Eridu, Uma Cidade Da Mesopotâmia

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1de 46

Cronologia

Período Pré-Histórico
Neolítico 10.000-6.000 a.C.
Calcolítico 6.000-3.000 a.C.
Hassuna 5500-3000 a.C
Halaf-Ubaid – 5000-4000 a.C.
Uruque – 4000-3200 a.C.
Jemdet-Nasr 3200-3000 a.C.
Criando a primeira cidade da humanidade
ERIDU

Eridu é o Éden mesopotâmio, o lugar da criação.

mito de origem — como foi criado o mundo que o povo mesopotâmio conhecia, uma
prerrogativa que homologa a noção de cidade como lugar sagrado: Eridu. O tempo anterior à
criação é descrito como uma ausência de todos Os traços característicos da vida civilizada, tal
como os mesopotâmios a conheciam.
No meio do mar primevo são “feitos” — ou melhor, concebidos através de um ato de
pensamento divino que deflagra o processo de criação — Eridu, a primeira cidade, e Esagila, o
grande templo de Marduk em Babilônia. À semelhança dos moradores dos pântanos do Iraque
meridional, que ainda constroem suas cabanas em ilhas flutuantes de junco, o deus despeja lama
numa armação de junco para moldar uma plataforma.
A partir dessa base primordial, bastante frágil, tiveram seu começo as cidades e seus templos.
Daí em diante, os deuses tomaram residência na terra e viveram em cidades. E porque os deuses
têm em cidades a morada para “deleite de seus corações”, as cidades da Mesopotâmia são
sempre sagradas.
Assim, o Éden mesopotâmio não é um jardim, mas uma cidade formada de um pedaço de terra
seca cercado pelas águas. O primeiro edifício é um templo. Depois é criada a humanidade para
prestar serviço a deus e ao templo. Eis como a tradição mesopotâmia apresentou a evolução e a
função das cidades, e Eridu fomece o mítico paradigma.
Localização geográfica
A situação geográfica de Eridu é singular. É um dos locais mais ao sul, na orla da planície aluvial
e perto dos pântanos: zona de transição entre mar e terra, com seus combiantes cursos de água,
ilhas e profundos e densos caniçais.
Ao mesmo tempo, o deserto ocidental, estendendo-se por muitas centenas de quilômetros e
contendo nada mais do que dunas de areia e terras áridas, pejadas de pedregulhos, está
suficientemente perto para ameaçar o lugar e soterrá-lo com areia.
Essa localização significava que a antiga Eridu tinha acesso imediato a três sistemas físicos
amplamente diferentes: a aluvião, o deserto e os pântanos, e, por conseguinte, a três diferentes
modos de subsistência: lavoura, pastoreio nômade e pesca.
Os mais antigos textos sumerianos, datando do começo do terceiro milênio, destacom a
importância dessa laguna. Em sumeriano, isso era conhecido como abzu (Apsu em acadiano).
Nas regiões meridionais quase sem chuva, a mais Obvia e crucial manifestação de água era o
abzu.
Em Eridu, assim rezam os textos, ele circundava o centro religioso e tomou-se seu sinônimo.
De acordo com a noção mesopotâmia de cosmo, a terra era uma extensão sólida semelhante a
um disco no interior de um corpo gigantesco de água. Abaixo da terra estava o abzu, acima da
terra o céu formava uma abobada mais ou menos impermeável que retinha o corpo superior de
água, o qual, em certas épocas e lugares, cala como chuva através dos buracos no teto celeste.
Eridu era o centro do culto para o deus ou deusa da água doce.
As escavações de Eridu
O monte de Eridu, chamado Tell Abu Shahrein, situado uns 24 quilômetros ao sul de Ur, tinha
sido agendado para escavações já em meados do século XIX.
A expressão “período Ubaid” deriva do sitio arqueológico de Tell Ubaid, perto de Ur, escavado
por Sir Leonard Woolley na década de 1920. Refere-se aos níveis culturais calcolíticos da
Mesopotâmia meridional, os quais coincidem em grande parte com os níveis Halaf dos sítios
mesopotâmicos setentrionais.
De modo geral, a cultura ubaidiana não está bem documentada na Mesopotâmia meridional,
pelo que o material recuperado em Eridu ajudou a modificar a impressão, adquirida como
resultado das escavações de Woolley, de que a cultura ubaidiana no sul era uma “cultura de
aldeia primitiva e mal desenvolvida”.
A seqüência de “templos” mostrou que eles tinham sido construídos nos mesmos locais durante
centenas de anos.
Dos humildes começos da primeira “capela” até o gigantesco e requintado templo VI, mais de
mil anos tinham transcorrido. Quase sem qualquer interrupção, um edifício seguira-se a outro
implantado exatamente no mesmo lugar, cada um sempre maior do que o antecessor; e, em
conseqüência do cuidadoso nivelamento dos remanescentes das construções anteriores, as
plataformas foram ficando cada vez mais elevadas. Uma reconstituição pelos arquitetos
iraquianos mostrou que o último “templo” ubaidiano se erguia muito acima do nível do solo,
graças às sucessivas camadas de construções prévias sobre as quais ele assentava. As mobílias e
instalações interiores, as plataformas, os nichos e os pódios, também mostram uma notável
continuidade de forma e talvez de propósito.
Os arqueólogos tem rotineiramente chamado “templos” a essas construções, uma palavra que
indica um lugar dedicado especificamente a um ritual sagrado. Não está esclarecido, em
absoluto, se os “templos” de Ubaid eram usados somente para o culto ou vistos como moradia
dos deuses, como ocorreu em períodos ulteriores. O certo é que eles forneciam, pelo menos
periodicamente, um cenário para determinadas atividades.
Como foi sublinhado, eles estavam cheios de “lixo comum”, pequenos ossos, cerâmica vulgar
etc. Ao que parece, nada era conservado imaculadamente limpo ou reservado para uma
finalidade específica.
Poucos objetos de valor foram recuperados: algumas estatuetas de barro de nus humanos
masculinos e femininos, pequenas figuras de animais, um modelo de réptil decorado para
assemelhar-se a uma das serpentes ainda comuns nos arredores de Abu Shahrein e as acima
mencionadas serpentes de barro, enroscadas e enterradas. Quanto ao mais, encontraram-se
apenas algumas contas feitas de pedras semipreciosas, ferramentas de pedra, lâminas de
obsidiana, polias de rocas de fiar de barro e uma machadinha de bronze.
E claro que as construções não só iam ficando cada vez maiores e mais bem construídas com o
passar do tempo, mas os arranjos interiores — os pedestais, as portas falsas, os nichos
simetricamente dispostos — parecem ter tido características tanto simbólicas quanto funcionais
que apontam para fins mais rituais do que mundanos. Esses últimos templos ubaidianos podem
ter prenunciado a arquitetura dos templos mesopotâmios dos períodos históricos, uns 1.500
anos mais tarde. Sua planta, uma câmara central flanqueada por salas de ambos os lados com
um pódio independente e isolado no centro, tomou-se uma característica corrente, tal como a
fachada decorada com pilastras e nichos. O costume de enterrar presentes votivos e
implementos rituais também nunca foi abandonado. Mais significativa, talvez, foi a idéia de vedar
os remanescentes de estruturas anteriores e seus conteúdos (para preservar a santidade?) e
erguer então o novo edifício no topo dessas ruínas niveladas. Assim, a maioria dos templos
mesopotâmios entesourou a substância de templos mais antigos e a própria plataforma onde
eles assentavam se tomou venerável em conseqüência do acúmulo de entulho sagrado. Assim,
essas plataformas converteram-se num sinal visível de continuidade e antiguidade.

