Boletim Especial de Maio 2020

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 36

EDITORIAL

PACOTE ANTICRIME E LEI 13.964/19


EM TEMPO DE CORONAVÍRUS
“Pour les gens riches, le coronavirus est une maladie comme une autre. Pour les gens pauvre, ça
veut dire la mort” (Para as pessoas ricas, o coronavírus é uma doença como outra. Para as pessoas
pobres, isso quer dizer a morte).
(Le Monde, 27.03.20)
Com esta frase impactante, mas realista, Carlos Augusto, morador do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro, conversou
com o jornal francês no dia 22.03.20. Ela mostra o estado da arte da pandemia do coronavírus no Brasil. Parece que
se vive, de certa forma, as narrativas de Albert Camus, José Saramago e, sobretudo, Giovanni Boccaccio. O mundo,
hoje, gira em torno das notícias sobre o Covid-19 e espera pelo número de mortos e doentes como quem espera pela
hora de encarar o pior.
Uma trégua poderia vir com medidas governamentais inteligentes, que levassem em consideração a vida humana
antes da economia, mas não foi assim. Enquanto o governo federal claudicava em contraditórias declarações, que
colocavam em conflito a área de saúde com o presidente da república, os governos estaduais e municipais, cientes
de que as pessoas vivem e morrem nos seus quintais, começaram, de forma um tanto amadora, pela inexperiência, a
ditar as regras, dentre elas o isolamento social. Com as determinações conflitantes dos diferentes “governos” de uma
mesma república, passou-se a viver “uma pandemia e um pandemônio” (João Almeida Moreira, Diário de Notícias,
28.03.20).
Todos tiveram que permanecer em suas casas, ressalvados aqueles que trabalham em serviços essenciais. Dois
problemas imediatamente se colocaram: fazer os mais pobres, em geral sem renda, sobreviver; e garantir que o
Covid-19, mais pela velocidade com a qual se transmite que pela própria transmissão, contaminasse um número
menor de pessoas, de modo a que o sistema de saúde pudesse tratá-las adequadamente. Era o cenário adequado
para vir à luz a batalha que nunca calou: vida versus dinheiro, capital versus trabalho, ricos versus pobres, e assim por
diante. Veio à tona, também, como não poderia deixar de ser, a discussão sobre o papel do Estado, sempre lembrado,
nessas horas, para pagar a conta.
Diante desse quadro, o governo federal, mais uma vez, comportou-se mal. De um lado, com um atraso inexplicável,
só em 26.03.20 fez aprovar, na Câmara dos Deputados, uma ajuda humanitária aos trabalhadores informais de R$
600,00, sem que se soubesse como iria funcionar, como se todos pudessem esperar. Depois, em visível desprezo pela
vida humana, com apenas uma semana de isolamento social, o presidente da república, empurrado por empresários
desprezíveis ligados à sua base política, começou a pregar – sendo seguido por alguns políticos e pouca gente do
povo – a volta ao trabalho e ao convívio social, contra todas as indicações científicas, a começar por aquelas da OMS.
Estava aberta a porta para a mais forte ameaça de contaminação. Arrisca-se ter um montante de contaminados que
ninguém teve, nem os EUA que, seguindo diretrizes do presidente Trump, foi ao primeiro lugar, no mundo, no volume
de infectados, projetando-se um desastre.
Esse modo de agir atabalhoado do governo federal reflete-se em todos os campos e mostra quão despreparada é
grande parte dos seus integrantes, começando pelo próprio presidente da república e seus ministros. Isso, como não
poderia deixar de ser, aparece nas propostas que avançam, dentre elas, o famoso “Pacote Anticrime”, um complexo
de reformas na legislação do campo criminal de tal forma confusas, que se tornou difícil achar algo que não fosse
inconstitucional.
Na Câmara dos Deputados, um Grupo de Trabalho fez tudo o que pôde para dar ao referido Pacote (ao qual se
agregou uma proposta proveniente de uma Comissão presidida pelo Ministro do STF Alexandre de Moraes) alguma
dignidade jurídica e técnica. Do difícil trabalho que teve resultou o pouco de proveitoso que, aprovado ali e depois
no Senado, veio à luz como a Lei 13.964, de 24.12.19. O resultado, porém, foi um mostrengo. O que é bom não é do
governo; e o que é do governo não é bom. Como lembrou Patrick Mariano (Cult, 09.12.19) em análise precisa sobre a
tramitação: “Se o texto que Moro apresentou não poderia ser levado a sério, pois sequer foi acompanhado de justificativa
– nem mesmo se observou alguma sistemática ou atenção às regras mínimas do processo legislativo em seu conteúdo,
sendo mais um apanhado de ideias punitivistas populistas salpicadas ao léu e enviadas ao Congresso –, o da Comissão
presidida pelo ministro do STF tampouco poderia ter algo digno de nota. Ambos representam aquilo que existe de mais
torpe na ciência penal”.
O pouco que se louvou, na referida lei, foram as alterações introduzidas pelo Grupo de Trabalho. Delas, destacam-se
as reformas que instituíram alguns institutos de processo penal e, dentre eles, a assunção do Juiz das Garantias, em
que pese sejam importantes, também, o chamado acordo de não persecução, a impossibilidade do juiz que conheceu
do conteúdo de prova inadmissível proferir sentença ou acórdão, as regras que asseguram a cadeia de custódia, assim
como as regras que tentam rearranjar as medidas cautelares, mormente as que dizem com a privação da liberdade.
Esse conjunto tenta introduzir, no processo penal brasileiro, um arremedo de sistema acusatório, do qual o sintoma é o
preceito do art. 3º-A (copiado do art. 4º, do PLS 156/09): “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa
do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.”
A tentativa é louvável – porque é na direção do sistema acusatório que se deve caminhar – mas, como mostra a

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


experiência de inúmeras e desastradas reformas parciais, nada disso vinga quando a base do sistema segue
inquisitorial. E o brasileiro seguirá assim, com o juiz como senhor absoluto (ou quase) do processo, mormente se não
passarem as regras que a decisão do Ministro Luiz Fux, do STF, suspendeu sine die, por uma liminar, como relator das
ações diretas de inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305. Com um processo penal assim, nada obsta que
o juiz prejulgue (embora não sejam todos que o façam) e, depois, teste a sua decisão no curso do processo para, ao
final, sentenciar. Não raro, tudo é previsível. O resto é ou pode ser tão só retórica, como facilmente se percebe pelo
jogo de relativização que se tem feito, principalmente, em relação à aplicação dos princípios e regras constitucionais
no processo (quem sabe principalmente para a presunção de inocência e o livre convencimento), além do manejo
deletério do pas de nullité sans grief. O processo penal, como mecanismo de garantia do cidadão contra o arbítrio do
Estado, está em ruínas.
Até agora, como se viu, tratou-se das coisas boas. As ruins, contudo, dizem com o resto da lei; e não é pouco. Afinal,
nunca se viu, no país, alguma lei tão assistemática, punitivista e reacionária. Nesse sentido, o gravíssimo aumento
exponencial dos lapsos de progressão, sem qualquer estudo precedente de impacto no sistema carcerário, afigura-
se como dispositivo que, previsivelmente, levará ao incremento do encarceramento em massa em dimensões
imprevisíveis. É certo que, ainda assim, o Grupo de Trabalho da Câmara atenuou a proposta original do Ministério da
Justiça, mas o texto aprovado, que aumenta os lapsos de progressão para até 70% da pena, terá consequências que
não foram sopesadas.
Os penalistas e penitenciaristas estão até agora atordoados. O volume de inconstitucionalidades é de tal monta que
seria preciso imaginar aquilo que pudesse escapar de um controle efetivo nessa direção.
Urge, portanto, discutir o conteúdo da Lei 13.964/19 e organizar as medidas sérias, que possibilitem um controle sério
e efetivo de constitucionalidade, torcendo para que o STF tenha consciência de seu papel diante da Constituição da
República. Isso se faz de forma propícia neste Boletim, mostrando a preocupação do IBCCRIM na defesa intransigente
da Constituição da República e do regime democrático.
Boa leitura.

Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais


BOLETIM ESPECIAL

4. A Justiça Restaurativa e o Acordo de Não Persecução Penal


Guilherme Augusto Souza Godoy, Amanda Castro Machado e Fabio Machado de Almeida Delmanto

7. La reforma al proceso penal chileno y el juez de garantia


Eduardo Gallardo Frías

11. As regras sobre a decisão do arquivamento do inquérito policial: o que muda com a Lei 13.964/19?
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Ana Maria Lumi Kamimura Murata

14. Isolamento e a privacidade “tóxica” em tempos de pandemia: o sofrimento feminino*


Ana Lucia Sabadell

17. Juiz das Garantias: A onda democrática em meio à maré do punitivismo rasteiro
Lívia Yuen Ngan Moscatelli e Raul Abramo Ariano

20. Lei anticrime e reincidência: um flerte com o direito penal do autor


Thiago Baldani Gomes De Filippo

22. Reflexões sobre os malefícios do isolamento do preso imposto pelo novo RDD
Fernanda Carolina de Araujo Ifanger, Eduardo Rezende Zucato Filho e João Paulo Gomes Massaro

26. Os impactos do pacote anticrime no Banco Nacional de Perfis Genéticos


Natália Lucero Frias Tavares e Antonio Eduardo Ramires Santoro

29. Juiz das garantias: para acabar com o faz-de-conta-que-existe-igualdade-cognitiva...


Aury Lopes Jr. e Ruiz Ritter

CORTES INTERNACIONAIS E SUAS DECISÕES COMENTADAS

31. Prisão provisória: recentes reformas e próximos passos à luz do sistema interamericano de
direitos humanos
Thiago Nascimento dos Reis

* Embora verse sobre tema distinto do Boletim Especial, o artigo foi incluído em razão da situação excepcional da pandemia
do COVID-19.

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


A JUSTIÇA RESTAURATIVA
E O ACORDO DE NÃO
PERSECUÇÃO PENAL
THE RESTORATIVE JUSTICE AND THE NON-PROSECUTION AGREEMENT

Guilherme Augusto Souza Godoy Fabio Machado de Almeida


Mestre em Criminologia pela Escola de Criminologia da Faculdade de Delmanto
Direito da Universidade do Porto. Mestre em Processo Penal pela Faculdade de Direito da
Pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal na UFMT e em Direito Universidade de São Paulo. Mediador, conciliador e facilitador de
Público ICE-MT. Pesquisador e Mediador. Justiça Restaurativa. Advogado.
g.a.s.godoy@gmail.com fabiodelmanto@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5740-977X Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2552-501X

Amanda Castro Machado


Pós-graduanda em Direito Público pela PUC-MG e em Direito Internacional Aplicado pela Escola Brasileira de
Direito. pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Antropologia do Direito da USP. Advogada.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8228-0215

RESUMO ABSTRACT
Abordaremos a relação entre dois institutos com aplicação definida We will discuss the relationship between two institutes with recently defined
recentemente no Sistema de Justiça Brasileiro. Por um lado, a Justiça application in the Brazilian Judicial System. On the one hand, Restorative
Restaurativa (JR), que já tem sido aplicada no exterior e no Brasil, mas ainda Justice (RJ), which has already been applied abroad and in Brazil, but
pendente da inclusão expressa no Código de Processo Penal (CPP). Por still pending the literal inclusion in the CCP. On the other hand, the Non-
outro lado, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) definido no recente Prosecution Agreement (NPA) defined in the recently article 28-A of the CCP.
artigo 28-A do CPP. Buscamos, através de revisão de literatura, identificar as We seek, through literature review, to identify the possibilities of use of both
possibilidades de utilização de ambos os institutos, nomeadamente acerca institutes, namely about the possible connection between them, for a better
da possível conexão entre eles, para um melhor resultado no Sistema Penal. result in the Criminal System. We verified the status quo, the history and
Verificamos o status quo, o histórico e as críticas a ambos os institutos, que the criticisms of both institutes, which continue to evolve with precautions
seguem em evolução com precauções no Sistema Judiciário brasileiro. Com a in the Brazilian Judicial System. With the analysis of controversial issues
análise de questões polêmicas acerca do ANPP, bem como da devida cautela about NPA, as well as the due caution in the application of the RJ, we glimpse
na aplicação da JR, vislumbramos a possibilidade de bons resultados desde the possibility of good results provided that good procedures are used.
que se utilizem bons procedimentos.
Palavras chave: Justiça Restaurativa; Acordo de Não Persecução Penal; Sistema Keywords: Restorative Justice; Non-Prosecution Agreement;1 Accusatory System.
Acusatório.

O presente artigo2 tem a finalidade de analisar a possibilidade o endurecimento das regras de progressão de regime prisional,7
de aplicação da Justiça Restaurativa (JR) no novo Acordo de Não dentre outras alterações de viés inegavelmente punitivista.
Persecução Penal (ANPP), previsto no art. 28-A do CPP, fruto da Lei
Os valores que nortearam a elaboração da “Lei Anticrime” não
13.964/2019.3
se coadunam, absolutamente, com os valores da JR. Enquanto
De início, cabe ressaltar que a Lei 13.964/2019 – a chamada “Lei naquela busca-se, a todo custo, a punição do autor do crime, com
Anticrime” - tem inegável caráter inquisitorial, com recrudescimento pouquíssima ou nenhuma atenção para as necessidades da vítima
indisfarçável no tratamento conferido ao acusado e ao condenado. e do autor, na JR o objetivo é a restauração dos danos causados
Alguns exemplos disso são: o aumento das hipóteses de legítima pelo delito, com a responsabilização8 do infrator e aumento do
defesa,4 o agravamento dos requisitos do livramento condicional,5 protagonismo da vítima, sobretudo através do diálogo e busca de
o aumento das hipóteses de suspensão do prazo prescricional,6 um consenso, tudo num procedimento que não é obrigatório, mas

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


voluntário. Nesse novo contexto, ao contrário de se buscar, a todo custo, a
punição do autor do delito, almeja-se a sua responsabilização,
Assim, não obstante os valores que nortearam a criação da “Lei
com foco, sobretudo, no atendimento das necessidades da vítima
Anticrime” e da JR serem diametralmente opostos, o ANPP previsto
(v.g., a reparação dos danos), mas também sem desmerecer as
no art. 28-A do CPP, apesar de apresentar inúmeros problemas
necessidades do autor do delito e de todos os que de alguma
diante de possíveis violações de garantias constitucionais,9 abre as
forma foram afetados pelo evento danoso, sejam eles familiares
portas para a aplicação concreta da JR no processo penal brasileiro, ou mesmo a própria comunidade. Ao contrário do que ocorre na
uma vez que possibilita a participação efetiva da vítima na realização Justiça retributiva, em que a vítima praticamente é ignorada, sendo
do ANPP, melhorando as chances de sua efetividade e eficácia. muitas vezes ouvida apenas para fazer prova contra o acusado, na
Como se sabe, desde o advento da Lei 9.099/95, alguns paradigmas JR pretende-se a abertura do diálogo, com a efetiva participação da
da justiça penal têm sido quebrados (como é o caso do princípio da vítima e de todos os envolvidos. Na JR, busca-se a compreensão
obrigatoriedade da ação penal), o que se deu graças ao surgimento do que ocorreu, como ocorreu, por que ocorreu, e como podemos
da justiça consensual (não punitivista) no processo penal brasileiro. restaurar os danos oriundos da prática delitiva. Com o apoio
A justiça consensual entre nós iniciou-se com a Lei 9.099/95, dos facilitadores e uso de técnicas específicas, na JR, todos os
que previu os institutos da composição civil e da transação penal participantes do processo têm a possibilidade de se manifestarem
(ambos para os delitos de menor potencial ofensivo10), bem como livremente, dizer como se sentem e o que precisam, permitindo-se
da suspensão condicional do processo.11 Outro exemplo de justiça atingir resultados restaurativos jamais imaginados na Justiça penal
consensual penal é a colaboração premiada, ou seja, um “negócio tradicional.
jurídico processual e meio de obtenção de prova”, 12 pelo qual o Dentre as práticas restaurativas existentes, destacam-se os
juiz poderá (i) conceder o perdão judicial, (ii) reduzir em até 2/3 Processos Circulares para resolução de conflitos,18 as Conferências
(dois terços) a pena privativa de liberdade ou (iii) substituí-la por Familiares19 e a Mediação entre Vítima, Ofensor e Comunidade.20
restritiva de direitos.13 Em 2015, seguindo a tendência mundial de
autocomposição dos conflitos e solução dialógica das controvérsias, No Brasil, embora ainda de aplicação tímida, a JR é uma realidade
surge a Lei da Mediação (Lei 13.140, de 26.6.2015), com previsão de que vem se desenvolvendo a cada dia. Em 2016, o Conselho Nacional
técnicas e regras para que um terceiro imparcial (mediador), sem de Justiça (CNJ), baseado nas recomendações da ONU para fins
poder decisório, escolhido e aceito voluntariamente pelas partes, de implantação da JR nos Estados membros,21 editou a Resolução
225, que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa
possa auxiliar e estimular a solução consensual da controvérsia.14
no âmbito do Poder Judiciário. No TJSP, a implementação da JR nas
Vale lembrar que o novo Código de Processo Civil (CPC) prevê
varas da infância e da juventude encontra-se regulamentada tanto
que o juiz, assim que receber a petição inicial, e não sendo o
na Corregedoria Geral de Justiça22 quanto no Conselho Superior da
caso de improcedência liminar do pedido, designará audiência
Magistratura.23 A Resolução 225 também instituiu o Comitê Gestor
de conciliação e mediação (art. 334), sendo fundamental o papel
de JR através do CNJ (art. 27). Em 2019, o CNJ, considerando (i) o
dos novos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania
aumento acelerado da taxa de encarceramento, (ii) o reconhecimento
(CEJUSC) espalhados pelas Comarcas do Brasil, os quais podem
pelo STF na ADPF 347 de que o sistema penitenciário nacional se
atuar tanto na fase pré-processual quanto na fase processual,
encontra em “estado de coisas inconstitucional”, (iii) o Acordo de
inclusive perante os Tribunais.
Cooperação Técnica 6/2015, celebrado entre o CNJ e o Ministério
Pois bem, diante de todo esse atual cenário, que estimula a da Justiça, editou a Resolução 288, que estabeleceu como política
autocomposição dos conflitos, tanto na área penal quanto na área institucional do Poder Judiciário a promoção e aplicação de
cível, a Justiça Restaurativa (JR) surge como um novo paradigma, “alternativas penais”, com enfoque restaurativo, em substituição
um novo olhar para o fenômeno do crime e do processo, contrário à privação de liberdade. Dentre essas “alternativas penais”,
ao que se pratica na chamada Justiça retributiva, modelo que ainda encontram-se: as penas restritivas de direitos, a transação penal e
vigora em nosso sistema. a suspensão condicional do processo; a suspensão condicional da
pena privativa de liberdade; a conciliação, mediação e técnicas de
Embora os fundamentos da JR sejam ancestrais, e, via de regra, as justiça restaurativa; as medidas cautelares diversas da prisão; e as
práticas antecedem, em muito, a teoria e os registros, os autores medidas protetivas de urgência.
geralmente fixam como marco de sua origem o ano de 1974, no
Canadá, tendo surgido diante de necessidades práticas para Embora já existam algumas iniciativas legislativas no Brasil acerca
solucionar casos de adolescentes infratores (ZEHR, 2014; ACHUTTI, da JR, que, por exemplo, se tornou política pública municipal em
2016), e depois foi se consagrando em outros países, tais como Santos/SP,24 São Vicente/SP25 e Santa Maria/RS,26 como forma de
Austrália, Nova Zelândia,15 Bélgica,16 Estados Unidos e Canadá.17 solução de conflitos em escolas públicas e na administração pública,
A JR, enfim, procura fornecer uma lente alternativa para pensar e embora também já exista previsão legal para sua aplicação em
sobre crime e justiça, com uma visão diversa da denominada Justiça casos que envolvem menores infratores,27 além de projetos de lei para
retributiva (ZEHR, 2014; SCURO, 2007). É importante ressaltar que a inclusão da JR no Código de Processo Penal (CPP),28 a aplicação da
JR não se limita a infrações praticadas por adolescentes ou a crimes JR no processo penal brasileiro, apesar de fortemente estimulada
de menor ou médio potencial ofensivo, previstos na Lei 9.099/95, pelo CNJ, como visto, é ainda bastante reduzida, sobretudo em
mas tem aplicação em todo e qualquer tipo de crime ou ofensa, virtude da falta de previsão na legislação penal.
ainda que graves ou praticados mediante violência ou grave ameaça. Voltando ao novo ANPP previsto no art. 28-A do CPP, trazido pela
Em virtude do avanço dos estudos da criminologia crítica, em Lei 13.964/2019, embora o novel instituto apresente inúmeros
problemas de natureza constitucional – como é o caso das
1990, e com a chamada “criminologia da integração”, o convite da
controvertidas exigência de confissão e aplicação de condições que
JR é para que se olhe o crime como “um acontecimento global”,
mais se afiguram como verdadeiras penas sem processo,29 sendo
que não diz respeito somente à pessoa do infrator, sendo “um
criticado pela doutrina e, como dito, já objeto de ação declaratória de
fenômeno complexo”, de múltiplas causas e consequências, que
inconstitucionalidade perante o STF, vislumbramos a possibilidade
exige o desenvolvimento de um pensamento diferente daquele que
concreta de aplicação da JR durante a realização do ANPP.
vem sendo praticado na Justiça retributiva, isto é, um “novo olhar
integrativo” (ZEHR, 2014). Todavia, para que tal ocorra, é necessário mudar a mentalidade dos

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


operadores do direito, migrando-se de um sistema punitivista para Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a
um sistema restaurativo. infração penal”. Ora, acreditamos que, para a realização do ANPP, o
Ministério Público e o Juiz poderão convidar o investigado, a vítima e
Diante disso, cumpre-nos analisar qual seria o momento em que a
demais envolvidos no crime a participarem de práticas restaurativas
JR poderia interagir com o ANPP. Segundo o artigo 28-A, o acordo é
existentes na Comarca, com o fim de se chegar, quem sabe, a um
feito entre o promotor e o investigado mediante algumas condições,
bom acordo restaurativo. É verdade que a participação é sempre
das quais destacamos: (i) a reparação do dano ou a restituição da
voluntária, não podendo nunca ser obrigatória. Por outro lado, diante
coisa à vítima (inciso I); e (ii) outra condição estabelecida pelo MP
da forte recomendação do CNJ em prol da aplicação da JR no
(porém não especificada pela lei) (inciso V). Pois bem, é com base
Brasil, entendemos que esta é uma oportunidade muito interessante
nesses dois incisos que verificamos a possibilidade concreta de
para o emprego da JR no processo penal brasileiro, e o convite
aplicação na JR no ANPP.
pode e deve ser feito nesse sentido, cabendo aos interessados a
Quanto ao inciso I, acreditamos que a aplicação de práticas aceitação ou não. Caso não haja aceitação, o ANPP pode seguir
restaurativas durante a realização do ANPP pode servir para, normalmente, sendo, daí, realizado apenas entre o Ministério Público
realmente, reparar os danos, atingindo-se, com isso, a vontade e o investigado, seguindo-se para o juiz apenas para homologação,
do legislador. Isso porque, segundo a visão da JR, a “reparação de sendo somente aí a vítima intimada.
dano” não se limita a uma reparação exclusivamente pecuniária
Ora, se a aplicação da JR no Brasil encontra total apoio do CNJ, que
(como definido nos artigos 63 e 387, IV do CPP), sendo mais ampla
por sua vez embasou-se em Resoluções da ONU, a ponto de ter
e abrangente, de forma a contemplar uma verdadeira reparação
sido reconhecida como uma Política Nacional no âmbito do Poder
do dano social ou mesmo das relações sociais, com viés integral,
Judiciário, não se deve negar esforços à efetiva aplicação da JR no
inclusive dos danos psicológico e emocional decorrentes da prática
processo penal brasileiro.
do crime. Com isso, almeja-se atingir a harmonização entre o autor,
a vítima e demais envolvidos, com o objetivo de restaurar o convívio É preciso atentar para que não ocorra uma banalização do novo
social e a efetiva pacificação dos relacionamentos, conforme instituto, a exemplo do que ocorre com a transação penal e a
equiparação disposta no art. 3º, VIII da Resolução 288/CNJ30 e no suspensão condicional do processo, em que o acusado, muitas
art. 13 da Resolução 118/2014 do CNMP.31 vezes, comparece a audiências coletivas, sem a presença do Juiz
e do Ministério Público, e, na presença de serventuários, se limita
Embora a lei preveja que a vítima somente será intimada da
a “assinar um papel”, desperdiçando-se oportunidade única de se
homologação do acordo, não há qualquer óbice para que a vítima
aplicar as práticas e conceitos da JR no processo penal brasileiro.
seja antes convidada a participar da realização do ANPP, aplicando-
Aliás, nada impede, e tudo recomenda, que os juízes apliquem
se aí as práticas restaurativas. Pelo contrário, como visto, em
a JR também nas audiências de transação penal e suspensão
decorrência das Resoluções do CNJ (225 e 288), entendemos que
condicional do processo, conferindo-se maior efetividade e
o juiz tem toda liberdade e autonomia para aplicar a JR durante o
significado a esses acordos penais.
ANPP, tornando, quem sabe, mais eficiente e eficaz o acordo, tudo
em atendimento da vontade última do legislador. Com isso, ao invés É bem verdade que toda mudança causa certo desconforto e
de se realizar um acordo apenas formal, de reparação meramente perplexidade aos operadores do Direito. Todavia, é justamente
pecuniária dos danos, sem maior significado para a vítima e para desta forma que os avanços ocorrem no sistema de justiça penal
os demais envolvidos (ofensor e demais atingidos, como familiares brasileiro, a exemplo do que sucedeu por ocasião do advento da Lei
e comunidade), acredita-se que a aplicação da JR no ANPP trará 9.099/95, das penas alternativas, das medidas cautelares diversas
resultados restaurativos mais significativos, o que se coaduna da prisão, da audiência de custódia, dentre outras significativas
perfeitamente com a atual Política Nacional de Justiça Restaurativa alterações legislativas, sendo todas mudanças que, no início, tiveram
no âmbito do Poder Judiciário, prevista na Resolução 225 do CNJ. resistência, porém, depois, foram aceitas pela comunidade jurídica e
pelos Tribunais.
O inciso V do art. 28-A, por sua vez, traz outra importante janela
para a aplicação da JR no ANPP. O referido dispositivo prevê que, É o que se espera que ocorra, em breve, com a Justiça Restaurativa
dentre as condições ajustadas no acordo, o investigado deverá no âmbito no processo penal brasileiro.
cumprir, por prazo determinado, “outra condição indicada pelo

NOTAS
1
Diferente do que ocorre nos EUA, onde o acordo de não persecução penal 6
As novas hipóteses impeditivas da prescrição estão previstas no art. 116
– non-prosecution agreement (NPA) – feito entre uma agência do governo do Código Penal. É curioso anotar que, dentre as referidas novas hipóteses
dos EUA – como o Departamento de Justiça (DOJ) ou a Comissão de Valores impeditivas (ou suspensivas) da prescrição, encontra-se o período enquanto
Mobiliários (Securities and Exchange Commission – SEC) – e uma pessoa não cumprido ou rescindido o ANPP.
jurídica ou física que enfrenta uma investigação criminal ou civil, independe de 7
A progressão do regime passou a contar com novos percentuais, agravando,
homologação judicial, a Lei 13.964/2019 dispõe que a análise e homologação do em muitos casos, o tratamento conferido anteriormente pela Lei de Execução
acordo de não persecução penal é de competência do juiz de garantias (CPP, Penal (vide, dentre outros, seu art. 112).
art. 3º-B, XVII) que é o responsável pelo controle da legalidade da investigação 8
É importante ressaltar que a responsabilização difere, em vários aspectos,
criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais. (CHECKER, 2020). da punição; por exemplo, enquanto aquela é fruto de um diálogo aberto,
2
O presente artigo contou com a colaboração dos seguintes membros da horizontal, em que se estimula a autorresponsabilidade das partes, nesta existe
Comissão Especial de Justiça Restaurativa da OAB/SP, criada através da um terceiro estranho ao conflito (isto é, o juiz), que vai impor, verticalmente, a
Portaria 237/2019: Viviane Pereira de Ornellas Cantarelli (presidente), Ana Sofia pena ao infrator, a fim de puni-lo.
Schimidt de Oliveira (vice-presidente), Luis Fernando Bravo de Barros e Adriana 9
Diversos aspectos do novo art. 28-A do CPP tiveram sua constitucionalidade
Haddad Uzum. questionada perante o STF. Conferir Ação Declaratória de Inconstitucionalidade
3
Referida lei é oriunda do chamado “Projeto Anticrime”, de autoria do Ministro 6304/2020, que foi ajuizada pela Associação Brasileira dos Advogados
Sérgio Moro. Criminalistas.
4
A legítima defesa passou a abranger a hipótese do agente de segurança pública 10
Conforme o art. 61 da Lei 9.099/95, consideram-se infrações penais de menor
que repele agressão ou risco de agressão à vítima mantida refém durante a potencial ofensivo as contravenções penais e os crimes a que a lei comine
prática do crime (art. 25, parágrafo único, do Código Penal). pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.
5
A nova Lei 13.964/2019 acrescentou novos requisitos para a concessão do 11
Conforme o art. 89 da Lei 9.099/95.
livramento condicional, previstos no art. 83 do Código Penal. 12
Vide art. 3-A da Lei 12.850, com redação dada pela Lei 13.964/2019.

