O Negocio Da Comida

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ESTHER VIVAS

O NEGÓCIO DA
COMIDA
QUEM CONTROLA NOSSA ALIMENTAÇÃO?
ESTHER VIVAS ESTEVE

O NEGÓCIO DA COMIDA
Quem controla nossa alimentação?

1ª edição

EXPRESSÃO POPULAR

São Paulo • 2017


Copyright © 2017, by Editora Expressão Popular
© 2014, Icaria editorial

Projeto gráfico e diagramação: ZAP Design


Revisão: Joana Tavares e Nilton Viana
Tradução: Omar Rocha ?
Título original: El negocio de la comida. Quién controla nuestra alimentación?
Impressão: Graphium

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorização da editora.

Os direitos autorais desta obra foram cedidos pela autora e pela


Icaria editorial para a Editora Expressão Popular.

1a edição: outubro de 2017

EXPRESSÃO POPULAR
Rua Abolição, 201 – Bela Vista
CEP 01319-010 – São Paulo – SP
Tel: (11) 3112-0941 / 3105-9500
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SUM Á R IO

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA............................................................... 7


INTRODUÇÃO................................................................................................. 21
OS JOGOS DA FOME....................................................................................... 23
DE ONDE VEM O QUE COMEMOS?........................................................... 43
ADEUS AO CAMPESINATO?.......................................................................... 63
AGRICULTURA E ALIMENTAÇÃO, NOMES DE MULHER.................... 79
TRANSGÊNICOS NÃO, OBRIGADO!.......................................................... 95
ESTÃO NOS ADOECENDO!..........................................................................117
SOBRE ANIMAIS E PEIXES.......................................................................... 133
OS BASTIDORES DO AGRONEGÓCIO.....................................................151
O PODER DOS SUPERMERCADOS............................................................169
SIM, EXISTEM ALTERNATIVAS!.................................................................191
O QUE ENTENDEMOS POR COMÉRCIO JUSTO?..................................217
PASSAR À AÇÃO.............................................................................................. 237
BIBLIOGRAFIA................................................................................................255
PR EFÁCIO À EDIÇ ÃO BR A SILEIR A

Andei pelo mundo afora


querendo tanto encontrar
um lugar prá ser contente
onde eu pudesse mudar.
Mas a vida não mudava
mudando só de lugar.
Geraldo Vandré, De como um homem
perdeu seu cavalo e continuou a andar

“Comer é um ato político!”. Se assim o compreendemos, temos


o dever de conhecer ao máximo seu conteúdo e significado. É isso
que almejamos ao trazer ao público brasileiro o livro O negócio da
comida: quem controla a nossa alimentação?, da jornalista, socióloga
e ativista Esther Vivas, publicado originalmente na Espanha, em
2014, pela Icaria Editorial, já em sua terceira edição.
Organizado didaticamente em 12 capítulos, o livro se propõe
a desvendar as entranhas do sistema agroalimentar capitalista: o
que comemos é mercadoria (!) que realiza valor no ato de compra-
-consumo, e o alimento que colocamos no prato é proporcional
ao dinheiro que o compra alienando a mercadoria-alimento.
Resultado: também nos transformamos em “mercadoria”, uma
vez que somos o que compramos-consumimos. Essa lógica capi-
talista na qual o alimento está inserido é a mesma que produz as
desigualdades econômicas e sociais. Não importa que milhões
passem fome ou se alimentem inadequadamente gerando um
mundo de famélicos ou obesos.
Pr efácio à ediç ão br a sil eir a

Uma visão panorâmica do negócio da comida


Em consonância com a narrativa da autora, sem rodeios e direta
ao ponto, trazemos algumas considerações em torno do que entende-
mos como os principais eixos que estruturam este livro. Depois disso,
traçamos algumas breves notas sobre o contexto geral da agricultura
vinculado à realidade brasileira, com suas particularidades.

Sabores e saberes expropriados


Um importante fato neste contexto alimentar é que vão nos
impondo uma comida cada vez mais padronizada. Além da
“mcdonaldização” das nossas sociedades e do consumo global
de Coca-Cola, a ingestão mundial de alimentos depende cada
vez mais de algumas poucas variedades de culturas. Ou seja,
avançamos para um mundo com mais alimentos, mas com menor
diversidade e segurança alimentar.
Vivas aponta os prejuízos sociais, nutricionais e ambientais de
uma alimentação “viciada”, por exemplo, no consumo de carne, em
produtos lácteos e bebidas com açúcar. São os mercados alimentares
com claros interesses comerciais. Assim, perde-se a diversidade agrí-
cola, com consequências ecológicas e culturais. O saber camponês,
ao longo dos séculos, foi melhorando as variedades, adaptando-as
às diversas condições agroecológicas a partir de práticas tradicio-
nais, como a seleção de sementes e cruzamentos para desenvolver
culturas. Mas a situação atual caminha para o desaparecimento
de sabores, de nutrientes das plantas e de conhecimentos gastro-
nômicos, além de ameaçar a segurança alimentar ao depender de
algumas poucas culturas e espécies de gado.

A carne nossa de cada dia


A carne tornou-se indispensável em nossas refeições. Parece
que não podemos viver sem ela. Se há alguns anos seu consumo

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Pr efácio à ediç ão br a sil eir a

era um privilégio, hoje tornou-se um hábito diário. Talvez até


demasiado comum.
No que tange à pecuária, a autora demonstra como o setor
tornou-se uma parte fundamental do sistema alimentar atual, inves-
tindo num modelo industrial e intensivo que tem sido chamado de
“revolução pecuária”. Este sistema implica um aumento exponencial
da produção e consumo de carnes e produtos derivados, seguindo
o mesmo padrão produtivista da “revolução verde” na agricultura
(uso intensivo da terra, insumos químicos, “melhoria” genética
etc.), ao mesmo tempo que modifica nossa dieta.
Um modelo que promove a concentração empresarial, deixan-
do para um punhado de empresas transnacionais a capacidade de
decidir quais carnes e derivados consumimos, o quanto e como
elas são processadas.

Transgênicos e agrotóxicos
A propagação de sementes híbridas e transgênicas foi outro
mecanismo usado para controlar sua comercialização. As semen-
tes geneticamente modificadas também contaminam variedades
tradicionais – através do ar e da polinização – condenando-as ao
desaparecimento e impondo um modelo de alimento nas mãos do
agronegócio. Segundo a autora, Syngenta, Bayer, Basf, Dow Che-
mical, Monsanto e DuPont controlam 60% do mercado mundial
de sementes que está extremamente monopolizado. De acordo
com o Grupo ETC, a Monsanto além de ser a maior empresa de
sementes no mundo é, ao mesmo tempo, a quarta maior produtora
de pesticidas e a quinta maior empresa agroquímica do mundo.
Ou seja, as mesmas empresas que vendem ao agricultor as sementes
híbridas e transgênicas são as que lhes fornecem os pesticidas.
Frente a este cenário, os movimentos sociais no Brasil e em
várias partes do mundo, através da Via Campesina, têm travado

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Pr efácio à ediç ão br a sil eir a

lutas contra esse modelo. Como se pode encontrar ao longo da


obra, são diversos os exemplos de resistência. Nas palavras de João
Pedro Stedile, da Direção Nacional do Movimento dos Traba-
lhadores Rurais Sem Terra (MST), “a função principal da terra
e da nossa sonhada Reforma Agrária é a produção de alimentos,
mas não quaisquer alimentos: alimentos sem veneno. Pois esse
alimento não pode ser mercadoria, ele é um direito”. *

Dependência do petróleo
Outro tópico certeiramente incluído pela autora dentro do
esquema do negócio da comida diz respeito aos deslocamentos
das mercadorias alimentares em escala global. O sistema vigente
tornou a agricultura industrial dependente do petróleo. Precisa-
-se dele desde o cultivo, passando pela colheita e chegando na
comercialização e consumo.
A mecanização dos sistemas agrícolas e o uso intensivo de
fertilizantes químicos e pesticidas são os melhores exemplos.
Esta política privatizou a agricultura, deixando agricultores e
consumidores à mercê de umas poucas empresas do agronegócio.
O sistema agrícola atual precisa de altas doses de fertilizantes
feitos à base de petróleo e gás natural, tais como a amônia, a
ureia etc., que substituem os nutrientes do solo. Transnacionais
petrolíferas como Repsol, Exxon Mobile, Shell, Petrobras têm
em sua carteira investimentos na produção e comercialização de
fertilizantes agrícolas.
O petróleo também é intensamente demandado para dar
conta dos transportes dos alimentos. A globalização alimentar e

* Fala de João Pedro Stedile durante a Conferência “Alimentação Saudável: um


Direito de Todos e Todas”, que ocorreu dia 6 de maio de 2017, como parte da
programação da 2ª Feira Nacional da Reforma Agrária (www.mst.org.br).

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Pr efácio à ediç ão br a sil eir a

a deslocalização da agricultura nos impõe “alimentos viajantes”.


Esther Vivas traz a estimativa, de acordo com um relatório da
Fundação Terra, de que a maioria dos alimentos viaja entre 2.500
e 4 mil km antes de serem consumidos, 25% mais do que em
1980. Ou seja, os chamados alimentos quilométricos tornaram-
-se parte da dieta diária. Assim, nos alimentamos de produtos
que trazem vários elementos, entre eles a injustiça para com as
pessoas, os animais e o meio ambiente.

A permanência dos impérios da junk food


Outro dado importante que a autora nos traz é que “a cada
segundo se consomem 18.500 latas ou garrafas de Coca-Cola em
todo o mundo, de acordo com a empresa. O império Coca-Cola
hoje vende suas 500 marcas em mais de 200 países. A transna-
cional já não vende apenas uma bebida, mas muito mais”.
Esbanjando dinheiro em campanhas de marketing de milhões
de dólares, a Coca-Cola vende algo tão precioso como “felici-
dade”, “centelha de vida” ou “um sorriso”. No entanto, como
ilustra Esther Vivas, ainda hoje o currículo de abusos sociais e
trabalhistas da empresa percorre todo o planeta, assim como seus
refrigerantes. As más práticas da empresa são tão globais quanto
a sua marca. A trilha de abusos da Coca-Cola é encontrada em
praticamente todos os cantos do mundo. Mas não é só isso. Tem
também o impacto social e ecológico de suas práticas. Como ela
mesma reconhece: “Coca-Cola é uma empresa de hidratação.
Sem água, não há negócio”. O que Esther investiga são as con-
sequências desse fato:
(...) Para produzir um litro de Coca-Cola, são necessários 3 litros de água,
não só para a bebida em si, como também para lavar garrafas, máquinas
etc., água que é descartada a posteriori como água contaminada, com o
consequente dano ambiental. Para saciar sua sede – uma engarrafadora

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Pr efácio à ediç ão br a sil eir a

de Coca-Cola pode consumir até um milhão de litros de água por dia –,


a empresa toma unilateralmente o controle dos aquíferos que abastecem
comunidades locais, deixando-os sem esse bem tão essencial que é a água.

Outro exemplo batido mas que resiste até hoje “requentando


marmita” de sua fórmula de sucesso é o McDonald’s. Dentro da
rede, a qualidade da sua comida é tão baixa quanto os salários
que paga aos seus trabalhadores. Alimentos de baixo custo para
os consumidores, com nutrientes mínimos. Como sintetiza Vivas,
A mão de obra que explora, a quem paga um salário de miséria, é a
mesma que, com tão pouca renda, só lhe resta comer os McMenus de
4,90 euros. Uma legião de trabalhadores pobres, que saem muito barato
para a empresa, com remuneração suficiente para pagar por um Big Mac
ou um cheeseburger.

