhou da rede de amigos e contatos que tinha. Até n
essa cidade tão afastada de Roma parecia conhecer uma infinidade de indivíduos que l
he deviam favores ou, simplesmente, estavam encantados de ajudá-lo.
Entretanto, o homem com quem devia reunir-se essa noite nada tinha a ver
com a caravana. Sebastiano estava ajudando Ulri a em sua busca. Não tinha encontr
ado sua mãe em Antioquia, por isso decidiu comprovar se alguém naquela cidade portuári
a tinha ouvido falar dos Lagos Cristalinos de Shalamandar. Durante suas pesquisa
s, Sebastiano tinha ouvido falar de um ermitão que vivia no deserto de Dafne, próxim
o a Antioquia, um estrangeiro chamado Bessas que tinha chegado à cidade síria muito
tempo atrás e que, conforme diziam, possuía informação sobre lugares estranhos e esotérico
s. Mas Ulri a tinham advertido que ninguém tinha conseguido lhe tirar jamais essa
informação. Nada tinha funcionado, dizia todo mundo. Nem os subornos, nem os raciocíni
os, nem os pedidos. Tampouco as ameaças.
Sebastiano havia dito que ele conseguiria tirar a informação do ancião, e Ulri
a de certo modo acreditava, pois Sebastiano Galo podia ser um homem muito persu
asivo. Nesses momentos se encontrava com o ermitão, e Ulri a pediu por que saísse vi
torioso.
O relógio que descansava em um canto da sala uma urna de pedra com as hora
s marcadas e da qual gotejava água que descia de nível cada hora assinalava as doze p
assadas.
Ulri a notou um puxão no braço. Quando se virou, viu que Néstor estava oferece
ndo um pêssego roliço. Agradeceu e comeu um bocado da fruta suculenta. Desde o episódi
o do mendigo de Pisa que se fazia passar por cego, Néstor a seguia como um cachorr
inho, sorria com adoração e trazia presentes. Não a incomodava. Sua inocência infantil,
no corpo de um homem tão crescido, e sua natureza cândida a comoviam.
Suspeitava que Néstor não possuísse uma boa percepção de tempo e distância e que a a
gressão do mendigo provavelmente lhe parecia que tinha ocorrido o dia anterior e n
essa cidade. Isso fazia que, a diferença da maioria das pessoas, sua lembrança nunca
se apagasse, e tampouco sua gratidão para ela por tê-lo defendido.
Devolveu sua atenção à entrada da estalagem, onde esperava que Sebastiano não de
morasse a aparecer. Sentiu um estremecimento no coração. Aquele homem se instalou ne
le, levava-o em seu peito e em seu pensamento dia e noite. Quando Ulri a estava
em sua presença, o calor de seu corpo aumentava e ansiava o contato de sua pele. N
unca tinha experimentado um desejo semelhante. Um dia, durante a travessia entre
Roma e Antioquia, estalou uma tormenta e Sebastiano a reconfortou entre seus br
aços enquanto o navio dava inclinações bruscas. Ulri a pensou que se beijariam, que fa
riam amor. Mas ele não deu esse passo crucial.
Tinha visto como Sebastiano a olhava quando acreditava que estivesse dis
traída e sabia que ele agradecia seu contato. Ambos procuravam maneiras e desculpa
s para estar com o outro. Mas nenhum dos dois tinha dado ainda o passo irrevogável
, nenhum tinha ousado pronunciar palavras para as quais não teria volta atrás. Ulri
a sabia que a razão era que não eram livres. Seus destinos deviam seguir caminhos di
ferentes.
Olhou de novo o relógio e sua inquietação aumentou.
Rogo por que meu senhor tenha conseguido o que queria disse Timónides depoi
s de reparar também na hora e perguntar-se onde estava Sebastiano. Teria encontrad
o o ermitão Bessas? Teria conseguido saber dele onde se encontravam os Lagos Crist
alinos? Timónides ignorava que ardil tinha pensado utilizar, ou por que seu obstin
ado e jovem senhor acreditava que sua estratégia ia funcionar quando outras tinham
falhado, mas confiava que tivesse êxito . Do contrário balbuciou uma vez que limpava
seu gordurento prato arrastando com pão a cebola frita as últimas migalhas de pescad
o , meu senhor deveria arrancar a cabeça desse bastardo e tirar a informação a colherada
s.
O fogo crepitou e as faíscas voaram para cima. Néstor soltou uma risada. Tin
ha o queixo coberto de gordura e manchas de óleo na túnica, mas Timónides se ocuparia
disso mais tarde, como era seu costume. De um primeiro momento, Néstor tinha surpr
eendido ao hospedeiro com seus dotes culinárias quando reproduziu uma de suas espe
cialidades, um aprimoramento elaborado com mel e frutos secos picados. Ao longo
dos anos, hospedeiros e governantas acomodadas tinham tentado comprar Néstor com s
eu excepcional talento poderiam roubar as receitas dos mais célebres cozinheiros d
e Roma e as servir em suas mesas mas o astrólogo se negava a vender seu filho, não só
porque também ele desfrutasse de seus peculiares dotes. Néstor era o centro do antig
o universo grego, e para Timónides seu filho não era curto de ideia, mas, simplesmen
te, um moço cândido. Pouco importava que não soubesse onde se encontravam nesse moment
o ou aonde se dirigiam. Nem sequer a travessia em navio o tinha intimidado quand
o, de pé frente ao corrimão, sorria ao mar. Logo veriam coisas novas e diferentes qu
e encheriam de alegria a esse menino-homem.
Que vontades tinham de se por em marcha!
Timónides estava cansado de sua estadia em Antioquia. Para cúmulo, tinham de
morado quase um mês em alcançá-la. Depois de conseguir um navio para transportar a mer
cadoria e os escravos de Sebastiano, sua partida se viu atrasada por causa de um
pesadelo que o capitão do navio tinha tido a noite antes de zarpar. A segunda dem
ora a provocou um corvo espionando em um dos mastros justo quando se dispunham a
levantar âncoras, um mau augúrio para a navegação. Depois de uma semana de adiamentos,
o Posseidon zarpou por fim e atracou em Antioquia depois de ter desfrutado de um
tempo aprazível.
Mas tinha transcorrido já um mês, acabavam de celebrar o solstício de inverno.
Um céu cinza sobre a cidade e chovia todo o dia. Assim, não tinha sido um mês ocioso.
Instalado temporariamente na praça forte romana, Primo tinha passado os últimos tri
nta dias recrutando e adestrando homens para sua unidade militar especial, arman
do-os, preparando-os para a perigosa viagem e, sobre tudo, ensinando as táticas mi
litares e as estratégias secretas que teriam que utilizar. Sebastiano, enquanto is
so tinha estado ocupado organizando sua enorme caravana, comprando camelos e esc
ravos, reunindo-se com mercadores, adquirindo mercadoria, falando com banqueiros
, em resumo, todos os assuntos relacionados com o comércio. Timónides, naturalmente,
entregou-se ao estudo diligente dos astros, de seus alinhamentos, casas, ascensõe
s e descidas, prestando particular atenção à lua, as constelações e os planetas. A missão à C
ina não podia fracassar. Corria o rumor de que Nero podia ter muito mau gênio e dete
stava decepções.
Quando um forte trovão sacudiu a estalagem centenária, Timónides olhou na tênue
luz Ulri a, que estava vigiando a porta de entrada.
A moça era hábil com seu estojo de primeiro socorros, pensou recordando os t
erríveis enjoos que tinha sofrido durante a travessia, até o ponto de não poder comer.
Ulri a tinha acudido uma vez mais em seu auxílio e tinha administrado um tônico pre
parado com uma raiz cara e difícil de encontrar chamada gengibre. O tônico funcionou
e o permitiu voltar a comer, e agora estava em dobro dívida com ela.
Na Ostia, enquanto aguardava a ordem de zarpar, Ulri a tinha surpreendid
o Timónides ao sugerir que poderia ajudar Néstor. Não a sua mente, naturalmente, pois
esta não tinha remédio. Mas Néstor, além de algumas sílabas incompreensíveis, não tinha apren
ido a falar como é devido. Timónides entendia o que o moço dizia, mas o resto das pess
oas não. Ulri a suspeitava que pudesse ter algo chamado «trava sublingual curta». Sua
mãe, contava, tinha nascido com ele, e aos sete anos liberaram a língua. Recomendou
a Timónides que levasse seu filho a um médico que fosse destro com a faca. Timónides e
steve tentado, mas logo pensou: «Realmente quero que Néstor possa falar? Acaso o pov
o não burla já dele o suficiente? E se ao conseguir falar perde seu dom culinário?». Sab
ia-se que essas coisas ocorriam, que eram consequências inesperadas da boa sorte,
uma espécie de troca, pois os deuses eram brincalhões caprichosos.
Não, melhor deixar as coisas como estavam. Sobre tudo porque havia assunto
s mais urgentes que atender; para começar, o problema da catástrofe que continuava a
parecendo no futuro de seu senhor. A primeira vez que Timónides reparou na possibi
lidade que uma desgraça aguardasse Sebastiano, em Forte Bonna, uns meses atrás, alar
mou-se. Não obstante, depois de observar as estrelas, riscar seus rumos e ver que
o escuro presságio continuava aparecendo no futuro como se avançasse no tempo junto
de Sebastiano , o pânico deu passo a uma reflexão mais objetiva.
Não havia dúvida que algo terrível espreitava a seu senhor. Flutuava como uma
nuvem negra no horizonte, mantendo-se sempre distante por mais depressa que viaj
asse para ela. Mas era impossível saber onde ou quando se produziria o desastre. T
imónides tinha deixado de culpar-se por isso, de pensar que a falsificação dos horóscopo
s havia trazido má sorte a seu senhor. Além disso, não havia dito uma só mentira desde q
ue deixaram Roma, rodeou-se de nobres princípios, tinha tratado os deuses e a astr
ologia com o máximo respeito, manteve-se limpo e puro moral e fisicamente, e tinha
chegado a essa noite chuvosa sentindo-se espiritualmente sem mancha.
Assim, fosse qual fosse o desastre, e acontecesse quando acontecesse, ni
nguém poderia culpar a Timónides, o astrólogo.
Subindo pela ruela, inclinado contra a chuva e sonhando com um bom fogo
e uma taça de vinho quente, Sebastiano pensou na cadeia extraordinária de acontecime
ntos que o tinha levado até esse momento. No dia seguinte iriam rumo a Babilônia! E
depois da Babilônia
Devia sua boa sorte a Ulri a.
Não estaria então ali, a ponto de empreender a aventura de sua vida, se Ulri
a não tivesse falado da estratégia de combate secreta de Gaio Vatinio. Embora o gri
fo de Adon e as gêmeas de Gaspar fossem mais atraentes para um moço de dezesseis ano
s, os conselheiros de Nero tinham apreciado o valor de um comerciante capaz de g
arantir o transporte seguro de mercadoria e embaixadores imperiais até Extremo Ori
ente, ampliando desse modo o alcance do império.
E Sebastiano estava seguro de seu êxito. Primo tinha estado adestrando sem
descanso a sua seleta unidade, um pequeno exército de mercenários, veteranos leais,
gladiadores retirados e atiradores de arco e flecha. Um exército temível.
E devia tudo a Ulri a, e agora tinha um presente para ela!
Chegou à estalagem, cujo letreiro se balançava com o vento. Era impossível lê-lo
porque a chuva tinha apagado a tocha, mas a estalagem do Pavão Azul estava a várias
gerações naquele lugar. Cálida no inverno e porto fresco no verão, oferecia comida e be
bida aos cansados caminhantes e um lugar de encontro aos residentes da rua do Ma
go Verde, assim como um lar temporário para Sebastiano e seus três companheiros.
Ulri a dormia no quarto contiguo ao seu, no primeiro andar da estalagem,
enquanto que Timónides e Néstor compartilhavam um terceiro. Mas ultimamente o sono
se mostrou esquivo com Sebastiano. Virava a noite dando voltas no leito, despert
ando a todas as horas para afastar a manta face às noites invernais. Sonhava com U
lri a, que também ocupava seus pensamentos de dia. Várias vezes tinham estado por um
tris, enquanto a tinha abraçada durante uma tempestade no mar ou em um carro instáv
el ou cruzando um mercado concorrido, de revelar seus sentimentos, mas Ulri a se
achava ainda sob seu amparo como chefe da caravana, e essa era uma regra pessoa
l que Sebastiano jamais quebrantaria.
O que sentia ela por ele? Perguntou-se ao empurrar a pesada porta empapa
da de chuva. Havia momentos em que a descobria olhando-o fixamente. Outras vezes
tinha a sensação de que se aproximava ou o tocava mais do que o necessário. Como teri
a gostado de poder abraçá-la embora só fosse uma vez, beijá-la, acariciá-la
Irrompeu na estalagem anunciando sua boa nova: tinha encontrado Bessas,
o velho ermitão, e tinha feito uma proposta impossível de recusar.
Timónides se levantou de um salto e seus pulmões assobiaram. O resto cliente
s já partiram, o hospedeiro se retirou a seus aposentos e Néstor dormia. Na sala de
jantar só ficavam o astrólogo e Ulri a.
Sabe onde está Shalamandar? perguntou Timónides.
Ulri a se aproximou de Sebastiano, tomou-o pelo braço para aproximá-lo do fo
go e retirou a capa empapada dos ombros. Entre suas mãos frias colocou uma taça de v
inho quente.
Sebastiano fez uma pausa para admirar a figura dessa donzela de cabelos
claros recortada contra o fogo. «Oxalá pensou pudesse te dar muito mais. Oxalá pudesse e
ncontrar sua mãe ou a explicação de seu dom divino. Oxalá pudesse te abraçar e não deixar nu
nca ir embora.»
Bebeu um gole de vinho e disse:
Bessas conhece Shalamandar e os Lagos Cristalinos. E mais, aceitou nos mo
strar o caminho.
E você acredita? uivou Timónides . Não teme que pegue seu dinheiro e desapareça?
