Eridu, Uma Cidade Da Mesopotâmia
Eridu, Uma Cidade Da Mesopotâmia
Eridu, Uma Cidade Da Mesopotâmia
Período Pré-Histórico
Neolítico 10.000-6.000 a.C.
Calcolítico 6.000-3.000 a.C.
Hassuna 5500-3000 a.C
Halaf-Ubaid – 5000-4000 a.C.
Uruque – 4000-3200 a.C.
Jemdet-Nasr 3200-3000 a.C.
Criando a primeira cidade da humanidade
ERIDU
mito de origem — como foi criado o mundo que o povo mesopotâmio conhecia, uma
prerrogativa que homologa a noção de cidade como lugar sagrado: Eridu. O tempo anterior à
criação é descrito como uma ausência de todos Os traços característicos da vida civilizada, tal
como os mesopotâmios a conheciam.
No meio do mar primevo são “feitos” — ou melhor, concebidos através de um ato de
pensamento divino que deflagra o processo de criação — Eridu, a primeira cidade, e Esagila, o
grande templo de Marduk em Babilônia. À semelhança dos moradores dos pântanos do Iraque
meridional, que ainda constroem suas cabanas em ilhas flutuantes de junco, o deus despeja lama
numa armação de junco para moldar uma plataforma.
A partir dessa base primordial, bastante frágil, tiveram seu começo as cidades e seus templos.
Daí em diante, os deuses tomaram residência na terra e viveram em cidades. E porque os deuses
têm em cidades a morada para “deleite de seus corações”, as cidades da Mesopotâmia são
sempre sagradas.
Assim, o Éden mesopotâmio não é um jardim, mas uma cidade formada de um pedaço de terra
seca cercado pelas águas. O primeiro edifício é um templo. Depois é criada a humanidade para
prestar serviço a deus e ao templo. Eis como a tradição mesopotâmia apresentou a evolução e a
função das cidades, e Eridu fomece o mítico paradigma.
Localização geográfica
A situação geográfica de Eridu é singular. É um dos locais mais ao sul, na orla da planície aluvial
e perto dos pântanos: zona de transição entre mar e terra, com seus combiantes cursos de água,
ilhas e profundos e densos caniçais.
Ao mesmo tempo, o deserto ocidental, estendendo-se por muitas centenas de quilômetros e
contendo nada mais do que dunas de areia e terras áridas, pejadas de pedregulhos, está
suficientemente perto para ameaçar o lugar e soterrá-lo com areia.
Essa localização significava que a antiga Eridu tinha acesso imediato a três sistemas físicos
amplamente diferentes: a aluvião, o deserto e os pântanos, e, por conseguinte, a três diferentes
modos de subsistência: lavoura, pastoreio nômade e pesca.
Os mais antigos textos sumerianos, datando do começo do terceiro milênio, destacom a
importância dessa laguna. Em sumeriano, isso era conhecido como abzu (Apsu em acadiano).
Nas regiões meridionais quase sem chuva, a mais Obvia e crucial manifestação de água era o
abzu.
Em Eridu, assim rezam os textos, ele circundava o centro religioso e tomou-se seu sinônimo.
De acordo com a noção mesopotâmia de cosmo, a terra era uma extensão sólida semelhante a
um disco no interior de um corpo gigantesco de água. Abaixo da terra estava o abzu, acima da
terra o céu formava uma abobada mais ou menos impermeável que retinha o corpo superior de
água, o qual, em certas épocas e lugares, cala como chuva através dos buracos no teto celeste.
Eridu era o centro do culto para o deus ou deusa da água doce.
As escavações de Eridu
O monte de Eridu, chamado Tell Abu Shahrein, situado uns 24 quilômetros ao sul de Ur, tinha
sido agendado para escavações já em meados do século XIX.
A expressão “período Ubaid” deriva do sitio arqueológico de Tell Ubaid, perto de Ur, escavado
por Sir Leonard Woolley na década de 1920. Refere-se aos níveis culturais calcolíticos da
Mesopotâmia meridional, os quais coincidem em grande parte com os níveis Halaf dos sítios
mesopotâmicos setentrionais.
