Aa 1720 PDF
Aa 1720 PDF
Aa 1720 PDF
I | 2017
2016/I
Geraldo Andrello
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/aa/1720
ISSN: 2357-738X
Editora
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UnB)
Edição impressa
Data de publição: 1 julho 2017
Paginação: 229-248
ISSN: 0102-4302
Refêrencia eletrónica
Geraldo Andrello, « “Aún mi cuerpo aloja una lanza de los peces”: troca e predação no noroeste
amazônico », Anuário Antropológico [Online], I | 2017, posto online no dia 08 junho 2018, consultado no
dia 23 setembro 2019. URL : http://journals.openedition.org/aa/1720
© Anuário Antropológico
“Aún mi cuerpo aloja una lanza de los peces”: troca e predação no noroeste am... 1
Geraldo Andrello
REFERÊNCIA
Cayón, Luis. 2013. Pienso, luego creo : la teoria makuna del mundo. Bogotá : Instituto
Colombiano de Antropologia y Historia. 464 pp.
NOTA DO EDITOR
Recebido em 30/4/2017 Aprovado em 7/11/2017
1 Pienso, luego creo : la teoria makuna del mundo, ganhador do Prêmio Nacional de
Antropologia de 2012 na Colômbia e publicado em 2013 pelo Instituto Colombiano de
Antropologia e História (ICANH), consiste em uma versão pouco modificada da tese de
doutorado de mesmo título defendida por Luis Cayón na Universidade de Brasília em
2010. O longo caminho que levou a este livro merece atenção especial, pois, iniciado em
1995, quando o autor pela primeira vez viajou ao Rio Apapóris para conhecer os
Makuna, envolveu outros vários encontros, tão fortuitos quanto significativos, na
floresta e em Bogotá. Desses encontros e do intenso trabalho etnográfico, resultou
primeiro a tese apresentada no Brasil e depois o livro publicado na Colômbia, uma
excepcional monografia cuja densidade e variedade dos materiais explorados faz dela
referência obrigatória para os etnólogos que vêm se dedicando aos estudos dos povos
indígenas do noroeste amazônico. Antes, portanto, de explorar o formato e conteúdo
gerais desse trabalho, que se erguem sobre uma articulação fascinante entre os temas
da pessoa, do espaço e do xamanismo, vale uma atenção especial ao contexto no qual
ele se originou.
2 Mais ao final, destacarei certos pontos que fazem da etnografia makuna uma presença
marcante nos debates da etnologia contemporânea : aqueles referentes às relações
entre humanos e não humanos, entre troca e predação e entre o animismo e o
perspectivismo ameríndio. Espero com isso elaborar aqui um comentário que faça jus a
esse livro admirável, cuja riqueza etnográfica é notável também nos momentos em que
o autor dá mostras do forte impacto emocional que o contato com outro pensamento
lhe haveria de causar – em seus termos, com o Pensamento ; nos termos makuna, com o
ketioka. Reitero, portanto, que este livro é essencial para os especialistas na área
etnográfica em que se situa, e certamente inspirador para estudantes que estão a se
preparar para o campo na Amazônia ou alhures.
se a possibilidade de observar em ato, por assim dizer, tudo aquilo que fora antes
registrado em teoria ; todo um conjunto de conhecimentos longa e pacientemente
documentado em gabinete dava-se a ver em sua forma ritual e pragmática de
expressão. Sem dúvida alguma, uma circunstância da qual o autor soube retirar as
melhores consequências. Em campo, essa importante fase preliminar da pesquisa viria a
ser complementada por um intenso trabalho de registro da toponímia do território
makuna, uma tarefa para a qual Cayón veio a ser recrutado pelos próprios Makuna em
razão da necessidade de dispor de mapas detalhados do território para negociar com o
Estado colombiano os termos e os recursos necessários para a implantação de planos de
manejo de recursos naturais – os planes de vida, documento que é a base do
relacionamento entre os “resguardos indígenas” e o Estado na Colômbia. O alcance e a
profundidade etnográfica do livro resultam, pois, sem a menor sombra de dúvida,
dessas diferentes formas e momentos de colaboração.
