O Afeto Que Não Ousa Dizer Seu Nome

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O afeto que não ousa dizer seu nome

observação sobre a vergonha

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KRUTZEN, Henry. O afeto que não ousa dizer seu nome: observações sobre a vergonha.
Biblioteca Virtual do Instituto VOX de Pesquisa em Psicanálise, setembro de 2019.

O afeto que não ousa dizer seu nome1


observações sobre a vergonha

KRUTZEN, Henry

La honte... Peut-être est-ce justement cela le trou d’où surgit le


signifiant maître.

Jacques Lacan, L’envers de la psychanalyse.

The most powerful affect a person is unable to modulate is the


experience of shame.

Philip Bromberg, Awakening the Dreamer.

One need not be a chamber to be haunted,

One need not be a house;

The brain has corridors surpassing

Material place.

Emily Dickinson, Poem 670 – Part Four: Time and Eternity.

A clínica nos traz, com frequência, situações em que a vergonha se revela


presente, de maneira discreta, ou maciça, segundo os casos. A vergonha nos toca na
dimensão do nosso ser. Temos vergonha do que somos. É o sentimento de querer
desaparecer, de que um buraco se abre no chão para nos engolir, de que nossa existência
cessa, aqui e agora. Clinicamente, o trauma, quer ele esteja pontual ou ligado ao
desenvolvimento, tem uma relação íntima com a vergonha, quando a dissociação toma
conta de uma parte do self, parte separada, mas que se ativa nas várias encenações
produzidas, como tentativas de se fazer ouvir.

Uma primeira observação merece ser feita sobre a diferença entre a vergonha e a
culpa. É de nossos atos, reais ou imaginários, que sentimos culpa, como a justiça

1
Segundo uma expressão feliz de Daniel Hill (2015).
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entendeu-a muito bem a declarar um réu culpável por tal ou tal delito. O tamanho do
delito deve até delimitar o tamanho da punição, na tentativa linear de resolver as
vicissitudes dos sistemas vivos. Isso não significa que vergonha e culpa não tenham
nenhuma relação a compartilhar; uma pode até esconder a outra, disfarçá-la, na tentativa
de fazer o outro acreditar que nossa vergonha, no fundo, é apenas uma culpa (para assim
dizer!) e que não se trata aqui do nosso próprio ser que está em perigo de cessar de existir.

O trauma produz lesões no self que são dificilmente resolúveis. O estupro ao qual
fui submetida faz agora parte de mim, é uma parte de mim, e, dessa vergonha, não
consigo, não posso, me livrar. Esse bullying que me acompanhou durante todos esses
anos de colégio adentrou de mim, sob minha pele, é presente a cada momento da minha
vida e me lembra aquele “nada” que eu sou. Essa negação permanente, cotidiana, da
minha existência, na minha família, esse não querer saber de mim, me marcou de tal
maneira, no meu ser, que a própria invisibilidade me caracteriza. Para minha
sobrevivência, precisei afastar de mim essa parte do meu self, para ela não existir mais e,
quando ela se manifesta, eu não estou ali, presente, mas uma parte desconhecida de mim
– mas apropriadamente não mais conhecida – se apresenta, desesperadamente querendo
ser ouvida por quem não tem as menores condições de poder ouvir nada, meus próprios
abusadores, ou agentes do desamparo da minha vida. Eles serão depois substituídos pelos
representantes, surdos e cegos, dos poderes que foram pervertidos de maneira originária.
Serão os professores, policiais, funcionários públicos, padres, detentores de uma
autoridade que já não podem mais ter efeito estruturante sobre meu desamparo
desesperado, a vergonha do meu ser, que os comportamentos antissociais vão ter como
função iterativa de representar.

Cegueira e surdez caracterizam o meu novo contexto social onde vou me inserir
com aqueles que, testemunhas de feridas similares, me reconheçam como pertencente ao
grupo deles ou delas. A ciranda infernal acelera o ritmo, e as estigmatizações se
multiplicam. O destino está me aguardando na esquina, na figura de uma bala, perdida ou
não, que poderá, como ponto final, assinar minha autobiografia da mesma maneira que
ela foi iniciada, anos atrás, pela morte, morte real respondendo à morte psíquica!

A vergonha constitui uma fenda do ser, uma fenda que apenas a dissociação pode
tratar, num primeiro tempo, como único método de sobrevivência disponível: sair do
corpo, não estar presente, desmaiar, esquecer de si em um estado do self isolado dos
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outros. A esta dimensão qualitativa devemos juntar um fator quantitativo, na medida que
modulações diferenciais existem nas condições do meio ambiente que proporcionaram as
experiências suscetíveis de dissociação. Ou seja, existem casos mais graves ou mais leves,
e podemos considerar que cada um de nós precisa aprender a se virar com sua vergonha
e as suas dissociações. Isso é válido também para o analista durante o processo analítico.

