A Fantasia em Lacan
A Fantasia em Lacan
A Fantasia em Lacan
A FANTASIA EM LACAN
Temos aqui, em ($◊a), o correspondente e o suporte do desejo, o ponto em que ele se fixa
em seu objeto, o qual, muito longe de ser natural, é sempre constituído por uma certa
posição do
sujeito em relação ao Outro. É com a ajuda dessa relação fantasística que o homem se
encontra e situa seu desejo. Daí a importância das fantasias.
Jacques Lacan 1
3.1
A via do matema
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1
O Seminário – Livro 5: “As Formações do Inconsciente”, 1999, Lição XXV-11/06/58, p. 455.
32
ou, dito de outro modo, o sujeito submetido à ordem simbólica e o (a) que na
teoria lacaniana aparece com diversos significados, podendo ser correlativo a um
objeto imaginário mas também como objeto real impossível, já que é
irremediavelmente perdido; objeto causa de desejo.
Relendo “Bate-se numa Criança”, Lacan mostra que o $ relaciona-se ao
momento em que surge o sujeito do significante, isto é, o momento quando o
sujeito desaparece sob o significante que passa a representá-lo. Esse momento de
castração significante é correlativo ao recalque primário- Uverdrängung -,
conceito freudiano, que Lacan escreve colocando a barra sobre o S → ($). A
causa do sujeito é ao mesmo tempo sua queda, como nos indica o autor em 1960:
Produzindo-se o significante no lugar do Outro ainda não discernido, ele faz surgir
ali o sujeito do ser que ainda não possui a fala, mas ao preço de cristalizá-lo. O que
ali havia de pronto para falar... , o que lá havia dsaparece, por não ser mais que um
significante.3
2
BROUSSE, M.H., “A Fórmula do Fantasma?$ ◊ a”, in Lacan, organizado por Gerard Miller,
1989 p. 80.
3
LACAN, J., “Posição do Inconsciente – no congresso de Bonneval”, (1960 retomado em 64), in
Escritos –1998, p. 854.
33
3.2
A constituição do sujeito
sujeito e objeto.
A primeira operação - a alienação - seria o resultado da entrada no campo
do Outro, do simbólico. Existem dois campos: o do sujeito e o do Outro. No
campo do sujeito temos primeiramente um puro ser. O campo do Outro é o do
sentido, do falante. Na interseção desses dois campos conseqüentemente está o
“nem um, nem outro” que Lacan ilustrou como não-senso ou dito de outro modo,
o inconsciente.
1o tipo – o vel excludente: “Eu vou para lá ou para cá”. Neste tipo de proposição
há necessidade de uma escolha e qualquer que seja esta, é exigida a exclusão da
outra alternativa.
2o tipo – o vel inclusivo ou amplo: “Vou viajar com passaporte ou carteira de
identidade”. Tanto faz a alternativa que se escolha, pois em qualquer hipótese
nada se perde.
3o tipo – o vel que se situa na reunião entre dois conjuntos. É importante ressaltar
que reunião é diferente de adição. Na lógica dos conjuntos, o resultado da reunião
seria contar os elementos exclusivos de um conjunto, mais os exclusivos do outro
e também os elementos comuns a ambos, com o cuidado de não contá-los duas
vezes. A reunião comporta então que, seja qual for a escolha que se opere, haverá
conseqüentemente alguns que são nem um, nem outro, de tal modo que não se
perde apenas o não escolhido; pois o que se escolhe vem decepado de uma parte.
Qualquer que seja a escolha aí, portanto, implica sempre numa perda. Este último
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tipo de vel foi o que Lacan utilizou para ilustrar a operação de alienação.
