O Afeto Que Não Ousa Dizer Seu Nome
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KRUTZEN, Henry. O afeto que não ousa dizer seu nome: observações sobre a vergonha.
Biblioteca Virtual do Instituto VOX de Pesquisa em Psicanálise, setembro de 2019.
KRUTZEN, Henry
Material place.
Uma primeira observação merece ser feita sobre a diferença entre a vergonha e a
culpa. É de nossos atos, reais ou imaginários, que sentimos culpa, como a justiça
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Segundo uma expressão feliz de Daniel Hill (2015).
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entendeu-a muito bem a declarar um réu culpável por tal ou tal delito. O tamanho do
delito deve até delimitar o tamanho da punição, na tentativa linear de resolver as
vicissitudes dos sistemas vivos. Isso não significa que vergonha e culpa não tenham
nenhuma relação a compartilhar; uma pode até esconder a outra, disfarçá-la, na tentativa
de fazer o outro acreditar que nossa vergonha, no fundo, é apenas uma culpa (para assim
dizer!) e que não se trata aqui do nosso próprio ser que está em perigo de cessar de existir.
O trauma produz lesões no self que são dificilmente resolúveis. O estupro ao qual
fui submetida faz agora parte de mim, é uma parte de mim, e, dessa vergonha, não
consigo, não posso, me livrar. Esse bullying que me acompanhou durante todos esses
anos de colégio adentrou de mim, sob minha pele, é presente a cada momento da minha
vida e me lembra aquele “nada” que eu sou. Essa negação permanente, cotidiana, da
minha existência, na minha família, esse não querer saber de mim, me marcou de tal
maneira, no meu ser, que a própria invisibilidade me caracteriza. Para minha
sobrevivência, precisei afastar de mim essa parte do meu self, para ela não existir mais e,
quando ela se manifesta, eu não estou ali, presente, mas uma parte desconhecida de mim
– mas apropriadamente não mais conhecida – se apresenta, desesperadamente querendo
ser ouvida por quem não tem as menores condições de poder ouvir nada, meus próprios
abusadores, ou agentes do desamparo da minha vida. Eles serão depois substituídos pelos
representantes, surdos e cegos, dos poderes que foram pervertidos de maneira originária.
Serão os professores, policiais, funcionários públicos, padres, detentores de uma
autoridade que já não podem mais ter efeito estruturante sobre meu desamparo
desesperado, a vergonha do meu ser, que os comportamentos antissociais vão ter como
função iterativa de representar.
Cegueira e surdez caracterizam o meu novo contexto social onde vou me inserir
com aqueles que, testemunhas de feridas similares, me reconheçam como pertencente ao
grupo deles ou delas. A ciranda infernal acelera o ritmo, e as estigmatizações se
multiplicam. O destino está me aguardando na esquina, na figura de uma bala, perdida ou
não, que poderá, como ponto final, assinar minha autobiografia da mesma maneira que
ela foi iniciada, anos atrás, pela morte, morte real respondendo à morte psíquica!
A vergonha constitui uma fenda do ser, uma fenda que apenas a dissociação pode
tratar, num primeiro tempo, como único método de sobrevivência disponível: sair do
corpo, não estar presente, desmaiar, esquecer de si em um estado do self isolado dos
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outros. A esta dimensão qualitativa devemos juntar um fator quantitativo, na medida que
modulações diferenciais existem nas condições do meio ambiente que proporcionaram as
experiências suscetíveis de dissociação. Ou seja, existem casos mais graves ou mais leves,
e podemos considerar que cada um de nós precisa aprender a se virar com sua vergonha
e as suas dissociações. Isso é válido também para o analista durante o processo analítico.