Sebastiano olhou Ulri a com um amplo sorriso.
Bessas é um homem santo e o povo dos arredores de Dafne o conhece, preparam
-lhe comida e oferendas e benze seu nome. Dizem que lhes trouxe sorte. E não pede
dinheiro.
Mas disse ou não disse como chegar ao Shalamandar? perguntou, irritado, Timóni
des. Tinha visto florescer o amor entre Sebastiano e Ulri a com o passar das sem
anas, e com certeza que nada bom podia sair dele, estava impaciente por que seu
senhor encontrasse uma cura.
Disse que nos levaria até ali respondeu Sebastiano voltando-se para o astrólo
go . Eu ofereci algo que ninguém mais tinha pensado, algo que anseia todo viajante e
m terra estranha: retornar a casa. Partimos para Babilônia pela manhã!
Enquanto via seu pai se sentar no chão Néstor pensou com grande satisfação no pr
esente que havia trazido. Não era para seu pai, mas para a dama dos cabelos dourad
os.
Néstor amava Ree a e faria tudo por ela. Ela falava com muita doçura, acalma
va-o, dizia que tudo ia bem. Ele adorava sua voz. Acariciava-a na mente. Como os
mimos de uma mãe.
Olhou o saco que descansava no chão e soltou uma risada. Nos simples mecan
ismos de sua mente tinha discernido que seu pai e o tio Sebastiano estavam procu
rando um lago. Esperavam levar Ree a a esse lugar para fazê-la feliz. Mas seu pai
e o tio Sebastiano pareciam ter problemas para encontrar o lago, e havia um home
m que sabia onde estava, mas não queria dizer. Seu pai disse que podiam tirar-lhe
do cérebro a colheradas. O tio Sebastiano disse que o homem vivia em uma cabana ju
nto à grande estatua de Dafne. Néstor se lembrava da estátua porque era muito graciosa
, uma mulher com três ramos que brotavam do cabelo. Seu pai precisava tirar o lago
do cérebro desse homem, de modo que aqui estava!
Um presente para Ree a, a dama dos cabelos dourados.
Timónides levantou sua exausta cabeça para olhar seu filho, que continuava j
unto à porta com um sorriso no rosto, e sentiu que o coração partia em mil pedacinhos.
De repente se sentia grande, torpe e estúpido, ele, um astrólogo capaz de le
r as mensagens das estrelas com tal precisão que podia aconselhar se jantariam fei
jões ou lentilhas; um homem capaz de contemplar a escura cúpula da noite, reconhecer
Vênus e dizer com exatidão onde se acharia ao fim de uma hora ou de um mês; capaz de
fechar os olhos e assinalar diretamente o vermelho e remoto Marte enquanto outro
s homens o buscavam com olhos como pratos e perguntavam: «Onde está?».
Um homem de precisão e controle cuja vida acabava de desmembrar-se na miríad
e de fibras que compunham sua malha.
«Está feito pensou cansado e derrotado . Esta é a catástrofe que prediziam os astr
os. E a culpa é minha. Eu a provoquei. Utilizei as estrelas, e minha sagrada profi
ssão, em benefício próprio. Queria manter a moça e suas habilidades curativas comigo, e
ao fazer isso trouxe a desgraça a mim e a meu senhor. Unicamente eu posso remediar
isto.»
E só existia uma maneira. Timónides o astrólogo tinha que voltar a mentir.
«Meu castigo pensou , por ter mentido a primeira vez.» E o castigo, por irônico
que parecesse, era estar condenado a continuar mentindo. Jamais, no que ficasse
de vida, poderia contar a Sebastiano o acontecido essa noite.
Levantou do chão seu corpo gordo e procurou um plano. Tinham que partir da
cidade imediatamente e achar-se bem longe dela para quando o juiz determinasse
a identidade do desumano assassino de Bessas, o ermitão santo. «Será fácil convencer a S
ebastiano de que viajemos a bom ritmo. Sempre faz caso das estrelas »
Soltou um gemido ao lembrar-se subitamente de Ulri a. Não podia permitir q
ue a moça os acompanhasse, pois Néstor seguiria cometendo crimes para agradá-la.
«Direi que fiz a carta e descobri que sua mãe está vivendo em Jerusalém.
»Sebastiano perguntará por Bessas. Direi que o ermitão não é de confiança.»
Depois de pedir a Néstor que retornasse à cama, e de assegurar que seu prese
nte era muito bonito e que papai estava muito contente, Timónides tirou de sua est
eira a caixa de instrumentos e as cartas. O velho astrólogo sentiu o peso do mundo
nas costas. Não queria fazer aquilo, não queria voltar a mentir, cometer sacrilégio,
indignar aos deuses e provocar sua ira. Mas não tinha escolha. Devia salvar seu fi
lho, embora isso pusesse em perigo sua própria alma imortal.
Quando tomou Néstor em seus braços sendo um bebê, Timónides aprendeu uma importa
nte lição: não era o pai quem criava o filho, mas o filho quem criava o pai. E enquant
o outros viam um bobo, Timónides, que acreditava na transmigração das almas, via além do
s traços feios de Néstor e pensava na alma migratória que podia rondar em seu interior
. Talvez Néstor possuísse a alma reencarnada do maior filósofo da história.
Seja como for, filho querido ou grande filósofo, Timónides não podia permitir
que o executassem.
Acendeu uma vela e procedeu a elaborar o horóscopo de seu senhor com a esp
erança de encontrar alguma verdade que incluir em sua falsidade. Não passou previame
nte pelo ritual de banhar-se, orar e por roupa limpa, pois a mentira em seguida
voltaria a sujá-lo.
Mas enquanto fazia seus cálculos, anotava números, graus e ângulos, apontava s
ignos revestir e casas lunares, enquanto Antioquia dormia e as estrelas giravam
no céu, indiferentes ao astrólogo da estalagem do Pavão Azul que transpirava sobre sua
s equações e números, Timónides viu emergir um indicador novo e inesperado.
Ficou gelado. Sussurrou um juramento. Esfregou o rosto suado. Empunhou d
e novo o lápis e repetiu os cálculos.
Finalmente se recostou chocado. Não havia dúvida: a orientação dos planetas em p
rogressão e trânsito com respeito ao planeta natal de Sebastiano indicava uma nova d
ireção. Os deuses, mediante a disposição precisa dos corpos celestiais, eram claros como
a água em sua nova mensagem: Sebastiano tinha que partir de Antioquia em direção sul;
ele e Ulri a deviam agora empreender uma viagem juntas nessa direção.
Timónides fechou os olhos e tragou com a garganta seca. Desastre sobre des
astre! Seu destino estava selado, pois não só se dispunha a falsificar um horóscopo, m
as a desobedecer a mensagem inequívoca e divina escrita nas estrelas.
Com o coração em um punho, mas sabedor de que não tinha escolha e o tempo corr
ia, cruzou o corredor para esmurrar a porta de seu senhor.
Ulri a não dormia quando chamaram a sua porta. Tinha-a despertado um grito
, e tinha permanecido estendida na escuridão tentando discernir se tinha sido real
ou tinha sonhado. Logo ouviu vozes apagadas, um silêncio longo seguido de passos
no corredor, golpes em uma porta e novamente vozes, mas desta vez fortes e preme
ntes.
Dispunha-se levantar para ver o que acontecia quando a chamada anunciou
que havia alguém em sua porta. Abriu-a e do outro lado encontrou Sebastiano. Estav
a claro que acabava de despertar, pois tinha jogado apressadamente uma capa sobr
e os ombros e debaixo só levava uma tanga.
Ao ver que a olhava da cabeça aos pés, Ulri a caiu na conta de sua própria esc
assez de roupa: uma camisola uma anágua fina até o joelho e o cabelo solto e caído sobr
e o peito. Sentiu-se nua.
Recuperando a compostura, Sebastiano disse:
Ulri a, Timónides diz que sua mãe está em Jerusalém.
Minha mãe! O que ?
O astrólogo abriu espaço agitando uma folha de papiro.
Sim, sim, não há dúvida. Sua mãe está ali, vivendo com uns amigos.
Ulri a piscou, olhou Sebastiano e de novo o astrólogo.
Mas por que está fazendo uma leitura a estas horas? E por que meu ?
Despertei de um sonho a interrompeu Timónides no que me ordenava que apareces
se na janela, onde vi o rastro de uma estrela no céu. Sabia que era uma mensagem q
ue devia fazer o horóscopo de meu senhor, e aí estava! Uma nova mensagem dos deuses.
Meu senhor deve partir imediatamente à Babilônia e você deve ir a Jerusalém.
É certo que vivemos um tempo em Jerusalém disse Ulri a , em casa de uma mulher
chamada Elisabeth.
Exato, exato. disse Timónides saindo pesadamente da sala . Deve partir o quan
to antes para Jerusalém, encontrar sua mãe antes que se vá. Casa de Elisabeth
A voz do astrólogo se perdeu pelo corredor e Ulri a ficou a sós com Sebastia
no, olhando-se na luz tênue com palavras não expressas nos lábios.
Minha mãe pode me ajudar se ouviu dizer fracamente. A imagem do torso nu de
Sebastiano aparecendo entre as dobras da capa cortava sua respiração. Perguntou-se
por que não estava mais contente com a notícia do astrólogo . Ela me dirá onde está Shalaman
dar e os Lagos Cristalinos.
Levarei você a Jerusalém
Ulri a pousou os dedos em seus lábios.
Não, Sebastiano, você tem que continuar para o leste. Deve partir ao amanhece
r, tal como ordenam as estrelas.
Calaram envoltos pela noite e pelo desejo. O anseio ardia em seus olhos
e ambos eram conscientes do desejo do outro. Mas os dois estavam atados por deve
res e juramentos contraídos muito antes de se conhecerem.
Sebastiano recuperou por fim a voz.
Enviarei contigo Sifax com um contingente de homens para que te proteja.
Obrigado disse ela, pensando que aquele homem forte e poderoso acudia uma
vez mais em seu auxílio. Conhecia Sifax, um númida da costa norte da África, de sembl
ante imperturbável, que se oferecia como escolta e mercenário. Levava seis anos acom
panhando e protegendo a caravana de Sebastiano e sabia que podia confiar nele.
Assegurar-se-á de que chegue sã e salva junto à sua mãe em Jerusalém acrescentou S
bastiano. Olhou-a outro longo instante e, levado por um impulso repentino, agarr
ou-a pelos ombros, atraiu-a para si e disse com voz rouca Ulri a, se tudo for bem
e os deuses quiserem, chegarei a Babilônia dentro de seis semanas. Não pretendo par
tir para Oriente até o festival do solstício de verão, pois o seguinte dia é o mais propíc
io do ano para começar uma longa viagem. Quando tiver encontrado sua mãe e averiguad
o onde está Shalamandar, se reúna comigo na Babilônia. Esperarei até o último momento possív
el antes de partir para a China.
Sim sussurrou ela , irei me encontrar contigo na Babilônia. Levantou uma mão par
a acariciar a mandíbula de Sebastiano e quando seus dedos roçaram a barba fina e dou
rada, Ulri a viu
Sebastiano franziu o sobrecenho.
O que ocorre?
Ulri a abriu a boca, mas não podia falar.
Sebastiano aguardou, perguntando-se se estava tendo outra visão. Tinha pre
senciado outras vezes, tinha visto como alargavam as delicadas aletas do nariz e
dilatavam as pupilas. Ulri a empalideceu e a pele de suas têmporas se esticou.
Fora, sobre a cidade adormecida de Antioquia, uma nuvem cobriu a lua e s
umiu na escuridão os quartos da estalagem. Subitamente cegos Sebastiano e Ulri a n
otaram que seus outros sentidos se afiavam. Ele sentiu a pele cálida dela sob as mão
s, que continuavam agarradas a seus ombros, e pensou na suavidade dos cisnes e a
névoa. Ela podia cheirar a chuva ainda nele e pensou em bosques e prados verdejan
tes. Ele ouvia suas delicadas respirações. Ela sentia seu calor.
A nuvem passou como um grande pássaro sulcando o oceano na noite e a luz d
as estrelas voltou a alagar a pequena sala. Ele viu um rosto feminino e pálido. El
a viu olhos da cor dos prados.
Em sua caravana há traição disse Ulri a ao fim . Um de seus homens, próximo a você
e trairá.
Qual deles?
Não sei. Não posso ver seu rosto.
O certo era que não havia nenhum rosto para ver, pois o que acabava de ter
não era uma visão, mas um sentimento. Ao roçar com seus dedos o rosto de Sebastiano a
tinha alagado um sentimento de decepção entristecedor. De traição absoluta. Como um gol
pe físico que ia derrubar o espírito de Sebastiano Galo.
Poderia ser um dos recrutas de Primo?
Ulri a negou com a cabeça.
É um amigo.
Confio em todos os homens próximos a mim, mas também confio em você, Ulri a, e
em sua intuição, de modo que tomarei cuidado e permanecerei alerta. Despediremo-nos
pela manhã, antes de partir para a parada das caravanas.
Ulri a o viu cruzar o corredor e entrar em seu quarto. Fechou a porta e,
apoiando nela as costas, sussurrou:
Vos rogo que cuidem deste homem. Velem por ele. Devolvam-me ele são e salvo
.
Sebastiano nem sequer teve que chamar. Ulri a já sabia que havia voltado,
que se achava do outro lado da porta. Abriu e aí estava, sem a capa, com o torso e
os braços nus e um olhar cheio de desejo e incerteza. Elevou uma mão e Ulri a viu n
ela a concha do antigo altar.
Fique com ela. disse . É muito poderosa.
Ulri a a aceitou e jurou que a acompanharia sempre.
Preciso te acariciar sussurrou Sebastiano.
Olhou-o nos olhos e sentiu que a abraçavam, que a arrastavam para sua ment
e e seu coração.
E eu a você.