“... O vel que dizemos de alienação só impõe uma escolha entre seus termos ao
eliminar um deles, sempre o mesmo , seja qual for esta escolha. O que está em jogo
limita-se, pois, aparentemente, à conservação ou não do outro termo, quando a
reunião é binária.” 4
Esse “ou” alienante não é uma arbitrariedade; Lacan faz uma analogia com a
expressão utilizada na linguagem do tipo “a bolsa ou a vida”. Trata-se de uma
“escolha forçada”, diz Lacan, pois, de que vale a bolsa sem a vida? Este autor foi
buscar em Hegel, a justificativa desse apelo ao vel alienante, que se presta muito
para ilustrar o modo como o ser humano entra no mundo pela via da escravidão.5
O sujeito, portanto, na sua constituição ou escolhe a vida ou escolhe a
liberdade. Se escolher a vida, tem a vida amputada de liberdade e se escolhe a
liberdade, perde as duas imediatamente. Enfim, o sujeito tem que escolher a vida
, ou seja, o sentido e entrar na função significante do campo do Outro, ao preço de
permanecer como puro ser vivente, vegetando, como no caso de certas patologias
graves (autismos precoces talvez). Mas escolher a vida, implica sempre numa
perda e é assim que tudo começa. Na verdade não temos escolha...
4
LACAN, J., “Posição do Inconsciente” (1960), in Escritos- 1998, p. 855.
5
LACAN, J., Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964), 1988, p. 201.
35
“Aqui é por sua partição que o sujeito procede a sua parturição. ... Nada na vida de
ninguém desencadeia mais empenho para ser alcançado.”8
6
FREUD, S., “ A Negativa” (1925), ESB-1976,vol.XIX.
7
LACAN, J., Os Quatro Conceitos Fundamentais Da Psicanálise, Cap. XVI, p. 196.
8
LACAN, J., “Posição do Inconsciente” (1960), in Escritos- 1998, Jorge Zahar Ed., p. 857.
9
LACAN, J., “Posição do Inconsciente” (1960), in Escritos- 1998, Jorge Zahar Ed., p. 858.
36
“O sujeito estruturalmente não sabe o que ele deseja. O fantasma indicando como
gozar, dá uma resposta ao desejo e oculta sua nesciência originária, vindo ao sujeito
sempre do Outro.” 12
3.3
$ ◊ a: Construção axiomática
10
LACAN, J., Os quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, 1985, cap. XVI, p. 203.
11
Ibid.
12
BROUSSE, M. H, “A fórmula do fantasma? $◊a”, in Lacan (livro organizado por Gérard
Miller), 1989, p.86.
37
imaginária da fantasia faz dele objeto imaginário e outro que o situa no real, ou
seja da ordem do impossível, já que perdido.
Esta construção lacaniana tem a função de estabelecer um texto que conta a
história do sujeito, onde o mesmo está sempre numa posição de submetimento, de
humilhação, à mercê do Outro. Trata-se da divisão irremediável de todo sujeito
falante que Lacan teorizou através das operações de alienação e separação, como
vimos.
Como construção axiomática, a fantasia fundamental não foi, entretanto,
arrolada por Lacan como um conceito fundamental da psicanálise, tal como os
quatro termos introduzidos por Freud – o inconsciente, a repetição, a transferência
e a pulsão – , e retomados por ele no seminário 11. Mas à medida que o ensino de
Lacan avançava, sua importância foi se acentuando. A construção da fantasia
fundamental e sua dita travessia, foram se evidenciando como a alternativa
lacaniana para o término da análise , em detrimento de uma teoria do fim de
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13
BROUSSE, M. H, “A formula do fantasma? $◊a”, in Lacan (livro organizado por Gérard
Miller), 1989, p.90.
38
vigor fazendo com que não se possa falar em construção da fantasia, pois o
destino é outro.14
3.4
A fantasia no “Kant Com Sade”
A experiência nos mostra que Kant é mais verdadeiro, e eu provei que sua teoria da
consciência, como ele escreve da razão prática, só se sustenta ao dar uma
especificação da lei moral que, examinada de perto, não é outra coisa senão o
desejo em estado puro, aquele mesmo que termina no sacrifício, propriamente
falando, de tudo que é objeto do amor em sua ternura humana – digo mesmo, não
somente na rejeição do objeto patológico, mas também em seu sacrifício e em seu
assassínio. É por isso que eu escrevi Kant com Sade.
Jacques Lacan 15
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3.4.1
Lacan aproxima o filósofo do escritor libertino
14
TOLIPAN, E., dissertação de mestrado: A Estrutura da Experiência Psicanalítica, UFRJ-1991.
15
Seminário 11 – Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964), 2a edição brasileira
corrigida-1985, cap. XX, p.260.