Vamos ver como essa questão pode ser pensada, hoje em dia, com os últimos
avanços da teoria e da clínica psicanalíticas. Na psicanálise clássica, a vergonha foi
tratada en passant, sem ter sido destacada como necessitada de uma elaboração mais
refinada. Todavia, hoje, a evolução da clínica, com suas sintomatologias de desamparo,
de deriva ou de falta de pontos de referências, traz à tona a necessidade de pensar melhor
este afeto, que insiste cada vez mais nas consultas e nos tratamentos. As recentes
colocações, a partir das elaborações de Ferenczi (1932, 1933) sobre o trauma, com a
moderna redescoberta da noção de dissociação, abrem novos espaços para poder acolher
o sofrimento daqueles que, tendo a vergonha no núcleo do seu ser, não têm outra opção
que a de encenar essas vivências dissociadas.

Freud e a vergonha

Freud não fala especificamente da vergonha. Na maioria dos casos, ele junta a
vergonha com outros sentimentos.

Assim, Nos Estudos sobre histeria (1895), a vergonha aparece quando se procura
uma explicação para a força que se opõe à emergência na consciência das lembranças
esquecidas pelas histéricas. Freud está discutindo a questão da resistência e lhe ocorre
“que esta (a força) devia ser a mesma força que havia concorrido para a formação do
sintoma histérico” (p. 377). O que é essa força e quais são essas ideias que são esquecidas
e tiradas da consciência? Aí surge o pensamento de que se trata de uma defesa. Essas
ideias são ideias que têm uma característica comum,

eram todas de natureza penosa, apropriadas a suscitar os afetos da


vergonha, da desaprovação, da dor psíquica, o sentimento de ser
prejudicado, todas de gênero que de bom grado não teríamos vivido,
que preferimos esquecer. (p. 378)

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Dali, Freud continua introduzindo a censura como “força de repulsão cujo


propósito era a defesa contra essa ideia intolerável” . Ou seja, em 1895, já temos as noções
de resistência, defesa e censura em construção e a vergonha se insere neste contexto como
afeto penoso que preferimos esquecer, um tipo de causa traumática. Ainda estamos antes
da virada de 1897, quando Freud abandonará sua Neurotica e a teoria da sedução junto
com a noção de trauma, causador de transtornos psíquicos, para construir o modelo
intrapsíquico da psicanálise, a partir da consideração de que essas lembranças, na verdade,
não passam de fantasias sexuais construídas pela mente das pacientes histéricas.

Freud volta ao assunto em 1896, no texto Observações adicionais sobre as


neuropsicoses de defesa. Discutindo um caso de paranoia e de alucinações visuais sobre
mulheres nuas nos banhos, aponta que a paciente teria se sentido envergonhada por essas
visões, o que remetia ao fato de ela própria ter muita vergonha de ser vista nua. Freud
conclui que deve ter recalcada alguma coisa em relação a essa vergonha, pelo
funcionamento do mecanismo de defesa. E essa coisa recalcada deveria ser relacionada a
alguma coisa de que ela não se envergonhara (p. 177). A partir dessa hipótese, Freud
descobre que a paciente, quando tinha seis anos, gostava de se despir no quarto de criança,
diante do irmão, sem sentir a menor vergonha. É a vergonha que era suprimida pelo
recalque, e essa constatação apoiaria as ideias já formuladas no ano anterior nos Estudos
sobre histeria.

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud vai desenvolver
mais a noção de força, aprofundando a sua teoria apresentada em detalhes em 1900, no
livro A interpretação dos sonhos. A vergonha, agora, é identificada à “força que se opõe
ao prazer de olhar” (p. 51). Aqui a vergonha aparece várias vezes, mas ligada a um
conjunto de sentimentos como o nojo, o desgostar de coisas sujas, como, por exemplo,
em algumas considerações sobre a sexualidade, particularmente nos casos de
masoquismo e de atitude passiva: “A dor que assim é superada se alinha ao nojo e ao
pudor, que se opuseram à libido como resistências2” (p. 53). Aparece também nos casos
de perversões onde “o instinto sexual realiza coisas assombrosas (lamber excrementos,
abusar de cadáveres) na superação de resistências (nojo, vergonha, dor, horror)” (p. 56).
Aqui, de novo aproximada à resistência, a vergonha se insere neste conjunto com o nojo,

2
Este parágrafo foi acrescentado em 1915. O tradutor traduz Scham por pudor e não vergonha, mas é bem
a mesma palavra que aparece no texto alemão.
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a dor e o horror. Um pouco depois, Freud acrescenta a moral no conjunto (p. 62). Enfim,
liga a vergonha ao desenvolvimento das inibições da sexualidade, junto com o nojo e a
compaixão, no contexto da diferenciação de homem e mulher (p. 138). A vergonha torna-
se assim, neste texto, uma força capaz de causar o recalque, ou enquanto força que se
opõe a atuação da sexualidade (1905).