Buscando-se o mesmo tempo, deslizaram as mãos no outro e encontraram os lu
gares idôneos para um abraço perfeito. Ulri a se entregou a um refúgio que sempre tinh
a desejado e Sebastiano aspirou uma doçura que sempre tinha desejado. Suas bocas s
e uniram em um beijo apaixonado. Desfrutaram do sabor do outro enquanto suas mãos
exploravam, agarravam, acariciavam com urgência. Através dos lábios entreabertos sussu
rravam palavras entrecortadas: «Quero » «Preciso » «É » «Somos ».
Ulri a se apertou contra Sebastiano e notou sua dureza. Estalou em chama
s, ou essa foi sua sensação. Quente e úmida, sua pele ansiava ser devorada pela boca d
aquele homem. E Sebastiano queria inundar-se nela, unir seu corpo e sua força vita
l ao corpo dela, converter-se em parte de Ulri a, converter Ulri a em parte dele
.
Mas então ouviram um estrépito, passos pesados e a voz mal-humorada de Timónid
es na sala contigua enquanto fazia a bagagem, resmungava e assegurava em voz alt
a e clara de que não podiam demorar mais sua partida.
Sebastiano retrocedeu a contra gosto.
Parece que não vamos poder desfrutar de um momento sozinhos. virou-se para
a parede, a qual quase vibrava com a enérgica diligência do astrólogo . Timónides falava a
sério quando disse que as estrelas nos ordenaram que nos dessem pressa.
Por quê? Queria perguntar Ulri a, detestando a sensação de sua retirada, o ar
frio que corria agora entre os dois, o vazio espantoso que enchia seus braços. E o
calor nos lábios, o formigamento na língua. Não queria parar.
Ulri a. Sebastiano a atraiu para si uma última vez . Quero ficar contigo, esta
r contigo, mas Timónides tem razão. Devo ir. O privilégio e o luxo de te amar e desfru
tar de seu amor não pode ser meu agora que me acho sob as ordens de César.
Inclinou-se e a beijou na testa.
Ulri a, Ulri a disse enchendo a boca com seu nome . Contam que Eros, o deus
do amor e do desejo, está constantemente desmontando pessoas e voltando a armar.
E é verdade! Meu ser anterior se rompeu em pedaços e adquiriu uma forma nova. O home
m que era, sempre controlando seus sentimentos e seu coração, já não existe. Ignoro por
que Eros me escolheu para esta sorte concreta, mas sigo pensando que não a mereço. Não
quero te deixar, mas devo fazer o que ditam as estrelas porque é a vontade dos de
uses. Nenhum homem pode desobedecer porque é seu destino. Acredito firmemente e co
m todo meu coração que existe uma ordem no universo. E se os deuses decidem que não de
vemos nos reencontrar na Babilônia, espero que ache o que está procurando, assim com
o as respostas aos mistérios de seu interior. E quando retornar da China, e com ce
rteza assim será porque as estrelas prometeram, a buscarei e encontrarei, minha qu
eridíssima Ulri a.
LIVRO 5
Babilônia
Meu amigo, foi um prazer fazer negócios contigo. Prometo que meus excelente
s vinhos abrirão muitas portas, farão que os homens desejem te entregar suas filhas
virgens. Sustento, com toda modéstia, que minhas uvas são a inveja inclusive do própri
o Mardu .
Sebastiano sorriu ao loquaz babilônio enquanto fiscalizava pela última vez o
s animais e a carga que transportavam. Tinha somado a sua caravana vinho armazen
ado em jarras de prata, tal como tinham feito os fenícios durante séculos, porque a
prata impedia sua deterioração. E também mulas com bolsas de leite fresco amarrados ao
s lados. Dentro das bolsas se iniciaria um processo de fermentação que cortaria o le
ite. O movimento constante dos animais dissolveria o queijo resultante em coalha
da, e o líquido restante, o soro, proporcionaria uma bebida potável no caso de que não
encontrassem água.
A caravana de Sebastiano estava pronta para partir. Só tinha que esperar q
ue passassem as celebrações do solstício.
No momento, esperava que Ulri a aparecesse e poderia persuadi-la que o a
companhasse em sua viagem ao Oriente.
Era uma esperança vã? Perguntou-se. Com certeza Sifax a tinha entregue sã e sa
lva à sua mãe em Jerusalém, onde Ulri a teria averiguado onde estava Shalamandar. E ag
ora se achava caminho de Babilônia para reunir-se com ele. Pode que já estivesse per
to e o mesmo vento que acariciava seu rosto estivesse acariciando o dela.
Obrigado por sua ajuda, Jerash. Agarrou o babilônio pela mão e deu um apertão fi
rme.
Embelezado com uma túnica de franjas vistosa e um chapéu com forma de cone,
Jerash era primo de um homem com o que Sebastiano tinha cercado amizade em Antio
quia, e agora Jerash tinha dado nomes de familiares que viviam em assentamentos
repartidos ao longo da rota do leste.
Não tem mais que mencionar meu nome, nobre Galo disse ao mesmo tempo em que
introduzia uma mão em um bolso profundo com bordados e tirava umas tabuletas de b
arro , e entregar estas cartas de apresentação a meus tios e primos, e lhe oferecerão to
da a ajuda que necessite. Sua missão a China será como cavalgar sobre uma suave bris
a, meu amigo. Os deuses o levarão sobre seus ombros e voará como uma pomba!
Perto dali, sentado com Néstor no acampamento, onde seu filho com cara tor
ta se achava removendo um guisado de cordeiro e verduras, Timónides escutava a con
versa de Sebastiano e do babilônio com amargura. Só ele sabia que a caravana de Seba
stiano a China não seria nenhum voo de pomba porque a rota estava infestada de esc
olhos, armadilhas, traições e contratempos, nada do qual era evidente a simples vist
a. Só Timónides estava a par dos grandes perigos que se moravam, porque só ele tinha l
ido os astros de seu senhor e visto as desgraças que o aguardavam.
E a culpa de tudo tinha o astrólogo Timónides! Não podia deixar de falsificar
seus horóscopos, tinha que seguir mentindo, tinha que manter Sebastiano avançando pa
ra o leste para salvar Néstor de uma execução certa. A indignação de Antioquia não tinha che
gado ainda a Babilônia, mas os caminhos do correio real com o passar do Eufrates e
ram rápidos e eficientes. Uma palavra de um juiz a outro juiz e os guardas da cida
de estariam esmurrando portas, levantando tapetes e girando cubas em busca do as
sassino do amado Bessas, o homem santo.
A preocupação quase o impedia de comer.
As estrelas não mentiam. Sebastiano deveria estar nesses momentos em algum
lugar ao sul de Antioquia, pode ser em Petra já. Em qualquer lugar menos ali! Mas
Timónides, intérprete da vontade dos deuses, continuava insistindo com seu senhor p
ara avançar para o este, proferindo maldições e sacrificando sua própria alma imortal. P
orque não tinha dúvida que ia ao inferno por aquele sacrilégio. E isso não era tudo. O f
ato de levar Néstor na caravana convertia Sebastiano em cúmplice involuntário de um cr
ime. Seu senhor estava ajudando um fugitivo, o que significava que também ele seri
a executado no caso de os pararem.
Por que não se punham em marcha de uma vez? Timónides tinha proposto que não s
e atrasassem mais e partissem esse mesmo dia, mas sabia que Sebastiano estava pe
nsando nessa moça! Ulri a era como uma doença insidiosa que abria passo sob a pele d
e Sebastiano. Timónides via seu senhor deter cada noite seu trabalho para contempl
ar com saudade o horizonte do oeste e pensar na garota de cabelos claros que o t
inha enfeitiçado. Tinha estado tentado a falsificar um horóscopo e insistir na parti
da, mas teriam sido muito pecados. Sempre que pudesse ser sincero o seria. Além di
sso, para que pôr a prova seu senhor. E se lhe dizia que os deuses persistiam que
se fossem de uma vez e Sebastiano, decidido a esperar a Ulri a, negava-se a obed
ecer?
Se por acaso isso fosse pouco, Sebastiano estava considerando a possibil
idade de alterar o primeiro lance da viagem para agradar essa moça. Tinha pergunta
do por aí sobre o Shalamandar, mas ninguém tinha ouvido falar desse lugar. Ulri a ha
via dito que estava na Pérsia, por isso Sebastiano tinha declarado sua intenção de ir
primeiro ao norte para acompanhá-la até seu destino antes de se pôr rumo à China.
Pensando, com um suspiro, que os filósofos tinham razão quando diziam que o
amor e a sensatez eram incompatíveis, retornou às suas cartas e instrumentos para o
horóscopo do meio-dia. Estava calculando pela segunda vez os astros de seu senhor
tendo em conta o cometa que tinha aparecido em sua casa lunar e a inesperada est
rela fugaz que tinha passado frente a Marte, quando parou em seco e o café da manhã
de berinjelas e alho subiu até a garganta.
«Outra vez não »
Quis gritar contra a injustiça da vida. Destinado para sempre a ler as est
relas de outras pessoas, Timónides, o astrólogo, abandonado em uma pilha de lixo qua
ndo era um bebê, esperava que os deuses revelassem algum dia a seu humilde servent
e os astros de seu nascimento. Com esse fim tinha tentado manter pura sua prática
astrológica.
Mas os deuses eram retorcidos. Jogavam com ele, atormentavam-no. Lançavam-
lhe raios de esperança para logo fazê-los migalhas.
A moça estava na Babilônia.
Não existia a mínima dúvida. O horóscopo de Sebastiano tinha mudado. Os dois ama
ntes se dispunham a cruzar-se de novo.
Assim, apesar de suas promessas, devia falsificar uma vez mais sua leitu
ra. Não podia permitir que Ulri a se unisse à caravana. Néstor tinha estado bem na via
gem desde a Antioquia e durante sua estadia na Babilônia, mas se voltasse a gozar
da companhia de Ulri a, com certeza cometeria outro crime para agradá-la.
Embora isso significasse enviar sua alma imortal ao inferno, Timónides tin
ha que proteger seu filho.
Senhor chamou levantando-se da mesa , por fim dei com ela. Os astros revela
ram o paradeiro de Ulri a.
Sebastiano se virou para ele com um sorriso tão esperançado que o astrólogo te
meu que a berinjela fosse sair pela boca. Tragando de novo a bílis, disse:
Está em Jerusalém com sua mãe e sua família.
O sorriso se converteu em um cenho franzido.
Tem certeza?
As estrelas não mentem, senhor. Embora a moça abandonasse hoje Jerusalém, demor
aria semanas em chegar a Babilônia. Em seu futuro, não obstante, não aparece nenhuma v
iagem. Sua intenção é ficar em Jerusalém.
Ao ver a decepção no semblante de Sebastiano o coração se encolheu. Queria ao jo
vem Galo quase tanto como Néstor. Amaldiçoando sua vida, amaldiçoando aos pais que o a
bandonaram em uma pilha de lixo, amaldiçoando a Babilônia e aos deuses e inclusive às
estrelas, acrescentou:
Há algo mais. O cometa de ontem à noite e a estrela fugaz sobre Marte indicam
que devemos partir imediatamente. Não podemos ficar outra noite nesta cidade. É de
vital importância, senhor.
Mas ainda faltam dias para o solstício de verão!
Senhor, esta caravana sofrerá uma grande desgraça se nos demoramos. Hoje é o di
a mais propício para a partida. Os deuses o deixam muito claro.
Sebastiano meditou sua decisão.
Na Babilônia tinha dedicado seu tempo a reunir informação sobre a China. Não era
muita. Os artigos procedentes daquela terra longínqua nunca chegavam a essa parte
do mundo de forma direta, mas através de uma série de intermediários. Um cilindro de
seda a China podia passar pelas mãos de vinte comerciantes antes de atracar ao mer
cado de Babilônia. O mesmo acontecia com a informação. Os nomes de lugares eram vulneráv
eis às viagens, de modo que cada indivíduo com o que falava, cada mapa que consultav
a, mostrava nomes diferentes para as cidades e os acidentes geográficos.
Um deles, entretanto, mantinha-se mais ou menos constante: a cidade onde
tinha sido entronizado o imperador da China. Sebastiano tinha por fim um nome,
um objetivo identificável no que centrar-se cada manhã e cada noite e manter em sua
mente como uma estrela fixa.
Está bem disse a contra gosto . Onde está Primo? Timónides, envie a alguém à cidad
m sua busca.
Sim, senhor respondeu com grande alívio o astrólogo. Mais adiante, na seguinte
cidade, vale ou montanha, quando Ulri a já não fosse uma ameaça, ofereceria um sacrifíc
io a todos os deuses que lhe ocorressem, faria penitência e, se fosse necessário, je
juaria e permaneceria celibatário. Faria o que estivesse em sua mão para voltar a es
tar em graça com o divino.
Se assegure que Primo se apresse em voltar disse Sebastiano antes de se v
irar e encaminhar-se à sua tenda redigindo mentalmente a carta que ia escrever a U
lri a e a deixar aos cuidados chefe do acampamento.
A procissão de Mardu não parecia ter fim e Ulri a se impacientou tanto que
esteve tentada a descer da carreta e ir até o acampamento de caravanas a pé. Ninguém,
não obstante, atrevia-se a mover-se durante as aparições públicas do deus supremo da Bab
ilônia, por isso se viu obrigada a esperar.
Os últimos tambores, sacerdotes e soldados montados passaram por fim e o c
omerciante de linho tocou seus asnos. Quando chegaram à zona onde acampavam as car
avanas, que fervia de homens e bestas, Ulri a foi direita à tenda do chefe do acam
pamento para que a indicasse a direção correta.
O homem enrugou seu protuberante nariz.
Ei? A caravana de Galo? Partiu faz aproximadamente um mês. Nada menos que u
m mês. Galo tinha dado uma moeda de prata para que contasse à garota a verdade, mas o
grego tinha entregado uma moeda de ouro para que dissesse que tinham partido fa
zia um mês. Por esse dinheiro teria dito até um ano! . Isto é para ti acrescentou estend
endo um cilindro pequeno.
Ulri a o abriu a toda pressa e viu que era uma carta de Sebastiano escri
ta em latim.