De modo geral, a cultura ubaidiana não está bem documentada na Mesopotâmia meridional,
pelo que o material recuperado em Eridu ajudou a modificar a impressão, adquirida como
resultado das escavações de Woolley, de que a cultura ubaidiana no sul era uma “cultura de
aldeia primitiva e mal desenvolvida”.
A seqüência de “templos” mostrou que eles tinham sido construídos nos mesmos locais durante
centenas de anos.
Dos humildes começos da primeira “capela” até o gigantesco e requintado templo VI, mais de
mil anos tinham transcorrido. Quase sem qualquer interrupção, um edifício seguira-se a outro
implantado exatamente no mesmo lugar, cada um sempre maior do que o antecessor; e, em
conseqüência do cuidadoso nivelamento dos remanescentes das construções anteriores, as
plataformas foram ficando cada vez mais elevadas. Uma reconstituição pelos arquitetos
iraquianos mostrou que o último “templo” ubaidiano se erguia muito acima do nível do solo,
graças às sucessivas camadas de construções prévias sobre as quais ele assentava. As mobílias e
instalações interiores, as plataformas, os nichos e os pódios, também mostram uma notável
continuidade de forma e talvez de propósito.
Os arqueólogos tem rotineiramente chamado “templos” a essas construções, uma palavra que
indica um lugar dedicado especificamente a um ritual sagrado. Não está esclarecido, em
absoluto, se os “templos” de Ubaid eram usados somente para o culto ou vistos como moradia
dos deuses, como ocorreu em períodos ulteriores. O certo é que eles forneciam, pelo menos
periodicamente, um cenário para determinadas atividades.
Como foi sublinhado, eles estavam cheios de “lixo comum”, pequenos ossos, cerâmica vulgar
etc. Ao que parece, nada era conservado imaculadamente limpo ou reservado para uma
finalidade específica.
Poucos objetos de valor foram recuperados: algumas estatuetas de barro de nus humanos
masculinos e femininos, pequenas figuras de animais, um modelo de réptil decorado para
assemelhar-se a uma das serpentes ainda comuns nos arredores de Abu Shahrein e as acima
mencionadas serpentes de barro, enroscadas e enterradas. Quanto ao mais, encontraram-se
apenas algumas contas feitas de pedras semipreciosas, ferramentas de pedra, lâminas de
obsidiana, polias de rocas de fiar de barro e uma machadinha de bronze.
E claro que as construções não só iam ficando cada vez maiores e mais bem construídas com o
passar do tempo, mas os arranjos interiores — os pedestais, as portas falsas, os nichos
simetricamente dispostos — parecem ter tido características tanto simbólicas quanto funcionais
que apontam para fins mais rituais do que mundanos. Esses últimos templos ubaidianos podem
ter prenunciado a arquitetura dos templos mesopotâmios dos períodos históricos, uns 1.500
anos mais tarde. Sua planta, uma câmara central flanqueada por salas de ambos os lados com
um pódio independente e isolado no centro, tomou-se uma característica corrente, tal como a
fachada decorada com pilastras e nichos. O costume de enterrar presentes votivos e
implementos rituais também nunca foi abandonado. Mais significativa, talvez, foi a idéia de vedar
os remanescentes de estruturas anteriores e seus conteúdos (para preservar a santidade?) e
erguer então o novo edifício no topo dessas ruínas niveladas. Assim, a maioria dos templos
mesopotâmios entesourou a substância de templos mais antigos e a própria plataforma onde
eles assentavam se tomou venerável em conseqüência do acúmulo de entulho sagrado. Assim,
essas plataformas converteram-se num sinal visível de continuidade e antiguidade.
Cumpre lembrar que, sobretudo nas planícies meridionais, as características da paisagem não
eram tão permanentes quanto em outras regiões. Os rios alteravam seus leitos, inundações
destruíam áreas cultivadas, dunas de areia invadiam e tragavam em semanas aldeias
abandonadas — todos fatores que ameaçavam o desejo de permanência e fixação num lugar.
Somente as cidades e, em especial, a “obra de tijolo” dos templos persistiram através das idades
e cresceram como seres vivos. Esse processo pode ser visto primeiro em Eridu. Na narrativa
babilônia, a plataforma que surgiu do Apsu tomou-se a primeira morada dos deuses; na
seqüência arqueológica, a simples cabana construída na areia foi continuamente reconstruída e
ampliada até converter-se num dos mais veneráveis santuários do país. A reputação de Eridu em
épocas ulteriores como o primeiro santuário foi amplamente justificada pela seqüência
arqueológica.