Vamos ver como essa questão pode ser pensada, hoje em dia, com os últimos
avanços da teoria e da clínica psicanalíticas. Na psicanálise clássica, a vergonha foi
tratada en passant, sem ter sido destacada como necessitada de uma elaboração mais
refinada. Todavia, hoje, a evolução da clínica, com suas sintomatologias de desamparo,
de deriva ou de falta de pontos de referências, traz à tona a necessidade de pensar melhor
este afeto, que insiste cada vez mais nas consultas e nos tratamentos. As recentes
colocações, a partir das elaborações de Ferenczi (1932, 1933) sobre o trauma, com a
moderna redescoberta da noção de dissociação, abrem novos espaços para poder acolher
o sofrimento daqueles que, tendo a vergonha no núcleo do seu ser, não têm outra opção
que a de encenar essas vivências dissociadas.
Freud e a vergonha
Freud não fala especificamente da vergonha. Na maioria dos casos, ele junta a
vergonha com outros sentimentos.
Assim, Nos Estudos sobre histeria (1895), a vergonha aparece quando se procura
uma explicação para a força que se opõe à emergência na consciência das lembranças
esquecidas pelas histéricas. Freud está discutindo a questão da resistência e lhe ocorre
“que esta (a força) devia ser a mesma força que havia concorrido para a formação do
sintoma histérico” (p. 377). O que é essa força e quais são essas ideias que são esquecidas
e tiradas da consciência? Aí surge o pensamento de que se trata de uma defesa. Essas
ideias são ideias que têm uma característica comum,
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Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud vai desenvolver
mais a noção de força, aprofundando a sua teoria apresentada em detalhes em 1900, no
livro A interpretação dos sonhos. A vergonha, agora, é identificada à “força que se opõe
ao prazer de olhar” (p. 51). Aqui a vergonha aparece várias vezes, mas ligada a um
conjunto de sentimentos como o nojo, o desgostar de coisas sujas, como, por exemplo,
em algumas considerações sobre a sexualidade, particularmente nos casos de
masoquismo e de atitude passiva: “A dor que assim é superada se alinha ao nojo e ao
pudor, que se opuseram à libido como resistências2” (p. 53). Aparece também nos casos
de perversões onde “o instinto sexual realiza coisas assombrosas (lamber excrementos,
abusar de cadáveres) na superação de resistências (nojo, vergonha, dor, horror)” (p. 56).
Aqui, de novo aproximada à resistência, a vergonha se insere neste conjunto com o nojo,
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Este parágrafo foi acrescentado em 1915. O tradutor traduz Scham por pudor e não vergonha, mas é bem
a mesma palavra que aparece no texto alemão.
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a dor e o horror. Um pouco depois, Freud acrescenta a moral no conjunto (p. 62). Enfim,
liga a vergonha ao desenvolvimento das inibições da sexualidade, junto com o nojo e a
compaixão, no contexto da diferenciação de homem e mulher (p. 138). A vergonha torna-
se assim, neste texto, uma força capaz de causar o recalque, ou enquanto força que se
opõe a atuação da sexualidade (1905).
Uma nova vertente dessa questão aparece no texto de 1908, O escritor e a fantasia,
em que Freud desloca a problemática na direção da noção de fantasia. Aproximando o
ato de fantasiar no adulto do brincar das crianças, Freud traz o fato de o adulto se
envergonhar das suas fantasias:
Em Análise do self, Kohut (1971) confirma essa hipótese de Freud sobre vergonha
e fantasia. Assim, o desejo sexual poderia ser atuado, com os objetos de amor, na medida
em que o amor pode se autorizar a ultrapassar a vergonha (Frommer, 2012).
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repressão” (p. 534). Neste contexto, Freud coloca a vergonha numa série de correlatos
inconsciente da angústia histérica, junto com a própria angústia e o embaraço.
Freud aborda o tema em alguns outros escritos, mas não desenvolve a questão de
maneira sistemática e sempre evoca a vergonha en passant.