Minha queridíssima Ulri a, os astros decretaram que devemos partir antes d
o previsto. Parto com o coração pesaroso, pois abrigava a esperança de te ter a meu la
do nesta fabulosa viagem ao desconhecido. Também parto, não obstante, com alegria, p
ois sei que logo cumprirei o sonho de minha vida de visitar a longínqua China. Lev
o-te em meu coração, Ulri a. Estará em meus pensamentos e em meus sonhos. E quando me
achar frente ao trono do imperador da China, você estará a meu lado. Reza minha amad
a, por que receba esta carta e me espere na Babilônia. Amo você.
Sabe que rota tomou a caravana? perguntou com os olhos alagados de lágrimas.
O homem franziu o sobrecenho. Galo tinha deixado instruções explícitas, mas co
m certeza a moeda de ouro também merecia uma versão falsa com respeito a isso. De mo
do que disse:
Tinham previsto embarcar no Golfo. A estas alturas já devem estar em alto m
ar.
Decepcionada, Ulri a agradeceu e se virou para as portas da Babilônia dand
o as costas ao horizonte do leste, onde ainda podia divisar, na luz crepuscular,
o pó levantado pelos cascos, as rodas e os pés da grande caravana que acabava de sa
ir para a China.
LIVRO 6
Pérsia
Por que davam tantos saltos? Não podia o condutor procurar um caminho mais
plano? E quando chegariam a Babilônia? A viagem estava sendo cada vez mais incômoda
. As mãos doíam. Por que doíam as mãos?
Ulri a abriu os olhos. Pestanejou. Era de noite e não parecia que estivess
e em um carro, mas olhando o chão. E este se encontrava debaixo dela.
Ao precaver-se que tinha as mãos amarradas às costas e que alguém a levava no
ombro como um saco de grão, tentou gritar, mas descobriu que tinha uma mordaça na bo
ca.
Revolveu-se contra os braços de seu raptor. Este aumentou a força de seu aga
rre. Ela tentou lhe dar chutes. Seu raptor imobilizou suas pernas. Lutou com sua
s amarras. Outra mão viajou até suas coxas e as segurou com firmeza. Mas Ulri a cont
inuava lutando, retorcendo, sacudindo o corpo para desestabilizar seu raptor.
Chega! ouviu dizer a uma voz em persa . Fique quieta! balbuciou então em grego.
Isso só a fez a lutar ainda mais, até que seu sequestrador parou em seco e a
jogou sem olhar no chão. Ao ter os pés livres, Ulri a retrocedeu pelo leito de folh
as que cobria o bosque; viu um homem alto, imenso, vestido com peles. Não parecia
preocupado por seu intento de fuga. Virou-se para deixar as esteiras e o estojo
de primeiro socorros de Ulri a no chão.
Ulri a não chegou muito longe. Os pés enredaram na capa e quando sua cabeça e
seus ombros encontraram com algo duro, levantou a vista e vislumbrou sob a luz d
a lua um pinheiro enorme. Olhou desesperadamente para a esquerda e a direita: es
tava rodeada por um bosque frondoso.
Sem desviar os olhos de seu raptor, lutou para desfazer-se de suas amarr
as. O homem tinha pegado um pau longo e estava cavando um buraco.
Sua tumba!
Uma sensação renovada de pânico e determinação deu-lhe forças para empurrar a mordaça
a qual escorregou por seu queixo.
Quem é? gritou . Por que me raptaste?
Um instante depois tinha ao homem a seu lado e a folha de uma faca aprox
imada à garganta.
Já disse que feche a boca grunhiu em grego . Entendeu?
Ulri a assentiu em silêncio.
Uma palavra mais e te silencio para sempre.
Horrorizada, viu-o retornar a sua tarefa de cavar um buraco bastante lar
go e profundo para cobrir um corpo. Feito isto, sentou-se e ficou a afiar ramos
que convertia em pontas mortais.
Tremendo sob a capa, Ulri a tentou tirar as amarras das mãos sem afastar o
olhar do desconhecido. Observou-o sob a luz da lua que se filtrava pelas frondo
sas copas das árvores e julgou, pela voz, que era jovem. Parecia ter o cabelo negr
o. Era alto e magro, e enganosamente forte. Vestia uma túnica de pele e malhas de
couro. Apesar do frio noturno das montanhas, levava os braços descobertos, por iss
o Ulri a podia imaginar uns músculos marcados e uma pele branca suja de terra.
Procurando serenar o tom, disse:
Como se chama?
O jovem não levantou a vista de sua tarefa.
Não precisa saber meu nome e eu não preciso saber o teu. Pela última vez, feche
a boca.
Ulri a mordeu o lábio e guardou silêncio enquanto ele continuava afiando est
acas.
Estava sentado no chão, frente a ela, com as pernas cruzadas e a cabeça incl
inada sobre a tarefa. De vez em quando a elevava para prestar atenção aos sons do bo
sque. Em nenhum momento olhou Ulri a, em nenhum momento falou, até que finalmente
ficou em pé e se meteu no buraco que acabava de cavar. Ulri a acreditou ver, na débi
l luz, que estava cravando as estacas no chão do fosso. Uma vez colocadas todas, s
aiu e cobriu o buraco com ervas e moitas.
Ulri a compreendeu que tinha preparado uma armadilha.
Quando o desconhecido se aproximou para pôr a mordaça nela novamente, sacudi
u a cabeça. Ficou olhando Ulri a viu uns olhos negros emoldurado por pestanas e so
brancelhas negras e murmurou:
Mas não fale.
Ajudou-a se levantar. Não desamarrou as mãos, mas lhe disse que devia caminh
ar com ele. Logo agarrou as esteiras e o estojo de primeiro socorros e, sem outr
a palavra, repreendeu sua caminhada através da noite.
Espere! exclamou Ulri a depois de um tropeço . Não posso continuar. Preciso desc
ansar.
O estranho a agarrou pela mão e a puxou enquanto Ulri a protestava e avançav
a a tropeções. O sol estava alto, levavam toda a manhã caminhando. Fazia horas que não o
uviam seus perseguidores.
Por favor suplicou.
O homem parou de repente, Ulri a se chocou contra ele e a ponto estivera
m de cair ao chão.
Já chegamos disse, e imediatamente pôs-se a correr.
Ulri a olhou a seu redor: um denso bosque de carvalhos e pinheiros orval
hado de sol. Atônita, viu como seu raptor se metia em um arbusto e reaparecia inst
antes depois fazendo gestos impaciente para que o seguisse.
Quando se aproximou do arbusto, que parecia muito emaranhado para que al
guém pudesse atravessá-lo, divisou uma abertura. Cruzou-a e tirou o chapéu dentro de u
ma cabana pequena e astutamente oculta no meio do bosque. Para sua surpresa, ape
sar de tratar-se de um refúgio temporário, a cabana era agradável. O chão estava coberto
de tapetes, e do teto de palha penduravam lamparinas de bronze cujas chamas cin
tilavam e criavam uma atmosfera acolhedora.
No meio do chão, sobre um leito de peles, dormia uma moça que tremia de febr
e.
Esquecendo-se imediatamente de seu cansaço, Ulri a correu até ela, caiu de j
oelhos e tocou a testa dela. Estava ardendo.
Como está? perguntou o homem da montanha ajoelhando-se a seu lado . A deixei f
az um dia e meio. Não tive escolha.
Ulri a levantou as pálpebras e viu suas pupilas dilatadas. Tinha o pulso ráp
ido e custava respirar.
Muito doente.
Não queria deixá-la sozinha. O jovem elevou a manta, de suave pele de cervo, p
ara lhe mostrar uma ferida que tinha muito mau aspecto . Caiu e se machucou. Tente
i curá-la, mas a ferida infectou. Sabia que a única forma de salvá-la era procurar aju
da. Olhou Ulri a . Vi você no povoado. Vi tratar a ferida de um homem. E reconheci es
ses símbolos. Assinalou o estojo de primeiro socorros com os hieróglifos egípcios e os
sinais cuneiformes pintados nos lados . Não permita que morra, ouve-me? Não pode deixa
r que morra.
Ulri a ficou momentaneamente apanhada em seus olhos negros mais profundo
s que a noite e invadidos por uma emoção não expressa. Compreendeu que seu jovem capto
r estava desesperado, à fuga, assustado e zangado, e que possivelmente não fosse tão p
erigoso como tinha acreditado.
Também era bastante bonito, advertiu, e pensou que, se sorrisse, seus sens
uais lábios seriam extremamente atraentes.
Agarrou o estojo de primeiro socorros.
Darei a ela o remédio de Hécate.
É médica?
Não. Minha mãe é. Ela me ensinou.
Não vive na Pérsia. Esta não é sua casa.
Ulri a não afastou o olhar de suas próprias mãos enquanto vertia uns pós em uma
taça e acrescentava água. Incomodava-a ter seu raptor sentado tão perto. Podia cheirar
seu suor e o aroma selvagem dos pinheiros, o limo e as peles de animal.
Vim procurando alguém disse.
Não o olhou, mas intuiu sua pergunta.
Estou procurando respostas para um assunto pessoal explicou Ulri a enquan
to removia o pó até dissolvê-lo . E acredito que há um homem chamado o Mago que pode me aj
udar.
Como o jovem não respondia, perguntou-lhe:
Esta moça é sua filha? Sua sobrinha? Tinha o mesmo tom de pele: uma tez excepc
ionalmente branca emoldurada por cabelos negros como o azeviche. Mas não eram pai
e filha. A moça aparentava uns treze anos e o jovem uns poucos mais que Ulri a.
Pertence a outra tribo respondeu, e Ulri a pensou: «Mas é certo que compartilh
a a mesma ascendência Greco persa».
O homem se virou bruscamente para a entrada da cabana.
Vou fazer guarda murmurou. Tirou o chifre de marfim e o deixou sobre o pe
ito da moça . O deus de meu povo é Ahura Mazda, o Senhor Sábio dos céus, e aqui dentro há ci
nzas sagradas de seu primeiro Templo do Fogo. São brancas e limpas e protegem do m
al. levantou-se e seus cabelos de meia-noite roçaram a mata do teto . Chama-se Veeda
disse antes de partir.
Quando retornou, Ulri a tinha conseguido que a jovem bebesse uns goles d
o remédio de Hécate. A medicina era célebre por baixar a febre, aliviar a dor e derrot
ar aos espíritos malignos da infecção. Logo tinha limpado a ferida da perna e retirado
a carne morta para aplicar bálsamos e bandagens novas. Ulri a não entendia todo os
processos de cura nem os maiores médicos gregos do mundo podiam explicar inteirame
nte como funcionava um remédio , mas estava empregando um método tão antigo e provado qu
e quando terminou estava segura de que a moça não demoraria para começar a repor-se.
Como vai? perguntou o estranho sentando-se junto à Veeda.
Trouxe-me a tempo.
Ele assentiu com a cabeça.
Estive rezando.
Ulri a tinha deixado o chifre de marfim sobre o peito da moça, perguntando
-se pelas cinzas que o jovem havia dito que continha. Pensou na pilha de lascas
que tinha reunido, mas não tinha acendido e em como se desculpou por não poder fazer
um fogo.
Não posso acender um fogo murmurou então, e Ulri a teve novamente a sensação de q
ue as palavras não foram dirigidas a ela. Perguntou-se a quem estava falando . Atrai
ria nossos perseguidores. Tenho que seguir avançando. Tenho que me manter com vida
para que esta moça possa viver. Dizia sem afastar o olhar do rosto de Veeda, e Ulr
i a voltou a perguntar-se sobre sua relação.
Havia dito que Veeda pertencia a outra tribo. Era sua noiva?
Vou procurar comida anunciou ele bruscamente . Agora deve descansar. Aí. Assin
alou uns tapetes dobrados contra a parede de mata . Pode fazer uma cama. Deixarei
você dormir, não tema. Pus armadilhas e estarei vigiando.
Quando virou para sair da cabana, Ulri a achou de repente muito tentador
a a ideia de dormir, caiu na conta que também seu raptor levava muito tempo sem de
scansar.
Tinha renunciado a sua própria comodidade e bem-estar para salvar essa gar
ota, pensou. Arriscou-se a ser capturado pelos homens que o perseguiam, e a quem
punha armadilhas mortais, para ir em busca de ajuda. Quem era Veeda para ele e
por que era tão importante que sobrevivesse?
Quando chegou a neve, o trio abandonou seu acampamento nas ruínas e se ins
talou com Zeroun e sua família enquanto Is ander, seguindo a tradição de sua tribo, co
nstruía uma casa. Assim passaram o inverno, Is ander levantando seu lar e ajudando
a reparar outras moradas, Veeda entretendo os aldeãos com suas canções e bailes, e Ul
ri a atendendo às vítimas das febres invernais. Todos os dias ia ao arco de pedra, o
nde invocava com facilidade a visão dos Lagos Cristalinos de Shalamandar, e ali me
ditava, orava e polia seu dom e seu poder espiritual.
Com o primeiro degelo atracou uma caravana do norte que a aceitou como p
assageira de pagamento.
Is ander e Veeda foram se despedir e ela abraçou ambos com ternura.
Quando se despedia de Zeroun, perguntou se era o último de sua espécie.
Não sou o primeiro Mago de Shalamandar nem serei o último. Enquanto tenha per
egrinos da verdade, terá um Mago neste vale.
Já instalada na caravana, meditou sobre seu novo destino.
Na Babilônia procuraria os Veneráveis e todos os dias perguntaria se havia n
ovidades sobre uma caravana que devia retornar da longínqua China.
LIVRO 7
China
Chamavam-nas «Flores Sociais» e sua única missão era dar prazer sexual aos convi
dados do imperador.
Pequeno Pardal, formosa filha da nobreza, achava-se entre essas jovens d
amas da corte real de Luoyang instruídas nas artes eróticas, como as Vinte e nove Po
sturas entre o Céu e a Terra. Sua especialidade era «compartilhar o pêssego» e «cortar a m
anga», e com essas artes deliciosas tinha mantido satisfeitos os convidados do imp
erador desde que tinha treze anos.