Os arqueólogos não escavaram somente no cômoro principal de Abud Shabrein, mas também
em numerosos sítios subsidiários. Descobriram uma pequena parte dos setores residenciais e
um vasto cemitério. Em todas essas áreas, assim como nos “templos” do cômoro principal,
encontraram cacos de louça de barro. Os cacos de louça são sempre importantes em escavações,
por serem de extrema valia para fins de datação.
Tal cerâmica de alta qualidade era produzida por hábeis especialistas em diferentes centros de
produção; a cerâmica descoberta nos primeiros níveis de Eridu (desde os mais antigos no nível
XIX ate o nível XIII) era manufaturada no próprio local.
Entretanto, a distribuição da cerâmica pintada foi muito além das áreas de produção. Essa
cerâmica não era para uso doméstico vulgar e quotidiano, mas um produto de elite; requeria
lugares especiais para armazenagem e exibição, não sendo fácil de transportar e imprópria para
um modo nômade de vida, para o qual eram preferidos os recipientes de materiais inquebráveis.
Em Eridu, os mais antigos níveis de aldeamento, criados diretamente na areia virgem, já possuem
a cerâmica calcolítica típica da cultura ubaidiana meridional. Quem quer que se decidisse a
instalar-se nessa área estava familiarizado com a tecnologia e o repertório decorativo.
A descoberta do cemitério de Ubaid na segunda temporada de escavações (1947-48) manteve
metade dos trabalhadores atarefados durante a maior parte dela, e estes produziram notáveis
provas a respeito dos habitantes da antiga Eridu. O cemitério estava a certa distância do cômoro
principal, nos arredores do último povoado ubaidiano, e era contemporâneo do Templo VI (c.
3800).
Entre 800 e 1.000 pessoas tinham sido ali enterradas, um número modesto em comparação com
a enorme necrópole de Susa, no Sul do Irã, onde tinham sido encontrados mais de dois mil
sepultamentos do mesmo período.
Das sepulturas de Eridu, somente 193 foram escavadas. Os corpos tinham sido colocados em
covas simples ou em caixas de barro sem fundo. Cada cadáver era estendido ao comprido, de
costas, com as braços aos lados ou cruzados sobre a pelve. Depois a tumba era cheia de terra até
ao topo das paredes e vedada com uma ou mais fileiras de tijolos. Às vezes os restos mortais de
sepultamentos prévios eram empurrados para um lado, a fim de dar lugar a outro cadáver, mas
nunca havia mais de dois adultos numa sepultura, sendo o terceiro, se houvesse, invariavelmente
uma criança.
A cerâmica funerária era colocada num canto, perto do pé direito; em geral, consistia num jarro,
num prato e numa taca. Ocasionalmente, havia provas de oferendas de alimentos. Ossos de
peças de como eram encontrados no enchimento de terra ou sobre a tumba.
Num caso, um jovem de uns 15 anos fora enterrado com o seu cão, colocado de través no regaço
do rapaz com um osso na boca. Outra sepultura também continha dois esqueletos fragmentados
de cães, talvez animais de estimação do mono. Os corpos humanos exibiam colares ou pulseiras
de contas e ornamentos semelhantes em tomo do pescoço ou do pulso, com freqüência feitos
de obsidiana. Pareciam ter sido vestidos, porquanto as tiras de contas sugerem seu uso em
franjas e cintos decorados.
O exame dos esqueletos mostrou que a população de Eridu era mediterrânea, do mesmo tipo da
do atual Iraque e de países vizinhos. A maioria das variações ocorria nos dentes e nas mandíbulas,
com alguns indivíduos sempre “notoriamente prógnatos e com dentes grandes e ressaídos, tão
volumosos quanto os dos neandertais”. Os dentes grandes não eram, necessariamente, uma
vantagem, pois muitos dos mortos apresentavam dentes em mau estado, alguns corroídos e
desgastados até as gengivas, com os conseqüentes abscessos e caries. Ainda não está claro se
isso era causado por uma dieta rica em cereais pilados ou o resultado de alguma doença.