Uma nova vertente dessa questão aparece no texto de 1908, O escritor e a fantasia,
em que Freud desloca a problemática na direção da noção de fantasia. Aproximando o
ato de fantasiar no adulto do brincar das crianças, Freud traz o fato de o adulto se
envergonhar das suas fantasias:

O adulto, porém, envergonha-se de suas fantasias e as oculta dos


outros, acalenta-as como seu bem mais íntimo, geralmente preferiria
confessar suas transgressões a comunicar suas fantasias. Pode
acontecer, por causa disso, que ele se considere o único a ter essas
fantasias e não faça ideia de que criações similares são comuns nos
outros indivíduos (p. 329).

Em Análise do self, Kohut (1971) confirma essa hipótese de Freud sobre vergonha
e fantasia. Assim, o desejo sexual poderia ser atuado, com os objetos de amor, na medida
em que o amor pode se autorizar a ultrapassar a vergonha (Frommer, 2012).

O fantasiar é vivido como algo ilícito, infantil e proibido, logo, produtor de


vergonha; o que não é o caso do brincar da criança. Esses dados de Freud têm grande
valor clínico, em virtude de que já foi bem comprovado que o trabalho em grupos, com
pessoas traumatizadas, tem efeitos terapêuticos remarcáveis. Pelo simples fato de
propiciar oportunidades de desmontar a solidão fantasística do paciente traumatizado, o
grupo oferece um lugar privilegiado de identificação imaginária, no qual cada um
experimenta a vivência de que os acontecimentos que ocorreram consigo, também
aconteceram com outras pessoas. E estas “sabem” do que estão falando, por terem
passado por traumas similares (Roisin, 2010).

Enfim, em 1916, nas Conferências introdutórias à psicanálise, Freud aborda o


tema da vergonha e sua relação com a angústia na conferência XXV. A angústia é
considerada como “a moeda universal corrente, pela qual são ou podem ser trocados todos
os impulsos afetivos, quando o conteúdo ideativo a eles ligados foi submetido à

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repressão” (p. 534). Neste contexto, Freud coloca a vergonha numa série de correlatos
inconsciente da angústia histérica, junto com a própria angústia e o embaraço.

Freud aborda o tema em alguns outros escritos, mas não desenvolve a questão de
maneira sistemática e sempre evoca a vergonha en passant.

Vergonha e culpa

Vamos retornar à diferença entre vergonha e culpa, já esboçada em nossa


introdução. Muitas vezes, culpa e vergonha são confundidas e, clinicamente, pode ser
importante separar esses dois afetos, já que remetem a processos bem diferentes. Hill
(2015) fornece algumas pistas interessantes para definir e separar ambas.

Primeiro, lembramos que a vergonha implica a globalidade do nosso self,


enquanto a culpa, geralmente, remete a ações específicas que cometemos. Assim, o efeito
de cada uma vai ser muito diferente.

A vergonha produz um desejo de se esconder, de desaparecer, de fugir, de se


afastar do olhar do outro. Este outro, de quem quero me afastar, é um outro valorizado,
um cuidador, ou um olhar social dos meus pares, como a turma da escola, ou um grupo
de amigos. Em um instante, me sinto exposto, rejeitado, negado, paralisado,
desamparado, com muita dor. O efeito é brutal, visceral, doloroso e estou me
desorganizando, não sei mais quem eu sou, só quero desaparecer, estar longe dali, longe
deste olhar, destes olhares. Quero correr, para longe, muito longe, mas estou paralisado,
não consigo mexer um músculo, nem consigo tampouco pensar; a paralisia é total. Estou
a mercê do outro, do olhar do outro, fisgado, petrificado, como se estivesse sob o olhar
mitológico da Medusa.

A vergonha tem expressão facial, e entra nas expressões das emoções categóricas,
encontradas em todas as culturas, segundo Darwin (1872), e está junto à tristeza, à alegria,
à raiva, à surpresa, ao medo e ao desgosto. Tem uma característica pré-verbal. É um
estado sem palavras, de captação no olhar do outro, sem nenhum recurso. A solidão é
total e podemos pensar, num momento de apego desorganizado, na teoria do apego.
Schore (1994) confirma que a vergonha implica auto-representações visuais,
armazenadas no hemisfério direito do cérebro com padrões não verbalizáveis (p. 487).
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A culpa incide em um outro lugar. Ela não produz essa paralisia, mas um desejo
de desfazer, de se redimir, de tentar acessar o perdão, seja o meu ou o do outro. Localizada
na mente, muito mais do que no corpo, como é o caso da vergonha, a culpa não se
manifesta com a mesma dor aguda, ela pode ser mais silenciosa, discreta. Ao contrário da
vergonha, a culpa não tem expressão facial categórica. A culpa é sobre algum fato e
pensamento. Remete a nossa experiência das emoções dos outros, sobre um tal fato que
aconteceu. A culpa questiona esse evento e, também, como esses outros foram afetados
pelo fato e suas consequências. Quem foi machucado, ferido? Em um segundo tempo,
vem o desejo de se redimir, um movimento para a reparação e a restauração. A culpa pode
implicar a desculpa, a justificativa, a explicação. Se a reparação acontecer, a culpa poderá
ser descarregad,; o ato de restauração respondendo ao ato que, em um primeiro tempo,
produziu a culpa3. Essa restauração acontece dentro de um contexto simbólico e verbal,
através de uma própria elaboração da culpa.