Agora tinha vinte e durante esses sete anos tinha conseguido não quebrar a
regra número um das Flores Sociais: não apaixonar-se nunca. No dormitório comum, suas
irmãs a tinham prevenido contra isso e jamais imaginou que pudesse ocorrer. Mas q
uando Pequeno Pardal jazia nos braços de Tigre Heroico, sentia que podia passar a
noite o ouvindo falar.
Não importava que não entendesse uma palavra do que dizia. Amava o som de su
a voz, o rico timbre, as exóticas sílabas que brotavam de seus lábios, seu idioma comp
letamente indecifrável. Sempre falava um momento depois de gozar, enchendo a perfu
mada noite de palavras gastas de muito longe enquanto ela descansava em seus braço
s fortes e desejava que a noite não terminasse nunca.
Jaziam em um colchão cheio de penugens de ganso, os lençóis eram de seda e um
escravo cego mantinha o ar em movimento mediante o balanço constante de um magnífico
leque de plumas. Pelo resto, os amantes se achavam sozinhos no aposento, embora
pudessem ouvir a música e as vozes da casa real que se elevavam por cima do muro
do jardim. Tigre Heroico falava, supunha, de sua casa no remoto oeste. E ela dav
a graças aos deuses por aquele homem de cabelo dourado ao qual tinha entregado seu
coração.
A função das Flores Sociais era digna e respeitada, e constituía uma grande ho
nra viver na corte real e servir como moça de prazer a visitantes importantes. Só as
filhas das famílias mais nobres eram escolhidas para isso. A seleção era rigorosa: ti
nha-se em conta o físico da moça, seu comportamento, sua saúde e sua destreza para agr
adar um homem. Pequeno Pardal possuía um delicado rosto redondo, uma tez suave e s
em mancha, um corpo fino e esbelto e mãos e pés pequenos. Sua família teve uma grande
alegria quando foi escolhida entre cem candidatas. As normas eram complexas e as
garotas eram rigorosamente educadas na modéstia, na discrição e no decoro. O prazer d
e seu convidado devia ser seu objetivo principal. O que ela sentisse carecia de
importância. Uma vez escolhida, a garota se transladava a um dormitório comum fiscal
izado por eunucos, onde levava uma vida de luxo e comodidades sem outra preocupação
que adornar o cabelo ou melhorar a pintura das sobrancelhas. Quando era solicita
da para um convidado, ia o tempo estipulado, não falava a menos que lhe falassem e
retornava logo a sua cama do dormitório.
Pequeno Pardal não era seu verdadeiro nome. Quando o chefe dos eunucos a a
presentou ao honorável convidado procedente de um lugar chamado Roma, este foi inc
apaz de pronunciar seu nome porque era longo e significava «a que espera um irmão pe
queno», pois seus pais tinham desejado um varão. Assim, disse ao eunuco que desse ao
ocidental seu «nome de leite», que era o que se utilizava com os bebês durante seu pr
imeiro ano de vida porque muitos não sobreviviam. Seus pais haviam posto Pequeno P
ardal, e agora só o homem do Ocidente a chamava assim.
Tampouco ela podia pronunciar o nome do estrangeiro, Sebastiano, de modo
que o chamava Tigre Heroico, pois assim se comportava no leito.
Mas não se apaixonou por ele por sua destreza sexual. A diferença de outros
convidados do imperador aos que tinha feito gozar, Tigre Heroico a travava com a
mabilidade. Sorria-lhe, acariciava-lhe o cabelo, perguntava como estava. Para ou
tros homens, embaixadores e príncipes que gozavam da hospitalidade real quando for
am a Luoyang, Pequeno Pardal era só um móvel, algo com o que aliviar o cansaço da viag
em e desprezar depois. As demais garotas a tinham advertido do perigo de apaixon
ar-se, e tinha chegado aos vinte anos sem ter tomado carinho algum pelos homens
que agradava.
Até que um dia, seis meses atrás, escolheram-na para ser a companheira de le
ito de Tigre Heroico e entregou-lhe seu coração. Não obstante, mantinha seu amor pelo
estrangeiro em segredo. Não contava às suas amigas. Nem sequer ante Tigre Heroico de
spia seu coração.
E como sabia que nunca a permitiriam sair de Luoyang, rogava para que qu
ando envelhecesse e já não fora desejável na cama, Tigre Heroico a conservasse como co
mpanheira.
Um gongo longínquo anunciou a meia-noite e soube que tinha chegado a hora
de partir. Como sempre, Tigre Heroico a beijou docemente na frente e logo se vir
ou para dormir. Mas enquanto se vestia, Pequeno Pardal ouviu que batiam na porta
, e quando Tigre Heroico se levantou abrir, escutou um cruzamento de palavras qu
e soavam premente.
Quando viu o feio romano chamado Primo entrar na sala seguida de um dos
tradutores de Tigre Heroico e de um homem que usava vestimentas e cores próprias d
e um nobre de uma província do sul, cobriu o peito com a roupa e se ocultou atrás de
um biombo para escutar.
Reconheceu ao quarto homem do grupo. Era Dragão Audaz, e todo mundo o conh
ecia por suas ambições políticas.
A família de Dragão Audaz era rica e poderosa e contava com muitos amigos. P
equeno Pardal não demorou em compreender que estava aí para oferecer um plano de fug
a aos ocidentais. Em seguida suspeitou que, mais que um ato de amabilidade, trat
ava-se de uma via para minar o poder do imperador, pois se os «convidados» estrangei
ros conseguissem escapar tão facilmente das garras do imperador, seria um desprestíg
io para Ming.
Pequeno Pardal conteve a respiração enquanto ouvia como emergia uma confabul
ação de palavras e frases dos lábios do tradutor. Dragão Audaz assegurava que sabia como
tirar tigre Heroico de Luoyang e devolvê-lo às fronteiras do Ocidente, mas que o pr
eço seria alto. Não necessitava de ouro nem de riquezas, disse o jovem nobre. E dado
que estava correndo um grande risco pessoal, a recompensa tinha que ser algo ve
rdadeiramente atraente.
Quando Tigre Heroico ofereceu um potente afrodisíaco, Pequeno Pardal viu q
ue de repente tinha conseguido toda a atenção de Dragão Audaz.
E presenciou uma cena curiosa. Tigre Heroico caminhou até um arca e tirou
uma bolsa de tecido. Abriu-a e mostrou o conteúdo a Dragão Audaz, deixando-o farejar
e tocar com as gemas dos dedos. Em seguida, Tigre Heroico agarrou um bule, vert
eu a água quente que continha em uma taça e a mesclou com um beliscão do conteúdo da bol
sa.
Enquanto deixava repousar a mescla, Tigre Heroico disse:
Conheci um homem na Babilônia. Contou-me que tinha uma granja na longínqua Et
iópia, próxima ao nascimento do Nilo. Um dia reparou que suas cabras estavam muito a
gitadas e passavam o dia acasalando. Passou vários dias as observando e descobriu
que comiam os bagos de um arbusto que sempre achou inútil. Pegou algumas e tentou
comer mas eram impossíveis de ingerir para um homem. Assou-as no fogo e as trituro
u até conseguir um pó fino. Ferveu o pó em água e obteve uma bebida amarga, mas o bebeu
de todos os modos, pensando se os bagos teriam o mesmo efeito nele que nas cabra
s. E o experimento funcionou. Em pouco tempo o granjeiro começou a sentir-se mais
jovem, mais tonificado e com mais energia da que tinha tido em anos. Correu em b
usca de sua mulher e esteve dias a agradando. O etíope levou seu descobrimento a B
abilônia, que foi onde o conheci. Provei a bebida e não há dúvida de seus efeitos estimu
lantes. E agora você, meu honorável convidado, experimentará pessoalmente o extraordinár
io elixir.
Tigre Heroico estendeu a taça, não sem antes beber um gole para demonstrar q
ue não era veneno.
Dragão Audaz bebeu e torceu o gesto.
Beba tudo disse Tigre Heroico enquanto o homem feio chamado Primo e o tra
dutor contemplavam espectadores a cena.
Dragão Audaz apurou a taça, lambeu a boca e disse:
Não noto nada.
Demora um momento.
Detrás do biombo, Pequeno Pardal observou como os quatro aguardavam em silên
cio. Em um momento Dragão Audaz baixou a vista e passou uma mão pela virilha.
Não bebi mais que água marrom.
Paciência, amigo meu. Como pensa nos tirar da cidade?
Podemos fazê-lo amanhã mesmo. Você e seu companheiro se reunirão comigo em
Não quero que tire só a Primo e a mim. Quero que tire todos meus homens.
As sobrancelhas de Dragão Audaz saltaram disparadas para cima.
A todos os seus homens? Se não me engano são mais de uma centena.
Não deixarei ninguém aqui.
Enquanto meditava, Dragão Audaz levantou a mão para coçar o nariz, mas a mão tre
mia. Estendeu-a e o tremor aumentou. Murmurou um juramento que o intérprete não trad
uziu. Depois disse:
Noto algo! Sinto-me cheio de energia!
Sebastiano sorriu.
É uma bebida potente.
Eu que o diga! Como se chama?
O etíope disse que não tinha nome porque os bagos crescem de uma planta que t
odo mundo considera inútil, mas de todos os modos o chamou qahiya, que em sua língua
significa «falta de apetite», pois esta bebida tira a fome.
Tirará a fome do estômago, mas não há dúvida que estimula outro tipo de apetite. Si
nto que poderia jazer com dez mulheres e não pegar olho em toda a noite! Muito bem
, por esta bolsa de qahiya inteira tirarei você e seu povo de Luoyang. Heis meu pl
ano
Pequeno Pardal tremeu ao escutar os detalhes da fuga de Tigre Heroico.
Ia deixá-la. O único homem que tinha amado.
Ninguém conhecia a idade da imperatriz viúva. Cada manhã sua equipe de assiste
ntes pessoal esfregava seu rosto e extraía até o último pelo, incluídos os das sobrancel
has. Em seguida, com soma destreza, maquiavam seu rosto sobre uma base branca de
pós de arroz. A fim de manter intacta a imagem, a imperatriz controlava as expres
sões faciais e falava sem mover os lábios e a mandíbula, o que lhe dava um ar de bonec
a de porcelana.
Concedi-te esta audiência, Pequeno Pardal disse com uma voz tão suave e irrep
reensível como as vestimentas de seda que vestia porque chamo seu pai meu amigo. M
as fale depressa que o tempo corre.
Pequeno Pardal se prostrou nove vezes ante a mãe do imperador e, quando re
cebeu autorização para falar, relatou a reunião mantida à meia-noite entre o comerciante
de Roma e um nobre chamado Dragão Audaz, assim como o plano para ajudar os ociden
tais a escapar.
Dragão Audaz levará uma companhia de artistas itinerantes ao Festival da Lua
Chapeada disse Pequeno Pardal enquanto tremia de medo ante a poderosa presença da
mulher. Mas não tinha escolha. Devia manter Tigre Heroico em Luoyang! . E enquanto S
eu Resplendor Sublime, o imperador, mantém-se distraído desse modo, os artistas serão
substituídos, um após o outro, por homens do Ocidente. A substituição se fará cada vez que
um número termine e os artistas abandonem a pista. Trocarão as roupas e os estrange
iros entrarão na cidade e cruzarão as portas. Uma vez que todos os ocidentais se enc
ontrem fora de Luoyang, os quatro convidados pessoais do Filho do Céu serão resgatad
os em metade da noite para levá-los junto a seus camaradas. Planejam estar muito l
onge quando descobrirem o engano.
O grilo chiou em sua jaula de bambu e as damas de honra permaneceram qui
etas como estátuas. A imperatriz estava imóvel. As borlas de ouro e os pássaros de pap
el que adornavam sua roupa eram agitadas unicamente pela brisa que corria pelo p
avilhão.
Pequeno Pardal sentiu que acelerou seu coração ao pensar se tinha cometido u
m terrível engano.
Finalmente, a viúva falou.
Ao me contar este segredo levou a desonra à sua família.
A moça caiu de joelhos e se prostrou.
Pensei que a Sua Sublime Majestade agradaria estar a par da artimanha e r
odear de guardas os estrangeiros! «retê-los aqui. Reter meu Tigre Heroico para sempre
. »
Insensata por pensar que meu filho seria tão facilmente enganado. Insensata
por esquecer uma das regras de seu ofício, ou seja, que está proibida falar dos ass
untos que os convidados tratam no dormitório. Retornará a sua casa, com sua família, e
dirá a seu pai que seu nome não voltará a ser pronunciado na corte do imperador.
Mas mandará me executar!
Como pai, está em seu direito.
Obedecendo a um rápido sinal da imperatriz, os guardas se aproximaram para
levar Pequeno Pardal a rastros. A moça não suplicou clemência. Manteve a dignidade até
o final, inclusive no momento último, consciente da cruel ironia do que tinha feit
o: ao revelar o plano de fuga de Tigre Heroico para que não pudesse partir, tinha
perdido seu direito a viver.
Sebastiano encontrou seu amigo estendido em sua cama com o olhar fixo no
teto. Timónides tinha os olhos vermelhos e inchados, mas já não chorava. O sol se esc
ondeu, as estrelas tinham saído e já não ficavam lágrimas para derramar.
Solicitei uma audiência com o imperador disse Sebastiano e me foi concedida
. Vou pedir que nos deixe partir. Não podemos ficar aqui. Sou responsável pelo que a
conteceu a Néstor. Há muito tempo que teria que ter insistido em que nos deixassem p
artir. Só espero velho amigo, que possa me perdoar por permitir que nos tenham tid
o prisioneiros tanto tempo.
Timónides não disse nada. Pouco depois, completado o tedioso protocolo, Seba
stiano se inclinava respeitosamente ante Ming.