Vergonha e culpa
A vergonha tem expressão facial, e entra nas expressões das emoções categóricas,
encontradas em todas as culturas, segundo Darwin (1872), e está junto à tristeza, à alegria,
à raiva, à surpresa, ao medo e ao desgosto. Tem uma característica pré-verbal. É um
estado sem palavras, de captação no olhar do outro, sem nenhum recurso. A solidão é
total e podemos pensar, num momento de apego desorganizado, na teoria do apego.
Schore (1994) confirma que a vergonha implica auto-representações visuais,
armazenadas no hemisfério direito do cérebro com padrões não verbalizáveis (p. 487).
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A culpa incide em um outro lugar. Ela não produz essa paralisia, mas um desejo
de desfazer, de se redimir, de tentar acessar o perdão, seja o meu ou o do outro. Localizada
na mente, muito mais do que no corpo, como é o caso da vergonha, a culpa não se
manifesta com a mesma dor aguda, ela pode ser mais silenciosa, discreta. Ao contrário da
vergonha, a culpa não tem expressão facial categórica. A culpa é sobre algum fato e
pensamento. Remete a nossa experiência das emoções dos outros, sobre um tal fato que
aconteceu. A culpa questiona esse evento e, também, como esses outros foram afetados
pelo fato e suas consequências. Quem foi machucado, ferido? Em um segundo tempo,
vem o desejo de se redimir, um movimento para a reparação e a restauração. A culpa pode
implicar a desculpa, a justificativa, a explicação. Se a reparação acontecer, a culpa poderá
ser descarregad,; o ato de restauração respondendo ao ato que, em um primeiro tempo,
produziu a culpa3. Essa restauração acontece dentro de um contexto simbólico e verbal,
através de uma própria elaboração da culpa.
Vergonha e apego
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Deixamos aqui de lado a questão mais específica da culpa inconsciente, a ser tratada num outro contexto.
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Neste contexto, o caráter determinante dos traumas não pode deixar de ser
considerado. O trauma do apego, igualmente chamado trauma do desenvolvimento ou
trauma relacional, se encontra presente em todos os casos de transtornos por traumatismo
psíquico. Tem como primeira consequência a própria dificuldade de buscar ajuda (Roisin,
2010; Hill, 2015). O isolamento crescente caracteriza essas pessoas que sofreram
mudanças no self, de maneira radical. Por quê? Porque a fenda veio, provocada por quem
era a pessoa com que contavam mais para a edificação do seu senso de self. E o resultado
é que o trauma é integrado na própria estrutura do self, enquanto vergonha; e não do lado
do outro, abusador. A vergonha vai assim fazer parte, invadir o self,
Esta vergonha que aparece no trauma relacional vai ser dissociada, e vai continuar
presente ao fio dos anos, mas separada, isolada, ilhada numa zona reservada, que só pode
aparecer em alguns momentos de “gatilho”, quando estamos vivendo um momento, como
que fora de nós, em um estado de “semi-transe”. O apego inseguro assim pode ser
considerado como uma adaptação à vergonha crônica.
Por exemplo, uma criança volta da escola, orgulhosa do resultado ótimo que teve
numa prova difícil e apresenta o boletim à mãe. Esta, não está interessada, não reconhece
o êxito e reage com indiferença, ou pior, com desgosto, ou até nojo, por razões ligadas à
sua própria constelação psíquica. Se esta cena se repete com regularidade, configurando
um padrão de funcionamento dentro dessa família, as consequências ao nível do apego
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Um tipo de “castração” simbólica, na medida que o outro como separada entre no processo.
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Implícito.
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serão importantes. A vergonha produzida, nessa pequena cena, vai ter que ser tratada de
uma maneira ou de outra pela criança. A solução seria uma reconexão emocional rápida
entre os protagonistas dessa cena, com risos e abraços. Sem esse reparo e se a situação se
tornar comum, a vergonha vai ser dissociada e reaparecer de maneira diferenciada em
função do tipo de apego inseguro criado.