Do lado da vergonha, nenhuma reparação é possível na dimensão verbal e


simbólica. A fenda foi produzida e a única esperança pode ser, com um prazo muito curto,
a restauração do contato ocular, compartilhado. Essa restauração acontecerá, por
exemplo, com a explosão de um riso. É a conexão emocional que precisa ser restaurada,
como acontece, momento por momento, nas relações diádicas entre cuidador e infante:
durante uma brincadeira, de repente, os dois não estão mais afinados e as coisas
desandam. Geralmente, no melhor dos casos, o cuidador se reconecta com o infante,
através do olhar ou da prosódia, de um sorriso e a atividade continua. Naturalmente, a
reiteração positiva dessa sequência favorece um apego seguro e aumenta as possibilidades
de regulações futuras nos momentos de desregulações emocionais, pelas expectativas
construídas nesses momentos de troca emocional.

Vergonha e apego

A vergonha pode ser modulada, no caso de um apego seguro. Assim, permite a


elaboração da grandiosidade e do egocentrismo. Lembremos a fantasia de onipotência
descrita por Winnicott (1969), que pode ser elaborada quando o outro aparece como

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Deixamos aqui de lado a questão mais específica da culpa inconsciente, a ser tratada num outro contexto.
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separado, por ter sobrevivido à fantasia de destruição. Do ponto de vista da teoria


moderna do apego, a vergonha modulada permite uma aceitação mentalizada das partes
“deficientes” do self4. É o lugar de origem da resiliência, dependendo da capacidade do
cuidador de poder regular a sua própria vergonha. Nesta vertente, podemos ver que a
vergonha pode ter uma propagação transgeracional e passar do cuidador ao infante, nas
trocas e regulações emocionais da constituição do inconsciente implícito e procedural.

Neste contexto, o caráter determinante dos traumas não pode deixar de ser
considerado. O trauma do apego, igualmente chamado trauma do desenvolvimento ou
trauma relacional, se encontra presente em todos os casos de transtornos por traumatismo
psíquico. Tem como primeira consequência a própria dificuldade de buscar ajuda (Roisin,
2010; Hill, 2015). O isolamento crescente caracteriza essas pessoas que sofreram
mudanças no self, de maneira radical. Por quê? Porque a fenda veio, provocada por quem
era a pessoa com que contavam mais para a edificação do seu senso de self. E o resultado
é que o trauma é integrado na própria estrutura do self, enquanto vergonha; e não do lado
do outro, abusador. A vergonha vai assim fazer parte, invadir o self,

nos efeitos cumulativos de desafinações crônicas, de vergonha


imoderadas, e de episódios repetidos de desregulação prolongada que
acontecem nas relações de apego inseguro durante o período crítico de
desenvolvimento do sistema primário 5 de regulações dos afetos (Hill,
2015, p.154)

Esta vergonha que aparece no trauma relacional vai ser dissociada, e vai continuar
presente ao fio dos anos, mas separada, isolada, ilhada numa zona reservada, que só pode
aparecer em alguns momentos de “gatilho”, quando estamos vivendo um momento, como
que fora de nós, em um estado de “semi-transe”. O apego inseguro assim pode ser
considerado como uma adaptação à vergonha crônica.

Por exemplo, uma criança volta da escola, orgulhosa do resultado ótimo que teve
numa prova difícil e apresenta o boletim à mãe. Esta, não está interessada, não reconhece
o êxito e reage com indiferença, ou pior, com desgosto, ou até nojo, por razões ligadas à
sua própria constelação psíquica. Se esta cena se repete com regularidade, configurando
um padrão de funcionamento dentro dessa família, as consequências ao nível do apego

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Um tipo de “castração” simbólica, na medida que o outro como separada entre no processo.
5
Implícito.
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serão importantes. A vergonha produzida, nessa pequena cena, vai ter que ser tratada de
uma maneira ou de outra pela criança. A solução seria uma reconexão emocional rápida
entre os protagonistas dessa cena, com risos e abraços. Sem esse reparo e se a situação se
tornar comum, a vergonha vai ser dissociada e reaparecer de maneira diferenciada em
função do tipo de apego inseguro criado.

No caso de um apego resistente, a vergonha, quando aparecer, será expressa com


altos níveis de excitação, muito barulho, gritos, esperneadas e confusões. A fala vai
acelerar sobre alguns conteúdos, ou o discurso vai ser interrompido por uma mudança
abrupta de assunto, de contexto.