9 Todas essas circunstâncias vieram a permitir dar conta com êxito da decisão do autor,
ainda ao final do curso de graduação, de realizar pesquisas com um dos grupos da
família linguística tukano da Amazônia colombiana. Essa decisão se deveu, em boa
medida, à enorme influência de Reichel-Dolmatoff na formação e institucionalização da
antropologia nesse país e, em especial, ao interesse de explorar e testar o modelo de
equilíbrio energético proposto por esse autor a partir de pesquisas pioneiras entre os
Desana – outro dos grupos de língua tukano da fronteira Brasil-Colômbia. Como se lê
logo na Introdução (:38-39), adotando uma perspectiva mais ampla, o estudo terminará
por se afastar das conclusões do decano da antropologia colombiana e de sua conhecida
fórmula da “cosmologia como análise ecológica” : em resumo, a ocorrência entre os
povos tukanos de uma concepção de intercâmbio energético entre homens e animais de
soma zero, no qual tabus alimentares e sexuais, bem como proibições de caça e pesca
em certas épocas e lugares, garantem o equilíbrio ecológico. A ideia básica é que
haveria um fluxo de energias finito entre sociedade e natureza, de maneira que noções
de doença e morte como roubo de almas praticado por seres espirituais das matas e das
águas, como o pai ou a mãe dos animais e dos peixes, constituiriam reparações pelos
excessos humanos (Reichel-Dolmatoff, 1971, 1976). Desse modo, tabus alimentares e
sexuais atenderiam à necessidade de regular atividades de caça e pesca, bem como
promover controle demográfico, mantendo uma taxa balanceada de uso de recursos
naturais.
10 O livro de Cayón, por sua vez, irá seguir por caminho distinto : aquele que aponta para
uma teoria etnográfica acerca desses intercâmbios, isto é, uma teoria propriamente
makuna que atesta, segundo ele, uma inseparabilidade entre os ciclos do cosmos e as
atividades sociais e rituais. A palavra-chave aqui seria “codependência”,
umcomplexoconjuntoderelaçõesentrehumanosenãohumanos mediadas por xamãs e
irredutíveis a qualquer conceito de adaptação ecológica. Ou seja, não obstante as
explícitas diferenças teóricas de abordagem, não deixa de haver certo grau de
convergência entre o modelo que Reichel-Dolmatoff propôs para a cosmologia tukano e
as interpretações que serão sugeridas por Cayón.
11 Nesse sentido, Cayón segue os passos de seu antecessor na etnografia makuna, o já
mencionado antropólogo sueco Kaj Arhem, autor de uma monografia pioneira sobre
parentesco (Arhem, 1981), que em trabalhos posteriores tentou deslindar aquilo que
chama de “ecosofia makuna”, um conjunto de ideias que corresponde a “una actitud
moralmente cargada hacia la naturaleza que guía y informa sus prácticas de manejo de
recursos” (Arhem, 1993 :109). Sabidamente, essa atitude moral veio a ser qualificada
por meio da retomada do velho conceito de animismo por Descola (2005), bem como
pela proposição do conceito de perspectivismo multinaturalista por Viveiros de Castro
(2002), ambos tendo lançado mão do trabalho de Arhem em suas primeiras elaborações
(ver também Arhem, 1996), e em particular do modelo de cadeia trófica que este autor
extraiu da cosmologia makuna : todos os seres se apreendem e se enxergam, como
gente (masã), veem seus predadores como jaguar (yai) e veem suas presas como peixe, o
alimento por excelência (wai). Este esquema corresponde não exclusivamente ao ponto
de vista humano, mas também ao do jaguar e ao do peixe, de modo que, da perspectiva
do jaguar, os seres humanos são vistos como peixe, wai ; e da ótica dos peixes os seres
humanos são vistos como jaguar, yai. Mas o que mais importa é que todos os três veem a
si mesmos como pessoas – possuem em seus próprios domínios malocas, rituais,
instrumentos culturais, parentesco, clãs etc., portanto, corpos-almas antropomórficos.
Sendo assim, as relações entre humanos e animais devem pautar-se pelos mesmos
critérios que governam preferencialmente as relações humanas, isto é, uma
reciprocidade balanceada, de modo que a caça, ou a pesca, para além de certo padrão –
em particular, nos rituais coletivos que demandam uma quantidade inusual de
comida –, supõem uma contrapartida na forma de ofertas de tabaco ou coca aos donos
ou mestres espirituais dos animais.
12 Cayón toma tal formulação como ponto de partida para explorar, a meu ver, quais
seriam as condições que permitem a todos, justamente, uma autoapreensão como
gente – e isso levará a um extenso escrutínio dos elementos comuns, entre objetos e
substâncias, com os quais corpos (e almas) humanos e não humanos são produzidos.