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


13
Para que a colaboração premiada seja aplicada, exige-se que o beneficiado 28
Desde 2006, há um Projeto de Lei (PL 7.006/2006) para inclusão expressa
tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o da JR no CPP. Hoje, esse projeto está apenso ao PL 8.045/2010, junto com
processo criminal, e desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos diversos projetos que pretendem alterar o CPP.
resultados previstos em lei (vide art. 3-A da Lei 12.850, com redação dada pela 29
O art. 28-A do CPP impõe algumas condições, que devem ser cumpridas para
Lei 13.964/2019). a realização do ANPP, porém muitas delas se confundem com verdadeiras
14
A Lei de Mediação é aplicável para a solução de controvérsias entre particulares penas, que somente poderiam ser aplicadas após o trâmite do processo
e no âmbito da administração pública. e sentença transitada em julgado. São elas: a renúncia voluntária dos
15
BRAITHWAITE, 2002. instrumentos, produto ou proveito do crime (tal condição se confunde com os
16
Analisado em ACHUTTI, 2016 efeitos genéricos da condenação previstos no art. 91, II, a e b, do CP); prestação
17
ZEHR, 2014. de serviços à comunidade ou a entidades públicas (tal condição se confunde
18
STUART & PRANIS, 2006. com a pena restritiva de direitos prevista no art. 43, IV, do CP); pagamento
19
MAXWELL et. al, 2006. de prestação pecuniária (tal condição se confunde com a pena restritiva de
20
UMBREIT et al, 2006. direitos prevista no art. 43, I, do CP).
21
Resoluções 1.999/26, 2.000/14 e 2.002/12. 30
Art. 3º - A promoção da aplicação de alternativas penais terá por finalidade:
22
Provimento CGJ 35/2014. VIII - a restauração das relações sociais, a reparação dos danos e a promoção
23
Provimento CSM 2.416/2017. da cultura da paz.
24
Lei Municipal 3.371/2017. 31
Art. 13. As práticas restaurativas são recomendadas nas situações para as quais
25
Lei Municipal 3.658-A/2017. seja viável a busca da reparação dos efeitos da infração por intermédio da
26
Lei Municipal nº 6.185/2017. harmonização entre o (s) seu (s) autor (es) e a (s) vítima (s), com o objetivo de
27
Art. 35, III da Lei 2.594/2012 (SINASE). restaurar o convívio social e a efetiva pacificação dos relacionamentos.

REFERÊNCIAS
ACHUTTI, Daniel. Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal: contribuições para Van Ness. Devon (UK) & Oregon (USA): Willan, 2007.
um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, STUART, Barry & PRANIS, Kay. Peacemaking circles - Reflections on principal
2016. features and primary outcomes. Restorative Justice Processes and Practices.
BRAITHWAITE, John. Restorative Justice and Responsive Regulation. New York: Handbook of Restorative Justice - A Global Perspective. Edt. by Dennis Sullivan and
Oxford University Press, 2002. Larry Tifft. London and New York: Routledge, 2006.
CHECKER, Monique. A Lei nº. 13.964/2019 e os acordos de não persecução penal. UMBREIT, Mark S. et al. Victim offender mediation - An evolving evidence-based
JOTA. Disponível em <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-lei-no- practice. Restorative Justice Processes and Practices. Handbook of Restorative
13-964-2019-e-os-acordos-de-nao-persecucao-penal-2-06012020>. Acesso aos Justice - A Global Perspective. Edt. by Dennis Sullivan and Larry Tifft. London and
01.mar.2020. New York: Routledge, 2006.
SCURO, Pedro. Latin America. Regional Reviews. The Global Appeal of Restorative ZEHR, Howard. The little book of Restorative Justice. New York: Good Books, 2014.
Justice. Handbook of Restorative Justice. Edt. by Gerry Johnstone and Daniel W.

Autores convidados

LA REFORMA AL PROCESO
PENAL CHILENO Y
EL JUEZ DE GARANTIA
1

THE REFORM OF THE CHILEAN CRIMINAL PROCEDURE AND THE GUARANTEE JUDGE

Eduardo Gallardo Frías


Abogado, master en derecho (LLM), juez de garantía de Santiago.
egallardo@pjud.cl
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2301-9148

RESUMO ABSTRACT
La reforma del proceso penal chileno fue un proceso estructural complejo que The chilean reform of the criminal procedure was a complex structural
se diseñó e implementó a partir de un amplio consenso político. La estructura process, designed and implemented under a broad consensus. The procedural
del proceso se corresponde con un modelo acusatorio y adversarial trifásico. structure is three phase accusatorial and adversarial model. In that context,
En ese contexto, la función del juez de garantía en las fases preliminares the warranty judge’s role in the preliminary stages is a decisive component for
constituye un componente decisivo para el aseguramiento de la legalidad del the assurance of the legality of the proceedings and the effective tutelage of
procedimiento y la efectiva tutela de los derechos fundamentales. La figura fundamental rights. The warranty judge enables, structurally, a differentiation
del juez de garantía permite, estructuralmente, una diferenciación entre la between the investigative stage and the oral trial.
etapa investigativa y el juicio oral. Keywords: Criminal procedure, accusatorial, adversarial, warranty judge, investigative
Palavras chave: Proceso penal, acusatorio, adversarial, juez de garantía, etapa de stage, oral trial.
investigación, juicio oral.

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


Cuestiones Preliminares persecutoria penal en un país cuya principal agenda – en la década
del noventa- era la de emprender un proceso modernizador a tono
El propósito de estas líneas apunta a mostrar un panorama de la
con la globalización de los mercados en línea con el “consenso de
reforma del proceso penal chileno, centrada en la función del juez
Washington” y las exigencias del Fondo Monetario Internacional. Con
de garantía. No pretendemos hacer una descripción detallada de las
todo, la viabilidad y concreción de la puesta en marcha del proceso
reglas procedimentales específicas adscritas a la función del juez de
penal acusatorio en Chile hace poco más de veinte años se explica
garantía, sino más bien intentar justificar su existencia a la luz de la
fundamentalmente por un amplio acuerdo político y social. Lo dicho
imparcialidad estructural que debe tener un juez penal. Aspiramos
queda en evidencia si se tiene en cuenta que desde la tramitación
a contribuir con argumentos para defender con entusiasmo la
legislativa hasta la última etapa de su efectiva implementación,
incorporación del juez de garantía en Brasil.
se sucedieron tres gobiernos, a saber: Eduardo Frei (1994-2000),
Sin embargo, nos parece importante realizar dos advertencias Ricardo Lagos (2000-2006) y Michelle Bachelet (2006-2010). Es
preliminares que consideramos relevantes para abordar el tema que decir, se trató en rigor de lo que genuinamente solemos denominar
nos ocupa. “Política de Estado”.
La primera cuestión radica en la idea de que el proceso penal se Una segunda advertencia deriva del hecho de que si bien los sistemas
inserta en un fenómeno mucho más amplio y complejo como lo es el procesales penales no aparecen en la realidad fáctica como modelos
sistema de justicia criminal, en el cual convergen y coexisten muchos puros, lo cierto es que tratándose del modelo acusatorio hay ciertos
otros elementos de carácter normativo, culturales, institucionales, etc. rasgos distintivos que se repiten tanto en la literatura procesal penal
El proceso penal existe en un sistema que comprende a las policías, como en la concreción histórica de los sistemas de justicia criminal.
al derecho penal sustantivo, la cultura y estructura institucional de Por consiguiente, el hecho de que en el contexto de un modelo
la judicatura y otros actores, las orientaciones político - criminales, inequívocamente acusatorio podamos encontrar manifestaciones
sólo por citar algunos ejemplos. Y esto no es menor, pues la normativas o en algunos casos prácticas reñidas con dicho sistema
transición de un modelo inquisitivo a uno de corte acusatorio – no debe llamarnos la atención.
como en el caso chileno - sin duda conlleva avances civilizatorios
trascendentales para cualquier sociedad democrática, tales como la Por lo mismo, aquello que comúnmente llamamos modelo acusatorio
reconfiguración institucional y cultural del papel del juez como un en contraposición al modelo inquisitorial, no está exento de algunos
tercero imparcial garante de derechos fundamentales; pero ese matices. Sin embargo, cuando hablamos de “modelos” en el mundo
avance, por muy sustantivo que sea, es sólo una parte de una lucha real nos estamos refiriendo a sistemas que se articulan en base
mucho más extendida en pos de la humanización del sistema penal. a ciertos elementos preponderantes que permiten clasificarlos en
De hecho, pese al relevante avance que hemos tenido en muchos esas categorías analíticas. Es bien sabido que contemporáneamente
países latinoamericanos con las reformas al proceso penal de las existe una especie de convergencia promiscua entre elementos del
últimas décadas, paralelamente en esos mismos países se han modelo inquisitivo y el acusatorio. No en vano, en los Estados Unidos
venido promoviendo agendas político criminales que de manera de Norteamérica, probablemente el paradigma contemporáneo
inequívoca se orientan en la dirección opuesta al ideal del derecho del modelo acusatorio en el imaginario colectivo, el profesor John
penal mínimo y liberal. En pocas palabras, la implantación del Langbein en su trabajo “Torture and Plea Bargaining”, ha descrito
sistema acusatorio es un gran paso civilizatorio, pero está lejos de como la práctica extendida del plea bargain, muestra semejanzas
constituir per se la panacea. asombrosas con la tortura del sistema medieval de Europa
continental.2
El caso Chileno en esto es bastante ilustrativo, pues no deja de llamar
la atención que pese al revolucionario cambio estructural de nuestro Mirjan Damsaka, a propósito de la contraposición entre sistema
proceso penal, en Chile seguimos conviviendo con un Código Penal inquisitivo y sistema acusatorio, anota que “Solo el significado
decimonónico de 1874, lo que sin duda revela una contradicción básico de la oposición permanece razonablemente cierto. El modelo
evidente. Por otro lado, nuestras policías muestran importantes procesal ‘adversarial’ surge a partir de una contienda o disputa: se
deficiencias con relación a las exigencias de sofisticación operativa desarrolla como el compromiso entre dos adversarios ante un juez
que impone nuestro actual sistema de instrucción criminal, en que relativamente pasivo, cuyo deber primordial es dictar un veredicto.
la investigación dirigida por fiscales está sometida a un intenso El modo no adversarial está estructurado como investigación oficial.
control jurisdiccional por parte del juez de garantía; control ejercido Bajo el primer sistema los dos adversarios se hacen cargo de la acción
la mayoría de las veces en el contexto de audiencias públicas, orales judicial; bajo el segundo, la mayor parte de las acciones son llevadas
y contradictorias. La cuestión descrita no es menor, pues coloca de a cabo por los funcionarios encargados de administrar justicia.
relieve uno de los grandes desafíos (y deudas) de los procesos de Más allá del significado esencial, comienzan las incertidumbres. No
reforma en la región: la reforma estructural a las policías. Hoy en Chile, está claro hasta qué punto el proceso adversarial depende de los
recién se está produciendo – en buena hora un consenso transversal deseos de las partes (‘¿Cuán pasivo puede ser un juez?’) y cuán
en la clase política que apunta a una profunda transformación omnipresente es el control oficial en el modo inquisitivo (‘¿Cuán
estructural de la policía centrada en la modernización operativa, el activos pueden ser los administradores de justicia?’). Cada concepto
respeto a los derechos humanos y la transparencia. Esto revela que está dotado de rasgos diferentes cuando la discusión se centra en
la realidad nunca es inequívoca, pues está llena de contradicciones, casos criminales, litigios civiles, o en la administración de justicia en
tensiones y expectativas e intereses contrapuestos en lucha. general. En particular confunde el hábito de incorporar en los dos
modelos de procedimientos diversos rasgos cuya relación con la
Es pertinente destacar que la reforma procesal penal chilena oposición de las ideas de contienda o investigación son, en el mejor
nace de sectores de la sociedad civil como una exigencia de
de los casos, tenues”. 3
organizaciones y académicos de mayor protección a los derechos
humanos, tras la experiencia traumática de la dictadura de Pinochet. Lo que si resulta relevante es comprender que hay principios
Lo interesante es que ese impulso - que forma parte de la llamada fundamentales que son irrenunciables: primero, separación estricta
“justicia transicional”- a la larga se articuló como una política de entre acusador y juzgador; segunda, la consagración del principio de
estado al alero de la cual se configuró un delicado consenso entre congruencia entre la acusación y la condena, y tercero, privar al juez
esos sectores más preocupados de los derechos fundamentales y de poderes de dirección en la producción de pruebas o información,
otros sectores más conservadores preocupados por la eficiencia lo cual compete exclusivamente a las partes.

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


Generalidades que la denominación de “juez de garantía” funcionalmente se refiere
a la idea de un juez de control de investigación, es decir, aquel
Para comprender en toda su dimensión la magnitud de la reforma
juez cuyo rol esencial radica en controlar y limitar el ejercicio de
al proceso penal chileno es ineludible enfatizar que se tuvo la
las actividades de persecución penal encomendadas al Ministerio
convicción de que la transformación debía ser algo radical y Público y a la policía, tutelando la efectividad de los limites que a
profundo, pues nuestro viejo proceso penal que venía del Código de la averiguación de la verdad derivan de un estado democrático de
Procedimiento Penal de 1906 era una de las versiones más puras y derecho.
ortodoxas que contemporáneamente se haya conocido del modelo
inquisitivo en el concierto de las democracias occidentales. Todo En esta materia es importante enfatizar que mero ejercicio de
el procedimiento, desde la fase de investigación preliminar, era la persecución penal envuelve una afectación de derechos
dirigido por un juez penal que actuaba de oficio, decretaba medidas fundamentales cuya legitimidad se sustenta en el respeto a los
cautelares, producía pruebas, procesaba, acusaba y juzgaba. límites constitucionales. Y eso exige la figura institucional de un
Además, el juez administraba y gerenciaba el tribunal, ocupándose juez imparcial que no tenga ningún compromiso con el éxito de
hasta de las cuestiones más domésticas. No está demás decir la investigación. Por lo mismo, es siempre bueno recordar que la
que en ese contexto se producía en los hechos una extendida función garantista de la jurisdicción no constituye una fuente de
delegación de potestades en funcionarios subalternos, algo típico “impunidad” como suele repetirse desde el populismo penal. Por
de los sistemas escritos sin una praxis cultural de audiencias el contrario, la función cautelar y garantista mas bien cumple una
contradictorias. El abuso policial era bastante extendido y en los función legitimadora del ius puniendi estatal. Como sostiene Binder,
hechos la única forma de tutelar derechos fundamentales era por “Tampoco es imaginable un sistema procesal concreto que consista
medio del habeas corpus, que en el contexto descrito no operaba en puras garantías y resguardos. Ellas, por su misma definición, se
como un remedio institucionalmente efectivo para cautelar las oponen a las normas que instrumentan la aplicación de la coerción
garantías de los ciudadanos. Por lo mismo, quienes impulsaron la procesal y buscan su mayor eficiencia”. 4
reforma desde un principio estaban conscientes que no se trataba Lo afirmado no solo exige separar las funciones de persecución y
de una simple modificación legal, pues lo que debía hacerse era juzgamiento, sino también las de control de investigación y las de
una transformación cultural, institucional y normativa muy profunda. juzgamiento, esto es, demanda la abolición de la prevención de
Había que enterrar el sistema inquisitivo. la competencia, conocida en Brasil como el “juiz prevento”. El juez
Lo antes dicho revela una exigencia fundamental para cualquier país de garantía que interviene en la fase de investigación no puede
que quiera emprender con relativo éxito un proceso de la magnitud luego participar en el juicio oral, pues ello resulta estructuralmente
referida: el mayor desafío radica en modificar la cultura inquisitiva. Si incompatible con el principio de imparcialidad.
una reforma al proceso penal no asume como desafio principal que En esto no hay dos lecturas posibles: quien conoció de los autos y
la transformación cultural es lo más importante, cualquier reforma registros en la etapa preliminar, decretando muchas veces medidas
legal por muy profunda que sea estará destinada al más absoluto restrictivas de derechos fundamentales no está en condiciones
fracaso, pues la cultural inquisitiva tarde o temprano termina de actuar como juez imparcial en el juicio. Supongamos que un
imponiendo sus prácticas milenarias. juez en la etapa de investigación decretó una prisión preventiva,
Se crearon dos tipos de jueces penales: los jueces de garantía y los un levantamiento del sigilo bancario, interceptaciones de
jueces orales, actuando los primeros en la fase de investigación y comunicaciones privadas, leyó informes policiales para adoptar
en la etapa intermedia (fase de control de la acusación y legalidad decisiones, conoció las circunstancias de una detención flagrante,
de las evidencias) y los segundos como panel colegiado en el juicio etc. ¿Cómo puede ese mismo juez después sacar todo eso de su
oral. Es relevante destacar que el juez de garantías que interviene cabeza y por arte de magia, en una especie de “auto lobotomía
en la fase de investigación jamás puede participar en el juzgamiento epistémica”, decidir en un juicio oral donde se supone que solo se
durante el juicio oral. Y los jueces orales por su parte no tienen ningún debe resolver en base a las pruebas producidas por las partes en
contacto con la información y las cuestiones debatidas y resueltas esa audiencia? La respuesta es demasiado evidente. La prevención
en la fase de investigación. Ni siquiera tienen acceso físico a los de la competencia impide concretizar los principios de imparcialidad
registros o “autos” de la etapa previa. Es decir, epistémicamente son y de presunción de inocencia, desde que no hay forma de excluir la
absolutamente “ignorantes” al momento de iniciarse el juzgamiento. información reunida en la fase preliminar de investigación, pues el
propio juzgador ya la conoce. En el fondo en ese esquema la fase
La estructura básica del procedimiento está dividida en tres fases: i, de investigación pierde en los hechos su naturaleza preliminar o
La fase de investigación, donde interviene el juez de garantía a través preparatoria y pasa a constituir el núcleo central de la información
de la función cautelar y de control de legalidad de las actuaciones en base a la cual se adopta la decisión de absolución o condena en
del Ministerio Público y las policías; ii, la etapa intermedia, en donde el juicio.
ante el juez de garantía se verifica el control de admisibilidad de las
Desde otro ángulo, si quien actúa en la fase de investigación sabe
pruebas del Ministerio Público contenidas en la acusación y las de la
que luego deberá juzgar al investigado (el juez provento), ¿cómo
defensa, y; iii, el juicio oral, ante tres jueces que no actuaron en las
hacemos para garantizar que sus decisiones en esa fase preliminar
etapas previas.
de investigación no sean condicionadas por la natural inclinación
¿Por qué el Juez de Garantía? humana de intentar contar con la mayor cantidad de información
de calidad para una decisión que deberá adoptarse en el futuro?
Hecho este panorama general, explicaremos algunas cuestiones
La sola pregunta revela que la institución del juez de prevención
acerca de la función que compete al juez de garantía en el contexto
compromete también la imparcialidad de ese mismo juez durante la
de la fase preliminar de investigación y, más precisamente, justificar
etapa de investigación y lo que es más grave se generan incentivos
la necesariedad de su existencia como condición sine qua non de un
que sin duda pueden inclinarlo a producir información o fomentar
proceso penal acorde con las exigencias de un estado democrático
líneas investigativas destinadas a corroborar sus propios prejuicios
de derecho.
e hipótesis. Ello explica que en los modelos con prevención de la
Como cuestión previa que facilita el entendimiento acerca de la competencia se producen fuertes síntomas de injerencia y dirección
importancia de este acto procesal, me parece importante destacar judicial en la tarea del Ministerio Público.

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


La negación de este problema esencial y que subyace al núcleo del del rol del juez de garantía. La misión de este actor procesal
rol del juez de garantía, solo puede sostenerse en una suerte de fe durante la etapa de investigación se vincula directamente con el
casi religiosa en la superioridad epistémica del juez profesional, o problema de la ponderación que debe efectuar, “caso a caso, entre
sea, en una adscripción consciente o inconsciente al modo de ser, la eficiencia y fines legítimos de la persecución penal y la protección
actuar y pensar del sistema inquisitivo. de las garantías individuales de los ciudadanos imputados. En una
sociedad civilizada todos aspiramos a vivir seguros y a que el Estado
En relación a este punto, una revisión de la literatura más allá de las
nos proteja de quienes atentan contra los bienes más esenciales
complejidades en torno a la distinción contemporánea entre sistema
en que se funda nuestra convivencia colectiva. Sin embargo, al
inquisitivo y acusatorio, lleva a la conclusión de que la no producción
mismo tiempo le exigimos a ese Estado que respete nuestros
judicial de evidencias es bastante pacífica a nivel teórico. Así, Julio
derechos básicos cuando persigue delitos a fin de sancionar a los
Maier al ocuparse del principio de imparcialidad de los jueces, afirma
responsables. No queremos que ese estado encarcele inocentes,
de manera tajante: “Pero el juez – a quien las reglas del proceder lo
(más no sea para que los verdaderos culpables no permanezcan
empujan fuertemente a lograr determinados fines, incluso en forma
de deberes establecidos para cumplir correctamente su función, impunes); le exigimos que a los imputados de algún delito –por
como, por ejemplo, el de conocer por las suyas la verdad de un muy grave que sea, se les respete su dignidad y se les pruebe su
acontecimiento histórico (investigar ex officio, “ofrecer” el mismo culpabilidad en un juicio oral y público; así como no estamos
medios de prueba para averiguar la verdad, interrogar a los órganos dispuestos a tolerar que otros ciudadanos entren impunemente a
de prueba)-, parte de una posición que no favorece la imparcialidad, robar a nuestras casas, tampoco estamos dispuestos a livianamente
sino que, antes bien, la imposibilita en origen, pues la ley lo obliga aceptar que el Estado pueda invadir nuestra intimidad y entrar en
adoptar una posición de parte en el procedimiento, a tener interés nuestras casas o dormitorios con agentes policiales armados, sin
propio en la decisión, a abandonar su posición neutral frente al que un juez lo autorice mediante resolución fundada”. 9
acontecimiento desde algún punto de vista (la ‘verdad histórica Conclusión
objetiva’), base de su decisión, o no condenar a un inocente o no
condenarlo más allá de su merecimiento o necesidad, pese a la Hemos pretendido explicar la relevancia del juez de garantía para
torpeza de su actividad defensiva). Incluso se puede decir que, frente el debido proceso, subrayando la importancia que tiene no sólo la
a la solución dilemática –relativa- que hoy gobierna nuestro orden separación funcional entre acusador y juzgador, sino también la
jurídico en materia de decisión judicial (condena o absolución), separación entre la función de control de la investigación y la función
coincida o no coincida el juez que lleva a cabo esta actividad –extraña de juzgamiento en el juicio oral propiamente tal.
en sí a su concepto y función- con los intereses de los protagonistas Pensando ya en el cambio transcendental que se avecina en la
del asunto, siempre favorecerá con su acción el interés básico de justicia penal brasileña, la tarea prioritaria será la transformación
alguna de las ‘partes’ o intervinientes en el procedimiento”. 5 El autor cultural sin la cual cualquier reforma legal, por muy profunda que
citado, al caracterizar el modelo acusatorio enfatiza la idea de que sea, no tendrá éxito. Ello exigirá un fuerte compromiso de los futuros
el papel del juzgador está acotado a los términos de la controversia jueces de garantía.
planteada por el acusador y la resistencia del acusado, apareciendo
el tribunal como un “árbitro” entre dos partes.6 Ferrajoli a su turno En un estado de derecho al juez no tiene un compromiso con las
afirma que “si son típicamente característicos del sistema inquisitivo políticas de seguridad pública de las agencias de persecución
la iniciativa del juez en el ámbito probatorio (…).” 7 Luego, refiriéndose penal ni de los gobernantes de turno. Los jueces penales solo miran
a la contraposición entre sistema acusatorio y sistema inquisitivo, a los hechos del caso y al derecho aplicable, no a la “calle” ni a
el autor italiano afirma que dicha dicotomía “es útil para designar las mayorías que claman “justicia”. Es relevante comprender que
una doble alternativa: ante todo, la que se da entre dos modelos los casos penales, por muy relevantes que sean, jamás pueden ser
opuestos de organización judicial y, en consecuencia, entre dos instrumentalizados por la judicatura para propósitos o “luchas” – por
figuras de juez y, en segundo lugar, la que existe entre dos métodos muy nobles que sean- que excedan la única finalidad que justifica la
de averiguación judicial igualmente contrapuestos y, por tanto, entre existencia de la jurisdicción en un estado democrático de derecho:
dos tipos de juicio. Precisamente, se puede llamar acusatorio a decidir el caso conforme a las reglas jurídicas aplicables.
todo sistema procesal que concibe al juez como un sujeto pasivo
Sin vinculación a la ley, la independencia judicial termina por
rígidamente separado de las partes y al juicio como una contienda
convertirse en una peligrosa forma de tiranía en la cual el “gobierno
entre iguales iniciada por la acusación, a la que compete la carga de
de las leyes” termina siendo desplazado por el “gobierno de los
la prueba (…)8
jueces”. Cuando un magistrado abandona esa premisa esencial,
Las ideas que hemos venido desarrollando dan cuenta de una habrá dejado de ser juez o jueza, para convertirse en activista o
cuestión central y que podría decirse constituye la piedra angular en parte, corrompiendo con ello el estado democrático de derecho.

NOTAS
1
El presente artículo constituye una versión renovada de un trabajo publicado 1999, pag. 740.
por el autor en la Mentalidade inquisitória e processo penal no Brasil - Volumen 6
Ver Julio Maier, ob. cit., pags. 444-445-
4, habida consideración de tratarse de temas y cuestiones centrales atingentes 7
Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón. Teoría del Garantismo penal. Editorial Trotta,
a la inminente implementación de la figura del juez de garantía en Brasil. 2001, pag. 563.
2
https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer= 8
Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, Teoría del Garantismo Penal, Editorial Trotta,
https://www.google.cl/&httpsredir=1&article=4154&context=uclrev 2001, Madrid, pag. 564.
3
Mirjan R. Damaska, Las Caras de la Justicia y el Poder del Estado. Análisis 9
Gallardo Frías, Eduardo: “Los Jueces de Garantía y la Seguridad Ciudadana en
comparado del proceso legal. Editorial Jurídica de Chile, año 2001, pags. 13-14. el Contexto de la Independencia Judicial concebida como Sujeción a la Ley”,
4
Binder, Alberto, Introducción al Derecho Procesal Penal, Editorial Ad-Hoc, Revista Procesal Penal. Editorial Lexis Nexis, Santiago-Chile, no. 45, 2006, pag
segunda edición actualizada y ampliada, Buenos Aires, 2000, pag. 59. 13.
5
Julio B. J. Maier, Derecho Procesal Penal, I. Fundamentos, Editores del Puerto,

Autor Convidado

10

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


AS REGRAS SOBRE A DECISÃO DO
ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL:
O QUE MUDA COM A LEI 13.964/19?
1

THE RULES CONCERNING THE DECISION OF CLOSURE OF THE POLICE


INVESTIGATION: WHAT CHANGES WITH THE ACT 13.964/19?