Cumpre lembrar que, sobretudo nas planícies meridionais, as características da paisagem não
eram tão permanentes quanto em outras regiões. Os rios alteravam seus leitos, inundações
destruíam áreas cultivadas, dunas de areia invadiam e tragavam em semanas aldeias
abandonadas — todos fatores que ameaçavam o desejo de permanência e fixação num lugar.
Somente as cidades e, em especial, a “obra de tijolo” dos templos persistiram através das idades
e cresceram como seres vivos. Esse processo pode ser visto primeiro em Eridu. Na narrativa
babilônia, a plataforma que surgiu do Apsu tomou-se a primeira morada dos deuses; na
seqüência arqueológica, a simples cabana construída na areia foi continuamente reconstruída e
ampliada até converter-se num dos mais veneráveis santuários do país. A reputação de Eridu em
épocas ulteriores como o primeiro santuário foi amplamente justificada pela seqüência
arqueológica.
Os arqueólogos não escavaram somente no cômoro principal de Abud Shabrein, mas também
em numerosos sítios subsidiários. Descobriram uma pequena parte dos setores residenciais e
um vasto cemitério. Em todas essas áreas, assim como nos “templos” do cômoro principal,
encontraram cacos de louça de barro. Os cacos de louça são sempre importantes em escavações,
por serem de extrema valia para fins de datação.
Tal cerâmica de alta qualidade era produzida por hábeis especialistas em diferentes centros de
produção; a cerâmica descoberta nos primeiros níveis de Eridu (desde os mais antigos no nível
XIX ate o nível XIII) era manufaturada no próprio local.
Entretanto, a distribuição da cerâmica pintada foi muito além das áreas de produção. Essa
cerâmica não era para uso doméstico vulgar e quotidiano, mas um produto de elite; requeria
lugares especiais para armazenagem e exibição, não sendo fácil de transportar e imprópria para
um modo nômade de vida, para o qual eram preferidos os recipientes de materiais inquebráveis.

Mas o sedentarismo e a cerâmica combinam bem, e é concebível que os vasos de barro


elaboradamente produzidos e decorados possam ter contribuído para popularizar e proclamar
os valores da população estabelecida. Também tinham, e claro, suas funções práticas, pois eram
usados para comer, beber e servir alimentos.
Relatos etnográficos demonstraram o propósito comunicativo dos objetos decorados e a
importância dos festins coletivos, por vezes chamados de “comensalidade conspícua” — uma
precursora do “consumo conspícuo”. O termo destaca a importância dos laços grupais através
das refeições compartilhadas, elaboradamente servidas e apresentadas. Tais festins coletivos
fortaleceram o status daqueles que estavam aptos a obter os recursos para tal, desde os
comestíveis até o precioso serviço de mesa.

Os antropólogos defenderam a tese de que o surgimento de bens de prestígio e de preciosos


utensílios de mesa está relacionado com as primeiras formas de hierarquia — nas quais um grupo
garantiu o acesso ao território e aos bens e é responsável pela distribuição.
A cultura do Calcolítico (ou Idade do Bronze) no Oriente Próximo, da qual Ubaid é a manifestação
meridional, foi caracterizada por crescente sedentarismo, horticultura e troca.
A cerâmica pintada da fase mais recente (c. 4000-3500) pode ser encontrada por toda a
Mesopotâmia, Síria, Irã ocidental e meridional, Anatólia, e ao longo do golfo Pérsico. Isso aponta
para uma vigorosa rede de trocas por toda a região, a qual iria tomar-se ainda mais intensa e
organizada durante a idade subseqüente, conhecida como o período Uruque.