Perseguindo um aprofundamento em uma cosmologia exemplarmente caracterizada
como animista e/ou perspectivista, buscará apontar aquilo que, de seu próprio ponto
de vista, escapa a essas teorias. Assim, sugere que o esquema da cadeia trófica seria
apenas “una formulación conceptual que caracteriza y se centra en una parte de las
relaciones interespecificas, justamente en las relaciones alimentícias entre espécies, ya
que no tienen cuenta los intercambios de reciprocidad entre grupos sociales” ( :295). A
ênfase será posta, portanto, nas relações de troca, sugerindo-se em certo sentido que a
relação entre presa e predador – central no âmbito do perspectivismo
multinaturalista – seria secundária no contexto das relações interespecíficas, cedendo
lugar, entre os Makuna, às relações de negociação entre o xamã humano e os donos
espirituais dos animais. Em resumo, tal como se passa no contexto das relações intra-
humanas, a chave relacional básica seria uma relação “entre malocas”, já que todos os
animais possuem casas em pontos específicos da floresta ou dos rios, que são visitadas
pelos xamãs para, via de regra, propor a seus moradores animais um intercâmbio de
vitalidades (usi wasoare).
13 O aporte de um novo e extenso conjunto de dados sobre o tema é talvez uma das
principais contribuições do livro. Como veremos mais adiante, a noção de pessoa
makuna que emerge da descrição de Cayón aponta para uma complexa articulação de
corpos e almas, para sua irredutível interdeterminação, absolutamente rebelde à
dicotomia aparência-essência, ou exterior-interior. O tema da pessoa permitirá também
passar rapidamente pelo tema da troca versus predação, ao final, para verificar se tal
distinção não é, ela mesma, igualmente problemática.
Sohe, a “porta das águas”, a foz do Amazonas – ou a dos rios Negro ou Apapóris. Sua
urina formou o oceano, e com seu cordão umbilical, que era o cipó caapi (ayahuasca),
rodeou o mundo de então, originando o rio de leite, e assim separando as águas e as
terras, e definindo um eixo para o mundo e seus movimentos. Seus braços são plantas
de mandioca ; suas pernas, plantas de coca, tal como dito logo de saída, assim como os
animais de caça são o seu corpo, as frutas silvestres e cultivadas, seu sangue, e o
gorduroso, sua carne, como é dito mais adiante.
18 Tudo isso era pensamento, não obstante a profusão de imagens sensíveis encadeadas na
narrativa. Toda a diversidade do mundo já existe virtualmente, portanto, no corpo de
Anaconda Maniva, e o curso subsequente da narrativa mítica segue informando sobre
suas formas de atualização, que culminará com o aparecimento de uma verdadeira
humanidade – os povos de língua tukano. Antes disso, porém, Anaconda Maniva pensou
em uma mulher, originando Romikumu, a “mulher-xamã”, e em seguida em um homem,
originando os quatro trovões, os Ayawa. Esses são, segundo Cayón, os demiurgos, pois,
de seus feitos e intrigas, mundo e humanidade ganharão existência e qualidades.
19 O motivo central das desavenças entre Romikumu e os Ayawa é o controle das flautas de
paxiúba, a palmeira que nasceu do corpo incinerado de Anaconda Maniva. A narrativa é
extensa e cheia de detalhes, e o próprio autor dá apenas um resumo de seu enredo.
Como aponta Cayón, os temas de fundo antecipados aqui dizem respeito a noções de
fertilidade e regeneração, tensão entre gêneros, e unicidade e fragmentação-dispersão
dos poderes originários. Em princípio, são as mulheres que sabem usar as flautas,
guardando-as em sua maloca na Cachoeira Yuisi, localidade do Rio Apapóris conhecida
como La Libertad ; em seguida, esses instrumentos são apropriados pelos homens, que
os depositam na porta das águas. Mas a mulher-xamã conseguiu manter um desses
instrumentos, ocultando-o em sua vagina, o que veio a originar a menstruação
feminina. Quando novamente os trovões alcançam La Libertad, após longa jornada pelo
curso dos rios desde a porta das águas, e através da qual a humanidade já dividida em
povos se desloca na forma das anacondas ancestrales, a mulher-xamã irá lançar
maldições sobre o mundo humano, instaurando a vida breve – a mortalidade – e os
rumores e desentendimentos entre as pessoas. Nessa versão, assim como em várias
outras das mitologias tukanos, ocorre uma inversão na passagem do mundo pré-
humano ao mundo humano : se antes as mulheres controlavam as flautas, e os homens
se encarregavam dos trabalhos domésticos, agora são os homens que controlam as
flautas, e as mulheres, além de não poder vê-las ou tocá-las, cuidam da produção dos
alimentos. Cada grupo guarda suas próprias flautas, uma parte do corpo decomposto de
Anaconda Maniva e fonte de sua vitalidade.