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho


Doutor pela Universidade de Roma “La Sapienza”, mestre pela UFPR e especialista em Filosofia do Direito pela PUCPR. Professor Titular de Direito
Processual Penal da Universidade Federal do Paraná (aposentado). Professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Criminais da PUCRS.
Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Damas do Recife. Presidente de Honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória.
Advogado. Membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.
https://orcid.org/0000-0002-6532-2460

Ana Maria Lumi Kamimura Murata


Doutoranda em Direito Penal (USP). Mestre em Direito Penal (USP). Editora adjunta do Boletim do IBCCRIM. Advogada.
ana_murata@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0003-4182-4754

RESUMO ABSTRACT
O presente artigo trata das novas regras introduzidas no art. 28, do CPP, The present article is about the new rules introduced in the art. 28, from
pela Lei 13.964, de 24.12.19, cuja vigência por ora está suspensa devido à the Criminal Procedure Code, brought by the Law 13,964, of 12.24.19, which
decisão do Ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de is currently suspended by the Brazilian Supreme Court Minister Luiz Fux’s
Inconstitucionalidade 6.395. Trata-se dos fundamentos para a modificação da decision, in the Direct Unconstitutionally Action 6,395. It analyzes the
“natureza jurídica” do ato de arquivamento do inquérito policial, a partir da fundamentals for changing the “nature” of the act of closing the police
nova redação do dispositivo legal, e as consequências para a interpretação investigation, by the new text of the legal provision, and its consequences to
das regras postas na estruturação do processo penal. the rules’ interpretation in the structuring of the criminal procedure.
Palavras chave: Arquivamento, inquérito policial, Lei 13.964/19. Keywords: Closure, police investigation, Law n. 13,964/19.

A Lei 13.964, de 24.12.19, trouxe um novo tratamento para o prevalece, nessas hipóteses e como se sabe, o princípio da
arquivamento do inquérito policial e outros procedimentos de objetividade, pelo qual está pressuposto um agir do servidor
investigação preliminar, em face de nova redação do artigo 28, público se previsto em lei; e para o órgão do MP não é diferente.
“caput”, do CPP:2 “Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou Ora, o princípio da conformidade exige que os atos dos órgãos
de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do administrativos estejam previstos em lei, vinculando-os à legalidade
Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade e, quando possível, à discricionariedade, razão por que, em tais
policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial hipóteses, são oportunos ou convenientes, mas nunca arbitrários. O
para fins de homologação, na forma da lei. § 1º Se a vítima, ou seu agir, contudo, está pressuposto; e obviamente não haveria sentido,
representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito a cada regra, ter-se que afirmar – nos textos – que se deve agir.
policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da Prevista a ação e conformados os requisitos ou preenchidas as
comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente condições (como normalmente se diz) para o ato, deve-se agir. Trata-
do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica. § se, porém, de um dever. Diferente, portanto, de algo como obrigação,
2º Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da poder, faculdade ou mesmo ônus.3 A dogmática do processo penal,
União, Estados e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito por vários fatores – alguns dos quais inexplicáveis – fez e segue
policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a fazendo, em certos espaços, força para confundir conceitos de real
sua representação judicial”. importância e que têm lugar na chamada teoria geral do Direito,
a qual deveria ser ensinada, sempre, como imprescindível. Esses
Como se percebe, o preceito adota o sistema hierárquico de controle
(os decorrentes de tais significantes) são alguns deles. O certo,
de legitimidade. Compatível com o sistema acusatório, o próprio
sem embargo, é que se confunde – e muito –, com consequências
Ministério Público (MP), órgão com atribuição para o caso nas ações
profundas. E confusões desnecessárias. No caso, ainda não se tem
penais públicas, decide, administrativamente, sobre a presença ou
presente em uma maior escala – como se deveria –, que o chamado
não das condições para acionar, daí decorrendo, pelo menos, três
princípio da obrigatoriedade impõe um ato vinculado e, portanto,
caminhos a seguir:
devido (do dever que vem da previsão); mas não como obrigação. É
1º, se presentes as referidas condições da ação, deve agir. Afinal, justo isso que faz com que a ação – mesmo sendo devida – possa

11

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


ser discricionária (conforme se passa na estrutura do sistema ter prejuízo e não mera discordância, algo que se justifica porque o
acusatório), tudo em face das previsões expressas na lei.4 ato, como visto, não se encontra acabado e sim em formação, dado
se tratar de ato administrativo composto. É por isso também, ao que
Por outro lado, se faltam elementos de convicção sobre tudo indica, que o precitado § 1º não fala de recurso para a instância
o preenchimento das condições da ação, abrem-se duas revisora e sim que a vítima vai “submeter a matéria à revisão da
possibilidades, conforme as consequências: instância competente do órgão ministerial...”. Ela, como se vê, participa
2º, referidos elementos não estão presentes (na avaliação que faz o do procedimento, perante a instância revisora, como parte, com os
órgão do MP), mas podem ser conseguidos se novas investigações direitos e garantias daí decorrentes.
forem feitas e, por primário, não estiver extinta a punibilidade. Assim, Em suma, pode chegar na instância revisora os Autos conforme
com as indicações do MP, as investigações prosseguem e devem encaminhado pelo órgão do MP e, dentro do prazo, a impugnação
ser realizadas pelo órgão com atribuição para tanto; ou, da vítima. Nesse caso, por óbvio que se não fará dois procedimentos
3º, se referidos elementos não estiverem presentes (sempre na e, portanto, é recomendável que se chegue no tempo da lei (30 dias
avaliação que faz o MP) e não for possível, no momento, consegui- a partir da comunicação, na forma do art. 798, § 5º, “a”, do CPP)
los com novas investigações, aí se dará a hipótese de arquivamento, a impugnação da vítima de modo a que tudo seja apreciado em
a ser determinada por ele, órgão do MP. É o que a doutrina tradicional conjunto.
ainda chama de “ato determinado por falta de prova”, no caso, seja Decidido pelo arquivamento no órgão revisor, é recomendável
em razão da tipicidade aparente, seja da justa causa. que se comunique o Juiz das Garantias, ainda que se não tenha
Trata-se, portanto, de um ato administrativo decorrente de previsão legal. Por outro lado, se houver alguma cautelar em curso,
uma decisão (passível de controle), a qual ele mesmo, órgão o arquivamento exige que se comunique ao Juiz das Garantias, na
do MP, submete ao órgão superior que a lei determina, ou seja, forma do art. 3º-B, VI, do CPP, de modo a que seja revogada.
os Procuradores-gerais (nos MP estaduais) ou a Câmara de O que parece não deixar margem à dúvida – em face da redação
Coordenação e Revisão (Criminal), na forma do artigo 62, IV, da genérica do art. 28 – é que as regras dele atingem todos os órgãos
Lei Complementar 75/93, a Lei Orgânica do Ministério Púbico da do MP que sejam legitimados para as ações e, assim, também
União.5-6 A submissão do ato, para homologação, torna-o um ato os Procuradores-gerais, nos casos das chamadas ações penais
administrativo composto,7 o qual só vai se consolidar – e existir originárias. Tal matéria, como se viu, na estrutura atual do art. 28
como tal – com aquele da instância revisora. (ainda em vigor em face da decisão precitada do Min. Luiz Fux),
Eis por que o ato ordenatório do órgão do MP, que ele submete à sempre foi problemática e colocava de joelhos toda a construção
referida instância, é provisório quanto à perfeição, se se pensa no que a dogmática arduamente fez do princípio da obrigatoriedade,
ato como composto; o que justifica a intervenção, nela, se for o caso, porque, no final das contas, o STF sempre se viu compelido a
da vítima, do investigado, da autoridade policial e, ainda pela vítima, admitir (de um modo um tanto equivocado) que, em ultima ratio,
da “chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial”, o Procurador-geral tinha a última palavra sobre o exercício da
referindo-se, neste último caso, à União, Estados e Municípios, na ação ou sobre o arquivamento e, assim, fazia uma concessão à
forma do § 2º, do novel art. 28 que, por óbvio, não tem uma boa oportunidade. Isso é inconcebível em um regime democrático de
redação, dado deixar fora os entes públicos que têm personalidade legalidade como parece elementar. A questão agora está resolvida,
jurídica própria e, por suposto, deveriam estar albergados no texto.8 exceto se quiserem, mais uma vez, salvar de controle, na matéria, a
posição dos Procuradores-gerais.
Tais agentes – diz a lei – serão comunicados (“Ministério Público
comunicará” 9) do ato de arquivamento, de modo a que, cientes, Por fim, resta verificar, diante da nova redação do art. 28 e da
possam intervir, se assim entenderem, diante da instância de revisão. sistemática adotada, o que é, do ponto de vista jurídico, o ato; ou,
A questão, porém, não é muito clara. Afinal, poder-se-ia indagar sobre sempre como queriam os antigos, sua natureza jurídica.
a legitimidade para intervir, em face de não se ter previsão expressa. Para tanto, há de se recordar que agora o ato é administrativo e não
Para as vítimas, há previsão de intervenção nas regras dos §§ 1º e 2º; mais jurisdicional, o que desde logo exclui a discussão a respeito da
e seria uma ofensa à isonomia se ela (a intervenção) não incluísse coisa julgada. De qualquer forma, está em vigor o art. 18, do CPP,10
o investigado, assim como a própria autoridade policial, embora em assim como diz sobre a matéria a Súmula 524, do STF,11 a serem
situação diversa, sem embargo de ambos não poderem impugnar, adaptados, obviamente.
aí sim por falta de previsão legal para isso. O investigado, por
primário, tem interesse em defender o arquivamento, assim como, Nesta toada, o ato administrativo composto, tão só determinado o
de certa forma, pode-se imaginar hipóteses em que a autoridade arquivamento com a homologação a que se refere o caput do art.
policial possa querer defender a investigação que levou a efeito e 28, sujeita-se às condicionantes do art. 18, do CPP, logo, a novas
esclarecê-la perante a instância de revisão ministerial. Por outro e melhores provas, ou seja, substancialmente novas (como tantas
lado, há de se fazer viva a CR, por seu art. 5º, LV, ou seja, reconhecer vezes decidiram os tribunais), tudo de modo a não se acolher
que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos releituras apressadas, quando não tendenciosas.
acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, Deste modo, diante do CPP/41, o que impedia – e segue impedindo
com os meios e recursos a ela inerentes”. Ao que parece, pode-se – o desarquivamento puro e simples do inquérito policial era a
resolver, mais uma vez, na via da interpretação. De qualquer forma, é chamada coisa julgada rebus sic stantibus.12
a teoria fazzalariana do processo constitucionalizada: os que podem
ser atingidos pela decisão devem participar do processo, se assim Agora, o ato administrativo, pela força do art. 18, do CPP, carrega
entenderem, aí observado como um procedimento em contraditório, consigo uma estabilidade provisória, em face de se tratar de ato
tudo em simétrica paridade e sem decisões surpresas. jurídico perfeito, nos moldes do art. 5º, XXXVI, da CR.13 A garantia
jurídica constitucional assegura a estabilidade na forma da lei.
Para ambos (investigado e autoridade policial), não se previu a Portanto, mesmo que administrativo, não pode ser revisto a bel-
possibilidade de impugnação, garantido às vítimas (no § 1º) e prazer pelo órgão administrativo, inclusive em razão da regra
explicitado a legitimidade (§ 2º), nos casos penais decorrentes de constitucional da moralidade, nos termos do art. 37, caput, da CR,
crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios: embora se sujeite, como qualquer ato administrativo, ao controle da
“chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial”. higidez deles, ou seja, à análise sobre a nulidade.
Ela, a impugnação da vítima, refere-se, na forma do mencionado O importante, então, é entender a mudança para uma estrutura ligada
§ 1º, com a discordância do ato administrativo de determinação ao sistema acusatório e, assim, perceber a seriedade que envolve
do arquivamento, pois dele não concorda. Há de se notar que, as questões referentes ao arquivamento e desarquivamento do
aparentemente, não se trata de recurso para o qual se haveria de inquérito policial e outros procedimentos de investigação preliminar,

12

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


sempre em compatibilidade com a Constituição da República. para as decisões do processo. Assim, como se sabe desde há muito,
as questões referentes à ação, ressalvadas aquelas que se referem
No fundo, a nova hipótese, dentro do sistema acusatório, respeita à admissibilidade dela ( já como ato processual), devem restar fora
o lugar constitucionalmente demarcado do órgão jurisdicional e do do alcance da competência do órgão jurisdicional, no caso, o Juiz
órgão ministerial. Ao juiz competente, por certo, garante-se não só o das Garantias. É menos trabalho, por evidente; e assim, menos
poder jurisdicional como, substancialmente, reserva-se sua atuação responsabilidade.

NOTAS
1
Parte-se da leitura do texto publicado em 1993 (COUTINHO, Jacinto Nelson
5
“Art. 62. Compete às Câmaras de Coordenação e Revisão: IV – manifestar-se
de Miranda. A natureza cautelar da decisão de arquivamento de inquérito sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de
policial. Revista de Processo, São Paulo, v. 18, n. 70, pp. 49-58, abr./jun. 1993.), já informação, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral”.
retrabalhado e atualizado em 2017 (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Da
6
Neste aspecto, referente ao órgão com atribuição para a revisão – já previsto
Decisão Cautelar de Arquivamento do Inquérito Policial. In: NORONHA, João em lei – não parece ter andado bem o Min. Luiz Fux na decisão que concedeu
Ricardo (Coord.); ANDRADE, Pedro Felipe C. C. de (Org.). Revista Jurídica da a medida liminar precitada: “Anoto que questões operacionais simples deixaram
Associação dos Delegados de Polícia do Estado do Paraná. v. 1. Curitiba: Juruá, de ser resolvidas pelo legislador, como, por exemplo, a cláusula aberta trazida
2017, pp. 69-94), que dá a base para o estudo do presente texto. Agradecemos à no caput do artigo 28, ao determinar que o arquivamento do inquérito policial
colega Alice Silveira de Medeiros pelas sugestões e ajuda imprescindível. será homologado pela ‘instância de revisão ministerial’. A nova legislação sequer
2
O Min. Luiz Fux, do STF, de forma monocrática, decidiu: “Concedo medida definiu qual o órgão competente para funcionar como instância de revisão”.
cautelar requerida nos autos da ADI 6305, e suspendo sine die a eficácia, ad Ora, por certo não se definiu porque já estava na lei, o referido órgão, como
referendum do Plenário, (b1) da alteração do procedimento de arquivamento superior administrativo; e não são, sempre, os mesmos órgãos. Afinal, como
do inquérito policial (28, caput, Código de Processo Penal)”, tudo em face dos se sabe, no MPF, por lei, a atribuição é da Câmara de Coordenação e Revisão
seguintes fundamentos da ADI 6305 da Associação Nacional dos Membros (Criminal). Ademais, por certo consciente que se haveria de reformular as
do Ministério Público: “(c) Artigo 28 caput, Código de Processo Penal (Alteração atribuições nas estruturas administrativas do MP, o legislador não quis vincular
do procedimento de arquivamento do inquérito policial): (c1) Viola as cláusulas o agir das instituições, aí sim, quem sabe, incorrendo em inconstitucionalidade.
que exigem prévia dotação orçamentária para a realização de despesas (Artigo O legislador, então, não parece ter legislado mal; e sim bem, respeitando a
169, Constituição), além da autonomia financeira dos Ministérios Públicos autonomia do MP.
(Artigo 127, Constituição), a alteração promovida no rito de arquivamento do
7
Ao contrário do que podem pensar alguns, não se trata de um recurso de ofício,
inquérito policial, máxime quando desconsidera os impactos sistêmicos e para o qual se teria que ter, dentre outros requisitos, um ato acabado e perfeito,
financeiros ao funcionamento dos órgãos do parquet; (c2) A previsão de o o que, por evidente, não ocorre. A doutrina do direito administrativo não deixa
dispositivo ora impugnado entrar em vigor em 23.01.2020, sem que os Ministérios muita dúvida a respeito do tema.
Públicos tivessem tido tempo hábil para se adaptar estruturalmente à nova
8
Dar-se-á, no caso, a aplicação do art. 3º, do CPP, fazendo-se interpretação
competência estabelecida, revela a irrazoabilidade da regra, inquinando-a extensiva. A importância do referido art. 3º está – justo – na solução interpretativa
com o vício da inconstitucionalidade. A vacatio legis da Lei n. 13.964/2019 de preceitos normativos assim dispostos porque, como queriam os antigos,
transcorreu integralmente durante o período de recesso parlamentar federal e parece que o legislador, no caso, disse menos do que queria ou deveria dizer; e
estadual, o que impediu qualquer tipo de mobilização dos Ministérios Públicos não há veto para a extensão na via da interpretação.
padra a propositura de eventuais projetos de lei que venham a possibilitar a
9
O preceito do caput do art. 28, como se percebe, usa o verbo comunicar,
implementação adequada dessa nova sistemática; (c3) Medida cautelar deferida, portanto, refere-se à comunicação, isto é, termo genérico utilizado para se
para suspensão da eficácia do artigo 28, caput, do Código de Processo Penal;”. referir à ciência do ato praticado ou do ato que se deva praticar. Essa dualidade
O principal fundamento da decisão (sobre o fumus boni iuris) está assim sempre demarcou a diferença (debaixo do termo genérico comunicação) entre
expresso: “Em análise perfunctória, verifico satisfeito o requisito do fumus boni intimação e notificação; aquela para ciência do ato praticado e esta para ciência
iuris para o deferimento do pedido cautelar de suspensão do artigo 28, caput, da de que se deve praticar um ato. No CPC/73 a diferença foi abolida e se adotou,
Lei n. 13694/2019. Na esteira dos dados empíricos apresentados pela parte autora, para todas as hipóteses, o significante intimação. A atitude foi louvada. Da
verifica-se que o Congresso Nacional desconsiderou a dimensão superlativa dos sua parte, o CPP também tinha e tem um Capítulo II, do Título X, do Livro I,
impactos sistêmicos e financeiros que a nova regra de arquivamento do inquérito referente ao tema e que trata “das citações e intimações”. Independente disso,
policial ensejará ao funcionamento dos órgãos ministeriais. Nesse sentido, a o CPP segue referindo-se à intimação (como no caso, por exemplo, do art. 222:
inovação legislativa viola as cláusulas que exigem prévia dotação orçamentária “A testemunha que morar fora da jurisdição do juiz será inquirida pelo juiz do
para a realização de despesas, além da autonomia financeira dos Ministérios lugar de sua residência, expedindo-se, para esse fim, carta precatória, com prazo
Públicos. Na esteira do que já argumentado no tópico anterior, vislumbro, em sede razoável, intimadas as partes.”), mas também se refere à notificação (como no
de análise de medida cautelar, violação aos artigos 169 e 127 da Constituição”. Por caso, por exemplo, do art. 600, § 4º: “Se o apelante declarar, na petição ou no
outro lado, o periculum in mora restou justificado porque os Ministérios Públicos termo, ao interpor a apelação, que deseja arrazoar na superior instância serão os
não teriam tido “tempo hábil para se adaptar estruturalmente à nova competência autos remetidos ao tribunal ad quem onde será aberta vista às partes, observados
estabelecida”. O argumento principal (quanto ao fumus boni iuris) é frágil – e os prazos legais, notificadas as partes pela publicação oficial.”), o que sempre
depõe contra a próprio Ministério Público – porque, com a nova regra, livram-se causou dificuldades no entendimento do tema e no seu ensino, dada a confusão
do controle jurisdicional do arquivamento, de todo inconstitucional, em face da que se criou e cria, mormente a partir da infeliz teoria geral do processo. E isso se
estrutura autônoma da instituição e da “natureza” da decisão que submetem ao deu, no processo penal, porque, para ele, a opção do CPC/73 não foi a melhor,
controle; depois, porque têm plenas condições de operacionalizar o controle por evidente, dadas as previsões legais expressas referentes, no CPP, das
interna corporis simplesmente pela distribuição das atribuições dentre os notificações. Uma coisa, contudo, é certa: se os significados dos significantes
inúmeros Procuradores lotados nas Procuradorias Gerais; e sem nenhum são diferentes, das duas, uma: ou eles são tratados nos seus devidos lugares,
aumento de despesas. Tais órgãos, por evidente, terão que trabalhar mais – é ou ganham o termo genérico – e, no caso, unificador – comunicação. Deste
verdade – e isso sempre esteve subjacente em certa má vontade de alguns, modo, a opção do legislador natalino do novo art. 28, ao que tudo indica, foi
coisa que há muito se verificava, inclusive já em tempos passados, nas – um feliz, acertando pela generalidade (usando o verbo comunicar), ainda que, como
tanto antigas – tentativas de mudança do sistema de controle de legitimidade, se sabe, o referido artigo estivesse se referindo à intimação do ato praticado.
do que foi exemplo marcante aquela verificada em relação ao chamado Projeto
10
Art. 18, do CPP: “Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade
Frederico Marques. O Ministério Público, contudo, não merece algo assim. O judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder
MP da CR/88 não pode estar à mercê de um pensamento tão obtuso. Além a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia”.
do mais, a mudança – desde este ponto de vista absolutamente necessária
11
Observar, nesse ponto, que “enquanto o art. 18 regula o desarquivamento de
– é imprescindível à refundação do próprio sistema processual penal, com a inquérito policial, quando decorrente da carência de provas (falta de base para
alteração de inquisitório para acusatório. denúncia), só admitindo a continuidade das investigações se houver notícia de
3
Para uma diferença entre tais significantes e que se possa recomendar, vide: novas provas, a Súmula 524 cria uma condição específica para o desencadeamento
CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986, pp. 14-17. da ação penal, caso tenha sido antes arquivado o procedimento, qual seja, a
4
A matéria é muito interessante e mereceria uma análise mais alargada, produção de novas provas. (...) Em resumo, sem notícia de prova nova o inquérito
que o presente ensaio não comporta. Sobre o tema da ação, porém, são policial não pode ser desarquivado, e sem produção de prova nova não pode
imprescindíveis os ensinamentos de SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Por ser proposta ação penal.” (STF, HC 94.869, 26.6.13, DJ 25.2.14). A propósito, ver
uma teoria da ação processual penal: aspectos teóricos atuais e considerações também: RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 25. ed. São Paulo: Atlas,
sobre a necessária reforma acusatória do processo peal brasileiro. Curitiba: 2017, p. 228 e ss.; DUCLERC, Elmir. Curso básico de direito processual penal. Rio
Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, 414p. Sobre o tema específico de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 162.
da discricionariedade, ver: SOUZA, Bruno Cunha. Obrigatoriedade da ação
12
Sobre o argumento, ver: DIAS, Jorge Figueiredo. Direito processual penal.
penal pública: o problema da escassez dos recursos públicos para uma prestação Coimbra: Coimbra Editora, 1981, p. 410.
jurisdicional eficiente. 2020. 161p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-
13
Art. 5º, XXXI, da CR: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico
Graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica, Curitiba, 2020. perfeito e a coisa julgada”.

Autores convidados

13

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


ISOLAMENTO E A PRIVACIDADE
“TÓXICA” EM TEMPOS DE PANDEMIA:
O SOFRIMENTO FEMININO
1

ISOLATION AND “TOXIC” PRIVACY IN TIMES OF PANDEMIC: FEMALE SUFFERING

Ana Lucia Sabadell


Professora Titular da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
anasabadell@yahoo.com
ORCID: 0000-0001-9370-1057

RESUMO ABSTRACT
A prática do isolamento como medida preventiva e de combate ao vírus CThe practice of self-isolation as a preventive and combat measure against the
Covid-19 trouxe à tona a discussão sobre a violência doméstica praticada Covid-19 virus brought up the discussion about domestic violence practiced
contra as mulheres no Brasil. A autora entende que a tutela jurídica da against women in Brazil. The author understands that the legal protection of
intimidade favorece o processo de denegação deste tipo de violência e intimacy favors the process of denial of this type of violence and presents a
apresenta uma reflexão sobre as medidas práticas que podem ser tomadas reflection on the practical measures that can be taken to face violence against
para enfrentar a violência contra a mulher no atual contexto de pandemia. women in the current pandemic context.
Palavras chave: Isolamento; violência doméstica, invisibilidade, medidas de proteção,
Coronavírus. Keywords: Isolation; domestic violence, invisibility, protective measures, Coronavirus

Introdução e na América Latina, especialmente a partir dos anos de 1980. Basta


lembrar, por exemplo, que a primeira delegacia de defesa da mulher
As feministas foram as primeiras, ainda nos anos de 1980, a indicar
foi criada, em São Paulo, em 1985, por conta desta questão e da
a relação entre privacidade e a problemática da violência de gênero
Constituição de 1988, que deu destaque ao problema da violência
praticada no âmbito das relações familiares.2 A violência doméstica,
na família.4 De todas as formas, sempre foi muito difícil lutar contra a
já naquela década, era compreendida como um correlato da
construção histórico-social das relações desiguais entre os gêneros. violência doméstica no nosso país, dada a força da inércia da cultura
Em nosso modelo social (patriarcal e, portanto, heterossexual), patriarcal.
este tipo de violência se constituiu em um meio sistematicamente Acredito que o silêncio se constitui como uma espécie de manto
empregado para controlar as mulheres mediante a intimidação e sagrado do machismo brasileiro; na verdade, o integra. O silêncio
o castigo, mesmo se, no senso comum, prevaleceu (e infelizmente, sempre foi cúmplice dos homens violentos que estupram, batem,
em certos ambientes ainda prevalece) a ideia de que a violência humilham e, em muitos casos, matam suas mulheres e inclusive sua
doméstica é um fenômeno de “desvio” e isolado, que pode ser própria prole, independentemente de sua orientação sexual. Porém,
atribuído a “patologias” do homem ou do casal.3 ocorreram mudanças nos últimos anos. E falar em mudança social
Entendo que a construção desigual entre os gêneros não afeta é um tema muito delicado, porque não significa que não ocorram
apenas as mulheres de orientação heterossexual. Na visão patriarcal retrocessos e que os ditos “avanços” não sejam marcados por
de mundo também não há espaço para a diversidade sexual. contradições. Não é fácil mudar padrões de comportamentos que
Consequentemente, todos os “desvios” devem ser “castigados”, estão muito arraigados em uma sociedade. Além das mulheres
todos os “desvios” devem ser devidamente “neutralizados”. Por isso, vítimas de violência doméstica, as pessoas cuja orientação sexual,
também dedico aqui uma pequena reflexão acerca do sofrimento identidade ou expressão de gênero diferem das normas tradicionais
vivenciado pelas pessoas que integram, no Brasil, a comunidade “heteropatriarcais” sofrem muita discriminação e rejeição, dentro e
LGBTQI+ no momento em que a privacidade demonstra seu fora do lar, apesar dos avanços nas discussões sobre seus direitos
potencial efeito destruidor. nas últimas décadas.5 Retornando ao tema das mulheres: quando
olho para os dados quantitativos sobre a violência contra a mulher
1. Silêncio e mudança social. O Preço do confinamento.
brasileira, identifico essa dificuldade de mudança de mentalidade
No Brasil, foram necessários muitos anos para que as autoridades refletida em cifras, todavia, absurdas. Apenas lhes recordo que, em
brasileiras reconhecessem a existência e a gravidade do problema 2011, a taxa de assassinatos de mulheres no Brasil era de 3,9 para
da violência doméstica e sexual contra a mulher em sua relação cem mil habitantes e estudos de 2019 apontaram que essa mesma
com a tutela da privacidade e da intimidade. Obviamente, isso não taxa saltou para 4,7 por cem mil habitantes (com um incremento no
significa desdenhar de tudo que o movimento feminista fez no país nível de violência de 30,7%).6