Em Eridu, os mais antigos níveis de aldeamento, criados diretamente na areia virgem, já possuem
a cerâmica calcolítica típica da cultura ubaidiana meridional. Quem quer que se decidisse a
instalar-se nessa área estava familiarizado com a tecnologia e o repertório decorativo.
A descoberta do cemitério de Ubaid na segunda temporada de escavações (1947-48) manteve
metade dos trabalhadores atarefados durante a maior parte dela, e estes produziram notáveis
provas a respeito dos habitantes da antiga Eridu. O cemitério estava a certa distância do cômoro
principal, nos arredores do último povoado ubaidiano, e era contemporâneo do Templo VI (c.
3800).
Entre 800 e 1.000 pessoas tinham sido ali enterradas, um número modesto em comparação com
a enorme necrópole de Susa, no Sul do Irã, onde tinham sido encontrados mais de dois mil
sepultamentos do mesmo período.

Das sepulturas de Eridu, somente 193 foram escavadas. Os corpos tinham sido colocados em
covas simples ou em caixas de barro sem fundo. Cada cadáver era estendido ao comprido, de
costas, com as braços aos lados ou cruzados sobre a pelve. Depois a tumba era cheia de terra até
ao topo das paredes e vedada com uma ou mais fileiras de tijolos. Às vezes os restos mortais de
sepultamentos prévios eram empurrados para um lado, a fim de dar lugar a outro cadáver, mas
nunca havia mais de dois adultos numa sepultura, sendo o terceiro, se houvesse, invariavelmente
uma criança.
A cerâmica funerária era colocada num canto, perto do pé direito; em geral, consistia num jarro,
num prato e numa taca. Ocasionalmente, havia provas de oferendas de alimentos. Ossos de
peças de como eram encontrados no enchimento de terra ou sobre a tumba.
Num caso, um jovem de uns 15 anos fora enterrado com o seu cão, colocado de través no regaço
do rapaz com um osso na boca. Outra sepultura também continha dois esqueletos fragmentados
de cães, talvez animais de estimação do mono. Os corpos humanos exibiam colares ou pulseiras
de contas e ornamentos semelhantes em tomo do pescoço ou do pulso, com freqüência feitos
de obsidiana. Pareciam ter sido vestidos, porquanto as tiras de contas sugerem seu uso em
franjas e cintos decorados.
O exame dos esqueletos mostrou que a população de Eridu era mediterrânea, do mesmo tipo da
do atual Iraque e de países vizinhos. A maioria das variações ocorria nos dentes e nas mandíbulas,
com alguns indivíduos sempre “notoriamente prógnatos e com dentes grandes e ressaídos, tão
volumosos quanto os dos neandertais”. Os dentes grandes não eram, necessariamente, uma
vantagem, pois muitos dos mortos apresentavam dentes em mau estado, alguns corroídos e
desgastados até as gengivas, com os conseqüentes abscessos e caries. Ainda não está claro se
isso era causado por uma dieta rica em cereais pilados ou o resultado de alguma doença.
A existência de um cemitério em qualquer localidade mostra que algumas populações
reclamaram o direito de enterrar seus mortos nesse lugar especifico. Nesse caso, havia um
grande número de pessoas, embora não possa ser determinado que parte da população de Eridu
elas representavam, uma vez que apenas uma pequena fração da área residencial foi escavada.
Os cemitérios, em especial no Oriente Próximo, nunca respondem por rodos as mortos, porque
múltiplas praticas de sepultamento eram mantidas por motivos obscuros. Na ulterior tradição
escrita, o Apsu está ligado à região dos mortos. E possível que o cemitério de Eridu servisse a
uma comunidade local mais vasta, num raio de cerca de 25km, como o local preferido de
sepultamento. Por ignorarmos onde e como outras pessoas eram sepultadas, e que o cemitério
de Eridu nos conta a respeito das que aí foram enterradas? Quem eram elas?
Os sepultamentos familiares de um homem e uma mulher adultos, junto com uma criança (e, as
vezes, o cão da família), parecem indicar a vigência de praticas sociais como a monogamia e o
prestígio da linhagem.
Posses pessoais, como contas e ornamentos de obsidiana importados, mostram que eles tinham
acesso a artigos relativamente preciosos (jóias, tecidos para vestuário). Alguns objetos,
sobretudo a obsidiana e outras contas de pedra, eram de origem estrangeira e tinham que ser
“negociados” ou incluídos em operações de troca. Sua presença nas sepulturas indica que o
grupo familiar tinha ligações com lugares distantes.
A cerâmica nas sepulturas também era, em geral, de elevado padrão, e copos altos com bases
aneladas eram muito comuns, sendo talvez usados para libações. Vários tipos inigualáveis de
vasos, exemplares especialmente bem-feitos e com belos adornos, só eram encontrados no
cemitério.
Os sepultamentos de crianças eram freqüentemente providos de jogos em miniatura de tigelas
e jarros. Outros artigos funerários dignos de nota incluíam um modelo de barro de barco a vela,
completo com um pequeno soquete para o mastro, e estatuetas de terracota. Um exemplo de
figura masculina sobreviveu intacto. As estatuetas tinham proporções esbeltas e cabeças
curiosamente alongadas, com rostos parecidos com os de lagartos.
A parte superior do peito era decorada com pequenas protuberâncias redondas que também
figuravam ao longo dos braços. A figura masculina segura uma vara curta numa das mãos. Seja
qual for o significado dessas representações, elas foram postas nas tumbas com um propósito,
muito provavelmente em relação com crenças fúnebres.
Em suma, todo o procedimento de sepultar pessoas no cemitério de Eridu envolvia considerável
esforço e planejamento. As tumbas devem ter sido marcadas na superfície para permitir o
sepultamento secundário de um cônjuge ou de um filho pequeno. O morto tinha que ser suprido
com bens adequados, com ornamentos e cerâmica decorada.
Além disso, parece que certos recipientes eram especialmente feitos para fins de ritual fúnebre,
libações etc. Cortes de carne e, no caso de crianças, pequenos animais inteiros demonstram que
as oferendas de alimentos eram também parte das exéquias. Alguns corpos foram encontrados
cobertos de ocre vermelho, embora os escavadores não tivessem certeza sobre se isso fora feito
na antiguidade com propósitos simbólicos ou se mudanças no solo tinham produzido o efeito.