Negócio redondo, como diz a autora, e que segue servindo


de paradigma para uma série infindável de novas redes de ali-
mentação.

O papel dos supermercados


Neste sistema alimentar, é imprescindível mencionar o poder
dos grandes supermercados e redes varejistas, atrelando nossa
alimentação aos interesses econômicos de poucos. São essas
empresas que determinam o preço a pagar ao agricultor por seus
produtos e qual o custo a ser cobrado do consumidor. Trata-se de
um oligopólio, em que poucas empresas controlam o setor, que
empobrece a atividade rural, que procura homogeneizar o que
comemos, que precariza as condições de trabalho, acaba com o
comércio local e promove um modelo de consumo insustentável
e irracional.
Os supermercados impõem um modelo de agricultura e ali-
mentação no qual o campesinato não tem lugar. O seu objetivo é
controlar toda a cadeia alimentar, desde a fonte até a boca, reduzir

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Pr efácio à ediç ão br a sil eir a

custos de produção e aumentar o preço final dos alimentos, para


obter o máximo benefício econômico (lucro).
A precarização do trabalho, baixos salários e política antis-
sindical também são frequentes. Uma das cadeias de distribuição
moderna que mais acumula abusos trabalhistas é a Wal-Mart.
Além disso, vários estudos apontam que a abertura destes estabele-
cimentos envolve o encerramento de lojas e o declínio do comércio
local. E, consequentemente, a perda de postos de trabalho.

Outro modelo
A alternativa ao atual sistema passa pela soberania alimentar,
direção para onde convergem os últimos capítulos do livro. Por-
que comer é muito mais que engolir alimentos. Comer de forma
consciente. Saber de onde vem o que está se consumindo, como
o alimento foi elaborado e em quais condições. E por que se paga
um determinado valor por aquele alimento. Ou seja, termos o
controle de nossos hábitos alimentares. Em outras palavras, ser
soberano, poder decidir sobre a nossa alimentação. Esta é a es-
sência da soberania alimentar.
A globalização alimentar, concebida para beneficiar o agro-
negócio e os supermercados, privatizou os bens comuns. Está
extinguindo aqueles que se preocupam em trabalhar a terra, e
transformou os alimentos em um negócio. São políticas que,
amparadas por instituições e tratados internacionais, acabam com
os pequenos e médios agricultores e com as comunidades rurais.
Em função desse cenário, a Via Campesina defende a so-
berania alimentar. Com este conceito se avança para além da
segurança alimentar, pois não só afirma que é preciso que todos
tenham acesso à comida, mas que também tenham acesso aos
meios de produção, aos bens comuns (água, terra, sementes). É
uma aposta na agricultura local e de proximidade, camponesa,

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Pr efácio à ediç ão br a sil eir a

ecológica, sazonal. Ou seja, o direito de cada nação de manter e


desenvolver seus alimentos, tendo em conta a diversidade cultural
e produtiva.

Agricultura camponesa ecológica


Dentro do conceito da soberania alimentar está a agroecolo-
gia, um novo modelo agrícola baseado numa prática que respeita o
ser humano e a natureza sem a utilização de venenos ou insumos
químicos industrializados para aumentar a produtividade do solo.
Tal prática não se restringe apenas à produção, mas também à
distribuição e à circulação dos alimentos. Segundo Olivier de
Schutter, relator especial sobre o direito à alimentação da ONU
entre 2008 e 2014, “é imperativo aplicar a agroecologia para
acabar com as crises alimentares e ajudar a enfrentar os desafios
ligados à pobreza e às alterações climáticas”.
A própria FAO afirma que o uso de pesticidas na agricultura
tem efeitos negativos em vários níveis. Afeta os sistemas aquáticos,
já que sua alta toxicidade e a persistência de químicos degradam
as águas. Afeta a saúde humana, pois a inalação, a ingestão e o
contato com a pele destes produtos químicos incidem no número
de casos de câncer, deformidades congênitas, deficiências no sis-
tema imunológico e mortalidade. E afeta o meio ambiente, com
a morte de organismos, geração de cânceres, tumores e lesões
em animais, através da inibição reprodutiva e o rompimento
endócrino, entre outras.

Os riscos da cooptação
O atual sistema alimentar tem procurado se apropriar da
agroecologia, processo brilhantemente ilustrado pelos exemplos
nesta obra. E uma das estratégias tem sido a cooptação. Ou seja,
a assimilação de sua prática por parte da indústria agroalimentar.

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Pr efácio à ediç ão br a sil eir a

Cada vez mais, grandes empresas do agronegócio e supermer-


cados aderem a esse modelo de agricultura livre de pesticidas e
aditivos químicos sintéticos, esvaziando-a de qualquer pretensão
de mudança social. Seu objetivo é claro: neutralizar a proposta!
Trata-se de uma “agricultura ecológica” a serviço do capital, com
alimentos quilométricos e escassos direitos trabalhistas.
Essa não é a alternativa que defendemos. Queremos uma
agroecologia na qual se mude o modelo agroalimentar. A agricul-
tura ecológica só tem sentido a partir de uma perspectiva social,
local e camponesa, como sempre tem defendido a maioria dos
movimentos sociais e outros de seus impulsionadores.

Comércio justo
Neste contexto alternativo, Vivas argumenta que optar por
um comércio justo – radicalmente transformador das relações
de produção, distribuição e consumo – passa por reinterpretá-
-lo. E levá-lo à prática a partir da demanda política da soberania
alimentar. Mas o comércio justo tem sido utilizado pelas grandes
empresas como um instrumento de marketing empresarial e de
limpeza de imagem. Vendendo uma ínfima parte de seus produtos
de comércio justo, elas pretendem justificar uma prática comer-
cial totalmente injustificável: precarização da força de trabalho,
submissão do pequeno agricultor, exploração do meio ambiente,
promoção de um modelo de consumo insustentável e competição
desleal com o comércio local.

Considerações sobre o sistema alimentar brasileiro

Biodiversidade
O atual sistema alimentar globalizado transformou o alimento
em mercadoria, concentrando o modelo de produção, distribuição e

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Pr efácio à ediç ão br a sil eir a

consumo em algumas transnacionais (do agronegócio, das redes vare-


jistas, dos supermercados). O preço dos alimentos é determinado nas
bolsas de valores – como a Bolsa de Chicago. Neste modelo, se você
não pode comprar, você não conta. O fundamental é vender. Mas
isso nem sempre foi assim, e no futuro não poderá ser desta forma.
Sabemos que os povos da pré-história se alimentavam com
mais de 1.500 espécies de plantas. Há 150 anos a humanidade se
alimentava com produtos de 3 mil espécies vegetais, sendo 90%
delas produzidas e consumidas em seus países de origem. Mas
isso mudou radicalmente nos últimos anos. Entre 1970 e 2008
houve redução em 30% da biodiversidade no mundo. E, desde
essa data, passamos a consumir 50% mais recursos naturais que
nossa capacidade de produção. É o período da implementação
da “revolução verde” – uso intensivo dos agroquímicos na agri-
cultura. Em 2003, apenas 15 espécies respondiam por 90% dos
alimentos vegetais, e apenas quatro cultivos – milho, trigo, arroz
e soja – respondiam por 70% do consumo. Atualmente, são 58
empresas que controlam a produção de alimentos no mundo.
Outras 6 empresas controlam 60% das sementes utilizadas na
agricultura; se voltarmos no tempo, em 1980 nenhuma empresa
de sementes chegava a dominar 1% do mercado mundial. As
práticas de cultivar com diversidade, que ao longo da história
havia promovido a resistência das plantas, conflita-se com a tec-
nologia “Terminator” (sementes estéreis), que vem destruindo os
bancos de sementes, implantando a monocultura e homogenei-
zação, promovendo a vulnerabilidade das plantas e expandindo
a insegurança alimentar. A concentração da terra impacta todo o
sistema alimentar, condição básica para a homogeneização de toda
a cadeia produtiva. Chegamos à síntese da questão apresentada
por Josué de Castro no livro Geografia da fome: a fome é fabricada
pelos homens contra os homens.

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Pr efácio à ediç ão br a sil eir a

Produção e desperdício
Um país consegue a soberania alimentar se produz acima de
250 kg de grãos por habitante/ano. Tomando como referência
estudos da FAO, atualmente são produzidos alimentos suficientes
para alimentar 12 bilhões de pessoas para uma população de 7,2
bilhões. Mas 2 bilhões sofrem de deficiências de micronutrientes
como Ferro, Vitamina A e Iodo, e 1,4 bilhão encontra-se acima
do peso, sendo 500 milhões com problemas de obesidade. O
Brasil conta com 3,4 milhões (1,7% da população) em situação
de insegurança alimentar.
A própria FAO identifica como um dos problemas da crise
alimentar o desperdício de alimentos. São desperdiçados um mon-
tante de US$ 750 bilhões por ano (deste valor, 54% na produção,
pós-colheita e armazenagem; 46% nas etapas de processamento,
distribuição e consumo). Isso equivale a 1,3 bilhão de toneladas
por ano. A Europa é responsável por 222 milhões de toneladas,
o que equivale à produção de alimentos da África Subsaariana.
O Brasil desperdiça 40 mil toneladas por dia, e é importante não
esquecer que 70% da nossa água doce é utilizada na agricultura.

Visão ufanista do agronegócio brasileiro


Entretanto, o fato de se lograr um nível de produção que
qualifica um país como alimentarmente soberano não significa
que este esteja imune às contradições da “globalização”. O caso do
Brasil é exemplo disso. A Associação Brasileira do Agronegócio,*
tomando por base o ano de 2015, afirma que a produção agrobra-
sileira é suficiente para alimentar 1 bilhão de pessoas. O Brasil
produziu uma tonelada de grãos por habitante: 207 milhões de
toneladas. Mais 35 milhões de toneladas de tubérculos, 40 mi-

* http://www.abag.com.br/conteudos/interna/abag-alimentar-o-mundo

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Pr efácio à ediç ão br a sil eir a

lhões de toneladas de frutas, 7 milhões de toneladas de bananas,


19 milhões de toneladas de citrus, 10 milhões de toneladas de
hortaliças, 1 milhão de toneladas de castanhas, amêndoas e nozes
e 34 milhões de toneladas de açúcar. Abate, em 4.850 frigoríficos,
30,6 milhões de bovinos, 39,3 milhões de suínos e quase 6 bilhões
de frangos – sendo que o brasileiro consome 120 kg de carne por
ano, ou o equivalente a 2,5 kg por semana –, mais 32,2 bilhões
de litros de leite, 4,1 bilhões de dúzias de ovos, 38,5 milhões de
toneladas de mel...
A projeção do IBGE para a safra de 2017 remete para uma
produção de 230,3 milhões de toneladas. Deste total, 93,5%
resume-se a três produtos: soja, milho e arroz, utilizando 87,7%
da área agrícola.

Como são produzidos


O IBGE, conforme o Censo de 2006, diz que 16.567.544
de pessoas estão ocupadas no campo (74,4% na agricultura
familiar e 25,6% na patronal). A agricultura ocupa uma área de
65,4 milhões de hectares, ou 8% do território brasileiro. Mas no
processo de produção dos alimentos, foram identificados 785
mil estabelecimentos onde houve uso de agrotóxicos (56% dos
estabelecimentos) sem orientações técnicas, sendo que 15,7% dos
produtores rurais que os aplicaram não sabiam ler ou escrever.
Ainda são utilizados 14 tipos de agrotóxicos no Brasil que são
proibidos nos demais países. Como modelo alternativo, temos
90 mil estabelecimentos (1,8% do total) praticando a agricultura
orgânica.
E mais: em 2011, conforme o Dossiê Abrasco, o Brasil consu-
miu 19% dos agrotóxicos comercializados no mundo. Os Estados
Unidos, 17%. Mas a área de produção agrícola brasileira é cinco
vezes menor que a estadunidense. Isso era equivalente, à época,

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Pr efácio à ediç ão br a sil eir a

a 4,5 litros de agrotóxicos por brasileiro. Este volume de agrotó-


xicos aumentou para 5,2 litros por habitante nas últimas safras.