14

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


E, neste momento em que se pensa na invisibilidade de um vírus tornaram mais independentes, mas a cultura patriarcal pouco
que se une –e não só simbolicamente- à invisibilidade feminina em mudou. E, na minha opinião, isto gera, em uma perspectiva
face da violência de gênero, cabe-nos uma séria reflexão. O que sociológica, muitas tensões sociais. Imaginem que em 1991 menos
significa, em termos práticos, o confinamento em casa quando se de 25% dos lares brasileiros eram chefiados por mulheres, mas um
convive com a violência de gênero no lar? Eu lhes digo, em primeiro estudo do IBGE, em 2015, apontou que o percentual de mulheres
lugar, aumento da subnotificação. E isso está acontecendo em todos chefes de família atingiu 40% e ,em 2018, já representávamos 45%!12
os países que enfrentam a atual pandemia.7 A justiça carioca, por Então, o que ocorre? Eu, mulher, tenho agora leis e instituições as
exemplo, já detectou um aumento de 50% no aumento do plantão quais posso recorrer em caso de violência; tornei-me independente
judiciário,8 quer dizer, mais mulheres buscando o plantão. Porém, e caminho com minhas próprias pernas, porque devo me submeter
não podemos ainda dizer muito sobre aumento de casos de violência a uma situação de opressão? Por qual motivo devo ficar casada com
doméstica, porque os registros, infelizmente, virão a posteriori, um homem a quem não amo mais e que me humilha? Não me sinto
quando for possível manejar dados estatísticos. Só essa informação mais identificada com Amélia. Por outro lado, devemos também
inicial já pode lhes demonstrar um pouco da complexidade do trabalhar com a hipótese de que o aumento de denúncias mantenha
momento que enfrentamos. Em todo caso, algumas instituições, relação justamente com esse processo de tomada de consciência e
como a Rede de Advogadas Feministas Coletes Rosas (Rio de Janeiro), com o maior interesse dos órgãos de pesquisa no estudo da matéria.
disponibilizaram um guia de orientação para as mulheres vítimas de Até algumas décadas, os institutos de pesquisa não se interessavam
violência doméstica,9 como também ocorrem em outros estados. pela problemática da violência de gênero, não era um tema central
na vida das pessoas.
2. O despertar para o problema da violência doméstica no Brasil
E hoje chega o coronavírus e sua invisibilidade se torna o cumplice
Considero que o caso Maria da Penha foi crucial para o que chamo ideal do machismo brasileiro. Sabemos, por diversos estudos
de “despertar da sociedade brasileira” para a realidade da violência estatísticos realizados desde os anos de 1980 (vide nota 1), que
doméstica, dentre outros motivos, porque esta triste história guarda o aumento de violência contra a mulher mantém uma correlação
um importante aspecto simbólico, de forte conotação psicológica, com a presença masculina no lar. Isto não é especulação, é dado
dificilmente percebido pelos juristas por força da sua própria científico. Por exemplo, nos finais de semana e em períodos festivos
formação profissional e desconhecimento da matéria. Quem é sempre há aumento de violência doméstica.
Maria da Penha Maia Fernandes? Uma farmacêutica bioquímica,
oriunda da classe média do Ceará e que conheceu seu ex-marido 3. Denegação, confinamento e intimidade familiar
(economista) quando ambos cursavam o mestrado na USP. Tratam- E agora vem a pergunta: O que podemos fazer para evitar mais
se de pessoas esclarecidas, cultas, inseridas no que podemos chamar mortes de mulheres e mais violência de gênero em um momento
de “elite intelectual”. Ele, inclusive, obteve sucesso profissional por de confinamento?
muitos anos, ministrava aulas em faculdades e assessorava várias
empresas. No entanto, o marido “se transformou” naquilo que Em primeiro lugar, ENTENDER finalmente que o lugar mais
todos sabemos e que corresponde ao “histórico” ciclo da violência perigoso para a tutela da integridade feminina é o lar. Sei que
doméstica: tornou-se um homem violento, que atentou duas vezes minha afirmação é assustadora e ao mesmo tempo desoladora. É
contra a vida de sua esposa e a deixou paraplégica. Ademais, ele tristíssimo dizê-lo. Porém, sem tomar consciência dessa situação,
obviamente contou, como todos sabemos, com a benevolência do não poderemos enfrentar o problema. E justamente porque os
sexista sistema de Justiça Criminal Brasileiro. efeitos dessa constatação são tão difíceis de serem “absorvidos”
pela nossa organização social, que o mecanismo de denegação
O que muitas pessoas começaram a perceber é que a violência de AINDA funciona com tanto sucesso em um país tão sexista como
gênero atingia pessoas que, pensávamos, estavam protegidas pela o nosso.
tutela da intimidade familiar! Lembrem que logo na introdução eu
lhes disse que a violência doméstica foi, por muito tempo, percebida Há pouco mais de duas décadas venho escrevendo sobre as
como uma espécie de desvio da normalidade? consequências perversas dessa denegação, que nem sequer nos
permite “repensar” a família sobre outras bases!!! Imaginem que
Pois bem, se uma mulher como Maria da Penha não estava em a final da década de 1990, na cidade de Heidelberg (Alemanha),
segurança, quem realmente está? Em minha opinião, as pessoas foi feita uma pesquisa com mulheres, composta de uma pergunta
perceberam que se tratava de um casal “normal”, da classe média. muito simples: onde você considera que pode ser vítima de violência
Não era possível aplicar as típicas desculpas machistas: mas ela sexual? A maioria respondeu “no espaço público” (ponto de ônibus,
traía o marido, usava roupas desapropriadas para uma mãe de estacionamentos subterrâneos etc.). Porém, essa resposta das
família, não cuidava da prole; ou ele era um vagabundo, um bêbado mulheres alemãs andava na contramão das pesquisas realizadas
que vivia caindo na sarjeta.10 pela própria polícia científica alemã, a qual apontava um resultado
Maria da Penha significou a quebra do mito do comportamento oposto. A realidade e o imaginário feminino não coadunavam!
agressivo “patológico”. E considero que isto, de certa forma, causou Em quase 90% dos casos, a violência sexual ocorria entre quatro
uma comoção social e uma certa tomada de consciência. Algo que paredes, no âmbito familiar.13 Percebem a gravidade do problema?
na psicologia clínica se costuma designar com o termo “insight”. Se fomos criadas acreditando que a base da sociedade é a família,
As feministas, por sua vez, souberam sabiamente explorar essa que em casa, com nossos entes queridos, é onde podemos nos
oportunidade para fortalecer a luta contra a violência com a qual a sentir plenamente protegidas de um mundo hostil, competitivo e
própria Maria da Penha se engajou. O país foi condenado na Corte violento, o que resta quando descobrimos que isso não corresponde
interamericana de direitos humanos e o caso explodiu nas mídias.11 à realidade? É no lar que compartilhamos a nossa mais profunda
E então, iniciamos um processo de descoberta do que denomino de intimidade e por isso eu lhes pergunto: como lidar com tamanha
visibilidade da invisibilidade e começamos a ouvir, ainda que pouco, contradição? Se refletirmos com seriedade sobre essa questão,
as vozes do silêncio. Todas somos ou podemos potencialmente ser podemos começar a entender a complexidade dos processos de
“Maria da Penha”. denegação.14
Um processo de mudança social complexo, como é a tomada de A intimidade é um grave problema para as mulheres em sociedades
consciência do público feminino em face da violência doméstica, machistas como a nossa. Em culturas machistas, o mais comum é
dificilmente se deve a um único fator. As mulheres brasileiras se que o homem hetero considere o espaço privado como um local de

15

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


exercício de sua dominação. Homens podem brigar e até se matar 2. Manter as casas de abrigo existentes e utilizar hotéis e outras
nas ruas, mas com as mulheres, o que fazem é agredi-las no lar; na instalações públicas disponíveis, para abrigar as vítimas, de
esfera privada. forma a evitar a aglomeração e possível contágio com o vírus.
E o que vamos fazer? Ouvir a voz do presidente que praticamente 3. Em situação de emergência, ligar para 190. O disque 180 pode
diz que devemos deixar as mulheres morrerem de corona na rua ser contatado para registro de violência, para realizar denúncia,
para não morrerem em casa? Ou deixar os agressores em casa para mas não garante atendimento imediato, como recordam as
que as mulheres sejam mortas? juristas da Rede de Advogadas Feministas Coletes Rosas.
E, de certa forma, isso também ocorre quando jovens, no despertar 4. Uso de aplicativos, como o botão do pânico. Porém, deve
da sexualidade, se dão conta que não são heterossexuais. Se estes ser empregado, em minha opinião, um modelo similar ao que
“saem do armário”, serão objeto de uma dupla discriminação: a foi desenvolvido no estado do Piauí. Porque se trata de um
familiar, expressa por seus entes mais queridos, e a que se exerce mecanismo discreto, que em geral, não chama a atenção do
na esfera pública. agressor. E, no modelo empregado no Piauí, a mulher tem duas
alternativas. Ela pode pedir socorro imediato, se perceber que a
Por isso, não só as mulheres heterossexuais correm risco, mas toda
violência é eminente, ou pode pedir ajuda relatando a situação
a comunidade LGBTQI+, porque o confinamento se dá no espaço
cotidiana de violência por ela vivenciada. Nos dois casos será
de exercício do poder patriarcal.
atendida. Hoje o celular é empregado pela maioria das pessoas.
Retomando a referência à tomada de consciência das mulheres
5. Ronda Maria da Penha em todos os estados da federação e
brasileiras em relação à violência doméstica, acho que estas se
acompanhamento controlado dos casos de violência doméstica
sentem hoje um pouco como aquele personagem (um menino) do
que já foram judicializados. Tanto a magistratura, com a
conto de Hans Christian Andersen (A roupa do rei)15 quando este
defensoria pública, como o Ministério público possuem tais
descobriu que o vaidoso Rei, que acreditava estar desfilando com
dados. O temor de muitas mulheres que trabalham com esse
uma belíssima roupa toda bordada com fios de ouro... na verdade...
tipo de atendimento é que, piorando a crise do coronavírus, a
nunca esteve vestido; estava completamente nú!!!
polícia especializada seja redirecionada para atendimentos
E isto ocorre, hoje, com muitas pessoas que, inclusive, até de outros tipos de praticas delitivas. Isso NÃO pode ocorrer.
inconscientemente começam a questionar a ideia de família e, O sistema de justiça deve ATUAR com o mesmo esforço e
obviamente, esta “tomada de consciência” também se reflete nessa empenho dos profissionais da saúde. Isto sim significa ROMPER
nova onda feminista que tomou o país em menos de uma década. com a denegação.
Consciência de quem sou e do que posso ser
6. Empatia. Colocar-se no lugar da pessoa que sofre. E aqui entra
A defesa da intimidade e da privacidade em uma sociedade liberal a comunidade. No tempo em que um vírus coloca em questão
não pode ser considerada como uma desculpa para aceitarmos nossas opções de vida, o desdém com a natureza, a indiferença
a violência praticada no lar. Temos um grave conflito de direitos para com quem sofre (com exceção de alguns representantes
fundamentais, onde evidentemente, se deve priorizar a vida. E do executivo nacional e de alguns empresários egoístas que só
isto o jurista brasileiro, que é extremamente machista, sobretudo o pensam em números), cabe-nos exercitar realmente a empatia,
penalista, não percebe. Vivemos em um mundo que ainda explora o afeto ao próximo. Todos sabemos quem é o vizinho que bate
a imagem da mulher como submissa e que aceita os gays e Drags no filho que é gay, que bate na esposa, mesmo quando não se
Queens como “enfeites de carnaval”. Nós mulheres somos usadas escutam gritos. Esta estampado no rosto, mesmo quando não
para vender cerveja, carros e alegrar, com nossos corpos, nos balés há hematomas. Mas muitas e muitos se calam. PRECISAMOS
de domingo do programa do Faustão o imaginário masculino de mudar de comportamento e aprender realmente o significado do
dominação. Finalizo com uma frase de impacto jurídico. O que se verbo amar. Em tais casos, é preferível DENUNCIAR, ligar para
luta é pelo reconhecimento das mulheres e de todas as pessoas da os telefones de emergência e pedir ajuda.
comunidade LGBTQI+ como “sujeito de direitos” e isso não coaduna
7.CONTAR IMEDIATAMENTE com o apoio das redes sociais e
com a cultura patriarcal.
com o comprometimento de TODOS os meios de comunicação
Aponto agora algumas questões práticas, de aplicação imediata, em para divulgar que NÃO se tolera a violência contra a mulher.
face do coronavírus e da violência contra a mulher:
Se as medidas de urgência não forem aplicadas, teremos que
1. Priorizar a manutenção dos serviços especializados de enfrentar, no final dessa longa quarentena, não só com as mortes
atendimento. As Delegacias de defesa da mulher, os juizados causadas pelo coronavírus, mas com um aumento massivo de dados
especializados, a defensoria pública e os núcleos de atendimento sobre a prática da violência contra a mulher, contra as crianças e
PRECISAM funcionar. E mais: sugiro que se convoque também contra as pessoas que apenas exercem seu direito fundamental à
todos os órgãos da magistratura e do MP federal e estadual para diversidade sexual.
ajudar nessa situação emergencial.

NOTAS
1
Embora verse sobre tema distinto do Boletim Especial, este artigo foi incluído Adriana de Oliveira. Constituição e Direito das mulheres. Uma análise dos
em razão da situação excepcional da pandemia do COVID-19. estereótipos de gênero na Assembleia Constituinte e suas consequências no
2
DOBASH, E.; DOBASH, R. Violence Against Wifes. A Case Against Patriarchy. texto constitucional. Juruá: Curitiba, 2015.
New York: The Free Press, 1983. 5
Em relação à comunidade LGBTQI+, vale a pena consultar os dados produzidos
3
Dentre outros estudos, Cf. EDWARDS, A. Male Violence in Feminist Theory. In: pela FGV DAPP. Cf SANCHES, Danielle; CONTARATO, Andressa; AZEVEDO,
HANMER, Jalna; Maynard, Mary (Orgs.). Women, Violence and Social Control. Ana Luísa. Dados públicos sobre violência homofóbica no Brasil: 29 anos de
Great Britain: Macmillan, 1994. pp. 13-29.; FINEMAN, Martha Albertson; combate ao preconceito. 2018. Disponível em: http://dapp.fgv.br/dados-
MYKITIUK, Roxanne (Orgs.) The Public Nature of Private Violence. The Discovery publicos-sobre-violencia-homofobica-no-brasil-29-anos-de-combate-ao-
of Domestic Abuse. New York: Routledge, 1994. preconceito/ Acesso: 07/04/2020.
4
Para uma análise lúcida sobre o papel da mulher na Constituinte e seus limites 6
Dados estatísticos podem ser consultados em: SABADELL, A. L. Manual de
em face do poder da cultura patriarcal, cf. a tese de doutorado de Adriana Vidal Sociologia Jurídica. Introdução a uma leitura externa do direito. 7. ed. São Paulo:
de Oliveira, defendida na PUC-Rio no ano de 2012 e publicada em 2015. VIDAL, Editora Thomsons & Reuters - Revista dos Tribunais, 2017, p.223-248. Apresento

16

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


dados de 2019 na nova edição do referido Manual, com previsão de publicação comprove a pratica da violência, sobretudo desacompanhada de outros dados,
para o mês de junho de 2020). Ver ainda: BIANCHINI, A. Lei Maria da Penha. que repito, só surgiram a posteriori. Disponível em: https://oglobo.globo.com/
Lei 11.340/2006: aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de sociedade/celina/damares-diz-que-denuncias-de-violencia-contra-mulher-
gênero. São Paulo: Editora Saraiva, 2018. aumentaram-9-durante-pandemia-24347077. Acesso: 08/04/2020. Como
7
Matérias são objeto da imprensa internacional (EUA, Inglaterra, Itália, cientista social, parece-me que o objetivo do presidente da República é acabar
Espanha e América Latina) e do movimento de mulheres. Cf. entre outros: com o isolamento social, uma das poucas chances que temos de enfrentar essa
https://www.nytimes.com/2020/04/06/world/coronavirus-domestic- pandemia no País. Como apontarei no final dessa análise, o que precisa ser
violence.html; https://www.theguardian.com/us-news/2020/apr/03/corona feito é reforçar os serviços de atendimento e não acabar com o isolamento.
virus-quarantine-abuse-domestic-violence; https://www.bbc.com/news/ 10
Pouco a pouco, outras mulheres (de maior visibilidade social) começaram a
world-52063755; https://www.ilcapoluogo.it/2020/03/31/coronavirus-e-vio denunciar seus algozes, como foi o caso da ex-modelo e empresária Luiza
lenze-domestiche-quando-la-casa-non-e-un-posto-sicuro/; Brunet.
http s ://www.nue vatribuna.e s/ar ticulo/ac tualidad/c oronav irus- 11
Há outros fatores que contribuíram para o inicio dessa ruptura do pacto do
confinamiento-violenciamachista-violenciagenero-victimas- silêncio, como a massiva presença feminina na esfera pública. Estes são
pandemia/20200330100020172814.html; https://www.dw.com/es/am%C3% apresentados na bibliografia indicada na nota de rodapé 1.
A9rica-latina-lucha-contra-la-violencia-de-g%C3%A9nero-en-tiempos-del- 12
IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional por Amostra
coronavirus/a-52971832. de Domicílios Contínua: rendimento de todas as fontes: 2018; Disponível em:
Particularmente interessante é a nota emitida pelo CLADEM (comunicado núm.1- https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhe
Covid-19), que pode ser consultado em: https://cladem.org/pronunciamientos/ s&id=2101673. Acesso em 08/04/2020. Para uma análise mais detalhada de
los-estados-y-las-deudas-pendientes-con-los-derechos-de-las-mujeres- tais dados, remeto à nota de rodapé número 1
en-el-marco-de-la-pandemia-covid-19/. Igualmente, o Guía para proteger 13
SABADELL, A. L. O conceito ampliado da segurança pública e a segurança das
los derechos de mujeres y niñas durante la pandemia de COVID-19, disponível mulheres no debate alemão. In: LEAL, César Barros; PIEDADE Jr. Heitor (Orgs.).
em: https://www.womenslinkworldwide.org/files/3112/guia-para-proteger- A violência multifacetada. Estudos sobre a violência e a segurança pública. Belo
los-derechos-de-mujeres-y-ninas-durante-la-pandemia-de-covid-19. Horizonte: Del Rey, 2003. pp. 1-28.
pdf?utm_source=guiapdf&utm_medium=mail&utm_campaign=outreach- 14
Em relação aos argumentos sobre a denegação e a problemática da tutela da
guia-covid19&utm_content=spanish. Acesso: 16/04/2020. Ressaltamos que intimidade, ver: SABADELL, A. L. Perspectivas jussociológicas da violência
indicamos aqui as primeiras manifestações emitidas entre os meses de março doméstica: efetiva tutela de direitos fundamentais e/ou repressão penal. Revista
e abril de 2020. dos Tribunais, v. 840, out. 2005, pp. 429-456.
8
Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/violencia-domesti 15
Um rei muito vaidoso é vítima de dois oportunistas que dizem fazer uma roupa
ca-cresce-50-no-rj-com-isolamento-contra-coronavirus/. Acesso: 08/04/2020 muito especial, que só pessoas honestas, boas, corretas, com muitas qualidades
9
Disponível em: https://docs.google.com/document/d/1h6TF7lV6ni6cw0 morais são capazes de enxergar. Os assistentes do Rei, quando instados a falar
BRlg94g8kw_BoTc0JFH9zAW9c9Uk/mobilebasic. Acesso: 08/04/2020. sobre a roupa, com medo de serem considerados desonestos, diziam ao rei que
Observo que a fala recente da Ministra Damares sobre aumento de 9% era maravilhosa. Até que um dia o rei sai em desfile pelo reino e um menino
no volume de denúncias recebidas pelo telefone 180 em relação ao mesmo grita: “O rei está nú!
período do ano passado não pode ser usada ainda como dado estatístico que

Autora convidada

JUIZ DAS GARANTIAS: A ONDA


DEMOCRÁTICA EM MEIO À MARÉ
DO PUNITIVISMO RASTEIRO
JUDGE OF GUARANTEES: THE DEMOCRATIC WAVE OF PUNISHMENT TIDE

Lívia Yuen Ngan Moscatelli Raul Abramo Ariano


Mestranda em Processo Penal pela USP. Pós-graduada em Direito Penal Pós-graduando em Direito Penal Econômico pela FGV. Pós-graduado em
pela Universidade de Coimbra. Bacharela em Direito pela USP. Advogada Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra. Bacharel em
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6163-841X Direito pela USP. Advogado.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7733-2869
liviamoscatelli@gmail.com
raul.a.ariano@gmail.com

RESUMO ABSTRACT
O artigo aborda a figura do Juiz das Garantias, inserido ao ordenamento The article approaches the figure of the Judge of Guarantees, inserted to the
brasileiro pela Lei Federal 13.964/19, discorrendo sobre os diversos aspectos Brazilian legal order by the Federal Law 13.964 / 19, discussing about the
atinentes ao tema, dentre os quais as especificidades e pertinência da several aspects related to the theme, among which, the specificities and
figura introduzida. Assim, empreendeu-se uma leitura do instituto sob a pertinence of the introduced figure. Thus, the institute was valued from the
ótica da teoria da dissonância cognitiva, argumento sensível à análise da perspective of the theory of cognitive dissonance, an argument sensitive to
imparcialidade subjetiva do magistrado. the analysis of the subjective impartiality of the judge.
Palavras chave: Juiz das Garantias, Lei Federal 13.964/19, imparcialidade, teoria da Keywords: Judge of Guarantees, Federal Law 13.964/19, impartiality, theory of cognitive
dissonância cognitiva. dissonance.

17

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


Inúmeras polêmicas tomaram conta do debate público após são coadjuvantes e complementares à atuação do magistrado. O
a introdução do “Juiz das Garantias”, figura que foi inserida ao Juiz das Garantias, por sua vez, é figura que se aproxima mais do
ordenamento brasileiro pela Lei Federal 13.964/19, resultante do sistema italiano (giudice per le indagini preliminare – fase preliminar7),
polêmico “Pacote Anticrime”, inicialmente apresentado pelo atual na qual o juiz não determina os rumos da investigação, mas atua
ministro da Justiça e Segurança Pública e largamente alterado no quando instado, sendo responsável pela salvaguarda dos direitos
congresso nacional após críticas. Ainda que o pânico tenha se do investigado e principalmente pela análise da legalidade dos atos
instaurado diante da temática, já sendo inclusive objeto das ADIs incursionadores em esfera dos particulares. Neste mesmo contexto,
6.298 e 6.300 e de nota de repúdio elaborada pela Associação as reformas processuais penais latino-americanas já ocorridas
dos Magistrados Brasileiros (AMB),1 não é de hoje que o assunto é em países como Chile, Paraguai, Colômbia e Argentina tiveram
discutido no Brasil. papel determinante na estruturação de uma jurisdição criminal
mais democrática, incluindo, dentre as modificações propostas
O movimento se iniciou cerca de 10 (dez) anos atrás, com o
a implantação do Juiz das Garantias, na tentativa de superar os
Anteprojeto de Lei que visou à reforma do Código de Processo
problemas característicos do modelo de processo penal inquisitivo.8
Penal e que abrangeu, dentre as suas disposições, a aplicação
do Juízo das Garantias. Posteriormente, a proposta resultou no Um julgador que acompanhou toda a investigação criminal, por
Projeto de Lei 156/2009 do Senado Federal, distribuído na Câmara sua vez, naturalmente tenderá a assumir um posicionamento mais
dos Deputados sob o número 8.045/2010. Diante de uma opção orientado às teses acusatórias, sendo que tal explicação não está
legislativa, que priorizou análise dos Códigos de Processo Civil e sequer adstrita ao plano racional do julgador. A psicologia pode
Comercial, a temática constante no projeto de index processual explicar que uma primeira impressão negativa sobre determinada
penal permaneceu relegada ao esquecimento por considerável situação, como, por via exemplificativa, a conversão de uma prisão
tempo. em flagrante em preventiva, pode vincular o comportamento do
magistrado por prazo indeterminado. Ele subjetivamente tenderá
Ainda que bem questionáveis as inovações trazidas pela Lei
a aderir à imagem de culpabilidade já construída e, possivelmente,
Federal 13.964/19, é certo que ela disciplinou os novos artigos
buscará confirmá-la durante a audiência de instrução.9
3-A a 3-F do Código de Processo Penal, os quais introduziram ao
ordenamento brasileiro a figura do magistrado “responsável pelo Ao momento, impossível não mencionar o fenômeno que busca
controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos explicar padrões comportamentais humanos de nome Teoria da
direitos individuais”. E que muito embora a figura tenha ocasionado Dissonância Cognitiva, ou “incoerência cognitiva”, que foi concebida
considerável estardalhaço midiático, ela não deveria gerar temores pelo psicólogo Leon Festinger em 1957. Dispõe a tese que a psique
a ninguém, ao menos aqueles que se importam com algum espírito humana almeja convalidar decisões anteriormente tomadas,
democrático.2 buscando com isso dotar de coerência os fatos pretéritos, existentes
e os porvindouros. Ou seja, uma vez adotado determinado juízo,
Em breves linhas gerais, a figura do Juiz das Garantias se entende
o ser humano tende a tomar as subsequentes decisões correlatas
pela designação de um magistrado dotado de competência para
em forma harmônica à anterior ou, ainda, desprezar as informações
a atuação exclusiva em fase pré-processual, diverso do togado
que colidem ao entendimento posto. Via consequente, opções
responsável pelo processo e o julgamento do feito. Caberá a
desarmônicas são geradoras de incômodo no indivíduo, que busca
esse juiz de fase embrionária decidir acerca da pertinência de
por reestabelecer a ordem abalada.
medidas cautelares investigativas, como determinação de buscas
e apreensões e interceptações telemáticas - a homologação ou Um exemplo cotidiano e não relacionado ao direito é o caso do
não da prisão em flagrante delito, eventual conversão em prisão fumante habitual. Em geral, as pessoas tendem a almejar uma
temporária ou preventiva, averiguação de excessos da autoridade vida saudável. A partir do conhecimento que essa prática ocasiona
policial, decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, entre malefícios irremediáveis à saúde, há um choque antagônico de
outras funções estabelecidas pelo novo artigo 3-B do CPP. Cumpre crenças, criando-se uma necessidade involuntária e automática
observar que, diante de tal sistemática, as funções de investigação para reduzir-se essa pressão: O fumante poderá́ considerar que o
e controle continuam sendo exercidas, respectivamente, pela comportamento vale a pena em um sistema de riscos e recompensas
autoridade policial e pelo órgão ministerial, competindo ao juiz a e minimizar as desvantagens pessoais, criando desculpas para
atuação acerca do controle da legalidade dos atos investigatórios e continuar fumando, à exemplo de que “pouco cigarros por dia não
aferição do respeito às garantias do investigado. fazem mal”, ou que “todos nós iremos morrer algum dia”. Isso reduziria
a dissonância e justificaria a continuidade do seu comportamento,
Objetiva-se, com isso, uma otimização jurisdicional das funções
pois o hábito seria coerente com as suas ideias sobre o tabaco, ainda
particulares dessa fase procedimental, bem como garantir o maior
que tenha ciência dos malefícios à saúde (informação dissonante).
distanciamento subjetivo do juiz instrutor do contato com elementos
Trata-se, dessa forma, da harmonização entre a cognição e a ação
materiais presentes em fase investigativa. Assim, na prática, a adoção
por meio da mudança desta última, resultando na eliminação do
da mencionada estratégia representa uma superação da regra de
estado de dissonância anterior.10
prevenção da competência, que é encampada atualmente pelo
artigo 83 do CPP,3 por uma perspectiva sistemática mais adequada Para o campo do processo penal, a aplicação da teoria da
ao princípio máximo da imparcialidade do julgador, considerada dissonância cognitiva tem seu direto reflexo nas questões que
como essencial à concepção de justiça, pressuposto basilar da circundam a imparcialidade intelectiva. O magistrado, no momento
atividade jurisdicional4 e imprescindível para a configuração de um da formação de sua decisão, precisará lidar com duas opiniões
estado democrático de direito. Isso tudo, ainda que a temática tenha externas antagônicas - tese de acusação e a antítese da defesa -,
constantemente se restringido apenas à discussão das hipóteses além de ligar com suas preconcepções e impressões sobre o caso
de suspeição e impedimento do magistrado (artigos 252 e 254 do em questão.11 Como consequência da desarmonia criada e com o
CPP).5 agravamento da tensão psíquica, criam-se dois efeitos distintos.
Precisamente nesse ponto, muitas vezes por mero desconhecimento No primeiro, o chamado efeito inércia ou perseverança12 estudado
técnico, os veículos de informação têm tratado o juiz de instrução e de por Bernd Schünemann, as informações que confirmam uma
garantias como sinônimos,6 sendo que essas figuras não deveriam hipótese que fora considerada correta serão sistematicamente
se confundir. O juiz de instrução, encontrado em sistemas jurídicos superestimadas, enquanto as contrarias poderão ser sistematicamente
de países como Espanha e França, possui a precípua característica desvalorizadas. No segundo, opera-se o princípio da busca seletiva
de concentrar as atividades investigativas nas mãos do togado, a de informações, em que se procurará, predominantemente,
quem compete a colheita dos elementos informativos, além da informações que confirmem a primeira hipótese aceita, sejam elas
coordenação das atividades do Ministério Público e da Polícia, que informações dissonantes ou consoantes.13 Assim, por simplória