De modo geral, as sepulturas de Eridu indicaram que as pessoas ali enterradas eram, de alguma
forma, especiais. Todas elas tinham acesso, sem exceção, a valiosos artefatos; podiam fornecer
oferendas e carne; tinham direito a um funeral “apropriado,” completo com rituais e,
possivelmente, com a prerrogativa de cuidados ulteriores, ao passo que outras pessoas na
comunidade não tinham claramente esse privilégio.
Não se conhecem os motivos desse status diferençado. Foi sugerido que, nesse período, alguns
grupos com extensas ligações, forjadas e mantidas a base de trocas (de mercadorias, talvez
também de mulheres), criaram uma rede de comunicações.
Tais grupos teriam ampliado os horizontes culturais das comunidades puramente locais,
envolvendo-as numa estrutura muito mais vasta — uma espécie de commonwealth calcolítica de
suposições e idéias compartilhadas, arqueologicamente materializadas em cerâmica e outros
antigos de prestigio.

Ligaram o norte mesopotâmico às planícies meridionais, as chapadas e a bacia hidrográfica de


Susiana, no Irã. Entretanto, se os esqueletos de Eridu pertenciam a um grupo “aborígine” ou a
“recém-chegados”, sem mencionar se eram ou não as ancestrais dos sumérios, eis um ponto
para discussão. Tudo o que pode ser dito é que as pessoas enterradas no cemitério de Eridu eram
“diferentes” por causa de seus hábitos culturais e não por quaisquer características inerentes.
As mesmas peças de cultura material, com poucas exceções, foram encontradas nas tumbas e
nos “templos”. Mas idêntica correlação não pôde ser estabelecida entre as casas de moradia,
por um lado, e as sepulturas ou os “templos”, por outro. Isso podia significar que as pessoas que
exerceram atividades nos edifícios monumentais eram as mesmas sepultadas no cemitério, que
elas podiam ter tido um status ritual especifico para estarem ligadas ao cerimonial de Eridu.
Ao mesmo tempo, não havia diferenças acentuadas na qualidade e na quantidade dos presentes
funerários, nada para indicar que alguns indivíduos se distinguiam de outros, o que falava a favor
de uma identidade coletiva, de um especial status grupal.
Eles podiam ter sido membros de uma elite, talvez porque controlavam as trocas inter-regionais.
Os sinetes encontrados em “templos” mais recentes sugerem que certas pessoas tinham
responsabilidade pela execução de transações.
Elas talvez tenham estado ligadas à exploração agrícola da região de Eridu, ao pastoreio e aos
campos de cevada, o que poderia explicar o lamentável estado de seus dentes — o fato de terem
comido quantidades excessivas de pão arenoso por muito tempo. Infelizmente, nenhuma dessas
sugestões pode ser corroborada, por causa da natureza fragmentaria das provas.
Sabemos muito pouco sobre a natureza da sociedade durante o período ubaidiano. Para o
arqueólogo tcheco Petr Charvát, foi a última das verdadeiras sociedades igualitárias com famílias
auto-suficientes, todos igualmente engajados em atividades de subsistência.
Outros encontram provas de hierarquias incipientes em pelo menos algumas áreas, onde certos
grupos ou famílias tinham maior acesso do que outros a algumas mercadorias.
A questão crucial é o papel que a religião desempenhava em tudo isso. Se os grandes edifícios
de tijolos eram, principalmente, para fins rituais, as pessoas que organizaram a sua construção e
manutenção derivaram algum “lucro” tangível de seu “investimento”?
Sua conexão com o “sagrado” serviu para legitimar a diferenciação emergente entre pessoas,
com um grupo exercendo maior domínio sobre o trabalho e a produção de outros?
O modo como essas perguntas são formuladas denuncia as próprias posições ideológicas dos
autores, com os pontos de vista marxistas focalizando as distinções de classe e o controle sobre
os meios de produção como a principal forma de investigação das sociedades.
Como tais, elas fazem parte de uma moderna estrutura narrativa, qual seja, a história do trabalho
do homem e de quem o controla. Isso pode levar a alguns resultados interessantes, quando
existe suficiente material de consulta. Lamentavelmente, o período Ubaid permanece inacessível
à investigações mais detalhadas.
Os mortos do cemitério de Eridu, com suas peças de carne com osso, suas bonitas tigelas
pintadas e maus dentes, revelam e ocultam ao mesmo tempo as realidades da sua existência.