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tem função mediadora na socialização” (p. 200). E, acrescenta que tem implicações
importantes na constituição do supereu (p. 360-362).
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O toddler em inglês.
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Assim, nossa baixa estima e nossa vergonha ficou “programada” bem cedo em
nossa vida, de uma maneira tal que quase não conseguimos nos dar conta da sua própria
existência. É um pouco como o sistema operacional do nosso computador, Apple O.S. ou
Windows, que consideramos como obviamente presente cada vez que ligamos nosso
aparelho para fazer qualquer trabalho, ou atividade de lazer (Cozolino, 21014), sem que
nos demos conta da longa programação que foi necessária para chegar a este resultado.
Além disso, a vergonha modulada tem um papel muito importante nas regulações
emocionais e, por conseguinte, nas interações sociais do nosso cotidiano. Quando o
cuidador não é capaz de modular a vergonha nas trocas mútuas e nas regulações com o
infante, a internalização e a organização deste sistema regulatório acontecem com
dificuldades. Isso pode ser “associado a uma expectativa de estados internos em auto-
desorganização”, sem regulação possível, caracterizando um apego inseguro resistente e
transtornos narcísicos da personalidade.
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Hormônio diretamente envolvida na resposta ao estresse.
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Neste contexto, a narração do evento traumático não alivia, não ajuda nenhuma
elaboração. O fato deste evento ter constituído este momento inassimilável, implica que
ele não foi “processado”; ele é guardado, não formulado e não processado, na memória
implícita (ou procedural, inconsciente). Nenhuma associação livre vai poder trazer as
“formações do inconsciente” permitindo uma tradução e uma elaboração (no sentido da
Durcharbeitung de Freud, 1914) do material recalcado, porque, de fato, nada foi
recalcado. Trata-se de dissociação e o isolamento de um dos estados do self não é
alcançável pela técnica clássica psicanalítica, como desenvolvida nos chamados “escritos
técnicos” de Freud, na década de 1910.
Na verdade, o fato de contar o evento traumático, não alivia, mas cria uma
revivência horrível da emoção não processada. Quando a experiência traumática é dita,
ela é revivida e este próprio dizer produz a vergonha. Se o reconhecimento dessa vergonha
não acontece, se a repetição se limita a essa revivência, a situação piora. “Ela piora porque
a parte do self que guarda a vergonha permanece dissociada e o paciente se sente ainda
mais sem esperança do que antes” (Bromberg, 2012, p. 182).
Do outro lado, no decorrer do processo analítico, fica pouco provável que nenhum
indício de tal revivência aconteça em alguns momentos. Naturalmente, a posição do
analista será crucial, na medida em que a volta de tais momentos, como concretizações
da presença de estados dissociados do self, não é o resultado de seus “empurrões”.
Quando isso acontece, automaticamente, a vergonha fica ativada no aqui e agora da
sessão. Não é evitável porque essa emergência é ligada à própria instância inconsciente
do analista, que pode, por exemplo, estar orgulhoso dos seus “sucessos” terapêuticos.
Assim, “como o self é relacional, a desestabilização do self também é relacional”
(Bromberg, 2012, p. 180).
Ou seja, essa comunicação acontece sob a égide da vergonha. Mas por que essa
vergonha não pode ser dita? É pelo fato de que a pessoa que está no lugar de querer aliviar
a aflição, o analista, está também no lugar de quem a cria! Dessa maneira, a própria ânsia
de querer aliviar a aflição cria a sua própria dissociação. O analista torna-se um jogador
naquilo que está revivido. “Ele está encenando o papel do outro original” (Bromberg,
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Traduzimos pela palavra “encenação” o substantivo inglês enactment.
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entre cuidadores e infantes. Como a vergonha foi produzida neste campo pré-verbal que
já descrevemos, seus entornos procederão com essas mesmas características. Ela não
pode então ser integrada em nenhum movimento de verbalização, de colocação nas
palavras ou qualquer processo favorecendo a dimensão da fala. Pelo contrário, ela vai
precisar de um acontecimento no decorrer das vivências da dupla psicanalítica.