18

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


redução, tem-se que ao se tomar determinada decisão, baseando- tenha como finalidade uma acertada reconstrução dos fatos; (ii) a
se em certos elementos, o julgador tenderá à (i) ignorar novos adequada interpretação das regras jurídicas, em especial quanto às
elementos que colidem com o entendimento anterior; (ii) buscar atividades de hermenêutica e aplicação da lei penal; e por fim, (iii) o
com distinta vontade elementos que convalidem a decisão anterior; emprego de um procedimento válido, com o respeito às garantias,
ou, ainda, (iii) dar maior peso aqueles elementos já existentes no aos direitos e ao devido processo legal.
sentido do credo inicial.
Todas essas condições decorrem de um mesmo denominador, o juiz
Precisamente aqui a figura do Juiz das Garantias é relevante da causa, que é investido pela coletividade com a função de dirimir
mecanismo de mitigar esse efeito de enviesamento inconsciente controvérsias e decidir acusações criminais com base no direito.
do julgador que atua em fase pré-processual. Diante de um novo Como resultado, um magistrado com uma pré-disposição cognitiva
magistrado, agora atuante apenas na fase judicial, existirá maior – seja a favor ou contra o réu – tenderá a não realizar um correto
probabilidade de que alguns erros judiciais cometidos sejam juízo dos fatos, consequentemente deixando de aplicar o direito
reconhecidos, já que ele não estará vinculado a atos que praticou acertadamente, e, ainda, cerceará as garantias processuais aplicadas
anteriormente e poderá, por exemplo, orientar a reavaliação de ao processo. De nada valeria o desenvolvimento do processo se o
determinada medida cautelar decretada durante as investigações resultado do jogo já estiver definido. E, de fato, “A imparcialidade
que estiver desprovida de fundamentação suficiente. Além disso, ele judicial é uma garantia tão essencial a função jurisdicional que
terá mais chances de se dedicar exclusivamente à efetiva verificação condiciona a sua própria existência: Sem juiz imparcial, não há
da legalidade e da confirmação dos elementos probatórios propriamente processo judicial”. 17
constantes no processo. Com isso, almeja-se evitar uma mera
condução de atos criados para corroborar a tese acusatória já pré- Corriqueira crítica à implantação da figura do Juiz das Garantias18
concebida. O magistrado será, em outras palavras, dotado de maior é a suposta falta de estrutura e recursos financeiros do Estado,
potencial de imparcialidade, visando garantir superior viabilidade do que podem inviabilizar a implementação de tal medida. Trata-se,
exercício de um efetivo direito à defesa nesta fase processual. inclusive, do mesmo tipo de argumentação comumente utilizada
para justificar a superlotação dos presídios e até mesmo daqueles
Some-se a isso que, de acordo com o novo texto da Lei, os elementos que se opuseram a efetivação do projeto das audiências de custódia.
coletados durante a investigação criminal permanecerão apartados, É fato que ampla gama de previsões legais muitas vezes não são
acautelados com o Juiz das Garantias e com acesso às partes (artigo efetivamente implementadas. Basta verificar que em diversas
3-B, § 3º do CPP), priorizando a prova produzida em contraditório comarcas no Brasil, sequer há a presença da Defensoria Pública,
judicial e evitando que o magistrado responsável pela condução da legalmente garantida aos cidadãos (Lei Complementar 80/94).
instrução tenha contato com a “primeira impressão” negativa do
réu, resultado da investigação criminal documentada e produzida Essas dificuldades, no entanto, não devem ditar o “dever ser” do
unilateralmente.14 planejamento de uma legislação mais aperfeiçoada, compatível com
os princípios democráticos e alinhada ao sistema acusatório. Dito
Não se perca de vista, que a separação das figuras do julgador em outras palavras: política processual não se pode fazer “nivelando
atuante em fases distintas está em plena conformidade com a por baixo”.
atual tendência de um processo penal que bebe nas fontes da
epistemologia, preocupada em trabalhar com a correspondência Em tempos sombrios, em que o retrocesso prossegue, comemorar
entre os elementos probatórios constantes no processo e o possível as pequenas vitórias pode ser considerado um “avanço democrático
conceito de verdade, até mesmo por ser essa uma condição e civilizatório”. 19 Não se perca de vista, no entanto, que o Juiz das
necessária para a justiça da decisão, ainda que não se trate do único Garantias, embora considerado um progresso significativo, não é
fim que o processo persegue.15 Como bem preconizou Michele a salvaguarda para todas as mazelas do processo penal. Enquanto
Taruffo e complementou Gustavo Badaró, para que uma decisão a mentalidade punitivista rasteira permanecer na cultura dos
seja guiada pelo critério de justiça, ela deverá estar condicionada aplicadores do direito, não haverá uma ruptura significativa com a
por um trinômio,16 que consiste em: (i) um correto juízo do fato, que tradição inquisitória.

NOTAS
1
GIL, Renata. Nota Pública – Juiz de Garantias. AMB, Brasília, 27 dez. 2019. 10
RITTER, Ruiz. Imparcialidade no Processo Penal. Reflexões a partir da Teoria
Disponível em: <https://bit.ly/2T1gQ4y>. Acesso em: 05 jan. 2020. da Dissonância Cognitiva. 2016. 197 p. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de
2
TAFARELLO, R. F. Juiz das garantias: um notável (e atrasado) avanço Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUCRS, Porto
democrático para o Brasil. Estadão, São Paulo, Disponível em: https://bit. Alegre, 2016. p. 93.
ly/2ZQT2BS. Acesso em: 05 jan. 2020. 11
LOPES JÚNIOR, Aury; RITTER, Ruiz. A imprescindibilidade do juiz das garantias
3
CPP: Art. 83. Verificar-se-á a competência por prevenção toda vez que, para uma jurisdição penal imparcial: reflexões a partir da teoria da dissonância
concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cognitiva. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, v.
cumulativa, um deles tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do 13, n. 73, p. 12-25., ago./set. 2016. p. 18.
processo ou de medida a este relativa, ainda que anterior ao oferecimento da 12
SCHÜNEMANN, Bernd., op. cit., p. 208.
denúncia ou da queixa (arts. 70, § 3º, 71, 72, § 2º, e 78, II, c). 13
SCHÜNEMANN, Bernd., op. cit., p. 93.
4
MONTERO AROCA, Juan. et al. Derecho jurisdiccional III: proceso penal. 10. ed. 14
RITTER, Ruiz., op. cit., p. 153.
Valencia: Tirant lo Blanch, 2001. p. 29. 15
TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. trad.
5
POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. A imparcialidade do juiz criminal Vitor de Paula Ramos. São Paulo, Marcial Pons, 2012. p. 160.
enquanto ausência de causas de impedimento ou de suspeição. Revista Direito 16
TARUFFO, Michele. Idee per uma teoria dela decisione giusta. Rivista trimestrale
e Justiça, Porto Alegre, v. 39, n. 1, jan./jun. 2013. di diritto e procedura civile, v. 51, n. 2, p. 315-328, 1997. apud BADARÓ, Gustavo.
6
PEREIRA, Merval. Juiz das garantias. O Globo, Rio de Janeiro, 14 jun. 2019. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thompson Reuters Brasil,
Disponível em: <https://glo.bo/2SVqo0Y>. Acesso em: 02 jan. 2020. 2019. p. 19.
7
GIACOMOLLI, Nereu José. A fase preliminar do processo penal: crises, misérias 17
CORDÓN MORENO, Faustino. Las garantias constitucionales del proceso penal.
e novas metodologias investigatórias. Rio de janeiro: Lumes Juris, 2011. p. 68. 2. ed. Navarra: Arazandi, SA, 2002. p. 109.
8
MAYA, André Machado. O Juizado de garantias como fatos determinante à 18
Vide, por exemplo, a ADI n. 6298, proposta pela AMB e Ajufe: “Haverá aumento
estruturação democrática da jurisdição criminal: O Contributo das Reformas de gastos com a solução final - criação de cargos - e aumento de gastos desde
Processuais Penais Latino-Americanas à Reforma Processual Penal Brasileira. logo, com descolamentos de juízes, sem que tivesse havido previsão orçamentária,
Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 23, n. 1, p. 78, jan./abr. 2018. e, portanto, com ofensa ao art. 169 da CF”.
9
SCHÜNERMANN, Bernd; GRECO, Luís. Estudos de direito penal, direito 19
MACEDO, Fausto. A desconstrução do pacote Moro. Estadão, São Paulo, 7 dez.
processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 205-221. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/2SW1Bde>. Acesso em: 05 jan. 2020.

Recebido em: 06/01/2020 - Aprovado em: 13/02/2020 - Versão final: 31/03/2020

19

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


LEI ANTICRIME E REINCIDÊNCIA:
UM FLERTE COM O DIREITO
PENAL DO AUTOR
ANTI-CRIME STATUTE LAW AND RECIDIVISM:
NA APPROACH TO THE CRIMINAL LAW OF THE AGENT

Thiago Baldani Gomes De Filippo


Doutorando em Direito Penal pela USP e mestre em Direito Comparado pela Samford University (EUA) e em Ciências Criminais
pela UENP. Professor de Direito Penal e Processo Penal na Universidade Anhembi Morumbi Juiz de Direito do TJ-SP.
tfilippo@tjsp.jus.br
http://lattes.cnpq.br/2591167984942175
ORCID 0000-0001-8793-4735.

RESUMO ABSTRACT
O artigo discorre sobre o tratamento conferido pela recém-aprovada “Lei This paperwork discourses about given by the just ratified “Anti-crime Statute
Anticrime” à reincidência, a partir da análise de três pontos: a inserção do Law” to recidivism, starting from three points: the insertion of the paragraph
parágrafo 2o ao artigo 310 do Código de Processo Penal; a modificação no 2nd to the Article 310 of the Criminal Procedural Code; the modification to the
artigo 112 da Lei 7.210/1984; e no artigo 20 da Lei 10.826/2003. Conclui-se que Article 112 of the Statute Law 7.210/1984; and on the Article 20 of the Statute
todos eles conferem papel de destaque à reincidência, aproximando o Direito Law 10.826/2003. It concludes that the three points confer a highlighted role
Penal brasileiro do indesejável Direito Penal do Autor. to recidivism, approaching the brazilian Criminal Law to the undesirable
Palavras chave: Lei Anticrime; reincidência; Direito Penal do Autor. Criminal Law of the Agent.
Keywords: Anti-crime Statute Law; recidivism; Criminal Law of the Agent.

Dentre a enxurrada de leis penais e processuais penais das preventivas especiais negativas da pena e, reflexamente, implica
últimas décadas, sem dúvida alguma, a Lei 13.964/2019 é das mais afronta a modernas teorias de prevenção geral positiva da
importantes, por promover modificações estruturais no Código pena, como a elaborada por Winfried Hassemer, que limita a
Penal, no Código de Processo Penal e em diversas leis especiais consecução das finalidades preventivas à verificação de reações
importantíssimas, tais como a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984), proporcionais ao fato ilícito e à culpabilidade do autor.3 Com isso,
a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), o Estatuto do as elementares objetivas, que conduzem à aferição da gravidade do
Desarmamento (Lei 10.826/2003) e a Lei de Organização Criminosa fato, abandonam o seu desejável protagonismo na cominação e na
(Lei 12.850/2013), dentre outras. Apesar de ser conhecida como “Lei fixação das sanções penais, que passam a ser estabelecidas a partir
Anticrime”, paradoxalmente também introduziu importantes regras de reclames exclusivamente preventivos, quer seja pela punição de
de garantias de direitos de supostos autores de infrações penais, modos de vida, quer seja pelo incremento substancial da pena a
com destaque à inauguração no ordenamento jurídico brasileiro da partir de circunstâncias pessoais do sujeito, como a reincidência,
figura do “Juiz das Garantias”. 1 os antecedentes, a personalidade do agente ou sua suposta
habitualidade criminosa.
Diante de tantas modificações relevantes, o presente trabalho
discorrerá acerca do destaque conferido pela lei à figura da A punição de alguns modos ou estilos de vida é possibilitada
reincidência. Na verdade, esse realce ao passado criminoso do pela existência de crimes de status, como a criminalização de
agente se insere em um contexto maior de cortejo com o Direito todo viciado em drogas pelo art. 11.721 do Código de Saúde e
Penal do Autor, caracterizado por balizar a cominação de penas, Segurança da Califórnia,4 a punição da sodomia pelo art. 21.06(a)(b)
pelo legislador, e sua fixação, pelo juiz, a partir da preponderância do Código Penal texano,5 e as contravenções penais de vadiagem
de condições pessoais do agente, e não de circunstâncias objetivas e mendicância, previstas pelos artigos 59 e 60 do Decreto-lei
do fato. Em poucas palavras, possibilita-se a punição do agente por 3.688/1941, observando-se a revogação da segunda contravenção
quem ele é, e não tanto pelo que ele fez. pela Lei 11.983/2009. Os próprios delitos de organização criminosa
(art. 1o, § 1o, da Lei 12.850/2013), de associação criminosa (art.
Por essência, as regras de Direito Penal do Autor não se
288 do CP) e de constituição de milícia privada (art. 288-A do
harmonizam ao modelo democrático constitucional de Estado e
CP) apresentam o risco de ensejar a punição de pessoas por seu
compõem medidas afetas ao discurso da segurança cidadã, que
estilo de vida, porque nenhum desses tipos penais esmiúça as
etiqueta determinados sujeitos como inimigos sociais, reputados
condutas típicas, deixando de aclarar modalidades de contribuições
por fontes de perigo ambulantes contra os supostos cidadãos de
minimamente relevantes para a intervenção penal.
bem.2 Referida política criminal, devido ao seu escopo inocuizador
de indivíduos socialmente indesejados, enaltece meras funções Por outro lado, no que tange ao incremento substancial da pena

20

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


a partir de condições pessoais do agente, pode ser recordada a à progressão de regime de pena. Anteriormente à Lei 13.964/2019,
sintomática regra do three strikes you´re out do Direito Penal dos o art. 112 da LEP contentava-se com a verificação conjugada da
Estados Unidos, segundo a qual todo aquele que, ostentando duas transposição de 1/6 da pena no regime anterior e do mérito do
condenações criminais, praticar a terceira infração, mesmo que esta sentenciado. A exceção ficava por conta do parágrafo 2o do art. 2o
não seja grave,6 deve receber penas muito prolongadas, ou mesmo da Lei 8.072/90, também revogado pela nova lei, que impunha que
a prisão perpétua.7 No Brasil, situação paralela é observada na a progressão de regime para crimes hediondos e assemelhados
condenação por tráfico de drogas de réus reincidentes ou portadores ocorresse apenas mediante o cumprimento de 2/5, se o apenado
de maus antecedentes. Nesses casos, uma única condenação fosse primário, e de 3/5 se reincidente.
criminal anterior, qualquer que seja ela, possui o condão de elevar
Agora, os períodos, acompanhados de atestado de “boa conduta
a pena em 3 anos e 4 meses, se considerada a diferença entre a
carcerária”, são estabelecidos em porcentagens, e não mais frações e
menor pena possível para o caso de tráfico privilegiado, que exige
variarão de acordo com a reincidência do sujeito. O grande problema
a primariedade, nos termos do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006,
de pautar a progressão com base no histórico criminal do sujeito é a
e a menor pena possível para a modalidade do caput do mesmo
potencial lesão à individualização da pena, princípio veiculado pelo
tipo penal. Esse acréscimo substancial causado por uma única
art. 5o, XLVI, da Constituição, porque, na fase da execução penal,
anotação criminal é muito superior ao acréscimo de 1/6, parâmetro
o ideal ressocializador (finalidade preventiva especial positiva da
normalmente utilizado pela jurisprudência na primeira ou na segunda
pena) deve preponderar sobre a finalidade meramente retributiva,
etapas da dosimetria penal, conforme se trate de mau antecedente
como, aliás, textualmente estabelece o art. 1o da LEP: “A execução
ou reincidência.8
penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão
Simpática à utilização da reincidência como causa potencializadora criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social
de reproches penais, a Lei 13.964/2019 conferiu-lhe importância do condenado e do internado”. Nesse sentido, aliás, leciona Claus
central em diversas oportunidades, com destaques para três pontos: Roxin, ao tratar de sua teoria unificadora preventiva dialética, que, no
a alteração do art. 310 do CPP, com a previsão de seu parágrafo 2º (“Se momento da fixação concreta da pena, o juiz deve observar o limite
o juiz verificar que o agente é reincidente ou que integra organização da culpabilidade, mas a execução deve guiar-se, principalmente,
criminosa ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito, deverá por necessidades preventivo-especiais.10 Em outras palavras,
denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares”); a se a fase de execução da pena deve objetivar a ressocialização
modificação do art. 112 da LEP para que a reincidência influencie na do sentenciado, essa finalidade se esvazia se o legislador buscar
progressão de regimes de cumprimento de pena, o que se observa elastecer o tempo de sua segregação a partir de fatos criminosos
em seus incisos II, IV, VII e VIII (“II – 20% (vinte por cento) da pena, se do passado, que muitas vezes sequer guardam relação direta com
o apenado for reincidente em crime cometido sem violência à pessoa a conduta criminosa efetivamente praticada e razão pela qual se
ou grave ameaça”; “IV – 30% (trinta por cento) da pena, se o apenado cumpre a pena.
for reincidente em crime cometido com violência à pessoa ou grave
Finalmente, a terceira questão sobre a reincidência refere-se à
ameaça;” “VII – 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado por
especial previsão do art. 20, II, do Estatuto do Desarmamento.
reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado”; “VII – 70%
O dispositivo estabelece o aumento da pena pela metade para
(setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime
os crimes de porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (art. 14),
hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento
disparo de arma de fogo (art. 15), posse ou porte ilegal de arma
condicional”); e, por fim, a previsão inédita da reincidência como
de fogo de uso restrito (art. 16), comércio ilegal de arma de fogo
causa especial de aumento de pena, nos termos do art. 20, II, do
(art. 17) e tráfico internacional de arma de fogo (art. 18) se o agente
Estatuto do Desarmamento (“Art. 20. Nos crimes previstos nos arts.
for “reincidente específico em crimes dessa natureza”. O dispositivo
14, 15, 16, 17 e 18, a pena é aumentada da metade se: (...) II – o agente for
fere o princípio constitucional da isonomia, porque se trata de
reincidente específico em crimes dessa natureza”).
discriminação fortuita e injustificada.11 Com efeito, a reincidência
A primeira hipótese, contemplada pelo art. 310, § 2º, do CPP, sugere é circunstância agravante genérica, prevista no art. 61, I, do CP,
ser a reincidência óbice instransponível para a concessão de podendo ser considerada na segunda etapa da dosimetria penal,
liberdade provisória, tratando-se de hipótese vinculada de conversão na fixação da pena provisória, nos termos do art. 68 do CP. Não há
do flagrante em prisão preventiva. Por isso, não há outro caminho razão alguma para que o legislador desvirtue essa natureza para um
que não se reconhecer a inconstitucionalidade desse dispositivo, à feixe de crimes que resolve eleger, passando a categorizá-la como
luz do princípio do ne bis in idem, verdadeiro direito fundamental causa especial de aumento de pena pela metade, com um aparente
individual implícito,9 a teor do art. 5º, § 2º, da Constituição. Vale dizer, resgate da diferença entre reincidência genérica e reincidência
o sujeito estará preso somente porque sofreu outra condenação específica, que constava da redação original do Código Penal de
definitiva com pena extinta há menos de 5 anos (art. 64, I, do CP) 1940, com respostas mais drásticas para esta última modalidade,
e não porque sua liberdade apresenta risco à ordem pública, à consistentes na necessidade de fixação da pena acima do termo
ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para médio e no dever de escolha sempre da sanção mais gravosa, em
assegurar a aplicação da lei penal, pressupostos autorizadores das se tratando de cominação alternativa, como estabelecia o art. 46, §
prisões preventivas, elencados no art. 312 do CPP. E, por fim, essa 2o, revogado pela Reforma de 1984. Entretanto, não há motivos para
regra do art. 310, § 2º choca-se contra o disposto no art. 313, II, do essa discriminação ad hoc do legislador, que atrita com o princípio
mesmo código, que admite a possibilidade de decretação de prisão da igualdade.
preventiva em se tratando de sujeito reincidente em crime doloso.
Em suma, são esses os três pontos da “Lei Anticrime” que conferem
Ora, como se admitir a reincidência em crime doloso como um dos
tratamento muito mais gravoso à reincidência do que a sistemática
pressupostos mínimos para a decretação da prisão preventiva, de um
penal anterio r, que lhe reservava um papel mais periférico na
lado, e compreender que todos os flagrantes de presos reincidentes,
cominação, na fixação e na execução de sanções penais. As
sem distinguir a lei se a condenação anterior se refere a dolo ou culpa,
mudanças, como visto, evidenciam uma nefasta aproximação das
devam ser necessariamente mantidos custodiados? Portanto, não
normas penais e processuais penais com o Direito Penal do Autor,
se vê outro caminho que não se reconhecer a inconstitucionalidade
situação que não encontra arrimo na ordem constitucional brasileira,
dessa regra legal.
consoante a ideia de Estado Democrático de Direito, calcada no
O segundo caso redunda na constatação de que a reincidência postulado da dignidade da pessoa humana.
passou a ser fundamental para a aferição dos lapsos necessários

21

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


NOTAS
1
Os preceitos relativos ao “Juiz das Garantias” (arts. 3o-A, 3o-B, 3o-C, 3o-D e 3o- do Judiciário californiano de Gary Ewing e Leandro Andrade que, por conta
F, do CPP) e outras regras processuais referentes à necessidade de alteração de seus históricos criminais, foram impostas a eles penas de prisão perpétua,
do juiz sentenciante, que conheceu de prova declarada inadmissível (art. 157, com cumprimento obrigatório mínimo de 25 anos de prisão, por terem
§ 5o, do CPP), da alteração do procedimento de arquivamento do inquérito furtado, respectivamente, tacos de beisebol e fitas de videocassete. Ambas as
policial (art. 28, caput, do CPP) e da liberação da prisão pela não realização da condenações foram mantidas em julgamento conjunto pela Suprema Corte no
audiência de custódia no prazo de 24 horas (art. 310, § 4o, do CPP) tiveram sua ano de 2003 (Ewing vs. California, 538 U.S. 11, 2003 e Lockyer vs. Andrade, 538
eficácia suspensa sine die, por meio de concessão de liminar pelo Min. Luiz Fux, U.S. 63, 2003).
no bojo da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.299-DF, 7
CASTIÑEIRA, Maria Teresa; RAGUÉS, Ramón. Three strikes: el principio de
em 22.01.2020. proporcionalidad en la jurisprudencia del Tribunal Supremo de los Estados
2
No mesmo sentido, EL HIRECHE, Gamil Föppel e FIGUEIREDO, Rudá Santos. Unidos. Revista de Derecho Penal y Criminologia, Madrid, n. 14, pp. 58-85, 2004.
Crítica às tipificações relativas ao tratamento do “crime organizado” no projeto p. 61.
de código penal e na lei 12.850/2003. In: BADARÓ, Gustavo Henrique. Doutrinas 8
BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 7. ed.
essenciais: direito penal e processo penal. Vol. VI. São Paulo: Revista dos Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, pp. 182-190.
Tribunais, pp. 427-474, 2015. p. 439. 9
SABOYA, Keity. Ne bis in idem: história, teoria e perspectiva. Rio de Janeiro:
3
HASSEMER, Winfried. ¿Por qué castigar? Razones por las que merece la pena Lumen Juris, 2014, p. 153.
la pena. Trad. Manuel Cancio Meliá e Francisco Muñoz Conde. Valencia: Tirant 10
ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña,
lo blanch, 2016. p. 97. Miguel Díaz y Garcia Conlledo, Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997,
4
Declarado inconstitucional pela Suprema Corte dos EUA, em Robinson vs. p. 104.
California, 370 U.S. 660, 1992. 11
O princípio da isonomia é fundamental a qualquer sistema de justiça, evitando-
5
Declarado inconstitucional pela Suprema Corte dos EUA, em Lawrence v. Texas, se quaisquer discriminações injustificadas. Nesse sentido: ROTHENBURG,
539 U.S. 558, 2003. Walter Claudius. Igualdade material e discriminação positiva: o princípio da
6
Dentre diversos casos emblemáticos, podem ser lembradas as condenações isonomia. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 13, n. 2, pp. 77-92, 2008. p. 87.

BIBLIOGRAFIA
BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 7. ed. HASSEMER, Winfried. ¿Por qué castigar? Razones por las que merece la pena la
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. pena. Trad. Manuel Cancio Meliá e Francisco Muñoz Conde. Valencia: Tirant lo
CASTIÑEIRA, Maria Teresa; RAGUÉS, Ramón. Three strikes: el principio de blanch, 2016
proporcionalidad en la jurisprudencia del Tribunal Supremo de los Estados Unidos. ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade material e discriminação positiva: o
Revista de Derecho Penal y Criminologia, Madrid, n. 14, pp. 58-85, 2004. princípio da isonomia. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 13, n. 2, pp. 77-92, 2008.
EL HIRECHE, Gamil Föppel e FIGUEIREDO, Rudá Santos. Crítica às tipificações ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña,
relativas ao tratamento do “crime organizado” no projeto de código penal e na lei Miguel Díaz y Garcia Conlledo, Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997.
12.850/2003. In: BADARÓ, Gustavo Henrique. Doutrinas essenciais: direito penal e SABOYA, Keity. Ne bis in idem: história, teoria e perspectiva. Rio de Janeiro: Lumen
processo penal. Vol. VI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. pp. 427-474. Juris, 2014.

Recebido em: 08/02/2020 - Aprovado em: 09/04/2020 - Versão final: 17/04/2020

REFLEXÕES SOBRE OS
MALEFÍCIOS DO ISOLAMENTO DO
PRESO IMPOSTO PELO NOVO RDD
REFLECTIONS ON THE HARMS CAUSED TO THE PRISONER’S ISOLATION
IMPOSED BY THE NEW DDR

Fernanda Carolina de Araujo Eduardo Rezende Zucato Filho


Ifanger Mestrando em Direito PUC-Campinas, bolsista pelo Fundo de Apoio à
Doutora e mestre pelo Departamento de Direito Penal, Medicina Forense Iniciação Científica - FAPIC/Reitoria da PUC-Campinas. Integrante da
e Criminologia da USP. Graduada em Direito pela PUC-Campinas. linha de pesquisa de Direitos Humanos e Políticas Públicas e do grupo
Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Campinas. de pesquisa Direito e Realidade Social. Graduado em Direito na PUC-
E-mail: fe_carolina@uol.com.br Campinas. Advogado.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5457771059463212. E-mail: e.zucato@hotmail.com.
ORCID: 0000-0002-1072-5545. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8363373604446232.
ORCID: 0000-0003-3828-7628.