Majestade disse , vi com meus próprios olhos a maneira sensata e compassiva e
m que o Senhor de Dez Mil Anos governa sobre seus vassalos e vejo que são felizes
sob seu mandato. Acredito que a meu imperador interessaria muito ouvir falar do
sábio e poderoso Senhor do Céu, e é provável que inclusive aprendesse do soberano da Ter
ra Florida. Peço humildemente que me permita retornar a meu país a fim de riscar par
a meu imperador e os altos oficiais um retrato do sábio e compassivo reinado do Se
nhor de Dez Mil Anos. Será uma honra para mim, elogiar o nome de Sua Majestade da
China até Roma e inculcar aos povos que encontre pelo caminho o respeito e o temor
no nome do elevado que ocupa o trono de Sua Majestade.
»A generosidade de Sua Majestade supera o número de estrelas que povoam o céu.
Sua Majestade é, certamente, o homem mais generoso da terra. Desejo ter a honra d
e falar com mundo da grandeza do Senhor do Céu. Desejo alardear de ter sido seu hu
milde convidado e o destinatário da generosidade e a compaixão do Senhor do Céu. Desej
o retornar a meu país e impressionar meu imperador com tais conhecimentos.
Ming não respondeu. Sob a curiosa coroa adornada com franjas de contas, se
u semblante não mostrava emoção alguma. A seu lado, MA guardava silêncio.
Em troca deste generoso favor, Sua Majestade continuou Sebastiano , falarei
-te do poder de Roma. Seus exércitos são como os mares; seus soldados, qual dragões qu
e exalam fogo; suas máquinas de guerra, como trovões e relâmpagos. Conto estas coisas
a Sua Majestade não para trair o meu país ou para fanfarronar de falsidades, pois o
que digo das legiões de Roma é certo, mas para oferecer ao Senhor do Céu a oportunidad
e de unir-se a um grande aliado quase tão poderoso como ele. A Pérsia é inimiga de Rom
a e sei que dinastia Há gostaria de submeter a Pérsia. Juntas, Roma e China poderiam
rodear a Pérsia e mostrar a essa nação inferior a grandeza de nossas respectivas raças.
Sebastiano manteve a calma ante o grande silêncio que seguiu. Não podia ler
a expressão de Ming. Estava se perguntando se tinha ido muito longe quando o jovem
imperador se virou para a imperatriz MA e dialogou com ela em voz baixa.
Finalmente, o Senhor de Dez Mil Anos olhou a Sebastiano e, através dos intér
pretes, disse:
Nosso honorável convidado se antecipou a uma decisão que faz semanas que nós to
mamos. É nosso desejo conhecer em maior profundidade os ensinos do chamado Buda. Q
ueremos construir um santuário e compartilhar seus ensinos com os cidadãos da China.
Decidimos enviar alguns dos missionários budistas que trouxe para Luoyang há um ano
à Índia, seu lar, para que reúnam estátuas e livros do Iluminado e nos tragam. Desejávamo
s te perguntar, honorável convidado, se nos faria o grande favor de escoltar os mi
ssionários até a Índia e dali seguir até Li-chien para levar nossas respeitosas saudações a
seu imperador. É um grande sinal que ambos tenhamos tido a mesma ideia, pois signi
fica que sua viagem está destinada e será, portanto, segura e afortunada. Proveremos
a sua caravana de quanto necessitem os missionários, assim como de obséquios para s
eu César e passes diplomáticos que lhe permitirão cruzar sem perigo os territórios que s
e estendem entre a China e a Pérsia. É nosso desejo que parta de Luoyang o antes pos
sível.
Sebastiano fez uma reverência e saiu da sala. Perguntou-se se a intenção de M
ing tinha sido realmente os deixar partir ou se a desculpa dos missionários budist
as era uma forma de conservar seu prestígio.
Pouco importava isso. Voltavam para casa.
LIVRO 8
Babilônia
Tenho pouco que recolher disse Ulri a enquanto conduzia Sebastiano por um
beco tortuoso até a casa que compartilhava com uma costureira . Aprendi a viajar co
m pouca bagagem.
Saíram a uma rua mais ampla onde havia um mercado à sombra do imenso Palácio d
e Justiça, um zigurate de terraços esplendidamente ajardinadas com árvores, matagais e
frondosas videiras. Os comerciantes ofereciam alhos e porros, cebolas e feijões;
os vendedores de pão e queijo anunciavam seus preços, e os mercadores apregoavam os
méritos de seus diferentes vinhos.
De repente Sebastiano e Ulri a ouviram um estrondo de trompetistas ao fi
nal da rua e uma voz que gritava:
Deixem passo! Deixem passo em nome do grande Mardu !
Pela esquina apareceu um grupo de sacerdotes e, detrás, guardas do templo
que custodiavam cinco homens encadeados. Puxando burros e cavalos, os pedestres
retrocederam imediatamente enquanto o povo saía das casas para contemplar o curios
o desfile.
Quando a multidão aumentou, Sebastiano levou Ulri a até o portal de uma casa
para protegê-la.
Entre os sacerdotes de túnica branca destacava um em especial. O supremo s
acerdote usava a cabeça barbeada como uma pedra polida e não usava nenhum adorno. Is
so o diferenciava do resto dos homens da Babilônia, os quais competiam entre si co
m as roupagens de franjas, elevado-los chapéus cônicos, os cajados e os sapatos com
a ponta encrespada. Quando o supremo sacerdote passava por uma rua, o povo se de
tinha, inclinava a cabeça e, temerosa de sua magnificência e poder, desviava o olhar
. Ulri a tinha ouvido que sua autoridade superava inclusive a do governador prov
incial da Pérsia e a do príncipe boneco que ocupava o velho trono de Babilônia.
O supremo sacerdote deteve a pequena procissão na praça, golpeou o chão com o
cajado e disse em tom alto:
A Babilônia foi infestada de falsos profetas, fabricantes de milagres, cura
ndeiros e enganadores que afastam os cidadãos da verdadeira fé. Prendemos os estelio
natários e os levamos à Praça das Sete Virgens, onde foram julgados por seus delitos.
Depois de ser achados culpados, serão pendurados pelos tornozelos até morrer para qu
e sirvam de exemplo. Além disso, seus corpos não serão devolvidos às suas famílias para um
enterro digno, mas sim arderão em uma pira comum e suas desprezíveis cinzas serão jog
adas no rio. Conheçam, pois, seus delitos declarou enquanto assinalava a cada home
m com o bastão . Alexamos, o grego, culpado de vender pombas e cordeiros com mácula co
mo oferendas a Ishtar. Judá, o israelita, culpado de ofender os deuses da Babilônia
ao chamá-los falsos e de acusar injustamente os sacerdotes de Mardu . Kosh, o egípci
o, culpado de vender leite de cabra assegurando que provinha dos peitos de Ishta
r. Myron, de Giz, culpado de assassinar uma prostituta sagrada de Isthar. Simão, d
a Cesárea, culpado de manifestar que fala com os mortos.
Esmurrou novamente o chão e os guardas fizeram avançar os desgraçados, de mane
ira que Ulri a pôde ver o terrível trato que tinham sofrido. Não tinham se limitado a
julgá-los. Os cinco tinham sido torturados e marcados.
Seu coração chorou por eles. E um instante depois seu coração parou em seco. O r
abino Judá!
Então vislumbrou, atrás dos guardas, um grupo de homens e mulheres que chora
vam e se abraçavam. Miriam e sua família.
A sua volta da Pérsia, Ulri a tinha ido ver Miriam para agradecer que a ti
vesse posto no caminho correto. Tal como Miriam profetizou, tinha encontrado um
príncipe que a levou até Shalamandar. Depois não tinha voltado para a casa do rabino J
udá nem o tinha ouvido pregar, mas estava a par de sua crescente reputação como curado
r e restaurador da fé.
Sebastiano disse enquanto os cinco homens eram desencadeados e colocados
em fileira contra um muro. No alto do muro havia uns guardas baixando cordas . Tem
os que parar isto! Conheço esse homem. Ajudou-me em uma ocasião.
Sebastiano observou aos guardas os escudos, as lanças, as adagas e deu um p
asso à frente dizendo:
Um momento
Mas um deles cortou imediatamente o passo colocando a ponta letal da lança
à altura de seu peito.
Horrorizada, Ulri a viu os guardas despirem os condenados. Perguntou-se
se os teriam drogado, pois pareciam aturdidos e alheios ao que estava ocorrendo.
Então advertiu que o rabino Judá permanecia erguido e orgulhoso enquanto os
guardas tiravam sua roupa e cortavam sua barba e os longos cachos. Aqueles entre
a multidão que não tinham visto antes um homem circuncidado afogaram um grito e ass
inalaram com o dedo, alguns inclusive riram e lançaram insultos.
As mulheres da família de Judá gritaram e tamparam os olhos. Uma delas desma
iou e caiu nos braços de dois familiares varões. Judá mantinha o olhar por cima da mul
tidão e o semblante impassível.
Quando um soldado se dispôs a cortar as correias de couro do braço e a testa
dele, o supremo sacerdote disse:
Deixe seus símbolos religiosos para que o povo conheça a ofensa cometida cont
ra Mardu . E também para que seu deus possa ver e, possivelmente, o resgatar.
Ulri a sentiu que gelou o sangue quando viu os guardas atar as cordas a
os tornozelos dos condenados. Sem mais preâmbulo, os pés saíram disparados para cima.
Os homens caíram no chão. Dois golpearam a cabeça e tiveram a fortuna de perder o conh
ecimento. Outros dois começaram a gritar e a suplicar clemência e prometeram adorar
a Mardu o resto de seus dias.
Sebastiano abraçou Ulri a e tentou levá-la para longe do horrível espetáculo, ma
s ela precisava ver.
Judá permaneceu em silêncio enquanto caía de joelhos e, como um boneco, era le
vantado lentamente pelo muro, o corpo investido e os braços apontando ao chão. Ulri
a viu que movia os lábios e soube que estava rezando.
Os familiares do rabino tentaram aproximar-se gritando e implorando clemên
cia, mas os guardas os obrigaram a retroceder e o supremo sacerdote, golpeando u
ma vez mais o chão com o cajado, advertiu aos espectadores que esse era o destino
que aguardava todo aquele que não obedecesse as leis de Mardu e da Babilônia.
Dito isto se virou e, dando as costas aos cinco homens que gemiam suspen
sos do muro, partiu ignorando seus gritos e os dos familiares e amigos que supli
cavam clemência. Um punhado de guardas permaneceu frente ao muro para assegurar-se
que ninguém tentasse descer os condenados. Ulri a sabia que fariam guarda até que o
s cinco tivessem morrido e que logo transladariam os corpos ao esgoto, situado n
os subúrbios da cidade, para que ardessem junto a cadáveres de cães e gatos, e junto à s
ujeira e os desperdícios de toda a população de Babilônia.
Quando Ulri a se aproximou da família do rabino, Miriam disse:
Ulri a, rogo isso, não contemple a nudez de meu marido. Não presencie sua ver
gonha. Vá para casa e reze por ele.
Mas tem que ter algo que possamos fazer! Não podemos deixá-lo aí! levou uma mão ao
s lábios. Sentia náuseas.
Então notou uma mão forte no braço e ouviu uma voz profunda que dizia:
Vamos daqui. Não deveria estar vendo isto.
Sebastiano, temos que fazer algo!
Miriam a convenceu para que partisse e pediu que rezasse por Judá. De volt
a na caravana, Sebastiano a embalou em seus braços, beijando-a com doçura, acarician
do-a e secando as lágrimas, até que dormiu.
Quando Ulri a despertou era tarde avançada e Sebastiano não estava na tenda.
Doía-lhe a cabeça e tinha a garganta seca. Refrescou o rosto com água, lavou as mãos e
se sentou, com as pernas cruzadas e a concha entre as mãos entre os almofadões de se
da e as estátuas de deuses chineses de Sebastiano. Com grande ardor, pediu à deusa q
ue tivesse piedade com os pobres executados.
O sol tinha se posto quando Sebastiano retornou.
Tentei interceder em nome de seu amigo disse com voz cansada . Fui ver meus
amigos ricos e influentes da cidade, inclusive recorri ao governador, mas todos
me disseram que seu poder não podia competir com o dos sacerdotes de Mardu . Logo
fui ao templo e me ofereci a encher as arcas se deixassem livres aos condenados
, mas nem todas as riquezas do mundo conseguiriam comover ao supremo sacerdote.
Sinto muito, Ulri a.
Ulri a se afundou nos braços fortes e reconfortantes de Sebastiano, fechou
os olhos e se agarrou a ele como se fosse uma ilha em meio de um mar enfurecido
.
Ulri a deixou suas esteiras junto à tenda e se voltou para o muro oriental
da cidade para contemplar a transitada porta de Enlil. Sebastiano tinha partido
pela manhã para informar aos agentes de alfândegas de sua partida e pagar o imposto
. Agora era tarde avançada. Tinha que estar para chegar. E no dia seguinte sairiam
para Roma!
O acampamento da caravana fervia de atividade sob o sol primaveril. Os e
scravos estavam preparando os muitos animais para a viagem, desmontando as tenda
s e guardando em caixas seladas os valiosos tesouros ganhos no Oriente. Ulri a não
tinha podido provar seu almoço: pão quente, queijo de cabra curado e azeitonas mace
radas em azeite e vinagre. A emoção impedia. Estava apaixonada e ansiosa para voltar
a sentir as carícias de seu marido.
Jamais deixaria de maravilhá-la o homem com que se casou, sua bondade com
os desconhecidos embora fosse um risco para ele. Sebastiano tinha conseguido res
gatar o corpo do rabino Judá e levá-lo ao Castelo de Daniel, onde, longe do tráfico e
o povo, Miriam e sua família o tinham enterrado.
Ao ver Timónides cruzar o acampamento a tropeções e meter-se em sua tenda, Ulr
i a desviou seus pensamentos para o astrólogo. Tinha tentado falar com ele, dar co
nsolo. Timónides já não falava com seu habitual entusiasmo, não havia vida em seu corpo
nem em seus olhos. Ulri a sabia que se devia à maneira em que tinha morrido Néstor.