20 Nesse processo, é o mundo todo que toma forma e ganha qualidades peculiares, de
maneira que os rituais de hoje prestam-se não somente a garantir as condições para a
produção de pessoas e do parentesco, mas também a “refazer o universo”,
proporcionando fertilidade para plantas e animais em suas épocas de reprodução.
Proporcionar fertilidade, neste caso, implica um trabalho xamânico : é o Pensamento
que entra em ação para suprir as cuias de fertilidade dos seres espalhadas pelo mundo
com coca e tabaco em troca da comida necessária para a realização dos rituais. É a
chamada curación del mundo, umuari wanore, em makuna, própria a uma época de chuvas
no meio do ano, quando as frutas da mata estão maduras e as atividades de caça e pesca
se reduzem. É nesta época do ano que ocorre o principal ritual realizado pelos Makuna,
a iniciação masculina, amplamente conhecido na literatura como “culto do Jurupari”.
mencionado acima, ponto onde deixam a forma réptil e assumem a forma humana. Eis,
portanto, que, tal como se passa no caso da inversão de papéis de gênero, na passagem
do mundo (e do tempo) pré‑humano ao humano, os seres ganham novas aparências
corporais, sem que com isso seus componentes originários se percam. Nesse sentido, a
alteração da fórmula do cogito sugerida pelo autor poderia talvez valer-se ainda de um
outro verbo, o de “transformar”, que definiria com igual ou maior precisão os processos
internos à teia espaçotemporal que informa a cosmologia makuna. Pois, desde o mundo
das virtualidades do jurupari ao mundo atual, tudo parece ocorrer por meio de uma
transformação recíproca do então visível em invisível, e do ainda então invisível à
visibilidade de hoje.
24 Nos capítulos cinco e seis (Los componentes del mundo e Personas de verdad), o tema
dos componentes da pessoa – e a relação entre suas partes visíveis e invisíveis – é
extensamente trabalhado. É nessa parte do livro que o autor irá descartar, justamente,
a validade da dicotomia corpo-alma entre os Makuna, sugerindo uma noção de pessoa
que poderia, a meu ver, ser definida simultaneamente como partível (Strathern, 1988) e
distribuída (Gell, 1998). Isso porque os órgãos internos (usi oka, fala, vitalidade) ao corpo
exterior (ruhu) determinam, segundo o autor, os estados dos seres e sua corporalidade
específica, bem como são retirados de diferentes pontos da geografia. Ainda que nesta
passagem se esteja a tratar de humanos propriamente ditos, tais formulações parecem
coextensivas a todos os existentes, pois os componentes invisíveis dos corpos em geral
são concebidos como ornamentos rituais, armas de guerra, pinturas corporais e outras
substâncias. Por esse motivo, eu agregaria, todos estariam em condições de se
apreender como gente dotada de corpos antropomorfos.
25 As trocas entre humanos e não humanos, cujo modelo geral refere-se à cadeia trófica de
presas e predadores, ganha aqui um grau a mais de elaboração. Referindo-se às visitas
amistosas do xamã humano às malocas dos donos dos peixes para negociar uma
pescaria mais intensa, estes últimos enviam seus trabalhadores para retirar mandioca e
frutas cultivadas de seus próprios roçados. E, assim, aquilo que para o pescador é peixe,
para estes terá a aparência de massa de frutas e mandioca (:296). Mas talvez seja
impróprio dizer aqui “aparência”, pois mandioca e fruta já faziam parte do corpo
(antropomórfico) de Anaconda Maniva, o jurupari ; e se peixes se originaram das lascas
da palmeira paixúba que dele se originou, então frutas e mandioca são igualmente
componentes corporais desses peixes. Eis que as vitalidades correspondem a imagens
que convergem para o corpo de Anaconda Maniva, e, assim, para as flautas do jurupari.
Portanto, os componentes invisíveis da pessoa corresponderiam a uma objetivação da
subjetividade ou agencialidade dos seres primordiais (:297 ; 302), correspondendo a
coisas como líquidos, pós, amidos, venenos, objetos rituais e xamânicos, incensos,
armas, partes de plantas, argilas, cores e elementos da maloca (:317), que se alojam
“dentro” (gaye) de corpos exteriores. Trata-se, com efeito, de objetificações dos
acontecimentos do tempo mítico, que, ao se marcarem nos acidentes geográficos,
operam como instrumentos dos seres de hoje. Assim, as lanças que os peixes guardam
em seus corpos podem demonstrar qualidades variadas, tais como “de jurupari, de
tristeza da Lua, dos jaguares da inundação, do lago do dia […]” ( :299), determinando
aquilo que poderíamos definir como um funcionamento dos corpos. Verifica‑se assim,
em tudo o que existe, uma relação fundamental entre substâncias, objetos, lugares,
tempo e origem, como propõe Cayón ( :301) (ver também Andrello, 2006 e S. Hugh-
Jones, 2009).