A Eridu ubaidiana
Não restam dúvidas de que durante o período Ubaid se desenvolveu uma cultura comum que se
propagou por todo o Oriente Próximo. Entretanto, antigas formas de vida continuaram a existir
a par das novas, e essa mistura de inovação e tradição é característica da Mesopotâmia desde os
seus primórdios.
As comunidades locais eram auto-suficientes em termos da produção de alimentos, explorando
habilmente o potencial natural de uma região circunvizinha. Em Eridu, os recursos dos pântanos
e da laguna eram importantes, e a abundância de água favoreceu a criação de gado e de porcos.
O alimento favorito consumido no “templo” era o peixe, uma preferência induzida, talvez, por
associação com a Apsu.
No tocante a realização espiritual desse período pré-literário, Charvat presume que o que estava
aí em jogo era nada menos do que “a formação da primeira religião universal”, com Eridu
desempenhando um papel significativo como, talvez, o “representante meridional” recordado
pela tradição ulterior, quando a comunidade foi vista como fonte de toda a sabedoria e a morada
do deus do conhecimento.
Embora sejam poucas as provas que permitem especular sobre que forma essa “religião
universal” poderia ter assumido, um componente importante é o enfoque sobre o ritual
associado a lugares construídos. Isso não sugere serem essas as únicas formas de ritual, mas que
a moldura arquitetônica do ritual certamente se tomou mais importante.
A construção num lugar “sagrado” não é necessariamente responsabilidade de um determinado
grupo, e que fosse prerrogativa de algum, a passagem do tempo deve concorrer para atenuar a
perpetuidade do privilégio.
Vimos como os edifícios podiam degradar-se, cair em ruínas e ser depois reconstruídos,
usualmente de acordo com um traçado semelhante, mas quase sempre maior do que o anterior.
O tijolo de adobe necessita de constante manutenção e de periódica reconstrução, e, embora o
corpo arquitetônico seja inerentemente transitório, ele adquire solidez e volume através de cada
ato de reconstrução.

E tentador considerar a “cidade” de Eridu um espaço cerimonial pertencente a todos, aos