Onde e o que compramos


Um dos principais elos da cadeia alimentar é a distribuição,
centralizada nas redes de supermercados. Grupos como Pão de
Acúcar, Carrefour e Walmart são as redes de maior faturamento
no Brasil, um total de R$ 114,6 bilhões em 2016, segundo a
Associação Brasileira de Supermercados.* Estas três redes são
responsáveis pela maior parte dos 20 mil produtos com marcas
lançadas anualmente e controlam 50% dos alimentos comer-
cializados no Brasil, segundo a CONAB. Esta concentração do
mercado de alimentos desestabiliza as economias locais, uma
vez que reproduzem a geração de necessidades artificiais em
contraposição aos pequenos mercados que comercializam o que
é produzido na região.
Este padrão de produção de alimentos é insustentável em toda
a cadeia alimentar (da produção ao consumo final). Redução da
biodiversidade, controle das sementes, alto desperdício... Mas
onde buscamos nossos alimentos e o que, em síntese, estamos
consumindo?
A Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação,** que
representa 70% do setor com 32,5 mil empresas e 1,6 milhão de
funcionários, teve faturamento de R$ 624,3 bilhões em 2015.
O Setor Food – cadeia de produção e distribuição de alimentos,
bebidas, insumos, equipamentos e serviços para atender quem se
alimenta fora de sua casa – faturou R$ 154 bilhões. Mas estes não

* http://exame.abril.com.br/negocios/as-50-maiores-redes-de-supermerca-
dos-do-brasil/
** http://www.abia.org.br/vsn/tmp_2.aspx?id=319#sthash.MF3Ccpva.dpbs

19
Pr efácio à ediç ão br a sil eir a

são os dados principais do informe. Atenção ao que segue: entre


2007 e 2015 foram retiradas 309 mil toneladas de gorduras trans
dos alimentos processados e mais 15 mil toneladas de sódio – o
sódio deve ter redução de 28,5 toneladas até 2020.
Para o leitor brasileiro interessado no assunto, recomendamos
a leitura complementar do Guia alimentar para a população
brasileira,* que sugere privilegiar o consumo de alimentos mi-
nimamente processados, com dieta à base de cereais, hortaliças
e frutas, moderando os produtos de origem vegetal. Um bom
contraponto ao que discorremos acima e ao que cada leitor en-
contrará no conteúdo específico do livro.
Assim, a perpectiva exposta por Esther Vivas é a de que é
urgente a ação organizada para conseguirmos alterar a forma de
produção e de circulação dos alimentos, hoje transformados em
negócio lucrativo para grandes e poucas empresas transnacionais.
Apesar de ter como referência a Espanha – o que fica evidente
nos exemplos que utiliza –, a visão panorâmica que ela nos traz
da cadeia alimentar contribui para compreendermos a lógica de
funcionamento do “negócio da comida” e nos provoca a pôr em
prática no nosso cotidiano o fato de que comer é um ato político.

Os editores

* Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_po-


pulacao_brasileira_2ed.pdf

20
INTRODUÇ ÃO

Comer e beber bem se torna algo cada vez mais importante


para nós. Contudo, a nossa comida não depende unicamente das
decisões que tomamos no momento da compra dos alimentos. O
sistema agrícola e alimentar é muito mais complexo do que um
simples modelo de produção de refeições. Embora se apresente
como um mecanismo neutro, ele dissimula uma série de interes-
ses industriais, empresariais e patronais, que determinam o que
comemos – ou seja, o que se pode e o que não se pode comer.
A fome não é uma catástrofe natural, como tentam o tem-
po todo nos fazer acreditar. Assim, o complexo agroindustrial
determina como deve ser a produção de alimentos, como se
produzir, em quais condições e onde deve ser vendido. Ou seja,
é um modelo no qual poucas transnacionais ganham e nós, que
somos a imensa maioria, perdemos.
O objetivo desta obra é analisar as entranhas do sistema
agroalimentar. Vamos navegar nos bastidores do agronegócio e
dos supermercados, para munirmo-nos de informações, dados e
exemplos. Por que os alimentos percorrem milhares de quilôme-
tros, desde o campo até o prato? Por que, em 100 anos, 75% da
diversidade agrícola desapareceu? Por que há fome num mundo
E st her Vi va s E stev e

onde se produz mais comida do que nunca? Por que somos de-
pendentes de “comida-lixo”? Este livro traz respostas para estas
e outras perguntas.
Em vários capítulos analisamos a causa da fome, os mecanismos
que permitem a especulação com os alimentos, a corrida pela terra,
as relações entre pobreza e alimentação, o porquê de uma dieta
globalizada e com alimentos “viajantes”, a conexão entre agricultura
industrial e mudança climática, o desaparecimento do campesina-
to, a fome recorde entre as mulheres, o impacto dos transgênicos,
a consequência do que comemos em nossa saúde, os motivos de
termos uma alimentação baseada no consumo de carne etc.
Assim, entramos nas profundezas do agronegócio, escavando
o lado oculto da Coca-Cola, do McDonald’s, da Panrico e das
telepizzas. Chegamos também nas entranhas dos supermercados,
com atenção especial ao Mercadona – o número um da grande
distribuição espanhola. Vamos mostrar o que eles não querem
que vejamos.
Mas este livro não quer ficar somente na crítica. O seu objetivo
é nos municiar de informação útil, compreensível e valiosa para
“nos indignarmos”. Reunir elementos para que possamos julgar por
nós mesmos – para além do discurso único que nos é imposto, tirar
conclusões e passar à ação. Nesse sentido, apontamos as alternativas
existentes, mostrando que “sim, podemos” alterar as coisas. E tal pers-
pectiva passa pela política da soberania alimentar – como paradigma
alternativo ao sistema agroindustrial –, pela prática da agricultura
ecológica e do comércio justo, com os seus erros e acertos, até ver
como aplicamos estes princípios no nosso dia a dia – nos grupos e
cooperativas de consumo agroecológico, nas hortas urbanas, nos
restaurantes ecológicos escolares, na cozinha slow e comprometida.
Esta obra é um alerta contra a resignação e a vacilação. É
uma chamada ao questionamento, à rebeldia e ao compromisso.

22
OS JOGOS DA FOME

Por que existe a fome?


Vivemos em um mundo de abundância de alimentos. Jean
Ziegler, relator especial sobre o direito à alimentação da Organi-
zação das Nações Unidas entre os anos 2000 e 2008, assinalava
que, no ano de 2007, eram produzidos alimentos para 12 bilhões
de pessoas, enquanto 7,2 bilhões de pessoas habitavam o planeta
(Centro de Noticias ONU, 2011). Comida, sim, temos! Então,
por que é que uma em cada oito pessoas no mundo passa fome?
A emergência alimentar de julho de 2011 no Chifre da África,*
que chegou a afetar mais de 10 milhões de pessoas, colocou em
evidência a fatalidade de uma catástrofe que não tem nada de
natural. Secas, inundações, conflitos bélicos etc. contribuem para
agravar uma situação de vulnerabilidade alimentar extrema, mas
não são os únicos fatores que a explicam.
As fomes no Chifre da África não são novidades. A Somália
vive em situação de insegurança alimentar há 20 anos. Regular-

* Chifre da África, também conhecido como Nordeste Africano e algumas vezes


como península Somali, é uma designação da região do continente africano que
inclui a Somália, a Etiópia, o Djibouti e a Eritreia. (N. E.)
E st her Vi va s E stev e

mente, em nossos confortáveis sofás, somos sensibilizados pelos


meios de comunicação, que nos relembram o impacto dramático
da fome no mundo. Na Etiópia, em 1984, quase 1 milhão de
pessoas morreram; em 1992, cerca de 300 mil somalis morreram
de fome; em 2005, quase 5 milhões de pessoas estiveram à beira
da morte no Malaui, para mencionar apenas alguns casos.

Causas políticas
A fome não é uma fatalidade inevitável que afeta determinados
países. As causas da fome são políticas. Quem controla os recursos
naturais (terra, água, sementes) que permitem a produção de ali-
mentos? Quem se beneficia das políticas agrícolas e alimentares?
As respostas dessas perguntas nos dão uma pista. Os alimentos
se converteram em mercadorias, e sua função principal, que é nos
alimentar, ficou em segundo plano.
A seca, com a consequente perda de colheitas e gado, é
apontada como uma das principais causas da fome no Chifre da
África. Mas como se explica que países como os Estados Unidos
ou a Austrália, que sofrem regularmente de secas severas, não
padeçam de fome? Evidentemente que fenômenos meteorológicos
podem agravar os problemas alimentares, mas não bastam para
explicar as causas da escassez. No que diz respeito à alimentação,
o controle dos recursos naturais é a chave para a compreensão de
quem e para quem se produz.
Em muitos países do Chifre da África, o acesso à terra é um
bem escasso. A compra, em grande escala, de solo fértil por parte
de investidores estrangeiros (agroindústria, governos, fundos es-
peculativos) provocou a expulsão de milhares de agricultores de
suas terras e diminuiu a capacidade desses países de se autoabas-
tecerem. Assim, em plena crise alimentar, enquanto o Programa
Mundial de Alimentos (PMA) tentava dar comida a milhões de

24
O negócio da comida

refugiados no Sudão, se dava o paradoxo: governos estrangeiros


(Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Coreia...) compravam suas
terras para produzir e exportar alimentos (Grain, 2011a).
Lembremo-nos que a Somália, apesar da seca recorrente, foi
um país autossuficiente na produção de alimentos até o final dos
anos 1970. Sua soberania alimentar foi arrebatada nas décadas
posteriores. A partir dos anos 1980, as políticas impostas pelo
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, para
que o país pagasse sua dívida junto ao Clube de Paris, forçaram
a aplicação de um conjunto de medidas de ajuste. Na agricul-
tura, essas medidas implicavam uma política de liberalização
do comércio e abertura de seus mercados, permitindo a entrada
massiva de produtos subsidiados, como o arroz e o trigo. Assim,
transnacionais da agroindústria americana e europeia começaram
a vender seus produtos abaixo do preço de custo, fazendo concor-
rência desleal aos produtores locais. As desvalorizações periódicas
da moeda geraram, também, o aumento dos preços dos insumos,
e o fomento da política de monoculturas para exportação forçou,
gradualmente, o abandono do campo (Chossudovsky, 2003).
Histórias semelhantes aconteceram não só nos países da África,
mas também na América Latina e na Ásia.