invisíveis para os seres potencialmente agressivos (:324). Como fazê-lo ? Eis aí a razão
que explica toda uma série de dietas e resguardos a serem observados em momentos
específicos do ciclo de vida (período pós-parto, menstruação), bem como a evitação
mais generalizada de alimentos fritos ou assados, cuja gordura e odor impregnam os
componentes interiores, em certo sentido exteriorizando-os e tornando a pessoa
perceptível e vulnerável a ataques de seres perigosos e predadores ; que o farão com as
armas próprias a seus corpos. Através desses meios é que, no contexto das interações
entre humanos e não humanos, se cuida de minimizar a agência dos demais seres do
mundo sobre a vida humana. O próprio autor menciona um diagnóstico makuna para
seus cálculos renais nesses termos : “aún my cuerpo aloja una lanza de los peces” (:317),
resultado do consumo de alimentos mal curados em suas primeiras estadias em campo.
30 Esses fatos autorizam, a meu ver, nuançar a interpretação que Cayón propõe em várias
passagens acerca de uma homologia entre as formas de relacionamento entre humanos
e entre humanos e não humanos. De acordo com o autor, como já assinalei no início, a
reciprocidade é a chave básica que opera nesses dois contextos relacionais. E mais, tal
como elaborado no último capítulo (“Cosmoprodução”), o processo de constituição e
reprodução de unidades sociais em diferentes escalas implicaria um manejo del mundo : 3
ao mesmo tempo que é preciso assegurar esposas e, eventualmente, especialidades
xamânicas junto a outros coletivos humanos, é imprescindível promover um
“empréstimo de vitalidades” (:417) com coletivos não humanos para dar vida à maloca.
Além disso, de acordo com Cayón, com os não humanos haveria uma relação similar
àquela entre humanos, porém “mais arraigada y profunda ; tan profunda, que la guerra
no es una possibilidad” (:414). Não obstante, situações não desejadas estão sempre a
assombrar o andamento desejado das coisas.
31 Como já foi mencionado mais acima, ao empreender caçadas ou pescarias mais intensas
nas ocasiões rituais, os moradores de uma maloca dependem do xamã, que se encarrega
de visitar as malocas animais vizinhas e oferecer coca e tabaco a seus donos. Ao aceitar
essas substâncias, aparentemente as mesmas que o doador oferece a seus congêneres
humanos, o dono animal concorda em ceder massa de mandioca ou de frutas cultivadas
de seus próprios roçados. Mas aquilo que para o dono animal é um alimento vegetal,
para o caçador humano são corpos animais dessubjetivados, por assim dizer – já
despojados de seus componentes danosos (hunirise). A caça que se deixa abater, ou o
peixe que se deixa pescar, apresenta assim valores distintos de acordo com o que veem
cada termo da transação.
32 Aparentemente, porém, nem sempre essas negociações são bem-sucedidas, pois um
dono animal pode não se mostrar interessado no intercâmbio, como também parece
não ser raro que um caçador ou pescador obtenha suas presas em lugares indevidos.
Nesses casos, a vida humana está em risco, e uma doença ou morte eventual significam
vingança animal, como sempre. A vingança animal é roubo do princípio vital, de modo
que a alma humana levada converte-se em parafernália ritual da maloca animal
afetada, restituindo-lhe desse modo a parcela perdida de vitalidade. Ou seja, a
reciprocidade nesse contexto é, sem dúvida, um fim desejado, mas parece constituir-se
sobretudo como o objeto de um esforço de persuasão deliberado exercido pelo polo
humano da relação. Em suma, pode-se especular se, sob um disfarce de simetria, não
haveria uma assimetria oculta de fundo.