Sua cabeça tinha sido pisoteada pelos cascos dos cavalos, por isso não ficaram olhos
onde depositar as moedas para Caronte, o barqueiro, a única forma possível de pagar
o cruzamento do rio Estige. «Aonde terá ido a alma de Néstor?», tinha perguntado Timónide
s. Estaria o pobre moço destinado a errar eternamente no inferno?
Ulri a desejava poder utilizar seu dom para reconfortá-lo, desejava que o
espírito de Néstor lhe aparecesse como tinha feito o do rabino Judá. Em vão tinha medita
do para consegui-lo. Por que uns espíritos a visitavam e outros não?
De repente um grito estrangulado rasgou o ar.
Ulri a se virou e viu balançar a pequena tenda de Timónides. Foi até a entrada
e o chamou. Ouviu um ruído de arcadas. Entrou e seus olhos se abriram como pratos
.
Timónides estava suspenso do suporte maior da tenda com uma corda ao redor
do pescoço, agitando as pernas.
Ulri a correu até ele. Reparando nas caixas de madeira que tinha derrubado
com um chute, empilhou-as a toda pressa, subiu nelas e se abraçou às pernas do astról
ogo a fim de levantá-lo para mitigar a tensão da corda.
Timónides, tire a corda! Não poderei te aguentar muito mais! As caixas tremiam
precariamente sob seus pés.
Deixe-me morrer
Socorro! gritou Ulri a . Que alguém me ajude!
Dois escravos de costas largas entraram na tenda, baixaram o frágil ancião e
tiraram a corda.
Vão procurar seu senhor ordenou Ulri a quando o estenderam no chão Encontrem
Sebastiano!
Ajoelhou-se junto a Timónides e passou um braço por debaixo dos ombros, estr
emecendo ao notar só pele e ossos sob a roupa. Estava branco, com os olhos fechado
s e as pálpebras roxas.
Por que, Timónides?
O ancião entreabriu seus lábios cinzas e disse entrecortadamente:
Néstor está no inferno Não posso deixá-lo ali só Devo ir com ele
Tolices replicou Ulri a com lágrimas nos olhos . Seu filho era inocente e os
deuses sabem.
Timónides moveu a cabeça de um lado a outro.
Deixe-me ir com ele. Néstor me necessita
Ulri a balançou docemente o astrólogo enquanto derramava lágrimas sobre seu ro
sto branco. O que tinha acontecido para que pensasse que Néstor estava no inferno?
«Mãe de Todos, rogo-lhe isso, ajude a este homem.»
Com o ouvido posto nos sons do acampamento, atenta à chegada de Sebastiano
, examinou o pescoço de Timónides e comprovou que tinha o pulso débil e irregular. Tem
eu que pudesse morrer pelo mero feito de não querer viver.
Deixe-me ir sussurrou ele.
Ulri a baixou a vista e viu que a estava olhando com olhos tristes.
Conversei com filósofos chineses, conheci sacerdotes e eruditos, visitei te
mplos e orei aos deuses mais poderosos da terra, mas ninguém pode me dizer onde es
tá Néstor,
Está com os deuses disse Ulri a com doçura , desfrutando do seguinte mundo.
Não Está no inferno e precisa de mim.
A portinhola da tenda se abriu e Sebastiano entrou acompanhado dos escra
vos e dando passo à luz do sol.
O que aconteceu? perguntou caindo de joelhos junto ao ancião.
Tentou tirar a vida.
Necessita de um médico.
Não é uma doença da carne o que o aflige, mas sim da alma.
Sebastiano pensou nos médicos de excelente reputação que conhecia na cidade. M
as esse dia começava as celebrações da primavera e, no caso da Babilônia, do Ano Novo. C
omo ia encontrá-los?
Tenho que retornar à cidade. Pode ficar com ele? Voltarei com um médico.
Depois de pôr cômodo a Timónides, Ulri a aplicou cataplasmas no pescoço e deu a
beber água fria. Não obstante, quando ofereceu comida, o astrólogo desviou o rosto.
Sebastiano retornou ao anoitecer sem ter encontrado nas celebrações e desfil
es da cidade um só médico disposto a acompanhá-lo.
Ficarei com ele disse Ulri a . O pescoço e a garganta sararão, mas me dá medo que
volte a atentar contra sua vida.
Sebastiano também ficou. Jantaram na tenda de Timónides, ao que persuadiram
para que bebesse um pouco de vinho e lhes falasse dos medos que inquietavam sua
alma, mas não disse muito. No momento pôde sentar-se e contemplar o chão com ar tacitu
rno. Ouviram-no balbuciar e menear a cabeça. Os demônios tinham a alma do velho greg
o atormentada.
À manhã seguinte Timónides disse a Sebastiano que não ia fazer sua habitual leit
ura do dia.
Não voltarei a confeccionar um horóscopo em minha vida. Nos dias que me resta
m, me limitarei a contemplar as estrelas.
Sebastiano se inquietou. Em uma ocasião, quando Timónides estava doente, viu
-se obrigado a contratar os serviços de outro astrólogo, mas jamais imaginou que o v
elho grego fosse a deixar de ler as estrelas. Baixando a voz, disse a Ulri a:
Poderia encontrar um astrólogo na Babilônia para sair logo, mas duvido muito
que estivesse disposto a viajar a Roma. E menos ainda um astrólogo de excelente re
putação. Não posso confiar em um astrólogo medíocre. O que podemos fazer para que Timónides
mude de parecer? Não me atrevo a mover esta caravana sem consultar as estrelas.
Falarei com ele.
Quando Sebastiano partiu, Ulri a disse:
Nos sentemos fora, querido amigo. O sol te levantará o ânimo.
Nada pode me levantar o ânimo repôs Timónides, mas se sentou de todos os modos
com Ulri a diante da tenda, em um tamborete. Os olhos que antes se concentravam
nas estrelas agora olhavam silenciosamente o chão. Ulri a serviu uma taça de vinho e
a pôs diante, mas o ancião não a tocou.
Timónides pensava em suas coisas enquanto o acampamento fervia de atividad
e, o sol se elevava no céu e a brisa soprava do Eufrates. Em um momento dado, diss
e:
Sabe? Nem sequer tenho a certeza de ser grego. Abandonaram-me ao nascer e
uma viúva grega me adotou. Ela me pôs o nome e me ensinou sua língua e sua cultura. I
ntroduziu-me na astrologia aos seis anos e depois de sua morte me venderam como
escravo. O pai de Sebastiano me comprou e então passei a servir sua família. Néstor er
a o único ser humano deste mundo com o que tinha uma conexão de sangue. Era mais que
um filho, era meu universo. Sinto-me perdido sem ele
Timónides alcançou a taça de vinho, e ao ver o muito que lhe tremia a mão, Ulri
a pensou: «Timónides é um matagal de pensamentos lúgubres. Não pode pensar com claridade».
Então teve uma ideia.
Timónides, quando me instruí na prática da meditação para tirar partido para meu do
m espiritual, descobri que depois de meditar me envolvia um sentimento de paz e
serenidade. Sabe, se ensinar a
O astrólogo entreabriu as pálpebras.
Meditação?
É muito singela e não requer muito esforço, só concentração. Não é muito diferente d
ma em que te vi se preparar antes de ler suas cartas astrais. É uma maneira de lim
par a mente, de centrá-la. Você gostaria de tentar?
Com que fim?
Para levar paz a sua alma, Timónides.
Minha alma não merece paz.
Então faça como um favor para mim. Nunca ensinei à técnica a outra pessoa. Quero
saber se é possível.
O ancião deu de ombros.
Possui algum objeto ao que tenha um carinho especial? Algo ao que possa t
e agarrar como se fosse uma âncora?
Timónides não precisou pensar. Entrou em sua tenda e um instante depois saiu
com uma longa colher de madeira que Ulri a reconheceu como a favorita de Néstor.
Quando voltou a sentar-se no tamborete, Ulri a viu pela primeira vez uma
faísca de esperança nos olhos do ancião, como se o simples feito de sustentar a colhe
r de Néstor fosse um consolo.
Agora visualiza uma imagem disse , uma imagem que resulte familiar e reconf
ortante.
Um sorriso débil curvou os lábios do astrólogo.
Uma panela de guisado borbulhante. É o que mais me recorda a meu filho.
Cria essa imagem em sua mente enquanto sustenta essa colher. Concentre-se
nela. Torne-a real em sua mente. Agora sussurre palavras que tenham um signific
ado especial para você. Repita uma e outra vez.
Timónides examinou a colher com os ombros curvados para diante. Então assent
iu com a cabeça, como se tivesse chegado a um acordo consigo mesmo.
O destino está nas estrelas murmurou.
Entrando no reino das sensações com suas palavras singelas e sua voz doce, U
lri a o ensinou a respirar, a balançar e a concentrar-se.
Enquanto agarra à âncora, deixa que seu espírito se expanda Não obstante, enquant
falava advertiu os olhos de Timónides se agitando atrás das pálpebras e as rugas de s
ua testa se faziam mais profundas, e compreendeu que estava lutando.
Não posso! gritou finalmente o astrólogo, exasperado . Querida menina, não funcion
ará!
Mas Ulri a podia ver a ternura com que acariciava a colher e a esperança d
entro dele. Timónides não queria tirar vida, não queria reunir-se com seu filho em um
inferno imaginário. O que podia fazer para salvá-lo?
Parou para meditar nisso enquanto via uma caravana nova chegar do oeste,
uma longa fileira de bestas e homens fatigados entrava na área de acampamento. E
caiu na conta que sua meditação pessoal estava destinada a encontrar lugares externo
s. A doença de Timónides era do espírito. Era interna. Com renovada esperança, disse:
Não tente expandir seu espírito, Timónides. Vá para dentro. Busque a paisagem de
sua alma. Explore-a sem medo e me diga o que vê.
Balançando-se e respirando lentamente, o astrólogo voltou a fechar os olhos
e levou a colher ao peito enquanto sussurrava «O destino está nas estrelas o destino
está nas estrelas », até que começou a tremer e deixou de recitar. Ulri a advertiu que o a
r se detinha em seu peito.
Escuridão disse com voz tensa . Vejo um grande buraco negro. Ventos frios. Is
olamento. Minha alma está sozinha e perdida!
Timónides disse brandamente Ulri a , mantém um diálogo interior com sua alma. Não
e revele isso. Fale com seu ser espiritual. Faça-lhe perguntas. Pergunte-lhe o que
quiser, como pode salvá-lo.
Enquanto o velho astrólogo se recolhia para seu interior, relaxava a postu
ra e as rugas de seu rosto se alisavam, Ulri a viu que Sebastiano entrava no aca
mpamento com expressão carrancuda. Vinha sozinho. Não tinha encontrado nenhum astrólog
o disposto a acompanhá-lo.
Levou um dedo aos lábios para indicar que se unisse a ela e Timónides com si
gilo.
Depois de um breve silêncio, Timónides abriu finalmente os olhos e disse:
Não posso fazer isso, Ulri a. Para você é fácil. Você é jovem e ágil, mas minha alma
lha e range como minhas articulações.
Ulri a se inclinou para ele.
Observei como se preparava para ler as estrelas incontáveis vezes. Vi você fe
char os olhos e sussurrar uma oração. Por que fazia isso?
Para abrir minha alma às estrelas, para deixar que me alaguem com sua sabed
oria.
Pois faz isso mesmo agora.
Com cara de cepticismo, Timónides se acomodou de novo no tamborete, agarro
u a colher com força, fechou os olhos e procedeu a respirar profunda e ritmicament
e. «O destino está nas estrelas», sussurrou, e pensou que estava se preparando para um
a leitura. Mas em lugar de uma viagem interna até sua alma, como sugeria Ulri a, T
imónides sabia que devia enviar seus pensamentos para fora e para cima, para o céu,
pois esse era seu lugar. À medida que afrouxava a respiração, que imaginava o aroma de
um guisado borbulhante, e notava a colher de madeira nas mãos, o velho astrólogo se
ntiu que relaxava e abandonava as tensões de sua existência carnal para libertar o e
spírito e elevar até os céus que tanto tinha amado ao longo de sua vida.
No momento estava voando entre as quarenta e oito constelações, velhas amiga
s às que agora podia ver de perto: o jactancioso Orión, vencido por um escorpião peque
no e congelado para sempre nos céus, com o pau levantado e condenado a não cair nunc
a. Andrômeda, a virgem presa em correntes para quem Timónides pronunciou então as famo
sas palavras de Perseu, seu salvador: «Estas correntes só devem te prender aos corações
dos amantes». E Casiopéia, instalada no trono celestial pelo malicioso Netuno, que a
sentou com a cabeça dirigida à estrela polar para que passasse a metade da noite de
barriga para baixo.
Timónides subiu em Pegasus e cavalgou sobre os quatro ventos. Aproximou-se
do sol e sentiu o ditoso resplendor sobre seu rosto indigno. Viu passar um come
ta gelado. Provou o roce doce da lua.
Rompeu a chorar. Tanta beleza. Tanta divindade. E a tinha manchado. A fi
m de poder encher seu miserável estômago tinha manchado tudo o que amava e adorava.
Tinha deixado a um lado crenças e corpos celestiais por medo de uma pedra salival.
Sinto muito! uivou enquanto planetas e meteoritos passavam velozes por seu
lado . Perdoem-Me! gritou rodeado de asteroides que voavam a uma velocidade vertig
inosa . Perseu, Hércules, não foi minha intenção faltar ao respeito! Sou um homem modesto,
uma teia de debilidades e temores. Não sou nada comparado com sua grandeza. Deem-
me uma segunda oportunidade, suplico-lhes isso!
Nesse momento viu uma nuvem cintilante de compaixão e cor a consciência cole
tiva do vazio materializar-se frente a seus olhos. A nuvem rodou para ele como um
a neblina, ocultando as estrelas, os planetas, o sol e a lua, até inundá-lo em pura
doçura. Timónides sentiu que todos os medos abandonavam seu corpo, como se a carne m
esma se arrancasse dos ossos, e chorou de sorte.