A existência de um cemitério em qualquer localidade mostra que algumas populações
reclamaram o direito de enterrar seus mortos nesse lugar especifico. Nesse caso, havia um
grande número de pessoas, embora não possa ser determinado que parte da população de Eridu
elas representavam, uma vez que apenas uma pequena fração da área residencial foi escavada.
Os cemitérios, em especial no Oriente Próximo, nunca respondem por rodos as mortos, porque
múltiplas praticas de sepultamento eram mantidas por motivos obscuros. Na ulterior tradição
escrita, o Apsu está ligado à região dos mortos. E possível que o cemitério de Eridu servisse a
uma comunidade local mais vasta, num raio de cerca de 25km, como o local preferido de
sepultamento. Por ignorarmos onde e como outras pessoas eram sepultadas, e que o cemitério
de Eridu nos conta a respeito das que aí foram enterradas? Quem eram elas?
Os sepultamentos familiares de um homem e uma mulher adultos, junto com uma criança (e, as
vezes, o cão da família), parecem indicar a vigência de praticas sociais como a monogamia e o
prestígio da linhagem.
Posses pessoais, como contas e ornamentos de obsidiana importados, mostram que eles tinham
acesso a artigos relativamente preciosos (jóias, tecidos para vestuário). Alguns objetos,
sobretudo a obsidiana e outras contas de pedra, eram de origem estrangeira e tinham que ser
“negociados” ou incluídos em operações de troca. Sua presença nas sepulturas indica que o
grupo familiar tinha ligações com lugares distantes.
A cerâmica nas sepulturas também era, em geral, de elevado padrão, e copos altos com bases
aneladas eram muito comuns, sendo talvez usados para libações. Vários tipos inigualáveis de
vasos, exemplares especialmente bem-feitos e com belos adornos, só eram encontrados no
cemitério.
Os sepultamentos de crianças eram freqüentemente providos de jogos em miniatura de tigelas
e jarros. Outros artigos funerários dignos de nota incluíam um modelo de barro de barco a vela,
completo com um pequeno soquete para o mastro, e estatuetas de terracota. Um exemplo de
figura masculina sobreviveu intacto. As estatuetas tinham proporções esbeltas e cabeças
curiosamente alongadas, com rostos parecidos com os de lagartos.
A parte superior do peito era decorada com pequenas protuberâncias redondas que também
figuravam ao longo dos braços. A figura masculina segura uma vara curta numa das mãos. Seja
qual for o significado dessas representações, elas foram postas nas tumbas com um propósito,
muito provavelmente em relação com crenças fúnebres.
Em suma, todo o procedimento de sepultar pessoas no cemitério de Eridu envolvia considerável
esforço e planejamento. As tumbas devem ter sido marcadas na superfície para permitir o
sepultamento secundário de um cônjuge ou de um filho pequeno. O morto tinha que ser suprido
com bens adequados, com ornamentos e cerâmica decorada.
Além disso, parece que certos recipientes eram especialmente feitos para fins de ritual fúnebre,
libações etc. Cortes de carne e, no caso de crianças, pequenos animais inteiros demonstram que
as oferendas de alimentos eram também parte das exéquias. Alguns corpos foram encontrados
cobertos de ocre vermelho, embora os escavadores não tivessem certeza sobre se isso fora feito
na antiguidade com propósitos simbólicos ou se mudanças no solo tinham produzido o efeito.
De modo geral, as sepulturas de Eridu indicaram que as pessoas ali enterradas eram, de alguma
forma, especiais. Todas elas tinham acesso, sem exceção, a valiosos artefatos; podiam fornecer
oferendas e carne; tinham direito a um funeral “apropriado,” completo com rituais e,
possivelmente, com a prerrogativa de cuidados ulteriores, ao passo que outras pessoas na
comunidade não tinham claramente esse privilégio.
Não se conhecem os motivos desse status diferençado. Foi sugerido que, nesse período, alguns
grupos com extensas ligações, forjadas e mantidas a base de trocas (de mercadorias, talvez
também de mulheres), criaram uma rede de comunicações.
Tais grupos teriam ampliado os horizontes culturais das comunidades puramente locais,
envolvendo-as numa estrutura muito mais vasta — uma espécie de commonwealth calcolítica de
suposições e idéias compartilhadas, arqueologicamente materializadas em cerâmica e outros
antigos de prestigio.