33 Ameuver, a interpretaçãode Cayónacercadetaisrelaçõessegueaargumentação elaborada
por Phillipe Descola em Par dela nature et culture sobre o que chama de “ecologia das
relações” (2005 :423ss). Muito esquematicamente, este autor define dois grandes
conjuntos de relações verificáveis nas interações entre humanos e não humanos – o
intento, como se sabe, é o de isolar as formas preponderantes em cada uma das quatro
ontologias esboçadas (naturalismo, animismo, totemismo e analogismo). O primeiro
conjunto é composto por três relações de caráter reversível e equistatutário (dom,
troca e predação), e o segundo, por relações de caráter irreversível e hierárquico
(produção, proteção e transmissão). Para o autor, esses tipos em geral se combinam e
criam situação complexas, mas haveria sempre alguma dominância de um deles. Em um
capítulo seguinte, Descola lança mão de um trabalho anterior de Cayón (2002) para
indicar um exemplo de troca e reciprocidade no interior da ontologia animista (os
povos Tukano do Uaupés), em cujo interior as relações de predação tendem a
preponderar – o exemplo destacado são os povos Jívaro, estudados pelo próprio
Descola. Em seu novo livro, Cayón alinha-se, a meu ver, a esses argumentos,
proporcionando uma nova série de dados a reforçá-los. Não é meu intento refutar o
argumento, mas gostaria de concluir apontando para alguns pontos polêmicos que essa
discussão suscita e que ainda aguardam tratamento mais detido.
34 Segundo Descola, a reciprocidade consiste em um atributo das relações de troca
simétrica que difere crucialmente daquilo que define o dom e a predação, casos de
relações essencialmente assimétricas. No dom, a assimetria é positiva, pois a uma
dádiva oferecida com desapego não corresponde necessariamente um ato de
retribuição (subtrai-se aqui a obrigação da retribuição, tal como postulada por Mauss
no ensaio sobre a dádiva ao lado das obrigações de dar e receber). No caso da predação,
a assimetria é negativa, pois esta se constitui como um meio paradoxal, segundo o
autor, de incorporar a alteridade mais profunda mantendo-se fiel ao si mesmo – sem os
corpos, a identidade ou os pontos de vista do outro, o eu restaria incompleto ; daí a
importância dos temas da guerra e do xamanismo entre vários povos amazônicos, entre
os quais a caça, da perspectiva das presas, seria uma forma da guerra. Nesses termos, e
como aventei acima, o caso makuna demonstra uma complexidade tal que torna
problemática uma solução unívoca ou classificatória. Pois a troca recíproca, nos termos
de Descola, consiste em duas “transferências invertidas ligadas de forma intrínseca,
cada uma resultando de uma obrigação que encontra sua razão de ser na outra”. O
autor prossegue caracterizando o fenômeno como uma “totalidade fechada”, “uma
combinação de duas operações elementares em espelho” (Descola, 2005 :430‑431). O
sentido da operação é, portanto, praticamente contratual.
35 Oponto, ameuver, éque, seguindoasdescriçõesde Cayón, pareceproblemático isolar a
troca makuna entre humanos e não humanos de seus aspectos de dom e predação, uma
vez que essas situações sugerem que o que se pratica ali é um dom para induzir um
interlocutor não humano a uma ação recíproca, mas que pode, precisamente, ocorrer
ou não – operação, portanto, cheia de riscos. Aqui, dons são dirigidos à prevenção de
atos predatórios, e generosidade e interesse são faces da mesma moeda, de modo que se
torna extremamente difícil discernir qual modo prepondera sobre o outro. No limite,
esta discussão ambientada entre os Makuna talvez esteja a apontar para um problema
teórico de cunho mais profundo : o da inseparabilidade virtual entre dom e predação.
36 No mais, as diferenças de perspectiva em jogo que aparecem na negociação makuna
entre xamã e donos animais resistem, a meu ver, a um enquadramento na chave
proposta por Descola – as duas operações em espelho em uma totalidade fechada. Como
saber se se trata mesmo de troca se aquilo que é trocado aparece sob aparências
distintas para os termos trocadores ? Ainda que coca e tabaco, os alimentos dos
demiurgos e da gente do começo, possam ser de mesma natureza para humanos e não
humanos, o mesmo não se passa com sua contrapartida ; que, como vimos, é alimento
vegetal para uns e corpos animais para outros. Nesse caso, parece sempre restar um
resíduo irredutível à noção de reciprocidade no contexto dessas transações, pois algo
permanece irreconciliável neste confronto de perspectivas. Quanto a perspectivas
divergentes, Cayón irá afirmar que, embora não invalidando os postulados mais
radicais do perspectivismo multinaturalista, aquilo que se passa entre os Makuna não
diria respeito a uma batalha para definir quem ocupa a posição de humanidade ( :410),
já que ali sempre se tem em conta, simultaneamente, as duas perspectivas.