moradores dos pântanos e aos caçadores, aos criadores de gado e aos agricultores, aos aldeões
e aos nômades.
É possível que se tenha tomado um ponto focal por causa de seu distanciamento das ligações
sociais familiares, um lugar bom para ser sepultado, um lugar onde a pessoa deu sua contribuição
para fazer dele um ponto de referência, onde os deuses das profundezas estavam mais perto do
que em qualquer outro lugar, onde a pessoa levava um prato de peixe para cozinhar numa
câmara escura e depois ia embora.
No final do período Ubaid ocorrem os primeiros sinais de declínio. A qualidade dos cacos de louça
deteriora-se, permitiu-se que o último “templo” persistisse por muito tempo num estado de
dilapidação. Os escavadores sugeriram que no inicio do “período Uruque”, o nível arqueológico
no primeiro terço do quarto milênio que se seguiu ao ubaidiano, Eridu “deixou de ser uma aldeia
que apoiava uma comunidade agrícola”. Somente o cômoro central, com sua venerável sucessão
de ruínas, estava ainda em uso. Por outro lado, os edifícios públicos eram reconstruídos numa
escala ainda maior do que antes, no estilo monumental característico da “cultura uruquiana”.
Todo o outeiro estava ocupado com o que os escavadores descrevem como “construções de
caráter religioso e moradias de sacerdotes”. Uma vez mais, as ruínas anteriores eram enterradas
sob uma grande plataforma, desta vez com um terraço de pedra calcaria.
Por algumas centenas de anos, Eridu continuou a existir primordialmente como um centro
cerimonial (ou religioso) no sul, cada vez mais eclipsado pela vizinha Ur, que rapidamente
cresceu em tamanho. Depois, quase de um dia para outro, foi abandonada por completo e logo
soterrada por enormes quantidades de areia que encheram os edificios abandonados, só tendo
ficado de pé o cômoro principal.
O lugar só voltou a ser importante no período Primeiro Dinástico II (c. 2500). Ou um soberano da
Primeira Dinastia de Ur ou um governador local construiu um grande palácio, composto de dois
edificios idênticos lado a lado. Por que dois edificios, continua sendo um mistério. Foram
construídos com os chamados tijolos plano-convexos — retangulares com o topo redondo —,
típicos do período. Os escavadores sugeriram que quem quer que tenha residido nesse palácio
também freqüentava o santuário do cômoro principal, mas não restam vestígios dele devido a
terra-planagem do local uns quinhentos anos mais tarde, na época em que os reis da Terceira
Dinastia de Ur (Ur III) voltaram suas atenções para o antigo santuário de Eridu. O principal
arquiteto desse projeto foi a rei Amar-Sin (c. 2046-203 8). Seu pai tinha construído em Ur um
colossal recinto do templo com um imponente zigurate, e a filho seguiu-lhe o exemplo. Tijolos
com inscrições proclamam que Amar-Sin, “rei de quatro regiões”, construiu “para Enki, seu
amado rei, seu amado Apsu”.
Não há provas de que outros edificios tenham sido construídos além de um zigurate. Embora o
rei de Ur prodigalizasse recursos e mão-de-obra no projeto do zigurate, Eridu não se tornou nessa
época, ao que tudo indica, uma povoação funcional, muito menos uma cidade. Continuou sendo
um santuário, agora mais proeminente e importante pela construção da torre do templo, mas
ainda assim um lugar simbólico dentro do império de Ur — um antigo lugar religioso revitalizado
par patrocínio régio. O rei de Ur nomeou sacerdotes e sacerdotisas especiais, e alguns hinos reais
sugerem que ritos de coroação dos soberanos de Ur III eram realizados em Eridu. Era também o
lugar de destino das jornadas litúrgicas dos deuses, uma forma popular de espetáculo e ritual em
que as estátuas de várias deidades viajavam por barco de templo em templo, de uma ponta a
outra do país.
Da lama primordial, da vida sexual de Enki, da bebida e dos Sete Sabios
Quem eram os deuses de Eridu? Pelos textos que datam dos tempos históricos, conhecemos os
nomes de Enki (a quem os babilônios chamavam Ea), das deusas Nammu e Damgabnunna, e dos
casais divinos Lahmt e Lahamu e Tiamat e Apsu; os nomes de seus antecessores no quinto e
quarto milênios permanecem obscuros.
O mais importante de todos as conceitos associadas a Eridu é a de Apsu (a sumeriana abzu). Era
concebido como um fenômeno natural em termos abstratos e como uma entidade
personificada.
Assim, por um lado, Apsu designa o aspecto fertilizante da água subterrânea e a potencial criativo
da umidade lamacenta. Por outro, em narrativas mitológicas, Apsu pode aparecer coma um
personagem.
Na chamada Cosmogonia de Eridu, a matéria primeva era formada pela mistura das águas doce
e salgada, personificadas como Apsu e Tiamat, respectivamente. Isso ecoa as condições naturais
da área pantanosa, onde se juntam a água salgada e a potável. Apsu é concebido como o
elemento masculino, Tiamat como o feminino; tem uma filha chamada Mummu, que é uma
espécie de matriz de todas as fêmeas e da origem ao Céu e a Terra; e este último casal é quem
procria os grandes deuses. Em relatos ulteriores da criação, Apsu e Tiamat também representam
o caos original informe, a qual tem que ser submetido a uma progressiva série de diferenciações.
Os elementos originais são poderosas e perigosos, imprevisíveis.
A tensão entre essas forças da natureza e os subseqüentes estágios do desenvolvimento é
freqüentemente interpretado como um conflito de gerações. Na épica babilônia da criação,
a Enuma Elis, Apsu, “criador dos deuses”, está inerte e sonolento mas vê sua paz perturbada pelo
bulício dos deuses mais jovens, de modo que se dispõe a destruí-las. Seu neto Enki é escolhido
para representar os deuses mais jovens e recorre a um sortilégio que faz Apsu mergulhar num
sono profundo. A intenção do conjuro é conter Apsu no mundo subterrâneo. Dai em diante, Apsu
torna-se também um mero lugar: diz-se que o deus Enki instalou seu lar “nas profundezas do
Apsu”.
Enki assume então as características e funções de Apsu, as quais são enriquecidas pelos poderes
intelectuais superiores de Enki. O equivalente feminino de Apsu, Tiamat, não é tão facilmente
subjugado, e desencadeia hordas de seres monstruosos que começam a devorar a geração mais
jovem de deuses.
Só Marduk, filho de Enki ou Ea e paladino dos deuses mais jovens, pode dominá-la, com a ajuda
dos quatro ventos e de uma rede mágica. Ele cria o mundo conhecido a partir do corpo de Tiamat,
dividido em dois como uma ostra, o Eufrates e o Tigre jorram das órbitas dos olhos dela.
Vale notar a existência de outra tradição, mais antiga, em que a matéria primeva e criadora era