14 FREUD, S., “Uma Criança É Espancada – Uma Contribuição ao Estudo da Origem das
Perversões Sexuais”, ESB-1976, vol. XVII.
17
J. A. Miller chega a afirmar que “Kant com Sade” é o texto lacaniano paradigmático da fantasia,
in Lacan Elucidado, p. 154.
18
MILLER, J., Op. Cit., p. 157.
39
19
ANDRÉ, S., A impostura Perversa p. 21.
20
Holbac, Diderot, D’alembert e outros. Holbac, autor do Sistema da Natureza, foi uma referência
freqüente na obra de Sade.
21
ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. (1944), J. Zahar Ed..
40
através do século XIX abrindo caminho às idéias de Freud. Esta revolução foi
possibilitada por Kant, que separou o Bem moral da felicidade. É desse modo que
Lacan inicia o famoso Kant com Sade, fazendo uma referência à psicanálise.
Kant para isto utiliza significantes da língua alemã, a saber: O wohl é o bem
do princípio do prazer, do bem-estar; o wohl é que determina o sujeito
patológico. Quando Kant refere-se ao sujeito da Razão Pura, ele substitui o bem-
wohl pelo bem - das Gute26. A partir do momento em que o sujeito submete-se a
lei moral, o que ele vai encontrar é o bem das Gute, objeto da lei moral, que
implica na falta completa de objetos. O wohl refere-se a satisfação empírica, dos
sentidos (olhos, tato, gosto, etc.), pertence ao campo dos fenômenos e inclui os
objetos. Kant conclui, que todos os objetos que podem proporcionar prazer ao
homem variam de acordo com a singularidade em relação aos sentidos, portanto,
não haveria uma lei de tal bem que pudesse ser enunciada, já que a
universalidade é necessária, em Kant, para a instauração de uma lei moral.
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“Age de maneira tal que as máximas da tua vontade possam sempre, ao mesmo
tempo, servir como princípios de legislação universal".27
25
MARCONDES, D., Iniciação à História da Filosofia – dos Pré-Socráticos a Wittgensten,
p.209.
26
GROSRICHARD, A., seminário realizado na USP sobre “Kant com Sade” de 17/02 a 23/02 de
1990 (inédito), anotações de aula.
27
KANT, E., A Crítica da Razão Prática, Biblioteca do Pensamento Vivo, 1967, p.104.
42
“...Por conseguinte podemos ver a priori que a lei moral como princípio de
determinação da vontade, pela mesma razão que ela causa danos a todas as nossas
inclinações, deve produzir um sentimento que pode ser chamado de dor. E este é o
primeiro e talvez o único caso em que nos seja permitido determinar, por conceitos
a priori, a relação de um conhecimento que vem deste modo da razão pura prática,
com o sentimento do prazer ou da dor”.28
“Em suma, Kant tem a mesma opinião de Sade. Pois, para atingir absolutamente
das Ding, para abrir todas as comportas do desejo, o que Sade nos mostra no
horizonte? Essencialmente a dor. A dor de outrem e, igualmente a dor própria do
sujeito, pois são, no caso, apenas uma só e mesma coisa. O extremo do prazer, na
medida em que consiste em forçar o acesso à Coisa, nós não podemos suportá-lo”.
29
28
KANT, E., Crítica Da Razão Prática, cap. Terceiro: “Dos Impulsionadores Da Razão Pura
Prática”, p. 76.
29
LACAN, J., Livro 7- A Ética da Psicanálise (1959-1960), 1997,cap. VI: “Da Lei Moral”, p. 102.
43
Lacan constrói então uma máxima sadeana, que nortearia todo o pensamento
em vigor no romance “A Filosofia Na Alcova” de Sade, como um artifício para
fazer sua crítica a Kant. Esta máxima sadeana, construída pelo autor, ironicamente
mantém as mesmas características da lei moral kantiana, ou seja: uma lei sem
objeto que determina o sujeito de um modo universal e fora de todo interesse
patológico. Eis a máxima:
“Tenho o direito de gozar do teu corpo, pode dizer-me qualquer um, e exercerei
esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das extorsões que me
dê gosto de nele saciar”.30
30
LACAN, J., “Kant com Sade” in Escritos, p. 780.
31
Op. Cit., p. 780.