No caso do apego evitante, encontraremos a timidez, a inibição, a reticência,


sentimentos de inferioridade, de não valer nada etc. Outras manifestações poderão ser a
evitação do olhar, a diminuição do volume da voz, alcançando quase o silêncio.

O traço em comum é a humilhação. Sabemos que a vergonha está chegando na


situação analítica pelas conexões/desconexões emocionais inevitáveis que a dupla
experiencia. A sequência das afinações, desafinações e re-afinações dá o ritmo ao tempo
das sessões. O foco deve estar nas encenações que estão chegando, inevitáveis, pelo
próprio fato da origem não-verbal da vergonha.

Vergonha modulada e vergonha nuclear

Cozolino (2014) diferencia uma vergonha apropriada (modulada, na definição


mais adequada de Hill) que precisa ser experimentada como socialização (Schore, 1994),
e uma vergonha nuclear que se desenvolve cedo na infância, com o aparecimento de um
apego inseguro.

No caso da vergonha modulada, além de permitir a elaboração das fantasias de


grandiosidade, como já dissemos, ela dá acesso à capacidade de entender o outro, assim
como suas expectativas, e a uma habilidade de julgar os seus comportamentos, com o
desenvolvimento do controle cortical para inibir alguns impulsos (Cozolino, 2014, p.
282). Esses achados correspondem, assim, à intuição freudiana dos Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade (1905). Para Schore (1994), “a vergonha é o afeto essencial, que

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tem função mediadora na socialização” (p. 200). E, acrescenta que tem implicações
importantes na constituição do supereu (p. 360-362).

As expressões faciais são utilizadas pelo cuidador para expressar desaprovação e


até nojo na criança que, já capaz de se locomover durante o segundo ano 6, experimenta
uma vergonha, depois de algum comportamento que peça uma intervenção educativa,
apesar de ser objeto de prazer. Excitada e empolgada, a criança, surpresa pela reação,
recebe a desaprovação como um banho gelado. Esse choque emocional produz uma queda
da excitação e o predomínio do sistema autônomo simpático dá lugar a uma diminuição
severa da excitação e a uma passagem para o domínio do sistema parassimpático. A
expressão do cuidador induz a inibição e produz uma vergonha modulada na criança.
Mas, rapidamente, o que poderia ser o início da constituição de uma vergonha nuclear,
em um segundo tempo, vai ser apagado pelo cuidador, pela reconexão emocional com a
criança, resolvendo a situação estressante para voltar às trocas afinadas (Schore, 1994).

As transações interativas de reparo deste período crítico não têm


apenas efeitos de curto prazo, mas também de longo prazo sobre as
capacidades socioemocionais da criança em desenvolvimento. A
experiência de estar com um outro regulador (ou desregulador) é
incorporada numa representação interativa duradoura. Tal
representação poderá ser acessada no futuro para poder autorregular
estados de vergonha (Schore, 1994, p.248).

Desse modo, dentro do processo e com a iteração dessas intervenções educativas,


a inibição, por via da vergonha, será transmitida e o comportamento contrário às normas
educativas será considerado como extinto. Assim, “porque a vergonha é um princípio de
organização muito poderoso, pré-verbal e com fundamentação fisiológica” (Cozolino,
2014, p.285), ela vai ter uma função de socialização muito importante.

Todavia, o seu uso exagerado tanto qualitativa quanto quantitativamente, pode


abrir o caminho para a vergonha nuclear, com suas consequências de dificuldades a longo
prazo, de apego inseguro, levando à depressão, baixa autoestima, raiva, repetições de
fracassos com correlatos biológicos de diminuição do funcionamento do sistema

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O toddler em inglês.
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imunológico, níveis elevados de cortisol7 e neuroplasticidade diminuída (Cozolino,


2014).

Assim, nossa baixa estima e nossa vergonha ficou “programada” bem cedo em
nossa vida, de uma maneira tal que quase não conseguimos nos dar conta da sua própria
existência. É um pouco como o sistema operacional do nosso computador, Apple O.S. ou
Windows, que consideramos como obviamente presente cada vez que ligamos nosso
aparelho para fazer qualquer trabalho, ou atividade de lazer (Cozolino, 21014), sem que
nos demos conta da longa programação que foi necessária para chegar a este resultado.

Além disso, a vergonha modulada tem um papel muito importante nas regulações
emocionais e, por conseguinte, nas interações sociais do nosso cotidiano. Quando o
cuidador não é capaz de modular a vergonha nas trocas mútuas e nas regulações com o
infante, a internalização e a organização deste sistema regulatório acontecem com
dificuldades. Isso pode ser “associado a uma expectativa de estados internos em auto-
desorganização”, sem regulação possível, caracterizando um apego inseguro resistente e
transtornos narcísicos da personalidade.