A encenação não é evitável e precisa de ser trabalhada pela díade analítica. Qual
é sua natureza? Bromberg (2006) propõe:
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A vergonha constitui uma ameaça, similar ao medo. Então, essa ameaça necessita
de uma reação de emergência porque o self está prestes a ser violado. Como esta ameaça
tem como corolário a minha própria paralisia e meu corpo não me obedece, preciso, então,
de uma outra solução: vou dissociar, sair do meu corpo – como várias vítimas de estupro
testemunham com regularidade – esquecer que isso existiu, me ausentar – “Eu não estava
mais lá”. A possibilidade de volta de tais experiências vai me levar a construir dispositivos
de antecipação do perigo, para evitar qualquer situação onde este sentimento horrível
possa se apresentar de novo. Meus dispositivos vão incluir “jeitinhos” de fugir, de desviar
a atenção, de colocar a “culpa” na realidade, ou em um outro abusador, enfim, tudo para
evitar qualquer volta a esse lugar. São dispositivos como encenações, porque não
disponho de palavras para dizer este horror, só posso “fazer” alguma coisa, esperando que
alguém talvez possa me acolher, neste espaço implícito e procedural onde estou
enclausurado. Pela dissociação, o que era uma circulação dentro de uma multiplicidade
flexível de estados do self, se tornou congelado, com a construção de um padrão rígido,
repetido de maneira contínua, toda vez que se apresenta uma situação contingente
suscetível de me projetar nesse espaço horroroso.
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Concluindo
Concluímos com uma lembrança trazida por um paciente, citado por Cozolino
(2014, p. 388) e mostrando como a vergonha pode marcar, pelo trauma, a história de vida
de alguém. As trajetórias estão sendo escritas durante a repetição de tais cenas,
configurando as encenações futuras como reconstruções perpétuas, presas nesses
atratores estranhos.
O paciente se lembra do sábado anterior a seu oitavo aniversário. Ele está tomando
café, com uma tigela de cereais, quando a sua mãe se aproxima e lhe diz que, neste ano,
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Implicit Relational Knowing.
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por causa das dificuldades financeiras da família, eles não vão ter condições de lhe
oferecer um presente de aniversário.
Neste momento, seu pai chega na cozinha, abre a geladeira para apanhar uma
cerveja, senta-se à mesa, com a lata e fala para o filho: “Chega, venha aqui e me diga o
que você quer como presente de aniversário.” O rapaz hesita, dá uma olhada na direção
da mãe. “Venha aqui” diz o pai e o filho se senta no colo dele. “Você deve ter alguma
ideia, não é?” Neste momento a mãe, de costas para esta cena, produz um barulho com as
louças com as quais ela está ocupada a lavar na pia.
O pai continua: “Ela disse para você que não temos condição de comprar
presentes?”
A mãe responde: “Um aniversário não é uma razão para entrar em dívidas.”
A mãe: “Fácil de dizer... você está sempre viajando quando as faturas chegam na
caixa de correios.”
O pai joga o filho no chão – a queda doí, o filho queria um abraço –, se levanta da
mesa, atravessa a cozinha e parte para cima da mãe. Começa a apertar o pescoço dela. Ele
está gritando. Depois de um tempo deixa a mãe. O filho pode ver as marcas das mãos
paternas evidentes no pescoço da mãe. A mãe tosse e começa a chorar.
O filho gostaria de poder odiá-los, mas não consegue. Este tipo de cena se repetiu
com regularidade durante toda a infância dele. Ele rezava para que isso parasse, mas, não
parava, continuava o tempo todo.
Ele ia fazer oito anos alguns dias depois. Não estava nem aí. “Odeio meu
aniversário. Não quero nada, nenhum presente! Odeio! Odeio!”
15 de agosto de 2019.
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