44
uma enunciação do próprio sujeito, de foro interior e não uma voz que vem de
fora, do lugar de Outro. Lacan, por sua vez, vai nos mostrar que, na sua máxima
sadiana o Outro não só está presente, como também é ele que nos impõem os
imperativos contidos na máxima (“Tenho o direito de gozar...” e “sem que
nenhum limite me detenha...”). Essa idéia correlaciona-se diretamente ao
conceito de Supereu desenvolvido na teoria psicanalítica de Freud. Trata-se de
uma divisão narcísica, uma divisão estrutural fundamental onde o sujeito não é
apenas ele mesmo mas também um Outro. Lacan denuncia atrás da aparente
unidade do sujeito kantiano, o sujeito dividido que aparece ao mesmo tempo no
lugar do Outro e no lugar da subjetividade singular.
Quando Lacan articula a construção de sua máxima através de Sade, ele
enfatiza as suas equivalências com a máxima kantiana (a Lei Fundamental da
Razão Prática Pura). Porém, na máxima sadeana, aparece claramente o que se
esconde na máxima kantiana, ou seja: a divisão do sujeito. Em Kant não há
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divisão do sujeito, pois tudo na sua obra é construído para mascarar a divisão. A
máxima sadeana, pelo fato “de se pronunciar pela boca do Outro, é mais
honesta32 do que a máxima kantiana, que recorre à “voz interior”. A “boca do
Outro”está presente na máxima construída por Lacan: “... pode dizer-me
qualquer um....”
O discurso do direito ao gozo instaura um Outro livre que se arroga o direito
de subjugar ferozmente, através de coerção, seu semelhante – o outro -. O difícil,
diz Lacan33, não é tanto a violência da coerção presente no discurso do direito ao
gozo; a maior dificuldade é não dizer sim ao suposto direito do Outro, ao gozo.
Isto é: em sua estrutura, o sujeito humano procura um mestre para que sua vontade
seja feita. Esta é a própria posição do sujeito na fantasia fundamental - submissão
em relação a um Outro - e o difícil é sair dessa posição. Esse Outro que coloco
fora de mim é também meu próprio desejo, por isso me submeto. O sujeito é, ao
mesmo tempo, sujeitado e autor de sua própria sujeição. A dificuldade está em
reconhecer que essa liberdade absoluta conferida a um Outro fora de si, é sua
32
LACAN, J., “Kant com Sade”, p.782.
33
Op. Cit., p. 782
45
própria liberdade; é difícil por que ficar livre, sem a direção do mestre provoca
angústia.34
O sujeito é ignorante da essência do seu ser, colocando a questão para o
35
Outro (quem sou eu?), para que ele lhe responda “és isso...”. Esse “tu és” da
parte do Outro é equivalente a uma desaparição do sujeito como tal ou, dito de
outro modo, o sujeito desaparece, em termos estruturais, no momento em que se
faz objeto do desejo do Outro.
Lacan, teorizando sobre esse gozo que se visa no Outro, indica a
precariedade desta posição; pois ao se fazer suporte do gozo do Outro,
conseqüentemente, o sujeito vai desaparecendo sob os tormentos. A posição
estrutural do sujeito, em sua fantasia fundamental, portanto, é fazer existir um
Outro que possui uma liberdade absoluta, uma “horrível liberdade”36, em
oposição ao próprio Eu do sujeito que se submete. Podemos identificar neste
ponto uma certa similaridade entre o caráter dessa construção lacaniana, com a
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34
Grosrichard desenvolve bem essa questão interpretando Lacan com muita clareza em seu
seminário.
35
Lacan joga com a homofonia do “tu es” (tu és- em português) e “tuer” (matar- em português).
36
LACAN, J., “Kant com Sade”, p. 783 .
37 FREUD, S., “O Ego E O Id” (1923), ESB-1976, vol. XIX, p. 70-71.
46
angústia. O agente da cena sádica, por sua vez, embora não saiba, é o objeto no
sentido de ser o instrumento de gozo de um Outro.
O objeto causa de desejo revela-se com Lacan, apesar de conservar a
opacidade do transcendente; pois esse objeto é estranhamente separado do
sujeito39, tratando-se de um objeto que se furta a qualquer determinação da
estética transcendental, tal como uma voz. Lacan faz uma referência a uma voz no
rádio que convocava os franceses, a um suplemento de esforço em prol da
revolução de 1789: “Franceses, um esforço a mais se quereis ser republicanos”.