Aumento dos preços e especulação


O aumento do preço dos cereais básicos é outro elemento
apontado como fundamental para a fome no Chifre da África em
2011. Na Somália, os preços do milho e do sorgo aumentaram,
respectivamente, 107% e 180% em um ano (de junho de 2010 a
julho de 2011). Na Etiópia, o custo do trigo aumentou 86% em
relação ao ano anterior. E no Quênia, o milho atingiu um valor
89% maior do que em 2010 (World Bank, 2011). Aumentos que
tornaram esses alimentos inacessíveis. Mas quais são as razões

25
E st her Vi va s E stev e

para essa escalada de preços? Vários indícios apontam para a


especulação financeira com matérias-primas alimentares como
uma das causas principais.
O preço dos alimentos é determinado nas bolsas de valores
– como a Bolsa de Chicago, a mais importante do mundo. No
entanto, a maior parte da compra e venda desses bens, feitas
através dos “mercados futuros”,* não corresponde aos intercâm-
bios comerciais reais. Matérias-primas são compradas e vendidas
para especular e fazer negócios, gerando aumento de preços dos
alimentos ao consumidor. Os mesmos bancos, fundos de alto
risco (hedge) e companhias de seguros que causaram a crise das
hipotecas subprime especulam com alimentos, aproveitando-se
de mercados globais desregulamentados e altamente rentáveis.
A crise de alimentos, em geral, e a fome no Chifre da África,
em particular, são os resultados da globalização alimentar a ser-
viço de interesses privados. A cadeia de produção, distribuição e
consumo de alimentos está nas mãos de algumas transnacionais,
que colocam os seus interesses acima das necessidades coletivas.
São essas grandes empresas que, nas últimas décadas, têm cor-
roído, com o apoio dos governos e instituições internacionais, a
capacidade dos Estados do Hemisfério Sul – como também do
Norte – de decidir sobre suas políticas agrícolas e alimentares.

Produção x Acesso
Voltando ao início, por que existe fome em um mundo de
abundância de alimentos? A produção mundial de cereais tripli-
cou desde os anos 1960, enquanto a população mundial apenas
duplicou desde então (Grain, 2008). De fato, não enfrentamos

* Nos “mercados futuros” se compram e vendem desde produtos agrícolas (trigo,


café, soja...) a minerais (ouro, prata, petróleo...).

26
O negócio da comida

um problema de produção de alimentos, mas, sim, um proble-


ma de acesso a eles. Olivier de Schutter (2011), que sucedeu Jean
Ziegler no posto de relator especial sobre o direito à alimentação
da ONU entre os anos de 2008 e 2014, apontava: “A fome é um
problema político. É uma questão de justiça social e de políticas
de redistribuição”. Mais claro impossível!
Jogos Vorazes [The Hunger Games] é o título de um filme de
ficção, dirigido por Gary Ross, baseado no best-seller de Suzanne
Collins, no qual alguns jovens, representando suas comunidades,
tinham de enfrentar a vida e a morte para no final obter o triunfo:
alimentos, bens e presentes para o resto de suas vidas. Às vezes
a realidade não dista tanto da ficção: alguns “brincam” com a
fome para ganhar dinheiro.

A crise alimentar volta a bater à nossa porta


As crises alimentares de 2008 e 2011 mostraram, mais uma
vez, a extrema vulnerabilidade do sistema agroalimentar. O
preço dos alimentos, especialmente dos cereais básicos, alcança-
ram cifras recordes nesse período. Em março de 2008, o preço
médio do trigo em escala mundial foi 130% superior ao do ano
anterior; a soja valia 87% mais; o arroz, 74%, e o milho, 31%
(Holt-Giménez e Patel, 2010). Consequentemente, os alimentos
ficaram praticamente inacessíveis para muitas famílias que vivem
nos países do Hemisfério Sul, que passaram a gastar entre 50%
e 60% de sua renda em comida – chegando a 80% nos países
mais pobres.
As “revoltas da fome”, irrupções em massa de pessoas nas ruas
exigindo o que comer, foram uma constante ao longo de 2008,
devido ao aumento dos preços dos alimentos. Assim, vimos acon-
tecer em países como Marrocos, Senegal, Filipinas, Paquistão,
Haiti, Indonésia (Delcourt, 2009). Nenhum continente ficou de

27
E st her Vi va s E stev e

fora. Em 2011, as revoltas populares que ocorreram no Norte de


África e no Oriente Médio – conhecidas como Primavera Árabe
– também tiveram entre os seus múltiplos detonadores o aumento
do preço dos alimentos.
Quais foram as causas dessa subida de preço? Diversas insti-
tuições e especialistas internacionais apontaram algumas razões,
tais como: o aumento da demanda nos países emergentes; os
fenômenos climáticos que têm afetado as colheitas nos países
produtores; a especulação com matérias-primas alimentares nos
mercados futuros e bolsas internacionais; e a crescente produção
de agrocombustíveis (Toussaint, 2008; Holt-Giménez e Patel,
2010). Do meu ponto de vista, esses dois últimos elementos foram
determinantes.
O aumento do preço dos alimentos, no entanto, estagnou em
2009, em parte por conta da crise econômica e o consequente
declínio na especulação financeira. Em meados de 2010, uma vez
apaziguados os mercados internacionais com substanciais somas
públicas injetadas no mercado privado, a especulação alimentar
atacou novamente. Os fundos de alto risco e de pensão foram
encorajados a pedir novos empréstimos e a investir em mercados
futuros, comprando bens com valor assegurado, como os grãos.
O que há de mais seguro para se investir do que o alimento, se
todo mundo, obviamente, tem de comer? Aquisições especulati-
vas – separadas da oferta e demanda real, mas que repercutiam
no preço final desses produtos – conduziram a uma escalada de
seu valor e a uma nova crise alimentar.

Como funciona a especulação com alimentos?


Na verdade, sempre houve certa especulação com os preços
dos alimentos e essa lógica prevalece no funcionamento dos mer-
cados futuros, que, tais como os conhecemos, datam de meados

28
O negócio da comida

do século XIX, quando começaram a funcionar nos Estados


Unidos. São acordos legais padronizados para transações de bens
físicos, num tempo futuro previamente estabelecido, e têm sido
um mecanismo para garantir um preço mínimo ao produtor
frente às flutuações do mercado (Holt-Giménez e Patel, 2010).
Em poucas palavras: o agricultor vende a um comerciante
a produção antes da colheita, protegendo-se, assim, contra as
inclemências do tempo, por exemplo, garantindo-se um preço
certo no futuro. O comerciante, por sua vez, também se beneficia.
No ano em que a colheita vai mal, o agricultor recebe uma boa
renda; e quando a colheita é excelente, o comerciante se beneficia
ainda mais.
Em um cenário de desregulamentação da economia mundial,
este mesmo mecanismo é usado por especuladores para fazer ne-
gócios. Eles se aproveitam da desregulamentação dos mercados de
commodities, impulsionada em meados dos anos 1990 nos Estados
Unidos e na Grã-Bretanha por bancos, políticos partidários do
livre mercado e fundos de alto risco. Os contratos de compra e
venda de alimentos converteram-se em “derivados”, que podem ser
comercializados de forma independente das transações agrícolas
reais. Nascia, assim, um novo negócio: a especulação alimentar.
Os especuladores são agora aqueles que têm mais peso nos
mercados futuros. Nas palavras de Michael Masters, gerente da
Masters Capital Management e gestor de fundos de alto risco, em
uma declaração perante o Congresso dos Estados Unidos: “Em
1998, a média de mercado dos derivados das matérias-primas
foi 25% especulativa. Em 2008, os especuladores representavam
cerca de 65%. (...) Os especuladores aumentaram suas posições
em 120%” (Campaña Derecho a la Alimentación: Urgente, 2011).
Entre 2006 e 2007, antes da crise alimentar de 2008 e em
meio à crise no mercado de hipotecas subprime nos Estados

29
E st her Vi va s E stev e

Unidos, investidores institucionais, como bancos, companhias


de seguros, fundos de investimento, entre outros, procuraram
setores mais seguros e mais rentáveis para investir, tais como
produtos alimentares – soja, trigo, arroz, milho etc. À medida
que os investimentos nesses grãos aumentaram, aumentaram
também os seus preços.
Na Alemanha, o Deutsche Bank investe há anos em produtos
alimentares, e, apesar de todas as evidências, afirma que isso não
afeta o aumento do preços dos alimentos. Em um comunicado
em seu website, sem nenhum pudor, a instituição assinala: “A
fome no mundo é um desafio urgente e continuará a crescer
no futuro. A segurança alimentar é uma parte vital da solução.
Uma forma de ajudar a combater isso é investir em commodities
e em toda a cadeia de valor agrícola” (Deutsche Bank, 2014).
O BNP Paribas, um dos principais bancos franceses, ofereceu
também a seus clientes fundos que especulavam com produtos
alimentares, tais como o “Parvest World Agriculture”. A pressão
social levou a entidade a cancelar esse fundo em 2013. Outras
instituições financeiras, como Barclays Bank, Credit Agricole,
Commerzbank etc., também retiraram, anos atrás, fundos
semelhantes.
No Estado espanhol, a Caixa Catalunya estimulou seus
clientes, no início de 2011, a investir em commodities sob o slogan
“depósito 100% natural”. E o que ela oferecia? Garantia de 100%
do capital, com a possibilidade de obter um retorno de até 7% ao
ano – em função, como dito em sua propaganda, “da evolução do
rendimento de três produtos alimentares: açúcar, café e milho”.
Para garantir a alta rentabilidade, a publicidade não hesitou em
apontar como o preço destes três produtos, nos meses anteriores,
tinham aumentado em 61%, 34% e 38%, respectivamente, devido
“à demanda crescente, em ritmo superior ao da produção”, “pelo

30
O negócio da comida

aumento da população mundial” e “seu uso em biocombustíveis”


(Catalunya Caixa, 2011). A Caixa Catalunya retirou este produto
em meados de 2011, alguns meses após o seu lançamento, devido
a uma campanha de denúncia e mobilização social. Hoje, o Banco
Sabadell ainda tem um fundo especulativo – o BS Commodities
– que opera com alimentos.

“Petróleo Verde”
A aposta de vários governos e instituições internacionais nos
biocombustíveis – tais como bioetanol, em meados dos anos 2000
– em resposta ao aumento dos preços do petróleo, e com o objetivo
de encontrar um combustível alternativo e mais barato, também
é responsável pelo aumento do preço dos alimentos. A produção
de agrocombustíveis (que a indústria chama de “biocombustí-
veis”, uma clara estratégia de marketing empresarial) precisa de
milho, arroz, trigo e cevada para sua elaboração. O aumento na
demanda por tais produtos para a produção de “petróleo verde”
leva a um aumento dos seus preços e isso acaba afetando o custo
dos alimentos para os consumidores.
Desde 2004, dois terços do aumento na produção global de
milho foram destinados a atender à demanda estadunidense de
agrocombustíveis. Em 2010, 35% da safra de milho dos Estados
Unidos – o que significa 14% da produção mundial – foi usada
para produzir bioetanol. Esta tendência é crescente. Estima-se
que até 2020, dependendo da velocidade de expansão dos bio-
combustíveis, o preço internacional do milho poderia aumentar
entre 26% e 72%, e o das sementes oleaginosas entre 18% e
44% (Holt-Giménez e Patel, 2010). Alimentos para comer ou
para movimentar carros? Lester R. Brown (2007), presidente do
Earth Policy Institute, nos EUA, coloca isso claramente: “Do
ponto de vista agrícola, a demanda por combustível automotivo

31
E st her Vi va s E stev e

é insaciável. Os grãos necessários para encher um tanque de 95


litros permitiriam alimentar uma pessoa durante um ano”.
A especulação com alimentos e agrocombustíveis foi, con-
tudo, a faísca que incendiou um modelo agrícola extremamente
vulnerável. As crises de alimentos de 2008 e 2011 foram apenas
um sinal de um sistema doente.

