Katiaabud
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nacional:
os programas de 1931
Rev. Bras. de Hist. S. Paulo v.13, nº 25//26 pp. 163-174 set. 92/ago. 93
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Nos anos 20 a modernização era tida como um desafio para o país.
As disputas entre as oligarquias regionais eram vistas como uma ameaça
à unidade nacional, e conflitos armados, como os dos tenentes, pareciam
demonstrar o perigo de rompimento entre os vários "brasis" e a
necessidade de preservar suas "forças sociais, seus valores culturais,
tradições, heróis, santos, monumentos, ruinasu (IANNI, 1990).
Tais preocupações fizeram da década de 20 um período fértil de
manifestações e debates de caráter social e cultural, nas quais a Educação
era um tema freqüente. Surgiam propostas inovadoras para o sistema
educacional que vinha se constituindo num pólo de interesse de
intelectuais e políticos e ocupando espaços significativos nos órgãos de
opinião pública. . A instrução era entendida como um instrumento
importante para a manutenção do Estado Nacional e da identidade coletiva
do povo brasileiro.
Depois de 1925 intensificaram-se as discussões sobre o ensino
secundário. Em 1926, o jornal O Estado de S. Paulo realizou um inquérito
sobre a educação que alcançou grande repercussão. Em 1929, a
Associação Brasileira de Educação (ABE) promoveu outro inquérito e a II
e III Conferências Nacionais de Educação deram importância, em seu
temário, ao ensino secundário.
Ele se tomou assunto· freqüente na imprensa, objeto de palestras e
conferências, e um número crescente de revistas especializadas publicavam
projetos e propostas para a organização da escola média. Mais que isso,
um grupo de intelectuais de prestígio, entre os quais se encontravam
Fernando de Azevedo, Carneiro Leão, Licínio Cardoso, procuravam
repensar o papel da educação e levar o debate à população. Pretendiam a
expansão da escola secundária, para que ela pudesse atender setores da
sociedade que se expandiam, como as classes médias urbanas. A escola
deveria ser instrumento de preparação dos novos segmentos da sociedade
e para cumprir tal papel ela precisava. se transformar. Eles deixavam muito
claras suas pretensões em relação ao sistema escolar: a finalidade da escola
era a de formar cidadãos e para alcançar esse objetivo era preciso que ela
divulgasse para sua clientela "as idéias civilizadas" produzidas "pelas
verdadeiras elites" (LEAO, 1927). Na realidade pensava-se na transmissão
de um saber ucivilizatório", que formasse "aquela categoria social que
·fica "entre o povo e os dirigentes do país", tanto na política como na
ciência. As idéias, por meio deles, filtram-se, descendo continuamente das
camadas superiores até os mais humildes: são eles que mantêm coeso o
corpo da nação" (NADAI, 1988, p.235).
A reforma do ensino era também parte do projeto político da elite
paulista. Nos primeiros anos da República desenvolveu•se com força a ·
idéia de uma "nação paulista". Políticos de São Paulo ocupavam altos
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escalões do governo federal e o Estado pretendia, a todo o custo, manter
a hegemonia na Federação, valorizando, entre outros aspectos, suas
próprias tradições. Entre os instrumentos para a manutenção do poder,
concebeu a formação dos novos quadros políticos nos recém-criados
Ginásios do Estado.
A implantação pelo movimento de 30 de um novo regime político
minimizou a influência que os Estados mais ricos, como Minas e São Paulo,
exerciam e obstaculizou a crescente hegemonia de tais Estados na
Federação. Assim, quando em 1931 foi realizada a Reforma do Ensino que
tomou o nome do Ministro da Educação, Francisco Campos, o que
f armava seu núcleo era a manutenção e fortalecimento da unidade da
Nação Brasileira.