Vergonha e processo analítico

A vergonha tem uma ligação privilegiada com o trauma. Já vimos a importância


do trauma relacional no processo, implicando vergonha e dissociação. O trabalho de
Bromberg (1998, 2006, 2012) traz uma abordagem clínica importante para a compreensão
e o manejo desses momentos difíceis que encontramos com regularidade em nossa prática
clínica.

Uma primeira observação importante é a consideração da expressão do trauma


dentro do enquadre do tratamento. O rasgamento de uma parte (ou de todo) do meu tecido
psíquico constitui um momento inassimilável. É um “demais” insuportável, que minha
mente não consegue engolir, apaziguar. Existe uma fenda e essa fenda se abre para partes
dissociadas que não são mais disponíveis para uma circulação integrativa dos vários
estados do meu self. Estou dividido, mas essa divisão vai além da “ex-sistência” que uma

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Hormônio diretamente envolvida na resposta ao estresse.
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integração favoreceria; alguma coisa quebrou e o rasgamento, não formulado (Stern,


1997), se repete e insiste na minha vida, em cada momento.

Neste contexto, a narração do evento traumático não alivia, não ajuda nenhuma
elaboração. O fato deste evento ter constituído este momento inassimilável, implica que
ele não foi “processado”; ele é guardado, não formulado e não processado, na memória
implícita (ou procedural, inconsciente). Nenhuma associação livre vai poder trazer as
“formações do inconsciente” permitindo uma tradução e uma elaboração (no sentido da
Durcharbeitung de Freud, 1914) do material recalcado, porque, de fato, nada foi
recalcado. Trata-se de dissociação e o isolamento de um dos estados do self não é
alcançável pela técnica clássica psicanalítica, como desenvolvida nos chamados “escritos
técnicos” de Freud, na década de 1910.

Na verdade, o fato de contar o evento traumático, não alivia, mas cria uma
revivência horrível da emoção não processada. Quando a experiência traumática é dita,
ela é revivida e este próprio dizer produz a vergonha. Se o reconhecimento dessa vergonha
não acontece, se a repetição se limita a essa revivência, a situação piora. “Ela piora porque
a parte do self que guarda a vergonha permanece dissociada e o paciente se sente ainda
mais sem esperança do que antes” (Bromberg, 2012, p. 182).

Do outro lado, no decorrer do processo analítico, fica pouco provável que nenhum
indício de tal revivência aconteça em alguns momentos. Naturalmente, a posição do
analista será crucial, na medida em que a volta de tais momentos, como concretizações
da presença de estados dissociados do self, não é o resultado de seus “empurrões”.
Quando isso acontece, automaticamente, a vergonha fica ativada no aqui e agora da
sessão. Não é evitável porque essa emergência é ligada à própria instância inconsciente
do analista, que pode, por exemplo, estar orgulhoso dos seus “sucessos” terapêuticos.
Assim, “como o self é relacional, a desestabilização do self também é relacional”
(Bromberg, 2012, p. 180).

Ou seja, essa comunicação acontece sob a égide da vergonha. Mas por que essa
vergonha não pode ser dita? É pelo fato de que a pessoa que está no lugar de querer aliviar
a aflição, o analista, está também no lugar de quem a cria! Dessa maneira, a própria ânsia
de querer aliviar a aflição cria a sua própria dissociação. O analista torna-se um jogador
naquilo que está revivido. “Ele está encenando o papel do outro original” (Bromberg,

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2006, p. 90) em relação a quem a vergonha apareceu. O paciente se sente assim


“maltratado” pelo analista e a vergonha termina confundida com a resistência (Benjamin,
2004). Ou seja, o paciente não consegue falar sobre sua experiência presente, porque lhe
falta representação simbólica. Isso vai levá-lo ainda mais à vergonha, independentemente
de qualquer qualidade de holding fornecida pelo analista. A própria vergonha vai ser
aplicada sobre ela mesma e o paciente vai entrar numa vivência de vergonha sobre a
vergonha, de estar lá, face ao outro que “quer” ajudar, mas que, na verdade, está
ampliando o sofrimento. Entra então no desejo desesperado de ter essa vergonha
reconhecida, por esta mesma pessoa que a está também causando. Invariavelmente, este
desejo não encontra reconhecimento por causa da sua própria natureza paradoxal. E mais
vergonha acaba desencadeada. O menor sinal proveniente do analista será interpretado
como negação deste reconhecimento e é particularmente quando se manifestará na forma
de uma “posição analítica” clássica, apoiada sobre a neutralidade, a frustração e a
abstinência. Bromberg (2006) acrescenta:

O analista está, naturalmente, em um vínculo impossível porque ele não


pode “fazer” nada sobre isso. Qualquer coisa que ele fizer, vai ser cada
vez mais levada pela intensidade de um assalto invisível contra o
próprio senso de seu valor. Experienciar a dor e causar a dor começam
a se misturar, e seu crescente fracasso de “fazer” alguma coisa em
relação à dor do paciente, gradualmente o leva a “se tornar”, de fato,
a pessoa que o paciente já tem a experiência com o que ele é. O analista
fica submerso, de maneira dissociativa, em um esforço de afastar sua
vergonha, como se ele estivesse coberto por alguma coisa feia de que
ele se sente estranhamente parte. Enquanto ele começa a perder
involuntariamente seus limites, ele se torna uma parte da dinâmica da
vergonha do paciente (p. 91).