37 Em resumo, minha única dúvida aqui diz respeito a esse simultaneamente, que parece ser
a condição da reciprocidade e, assim, do caráter contratual que tudo isso evoca. Porém,
aqui, algo que é negociado em certa ocasião só é entregue mais tarde, o primeiro
momento envolvendo um ato do Pensamento, uma comunicação xamânica, já o
segundo envolvendo caçadores, pescadores e suas presas. Um pequeno hiato temporal
faz aí uma diferença enorme : o que primeiro aparece como uma diferença interna – o
xamã que transita entre perspectivas – cede lugar a uma diferença externa entre o
humano e o animal. Uma troca, portanto, muito particular, que, em atos sucessivos, ao
confundir distingue e vice-versa. Nas palavras de Eduardo Viveiros de Castro, não
aquela troca que sustenta uma concepção troquista do socius, mas “um movimento
perpétuo de dupla captura, onde os parceiros comutam (contra-alienam) perspectivas
invisíveis mediante a circulação de coisas visíveis” ; para este autor é, portanto, o roubo
que realiza a “síntese disjuntiva imediata dos três momentos” do dar, do receber e do
retribuir (Viveiros de Castro, 2015 :193). Em suma, caso não se trate de predação, é de
suspeitar que alguma extração deve fazer parte do assim chamado manejo del mundo,
bem como os riscos temporários ou permanentes que enseja.
38 Para finalizar, quero anotar que uma segunda impressão do livro de Cayón já está a
caminho, a aparecer ainda em 2017. Em novo prólogo para esta reedição, o autor
comenta as reações que seu trabalho vem estimulando e, tendo tido a oportunidade de
conhecer os pontos que vim discutindo acima através de uma versão preliminar do
presente ensaio, dedicou-se generosamente a comentá-los nesse novo escrito. Nesse
excerto, abre-se, a meu ver, um novo ângulo de apreensão das relações entre humanos
e não humanos, ativada por ocasião da realização de rituais e do grande consumo de
comida que acarretam. Com efeito, uma informação veio a ser acrescentada ao quadro :
a negociação xamânica com os donos animais não se encerra com a troca dos alimentos
espirituais (coca, tabaco) oferecidos pelo xamã pela caça liberada por seus donos (de
seu próprio ponto de vista, massa de mandioca). Ficamos sabendo agora que a esta
segue-se outra troca, pois, ao receber os visitantes em sua própria maloca para a
realização do ritual, o grupo do xamã irá oferecer comida e receber, como
contrapartida imediata, “bailes”, isto é, danças e cantos com as quais os visitantes
enchem a maloca dos anfitriões de alegria e satisfação. E ainda mais : os especialistas
(bayá) que conduzem essas performances deverão fazê-lo simultânea e espiritualmente
na maloca do dono animal que forneceu comida para a ocasião, alegrando a estes
igualmente. Esse terceiro ato, se apropriadamente efetuado, viria a fechar o processo,
pois ao obter comida para a festa o primeiro polo humano envolvido ficaria, de fato,
ainda em débito com o polo animal. E só poderá atender esse compromisso por meio do
segundo polo humano, isto é, os visitantes que entrarão no circuito fornecendo alegria
a ambas as malocas, a dos humanos congregados e a dos não humanos coparticipantes,
por assim dizer, no evento. Performances e comida seriam, assim, os itens que de fato
circulam, promovendo alegria e vitalidade entre todos os envolvidos. Em balanço
conclusivo, sugere Cayón, “el baile es la clave de las relaciones y no la predación ni la
reciprocidad; al final, no hay mejor forma de capturar el alma del otro que bailando, no
hay mejor forma de regalar el alma que bailando”.
39 Se o entendo bem, Cayón está a sugerir um olhar mais detido sobre os bailes ou festas
de troca, seja nas várias modalidades que documentou entre os Makuna, seja, penso eu,
nos frequentes dabucuris (termo genérico da língua geral) que se realizam nas
comunidades mutiétnicas situadas no lado brasileiro do noroeste amazônico. Quanto a
isso, estou plenamente de acordo. A meu ver, esta é a via pela qual uma outra forma
relacional poderá vir a ser apreendida, e na qual troca e predação, entre humanos e
entre humanos e não humanos, cederão o espaço a outra dinâmica. Dessa outra chave
virtual, a noção de manejo del mundo sairá possivelmente transformada, pois já não se
tratará de uma gestão exercida pelo polo humano sobre o não humano, e sim de algo
como uma mútua constituição, uma coimplicação – dupla captura cosmopolítica, em
suma, para falar como Isabelle Stengers (2011). Seja qual for esta forma, Pienso, luego
creo, pelo extenso material etnográfico ali apresentado, será referência obrigatória.
BIBLIOGRAFIA
ANDRELLO, Geraldo. 2006. Cidade do índio : transformações e cotidiano em Iauaretê. São Paulo : Editora
UNESP/ISA/NuTI.