Com a Reforma Francisco Campos (Decreto 19.890/31), o ensino
secundário passou a ter dois cursos seriados: o fundamental e o
complementar. O curso fundamental tinha por objetivo dar a fonnação geral
ao estudante, com duração de cinco anos. O curso suplementar era
obrigatório para os candidatos aos cursos superiores de Ciências
Jurídicas, Medicina, Farmácia e Odontologia, Engenharia e Arquitetura,
como também para a Faculdade de Ciências e Letras. que ainda não existia.
Era um curso nitidamente pré-universitário.
O decreto 19.890/31 impunha a seriação obrigatória para todas as
escolas do país, em todos os estabelecimentos de ensino secundário, e
incumbia comissões organizadas pelo Ministério da Educação de elaborar
os programas de ensino das disciplinas, que também seriam unificados para
o Brasil inteiro. O decreto foi publicado em l º de abril de 1931 e previa
sua imediata implantação. Apesar disso, os programas somente ficaram
prontos em junho daquele ano. Vinham acompanhados de "Instruções
Metodológicas", que indicavam os objetivos das disciplinas e as técnicas
de trabalho que o professor deveria utilizar. Sugeriam também qu~ o
conteúdo (que não era muito diferente dos programas anteriores, do
Colégio Pedro D e dos ginásios estaduais) fosse tratado de uma forma
que indicasse a tendência "modemizadora,, dos intelectuais brasileiros,
que sonhavam com uma democracia à americana.
A História era tida como a disciplina que, por excelência, formava
os estudantes para o exercício da cidadania e seus programas incorporaram
essa concepção. Concepção que já estava presente nos programas do
Pedro II, quer nos de História Universal, copiados dos franceses, quer nos
de História do Brasil, derivados do programa de João Ribeiro, vencedor
do concurso do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
As "Instruções Metodológicas" que acompanhavam o programa
de 1931 explicitavam os objetivos do ensino de História, indicavam
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técnicas para o professor desenvolver o programa e aconselhavam quais
aspectos da disciplina deveriam ser enfatizados.
Os objetivos esclareciam com nitidez o que se pretend_ia da História
cpmo componente curricular:
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desenvolvimento. O conhecimento de uma determinada História poderia
ser um precioso auxiliar para a solução de tais problemas.
Fica evidente também, na redação dos objetivos, a compreensão da
História como um produto intelectual voltado para a formação política do
alunado. Isto significa que a formação do cidadão era a preocupação
fundamental dos legisladores.
Cabe aqui a retomada de alguns aspectos, entre os quais a
historicidade do conceito de cidadania. Naquele momento, cidadão era o
participante, como membro de grupos dirigentes, da vida política. Muito
embora a legislação consagrasse a igualdade de todos perante a lei, isto
não passava de um sonho. A clientela da escola secundária era originária
das camadas da população que tinham acesso à ·participação na vida
política. ·Era muito remota a possibilidade de crianças e adolescentes das
classes proletárias alcançarem os bancos da escola média. A eles se
destinavam as carteiras dos Grupos Escolares, onde recebiam a
alfabetização necessária para manejar as máquinas das fábricas que se
expandiam e das quais constituiriam a mão-de-obra.
A cidadania era ainda entendida e,cclusivamente no seu sentido
político e era com essa cidadania que as escolas e, sobretudo, o ensino
de História deveriam se preocupar. Aceitava-se o conceito de cidadania
do liberalismo, que se expandiu ano século XIX e que compreendia a
democracia como a· manifestação da vontade na escolha dos governantes.
Os direitos sociais, que começavam a ser encampados pela legislação, eram
tidos como concessão dos governantes e não como conquistas das
classes trabàlhadoras. Pode-se afirmar que os objetivos dos programas de
1931 estavam estreitamente ligados ao desenvolvimento da cidadania,
para um grupo de privilegiados, representantes da classe dominante.