Este apelo, que constava também em panfletos revolucionários deste
período, encontra-se textualmente presente no livro “A Filosofia Na Alcova”,
antecedendo a preleção do personagem Mirvel sobre a religião40. Na tentativa de
sustentar a defesa dos ideais da revolução francesa, Sade aponta a necessidade de
neutralização do poder da Igreja Católica, subvertida e denegrida em sua escrita,
por ser tomada como uma ameaça aos objetivos republicanos.
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Ao equiparar o objeto causa de desejo à uma voz que vem não se sabe de
onde, Lacan está dizendo que esse objeto pode ser percebido; pois uma voz tem
uma dimensão fenomenal, apesar do objeto voz não se reduzir a essa dimensão.
Kant também se refere a uma certa voz: a “voz da consciência”, mas por outro
lado, enfatiza na sua definição do sujeito moral, a inexistência de qualquer objeto
em sua “vontade boa”. O objeto moral, o Bem, na filosofia de Kant, não é um
objeto fenomenal, é uma posição subjetiva.
A tese de Lacan é mostrar, através da fantasia sadeana, que há sim um objeto
na ética kantiana, porém um objeto que não é o da experiência; é de uma outra
ordem diferente da ordem fenomenal. Segundo Miller, Lacan quer mostrar que é a
partir desse objeto escondido que podemos conseguir abrir mão da experiência e
de nossas inclinações. Que há um objeto, é o objeto pequeno a”.41
Lacan aponta, em Kant, o objeto da lei moral remetendo-o à figura de Deus,
como aquele que impõe o sacrifício aos homens. Se a moral kantiana foi aceita, é
porque se inscreve numa tradição cristã, onde os sujeitos estão acostumados a se
sacrificarem em favor de um Outro; onde o que o cristão tem diante dos olhos,
finalmente, é a imagem do sofrimento do filho em favor do Pai.
38
FREUD, S., “O Problema Econômico do Masoquismo” (1924), ESB-1976, Vol. XIX, p. 209.
39
“Kant com Sade”, p. 783.
40
SADE, MARQUÊS DE, A Filosofia Na Alcova, p. 143.
47
É no lugar do Outro, do Deus místico, que Kant propõe a lei. Para Sade, por
outro lado, não existe Deus, em seus textos Deus é substituído pela Natureza.
Quando se refere a Deus Sade diz :“um ser supremo em maldade”.
Lacan situa a presença do objeto, na fantasia sadeana construída por ele
- a ◊ $ -, na verdade uma inversão do matema da fantasia fundamental - $ ◊ a -
onde a punção “◊” se lê “desejo de”, devendo ser lido em ambos os sentidos
porém, tendo como característica uma não-reciprocidade absoluta.42 O autor visa
com essa construção, apontar o objeto que estaria “escondido” em Kant.
Lacan utiliza a expressão “fetiche negro” quando o gozo se petrifica no
objeto e é justamente aí, que ele situa o carrasco da experiência sadeana: na
posição de objeto que completa o Outro, como o sapato para o fetichista.
O “negro” que adjetiva o fetiche, neste texto lacaniano, remete-nos à morte
e ao luto, temas coerentes com o cenário sadeano, tal como no livro “Os 120 Dias
de Sodoma...", onde Sade colore de negro a noite e os subterrâneos, por onde
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“O próprio da perversão é que a castração do Outro seja recusada e isso não se faz
sem que o sujeito se coloque a serviço desse Outro, supereu cruel, na vassalagem
fálica, que o reduz a um objeto...”43
41
MILLER, J. A., Lacan Elucidado, p.180.
42
MILLER, J. A., Lacan Elucidado, p.785.
48
objeto; mas para o sujeito humano é algo inatingível, pois como diz Lacan: “ele já
começa derrotado, fadado à impotência”.44 Gozar ao limite não é uma maneira de
encontrar um super prazer, mas é colocar-se numa posição completamente isolada
do prazer ; é desfalecer. No gozo trata-se de excesso, uma infração do princípio do
prazer. O gozo está mais para o lado da pulsão de morte. O prazer, ao contrário, é
sustentar o mais baixo nível de tensão possível, que Lacan chama neste texto de
“homeostase”.