Seus dois companheiros o olhavam fixamente enquanto ele continuava sua c
avalgada sobre os ventos cósmicos. Já não se balançava. Tinha deixado de murmurar. Parec
ia que mal que respirava. O tempo passou. Também homens e camelos. A área de acampam
ento continuava com sua atividade, como tinha feito durante séculos, enquanto Ulri
a e Sebastiano velavam por seu vulnerável amigo durante sua viagem espiritual.
O sol estava começando a descer pelo oeste quando Timónides abriu finalmente
os olhos e piscou com cara de desconcerto.
Está bem? perguntou Ulri a esquadrinhando seu rosto, procurando indícios de um
transtorno mental. O astrólogo, não obstante, tinha boa cara, a pele seca, os olhos
abertos e o olhar transparente. Queria tomar o pulso, mas se conteve, temerosa
que o contato de sua mão rompesse o feitiço.
Tenho sede A voz do ancião era fina como a fumaça.
Sebastiano aproximou um copo de água fria que Timónides bebeu como se acabas
se de cruzar o deserto. Logo secou a boca com expressão carrancuda. Ulri a sabia q
ue estava readaptando-se ao mundo físico. Não queria pressionar para que falasse de
sua viagem. Precisava tomar seu tempo.
Foi maravilhoso sussurrou por fim, sacudindo a cabeça com incredulidade . Jam
ais teria acreditado possível. Ulri a, através da meditação concentrada averiguei coisas
. Os deuses me revelaram segredos. É isso o que ocorre com a meditação, que te convert
e em um canal de comunicação com o divino? Falaram-me
Levantou o copo e Sebastiano voltou a enchê-lo. Depois de outro longo trag
o, disse a Ulri a:
Não posso contar quais segredos os deuses me revelaram, pois assim exige me
u ofício sagrado de astrólogo. Mas me fizeram outro presente. Iluminaram meu ser int
erior. E sei que devo revelar o que vi, meus amigos.
Virou-se para Sebastiano.
A morte de Néstor foi um castigo dirigido a mim, senhor, não a ele. Meu filho
teve uma morte horrível por culpa de minhas transgressões. Ele era inocente. Inclus
ive quando decapitou Bessas em Antioquia era inocente.
Sebastiano cruzou com a Ulri a um olhar de alarme.
Timónides explicou brevemente o acontecido em Antioquia.
E logo o próprio Néstor foi assassinado sendo pisoteado na cabeça. Pensei que s
e tratava de uma represália divina, cabeça por cabeça, mas agora vejo que Néstor não sabia
o que fazia. Ulri a, explorei as estrelas e heis aqui o que tenho descoberto: o
s deuses não castigaram Néstor, castigaram-me .
Sebastiano franziu o sobrecenho.
Não te entendo, velho amigo. Do que está falando? Por que quereriam te castig
ar os deuses?
Me perdoe senhor, pelas coisas terríveis que me disponho a te contar, mas não
posso suportar mais esta carga. Tenho que limpar minha consciência para poder lim
par minha alma. Quando Néstor me trouxe a cabeça de Bessas, o santo, não disse nada. L
ogo falsifiquei seu horóscopo para que abandonasse a Antioquia imediatamente, ante
s que as autoridades viessem por meu moço. E o que é pior, ao levar Néstor na caravana
te converti em cúmplice de um crime capital. Estava ajudando um fugitivo, e isso
significava uma condenação a morte para você também no caso que nos prendessem.
Sebastiano olhou o ancião com as sobrancelhas enrugadas.
Não se preocupe velho amigo. Compreendo-o.
Há mais! Menti sobre seus horóscopos. Sobre todos eles! No dia que Ulri a che
gou a nosso acampamento nos subúrbios de Roma, menti sobre a mensagem das estrelas
porque queria que ficasse conosco por um interesse egoísta. Pensava que a pedra s
alival poderia aparecer novamente. E continuei mentindo! Continuei falsificando
as leituras, sempre pensando em mim. Prometi aos deuses que não voltaria a mentir,
mas então Néstor matou Bessas e tive que seguir falsificando minhas leituras. OH, s
enhor, em Antioquia as estrelas diziam que devia ir ao sul com Ulri a, mas eu te
disse que devíamos ir para o leste, à Babilônia.
A expressão de Sebastiano se tornou glacial e seu silêncio se fez mais profu
ndo. Ulri a se deu conta que mal que respirava.
Distorci a astrologia para satisfazer minhas necessidades pessoais prosse
guiu Timónides , e por isso as parcas empurraram meu filho a cometer um crime. A cul
pa é minha! Eu sou o único responsável pela morte de Bessas, do mesmo modo que sou cul
pado de ofender aos deuses por utilizar as estrelas em benefício próprio. Perdoe-me,
senhor. Escorregando do tamborete, Timónides caiu de joelhos e se agarrou aos torn
ozelos de Sebastiano . Por favor, diga-me que me perdoa!
O vento aumentou, arrastando consigo os ruídos da cidade e do tráfico do rio
, o aroma de panelas ao fogo e de bestas suarentas. Os gritos dos homens, o mart
elo dos ferreiros, o zurrar das mulas, tudo flutuava no ar enquanto Sebastiano G
alo olhava o velho astrólogo e assimilava o peso do que acabava de confessar.
Finalmente, com voz grave, disse:
Perdoo.
Obrigado, senhor! gritou Timónides, chorando de puro alívio. Levantou-se, seco
u as lágrimas e voltou a sentar-se no tamborete . Seu perdão é minha recompensa. E há algo
mais com o que fui recompensado. Agora sei o que teria devido saber todo este t
empo: quando a alma de Néstor foi levada ante os deuses para ser julgada, estes não
viram um homem que tinha cometido um assassinato mas uma alma doce, pura e simpl
es. Os deuses sabiam que Néstor era inocente! E por isso não está no inferno, mas no céu
, no seio do amparo divino.
Virou-se para a Ulri a.
Querida menina, sabia e, entretanto não me permitia ver. Que coisa tão maravi
lhosa é esta meditação, pois as respostas a meu sofrimento sempre estiveram dentro de
mim. Tem-me feito um presente magnífico que não utilizarei frivolamente.
Levantando-se de um salto, anunciou:
Agora vou fazer uma leitura honesta, senhor. E entrou como uma flecha em s
ua tenda.
Ulri a se virou para Sebastiano.
A dor atravessou seu coração. Tentou pensar em algo que dizer, procurou a ma
neira de consolá-lo, mas só foi capaz de pousar uma mão em seu braço para fazê-lo saber qu
e estava aí, que o amava.
Pois o semblante de Sebastiano era o de um homem cuja fé acabava de fazer-
se em pedacinhos.
A jovem mãe embalava sua filha paralítica enquanto sussurrava sua prece, «Rabi
no Judá, suplico que nos ajude», com os olhos fechados, sob o olhar silencioso de Ul
ri a, Miriam, Primo e seus homens. Havia tal desespero em sua prece, que sua voz
comovia os corações e provocava lágrimas em muitos olhos.
Querida Judá, não tenho ninguém mais a quem recorrer. Levamos dias sem comer. Não
temos teto nem família. Amanhã terei que me prostituir para que minha filha e eu po
ssamos sobreviver. Talvez devesse preferir a morte. Em meu caso é possível, mas minh
a filha só tem quatro anos. Quero que viva. Espírito deste lugar, se for Judá, toma mi
nhas pernas em seu lugar. Toma a vida que há em meus músculos e meus ossos e traslad
a aos membros inertes de minha filha. Suplico-lhe isso, libera a minha menina de
sta maldição e passe para mim, e te venerarei e pronunciarei seu nome enquanto viver
.
A jovem mãe levantou a cabeça e dirigiu seu pedido ao céu.
Somos uma causa perdida disse enquanto rompia a chorar . Possivelmente não me
reçamos a atenção divina. Mas não estou pedindo nada para mim! Por favor, salve a minha
filha!
Mamãe? disse uma voz débil . Mamãe?
Ao notar que sua filha se remexia em seus braços, a mulher abriu os olhos.
O que foi, filha?
Quem é esse homem?
Que homem?
A menina assinalou com um dedo. Todas as cabeças se voltaram. Ninguém viu ne
nhum homem entre as humildes tendas e palmeiras.
Ali não há ninguém, pequena disse a jovem mãe.
Tem mel! E tâmaras! A pequena lutou com os braços de sua mãe, impulsionou-se par
a frente e caiu no chão.
Filha! gritou a mãe elevando os braços.
Mas de repente a menina estava de pé e dava seus primeiros passos com umas
pernas que tinham permanecido estáticas durante um ano.
A multidão a olhava boquiaberta. A menina que um instante atrás não podia cami
nhar estava correndo. E o fazia, advertiu Ulri a, em direção à tumba de Judá.
Por que não me dá uma resposta clara? perguntou, cada vez mais frustrado, Seba
stiano . Fala em enigmas! Nem isso, porque os enigmas estão para ser decifradas. Sua
s palavras não têm sentido! levantou-se Já perdi suficiente tempo.
Espere, Sebastiano Galo
Sebastiano se virou. Os olhos cegos da Esquenta não o olharam enquanto uma
profecia saía de seus lábios anciões
Ao ouvir a profecia, Sebastiano estalou.
Agora sei que é uma farsante, pois o que acaba de dizer não acontecerá jamais! g
ritou . Garanto-lhe isso!
Sebastiano baixou os trezentos e trinta e três degraus convencido que suas
suspeitas tinham sido confirmadas. O que acabava de ouvir era uma profecia impo
ssível e, por conseguinte, soube então que não havia mensagens nas estrelas. Os deuses
não existiam. E tampouco os milagres.
Oxalá nos acompanhasse Raquel disse a esposa do pastor. Era a última família qu
e abandonava o oásis depois de ter optado por levar seu pequeno rebanho de ovelhas
a Jericó, onde acreditavam que estariam a salvo da iminente guerra.
Com o aumento, durante as últimas semanas, da presença militar romana, ninguém
duvidava que ia estourar uma luta.
Obrigado, Mina disse Raquel , mas fico.
Sentiremos sua falta. Mina recolheu um cordeiro extraviado e o sustentou c
ontra seu generoso peito . Nós adorávamos suas histórias. Todos. Terá que ver como desfrut
avam contigo os viajantes que se detinham para descansar aqui. Acredito que fica
vam tão cativados que permaneciam mais tempo do que tinham pensado.
Raquel tinha desfrutado muito contando histórias aos habitantes do oásis, ta
l como fez com uma moça chamada Ulri a anos atrás. Fiava relatos inspiradores de fé e
heroísmo para um público atento de pastores, coletores de tâmaras, carreteiros e viaja
ntes que paravam para descansar.
Não deveria ficar aqui só disse Mina enquanto seu marido fazia gestos, impaci
ente. Tinham que chegar a Jericó antes do anoitecer . Agora que Almah já não está, que des
canse em paz.
Tudo irá bem repôs Raquel . A guerra passará e o povo voltará para oásis. Vá tranq
Acha que será capaz de localizar a tumba? perguntou Sebastiano . Passaram nove
anos.
Ulri a colocou sobre os ombros o véu azul que cobria a cabeça e virou lentam
ente em círculo, tentando recordar pontos de referência de sua breve estadia naquele
lugar. A paisagem parda parecia implacável e inclemente. As flores da primavera t
inham murchado e secado. Divisou ao longe a cinta de água celeste, o mar de Sal on
de desembocava o rio Jordão.
Sim respondeu.
Sebastiano observou a desolada paisagem, o vale plano e as pronunciadas
colinas salpicadas de cavernas, e olhou de novo sua esposa. Bela, forte, decidid
a. Quanto a amava e admirava! Como tinha utilizado seu dom espiritual no Castelo
de Daniel para salvar a todo esse povo!
Depois de descer aos túneis descobertos por Ulri a, Sebastiano havia devol
vido a pedra a seu lugar e ido ao encontro do supremo sacerdote para explicar qu
e os cidadãos se dispersaram e não tinham a mínima intenção de ofender a Mardu . O supremo
sacerdote cravou nele um olhar penetrante mas só formulou uma pergunta:
Pensa ficar muito tempo na Babilônia?
Parto de volta a Roma pela manhã.
O supremo sacerdote olhou em redor, as tendas desocupadas, os restos de
comida pulverizados pelo chão, os abajures de azeite agonizantes: a evidência do êxodo
recente e apressado de uma grande multidão.
Mardu vela por todos nós disse . Confia que seu povo retorne ao templo e a b
eneficência de seu poder supremo. Boa viagem, Sebastiano Galo.
Para assombro de Sebastiano, os sacerdotes e a guarda do templo deram me
ia volta e empreenderam sua volta solene à Babilônia. Sebastiano compreendeu então por
que. Os sacerdotes não queriam converter em mártires os seguidores de Judá, pois isso
ganharia a simpatia popular.
Sebastiano se perguntava se a memória de Judá sobreviveria. Embora Ulri a ti
vesse insistido com todos para recordá-lo, o povo sempre necessitava de templos, ído
los e sacerdotes. Pensou no velho altar de sua terra natal, situado em um lugar
que os romanos chamavam Finisterre, «o fim do mundo». Uma antecessora chamada Gaia t
inha construído o altar muitos séculos atrás, e houve um tempo, conforme lhe tinham co
ntado, em que chegavam gente de todas as partes para render adoração. Os peregrinos
seguiam rotas ancestrais, dizia-se que de terras tão longínquas como a Gália e a Germâni
a, para orar frente ao altar de conchas de Vieira. Mas os bandidos e foragidos t
inham adquirido o costume de esperar os indefesos caminhantes para roubar e incl
usive tirar vidas, por isso as peregrinações foram minguando com o tempo e o altar d
e Gaia caiu no esquecimento.
Ocorreria o mesmo com Babilônia? Conseguiria os sacerdotes, como os bandid
os, atemorizar os fiéis o suficiente para fazê-los abandonar o rabino Judá?
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