A Eridu ubaidiana
Não restam dúvidas de que durante o período Ubaid se desenvolveu uma cultura comum que se
propagou por todo o Oriente Próximo. Entretanto, antigas formas de vida continuaram a existir
a par das novas, e essa mistura de inovação e tradição é característica da Mesopotâmia desde os
seus primórdios.
As comunidades locais eram auto-suficientes em termos da produção de alimentos, explorando
habilmente o potencial natural de uma região circunvizinha. Em Eridu, os recursos dos pântanos
e da laguna eram importantes, e a abundância de água favoreceu a criação de gado e de porcos.
O alimento favorito consumido no “templo” era o peixe, uma preferência induzida, talvez, por
associação com a Apsu.
No tocante a realização espiritual desse período pré-literário, Charvat presume que o que estava
aí em jogo era nada menos do que “a formação da primeira religião universal”, com Eridu
desempenhando um papel significativo como, talvez, o “representante meridional” recordado
pela tradição ulterior, quando a comunidade foi vista como fonte de toda a sabedoria e a morada
do deus do conhecimento.
Embora sejam poucas as provas que permitem especular sobre que forma essa “religião
universal” poderia ter assumido, um componente importante é o enfoque sobre o ritual
associado a lugares construídos. Isso não sugere serem essas as únicas formas de ritual, mas que
a moldura arquitetônica do ritual certamente se tomou mais importante.
A construção num lugar “sagrado” não é necessariamente responsabilidade de um determinado
grupo, e que fosse prerrogativa de algum, a passagem do tempo deve concorrer para atenuar a
perpetuidade do privilégio.
Vimos como os edifícios podiam degradar-se, cair em ruínas e ser depois reconstruídos,
usualmente de acordo com um traçado semelhante, mas quase sempre maior do que o anterior.
O tijolo de adobe necessita de constante manutenção e de periódica reconstrução, e, embora o
corpo arquitetônico seja inerentemente transitório, ele adquire solidez e volume através de cada
ato de reconstrução.
Alguns têm de carregar os cestos com terra, enquanto os “grandes deuses” atuam como
supervisores. Os deuses trabalhadores queixam-se a respeito de seu trabalho pesada e apelam
a Enki para que pense num plano. Enki, aparentemente isenta de trabalho físico, está entregue
a um sono profundo no Apsu. Nammu, a deusa-mãe, decide despertá-lo e diz-lhe que ele devia
levantar-se e criar o homem.
Enki desperta mas incumbe Nammu da tarefa, ensina-lhe que tudo o que ela tem a fazer é
apanhar um pouca do barro do Apsu e dar-lhe forma. Outra deusa, Ninmah, ajuda-a nessa tarefa
e transfere para a espécie humana a execução do trabalho pesado. Os deuses celebram a perfeita
conclusão da abra de criação do homem com um banquete, e Ninmah e Enki embriagam-se.
Ninmah propõe fazer mais algumas criaturas e Enki está disposto a determinar-lhes o destino.
Ela faz seis humanos, mas estes estão longe de ser perfeitos; todos têm algum defeito. Enki
consegue, por fim, encontrar um “destino” ou ocupação para cada um deles. De um que tem a
vista fraca será feito um cantor; a mulher estéril é confiada uma função ritual; a criatura sem
órgãos sexuais torna-se um alto funcionário na corte, e assim por diante. Depois, é a vez de Enki
moldar novos seres.
As versões existentes do texto estão deterioradas a partir desse ponto, mas parece que Enki faz
duas criaturas. Uma recebe o nome de Umul, que se mostra completamente inviável. Não se
sustenta de pé, não pode sentar-se, caminhar, falar ou alimentar-se. Ninmah declara-se incapaz
de fazer qualquer coisa útil com ele e recrimina Enki, pois sua criatura está condenada a
permanecer para sempre no Apsu. Enki diz-lhe que deve tomar Umul em seus braços — ele seria
o primeiro bebê. Aparentemente, a história explica em tom bem-humorado as desvantagens
físicas e mentais (resultantes da embriaguez das deidades criadoras), a falta de defesas dos bebês
humanos e os deveres da humanidade para com as deuses, que descarregaram nos seres
humanos a pesada tarefa de sustentar o mundo.