Prazer e gozo, portanto, são antinômicos. Obter um estado permanente de
homeostase é um ideal humano, mas é difícil viver a homeostase. Lacan coloca a
função da fantasia como o que permite reconciliar prazer e gozo: “... a
fantasia torna o prazer apropriado ao desejo”.45 A palavra desejo não seria a
mais adequada neste lugar, melhor seria dizermos gozo, ou seja: a fantasia faz o
prazer próprio ao desejo como vontade de gozo46; permitindo conciliar prazer e
gozo. Essa conciliação, desde Freud, é a função clássica da fantasia.
No texto de 191947, Freud fala de “satisfação masturbatória” e de
“descarga num ato de agradável satisfação auto-erótica”, quando se refere à
43
RUDGE, A. M., “Versões Supereu e Perversão”, p. 14.
44
“Kant com Sade’, p. 784.
45
Op. Cit., p.785.
46
Miller analisa bem essa passagem do Kant com Sade, em seu livro: Lacan Elucidado, p. 207.
47
FREUD, S., “Uma Criança É Espancada” (1919), vol. XVII, ESB-1976.
49
3.4.4
A fantasia na perversão: a ◊ $
A fantasia sadeana permite ir mais além passando pela dor e esse desejo,
perseguido pelo perverso, denomina-se “vontade de gozo”. Nos romances de
Sade, os verdugos sempre perseguem o gozo de um modo duro frente às suas
vítimas. O desejo do agente, na fantasia sadeana, manifesta-se como vontade de
gozo, apesar de todos os inconvenientes que isso pode significar para ele, para a
vítima e para a sociedade.
Na atuação perversa, como esclarece Rudge, “... está envolvida uma tirania
que busca exercer e que mantém com o desejo um laço paradoxal. Há uma certa
incongruência em falar de desejo perverso embora sem dúvida o desejo esteja
presente. O perverso trabalha para não desejar, já que o desejo remete para a
angústia da castração, da qual todo seu esforço é para se evadir”.49
O sádico na posição de objeto - instrumento (como pequeno a) e com sua
vontade de gozo, faz surgir na vítima o ponto puro do sujeito barrado ou sua
divisão. Essa é a estrutura perversa em Lacan.
48
Na ESB. como “fonte de prazer”, op. cit., p. 226. Na Amorrortu-1979: “fuente de parecido
goce”, Vol. XVII, p. 178.
49
“Versões do Supereu e Perversão’, p.13. (Os grifos são meus).
50
“... Não é tanto o sofrimento do outro que é procurado na intenção sádica... mas sua
angústia, sua existência essencial como sujeito em relação a essa angústia, eis aí o
que o desejo sádico pensa fazer vibrar.”54
O que caracteriza o desejo sádico é que ele não sabe que, no cumprimento
de seu ato, procura “fazer-se aparecer a si mesmo como puro objeto, fetiche
50
Conforme o famoso livro La Vennus de La Pielle, de Masoch, S..
51
MILLER, J. A., Lacan Elucidado, p. 196.
52
LACAN, J., O Seminário livro 10: A Angústia (1962-1963), inédito. Publicação para circulação
interna do Centro de Estudos Freudianos do Recife- tradução da transcrição realizada pela
Associação Freudiana Internacional, 1997.
53
Op.Cit., lição VIII - 16 de janeiro de 1963.
54
Ibid.
51
busque contrariá-lo.”
“Se há algo que esse fantasma sugere é, de certo modo, o caráter instrumental a que
se reduz a função do agente. O que faz escapar, de alguma forma, salvo de relance,
o objetivo de sua ação, é o caráter de trabalho de sua operação”.60
55
Ibid.
56
ANDRÉ, S., A Impostura Perversa, 1o cap., p. 24.
57
Seminário 10, lição VIII – 16 de janeiro de 1963.
58
Seminário 10, lição XII – 27 de fevereiro de 1963.
59
Seminário 10, lição XIII – 6 de março de 1963, (grifos meus).
60
Seminário 10, lição XIII – 6 de março de 1963.