João Paulo Gomes Massaro


Mestrando no programa de Pós-Graduação da PUC-Campinas. Graduado em Direito pela PUC-Campinas.
E-mail: joao_massaro@hotmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7196214309954536.
ORCID: 0000-0002-8438-7905

22

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


RESUMO ABSTRACT
A política criminal brasileira pós-1988 tem se destacado pela adoção de Post-1988 brazilian criminal politics has excelled by the adoption of punitivist
medidas punitivistas, que representam o recrudescimento da legislação penal measures, which represent the recrudescence of the country’s criminal
do país. A Lei 13.964/2019, conhecida como Lei Anticrime, é mais um exemplo legislation. The 13.964/2019 Law, also known as Anticrime Law is another
desse fenômeno. Dentre todas as alterações trazidas pela referida legislação, example of this phenomenon. Among all of the changes introduced by
o presente trabalho objetiva, utilizando-se de revisão bibliográfica, discutir such legislation, the current work aims to, through the employment of
as realizadas na sanção disciplinar do Regime Disciplinar Diferenciado bibliographic revision, discuss the ones carried out in the disciplinary
(RDD), com ênfase à ampliação do isolamento do preso, que fere os limites sanction of the Differentiated Disciplinary Regime ( DDR), with an emphasis
constitucionalmente impostos à pena, desconsidera o ser humano como ser on the enlargement of the prisoner’s isolation, which hurts the constitutionally
social e impede a reinserção do apenado. imposed sentence’s limits, disconsidering the human being as a social being
Palavras chave: Lei Anticrime. Regime Disciplinar Diferenciado. Isolamento do preso. and preventing the convict’s social reinsertion.
Keywords: Anticrime Law. Differentiated Disciplinary Regime. Prisoner’s Isolation.

Introdução Anticrime.
Alguns importantes trabalhos desenvolvidos nos últimos anos, O RDD é aplicado em situações nas quais, dentro do contexto
se prestaram a analisar a legislação penal aprovada no Brasil e a carcerário, o preso provisório ou definitivamente condenado,
política penal adotada pelo Estado brasileiro pós-1988. E, ainda nacional ou estrangeiro, praticar fato considerado como crime
que com recortes temporais distintos e levantamentos de dados doloso que ocasione a subversão da ordem ou disciplina internas;
diferentes, tais pesquisas assinalaram conclusões convergentes, apresentar alto risco para a ordem e segurança do estabelecimento
que sustentam o fato de haver, nas últimas décadas, uma tendência prisional ou da sociedade; ou quando recair sobre o preso fundadas
ao endurecimento penal no país. suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em
organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada,
Nesse sentido, Mendonça (2006) identificou, à luz de um estudo
independentemente da prática de falta grave.
acerca das leis penais emblemáticas aprovadas entre 1984 e 2004,
uma tendência de recrudescimento penal, por meio de um direito No que se refere às hipóteses de transferência para o RDD, em
penal de emergência, que teve como resultado a promulgação de comparação com a legislação anterior, duas alterações importantes
uma série de leis mais punitivas. podem ser verificadas. Em primeiro lugar, de acordo com a
redação de 2003, somente se autorizava a transferência de presos
Teixeira (2006, p.89) detectou um perfil de punição e urgência nas
estrangeiros na hipótese de apresentarem alto risco para a ordem
leis aprovadas durante a década de 1990, ao passo que destinou,
e segurança do estabelecimento prisional ou da sociedade. Hoje,
inclusive, um capítulo de sua dissertação de mestrado para apontar
contudo, as três situações mencionadas permitem a colocação do
“O declínio do ideal ressocializador e política criminal de exceção a
preso estrangeiro no RDD.
partir dos anos 90”.
Em segundo lugar, na redação original autorizava-se a transferência
Na mesma linha, Frade (2007) analisando o entendimento do
do preso ao RDD caso houvesse fundadas suspeitas de seu
Congresso Nacional acerca da criminalidade, mapeou que das 646
envolvimento ou participação em organizações criminosas, quadrilha
propostas de alterações dos dispositivos penais apresentadas entre
ou bando. Na redação atual, foi substituída a expressão quadrilha
2003 e 2007 no Congresso Nacional, apenas 20 tinham por objetivo
ou bando, em atendimento à mudança na própria legislação acerca
relaxar algum tipo penal.
da terminologia adotada para o crime em tela no ano de 2012, e
Em seu estudo Campos (2010) concluiu que uma das características acrescentou-se o envolvimento ou participação em milícia privada
da política criminal adotada entre os anos de 1989 e 2006 é a de como requisito para a tomada da medida.
ser prioritariamente voltada à criminalização ou ao agravamento das
Não houve nenhuma alteração em relação ao uso das expressões
penas.
crime doloso que provoca a “subversão da ordem e disciplina
Esta contextualização introdutória reputa-se necessária evidenciar internas”, “alto risco”, “fundadas suspeitas”, que desde a redação
que o viés punitivista, a política penal de emergência e o movimento original de 2003 já preocupava em razão da clara ofensa aos
de utilização simbólica do direito penal são aspectos que definem princípios da legalidade e da presunção de inocência, fundamentos
a agenda de política criminal em curso desde a redemocratização do Direito Penal em um Estado Democrático de Direito.
do Brasil.
Na redação anterior do art. 52 da LEP, disciplinava-se que o RDD
É preciso, nesse contexto, enfatizar que a Lei 13.964 de 2019, tinha duração máxima de 360 dias, sendo possível a renovação do
popularmente conhecida como “Pacote Anticrime” surge como o prazo por cometimento de nova falta grave de mesma espécie, até
mais recente instrumento tendente a revelar e intensificar referida o limite de 1/6 da pena aplicada; que o preso se recolheria em cela
política. individual; poderia receber visitas semanais, por 2 horas, sem contar
com as crianças; e que era autorizada a saída da cela por 2 horas
O presente artigo, então, busca evidenciar este perfil da Lei Anticrime,
diárias para banho de sol.
sob o recorte de análise das mudanças trazidas pela Lei 13.964
de 2019 em sede de execução penal, mais especificamente, com Após as alterações introduzidas pela Lei 13.964/19, entretanto, foi
relação ao tratamento atribuído à população carcerária submetida possível verificar que estas características ganharam contornos mais
ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) e problematizar o rigorosos, tendo sido mantida somente a previsão de recolhimento do
isolamento proporcionado ao preso que a ela se submete. preso em cela individual. Quanto às principais alterações, o prazo de
duração da sanção passou a ser de, no máximo, 2 anos, sem prejuízo
1. O Regime Disciplinar Diferenciado nas leis 10.792/03 e 13.964/19
de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie e
O Regime Disciplinar Diferenciado encontra previsão no art. 52 da podendo ainda ser prorrogado sucessivamente, por períodos de 1
Lei de Execuções Penais (LEP), introduzido na legislação pátria ano, existindo indícios de que o preso continua apresentando alto
por meio da Lei 10.792/03 e modificado pela Lei 13.964/19, a Lei risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da

23

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


sociedade e/ou mantém os vínculos com organização criminosa, Diante disso, cabe questionar até que ponto o isolamento do
associação criminosa ou milícia privada, considerado também o perfil preso, ainda mais sob a funcionalidade dos ditames mais rigorosos
criminal e a função desempenhada por ele no grupo criminoso, a recentemente introduzidos na Lei de Execuções Penais, obedecem
operação duradoura do grupo, a superveniência de novos processos à ordem constitucional e, acima de tudo, à dignidade da pessoa
criminais e os resultados do tratamento penitenciário; as visitas humana.
passaram a ser quinzenais, de 2 pessoas por vez, por até 2 horas, a
2. O isolamento do preso e seus malefícios
serem realizadas em instalações equipadas para impedir o contato
físico e a passagem de objetos por pessoa da família ou, no caso de Desde o seu surgimento, o reforço ao isolamento do preso, que
terceiro, autorizado judicialmente, a qual será gravada em sistema de além de estar afastado da comunidade em razão da privação da sua
áudio ou de áudio e vídeo e, havendo autorização judicial, fiscalizada liberdade, restava afastado também de qualquer possibilidade de
por agente penitenciário, sendo facultado ao preso que não receber convívio com os demais reclusos, é marca característica do RDD.
visitas nos primeiros 6 meses de RDD ter contato telefônico, que
Não obstante, analisando-se as mudanças introduzidas pela Lei
será gravado, com uma pessoa da família, 2 (duas) vezes por mês Anticrime, percebe-se que este contexto isolacionista foi ampliado,
e por 10 (dez) minutos; a participação em audiências judiciais se uma vez que as visitas foram temporalmente espaçadas, passando
dará, preferencialmente, por videoconferência, com a garantia da a ser quinzenais e não mais semanais; determinou-se o afastamento
presença defensor no mesmo ambiente do preso; e a existência de físico dos presos com relação a seus visitantes e familiares pelo
indícios de que o preso exerça liderança em organização criminosa, uso de barreiras impeditivas do contato, o que inexistia na redação
associação criminosa ou milícia privada, ou que tenha atuação original; isso sem falar na possibilidade de manutenção deste sistema
criminosa em dois ou mais Estados da Federação, implicará em sua pelo interregno de 2 anos ininterruptos, não mais 360 dias, que
transferência para estabelecimento prisional federal. poderá, conforme mencionado no excerto anterior, ser prorrogado
Dentre todas as mudanças, a única que pode ser vista como positiva sucessivamente, por períodos de 1 ano, não havendo limitação
se refere à possibilidade de o banho de sol ser realizado em grupos para tais sobrestamentos de prazo. Sob a égide da Constituição
de até quatro pessoas, não mais individualmente, com a ressalva na Federal de 1988, observa-se que esta veda, em seu art. 5º, III, a
lei de que nenhum deles pertença a um mesmo grupo criminoso. aplicação de tortura e/ou tratamentos desumanos/degradantes aos
detentos. Não obstante, as alterações promovidas ao RDD agravam
Uma análise do contexto político que embasou as alterações sugere violações à ordem constitucional que já se manifestavam desde a
uma preocupação forte do legislador em evitar o crescimento do sua instituição.
crime organizado nas penitenciárias.
Carvalho e Wunderlich (2004) apontavam, no momento da criação
É neste cenário, portanto, que é possível identificar a concentração do RDD, que políticas de isolamento de pessoas constituem penas
das ideias propostas pelo Pacote Anticrime, isto é, como uma cruéis, que, embora vedadas pela Constituição Federal, sofriam,
combinação entre a tentativa de repressão do crime organizado e à época, o risco de tornarem-se banais diante da inebriação dos
de um discurso de ódio, que se volta a lógicas populistas penais, membros do Judiciário, com discursos populistas associados à
sempre com o fito de inibição da atividade criminosa, mas sem situação emergencial que ensejou a criação deste instituto.
considerações sobre a própria natureza essencial das penas: a
Muito longe de aproximar a execução penal do objetivo cristalizado
reinserção social do criminoso.
da reinserção social, o RDD utiliza processos de individualizar e
Vale destacar, ainda, que esta concepção associada ao combate ao marcar os excluídos não para normalizá-los ou corrigi-los, mas,
crime organizado data da própria criação do RDD, acontecida por simplesmente, para segregá-los e incapacitá-los (DIAS, 2009, p. 130).
meio da conversão do Projeto de Lei 5.073/01 na Lei 10.792/03.
Ao analisar os regimes duros de encarceramento consolidados nas
A criação desta medida se deu como reflexo de rebeliões ocorridas últimas décadas, Bauman (1999) destaca que, hoje, a questão da
em diversas penitenciárias de São Paulo e do Rio de Janeiro entre reabilitação se destaca pela sua irrelevância, uma vez que esforços
os anos de 2001 e 2002, as quais contaram com fortes participações para levar o interno de volta ao trabalho só fazem sentido se há
de organizações criminosas e que geraram cenários de descontrole trabalho a fazer, condição inexistente atualmente.
generalizado responsáveis por evidenciar a falibilidade do aparato E, sob essa perspectiva, a implementação dos RDD’s é uma das
estatal no que tange às políticas penitenciárias até então vigentes. expressões mais visíveis dessa orientação puramente punitivista
Como resposta, a Secretaria de Administração Penitenciária do e demasiadamente despreocupada com a reinserção social do
Rio de Janeiro instituiu o Regime Disciplinar Especial, com o condenado. Isso porque se trata de um instrumento de execução,
propósito de isolar os líderes das facções criminosas e desarticular que tem por objetivo essencial tornar inativo, neutralizar, incapacitar
os movimentos então iniciados. Desta forma, com o fito de atribuir o condenado enquanto um ser social.
universalidade a este sistema, o então presidente Fernando Henrique Uma proposta que sequer admite o contato físico do preso com
Cardoso deu início ao Projeto de Lei 5.073/01, que originou o atual eventual visita e que proporciona um rígido isolamento pessoal por
Regime Disciplinar Diferenciado (COSATE, 2007, p. 207-208). 2 anos, prioriza alguma tentativa de inserir o condenado em um
Em breve digressão, importa destacar, entretanto, que o Instituto ambiente de trabalho ou de aproximá-lo da sociedade para a qual
Brasileiro de Ciências Criminais (2003), já em 2003, afirmou que ele um dia voltará?
as rebeliões e quadrilhas não nascem por falta de disciplina nas Será que manter um ser humano solitariamente em uma cela durante
unidades prisionais, mas sim do vazio de um Estado de Direito. 360 ou 720 dias se coaduna com os dispositivos constitucionais que
Nessa linha, Haber (2007, p. 149) suscita que, enquanto o Estado não regem a execução penal brasileira? Ou mais simples ainda, há uma
enfrentar os conflitos sociais de forma democrática e interdisciplinar, produção de resultados positivos com tamanho isolamento?
envolvendo os diversos atores sociais no processo de tomada de Freud (2013) enaltece o indivíduo como um ser indissociável do
decisões, a legislação penal e o ordenamento jurídico como um social, tendo alertado, já no início do século passado, as máculas da
todo, seguirá sendo utilizado com fins políticos de manutenção do intensa solidão e do prolongado isolamento do homem.
status quo, sem que os problemas sejam efetivamente solucionados.
Nessa linha, Cacioppo & Cacioppo (2014, p. 65) asseveram que os
Entre todos os problemas identificados nos novos regramentos humanos são organismos fundamentalmente sociais. Quando um
acerca do RDD, salta aos olhos o aprofundamento do isolamento indivíduo se sente socialmente isolado, existe uma tendência de o
que a aplicação dessa sanção penal produz. cérebro entrar no modo de autopreservação, com consequências

24

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


biológicas, cognitivas, comportamentais e sociais. Esses efeitos que se coaduna somente com os novos padrões de controle do
podem ter utilidade de sobrevivência a curto prazo no tempo crime que emergiram, sobretudo, a partir do final dos anos 1970, os
evolutivo, mas contribuem para a morbidade e mortalidade na quais, como explica Garland (2008) caracterizam-se pela mudança
sociedade contemporânea em que a expectativa de vida normal se do pensamento criminológico, que oscila entre uma interpretação
estende até a oitava década de vida. do crime a partir da sua banalização e uma interpretação pela qual o
E acrescentam que, a ênfase à autopreservação que se processa criminoso é o “outro” completamente distinto de nós.
na mente humana, em um estado de intenso isolamento, pode ser 3. Considerações finais
amplamente inconsciente. No entanto, ela aumenta a probabilidade
de que uma pessoa que se sente sozinha aja de maneira mais A política criminal pós-1988 tem se caracterizado pela aprovação de
defensiva e autoprotetora, sobretudo quando posta novamente em legislações cada vez mais punitivistas e a Lei Anticrime é mais um
comunidade. Isso, por sua vez, pode minar a consecução do objetivo produto dessa lógica perversa.
de formar melhores conexões com os outros. O RDD, que, desde seu surgimento no ano de 2003, era alvo de
A recente pandemia do coronavírus, que obrigou as pessoas a se críticas por sobrepor o direito à segurança da população a todos os
isolarem em suas casas com seus familiares para sua proteção, demais direitos do preso, com sua nova redação, demonstrou que
mostrou que o isolamento pode implicar em um grande sofrimento, os limites da punição em um Estado Democrático de Direito não
mesmo quando realizado em condições altamente favoráveis. O parecem existir.
que dizer, então, de um isolamento forçado, prolongado, incapaz de
As regras de isolamento, que, desde o texto original, pareciam
cumprir qualquer objetivo positivo, em um lugar inospitaleiro como
absolutamente exageradas por permitir que o preso ficasse 360 dias
o cárcere?
apartado do contato diário com outras pessoas, são redimensionadas
Baratta (1999) destaca que não se pode negar que a pena, sobretudo com a aprovação da Lei Anticrime, que prorroga esse prazo para 2
a privativa de liberdade. Uma vez estabelecida, ela deve ser anos, além de tornar as visitas dos familiares quinzenais e impedir
cumprida em um estabelecimento que respeite todas as garantias qualquer forma de contato físico entre o recluso e seus parentes.
fundamentais do autor do crime e que lhe forneça condições de
refletir sobre seu ato; que não o afaste da comunidade externa aos Trata-se de uma pena cruel, que desconsidera todas as necessidades
muros das penitenciárias, introduzindo-o definitivamente em uma do ser humano enquanto um ser social, em evidente desrespeito ao
verdadeira carreira delitiva. texto constitucional e aos direitos humanos.

A criminologia crítica problematiza a reação social ao delito, Medidas como o RDD, se enquadram justamente na estratégia
especialmente à pena, por entender que ela “é a reprodução da da segregação punitiva contemporânea, que, segundo Garland
violência e a reprodução da freguesia das cadeias. A gaiola é feita (2008, p. 314), representa uma nova forma de negação e de atuação
para reproduzir a própria freguesia e a reproduz com perfeição. É o simbólica a ser exercida pelos atores políticos envolvidos, como
processo de condicionamento para o homem voltar” (Zaffaroni, 1989, também evidencia um ideal quase que insaciável de “lei e ordem”.
p. 171). O que dizer, então, de uma pena que além de ser arbitrária
Desta forma, afastando quaisquer pretensões positivas e por se
e guiada por critérios desiguais de seletividade, desconsidera até a
configurar em uma violência contra o preso, o RDD favorece a
compreensão do homem como um ser social que necessita do outro
formação de um indivíduo antissocial, na medida em que dificulta a
para existir?
conexão de quem se submete a esse regime com a comunidade e
O RDD, reconheça-se, em nada se coaduna com qualquer ideal os outros indivíduos em geral, minando, por completo, todas as suas
social que se possa atribuir ao cumprimento da pena privativa de possibilidades de reinserção social.
liberdade. Pelo contrário, trata-se de um instrumento de isolamento,

Referências
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à 3, n. 5, p. 128-145, ago./set. 2009.
sociologia do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999. FRADE, Laura. O que o Congresso Nacional brasileiro pensa sobre a criminalidade.
BAUMAN, Zygmount. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: 2008. 271 p. Tese (Doutorado em Sociologia) - Departamento de Sociologia.
Jorge Zahar, 1999. Universidade de Brasília, Brasília, 2007.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: < http:// FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e Análise do Ego. São Paulo: L&PM, 20013.
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 17 abr. 2020. GARLAND, David. The culture of control: crime and social order in contemporary
BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Disponível em: <http://www. society. Chicago: University of Chicago, 2001.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm>. Acesso em: 17 HABER, Carolina Dzimidas. A eficácia da Lei penal: análise a partir da legislação
abr. 2020. penal de emergência (o exemplo do Regime Disciplinar Diferenciado). 2007. 164f.
CACIOPPO, John T.; CACIOPPO, Stephanie. Social Relationships and Health: Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de São
The Toxic Effects of Perceived Social Isolation. Social and Personality Psychology Paulo.
Compass, [on line], v. 8, n.2, p. 58–72, 2014.
IBCCRIM. A execução penal e a ideologia da disciplina. Boletim IBCcrim, São Paulo,
CAMPOS, Marcelo da Silveira. Crime e Congresso Nacional: uma análise da política n. 123, p. 1, fev. 2003.
criminal aprovada de 1989 a 2006. São Paulo: IBCCRIM, 2010.
MENDONÇA, Nalayne. Penas e Alternativas: um estudo sociológico dos processos
CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre. O suplício de Tântalo: a lei n. de agravamento das penas e de despenalização no sistema de criminalização
10.792/03 e a consolidação da política criminal do terror. Boletim IBCCRIM, São brasileiro (1984-2004). 2006. 234p. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa
Paulo, v. 11, n. 134, p. 6, 2004. de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Rio de
COSATE, Tatiana Moraes. Regime disciplinar diferenciado (RDD): um mal Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
necessário? Revista de Direito Público, Londrina, v.2, n.2, p. 205-224, mai./ago. 2007. TEIXEIRA, Alessandra. Do sujeito de Direito ao Estado de Exceção: o percurso
CRUZ, Marcus Vinicius Gonçalves da; SOUZA, Letícia Godinho de; BATITUCCI, contemporâneo do sistema penitenciário brasileiro. 2006. 182 p. Dissertação
Eduardo Cerqueira. Percurso recente da política penitenciária no Brasil: o caso de (Mestrado em Sociologia) - Departamento de Sociologia, Universidade de São
São Paulo. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 47, n. 5, p. 1307-1325, out. 2013. Paulo, São Paulo, 2006.
DIAS, Camila C. N. Efeitos simbólicos e práticos do Regime Disciplinar Diferenciado ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Função da Criminologia nas sociedades democráticas.
(RDD) na dinâmica prisional. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v. Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, v. 2, n. 11, p. 163-176, nov. 1989.

Recebido em: 15/03/2020 - Aprovado em: 04/04/2020 - Versão final: 17/04/2020

25

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


OS IMPACTOS DO PACOTE
ANTICRIME NO BANCO NACIONAL
DE PERFIS GENÉTICOS
THE IMPACTS BROUGHT BY THE ANTICRIME BIL ON TO
THE BRAZILIZAN NATIONAL GENETI PROFILE DATABASE

Natália Lucero Frias Tavares Antonio Eduardo Ramires Santoro


Doutoranda em Direito pela UFRJ. Mestra pela UCP (2018). Doutor pela UFRJ. Professor da UFRJ, do IBMEC/RJ e da UCP – Rio de
natalialuceroadv@gmail.com Janeiro/RJ
(21)999837095 antoniosantoro@antoniosantoro.com.br
lattes.cnpq.br/0410822851348833 lattes.cnpq.br/9190879263950156
orcid.org/0000-0002-0153-1298 orcid.org/0000-0003-4485-844X

RESUMO ABSTRACT
Criado pela Lei 12.654/2012, o Banco Nacional de Perfis Genéticos vem Created by Law 12.654/2012, the Brazilian National Genetic Profile Database
ganhando maior atenção e investimento por parte do governo brasileiro no has been receiving increasing attention and funding from the Brazilian
último ano. O presente artigo apontará possíveis impactos que decorrerão das government over the last year. This paper will dwell on the changes that may
modificações introduzidas pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), partindo, occur as a result of the legislative alteration brought on by Law 13.964/2019
para tanto, de análise quantitativa e qualitativa dos dados divulgados pela (Anticrime Bill), applying quantitative and qualitative data analyses as well as
Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos e análise bibliográfica. Por fim, bibliographical research in order to achieve set purpose. Lastly, the risks that
pretende-se expor os riscos que decorrem da crença coletiva na infalibilidade arise from the social belief in forensic genetics infallibility will be exposed.
da prova pericial genética. Keywords: Brazilian National Genetic Profile Database; forensic genetics; DNA
Palavras chave: Banco Nacional de Perfis Genéticos; perícia genética; análise de DNA. analysis.

Introdução Por fim, pretende-se tratar do mito da infalibilidade da prova


pericial, buscando não apenas listar possíveis riscos de obtenção de
Em 1953, Francis Crick, James Watson e Maurice Wilkins resultados inconclusivos ou errôneos, mas também visando propor
descobriram a estrutura tridimensional (dupla hélice) da molécula alternativas práticas que possam minorá-los.
de ácido desoxirribonucleuico quando trabalhavam em Cambridge,
no Reino Unido. Tal descoberta não apenas lhes conferiu o prêmio 1. O BNPG
Nobel de 1962, mas também inaugurou uma nova era na ciência de A despeito da análise de material genético não configurar novidade
modo geral. no cotidiano brasileiro, foi apenas com o advento da Lei 12.654/12,
Durante as últimas décadas, cientistas de todo o mundo vêm se que o Brasil passou a contar com um banco cadastral nacional criado
empenhando na luta por conhecer cada vez mais o funcionamento especificamente para inserção do perfil genético de determinados
da codificação genética e, por conseguinte, da própria natureza indivíduos.
humana. Os avanços tecnológicos permitem que, hoje, o mundo O BNPG é formado por um conjunto de laboratórios mantidos pelo
conheça cada vez mais sobre a formação do próprio ser humano e Distrito Federal, Estados e Polícia Federal. Com o propósito de
da sociedade, quebre barreiras geográficas e de comunicação, ao permitir um intercâmbio direto de informações entre os laboratórios
mesmo tempo que cria novas dúvidas, questões e incertezas. integrantes da rede e a efetiva criação de um cadastro genético
Considerando o contexto de globalização e aproveitamento de nacional, o Decreto 7.950/12 criou a Rede Integrada de Banco de
recursos, a utilização destas inovações pelos diversos ramos do Perfis Genéticos (RIBPG).
direito surge como um desdobramento lógico e inevitável, mas, que, A Rede conta com um Comitê Gestor, que fica responsável pela
ainda assim, não pode ser tomado como imparcial ou incontestável elaboração de relatórios que contabilizam a evolução do número de
(SANTOS, 2003, p. 30-48). cadastros de DNA, pela obtenção de coincidências entre perfis e
O presente trabalho versará sobre a temática da análise de DNA pelos custos do processo de implementação do Banco.
para fins criminais no Brasil. Com base na análise quantitativa O Banco possui duas finalidades declaradas: (i) permitir a
e qualitativa dos dados referentes ao crescimento e utilização do identificação de pessoas desaparecidas; e (ii) contribuir para a
BNPG, pretende-se demonstrar a maneira como o banco genético elucidação de crimes. Importa destacar que há uma separação entre
pátrio vem sendo estruturado. os materiais genéticos em listas cadastrais distintas a depender da
Em um segundo momento, serão apontadas as modificações finalidade a que se destina, não se admitido que o material genético
coletado para fins de identificação de pessoas desaparecidas seja
efetivamente introduzidas no ordenamento pátrio por força da
empregado para fins criminais.
aprovação do Pacote Anticrime (Lei 13964/2019), que alterou tanto a
LEP quanto a Lei de Identificação Criminal. Com base nos dados divulgados pela RIBPG em seus relatórios