“Enki e Ninhursaga” é outra história suméria que exalta a impetuosa sexualidade de Enki. O
“jovem Enki” vive deitado nos pântanos para espiar as deusas núbeis. Consegue engendrar
sucessivas gerações de deidades femininas até que a última, Uttu, a deusa-aranha e tecelã, extrai
dele mais do que apenas sua “água” (um trocadilho com a palavra suméria para “sêmen”). Enki
tem que fazer uma horta para ela e plantar pepinos e frutos. Nessa história, comer um fruto, tal
como na história do Genesis, leva ao relacionamento sexual e a subseqüente proliferação da vida
vegetal.
A última das histórias de Eridu é a história babilônia de Adapa, o sacerdote de Ea. Cópias do texto
foram descobertas na cidade egípcia de Akhetaton (Tell el Amiarna), a capital construída pelo
faraó Akhenaton da XVIII Dinastia. No século XIV, os governantes em todo a Oriente Próximo
empenhavam-se em trocas diplomáticas de princesas, oura e outros artigos de elevado status e
prestígio. O veículo usado para suas comunicações era a escrita babilônia em caracteres
cuneiformes. Plaquetas eram transportadas do Egito para a Anatólia, da Palestina para a Egito,
da Síria para a Babilônia, e vice-versa. A cultura mesopotâmia chegou assim a cortes bem
distantes.
Outra cópia da história vem da biblioteca de Nínive, a mais abrangente coleção de literatura
cuneiforme. A versão de Akhetaton é um pouco diferente da assíria, mas o enredo principal é a
mesmo. Adapa é um dos Sete Sábios criadas por Enki como seres humanos exemplares. Ele serve
a Enki em Eridu, onde está encarregado de prover as oferendas alimentares para o deus. Para
isso, tem que ir pescar na laguna, a qual está geralmente tão tranqüila que ele não necessita de
leme nem de timão. Um dia, porém, o venta sul virou-lhe o barco. O ensopado Adapa roga uma
praga contra o vento capaz de “lhe quebrar as asas”. Suas palavras tem tal poder que o vento
ficou imobilizado e não soprou “durante sete dias” (o que significa muito tempo). A falta de vento
(que leva ar fresco ao altiplano) atraiu a atenção de Anu, um deus superior, que ordena que a
culpado seja conduzido à sua presença para julgamento. Enki, “que conhece o modo como o céu
trata das coisas”, decide que Adapa tem que ser preparado para essa importante viagem. Instrui
o seu sacerdote a vestir roupa de luta e dizer aos dois deuses, Dumuzi e Ningishzida, a quem
encontrara guardando os portões do palácio de Anu, que está lamentando muito o
desaparecimento de ambos da terra. Essa exibição de pesar tem o propósito de acalmar os dois
deuses da vegetação, que sofreram indiretamente por causa da praga de Adapa.
Adapa é levado ao céu e aí segue ao pé da letra o conselho de Enki. Dumuzi e Ningishzida
prometem interceder a favor dele e a cólera dc Anu é apaziguada graças a intercessão de ambas.
Pergunta a Adapa de ande vem toda a sua sabedoria, e, quando descobre que Enki está por trás
dela, oferece a Adapa óleo, roupas e a “água e o alimento da vida”, o que fará com que ele “se
tome igual aos deuses”. Entretanto, como Enki também tinha prevenido Adapa para não aceitar
a “água e o alimento da morte”, este rejeita a presente de Anu. Em face dessa aparente
insensatez humana, Anu irrompe em “gargalhadas divinas” e manda Adapa de volta a terra.
Qual era a verdadeira intenção de Anu? Pretendeu ele fazer com que Adapa, tão completo em
sabedoria a ponto de ser quase divino, se tornasse verdadeiramente imortal? Ou riu por ter sido
superado em esperteza pelo astuto Enki, que sabe que aquela “água e alimento da vida” para os
deuses significa justamente o oposta para as seres humanos? A intenção da história está nessa
ambigüidade, um lembrete de que o homem, mesmo que seja como Adapa, um dos Sete Sábios,
não pode conhecer os insondáveis “caminhos do céu”.