concebida como uma fêmea e personificada na deusa suméria Nammu. Em genealogias divinas
e em alguns mitos, ela é a mãe de Enki e a deusa-mãe que teria “dado à luz os grandes deuses”.
Nammu e as águas primevas são fruto de geração espontânea, criando vida em si mesmas, sem
um parceiro masculino. Admite-se com freqüência que as deidades femininas são mais antigas
que as masculinas na Mesopotâmia e no culto de Nammu; ou melhor, que o culto do principio
feminino como força criadora aquática, com ligações igualmente fortes com o mundo
subterrâneo, pode muito bem antedatar a de Ea-Enki.
Com Enki numa interessante mutação do simbolismo de sexo, o agente fertilizante é também a
água, em sumeriano, que igualmente significa “sêmen”. Numa passagem evocativa de um hino
sumério, Enki está nos leitos vazios dos rios e enche-os com sua “água”. Em outras narrativas ele
fecunda e irriga ao mesmo tempo.
Abzu também significa o santuário (ès) de Eridu, a “montanha sagrada”, a manifestação
arquitetônica do lugar e forma sagrados na cidade. A água era a substância sagrada por
excelência — sobretudo por sua fundamental importância para a economia no clima de deserto.
A água era essencial, na magia, para purificar e transmitir o sortilégio, para auxiliar na
adivinhação.
As ideias associadas ao Apsu demonstram como um determinado cenário geofísico inspirou um
conceito religioso e metafísico. Isso foi consubstanciado nas construções da cidade de Eridu, que
remontam aos começos da vida sedentária no Sul da Mesopotâmia. A noção de água como fonte
de vida neste mundo e para além da morte desenvolveu-se desde muito cedo e continuou a
informar o pensamento religioso mesopotâmico até o fim.
Durante a primeira metade do terceiro milênio, no período chamada Primeiro Dinástico, as
deidades locais chegaram a ser organizadas num panteão hierarquicamente estruturado de
distintas linhagens divinas. O sistema Eridu concentrou-se em Enki (o Ea acadiano), apresentado
como filho de Nammu, a antiga deusa de Eridu, e de An, a deus-céu, chefe do panteão sumério.
A esposa de Enki era Damgalnunna, e o casal vivia no E-engur, a Casa de Apsu, como era chamado
o templo de Eridu. Seu filho era Asarluhi, mais tarde identificado com Marduk, o deus babilônio.
Havia, além disso, muitas deidades secundárias que se dizia estarem relacionadas com a
genealogia de Eridu.
As relações entre os vários deuses e deusas mesopotâmias eram uma questão de importância
tanto política quanto teológica. Listas de divindades, dispostas de acordo com linhas de
parentesco, já estavam estabelecidos no final do quarto milênio, e a literatura religiosa, os hinos
e os cânticos associados ao culto desenvolveram e aperfeiçoaram ainda mais essas correlações.
A partir do final do segundo milênio, Marduk assumiu muitas das funções de Ea/Enki, sem
contudo substituir totalmente a antiga deidade da água. Enki era o “mestre da magia dos
deuses”, uma função mais tarde assumida por seu filho, Marduk. Os mesopotâmios também
estabeleceram uma ligação entre água e inteligência, ou sabedoria.
Quando Enki (ou Marduk) cria, ele dá origem as coisas através de uma elocução, de uma palavra,
pronunciada para ativar a matéria primaria inerte. A sabedoria de Enki é de natureza tanto
prática quanto esotérica, e que se harmoniza bem com o aspecto criativo. Ele era a deidade
protetora de vários grupos profissionais, como curtidores de couro, lavadores de roupa, artesãos
que trabalhavam com junco, barbeiras, tecelões, construtores, ferreiros, oleiros, técnicas de
irrigação, hortelões, pastores de cabras, assim como de físicos, adivinhos, sacerdotes carpidores,
músicos e escribas. Em histórias mitológicas, Enki conhece a solução para situações
aparentemente difíceis.
Eridu, como a manifestação primária do Apsu, também era considerada o lugar do
conhecimento, a fonte da sabedoria, sob o controle de Enki. Numerosas narrativas foram
elaboradas em tomo desse conceito. Eridu como repositório de decretos divinos é descrita numa
narrativa suméria chamada “Enki e Inanna”.
Enki, escondido no Apsu, está na posse de todos as me, termo sumeriano que abrange todas
aquelas instituições, leis, formas de comportamento social, emoções e símbolos de carga que,
em sua totalidade, eram vistos como indispensáveis ao funcionamento regular do mundo.
Esses me pertenciam a Eridu e a Enki. Entretanto, Inanna, deusa da cidade de Uruque, deseja
obter as me para si própria e levá-las para Uruque. Com esse fim, ela desfralda velas para chegar
a Eridu de barco, sempre o caminho mais fácil para ir de uma cidade da Mesopotâmia a outra.
Enki toma conhecimento da chegada de Inanna e preocupa-se com as intenções dela. Instrui o
seu vizir para a receber com todas as honras e preparar um banquete, no qual ambas as deidades
bebem muita cerveja. Enki não tarda em adormecer, deixando o caminho livre para Inanna
carregar os preciosos me em seu barco, um por um, e zarpar.
Quando Enki desperta da ébria sonolência e dá-se conta do que aconteceu, procura usar sua
magia numa tentativa de recuperar as me. Inanna consegue rechaçar os demônios perseguidores
e chegar sã e salva a Uruque. O desfecho da história não é claro, pois nenhuma das versões
existentes do texto está suficientemente preservada, mas parece que uma terceira deidade logra
a reconciliação entre Inanna e Enki. Esta é, obviamente, uma típica história de Uruque,
concentrando-se nos deuses locais e em seu poder superior.
Ao libertar as me das profundezas do Apsu, Inanna podia não só ampliar seus próprios poderes,
mas também fazer valer os seus decretos entre os humanos. A lista dos me inclui à realeza, as
funções sacerdotais, os ofícios e a música, assim como as relações sexuais, a prostituição, a
velhice, a justiça, a paz, o silêncio, a calúnia, a perjura, as artes dos escribas e a inteligência, entre
muitos outros. A história também mostra que, através da interferência de Inanna, eles se
tomaram imanentes no mundo. Ela os libertou do domínio de Enki em Eridu, onde se presume
que ele os mantivesse fechados a sete chaves. Eridu é sempre relacionada com potencial com
começos, embora não necessariamente com a realização desse potencial.
A fertilidade da Apsu e a fraqueza de Enki para a bebida também figuram em outro mito sumério
da criação, “Enki e Ninmah”. O mito principia com uma espécie de “prólogo no céu”. Nascera a
primeira geração de deuses, conhecida coletivamente como os Anunnaki, e, através de uma série
de casamentos entre eles, surgem novas gerações. Todos eles têm tarefas especificas a cumprir
a fim de manterem a terra bem-cuidada e irrigada.