26

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


semestrais, evidencia-se que o propósito principal do Banco reside de intervenção corporal (QUEIJO, 2013).
na utilização do cadastramento genético para fins criminais. Tal
Partindo destas premissas, conclui-se que a maneira como se
conclusão fundamenta-se tanto no significativo incremento do
estruturou a coleta de material genético na execução penal
número de registros de materiais coletados de apenados, indivíduos
atenta contra a Constituição Federal de 1988 ao violar o direito à
identificados criminalmente ou vestígios de cenas de crime quanto
privacidade, forçar a produção de provas contra si próprio e afastar
nas justificativas apresentadas pelo Comitê em favor da expansão
a presunção de inocência, assemelhando-se a uma espécie de pena
do Banco e a própria métrica de “sucesso” empregada.
privativa de direitos de caráter perpétuo, que não respeita o princípio
Duas são as circunstâncias em que se admite a coleta, análise e da individualização da pena.
cadastramento de material genético de um indivíduo no nosso
2. Riscos da crença na infalibilidade e imparcialidade da genética
direito: para fins de identificação criminal e para cadastramento
de pessoas condenadas pela prática de crimes hediondos ou de A despeito da inexistência de uma hierarquia estabelecida entre os
natureza grave contra pessoa. A identificação criminal já faz parte do diferentes meios de prova admitidos pelo ordenamento brasileiro, a
cenário jurídico brasileiro há décadas. Contudo, foi a Lei 12.654/12 prova pericial, por demandar conhecimentos técnicos, científicos ou
que inaugurou a possibilidade de realização da mesma via DNA. artísticos, recebe um tratamento diferenciado por parte de grande
parcela da sociedade – e mesmo dos operadores do direito.
A popularização do tema referente ao BNPG ocorreu em tempo
recente. A temática foi trazida à baila no contexto das eleições de Sobre prova pericial, já em 1978, Hélio Tornaghi defendia que ela
2018, quando Jair Bolsonaro, ainda em campanha, manifestou seu deveria ser analisada pelo jurista não como prova, mas sim como
desejo de investir maciçamente no cadastramento genético para uma lente ou filtro de análise de modo a viabilizar a compreensão
expansão do Banco e aumento de condenações. dos fatos analisados na seara processual.
Durante sua gestão, Bolsonaro tem mantido a promessa de Em decorrência da possibilidade de verificação empírica de seus
campanha no que concerne ao incremento na alocação de verbas resultados, as ciências exatas são tidas como infalíveis. Neste
destinadas à segurança pública. A dimensão dos investimentos sentido, alguns questionamentos devem ser suscitados:
dirigidos à coleta de material genético para fins criminais pode ser
constatada a partir da análise do crescimento do BNPG. 1)Não é possível a ocorrência de falha humana que invalide o
resultado obtido pela perícia?
Crescimento do número de perfis
2) Um mesmo resultado não pode ser produzido por diferentes
circunstâncias/causas?
Evolução das amostras totais no BNPG 3) Considerando que nem todos os componentes e
80000
70280 particularidades são avaliados para fins de perícia, é possível
70000 que os parâmetros de análise adotados gerem falsos resultados
60000 positivos?
50000 4) É viável a realização de exame contendo amostras com
40000 30809 pequenas quantidades de células e/ou mistura de material
30000
1808
genético de diferentes indivíduos?
20000
7523 8916 10769 13197
Este rol exemplificativo de questionamentos não é capaz de
6003
10000 2584 3621 4806
evidenciar de maneira satisfatória as inúmeras possibilidades de
0 ocorrência de falhas de procedimento ou conclusão, uma vez que
nov/14 mai/15 nov/15 mai/16 nov/16 mai/17 nov/17 mai/18 nov/18 mai/19 nov/19 muitas são as possibilidades de erro, contaminação e incorreta
interpretação mesmo da análise genética, como aponta Murphy
(2015).
Fonte: XI Relatório da RIBPG, (nov/2019).
Nicolitt e Werhs (2015, p.73) se debruçaram sobre o tema da análise
No período de um ano, o número de amostras inseridas no Banco de DNA e afirmaram que as conclusões constantes dos laudos de
pulou de 18.080 para 70.280, o que representa um crescimento análise são insuficientes para fins de esgotamento da interpretação
cadastral de 288,7%. Do total de 70.280 perfis genéticos cadastrados dos fatos por parte do julgador, fazendo-se indispensável uma
no BNPG, 55.727 (equivalente a aproximadamente 79,3%) se análise contextualizada.
destinam a fins criminais.
Diferentemente do reconhecimento pessoal, conferência
Em fevereiro de 2019, o ministro Sérgio Moro apresentou um datiloscópica e afins, a prova pericial genética, de fato, oferece
projeto de lei de sua própria autoria, que pretende modificar 14 uma margem muito reduzida de erro. Contudo, o baixo índice de
leis. Após aprovação, o referido projeto se tornou a Lei 13.964/2019 falibilidade só se mantém em patamares reduzidos quando a
(Pacote Anticrime) e trouxe modificações para o cadastramento e realização da conferência de material genético se dá pela via de
funcionamento do BNPG. identificação pessoal com coleta direta (ou seja, quando o perito
Ao introduzir o §3º no art. 9ºA da LEP, o Pacote Anticrime transformou colhe diretamente o material genético - coleta de mucosa oral,
a negativa do apenado em fornecer material genético em falta grave. coleta de sangue por punção venosa ou transcutânea - e realiza o
Ao determinar a aplicação de sanção administrativa, que gera efeitos exame para conferência logo em seguida, de modo a não existirem
graves na execução de pena (interrupção da contagem de prazo chances de troca de frascos, desnaturação ou mistura).
para progressão de regime, negativação da classificação da pessoa Um percentual significativo das análises genéticas para fins criminais
presa e impossibilidade de concessão de direitos prisionais durante envolve o exame se material coletado da cena de um crime ou
o período de um ano), a Lei 13.964/2019 desvelou por completo o corpo da vítima (vestígios). Assim, as chances de contaminação ou
caráter coercitivo da coleta de DNA. deterioração da amostra elevam-se exponencialmente (MURPHY,
2015). Sobre os riscos de falha que podem se operar nesse tipo de
A possibilidade de conferência de material genético para fins criminais
análise, dispõe o texto do Procedimento Operacional Padrão (POP)
provoca diversos questionamentos, destacando-se aqui a discussão
divulgado pela Secretária de Segurança Pública (2013, p. 63):
referente à compatibilidade com o direito à não autoincriminação.
O aparente conflito entre o nemo tenetur e a extração de material 5. Pontos Críticos:
genético para fins criminais faz-se ainda mais evidente nos casos As metodologias utilizadas nos exames genéticos são muito sensíveis,
em que o indivíduo que deve ter seu material coletado não consente de modo que contaminações mínimas podem prejudicar os exames.
com a extração, uma vez que a coleta de amostra requer realização Deste modo, o perito oficial deve tomar todo o cuidado para evitar a

27

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


deposição acidental do seu próprio material biológica sobre o vestígio, aduzidas pelo perito genético seria a simples reestruturação dos
não devendo, portanto, manipular ou encostar no mesmo sem luva, nem laudos periciais genéticos.
falar, espirrar ou tossir sobre ou próximo do mesmo sem máscara.
O mesmo princípio deve ser observado na embalagem e no envio do
Como sugestão para facilitar tanto o conhecimento do procedimento
material ao laboratório, pois um vestígio pode contaminar o outro.
adotado para fins de realização da perícia quanto para viabilizar o
Por outro lado, os vestígios biológicos são perecíveis, principalmente
efetivo exercício do contraditório, propõe-se que, além da inserção
quando úmidos e/ou expostos ao calor excessivo. Assim, sempre que
dos itens acima listados, alguns quesitos obrigatórios sejam
possível, os vestígios úmidos devem ser secos à temperatura ambiente,
acrescidos ao laudo pericial genético, como:
protegidos da luz solar e encaminhados à unidade de custódia ou 1) Quantidade de células coletadas;
de exames. Quando não for possível a sua secagem, devem ser
2) Apontar se amostra contém mistura de materiais genéticos de
encaminhados em um prazo inferior a 48h ou congelados antes do envio.
Maiores detalhes estão disponíveis no POP sobre Preservação e Envio
diferentes indivíduos;
de Vestígios Biológicos. 3)Descrição das condições (temperatura, umidade e claridade)
Deverá ser observada a necessidade de identificação de possíveis do local em que se operou a coleta;
contribuidores eventuais, tais como as de policiais que tiveram acesso 4) Descrição do modo como a amostra foi conservada durante o
ao local do crime ou de quaisquer outras pessoas sabidamente não transporte entre local da coleta e da análise;
relacionadas ao delito mas que possam ter eventualmente deixado
material biológico no local do crime. 5) Descrição dos critérios utilizados para excluir do rol de
possíveis autores do delito pessoas cujo material genético foi
Ressalta-se a importância de uma identificação única e inequívoca encontrado na cena; e
de cada vestígio nas respectivas embalagens e nos formulários de
coleta que os acompanham. 6)Apontar o número de marcadores usados para obtenção do
match genético.
Devem ser observadas recomendações de preservação e envio
adequadas para cada tipo de vestígio, conforme POP sobre Uma falha que costumeiramente se associa à papiloscopia forense
Preservação e Envio de Vestígios Biológicos. e também pode atingir a perícia genética concerne à adoção de
parâmetros insuficientes ou inadequados de análise pericial. Quanto
A partir da leitura do POP de coleta de vestígios biológicos de menor o número de marcadores utilizados para conferência de
cena de crime para fins de exame de genética forense, é possível compatibilidade entre amostras, maiores as chances de obtenção
constatar que o material genético, por ser matéria biológica, possui de falsos resultados positivos. Por isso, propõe-se uma alternativa
uma série de fragilidades que acabam por aumentar as dificuldades adicional para fins de redução das possibilidades de obtenção
de conferência e análise. de resultados incorretos e evitação do atingimento de direitos
Sendo certo que a coleta dificilmente se operará tão logo de terceiros: aumentar o número de marcadores utilizados para
tenha ocorrido o crime e que não necessariamente o espaço se conferência.
manterá preservado, a existência de chances de contaminação ou Conclusão
deterioração da amostra são fatos incontestáveis.
A análise e comparação de perfis genéticos se apresenta como uma
Em relação à discricionariedade que marca a atuação do perito, inovação popularmente aceita e desejada pela sociedade moderna.
aponta-se a fragilidade da orientação constante do quarto item Aliando cientificismo, tecnologia e a crença majoritária na fiabilidade
listado como ponto crítico: a necessidade de identificação de das provas periciais, parece cada vez mais difícil, quiçá impossível,
pessoas cujo material genético pode aparecer na cena do crime impedir ou reduzir o emprego desta nova ferramenta nas searas
para fins de exclusão. Neste ponto, parece procedimentalmente investigativa e judicial.
razoável - apesar de passível de falhas - a exclusão automática da
possibilidade de imputação de autoria do fato delitivo aos polícias e Graças à Lei 13.964, a negativa de realização de cadastramento por
peritos que transitaram pela cena do crime. parte de apenado passou a produzir efeitos negativos em relação à
execução da pena, configurando efetiva demonstração do caráter
Contudo, no momento em que o POP que deverão ser identificadas coercitivo da coleta. Desta feita, resta evidenciada a violação ao
também as “outras pessoas sabidamente não relacionadas ao delito direito de não se autoincriminar.
mas que possam ter eventualmente deixado material biológico no local
do crime”, acaba por criar margem para uma tomada de decisão por Retomando a análise dos impactos da prova pericial, diante da
parte do perito de maneira completamente autônoma e sem critérios constatação da prevalente crença que a sociedade e o próprio Poder
objetivos para justificação. Judiciário lhes atribuem, na tentativa de impedir que as decisões
judiciais sejam tomadas de sequestro pelo lauda pericial elaborado,
Considerando que a própria tecnicidade que envolve a elaboração da faz-se necessário buscar recursos, que permitam verificar (I) se a
prova pericial acaba por auferir um maior poder de convencimento análise técnica efetivamente se operou dentro dos padrões corretos
do julgador, faz-se necessário buscar alternativas que não apenas para obtenção dos resultados e, principalmente, (II) se as conclusões
apontem possíveis falhas ocorridas ao longo da análise, mas que proferidas pelo perito trazem maior ou menor carga de subjetividade
também confiram à pessoa investigada ou acusada da prática e parcialidade.
de determinado ilícito a efetiva possibilidade de questionar os
resultados obtidos. A alteração da formulação dos laudos periciais apresenta-se como
uma alternativa viável na esteira da redução de danos, uma vez que
Sendo certo que grande parte das pessoas hoje mapeadas não demanda qualquer tipo de contratação adicional de serviços
geneticamente no país é hipossuficiente e, portanto, não poderia de perícia particular ou reexame, ao mesmo tempo em que confere
custear a realização de perícias adicionais ou contratar peritos àqueles responsáveis pelo exercício da defesa a possibilidade de
particulares no intuito de questionar ou desconstituir o laudo pericial conhecer não apenas o trajeto adotado pelo perito para realização
produzido, o que se propõe por esta ocasião é a adoção de medidas da análise, mas também os possíveis equívocos ou saltos
simples e não onerosas, que viabilizem a conferência da validade argumentativos que se apresentam no laudo.
dos resultados obtidos a partir da análise e que configura não
apenas uma garantia para a proteção dos direitos do investigado/ A única inovação positiva introduzida pelo Pacote Anticrime no que
acusado, mas também do próprio interesse do Estado em não tange o BNPG diz respeito à imposição de prazo para remoção dos
condenar pessoas inocentes. dados inseridos no cadastro. Contudo, a imposição de realização de
requerimento específico, a ser realizado após o longo prazo de 20
Nesse sentido, uma alternativa prática, que conferiria maior clareza anos, acaba por esvaziar a suposta proteção do direito à privacidade
e possibilidade de verificação da procedência das conclusões do egresso mesmo décadas após o término de pena.

28

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


REFERÊNCIAS
ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. Genéticos Brasileiro Três Anos após a Lei no 12.654. Revista de Bioetica y Derecho,
São Paulo: Boitempo, 2017. Barcelona, v. 35, p. 94-107, 2015.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal MURPHY, Erin E. Inside the cell: the dark side of forensic DNA. Bold Type Books:
para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, ICC, 2012. Nova Iorque, 2015.
BRASIL. Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos. XI Relatório da Rede NICOLITT, André Luiz; WEHRS, Carlos Ribeiro. Intervenções corporais no processo
Integrada de Bancos de Perfis Genéticos. Comitê Gestor RIBPG : Brasília, 2019. penal e a nova identificação criminal: Lei 12.654/12. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2015.
BRASIL. Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos. X Relatório da Rede
Integrada de Bancos de Perfis Genéticos. Comitê Gestor RIBPG : Brasília, 2019. QUEIJO, Maria Elizabeth. O princípio nemo tenetur se detegere e a coleta de
material genético: identificação criminal ou colaboração na produção da prova?
BRASIL. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Procedimento Operacional Boletim IBCCrim, São Paulo, n. 250, set. 2013.
Padrão: perícia criminal. Ministério da Justiça: Brasília, 2013.
SANTOS, Laymert Garcia dos. Politizar as novas tecnologias: o impácto sociotécnico
DOLEAC, Jennifer L. The Effects of DNA Databases on Crime. American Economic da informação digital e genética. São Paulo: Editora 34, 2003.
Journal: Applied Economics, Pittsburgh, vol. 9, n. 1, p. 165-201, jan. 2017.
TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro:
GARRIDO, Rodrigo Grazinoli; RODRIGUES, Eduardo Leal. O Banco de Perfis Konfino, 1978.

Recebido em: 15/03/2020 - Aprovado em: 03/04/2020 - Versão final: 16/04/2020

JUIZ DAS GARANTIAS: PARA ACABAR


COM O FAZ-DE-CONTA-QUE-EXISTE-
IGUALDADE-COGNITIVA...
JUDGE OF GUARANTEES AIMING TO PUT AN END ON THE MAKE-BELIEVE
CONCEPTION THAT THERE IS COGNITIVE EQUALITY

Aury Lopes Jr. Ruiz Ritter


Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Doutorando, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS.
Madrid. Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Ciências Advogado criminalista.
Criminais da PUCRS. Advogado criminalista. https://orcid.org/0000-0002-3533-0101
https://orcid.org/0000-0002-7489-3353 http://lattes.cnpq.br/0594538019851381
http://lattes.cnpq.br/4629371641091359 ruiz@ritterlinhares.com.br
aurylopes@terra.com.br

RESUMO ABSTRACT
O trabalho analisa a figura do juiz das garantias implementada pela Lei The paper analyzes the role of the judge of guarantees implemented by Law
13.964/2019. Pretende demonstrar, a partir de estudos da psicologia social 13.964/2019. It intends to demonstrate, from studies of social psychology - theory
- teoria da dissonância cognitiva e efeito primazia -, a inevitabilidade da of cognitive dissonance and primacy effect - the inevitability of the judge’s
contaminação psíquica do juiz decorrente da sua participação na investigação psychic contamination arrising from their participation in the preliminary
preliminar, evidenciando a necessidade de juízes diferentes para as fase pré- investigation, evidencing the need for different judges for the pre-procedural
processual e processual, em prol da imparcialidade da jurisdição penal. and procedural phases, in favor of the impartiality of criminal jurisdiction.
Palavras chave: Juiz das garantias. Teoria da dissonância cognitiva. Lei 13.964/2019. Keywords: Judge of Guarantees. Theory of cognitive dissonance. Law 13.964/2019.

Que blindagem psíquica possuem os juízes brasileiros que os ‘abertura cognitiva’ suficiente para dar ensejo a um contraditório
diferenciam dos demais? E não só os diferencia dos demais juízes, real e efetivo? Podemos prescindir do modelo de ‘doble juez’, ou da
senão dos demais seres humanos? Nenhuma. A premissa é: o prevenção como causa de exclusão da competência (no sentido de
juiz, enquanto ser-no-mundo, também constrói imagens mentais a que não pode ser o mesmo juiz da fase pré-processual aquele que
priori (no sentido kantiano adaptado, ou seja, antes da ‘experiência ao final irá instruir e julgar)? Não existe nenhuma teoria de base e
completa’), também decide primeiro para depois buscar os pesquisa para justificar esse argumento.
argumentos que justificam a decisão já tomada (parafraseando a
clássica passagem de Franco Cordero), e também padece com a A realidade do processo penal - e que não se quer desvelar - é:
dissonância cognitiva e o efeito primazia. São diversos os estudos e a defesa sempre entra correndo atrás de um imenso ‘prejuízo
pesquisas de campo demonstrando o imenso prejuízo cognitivo que cognitivo’. Ela sempre chega na fase processual em desvantagem e
decorre dos pré-juízos (ferindo de morte, ainda, a imparcialidade).1 não raras vezes, já perdendo por um placar cognitivo negativo (no
sentido de imagem mental e convencimento do juiz) considerável,
Por outro lado, quantos estudos comprovam a fantástica ‘blindagem’ quando não irreversível. O processo não é mais que um faz de
psíquica dos juízes brasileiros? Como justificar que uma mesma conta de igualdade de oportunidades e tratamento. O juiz já está -
pessoa possa atuar na investigação preliminar, proferindo diversas na imensa maioria dos casos - psiquicamente capturado2 pela tese
decisões complexas e invasivas, para depois entrar no processo com acusatória, até então tomada como verdadeira e geradora de graves

29

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


consequências decisórias. Mais: como é que se pode esperar que um juiz, depois de decretar
uma série de medidas restritivas de direitos fundamentais com base
Enquanto não houver preservação da originalidade cognitiva do juiz
nesse mesmo arcabouço informativo parcial buscas e apreensões,
- o que somente é possível com juízes diferentes para as fases pré-
interceptações telefônicas, quebras de sigilo bancário e fiscal e até
processual e processual, a fim de que o julgador do caso conheça
prisões cautelares -, reforçando cada vez mais a conformação da
dos fatos livre de pré-juízos e pré-conceitos formados pela versão
sua cognição num único sentido, substancialmente prejudicial ao
unilateral e tendenciosa do inquérito policial -, o processo penal
investigado, receba a versão dos fatos apresentada pela defesa
brasileiro não passará de um jogo de cartas marcadas e de um faz
na futura fase processual com a mesma tranquilidade e igualdade
de conta que existe contraditório. O próprio conceito de contraditório
cognitiva que receberá a versão da acusação?
precisa ser reconfigurado para exigir também a igualdade de
tratamento e oportunidades na dimensão cognitiva. Simplesmente não há como concordar com todas essas
problematizações ao mesmo tempo. Ou se adere ao argumento
É preciso que se entenda isso de uma vez por todas, porque
inicial - fundamentado teórica e empiricamente - ou se adere a uma
a oportunidade que se tem em mãos com o juiz das garantias –
negação genérica e irracional, sem fundamento algum.
suspensa atualmente pela famigerada liminar-Fux - pode não
aparecer de novo, mantendo o Brasil como exemplo de modelo E nem precisariam ter sido testadas tais hipóteses teóricas na própria
(neo)inquisitório do século XXI. dinâmica de um processo penal concreto para se concluir que o
juiz condena mais frequentemente quando conhece a investigação
Qual é a dificuldade, afinal, de se compreender que todos os seres
preliminar do que quando a desconhece, sendo apresentado aos
humanos – juízes, inclusive! - possuem uma tendência de equilíbrio
fatos somente na fase processual (originalidade cognitiva). Mas
cognitivo (leia-se coerência entre crenças, opiniões, ações, etc. –
foram,7 havendo, inclusive, subsídio empírico específico atualmente
cognições), cujo rompimento, por insuportável, se busca sempre
para se comprovar que, sem juiz das garantias, o juiz não passa de
evitar, ou, não sendo possível, restaurar, por meio de processos
um terceiro manipulado no processo penal.8
cognitivo-comportamentais involuntários3 - como desde a década
de 50 revela a teoria da dissonância cognitiva4 -, sendo inconcebível Aliás, tal pesquisa evidencia também outro ponto fundamental
que alguém que criou uma imagem mental unilateral sobre um fato à criação do juiz das garantias: a imprescindibilidade da exclusão
receba uma versão oposta acerca do mesmo fato sem desacreditá- física9 (ou não inclusão) dos autos do inquérito, exceto provas
la diante do mal estar psíquico que inexoravelmente representa? de natureza cautelar, antecipadas e irrepetíveis,10 sob pena de se
esvaziar complemente a eficácia da proposta, na medida em que
Ou, então, que uma vez fixada uma primeira impressão sobre
o contato direto do juiz da fase processual com tais elementos
alguém, serão mais facilmente aceitáveis informações que a
investigativos unilaterais impede, por tudo que aqui se viu, a
corroborem do que outras que a contrariem, como também já
preservação da sua necessária originalidade cognitiva para instruir
comprovou a psicologia social pelo denominado “efeito primazia”,
e julgar o caso. Se realmente queremos um processo penal sério
revelando que as informações posteriores a respeito de alguém são,
e com qualidade epistêmica da prova e cognitiva por parte do juiz,
em geral, consideradas no contexto da informação inicial recebida,5
não apenas é preciso separar os juízes, senão que precisamos
a qual exerce um direcionamento não apenas das demais cognições
efetivamente separar o ‘material produzido em cada fase’.
a respeito da respectiva pessoa, como também do comportamento
em relação a ela, fundamento do jargão popular de que ‘a primeira Em suma, ou se permanece na fantasia infantil de que a jurisdição
impressão é a que fica’?6 criminal brasileira é exercida por seres dotados de superpoderes -
imunes a fenômenos naturais à condição humana - ou se admite
Porque se não há dificuldade, como é que se pode duvidar da
a falibilidade das decisões e julgamentos humanos, sempre
inevitável contaminação do juiz pela investigação preliminar na
influenciados por pré-julgamentos e pré-conceitos; reconhecendo-
estrutura processual penal atual, considerando que os elementos
se, com Carnelutti, que “A justiça humana não pode ser mais do que
investigativos constantes no inquérito (entre outros sistemas
uma justiça parcial; (...) tudo que se pode fazer é tentar diminuir essa
de investigação), unilaterais por natureza, são as primeiras
parcialidade”. 11
informações/impressões disponíveis ao juiz a respeito do fato, as
quais exercerão forte influência sobre as informações posteriores O juiz das garantias é mera expressão dessa segunda perspectiva,
recebidas no processo, no sentido de adequação a essa primeira figura judiciária imprescindível para acabar com o faz-de-conta-que-
imagem mental, para evitar dissonância cognitiva e seus efeitos existe-igualdade-cognitiva vigente no processo penal brasileiro.
perniciosos correlatos?

NOTAS
1
A imparcialidade da jurisdição é o ‘Princípio Supremo do Processo’. Vide: LOPES 8
Nas palavras do próprio pesquisador, à guisa de conclusão da pesquisa realizada:
JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Editora Saraiva, “O processamento de informações pelo juiz é em sua totalidade distorcido em
2020. p. 254 e ss. favor da imagem do fato que consta dos autos da investigação e da avalição
2
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Editora Saraiva, realizada pelo ministério público, de modo que o juiz tem mais dificuldade em
2020. p. 385 e ss. perceber e armazenar resultados probatórios dissonantes do que consonantes,
3
Remetendo o leitor que se interessar nas respostas que o sistema psíquico e as faculdades de formulação de perguntas que lhe assistem são usadas não
humano oferece para o enfrentamento do molesto rompimento de seu equilíbrio, no sentido de uma melhora no processamento de informações, e sim de uma
reflexo da experimentação de dissonância cognitiva, para: RITTER, Ruiz. autoconfirmação das hipóteses iniciais.” SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz como
Imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos
cognitiva. 2. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 99-141. efeitos perseverança e aliança. In: SCHÜNEMANN, Bernd; GRECO, Luís
4
FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Tradução Eduardo Almeida. (coord.). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito.
Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1975. p. 11-12. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 221.
5
GOLDSTEIN, Jeffrey H. Psicologia social. Tradução José Luiz Meurer. Rio de 9
Para melhor compreensão acerca do sistema de exclusão física dos autos e
Janeiro: Editora Guanabara Dois, 1983. p. 93. aprofundamento, recomendamos: LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo
6
FREEDMAN, Jonathan L; CARLSMITH, J. Merril; SEARS, David O. Psicologia Jacobsen. “Investigação Preliminar no Processo Penal”. 6. ed. São Paulo: Editora
Social. 3. ed. Tradução Àlvaro Cabral. São Paulo: Editora Cultrix, 1977. p. 40. Saraiva, 2014.
7
Ver em: SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz como um terceiro manipulado no 10
Nos termos da acertada previsão do novo artigo 3º-C, parágrafo terceiro, do
processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e aliança. CPP.
In: SCHÜNEMANN, Bernd; GRECO, Luís (coord.). Estudos de direito penal, 11
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Tradução Ricardo
direito processual penal e filosofia do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. Rodrigues Gama. Campinas: Russell Editores, 2008. p. 39.
205-221.

Recebido em: 06/03/2020 - Aprovado em: 06/04/2020 - Versão final: 15/04/2020

30

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


CORTES INTERNACIONAIS E SUAS DECISÕES COMENTADAS

PRISÃO PROVISÓRIA: RECENTES


REFORMAS E PRÓXIMOS PASSOS À
LUZ DO SISTEMA INTERAMERICANO
DE DIREITOS HUMANOS
PRETRIAL DETENTION: RECENT REFORMS AND NEXT STEPS IN LIGHT OF
THE INTER-AMERICAN HUMAN RIGHTS SYSTEM

Thiago Nascimento dos Reis


Doutorando (JSD) na Escola de Direito da Universidade de Stanford, CA, EUA. Mestre em Direito (JSM)
pela mesma instituição (2016). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP (2014).
tnreis@stanford.edu
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3533947878898633
Orcid: 0000-0001-9705-0773

RESUMO ABSTRACT
Apesar da obrigação internacional e do entendimento do STF de que o uso Despite the international obligation and the Brazilian Supreme Court (“STF”)’s
da prisão provisória deve ser excepcional, aproximadamente um terço da position that pretrial detention must be used exceptionally, approximately a
população prisional brasileira não foi condenada em primeira instância. Em third of Brazil’s prison population has not been convicted in first instance.
face de tal dissonância entre o plano normativo e a realidade do país, parte In view of this dissonance between the normative order and the country’s
da comunidade jurídica periodicamente se mobiliza por reformas objetivando reality, part of the legal community periodically mobilizes for reforms aimed at
reduzir o uso de prisão preventiva. Dentre tais reformas, a introdução reducing the use of pretrial detention. Among these reforms, the introduction
da audiência de custódia em 2015 – impulsionada pela sua previsão em of bail hearings in 2015 – fostered by its provision in international human rights
tratados internacionais de direitos humanos – e do juiz de garantias no fim treaties – and of a “judge of the investigation” (juiz de garantias) – currently
de 2019 – atualmente suspensa por decisão do STF – destacam-se pela sua suspended by the STF – stand out due to their structural nature, which
natureza estrutural, o que as torna menos suscetíveis de relativização por makes them less susceptible of attenuation through interpretative channels.
vias interpretativas. Este artigo analisa o potencial e as limitações de tais This article analyzes the potential and limitations of those reforms, as well
reformas, e das demais mudanças pertinentes da Lei 13.964/2019 (“Pacote as of the other relevant changes brought by Law 13,964/2019 (the “Counter-
Anticrime”), para racionalizar o uso de medidas cautelares. Após constatar crime Package”), in rationalizing the use of precautionary measures. After
que uma abordagem holística é necessária para se atingir tal objetivo, finding that an holistic approach is required to achieve such goal, this article
este artigo propõe reformas adicionais, que alinhem o aparato normativo proposes additional reforms capable of aligning the normative order and
e a cultura jurídica dos operadores do direito aos parâmetros do Sistema the legal culture of judicial actors with the standards of the Inter-American
Interamericano de Direitos Humanos (“SIDH”), incluindo o investimento em Human Rights System (“IAHRS”), including the investment in precautionary
medidas cautelares alternativas à prisão e a introdução da avaliação atuarial measures alternative to prison and the introduction of actuarial pretrial risk
de riscos processuais no Brasil. assessment in Brazil.
Palavras chave: Prisão Provisória, Sistema Interamericano de Direitos Humanos, Keywords: Pretrial Detention, Inter-American Human Rights System, Legal Reform.
Reforma Legal.