52
Esta forma de gozar dá trabalho porque, na cena onde atua, é preciso que o
parceiro se angustie. Caso não ocorra este efeito, a cena se desmancha e a angústia
sobrevém ao sádico. Um exemplo no texto de Sade, quando Epíteto com a perna
cortada pelo verdugo sadeano diz: “veja cortou-a”. A cena perversa se desfaz
uma vez que não ocorre a divisão do lado da vítima. Ou seja, se a vítima é
estóica, não se produz então o gozo sadeano.
Enfim, toda explanação de Lacan a respeito do masoquismo e do sadismo
converge no sentido de apontar que essas duas perversões, não têm entre si uma
relação de reversibilidade.
Lacan nos indica no seminário da Angústia, e que nos interessa para a
compreensão do difícil “Kant com Sade”, a existência de um terceiro termo
sempre presente no jogo perverso.
“Onde está esse outro do qual se trata? Exatamente por isso é que foi produzido
neste círculo o terceiro termo sempre presente no gozo perverso; a ambigüidade
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61
LACAN, J., seminário 10, lição XIII – 6 de março de 1963.
53
ESQUEMA 1 :
O ponto inicial do grafo é o desejo (d) que vai conduzir a uma espécie de
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62
‘Kant com Sade’, p. 786.
54
mulheres de uma beleza idêntica. Do mesmo modo não há diferenças entre os que
ocupam a posição de sujeitos, isto é: sempre estão sujeitados diante de um Outro.
Este é o caráter “estático” da fantasia fundamental, ao contrário da dinâmica do
sintoma. Ao longo de uma análise, os sintomas do analisando mudam,
apresentam-se de forma dinâmica, por outro lado a fantasia fundamental
permanece estática. Apenas no final de análise é que pode haver mudança de
posição do sujeito frente à sua fantasia. Não se trata de curar a fantasia, mas trata-
se de ir buscar o que se esconde atrás dela, a “máquina que a constrói”.64 Essa é a
idéia contida na noção de “travessia da fantasia” construída por Lacan.
Na fantasia sadeana, a posição do carrasco que corresponde à posição do
objeto a, por sua vez, apresenta uma variedade. Quando Sade discorre sobre os
carrascos, em “Juliette” e, sobretudo sobre os quatro atormentadores em “Os 120
dias de Sodoma e Gomorra”, ele relata diferenças qualitativas, contrariamente à
descrição das vítimas que são apresentadas sempre de forma muito similar. A
indiferenciação do lado das vítimas corresponde à posição de puro sujeito do
significante e a variedade do lado dos carrascos corresponde a esta posição, do
objeto a da fantasia 65.
63 Ibid.
64
MILLER, J. A ., Lacan Elucidado, p. 212.
65
A. Grosrichard desenvolve este ponto em seu seminário.
55
ESQUEMA 2:
Neste grafo é o próprio Marquês de Sade que fica na posição de sujeito “$”,
pois ele permaneceu em grande parte de sua vida na prisão, subtraído do mundo
pelo capricho de seu carrasco, na leitura de Lacan, sua própria sogra -a Sra. De
68
Lacan faz referência à “coerção moral implacavelmente exercida pela Presidente de Montreuil”
no “Kant Com Sade”, p. 790.
69
“Kant Com Sade”, p. 791.
70
Grosrichard interpreta deste modo, em seu seminário, a inclusão de tais versos no “Kant Com
Sade”.
71
LACAN, J., “Kant Com Sade”, p. 798.
57
“Filosofia na Alcova”, ou seja: que o desejo não tem regras; é um desejo livre!
Pretender “educar o desejo” é sujeitá-lo a algumas regras, ainda que excêntricas –
defensoras do direito ao gozo –, como propôs Sade. Essa pretensão é o limite do
Marquês indicado por Lacan.
No final deste instigante texto, o autor sela a questão de Sade como
definitivamente afastado da estrutura da perversão e é com esses dizeres que
termina o seu polêmico “Kant com Sade”:
72
MILLER, J. A., Lacan Elucidado, p. 213 (grifos meus).
73
Ibid.
74
“Kant com Sade”, p. 801.