Mas, as "Instruções Metodológicas" traziam suas próprias
contradições. Ao mesmo tempo que enfatizavam os direitos políticos das
camadas privilegiadas, lembravam aos professores que dessem pouca
importância ao "estudo das questões referentes às divergências
diplomáticas e à história militar' (HOLLANDA, 1957, p.18). Sugeriam ainda,
que a causalidade econômica deveria ser contemplada, pois se considerava
que através do estudo da História o aluno pérceberia que às organizações
econômicas se contraporiam determinadas ordens jurídicas e que das
diferenciações econômicas pas sociedades decorriam o complexo das
organizações jurídicas (Família, Classes, Corporações·Profissionais, Estado,
Igreja). Mais ainda, seriam as transformações econômicas que tornariam
necessárias as transformaçoes políticas. (HOLLANDA, 1957, p.18).
É possível perceber nas "Instruções Metodológicas", especial-
mente nos trechos lembrados acima, uma certa tendência, ou melhor, uma
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certa vontade de incorporar algumas concepções ligadas a correntes mais
modernas do pensamento histórico.
As três primeiras décadas deste século tinham assistido, no Brasil,
ao aparecimento de uma produção histórica que procurava se desYencilhar
do positivismo e incorporar uma postura mais analítica e interpretativa da
realidade brasileira. O historiador mais destacado desse período foi
Capistrano de Abreu, cuja obra representou um divisor de águas na
historiografia brasileira. Outros pensadores que tiveram papel importante
na vida cultural do país, como Sílvio Romero, José Veríssimo, Tobias
Barreto, podem ser lembrados entre os intelectuais que pretenderam
repensar o Brasil. Alguns deles eram professores do Colégio Pedro II, a
maioria professores de História. O pensamento emergente dessa
intelectualidade haveria naturalmente de influenciar a elaboração dos
programas do Ministério da Educação e Saúde Pública.
As décadas iniciais do século XX foram também um período de
efervescência social, com o aparecimento de organizações sindicais, de
uma imprensa libertária e assistiram à eclosão das primeiras greves de
porte em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tudo isso haveria de contribuir
para mudanças no modo de pensar a realidade e no modo de conceber os
estudos de História, o que refletiria na organização de programas e na
exposição dos objetivos do ensino de História.
No entanto, apesar da influência que tais fatos puderam exercer,
continuaram predominando concepções de História que a viam como um
. '
"espaço idealizado" no qual a sqlução de alguns problemas próprios do
Brasil levariam ao desenvolvimento. O conceito dominante era o conceito
de comunidade - classicamente considerada como "agrupamento de
indivíduos que possuem um objetivo comum". Portanto, presumia-se que
conflitos classistas não regiam a "comunidade brasileira", isto é, o
conjunto de indivíduos que tinham em comum o objetivo de desenvolver
o Brasil.
A comissão elaboradora dos programas manifestou também
preocupação com as técnicas -de ensino de História a serem utilizadas na
escola secundária.
Ela se inspirava na nascente "Escola Nova" e no pensamento de
Dewey para enfatizar os procedimentos técnicos que o profesor de
História deveria utilizar para motivar os alunos para o ensino da disciplina.
Recomendava atenção especial para a iconografia, pois acreditava que os
adolescentes têm uma curiosidade natural pela imagem. Os programas
indicavam que os recursos tecnológicos deveriam ser utilizados no ensino
secundário.
Professores de História envolvidos no trabalho educacional, como
Jônatas Serrano e Delgado de Carvalho, consideraram as "Instruções
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Metodológicas" um significativo avanço para o ensino secundário.
Serrano entusiasmou-se com a sugestão de se utilizarem os audiovisuais,
adepto que era do uso do cinema como recurso didático para as aulas de
História (SERRANO e VENANCIO, 1931). Elogios mais caloroso~ fez Del-
gado de Carvalho, que havia estudado nos Estados Unidos e era adepto
fervoroso das novas propostas educacionais, que procuravam o ajus-
t~mento do indivíduo ao meio e ao seu tempo utilizando a moderna tec-
nologia. Para esse autor, as técnicas teriam um papel importante na trans-
formação do aluno. em sujeito do processo de ensino-aprendizagem (CAR-
VALHO, 1937), pois as "Instruções" propunham "estimular nos alunos
os dons de observação, despertar-lhes o poder crítico e oferecer-lhes
sempre ensejo ao trabalho autônomo" (HOLLANDA, 1957, p.721).