Menos terra, menos comida


A África é uma terra saqueada. Seus recursos naturais foram
retirados de suas comunidades ao longo de séculos de dominação e
colonização. E não foi somente o saque de ouro, petróleo, coltan,*
borracha, diamantes, mas também de água, terras e sementes que
alimentam seus habitantes. Se 80% da população no Chifre da
África, como indica a Organização para a Alimentação e Agri-
cultura (FAO) (2012a), tem na agricultura sua principal fonte de
alimento e renda e é dela dependente, o que fazer quando não
há terra para cultivar?
Nos últimos anos, a crescente onda de privatização da terra na
África (compra por governos estrangeiros, agronegócios transna-
cionais ou fundos de investimento) tornou ainda mais vulnerável
o seu precário sistema agrícola (Grain, 2012a). Com camponeses
expulsos de suas terras, onde cultivar o que comer? Muitos países
têm visto reduzir drasticamente a sua já limitada capacidade para
autoabastecimento, depois de décadas de políticas de liberalização
comercial que reduziram sua capacidade de produção.
A crise alimentar e financeira que eclodiu em 2008 levou a
um novo ciclo de apropriação da terra em escala global (Grain,
2009a). Os governos dos países dependentes da importação –
com o objetivo de garantir a produção de alimentos para a sua

* Mistura de dois minerais: columbite e tantalite.

32
O negócio da comida

população além de suas fronteiras, assim como a agroindústria


e os investidores com fome de investimentos novos e rentáveis,
estão adquirindo terras férteis nos países do Hemisfério Sul. Uma
dinâmica que ameaça a agricultura camponesa e a segurança
alimentar destes países.

O novo colonialismo
Estima-se que, entre 2008 e 2009, em apenas um ano, foram
adquiridos cerca de 56 milhões de hectares de terra no mundo,
dois terços (cerca de 30 milhões) na África subsaariana, onde a
terra é barata e a propriedade comum torna as pessoas mais vul-
neráveis, de acordo com dados do Banco Mundial (Deininger e
Byerlee, 2011). Antes de 2008, a “demanda” de terra anual era
de menos de 4 milhões de hectares. A apropriação de terras a
partir de então tem sido enorme. Outras fontes, como o Projeto
Global Land (2010), apontam entre 51 e 63 milhões de hecta-
res, só na África, uma extensão igual à da França. Trata-se de
arrendamentos, concessões ou compra de terras – as formas de
transações podem ser múltiplas e muitas vezes não transparentes
– uma dinâmica que alguns autores têm descrito como “novo
colonialismo” ou “colonialismo agrário”, representando uma
recolonização indireta dos recursos africanos.
O Banco Mundial tem sido um dos seus principais promo-
tores, desenvolvendo, em conjunto com outras instituições inter-
nacionais – a FAO, a Agência de Comércio e Desenvolvimento
das Nações Unidas e o Fundo Internacional de Desenvolvimento
Agrícola (Fida) – o que tem sido chamado de “Princípios para o
Investimento Agrícola Responsável”, que legitima a apropriação
de terras por investidores estrangeiros (Grain, 2012b). Através da
International Finance Corporation, instituição filiada ao Banco
Mundial que lida com o setor privado, tem-se promovido pro-

33
E st her Vi va s E stev e

gramas para eliminar as barreiras administrativas, mudar leis e


regimes fiscais e incentivar, assim, os investimentos.

Países à venda
A Etiópia, um dos países mais afetados pela fome de 2011,
ofereceu naquele mesmo ano três milhões de hectares de terra
cultivável para investidores estrangeiros da Índia, China, Pa-
quistão, Arábia Saudita, entre outros. O negócio não poderia ser
melhor: 2.500 km2 de terras virgens, produtivas, a 700 euros por
mês, com um contrato de 50 anos. Este foi o acordo feito pelo
governo etíope e a empresa indiana Karuturi Global – uma das
25 maiores da agroindústria mundial – que dedicou essas terras
para o cultivo de óleo de palma (dendê), arroz, cana-de-açúcar,
milho e algodão para exportação (Vidal, 2011). As consequências:
milhares de camponeses e povos originários expulsos de suas
terras, particularmente aqueles que mais padeciam por causa
da fome e da falta de alimentos, bem como vastas extensões de
florestas derrubadas e queimadas.
Outros países africanos como Moçambique, Gana, Sudão,
Mali, Tanzânia e Quênia têm alugado milhões de hectares de seu
território. Na Tanzânia, o governo da Arábia Saudita adquiriu
500 mil hectares de terra para a produção de arroz e trigo para
exportação. No Congo, 48% da superfície agrícola está nas mãos
de investidores estrangeiros; em Moçambique, mais de 21%; e
em Uganda uma extensão superior a 14% (Global Land Project,
2010). A conferência acadêmica “Global Land Grabbing”,* que
foi realizada na Grã-Bretanha em 2011, chamou a atenção para o
impacto negativo dessas aquisições. Mais de cem estudos de casos

* Mais informações em “International Conference on Global Land Grabbing”:


<http://www.future-agricultures.org/events/global-land-grabbing>.

34
O negócio da comida

documentados mostravam como esses investimentos não tiveram


nenhum efeito positivo nas comunidades locais, ao contrário,
geraram despejos e aumento da pobreza.
Durante anos, o movimento internacional Via Campesina
denunciou as consequências dramáticas desta enorme onda de
apropriação de terras para as populações do Sul. Se queremos
acabar com a fome no mundo, é essencial garantir o acesso uni-
versal à terra, água e sementes. Além disso, proibir especular e
fazer negócios com o que nos alimenta e nos dá de comer.

Comer insetos para acabar com a fome?


A FAO publicou, em 2013, um relatório que provocou certo
rebuliço: “Insetos comestíveis. Perspectivas futuras para a segu-
rança alimentar e a alimentação” (Van Huis et al., 2013), que
recomendava o consumo de insetos para alimentar um número
crescente de pessoas. Mas acabar com a fome no mundo passa
por consumir insetos ou por tornar a comida acessível às pessoas?
Eu me decido pela segunda opção.
Insetos, em outras latitudes, são plenamente incorporados
aos hábitos alimentares. Na verdade, estima-se que pelo menos
2 bilhões de pessoas ingerem regularmente escaravelhos, lagar-
tas, formigas, abelhas, gafanhotos e assim por diante em todo o
planeta. Um total de 1.900 espécies são consumidas em países da
África, Ásia e América Latina, e são ricas em proteínas, gorduras
e minerais (Van Huis et al., 2013).
No entanto, logo depois que a FAO fez essa proposta, pro-
gramas de entrevistas nos meios de comunicação abordaram
o debate com um olhar claramente etnocêntrico, associando
o consumo de insetos a um comportamento primitivo – como
se os europeus tivessem a verdade absoluta sobre o que se pode
e o que não se pode comer. Gostaria de saber o que os outros

35
E st her Vi va s E stev e

países pensam de caracóis em molho, coelho assado ou a paella­


de arroz e coelho com caracóis... Eu acho que mais de um
europeu não aguentaria nem dois minutos à mesa imaginando
seu coelho de estimação cozido como um bife e rodeado por
moluscos viscosos.
Para além das considerações culturais, acredito que o pro-
blema da fome tem de ser resolvido de outra maneira. Não se
trata de apostar em comer insetos como uma solução mágica,
independentemente das virtudes nutricionais que eles possam ter.
O cerne da questão está em perguntar como, em um mundo de
abundância de alimentos, há tantas pessoas que não têm nada para
comer. Atualmente, o problema da fome não está na produção
de alimentos, mas em sua distribuição. Não se trata de produzir
mais, ou de encontrar novos alimentos, mas de distribuir aqueles
já existentes e torná-los acessíveis às pessoas.

Um mundo de obesos e famélicos


Enquanto milhões de pessoas no mundo não têm nada para
comer, outros comem mal e demais. A obesidade e a fome são
dois lados da mesma moeda de um sistema alimentar que não
funciona e que condena milhões de pessoas à desnutrição. Vive-
mos, enfim, em um mundo de obesos e famintos.
Os números deixam claro: 870 milhões de pessoas em todo o
mundo estão com fome, enquanto 500 milhões têm problemas de
obesidade. Entretanto, a fome e a obesidade são apenas a ponta
do iceberg: dois bilhões de pessoas em todo o mundo sofrem de
deficiências de micronutrientes (ferro, vitamina A, iodo) e 1,4
bilhão está acima do peso (FAO, 2013a).
O problema alimentar não é apenas se podemos ou não
comer, mas como nós comemos, de que qualidade e origem, e
como foi preparado. Não se trata apenas de comer, mas, sim,

36
O negócio da comida

de comer bem. Um problema que não afeta exclusivamente os


países do Sul, mas que está cada vez mais perto de nós. Aqueles
com menos recursos econômicos são os com maior dificul-
dade de acesso a uma alimentação saudável, seja porque não
a podem adquirir, seja porque não a valorizam. Nos Estados
Unidos, por exemplo, a obesidade afeta majoritariamente os
afroamericanos (36% do total) e os latinos (29%), de acordo
com o Centro para o Controle e Prevenção de Doenças dos
Estados Unidos. A posição de classe determina, em grande
medida, o que comer.
A crise econômica só piorou a situação. Mais e mais pessoas
são induzidas a comprar produtos mais baratos e menos nutritivos.
Na Grã-Bretanha, por exemplo, a crise fez com que as vendas de
carne de cordeiro, legumes e frutas frescas diminuíssem signifi-
cativamente, enquanto o consumo de produtos como bolachas e
pizzas tenham aumentado nos últimos cinco anos (Ipsos, 2012).
Uma tendência generalizável a outros países da União Europeia.
Milhões de pessoas sofrem as consequências deste modelo
de oferta de alimentação fast food, que acaba com a nossa saúde.
Atualmente, doenças relacionadas com o que comemos têm
aumentado exponencialmente: diabetes, alergias, colesterol, hi-
peratividade infantil etc. E isso tem consequências econômicas
diretas. A estimativa global do custo econômico do sobrepeso
e obesidade, em 2010, foi de aproximadamente US$ 1,4 bilhão
(FAO, 2013a).
Mas quem ganha com este modelo? A indústria agroalimentar
e os supermercados são os principais beneficiários. Como Raj
Patel (2008) afirma em seu livro Obesos e Famélicos: “A fome e o
excesso de peso são os sintomas do mesmo problema (...) obesos
e famintos estão ligados pelas cadeias de produção que trazem
alimentos do campo à mesa”.

37
E st her Vi va s E stev e

Sem trabalho, sem casa, sem comida


A fome, acreditamos, está bem longe de nossos agradáveis
lares. Pensamos que ela tem pouco a ver com a crise econômica
que nos afeta. No entanto, a realidade é bastante diferente. Mais
e mais pessoas passam fome na Europa. Obviamente, não é a
fome que afeta os países da África, mas consiste na incapacidade
de ingerir as calorias e proteínas mínimas necessárias, gerando
consequências para a saúde e para a vida. A fome deixou de ser
patrimônio dos países do Sul para bater à nossa porta.
Há anos nos chegam as terríveis cifras da fome nos Estados
Unidos: 49 milhões de pessoas vivem em domicílios com inse-
gurança alimentar, 14,5% do total, incluindo mais de 8 milhões
de crianças (USDA, 2012). Esses números, aos quais o escritor
e fotógrafo David Bacon deu rosto em seu impactante trabalho
“Hungry by the numbers” [Famélicos segundo as estatísticas],
revelam as faces da fome no país mais rico do mundo.