58
3.4.5
A fantasia e o desejo
“Se nos leram até esse ponto, sabem que o desejo apóia-se numa fantasia da qual
pelo menos um pé está no Outro, e justamente o pé que importa mesmo, e
sobretudo, se vier a claudicar.”77
“O que lhes ensino aqui são noções fundamentais, alfabéticas, é mais uma rosa dos
ventos, uma tábua de orientação... . Isto supõe que, munidos de tal tábua de
orientação, vocês procurem passear por seus próprios meios pelo mapa, e que
submetam meu ensino à prova de uma leitura extensa da obra de Freud.79”
75
“Kant Com Sade”, p. 802.
76
LACAN, J., “Kant com Sade”, p. 792
77
LA, J., “Kant com Sade”, p.792.
78
Ibid.. (grifos meus).
79
LACAN, J., O Seminário – livro 2: O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise, lição
de 1/06/1961: “A análise Objetivada”, 1995, p. 313.
80
LACAN, J., O seminário – livro 7: A Ética da Psicanálise (1959-1960), p.69.
59
“Não é ele que reencontramos, mas suas coordenadas de prazer; é nesse estado de
ansiar por ele e de esperá-lo que será buscada, em nome do princípio do prazer, a
tensão ótima abaixo da qual não há mais nem percepção nem esforço.83”
81
Vol. V, ESB-1976, p. 603 e p. 636.
82
QUINET, A., esclarece de forma sucinta essa construção psicanalítica em seu livro: A
descoberta do Inconsciente – Do Desejo ao Sintoma (2000), p. 81.
83
LACAN, J., O seminário – livro 7: A Ética da Psicanálise (1959-1960), p.69
84
QUINET, A, “A Coisa Escópica do Desejo”, in Um Olhar A Mais – ver e ser visto na
psicanálise, 2002, capítulo 3, p.59.
85
LACAN, J., seminário 10, lição de 19 de junho de 1963.
60
Este autor afirma ser a Psicanálise “... uma prática que reconhece no desejo
a verdade do sujeito”87, no entanto, alerta-nos para a necessidade de não
desconhecermos os percalços que o desejo envolve. O autor parte para a distinção
entre prazer e gozo - o além do princípio do prazer - que na teoria freudiana é
associado à pulsão de morte.
86
LACAN, J., Op. cit., (grifos meus).
87
“Kant com Sade”, p.796.
88
Op. Cit., p.797.
89
“Kant com Sade”, p. 799.
61
90
“Kant Com Sade”, p. 798.
91
“Kant com Sade”, p. 798.
92
Ibid.
62
93
Epicurista: partidário da doutrina de Epícuro, filósofo grego, que apregoa os prazeres do amor e
da mesa.
94
Estóico: impassível ante a dor e a adversidade.
95
FREUD, S., “Além do princípio do Prazer” (1920), ESB-1976, Vol. XVIII, p. 19.
96
“Kant Com Sade”, p. 797.
97
“Kant com Sade”, p. 798.
98
Ibid.
63
“... Pois bem, o passo dado por Freud, no nível do princípio do prazer, é o de
mostrar-nos que não há Bem Supremo – que o Bem Supremo, que é das Ding,
que é a mãe, o objeto do incesto, é um bem proibido e que não há outro bem”. 99
3.5
Fantasia fundamental
“Ela [a fantasia] é o contexto que coordena nosso desejo, mas é ao mesmo tempo,
uma defesa..., um anteparo que esconde o vazio, o abismo do desejo do Outro”.100
O paradoxo que a fantasia traz em si, apontado por este autor, é que: o
desejo é uma defesa contra o desejo do Outro, contra esse desejo puro de gozo, ou
ainda dito de outro modo, desejo de gozar da Coisa. Zizek afirma que “o desejo
estruturado pela fantasia é uma defesa contra esse desejo ‘puro’ e
transfantasístico (isto é, a pulsão de morte em sua forma pura)”.
99
LACAN, J., Livro 7 – A Ética da Psicanálise (1959-1960), cap. “Introdução da Coisa”, p. 90
(grifos meus).
100
ZIZEK, S., Eles Não Sabem O Que Fazem - O Sublime Objeto da Ideologia (1990), cap. V - A
fantasia como anteparo contra o desejo do Outro, p. 116.
101
ZIZEK, S., Ibid.
64