Mas, então, se o paciente não consegue comunicar diretamente, pelas palavras,


essa aflição, este desejo de alívio, esta vergonha, como fazer?

É aqui que surge o processo mais importante no tratamento dos estados


dissociados do self, e das vivências traumáticas. A comunicação dos estados dissociados
vai passar pelas encenações8 que vão acontecer, no dispositivo analítico, entre paciente e
analista. Essas encenações serão criações da dupla, num processo diádico similar às trocas

8
Traduzimos pela palavra “encenação” o substantivo inglês enactment.
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entre cuidadores e infantes. Como a vergonha foi produzida neste campo pré-verbal que
já descrevemos, seus entornos procederão com essas mesmas características. Ela não
pode então ser integrada em nenhum movimento de verbalização, de colocação nas
palavras ou qualquer processo favorecendo a dimensão da fala. Pelo contrário, ela vai
precisar de um acontecimento no decorrer das vivências da dupla psicanalítica.

A grande dificuldade, naturalmente, é a identificação, pela dupla, desses


momentos cruciais do tratamento, além de considerações que poderiam encobrir o
assunto, por exemplo, no campo da transferência-contratransferência. Como o
psicanalista está envolvido na encenação, junto com o paciente, esse momento crucial
pode ser despercebido, perdido e, pouco a pouco, se desenvolver como um tipo de
cegueira específica, designada para não vislumbrar esses acontecimentos. As encenações
vão se sucedendo e “o analista não consegue enxergar os altos níveis de vergonha do
paciente, porque é dissociada demais” (Bromberg, 2006, p. 80). Cada vez que se repete,
o processo entra nas mesmas encenações, exatamente porque o analista não atende
suficientemente o nível de vergonha alcançada no processo. Configurará, assim, um
conluio inconsciente entre o paciente e o analista, tornando provável o caráter
interminável da análise. Neste contexto, a passividade terapêutica terá como efeito uma
ampliação da vergonha que o paciente não tem condição de tratar sozinho; ele está isolado
– mesmo na presença do outro – na experiência da vergonha, ele está paralisado e precisa
da ajuda do outro para poder voltar para interações interpessoais.

A encenação não é evitável e precisa de ser trabalhada pela díade analítica. Qual
é sua natureza? Bromberg (2006) propõe:

O que os analistas interpessoais / relacionais chamam de processo de


comunicação inconsciente como encenação é, do meu ponto de vista, o
esforço do paciente para negociar assuntos inacabados nessas áreas
do self onde, por causa de um grau ou outro de experiência traumática,
a regulação dos afetos não foi suficiente para permitir um
desenvolvimento continuado de processamento simbólico pelo
pensamento e pela linguagem. Considerando isso, a dimensão central
do processo terapêutico consiste em aumentar a competência na
regulação afetiva sem desencadear a ameaça de uma retraumatização
(p. 181-182).

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Essa posição de Bromberg corrobora as numerosas pesquisas sobre a mentalização


(Fonagy et al., 1998, 2002; Allen et al., 2008). Tratamos em um outro lugar (Krutzen,
2019) dessa noção fundamental para pensar a regulação dos afetos secundários no
tratamento psicanalítico.

A questão da dissociação precisa da nossa atenção desde os primeiros encontros


com o paciente. Ela comporta a necessidade de acolhimento da vergonha produzida pelo
surgimento das partes dissociadas dentro do setting analítico. Nenhuma resolução de
conflito pode ser alcançada antes dessas partes dissociadas serem abordadas. Trata-se da
possibilidade mesma de constituição de conflitos como espaço de ampliação secundária
da cena psicanalítica. O tratamento dos estados de self dissociados é um pré-requisito
para construir um campo onde os próprios conflitos poderão ser trazidos e elaborados na
dimensão verbal da fala e da linguagem. A capacidade de experienciar um conflito
intrapsíquico não é um dado automático da configuração do tratamento psicanalítico, mas
já o resultado de um trabalho de regulação que apenas as encenações emergentes, dentro
do processo, podem trazer à tona. As partes dissociadas podem ser variadas e de
importância diferenciadas, dependendo de cada caso.