Atingidos pela crise


Na Espanha, a fome também se tornou uma realidade tan-
gível. Sem trabalho, sem remuneração, sem casa e sem comida:
assim se encontram muitíssimas pessoas atingidas pela crise. De
acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE) (2013), 1,6
milhão de pessoas, 3,5% da população, afirmava não “poder pagar
uma refeição com carne, frango ou peixe a cada dois dias”. As
organizações sociais estão sobrecarregadas e nos últimos anos as
demandas de ajuda para compra de alimentos e de medicamentos
só aumentaram. Estamos diante de uma situação de emergência
social.
Os menores são muitas vezes aqueles que mais sofrem. Em
Barcelona, o conselho da cidade encontrou, em 2013, 2.865
crianças com deficiências nutricionais (Vallespín, 2013). No país,

38
O negócio da comida

segundo o Eurostat (escritório estatístico da Comissão Europeia),


27% das crianças vivem abaixo da linha da pobreza, num total
de 2,267 milhões de crianças (Unicef, 2013). Não só os dados
indicam que a fome infantil está aumentando. A realidade vi-
vida em várias escolas aponta na mesma direção: crianças que
desmaiam em sala de aula por não terem comido, outras que
devoram avidamente todo o seu prato no refeitório escolar, aquelas
que trazem o pão “mágico” (tendo que imaginar o recheio) para
o café da manhã... As histórias, infelizmente, são muitas. Basta
perguntar e ouvir aqueles que trabalham nas escolas, bairros e
cidades mais atingidas pela crise.

Alimentos frescos e inacessíveis


A desnutrição é a outra face da fome. De acordo com várias
organizações sociais, 17% das crianças que vivem abaixo da linha
de pobreza são obesas – o dobro das que não têm dificuldades
econômicas (VVAA, 2004). A crise faz com que alimentos frescos
(frutas, legumes, peixe e carne) fiquem inacessíveis. A dieta dos que
têm menos se deteriora rapidamente. Compra-se pouco, barato e
se come mal. A espiral de desemprego, escassez, expulsões e fome
prendem mais e mais famílias. As demandas de ajuda para comer
aumentam na mesma proporção em que se aplicam os cortes
orçamentários e retiram os nossos direitos. O governo espanhol
finge que não vê e as comunidades autônomas,* com considerável
experiência no assunto, continuam promovendo cortes.
Não é à toa que até o prestigiado jornal estadunidense The
New York Times publicou, em setembro de 2012, uma galeria de

* O Estado espanhol (Espanha) está organizado administrativamente em 17


comunidades autônomas, além de duas cidades autônomas, estabelecidas pela
Constituição de 1978. (N. T.)

39
E st her Vi va s E stev e

fotos de Samuel Aranda, que ganhou o World Press Photo 2011,


sob o título “In Spain, austerity and hunger” (“Na Espanha,
austeridade e fome”), retratando as consequências dramáticas da
crise para milhares de pessoas no país: fome, pobreza, despejos,
desemprego... A alardeada “Marca Espanha” é sinônimo de mi-
séria e fome. Na verdade, o Estado espanhol tem os mais altos
índices de pobreza em toda a Europa, atrás apenas de Romênia e
Grécia (Fundación Foessa, 2014). Uma realidade óbvia em relação
ao exterior, apesar de alguns desejarem escondê-la.

O sinistro desperdício de alimentos


Alimentos de jogar fora: assim funciona o sistema alimen-
tar, tendo em vista o número de alimentos desperdiçados. Na
Espanha, são jogados fora a cada ano 7,7 milhões de toneladas
de alimentos em bom estado, de acordo com o Ministerio de
Agricultura, Alimentación y Medio Ambiente [Ministério da
Agricultura, Alimentação e Meio Ambiente] (2013a). Este é o
sexto país que mais desperdiça alimentos na Europa, depois da
Alemanha, Holanda, França, Polônia e Itália. Em toda a União
Europeia, o número é de 89 milhões de toneladas: 179 kg por
habitante, por ano. Este número seria ainda muito maior se nos
cálculos fossem incluídos os resíduos de alimentos de origem agrí-
cola – gerados no processo de produção – ou o descarte de peixes
atirados ao mar. Em suma, estima-se que na Europa, em toda a
cadeia alimentar – desde o campo até a casa do consumidor –, até
50% de alimentos comestíveis são desperdiçados.
Desperdícios e resíduos versus fome e penúria. A crise converte
o maltrato alimentar em um drama macabro, no qual milhões de
pessoas não têm nada para comer, enquanto milhões de toneladas
de alimentos são desperdiçados anualmente. Na União Europeia,
cerca de 80 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza,

40
O negócio da comida

16% da população. Destes, 16 milhões são dependentes de ajuda


alimentar e de filantropia (Parlamento Europeo, 2012).

Onde se joga a comida?


E como e onde se joga fora tanta comida?
– No próprio campo, quando o preço cai abaixo dos custos de
produção, ou quando as mercadorias não satisfazem os critérios
de tamanho e aparência, ou quando devido ao clima ou a pragas
o agricultor opta por não recolhê-las, já que o custo da colheita
seria maior do que ganharia pelo produto;
– nos mercados e centros de compra por atacado, onde o
alimento deve passar por um “concurso de beleza”, respondendo
aos critérios estabelecidos, principalmente, pelos supermercados;
– na macrodistribuição (supermercados, hipermercados, lojas
de desconto), que requer uma elevada quantidade de produtos
para manter as prateleiras sempre cheias – mesmo que em seguida
percam seu prazo de validade e tenham que ser descartados –,
quando ocorrem erros na solicitação de pedidos ou quando há
problemas de embalagem e deterioração de alimentos frescos;
– em outros pontos de venda a varejo tais como mercados
e lojas, nos quais se joga fora o que não pode mais ser vendido;
– nos restaurantes e bares, onde 60% dos resíduos é consequên­
cia de uma má previsão, 30% é desperdiçado quando se prepara
as refeições e 10% corresponde a sobras de clientes, de acordo
com um relatório da Unilever Food Solutions, endossado pela
Federação Espanhola de Hotéis e Restaurantes (Agudo, 2012); e
– em casa, quando os produtos estragam – geralmente porque
compramos mais do que o necessário, deixando-nos levar por
ofertas de última hora e ofertas do tipo “2 por 1”, ao não saber
como interpretar rotulagens confusas, ou embalagens que não
atendem às nossas necessidades.

41
E st her Vi va s E stev e

O desperdício de alimentos tem várias causas e responsáveis,


mas, basicamente, responde a um problema estrutural e de fundo:
os alimentos converteram-se em bens de compra e venda. Assim,
se a comida não atender a determinados critérios estéticos, ou
se sua distribuição não for considerada rentável, se se deteriorar
prematuramente, ela é descartada. O impacto da globalização
alimentar a serviço dos interesses do agronegócio e dos super-
mercados tem uma grande responsabilidade nisso. Não importa
que milhões de pessoas passem fome. O fundamental é vender.
Se você não pode comprar, você não conta.

Catar comida no lixo, um crime


E o que acontece se você tentar pegar essas sobras? Talvez você
encontre o depósito trancado, tal como fez o conselho de Girona
com os depósitos em frente aos supermercados alegando “alarme
social”, pelo fato de mais e mais pessoas buscarem comida no lixo.
Ou pode receber uma multa de 750 euros se você remexer em
contêineres, em Madri. Como se a fome ou a pobreza fosse uma
vergonha ou um delito, quando vergonhoso e próprio de delin-
quentes são as toneladas de alimentos jogadas fora diariamente,
por conta dos ditames do agronegócio e dos supermercados, com
a aprovação das administrações públicas.
Tentando se justificar, os supermercados afirmam que doam
comida para bancos de alimentos. No entanto, de acordo com
um estudo realizado pelo Ministério da Agricultura, Alimentação
e Meio Ambiente (2012), apenas 20% o fazem. E esta também
não é a solução. Dar comida pode ser uma resposta de emergência
ou um paliativo, mas é imprescindível ir à raiz do problema, às
causas dos desperdícios e questionar um modelo agroalimentar
desenvolvido não para alimentar as pessoas, mas para que algumas
empresas tenham lucro.

42
DE ONDE V EM O QUE COMEMOS?

Um menu globalizado
O que países como Índia, Senegal, Estados Unidos, Colômbia,
Marrocos, Espanha e muitos outros têm em comum? O fato de
a comida ser cada vez mais semelhante, apesar das diferenças
significativas que ainda sobrevivem. Além da “mcdonaldização”
das nossas sociedades e do consumo global de coca-cola, a in-
gestão mundial de alimentos depende cada vez mais de algumas
poucas variedades de culturas. Arroz, soja e trigo se impõem em
detrimento de outras culturas, como milho, mandioca, centeio,
batata, sorgo ou batata-doce. Se a alimentação depende de tão
poucas variedades, o que poderá acontecer frente a uma má co-
lheita ou uma praga? Será que teremos nossos pratos realmente
assegurados?
Avançamos para um mundo com mais alimentos, mas com
menor diversidade e segurança alimentar. Alimentos como a soja,
que até alguns anos atrás eram irrelevantes, tornaram-se indispen-
sáveis para três quartos da humanidade. Outros, já significativos,
como o trigo ou o arroz, se espalharam em grande escala, sendo
consumidos atualmente por 97% e 91% da população mundial,
respectivamente (CGIAR, 2014).
E st her Vi va s E stev e

Estão nos impondo uma alimentação ocidentalizada, “vi-


ciada” no consumo de carne, em produtos lácteos e bebidas
com açúcar. São os mercados alimentares com claros interesses
comerciais. Isto é explicado em detalhe no estudo: “A crescente
homogeneidade das cadeias alimentares globais e as implicações
na segurança alimentar” (Khoury, 2014), que afirma que avan-
çamos para uma “dieta globalizada”.

Menos variedade
De acordo com os autores do estudo, este menu é “uma amea-
ça potencial à segurança alimentar.” Por quê? Em primeiro lugar,
porque apesar de consumir mais calorias, proteínas e gordura
do que há 50 anos, a comida contemporânea é menos variada
e é mais difícil ingerir os micronutrientes necessários ao corpo.
Ao mesmo tempo, “a preferência por alimentos energeticamente
densos e baseados em um número limitado de cultivos agrícolas
globais e alimentos processados está associada ao aumento de
doenças não transmissíveis como diabetes, problemas cardíacos
e alguns tipos de câncer”. A saúde está em jogo.
Em segundo lugar, a homogeneização do que comemos nos
torna mais vulneráveis às más colheitas ou a pragas, que devem
aumentar com a intensificação das mudanças climáticas. Somos
dependentes de algumas poucas culturas, que estão nas mãos de
um punhado de empresas que produzem em larga escala, sob
condições de trabalho precárias, desmatando florestas, poluindo
solos e águas e utilizando pesticidas sistematicamente.
Não se trata de ser contra uma mudança nos hábitos alimen-
tares – o problema surge quando estas são impostas por interesses
econômicos particulares, independentemente das necessidades
das pessoas. A “dieta global” é o resultado de uma cadeia de
produção-distribuição-consumo globalizada, em que nem os agri-

44
O negócio da comida

cultores, nem os consumidores contam. Pensamos que decidimos


o que comer, mas isso não acontece. Como afirmou Olivier de
Schutter­: “A principal deficiência da economia alimentar é a falta
de democracia” (2014). E sem democracia, do campo à mesa, não
podemos nem escolher, nem comer bem.

Sementes sequestradas
Quem já ouviu falar alguma vez da beringela branca, do melão
Piñonet,* da batata negra bonita, da abóbora “bom gosto”, do
tomate bulbo, da alface “língua de boi”? São variedades locais e
antigas que ficaram à margem dos canais habituais de produção
e consumo de alimentos. Variedades ameaçadas de extinção.
A dieta moderna é dependente de poucas variedades agríco-
las e pecuárias. Atualmente, apenas cinco variedades de arroz
fornecem 95% das colheitas nos principais países produtores, e
96% das vacas leiteiras no Estado espanhol pertencem a uma só
raça, friesian (Veterinarios sin Fronteras, 2007), a mais comum
em todo o mundo na produção leiteira. De acordo com a FAO
(2010a), 75% das variedades agrícolas desapareceram ao longo
do século passado.