Alinhado à tendência nas Américas, o Brasil ostenta altas taxas de como cultural, a exemplo, respectivamente, da ausência de uma
prisão provisória. Os dados nacionais mais recentes, de junho de duração legal máxima à prisão preventiva e da visão de que a
2019, indicam que em torno de um terço (34,35%) da população prisão provisória pode ser imposta como antecipação de pena,
prisional do país, 263.404 pessoas, está presa apesar de não ter ambas rejeitadas pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos
sido condenada.1 Como tal proporção não inclui réus condenados (“SIDH”), ao qual o Brasil está vinculado.
por sentença não transitada em julgado, que também são presos
provisórios, a real taxa brasileira de prisão provisória é ainda maior. Em contraste à alta incidência de encarceramento cautelar, o
Tais números explicam-se por razões de natureza tanto normativa ordenamento jurídico requer que juízes decretem a prisão provisória

31

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


de maneira excepcional, e diversos são os motivos que justificam tal de 24 horas de prisões por meio de audiências de custódia.6
excepcionalidade.2 Em primeiro lugar, o princípio da presunção de Expressamente conformando o Brasil às suas obrigações sob
inocência, em sua dimensão cautelar, impede que indivíduos sejam a CADH e sob o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
punidos antes de uma condenação em um processo resguardado (“PIDCP”), a reforma almejava (i) aprimorar a avaliação da legalidade
pelo devido processo legal.3 Essa aversão à punição de pessoas de prisões e da necessidade de medidas cautelares, (ii) facilitar a
presumidas inocentes, aliada ao risco de que a prisão provisória, como identificação e investigação de alegações de violência policial e (iii)
medida gravíssima, converta-se em punição antecipada justifica a assegurar uma análise judicial sem demora de todas as prisões.
sua limitação a casos excepcionais. Em segundo lugar, literatura Apesar da resistência de alguns setores, em parte pelo fato de a
empírica crescente tem revelado os efeitos negativos da prisão introdução das audiências de custódia ter se dado por iniciativa do
provisória no resultado de processos e na vida futura dos presos.4 Judiciário e sem um reforma legislativa, o Supremo Tribunal Federal
Especificamente, pesquisas revelam que réus presos têm maiores (“STF”) ratificou as audiências com base na constatação de que já
chances de serem condenados e de receberem sentenças mais integravam o sistema jurídico brasileiro devido à sua previsão na
altas devido, entre outros fatores, à maior dificuldade de preparação CADH e no PIDCP.7
da defesa enquanto preso e à tendência dos atores judicias de os
Hoje, mais de cinco anos depois do início da sua introdução,
verem como mais culpáveis ou perigosos por terem respondido ao
não há dúvidas que as audiências de custódia sejam parte do
processo presos. No que se refere à sua vida futura, réus sujeitos à
cotidiano processual penal do país: mais de 700 mil audiências
prisão provisória têm sua renda mais afetada e são mais propensos
foram realizadas desde 2015,8 o instituto encontra-se consolidado
a serem presos novamente do que réus que aguardam seus
nas 27 unidades federativas e a Lei 13.964/2019 as incorporou ao
processos em liberdade provisória. Por fim, a ausência de finalidade
CPP. As audiências de custódia têm o potencial de abreviar prisões
punitiva da prisão provisória deveria restringir o seu uso aos casos
desnecessárias por melhorarem a avaliação das condições pessoais
em que medidas cautelares alternativas são incapazes de reduzir dos suspeitos, permitir-lhes que ofereçam sua versão dos fatos
satisfatoriamente os riscos cautelares oferecidos pelos suspeitos. diretamente ao juiz e garantir-lhes uma defesa prévia obrigatória.
Diante da dissonância entre o parâmetro legal de excepcionalidade Nesse sentido, as audiências podem ter contribuído para a queda
e a alta taxa de prisão provisória, parte da comunidade jurídica na proporção de presos provisórios no Brasil de aproximadamente
busca soluções para reduzir e racionalizar a administração da prisão 40%, em 2014, para 34% em 2019,9 porém a confirmação de tal efeito
preventiva – medida cautelar responsável pela vasta maioria dos aparente das audiências ainda necessita corroboração por meio de
casos de prisão provisória. Parte das soluções propostas procuram um estudo empírico rigoroso.10
conformar regras específicas da prisão preventiva à jurisprudência Não obstante, desafios permanecem no que tange à universalização
do SIDH, a exemplo da proposta de reformar o Código de Processo e eficácia das audiências de custódia. A universalização enfrenta,
Penal (“CPP”) para prever uma duração máxima a essa medida e como principais obstáculos, a interiorização – já que desde o
sua revisão periódica. Em um nível estrutural, contudo, o SIDH – e início da reforma houve uma concentração de recursos e esforços
o Direito Internacional dos Direitos Humanos (“DIDH”) em geral – nas capitais – e o uso de videoconferência – que levanta sérias
tende a não oferecer suporte a propostas de reformas amplas por preocupações em face do requisito da CADH de que a audiência
não expressar preferência por uma tradição ou outra de processo seja presencial. De maneira mais aguda, a eficácia das audiências
penal.5 Uma exceção marcante de obrigação processual penal depende de uma melhora: (a) na qualidade da informação sobre o
estrutural imposta pelo SIDH capaz de reduzir prisão preventiva é suposto crime e vida pregressa do suspeito disponibilizada aos atores
a audiência de custódia, fundamentada no direito de toda pessoa judiciais; (b) na estrutura judiciária, para que sejam assegurados os
presa de ser levada à presença de um juiz imediatamente após a direitos à consulta livre e privada com o defensor, à interpretação e à
prisão (artigo 7.5 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos dignidade no que se refere ao tratamento dispensado aos suspeitos
(“CADH”)). Além disso, alguns parâmetros desenvolvidos pela Corte (artigos 8.2, caput, 8.2(a) e 8.2(d) da CADH); e (c) na postura dos
Interamericana de Direitos Humanos (“CtIDH”) para interpretação atores judiciais em relação ao questionamento e à valoração das
do direito a um juiz imparcial (artigo 8.1 da CADH) podem fornecer respostas dos suspeitos em argumentos orais e decisões.11
base à defesa da reforma do CPP para prever o juiz de garantias.
Por fim, para se evitar que os avanços das audiências na proteção
As seções seguintes analisam a introdução das audiências de da liberdade pessoal sejam afetados pelo seu potencial risco de
custódia no país e o atual debate acerca dos juízes de garantias, comprometer a imparcialidade do juiz do processo, é necessário
juntamente com as demais mudanças relevantes introduzidas que as respostas dadas pelo suspeito durante a audiência de
pela Lei 13.964/2019, bem como abordam reformas adicionais custódia – momento em que a denúncia não foi nem oferecida –
necessárias para reduzir e racionalizar a administração da prisão não possam ser usadas como elemento probatório, bem como que
preventiva no Brasil. Essa análise é feita principalmente com base o juiz do processo não seja o mesmo juiz da audiência de custódia.
nos casos contenciosos da CtIDH (e.g., Jenkins vs. Argentina e Norín Relacionada à essa preocupação com a imparcialidade judicial,
Catriman et al. vs. Chile) e nos relatórios da CIDH (Informe sobre el discute-se atualmente no país a implementação do juiz de garantias.
Uso de la Prisión Preventiva en las Américas e Medidas para Reduzir a
Juiz de Garantias
Prisão Preventiva), que compilam a jurisprudência interamericana e
oferecem parâmetros e boas práticas para os Estados desenvolverem Como parte das reformas da presidência bolsonarista, a Lei
novas estratégias. 13.964/2019 (conhecido como “Pacote Anticrime”) entrou em
Audiência de Custódia
vigor em 23 de janeiro deste ano, contendo um misto de medidas
garantistas e restritivas de direitos. No campo da prisão provisória,
Em meio à crescente preocupação com a natureza disseminada além de algumas reformas específicas, positivas e negativas,
de abusos relacionados à prisão preventiva e violência policial, o analisadas na seção seguinte, há argumentos plausíveis, que
Conselho Nacional de Justiça (“CNJ”) começou a assinar acordos justificam a hipótese de que a reforma estrutural de inclusão do
com tribunais estaduais e federais, em fevereiro de 2015, para juiz de garantias no processo penal – atualmente suspensa por
implementar progressivamente a análise judicial presencial dentro decisão do STF12 – pode gerar um efeito positivo na administração

32

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


de medidas cautelares. artigo 310 § 2° do CPP (prisão preventiva obrigatória ao reincidente,
integrante de organização criminosa armada ou milícia, ou portador
Essa reforma, que encontra algum apoio em parâmetros
de arma de fogo de uso restrito) e do artigo 44, caput, da Lei
interpretativos desenvolvidos pela CtIDH,13 separa as funções
11.343/2006 (prisão preventiva obrigatória ao acusado de tráfico de
judiciais pré-processuais e processuais entre o “juiz das garantias” e
drogas e condutas afins), neste caso para reforçar a jurisprudência
o “juiz da instrução e julgamento”, ficando o primeiro encarregado do
do STF com status de repercussão geral de inconstitucionalidade,16
controle da legalidade da investigação criminal. O principal objetivo
que muitos operadores do direito insistem em ignorar. Finalmente,
dessa nova estrutura, conforme os pareceres legislativos ao projeto
é de ordem que o CPP preveja uma duração máxima à prisão
de lei, é garantir a imparcialidade do juiz do processo, o qual não
preventiva e a sua revisão periódica obrigatória à luz do paradigma
mais abordaria o mérito do caso influenciado pelas informações
de que quanto maior o tempo de prisão mais fortes devem ser os
recebidas e decisões tomadas na etapa pré-processual.
indícios justificadores da sua manutenção.17
Uma dimensão menos analisada dessa reforma são os seus efeitos
Conquanto essenciais, reformas dogmáticas, como as propostas no
pré-julgamento. Especificamente em relação à condição cautelar
parágrafo anterior, têm a eficácia condicionada à qualidade da sua
(liberdade ou prisão) dos suspeitos, a criação do juiz de garantias
implementação, a qual, por sua vez, depende do aporte de recursos
tem o potencial de reduzir prisões pois: (i) o reforço à desvinculação
materiais e humanos e da cultura jurídica dos operadores do direito.
da decisão cautelar pré-processual do mérito pode desincentivar o
Uma área prioritária para a destinação de recursos financeiros deve
uso da prisão preventiva para fins punitivos, já que o juiz de garantias
ser a operacionalização de medidas cautelares alternativas. Isso
não julgará os suspeitos; e (ii) a adição de outro juiz na tomada de
porque a sua indisponibilidade (e.g., monitoramento eletrônico) ou
decisão sobre a condição cautelar do suspeito, somada ao fato de
ineficácia (e.g., recolhimento domiciliar noturno) limita a discussão
que juízes tendem a ser deferentes a decisões de outros juízes, pode
sobre medida cautelares a uma escolha dicotômica – prisão
levar à manutenção, pelo juiz do processo, de eventual liberdade
provisória concedida pelo juiz de garantias. Tais razões reforçam preventiva ou liberdade provisória com medidas de baixíssima
a importância da implementação do juiz de garantias. Por outro supervisão ou dissuasão –, o que facilita o uso da prisão preventiva
lado, a hipótese de que tal reforma reduziria abusos relacionados em casos em que medidas menos restritivas, e até mesmo menos
à prisão preventiva requer confirmação empírica e a existência do custosas, seriam suficientes caso estivessem disponíveis.18 Esse
juiz de garantias na justiça estadual da cidade de São Paulo há investimento em cautelares alternativas deve, todavia, focar-se em
décadas – refutando o argumento de impossibilidade administrativa combater excessos na imposição de prisão preventiva e não em
– revela que tal reforma não necessariamente eliminaria exageros restringir os direitos de pessoas que responderiam ao processo em
em decisões sobre cautelares. regime cautelar mais brando na ausência de tal investimento. No
que tange à cultura jurídica, é imprescindível que os operadores do
Reformas Adicionais direito (1) incorporem em suas práticas a jurisprudência das cortes
superiores e do SIDH acerca dos limites à prisão preventiva, (2)
Embora a audiência de custódia, o juiz de garantias e algumas das
abstenham-se de recorrer a estereótipos de pessoas perigosas e
mudanças pontuais da Lei 13.964/2019 sejam aptos a combater
de tratar suspeitos de maneira incompatível com sua condição de
abusos na imposição de medidas cautelares, tais instrumentos
presumidos inocentes e (3) sejam críticos a elementos indiciários
são insuficientes para tornar a prisão provisória excepcional no
sem corroboração de fontes não policiais ou obtidos em potencial
Brasil. Analisam-se a seguir possíveis reformas adicionais capazes
violação ao direito à privacidade e à vedação à autoincriminação.
de aproximar a realidade do país da excepcionalidade na custódia
cautelar. Finalmente, valendo-se dos avanços estatísticos e tecnológicos
e da experiência norte-americana,19 a introdução no Brasil de um
Do ponto de vista normativo, o SIDH autoriza que Estados decretem
mecanismo de avaliação atuarial de riscos processuais (“AARP”)
a prisão provisória apenas para conter riscos de natureza processual
oferecidos pelo suspeito, i.e., risco de obstrução processual e risco poderia aprimorar o processo decisório sobre medidas cautelares.
de fuga (ver o recente caso Jenkins vs. Argentina),14 previstos em Essa técnica atribui aos suspeitos uma probabilidade de violação
relação à prisão preventiva no artigo 312 do CPP, respectivamente, da liberdade provisória com base em determinados elementos do
nos fundamentos de “conveniência da instrução criminal” e caso, tendo em vista a observação do comportamento de outros
“garantia da aplicação da lei penal”. Assim, o SIDH desautoriza a suspeitos no passado. O termo atuarial diferencia tal técnica
prisão provisória para conter os riscos de cometimento de crimes das avaliações clínicas de risco, que se baseiam na experiência e
e de percepção pública de impunidade – ambos de natureza instinto dos operadores do direito. O potencial da AARP de reduzir
eminentemente não-processual. Em violação a tal entendimento, prisões preventivas decorre da sua maior capacidade preditiva,
prisões preventivas com objetivos não-processuais são decretadas que permitiria aos juízes concederem liberdade provisória a mais
no Brasil para a “garantia da ordem pública” e, em menor medida, suspeitos sem aumentarem a quantidade de violações da liberdade
a “da ordem econômica”. A Lei 13.964/2019 avançou ao requerer provisória.20 Os benefícios adicionais da AARP são a sua habilidade
“indício suficiente (...) de perigo gerado pelo estado de liberdade do de neutralizar disparidades decisórias entre os juízes e de ampliar
imputado” e a “existência concreta de fatos novos ou contemporâneos”, a transparência no processo decisório. A despeito do seu apelo
que justifiquem a prisão preventiva e ao vetá-la “com a finalidade de futurístico, a adoção da AARP, em si, não garante a redução do
antecipação (...) de pena ou como decorrência imediata de investigação uso de prisão preventiva e apresenta seus próprios riscos. Como
criminal ou da apresentação ou recebimento da denúncia”. O próximo uma ferramenta estatística, a efetividade da AARP está vinculada
passo deve ser a revogação do fundamento de “ordem pública”, já ao propósito para o qual é aplicada, à qualidade dos dados
que a sua manutenção permite — com um exercício de retórica para disponíveis e ao modo como é utilizada.21 Nas mãos certas, contudo,
evitar a incidência das novas regras — a continuação de práticas a AARP poderia ser um instrumento poderoso capaz de impactar
abusivas tal como prisões preventivas devido ao risco de reiteração positivamente a administração de medidas cautelares no Brasil.22
criminosa. Além disso, e conforme já decidido pelo SIDH,15 vedações
Considerações Finais
em abstrato à liberdade provisória de categorias de suspeitos são
não-convencionais. Portanto, é necessária também a revogação do As altas taxas de prisão provisória no Brasil e a inevitável tensão

33

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


dessa medida cautelar com a presunção de inocência estimulam uma panaceia, já que sua eficácia é fortemente condicionada a
uma constante reflexão sobre estratégias que sejam capazes de mudanças paralelas na cultura jurídica dos seus participantes e
coibir abusos no encarceramento cautelar. Medidas estruturais, aos recursos destinados ao seu funcionamento. Nesse sentido,
como a audiência de custódia e o juiz de garantias, têm o potencial espera-se que este artigo tenha contribuído para a construção de
de contribuir para o combate de tais abusos por serem menos uma abordagem holística de enfrentamento dos desafios da prisão
suscetíveis à relativização ou rechaço por vias interpretativas em provisória, por meio da análise de recentes reformas e possíveis
relação a mudanças estritamente normativas. Não são, contudo, próximos passos.

NOTAS
1
BRASIL. Ministério da Justiça, Levantamento Nacional de Informações recusa de um desembargador, por ter participado na instrução do processo,
Penitenciárias – Infopen, Painel Interativo junho/2019, p. 12. Disponível em: violaria o direito a um recurso judicial (artigo 25.1 da CADH), a CtIDH não deu
<http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen>. Acesso em: 08 abr. indicações de que tal acúmulo de funções potencialmente violaria o artigo
2020. 8.1 da CADH. Caso Romero Feris vs. Argentina, n. 391, 15 out. 2019, parágrafos
2
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Herrera Espinoza y otros 170-175. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/
vs. Ecuador, n. 316, 01 set. 2016, parágrafos 146 e 148. Disponível em: <https:// seriec_391_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020. A pesquisa para este artigo
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_316_esp.pdf>. Acesso em: não encontrou uma decisão da CtIDH em que a ausência do juiz de garantias
08 abr. 2020. foi considerada uma violação do direito a um juiz imparcial. Apenas casos
3
OEA. Comissão Interamericana de Diretios Humanos, Informe sobre el Uso de de justiça militar, em que foi decidido que a concentração das atividades de
la Prisión Preventiva en las Américas, 2013. Disponível em: <http://www.oas. investigação e julgamento nas forças armadas comprometeu a imparcialidade
org/es/cidh/ppl/informes/pdfs/informe-pp-2013-es.pdf>. Acesso em: 08 abr. dos juízes militares. E.g., Caso Castillo Petruzzi y otros vs. Perú, n. 52, 30 maio
2020. 1999, parágrafo 130. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
4
DITELLA, Rafael; SCHARGRODSKY Ernesto. Criminal Recidivism after Prison articulos/seriec_52_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020.
and Electronic Monitoring. Jounal of Political Economy, 2013; DOBBIE, Will; 14
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Jenkins vs. Argentina,
GOLDIN, Jacob; YANG, Crystal S YANG, Crystal S. The Effects of Pre-Trial n. 397, 26 nov. 2019, parágrafo 76. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/
Detention on Conviction, Future Crime, and Employment: Evidence from docs/casos/articulos/seriec_397_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020.
Randomly Assigned Judges. American Economic Reviews, 2018; LESLIE, 15
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Pollo Rivera y otros vs.
Emily; POPE, Nolan G.. The Unintended Impact of Pretrial Detention on Case Perú, n. 319, 21 out. 2016, parágrafo 125. Disponível em: <http://www.corteidh.
Outcomes: Evidence from NYC Arraignments. Journal of Law and Economics, or.cr/docs/casos/articulos/seriec_319_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020;
2017; HEATON, Paul; MAYON, Sandra; STEVENSON, Megan. The Downstream OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso López Álvarez vs.
Consequences of Misdemeanor Pretrial Detention. Stanford Law Review, Honduras, n. 141, 01 fev. 2006, parágrafo 81. Disponível em: <https://www.
2017; TITAEV, Kirill D. Pretrial detention in Russian criminal courts: a statistical corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_141_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr.
analysis. International Journal of Comparative and Applied Criminal Justice, 2017; 2020; OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Acosta Calderón
e WERMINK, Hilde et al. The Influence of Detailed Offender Characteristics vs. Ecuador, n. 129, 24 de jun. 2005, parágrafo 135. Disponível em: <http://www.
on Consecutive Criminal Processing Decisions in the Netherlands, Crime & corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_129_esp1.pdf>. Acesso em: 08
Delinquency, 2017. abr. 2020.
5
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Fermín Ramírez vs. 16
BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Plenário Virtual no Recurso Extraordinário
Guatemala, n. 126, 20 jun. 2005, parágrafo 66. Disponível em: <http://www. 1.038.925. Relator Ministro Gilmar Mendes, Pesquisa de Jurisprudência, 18 de
corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_126_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. ago. 2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/
2020. Nesses casos, cabe aos Estados estruturarem o processo penal conforme pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 08 abr. 2020.
desejado domesticamente, nos limites das garantias da CADH. 17
OEA. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Norín Catrimán y otros
6
Ver a linha do tempo do “Projeto Audiências de Custódia” em <https://www. vs. Chile, n. 279, 29 maio 2014, parágrafo 311(c). Disponível em: <https://www.
cnj.jus.br/sistema-carcerario/audiencia-de-custodia/sobre/>. Acesso em: 08 corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_279_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr.
abr. 2020. 2020.
7
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.240/ 18
OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Medidas para Reduzir a
DF- Distrito Federal. Relator Ministro Luiz Fux, Pesquisa de Jurisprudência, 20 Prisão Preventiva, 2017, p. 84. Disponível em: <http://www.oas.org/pt/cidh/
ago. 2015. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/ relatorios/pdfs/PrisaoPreventiva.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020.
pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 08 abr. 2020. 19
Para um panorama do uso de tal instrumento nos Estados Unidos, ver
8
TOFFOLI, José Antônio Dias. Cinco anos de audiência de custódia: mitos e STEVENSON, Megan. Assessing Risk Assessment in Action, Minnesota Law
verdades, Consultor Jurídico, 24 fev. 2020. Disponível em: <https://www.conjur. Review, 2018.
com.br/2020-fev-24/dias-toffoli-cinco-anos-audiencia-custodia-mitos- 20
VILJOEN, Jodi L. et al. Impact of Risk Assessment Instruments on Rates of
verdades >. Acesso em: 08 abr. 2020. Pretrial Detention, Postconviction Placements, and Release: A Systematic
9 Ver nota 1. Review and Meta-Analysis. Law & Human Behavior, 2019. O trabalho consiste
10 Parte da tese de doutorado do autor do presente artigo objetiva mensurar na realizado de uma meta-análise de estudos e conclui que a probabilidade dos
por meio de regressões múltiplas o efeito que a introdução das audiências de suspeitos de serem mantidos em prisão provisória caiu pela metade quando a
custódia teve na proporção de decisões de prisão preventiva. avaliação atuarial de riscos processuais foi utilizada.
11 NASCIMENTO DOS REIS, Thiago. Presos no Palco: Avanços e Desafios 21
Por exemplo, ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Bureau of Justice Assistance,
das Audiências de Custódia Recém-Implementadas na Justiça Estadual da Mamalian, Cynthia A. State of the Science of Pretrial Risk Assessment, 2011
Cidade de São Paulo, 2017. 128 p. Dissertação (mestrado), Escola de Direitos (observando que 48% dos programas de AARP não haviam validados os
da Universidade de Stanford, Stanford, 2017. Versão publicada disponível em: seus instrumentos nas jurisdições em que eram utilizados); e TONRY, Michael.
<https://law.stanford.edu/wp-content/uploads/2017/09/Thiago-Nasci Legal and Ethical Issues in the Prediction of Recidivism, Federal Sentencing
mento-dos-Reis-Presos-no-Palco-Tese-SPILS.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020. Review, 2014 (notando que a inclusão de fatores aparentemente neutros como
12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar nas Ações Diretas de a idade do suspeito na primeira prisão e o total de prisões poderia introduzir
Inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305/DF – Distrito Federal. Relator disparidades raciais nos algoritmos).
Ministro Luiz Fux, Pesquisa de Jurisprudência, 22 jan. 2020. Disponível em: 22
A CIDH reconheceu a importância da iniciativa do estado norte-americana
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. do Alaska de elaborar “uma metodologia padronizada de avaliação de riscos.”
Acesso em: 08 abr. 2020. OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Medidas para Reduzir
13 Ver os parâmetros gerais sobre imparcialidade judicial em OEA. Corte a Prisão Preventiva, 2017, parágrafo 54. Disponível em: <http://www.oas.org/
Interamericana de Direitos Humanos. Caso Rosadio Villavivencio vs. Perú, n. 388, pt/cidh/relatorios/pdfs/PrisaoPreventiva.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020.
14 out. 2019, parágrafo 186. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/ Esse reconhecimento é um suporte à introdução da AAPR, pois esta última se
casos/articulos/seriec_388_esp.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2020. Note, porém, trata da maneira mais sofisticada de realizar tal metodologia padronizada para
que, quando confrontada com a alegação de que a rejeição de um pedido de avaliação de riscos.

Autor convidado

34

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661


DIRETORIA EXECUTIVA
Presidenta: Eleonora Rangel Nacif
1.º Vice-Presidente: Bruno Shimizu
2.º Vice-Presidente: Helios Alejandro Nogués Moyano
1.ª Secretária: Andréa Cristina D´Angelo
2.º Secretário: Luís Carlos Valois
1.º Tesoureiro: Gabriel de Freitas Queiroz
2.º Tesoureiro: Yuri Felix
Diretora Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais:
Carla Silene Cardoso Lisboa Bernardo Gomes

CONSELHO CONSULTIVO
Cristiano Avila Maronna
Ela Wiecko Volkmer de Castilho
Geraldo Prado
Sérgio Salomão Shecaira

OUVIDORA
Fabiana Zanatta Viana

BOLETIM IBCCRIM - ISSN 1676-3661


CONSELHO EDITORIAL: Ana Elisa Liberatore Silva Bechara, Aury Lopes Jr., Juarez Cirino dos Santos
e Sérgio Salomão Shecaira, Luis Fernando Niño, Vera Malaguti Batista eVera Regina Pereira de Andrade.
EDITOR-CHEFE: Luigi Giuseppe Barbieri Ferrarini.
EDITORES/AS ASISSTENTES: Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane
Ayumi Kassada, Danilo Dias Ticami, Erica do Amaral Matos, Isabel Penido de Campos Machado, Surrailly
Fernandes Youssef e Roberto Portugal de Biazi.
EDITORES EXECUTIVOS: Helen Christo e Willians Meneses.
EXPEDIENTE EDITORIAL: Diretoria do IBCCRIM
CORPO DE PARECERISTAS DESTA EDIÇÃO:
Adriana Silva Gregorut (FGV – São Paulo/SP), Antonio Baptista Gonçalves (PUC – São Paulo/SP),
Christiane Heloisa Kalb (UFSC - Florianopolis/SC), Claudio Ribeiro Lopes (UFMS – Três Lagoas/MS),
Cristiano de Barros Santos Silva (USP - São Paulo/SP), Dayane Aparecida Fanti Tangerino (USP - São
Paulo/SP), Joel de Freitas (FMU – São Paulo/SP), Keity M F S Saboya (UFRN – Natal/RN), Lucas e
Silva Batista Pilau (UFRGS - Porto Alegre/RS), Paulo Gustavo Lima e Silva Rodrigues (UFAL – Maceió/
AL), Rafael Fecury Nogueira (USP - São Paulo/SP), Sarah Merçon Vargas (USP - São Paulo/SP).

PRODUÇÃO GRÁFICA E CAPA: p2g.studio | Tel.: (11) 2400-0038 | E-mail: contato@p2g.studio


REVISÃO: Rogério Pelizzari de Andrade | E-mail: rpelizzari@usp.br
IMPRESSÃO: Eskenazi Indústria Gráfica | Tel: (11) 98424-0654

O Boletim do IBCCRIM circula exclusivamente entre os associados e membros de entidades


conveniadas. O conteúdo dos artigos publicados expressa a opinião dos autores, pela qual respondem,
e não apresenta necessariamente a opinião deste Instituto.

ENDEREÇO DO IBCCRIM:
Rua Onze de Agosto, nº 52, 2º andar, CEP 01018-010, S. Paulo/SP
Tel.: (11) 3111-1040 (tronco-chave)
www.ibccrim.org.br

35

BOLETIM IBCCRIM - ANO 28 - N.º 330 - MAIO DE 2020 - ISSN 1676-3661

Você também pode gostar

pFad - Phonifier reborn

Pfad - The Proxy pFad of © 2024 Garber Painting. All rights reserved.

Note: This service is not intended for secure transactions such as banking, social media, email, or purchasing. Use at your own risk. We assume no liability whatsoever for broken pages.


Alternative Proxies:

Alternative Proxy

pFad Proxy

pFad v3 Proxy

pFad v4 Proxy