A vergonha constitui uma ameaça, similar ao medo. Então, essa ameaça necessita
de uma reação de emergência porque o self está prestes a ser violado. Como esta ameaça
tem como corolário a minha própria paralisia e meu corpo não me obedece, preciso, então,
de uma outra solução: vou dissociar, sair do meu corpo – como várias vítimas de estupro
testemunham com regularidade – esquecer que isso existiu, me ausentar – “Eu não estava
mais lá”. A possibilidade de volta de tais experiências vai me levar a construir dispositivos
de antecipação do perigo, para evitar qualquer situação onde este sentimento horrível
possa se apresentar de novo. Meus dispositivos vão incluir “jeitinhos” de fugir, de desviar
a atenção, de colocar a “culpa” na realidade, ou em um outro abusador, enfim, tudo para
evitar qualquer volta a esse lugar. São dispositivos como encenações, porque não
disponho de palavras para dizer este horror, só posso “fazer” alguma coisa, esperando que
alguém talvez possa me acolher, neste espaço implícito e procedural onde estou
enclausurado. Pela dissociação, o que era uma circulação dentro de uma multiplicidade
flexível de estados do self, se tornou congelado, com a construção de um padrão rígido,
repetido de maneira contínua, toda vez que se apresenta uma situação contingente
suscetível de me projetar nesse espaço horroroso.
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O problema, todavia, é que estes padrões, com o tempo passando, se tornaram


parte integrante do meu self, eles constituem um conjunto de soluções que elaborei para
– literalmente – sobreviver a essas situações de sofrimento indizível. O contexto analítico
não pode evitar a produção progressiva de um desequilíbrio neste sistema, podendo
chegar à ruptura de alguns desses padrões. O que explica os momentos inevitáveis de
tensão entre o paciente e o analista, vivido como produtor e responsável desses momentos
muito difíceis. Essas experiências constituem uma parte – dissociada – do meu self, do
meu “conhecimento relacional implícito9”, segundo a expressão cunhada por Lyons-Ruth
(1999) e retomada nos trabalhos do grupo de estudo sobre o processo de mudança de
Boston (BCPSG, 2010).

Neste sentido, o analista se torna um “regulador de vergonha” (Schore, 1994, p.


473). Seu trabalho consiste em abrir um espaço para possibilitar a regulação das emoções
e o acesso subsequente à mentalização, quando as capacidades de conflito já podem, num
segundo tempo, ser desenvolvidas. Neste caso, o sistema poderá alcançar algum ponto de
bifurcação para se reorganizar depois, de maneira a funcionar melhor, integrando assim
algumas partes dissociadas. Este processo só poderá ocorrer se o analista “acordar” das
suas próprias dissociações, e assim tornar-se capaz de mentalizar para abordar essa
questão central da vergonha circulando na dupla. Só poderá chegar neste lugar ao se
autorizar “a experiência do perigo como perigo real” (Bromberg, 2006, p. 92).

Concluindo

Concluímos com uma lembrança trazida por um paciente, citado por Cozolino
(2014, p. 388) e mostrando como a vergonha pode marcar, pelo trauma, a história de vida
de alguém. As trajetórias estão sendo escritas durante a repetição de tais cenas,
configurando as encenações futuras como reconstruções perpétuas, presas nesses
atratores estranhos.

O paciente se lembra do sábado anterior a seu oitavo aniversário. Ele está tomando
café, com uma tigela de cereais, quando a sua mãe se aproxima e lhe diz que, neste ano,

9
Implicit Relational Knowing.
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por causa das dificuldades financeiras da família, eles não vão ter condições de lhe
oferecer um presente de aniversário.

Neste momento, seu pai chega na cozinha, abre a geladeira para apanhar uma
cerveja, senta-se à mesa, com a lata e fala para o filho: “Chega, venha aqui e me diga o
que você quer como presente de aniversário.” O rapaz hesita, dá uma olhada na direção
da mãe. “Venha aqui” diz o pai e o filho se senta no colo dele. “Você deve ter alguma
ideia, não é?” Neste momento a mãe, de costas para esta cena, produz um barulho com as
louças com as quais ela está ocupada a lavar na pia.

O pai continua: “Ela disse para você que não temos condição de comprar
presentes?”

A mãe responde: “Um aniversário não é uma razão para entrar em dívidas.”

O pai: “Você quer estragar de novo tudo, não é?”

A mãe: “Fácil de dizer... você está sempre viajando quando as faturas chegam na
caixa de correios.”

O pai joga o filho no chão – a queda doí, o filho queria um abraço –, se levanta da
mesa, atravessa a cozinha e parte para cima da mãe. Começa a apertar o pescoço dela. Ele
está gritando. Depois de um tempo deixa a mãe. O filho pode ver as marcas das mãos
paternas evidentes no pescoço da mãe. A mãe tosse e começa a chorar.

O filho gostaria de poder odiá-los, mas não consegue. Este tipo de cena se repetiu
com regularidade durante toda a infância dele. Ele rezava para que isso parasse, mas, não
parava, continuava o tempo todo.

Ele ia fazer oito anos alguns dias depois. Não estava nem aí. “Odeio meu
aniversário. Não quero nada, nenhum presente! Odeio! Odeio!”

Isso é trauma de desenvolvimento.

15 de agosto de 2019.

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