O desaparecimento de saberes e sabores


Esta perda de diversidade agrícola não tem apenas consequên­
cias ecológicas e culturais, mas envolve o desaparecimento de
sabores, de nutrientes das plantas e de conhecimentos gastro-
nômicos, além de ameaçar a segurança alimentar, ao depender-
mos de algumas poucas culturas e espécies de gado. Ao longo

* Melão de tamanho médio, de casca lisa, reticulada ou matizada, inicialmente


verde intenso e depois passa a alaranjado; a casca é grossa e a polpa, aromática.
(N. T.)

45
E st her Vi va s E stev e

dos séculos, o saber camponês foi melhorando as variedades,


adaptando-as às diversas condições agroecológicas a partir de
práticas tradicionais, como a seleção de sementes e cruzamentos
para desenvolver culturas.
Em compensação, as variedades contemporâneas dependem
do uso intensivo de pesticidas e fertilizantes químicos, com um
impacto social e ambiental negativo, sendo mais vulneráveis às
secas, doenças e pragas. A indústria “melhorou” as sementes para
atender aos interesses de um mercado globalizado, deixando em
segundo plano as necessidades alimentares e nutricionais, com
suas variedades saturadas de produtos químicos.
Até um século atrás, milhares de variedades de milho, ar-
roz, abóbora, tomate, batata etc., abundavam nas comunidades
rurais. Ao longo de mais de 12 mil anos de agricultura foram
cultivadas cerca de 7 mil espécies de plantas e vários milhares
de animais para alimentação, mas hoje, de acordo com a Con-
venção sobre Diversidade Biológica, apenas 15 variedades de
cultivos e oito de animais representam 90% da nossa alimen-
tação (FAO, 2007).

A privatização dos bens de todos


A agricultura industrial e intensiva, a partir da “revolução
verde”,* apostou em algumas culturas comerciais e variedades
uniformes com uma estreita base genética, adaptadas às necessi-
dades do mercado, colhidas com maquinaria pesada, preservadas

* A chamada “revolução verde” consistiu em uma série de políticas, impulsionada


por governos como o dos Estados Unidos, fundações como a Fundação Ford e a
Fundação Rockefeller, e instituições internacionais, a partir da década de 1940,
e principalmente nos anos 1960 e 1970. Sob o lema de melhorar a produção agrí-
cola, deveriam acabar com a fome no mundo, como afirmavam. Na realidade, a
“revolução verde” significou a privatização dos insumos e das práticas agrícolas.

46
O negócio da comida

artificialmente, transportadas por longas distâncias e uniformi-


zadas no sabor e na aparência. Políticas agrícolas impuseram
sementes industriais, híbridas e transgênicas, sob o pretexto de
aumentar a rentabilidade e a produção, privatizando seu uso e
desacreditando as sementes camponesas livres.
Assim, com o passar do tempo, são emitidas patentes sobre
uma grande variedade de sementes, plantas e animais, limitando
o direito camponês de manter seus próprios recursos naturais e
ameaçando seus meios de vida e tradições. Através desses siste-
mas, as empresas tomaram posse dos organismos vivos e, com
a assinatura de contratos, o campesinato depende da compra
anual de sementes. Estas, que representavam um bem comum,
patrimônio da humanidade, foram privatizadas, patenteadas e,
finalmente, “sequestradas”.
A propagação de sementes híbridas e transgênicas foi outro
mecanismo usado para controlar sua comercialização. As semen-
tes modificadas geneticamente também contaminam variedades
tradicionais – através do ar e da polinização – condenando-as ao
desaparecimento e impondo um modelo de alimentos concen-
trado nas mãos do agronegócio. Apenas seis empresas (Syngenta,
Bayer, Basf, Dow Chemical, Monsanto e DuPont) controlam
60% do mercado mundial de sementes que está extremamente
monopolizado (ETC Group, 2013).
Agora, mais do que nunca, manter, recuperar e trocar semen-
tes camponesas são atos de desobediência e responsabilidade pela
vida, pela dignidade e pela cultura.

Uma alimentação viciada em petróleo


Comemos petróleo, embora não pareça. O modelo alimen-
tar hegemônico é viciado no “ouro negro”. Sem petróleo, não
poderíamos comer da maneira que fazemos. No entanto, num

47
E st her Vi va s E stev e

cenário cada vez mais difícil para a extração de petróleo – e este


vai custar mais caro – como vamos nos alimentar?
A agricultura industrial nos tornou dependente do petróleo.
Nós precisamos dele desde o cultivo e colheita até a comercialização
para o consumo. A “revolução verde” e as políticas concebidas e
implementadas entre os anos 1940 e 1970, que prometiam moderni-
zar a agricultura e acabar com a fome, nos deixaram viciados nesse
combustível, em parte, graças ao seu preço relativamente barato. A
mecanização dos sistemas agrícolas e o uso intensivo de fertilizantes
químicos e pesticidas são o melhor exemplo. Essa política acarretou
a privatização da agricultura, deixando agricultores e consumidores
à mercê de umas poucas empresas do agronegócio.
Embora a “revolução verde” tenha insistido que iria aumentar
a produção de alimentos – e, consequentemente, acabaria final-
mente com a fome –, na realidade não o fez. De fato, a produção
por hectare cresceu. De acordo com a FAO, entre 1970 e 1990, o
total de alimentos per capita em todo o mundo aumentou 11%.
No entanto, isso não repercutiu numa diminuição real da fome,
já que o número de pessoas famintas no planeta, no mesmo perío­
do (excluindo a China, cuja política agrícola é regida por outros
parâmetros) também aumentou 11%, passando de 536 milhões
para 597 milhões (Riechmann, 2003).
Além disso, a “revolução verde” trouxe consequências muito
negativas para os pequenos e médios agricultores e para a segu-
rança alimentar em longo prazo. Especificamente, ela aumentou
o poder das empresas agroindustriais em toda a cadeia produtiva,
causou a perda de diversidade agrícola, reduzindo maciçamente
o lençol freático, intensificou a salinização e a erosão do solo,
deslocou milhões de agricultores da zona rural para as favelas,
desmantelou sistemas agrícolas tradicionais, e nos tornou depen-
dentes do petróleo.

48
O negócio da comida

Uma agricultura “viciada”


A introdução de maquinarias agrícola em grande escala foi um
dos primeiros passos na direção da dependência do petróleo. Nos
Estados Unidos, em 1850, a tração animal era a principal fonte
de energia no campo, o que representava 53% do total, seguida
pela força humana, com 13%. Cem anos mais tarde, em 1950,
ambos somavam apenas 1%, com a introdução de máquinas a
combustível fóssil (Pimentel e Pimentel, 2007). A dependência em
relação à maquinaria agrícola (tratores, colheitadeiras, caminhões
etc.) – mais necessária em grandes plantações e monocultivos – é
enorme. Assim, desde a produção, a agricultura é “viciada” no
petróleo.
O sistema agrícola de cultivo de alimentos em grandes es-
tufas, independentemente da sua sazonalidade e clima, mostra
sua necessidade de derivados de petróleo e de alto consumo de
energia. Desde mangueiras passando através de contêineres, até
acolchoados, telas, tetos e telhados, tudo é de plástico. A Espanha
está na liderança do cultivo sob plástico na Europa Mediterrânea,
com 66 mil hectares utilizados, a maioria em Andaluzia, e em
particular em Almería, seguida, mais de longe, por Murcia e Ilhas
Canárias (Aleco, 2009). E o que fazer com tanto plástico, assim
que acabar sua vida útil?
O uso intensivo de fertilizantes químicos e pesticidas é
outro sinal de dependência do petróleo. A comercialização de
fertilizantes e pesticidas aumentou de 18% a 160% entre 1980
e 1998 (Jones, 2001). O sistema agrícola dominante precisa de
altas doses de fertilizantes feitos de petróleo e gás natural, tais
como amônia, ureia etc., que substituem os nutrientes do solo.
Transnacionais petrolíferas como Repsol, Exxon Mobile, Shell,
Petrobras etc. têm em sua carteira investimentos na produção e
comercialização de fertilizantes agrícolas.

49
E st her Vi va s E stev e

Os pesticidas químicos sintéticos são outra fonte importante


dessa dependência de combustíveis fósseis. A “revolução verde”
generalizou o uso de pesticidas e, consequentemente, da neces-
sidade de petróleo para produzi-los. Tudo isso sem mencionar o
efeito do uso desses agrotóxicos sobre o meio ambiente, a poluição
e esgotamento da terra e da água, bem como os impactos sobre
a saúde dos camponeses e dos consumidores.

Os alimentos viajantes
Também observamos a necessidade de petróleo nas longas
viagens que os alimentos realizam, desde onde são cultivados até
onde são consumidos. Estima-se que a refeição média viaje cerca
de cinco mil km do campo à mesa, com a consequente necessidade
de hidrocarburetos e com o impacto sobre o meio ambiente. Estes
“alimentos viajantes” geram cerca de cinco milhões de toneladas
de CO2 por ano, contribuindo para o agravamento das alterações
climáticas (González, 2012).
A globalização alimentar, na sua corrida para obter benefício
máximo, deslocaliza a produção de alimentos, como tem feito
com tantas outras áreas da economia. Produz em grande escala no
Sul, tirando vantagem das más condições de trabalho e de uma
legislação ambiental quase inexistente, e vende sua mercadoria
no Norte, a um preço competitivo. Ou produz no Norte, graças
a subsídios agrícolas para grandes empresas para, em seguida,
comercializar os bens subsidiados no outro lado do planeta,
vendendo abaixo do preço de custo e fazendo uma concorrência
desleal com a produção nacional. Nisto reside o porquê dos “ali-
mentos quilométricos”: máximo benefício para alguns; máxima
insegurança, pobreza e poluição para a maioria.
Em 2007, foram importados para a Espanha mais de 29
milhões de toneladas de alimentos, 50% a mais do que em

50
O negócio da comida

1995. Três quartos foram cereais, produtos de cereais e rações


para a alimentação da pecuária industrial, na maioria vindos da
Europa, América Central e do Sul. Mesmo alimentos típicos,
como grão-de-bico ou o vinho, provêm de milhares de quilô-
metros de distância. Pelo menos 87% dos grãos que comemos,
por exemplo, vêm do México; no Estado espanhol esse cultivo
caiu vertiginosamente (González, 2012). Qual o sentido dessa
movimentação internacional de alimentos de um ponto de vista
social e ambiental? Nenhum.
Vejamos um caso: a refeição dominical típica na Grã-Bretanha
– com batatas da Itália, cenouras da África do Sul, feijão da Tai-
lândia, vitela da Austrália, brócolis da Guatemala, morangos da
Califórnia, e mirtilos (bagas) da Nova Zelândia na sobremesa –
gera 650 vezes mais emissões de gases que causam o efeito estufa
devido ao transporte do que se a comida tivesse sido cultivada e
adquirida localmente. Todos esses “alimentos viajantes” somam
o total de 81 mil km do campo à mesa, o equivalente a duas
voltas completas ao planeta Terra (Jones, 2001). Algo irracional,
se considerarmos que muitos desses produtos são cultivados no
território. A Grã-Bretanha importa grandes quantidades de lei-
te, carne de porco, cordeiro e outros alimentos básicos, apesar
de exportar quantidades semelhantes desses produtos (Halweil,
2003). No Estado espanhol, acontece o mesmo.