Alguns têm de carregar os cestos com terra, enquanto os “grandes deuses” atuam como
supervisores. Os deuses trabalhadores queixam-se a respeito de seu trabalho pesada e apelam
a Enki para que pense num plano. Enki, aparentemente isenta de trabalho físico, está entregue
a um sono profundo no Apsu. Nammu, a deusa-mãe, decide despertá-lo e diz-lhe que ele devia
levantar-se e criar o homem.
Enki desperta mas incumbe Nammu da tarefa, ensina-lhe que tudo o que ela tem a fazer é
apanhar um pouca do barro do Apsu e dar-lhe forma. Outra deusa, Ninmah, ajuda-a nessa tarefa
e transfere para a espécie humana a execução do trabalho pesado. Os deuses celebram a perfeita
conclusão da abra de criação do homem com um banquete, e Ninmah e Enki embriagam-se.
Ninmah propõe fazer mais algumas criaturas e Enki está disposto a determinar-lhes o destino.
Ela faz seis humanos, mas estes estão longe de ser perfeitos; todos têm algum defeito. Enki
consegue, por fim, encontrar um “destino” ou ocupação para cada um deles. De um que tem a
vista fraca será feito um cantor; a mulher estéril é confiada uma função ritual; a criatura sem
órgãos sexuais torna-se um alto funcionário na corte, e assim por diante. Depois, é a vez de Enki
moldar novos seres.
As versões existentes do texto estão deterioradas a partir desse ponto, mas parece que Enki faz
duas criaturas. Uma recebe o nome de Umul, que se mostra completamente inviável. Não se
sustenta de pé, não pode sentar-se, caminhar, falar ou alimentar-se. Ninmah declara-se incapaz
de fazer qualquer coisa útil com ele e recrimina Enki, pois sua criatura está condenada a
permanecer para sempre no Apsu. Enki diz-lhe que deve tomar Umul em seus braços — ele seria
o primeiro bebê. Aparentemente, a história explica em tom bem-humorado as desvantagens
físicas e mentais (resultantes da embriaguez das deidades criadoras), a falta de defesas dos bebês
humanos e os deveres da humanidade para com as deuses, que descarregaram nos seres
humanos a pesada tarefa de sustentar o mundo.
“Enki e Ninhursaga” é outra história suméria que exalta a impetuosa sexualidade de Enki. O
“jovem Enki” vive deitado nos pântanos para espiar as deusas núbeis. Consegue engendrar
sucessivas gerações de deidades femininas até que a última, Uttu, a deusa-aranha e tecelã, extrai
dele mais do que apenas sua “água” (um trocadilho com a palavra suméria para “sêmen”). Enki
tem que fazer uma horta para ela e plantar pepinos e frutos. Nessa história, comer um fruto, tal
como na história do Genesis, leva ao relacionamento sexual e a subseqüente proliferação da vida
vegetal.
A última das histórias de Eridu é a história babilônia de Adapa, o sacerdote de Ea. Cópias do texto
foram descobertas na cidade egípcia de Akhetaton (Tell el Amiarna), a capital construída pelo
faraó Akhenaton da XVIII Dinastia. No século XIV, os governantes em todo a Oriente Próximo
empenhavam-se em trocas diplomáticas de princesas, oura e outros artigos de elevado status e
prestígio. O veículo usado para suas comunicações era a escrita babilônia em caracteres
cuneiformes. Plaquetas eram transportadas do Egito para a Anatólia, da Palestina para a Egito,
da Síria para a Babilônia, e vice-versa. A cultura mesopotâmia chegou assim a cortes bem
distantes.
Outra cópia da história vem da biblioteca de Nínive, a mais abrangente coleção de literatura
cuneiforme. A versão de Akhetaton é um pouco diferente da assíria, mas o enredo principal é a
mesmo. Adapa é um dos Sete Sábios criadas por Enki como seres humanos exemplares. Ele serve
a Enki em Eridu, onde está encarregado de prover as oferendas alimentares para o deus. Para
isso, tem que ir pescar na laguna, a qual está geralmente tão tranqüila que ele não necessita de
leme nem de timão. Um dia, porém, o venta sul virou-lhe o barco. O ensopado Adapa roga uma
praga contra o vento capaz de “lhe quebrar as asas”. Suas palavras tem tal poder que o vento
ficou imobilizado e não soprou “durante sete dias” (o que significa muito tempo). A falta de vento
(que leva ar fresco ao altiplano) atraiu a atenção de Anu, um deus superior, que ordena que a
culpado seja conduzido à sua presença para julgamento. Enki, “que conhece o modo como o céu
trata das coisas”, decide que Adapa tem que ser preparado para essa importante viagem. Instrui
o seu sacerdote a vestir roupa de luta e dizer aos dois deuses, Dumuzi e Ningishzida, a quem
encontrara guardando os portões do palácio de Anu, que está lamentando muito o
desaparecimento de ambos da terra. Essa exibição de pesar tem o propósito de acalmar os dois
deuses da vegetação, que sofreram indiretamente por causa da praga de Adapa.
Adapa é levado ao céu e aí segue ao pé da letra o conselho de Enki. Dumuzi e Ningishzida
prometem interceder a favor dele e a cólera dc Anu é apaziguada graças a intercessão de ambas.
Pergunta a Adapa de ande vem toda a sua sabedoria, e, quando descobre que Enki está por trás
dela, oferece a Adapa óleo, roupas e a “água e o alimento da vida”, o que fará com que ele “se
tome igual aos deuses”. Entretanto, como Enki também tinha prevenido Adapa para não aceitar
a “água e o alimento da morte”, este rejeita a presente de Anu. Em face dessa aparente
insensatez humana, Anu irrompe em “gargalhadas divinas” e manda Adapa de volta a terra.
Qual era a verdadeira intenção de Anu? Pretendeu ele fazer com que Adapa, tão completo em
sabedoria a ponto de ser quase divino, se tornasse verdadeiramente imortal? Ou riu por ter sido
superado em esperteza pelo astuto Enki, que sabe que aquela “água e alimento da vida” para os
deuses significa justamente o oposta para as seres humanos? A intenção da história está nessa
ambigüidade, um lembrete de que o homem, mesmo que seja como Adapa, um dos Sete Sábios,
não pode conhecer os insondáveis “caminhos do céu”.

Você também pode gostar

pFad - Phonifier reborn

Pfad - The Proxy pFad of © 2024 Garber Painting. All rights reserved.

Note: This service is not intended for secure transactions such as banking, social media, email, or purchasing. Use at your own risk. We assume no liability whatsoever for broken pages.


Alternative Proxies:

Alternative Proxy

pFad Proxy

pFad v3 Proxy

pFad v4 Proxy