______. 2010. “Falas, objetos e corpos : autores indígenas no Rio Negro”. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, 73 :5-26.
ARHEM, Kaj. 1981. Makuna social organization: a study in descent, alliance and the formation of
corporate groups in the North-west Amazon. Stockholm: Almqvist and Wiksell International.
______. 1993. “Ecosofia Makuna”. In: F. Correa (ed.). La selva humanizada. Santafé de Bogotá:
CEREC. pp. 109-126.
______. 1996. “Cosmic food web: human-nature relatedness in the Northwest Amazon”. In P.
Descola and G. Pálsson (eds.). Nature and society: anthropological perspectives. London and New York:
Routledge. pp. 185-204.
ARHEM, Kaj; CAYÓN, Luis; ANGULO, Gladys; GARCIA, Maximiliano. 2004. Etnografia makuna :
tradiciones, relatos y saberes de la gente de água. Bogotá : Acta Universitatis Gothenburgensis &
Instituto Colombiano de Antropologia e História (ICANH).
BUCHILLET, Dominique. 1983. Maladie et mémoire des origines chez les Desana du Uaupés : conceptions
de la maladie et de la thérapeutique d’une société amazonienne. Tese de doutorado, Université de Paris-
X Nanterre.
______. 1990. “Los poderes del hablar : terapia y agresión chamaníca entre los índios Desana del
Vaupes brasilero”. In E. Basso & J. Sherzer (eds.). Las culturas nativas a traves de su discurso. Quito :
Abya-Yala/MCAL, Coleção 500 anos.
CABALZAR, Aloisio (Org.). 2010. Manejo do mundo : conhecimentos e práticas dos povos indígenas do Rio
Negro, Noroeste amazônico. São Paulo : Instituto Socioambiental ; São Gabriel da Cachoeira :
Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro.
CAYÓN, Luis. 2002. En las aguas de yururuparí : cosmologia y chamanismo makuna. Bogotá : Uniandes.
DESCOLA, Phillipe. 2005. Par-delà nature et culture. Paris : Gallimard, Bibliothèque des Sciences
Humaines.
GELL, Alfred. 1998. Art and agency. Oxford: Oxford University Press.
HUGH JONES, Christine. 1979. From the Milk River: spatial and temporal processes in North-West
Amazonia. Cambridge: Cambridge University Press.
HUGH JONES, Stephen. 1979. The palm and the pleiades: initiation and cosmology in North-West
Amazonia. Cambridge: Cambridge University Press.
______. 1996. “Shamans, prophets, priests and pastors”. In N. Thomas & C. Humphrey (eds.).
Shamanism, history, and the state. Ann Arbor: University of Michigan Press. pp. 32-75.
______. 2009. “Fabricated body: objects and Ancestors in Northwet Amazon”. In F. Santos-
Granero (ed.). Occult life of things: Native Amazonian theories of materiality and personhood. Tucson
The University of Arizona Press. pp. 33-59.
LOLLI, Pedro. 2010. As redes de trocas rituais dos Yuhupdeh no Igarapé Castanha, através dos
benzimentos e das flautas Jurupari. Tese de Doutorado, USP.
REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo. 1971. Amazonian Cosmos: the sexual and religious symbolism of the
Tukano Indians. Chicago: University of Chicago Press.
______. 1976. “Cosmology as ecological analysis: a view from the rainforest”. Man, 11(3):307-318.
STENGERS, Isabelle. 2011. “The course of tolerance”. In: ______. Comopolitics II. Mineapolis,
London: University of Minnesota Press.
STRATHERN, Marilyn. 1988. The gender of the gift: problems with women and problems with society in
Melanesia. Berkeley/Los Angeles/London : University of California Press.
& Naify.
______. 2015. Metafísicas canibais : elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac &
Naify.
WAGNER, Roy. 1981. The invention of culture. Chicago: The University of Chicago Press.
NOTAS
1. Localizados nos dois lados da fronteira Brasil-Colômbia, nos rios Uaupés, Tiquié, Papuri,
Apapóris, Pira-Paraná e outros afluentes, os povos da família tukano oriental seriam os
AUTORES
GERALDO ANDRELLO
Geraldo Andrello é professor associado no Departamento de Ciências Sociais da Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar). Mestre e doutor em antropologia pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), desenvolve pesquisas entre os povos Tukano e Tariano do Rio Uaupés há
vinte anos. É autor do livro Cidade do índio : transformações e cotidiano em Iauaretê (Editora da
Unesp, 2006). Contato : andrello.geraldo[at]gmail.com