Os conteúdos listados nos programas para a disciplina, chamada
agora de História da Civilização, substituía os das antigas Cadeiras de
História Universal e Hist6ria do Brasil, do Colégio D. Pedro II. O conteúdo
era assim distribuído:
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II História da América e do Brasil (a partir da política ibérica
de NapoJeão Bonaparte e suas consequências até a América
de nossos dias e seus problemas ·mais importantes).
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por Deus. A civilização era uma construção divina e o progresso do
Estado Moderno era um sinal, resultava da orientação previamente traçada
pelas mãos de Deus. Era isso que explicava, de acordo com os livros
didáticos a tendência da humanidade de progredir espiritualmente na
mesma medida do progresso material. Os autores dos livros didáticos
deixavam clara a importância dos povos "civilizadores" no caminhar da
humanidade em direção ao progresso, realizando uma missão
cristianizadora dos povos "bárbaros".
Os autores dos livros didáticos aceitavam, como todos, a existência
de uma História da Civilização una e geral, e nisso refletiam os próprios
programas, que encaravam a dominação dos povos conquistados como
decorrente de sua inferioridade e atraso cultural, justificando dessa forma
a exploração e o preconceito. A divina providência se manifestaria através
das ações de determinadas personagens, que em certos momentos
guiavam os colonizados na direção da civilização. A civilização era o
elemento chave para que um povo passasse a ter sua própria história.
Assim, a história do Brasil se iniciou quando os ib~ricos se
lançaram ao mar, chegaram às novas ter~as e plantaram as sementes da
civilização cristã. Nesse momento, os nativos passaram a sofrer o processo
histórico, como o elemento passivo, somente um complemento do real
sujeito da história, o conquistador.
O grupo político vencedor mantinha a mesma visão de História que
aquele que havia perdido o poder, demonstrando sua identidade de classe.
A manutenção da mesma classe social (apesar de representada por outro
grupo) permitiu que continuasse prevalecendo a mesma concepção de
História - a que considerava a cidadania como exercício do poder político
e a reservava a um grupo privilegiado de indivíduos. Mantinha-se, pois, a
mesma situação quando da criação dos ginásios estaduais, que tinham
como objetivo a formação das elites condutoras para garantir a "paz
social". As escolas e seus programas estavam sintonizados com "um
modelo para a promoção do desenvolvimento econômico, sem modificação
da ordem social existente" (JAGUARIBE, 1968).
Esta concepção de História dominante na elaboração dos programas
não foi contestada pelos professores, que, no entanto, criticaram com
veemência outros dos seus aspectos:
- a excessiva centralização;
- conteúdo muito extenso para pequeno número de aulas
_semanais;
- justaposição da História da América e do Brasil à História
da Civilização; · ·
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- dificuldade de apreensão por parte dos alunos de alguns
conceitos e termos expressos nos programas.
172 ,
Por outro lado, os programas eram considerados de difícil
apreensão pelos alunos. Num de Compêndios, Jônatas Serrano apontou
àlgumas das dificuldades que, a seu ver, os alunos teriam para desenvolver
a aprendizagem em História:
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REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
RESUMO ABSTRACT
O artigo' discute os principais aspectos This article discusses the main aspects
dos programas de ensino de história, of history's teaching programs
organizado pelo governo em 1931, organized by the national government
logo depois da reforma educacional de in 1931, immediatly a/ter Francisco
Francisco Campos. O autor também Campos educational reform. The
enfoca a relação entre o Estado e o author also emphasizes the relationship
ensino de história, mostra11do como se between the State and historical
formou uma base ideológica para o teaching showing how it was made to
governo de Getúlio Vargas. be an ideological basis for Getulio
Vargas power.
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