Comendo plástico
O que acontece assim que os alimentos chegam ao supermer-
cado? Plástico e mais plástico derivado do petróleo. Assim, po-
demos encontrar uma embalagem primária contendo alimentos,
uma embalagem secundária que permite uma exposição atrativa
no estabelecimento e, finalmente, sacolas para levá-lo para casa.
Na Catalunha, 25% das quatro milhões de toneladas de resíduos

51
E st her Vi va s E stev e

produzidos por ano são de recipientes plásticos (Fundació Pri-


vada Catalana de Prevenció de Residus i Consum Responsable,
2010). Os supermercados empacotam tudo, pois a venda a granel
ficou na história. Um estudo encomendado pela Agência Catalã
do Consumo concluiu que comprar em lojas locais gerava 69%
menos resíduos do que fazê-lo em um supermercado (Generalitat
de Catalunya, 2010).
Uma anedota pessoal ilustra bem essa tendência. Quando
pequena, em casa, comprávamos água em grandes garrafas de
vidro de oito litros – hoje, quase toda a água vendida é engar-
rafada em recipientes de plástico. Tornou-se moda até mesmo
comprá-la em embalagens de seis unidades de 1,5 litro. Não sur-
preendentemente, dos 260 milhões de toneladas de resíduos de
plástico no mundo, a maior parte é de recipientes de água ou de
leite engarrafados. O Estado espanhol, certamente, é o principal
fabricante europeu de sacos de plástico para uma única utilização,
e o terceiro em consumo. Estima-se que a vida útil de um saco
de plástico é de doze minutos em média, mas sua decomposição
pode demorar cerca de quatro anos (Fundação Terra, 2012).
Tirem suas conclusões.
Vivemos em um planeta de plástico, como retratava o aus-
tríaco Werner Boote em seu brilhante filme “Plastic Planet”, que
declarou: “A quantidade de plástico que temos produzido, desde
o início da era do plástico, é suficiente para envolver seis vezes
o planeta com sacos”. Não somente isso. Qual o impacto dessa
onipresença cotidiana para a nossa saúde? Uma testemunha no
filme disse: “nós comemos e bebemos plástico”. E mais, como
denuncia o documentário, cedo ou tarde vamos ter de pagar a
conta.
A distribuição em massa não só tem generalizado o amplo
consumo de grandes quantidades de plástico, mas também o uso

52
O negócio da comida

do carro para ir às compras. A proliferação de hipermercados,


lojas de departamento e centros comerciais nas periferias das
cidades obriga o uso de carros particulares para se deslocar até
estes estabelecimentos. Se pegarmos o exemplo da Grã-Bretanha,
entre 1985-1986 e 1996-1998, o número de viagens de carro
por pessoa por semana, para fazer compras, passou de 1,7 para
2,4. A distância total percorrida também aumentou de 14 km
por pessoa por semana para 22 km, um aumento de 57% (Jo-
nes, 2001). Mais quilômetros, mais petróleo e mais CO2, em
detrimento, ademais, do comércio local. Se em 1998 existiam
95 mil lojas na Espanha, em 2004 esse número caiu para 25
mil (Vivas, 2007[a]).
De acordo com a Agência Internacional de Energia, a produ-
ção de petróleo convencional atingiu seu pico em 2006 (Turiel,
2010). Em um mundo onde o petróleo é escasso, o que e como
vamos comer? É necessário notar que, quanto mais industrial,
intensiva, quilométrica e globalizada é a agricultura, maior a de-
pendência do petróleo. Por outro lado, em um sistema camponês
agroecológico, local, sazonal, menor é a “adição” de combustíveis
fósseis. Portanto, a conclusão, penso, é clara.

Outra agricultura para outro clima


Embora à primeira vista possa não parecer, a agricultura e
a pecuária industrial são dois dos principais responsáveis pela
mudança climática. De acordo com pesquisa realizada pela
organização Grain (2011b), entre 44% e 57% das emissões de
gases de efeito estufa são causadas pelo conjunto do modelo
de produção, distribuição e consumo de alimentos. Essa cifra
é calculada pela soma das emissões decorrentes das atividades
estritamente agrícolas (11-15%), das mudanças no uso da terra e
desmatamento para fins agrícolas (15-18%), do processamento,

53
E st her Vi va s E stev e

transporte, embalagem e refrigeração dos alimentos (15-20%) e


dos resíduos orgânicos (3-4%).

Intensiva, industrial, quilométrica e petrodependente


Não podemos esquecer os elementos que caracterizam esse
sistema agroalimentar: intensivo, industrial, quilométrico, des-
localizado e “petrodependente”. Vejamos em detalhe:
– intensivo: porque detém uma superexploração dos recursos
naturais e da terra, resultando na liberação de gases de efeito
estufa por campos e pastagens. Ao priorizar a produtividade, em
detrimento da proteção do ambiente e regeneração da terra, se
rompe o equilíbrio sob o qual os solos capturam e armazenam
carbono, fundamental para a estabilidade climática;
– industrial: porque consiste em um modelo de produção
mecanizada, com o uso regular de agrotóxicos e com uma
aposta clara na monocultura. O uso de grandes tratores para
lavrar o solo contribui para a liberação de mais CO2. O uso de
fertilizantes químicos na agricultura e pecuária moderna gera
uma quantidade significativa de óxido nitroso, uma importante
fonte de emissão de gases de efeito estufa. Além disso, a queima
de florestas virgens e tropicais para convertê-las em pastagem ou
monoculturas acaba afetando a biodiversidade e contribui para
a liberação maciça de carbono;
– quilométrico e “petrodependente”, porque é uma produção
deslocalizada de mercadorias, em busca de mão de obra mais
barata e legislação ambiental mais flexível. A comida que con-
sumimos viaja milhares de quilômetros antes de chegar à nossa
mesa, com consequente impacto sobre o ecossistema. Estima-se,
de acordo com um relatório da Fundação da Terra (2006), que
a maioria dos alimentos viaja entre 2.500 e 4 mil km antes de
serem consumidos, 25% mais do que em 1980. Outro trabalho,

54
O negócio da comida

da Amigos de la Tierra, diz que esse percurso pode chegar a


5 mil km (González, 2012). Estamos diante de uma situação
insustentável em que, por exemplo, “a energia para enviar uma
alface de Almeria (Espanha) à Holanda é três vezes maior do que
a utilizada para o cultivo, já que consumimos alimentos que vêm
do outro lado do mundo, quando muitos deles são cultivados
aqui” (Fundación Tierra, 2006).

A pecuária e os gases de efeito estufa


A pecuária industrial é um dos principais geradores de gases
de efeito estufa. Estima-se que seja responsável por 18% deles,
um valor inclusive superior ao causado pelo transporte. Especi-
ficamente, a pecuária industrial provoca 9% das emissões antro-
pocêntricas de CO2 (principalmente devidas ao desmatamento),
37% das emissões de metano (por digestão dos ruminantes) e
65% de óxido nitroso (pelo estrume). Atualmente, quase 60%
da área agrícola são dedicadas à pecuária: 26% destinam-se à
produção de pastagens e 33% à produção de grãos para rações
(Steinfeld et al., 2006).
No entanto, apesar desses dados, a mudança climática pode
ser interrompida. A agricultura camponesa local e agroecológica
pode contribuir decisivamente para isso. Trata-se de devolver
à terra a matéria orgânica que lhe foi tirada após a “revolução
verde” ter empobrecido o solo com uso intensivo de fertilizantes
químicos, pesticidas etc. Para fazer isso, faz-se necessário adotar
técnicas agrícolas sustentáveis que podem aumentar gradual-
mente a matéria orgânica do solo em 2%, num período de 50
anos, restaurando a percentagem removida desde os anos 1960
(Grain, 2009b).
É necessário, portanto, apostar em um modelo de produção
diversificado, incorporando prados e adubação verde, integrando

55
E st her Vi va s E stev e

novamente a produção animal com árvores e plantas silvestres.


Com essas práticas, estima-se que seria possível capturar até dois
terços do excesso de CO2 na atmosfera (Grain, 2009b). O movi-
mento internacional Via Campesina tem isso bem claro quando
afirma que a agricultura camponesa pode esfriar o planeta (La
Vía Campesina, 2007).

Alimentos quilométricos no Natal


Chega o Natal, e com ele as tradicionais refeições com a
família e com amigos. O Natal é uma festa eminentemente gas-
tronômica. Ao lado dos clássicos pratos típicos dessa data, como
torrões, polvorones,* maçapão; na Catalunha, a escudella** e os
canelones; na Galícia, o bacalhau com couve-flor, encontramos
cada vez mais pratos como camarões, salada de abacaxi, foie gras
[fígado de ganso], entre outros. De onde vêm esses alimentos?
Quantos quilômetros viajaram antes de chegar ao prato? Como
foram desenvolvidos?

Camarões, abacaxi e uvas


Se analisarmos o cardápio de Natal, perceberemos que um
bom número dos produtos que consumimos viajou longas dis-
tâncias antes de acabar na cozinha de casa. Os camarões, comuns
nessa época, são um bom exemplo. A maioria vem dos trópicos
latino-americanos ou asiáticos. Além da longa viagem até nossas
mesas e seus efeitos sobre a geração de gases de efeito estufa, sua
produção tem ainda um impacto muito negativo sobre o plano
social (salários miseráveis e uso constante de produtos químicos
e antibióticos para conservá-los, que acabam afetando a saúde) e

* Biscoitos doces típicos da Espanha feitos com farinha de trigo. (N. T.)
** Sopa preparada na Catalunha com carnes, legumes, ovos e macarrão. (N. T.)

56
O negócio da comida

ambiental (destruição por arrasto de fundo do mar e utilização


dos manguezais para construir fazendas de peixes). O Estado
espanhol é o maior importador de camarão da União Europeia
(Ecologistas en Acción, 2011).
O abacaxi tornou-se recentemente outro clássico das festas,
sendo que três quartos dos que são vendidos na Europa vêm da
Costa Rica. Algumas plantações e transnacionais monopolizam
a produção e impõem condições de trabalho extremamente
precárias, impedindo os trabalhadores de se organizarem, im-
pondo políticas antissindicais. É desta forma que a pesquisa e o
documentário “Abacaxis: frutas de luxo, a que preço?”, da Con-
sumers International (2010), mostram como os trabalhadores
sofrem problemas de saúde significativos devido ao uso massivo
de agrotóxicos.
Inclusive um alimento tão típico, como a uva do final de
ano, vem principalmente do Chile, o primeiro exportador mun-
dial (Bravo, 2013). Se antes havia variedades locais com uma
maturação tardia, como uva do Natal, hoje, a maior parte das
que consumimos nessa época vem do outro lado do planeta. Se
no Natal comermos melão com presunto, já não o fazemos da
variedade local de melão de Natal, pois acabamos comprando
produtos que foram armazenados por meses em frigoríficos,
onde perderam muitas propriedades, ou que vêm de regiões tão
longínquas como a América do Sul.

Matar o galo
O frango assado recheado ou o capão são outros pratos típicos.
Dizem que o consumo de carne é essencial para essas festas. Uma
canção catalã retrata bem essa concepção: “Agora chega o Natal,
vamos matar o galo e à Tia Pepa vamos dar um pedaço”. Meu avô
assim fazia todos os 25 de dezembro, com um galo de seu quintal.

57
E st her Vi va s E stev e

Na atualidade, no entanto, consumimos animais engordados


com rações transgênicas, que viajaram milhares de quilômetros
e nos quais foram injetadas altas doses de drogas preventivas. São
animais criados em fazendas industriais, espalhadas por todo o
mundo, onde são tratados como “coisas”, tendo seus direitos de
seres vivos violados. Isso sem mencionar o foie gras, servido de
entrada no Natal, nem como é feito...
Os alimentos quilométricos tornaram-se parte da dieta diária.
Comida carregada de injustiça para com as pessoas, os animais e
o ambiente. A alternativa reside no consumo ecológico local, sem
exploração do animal ou do camponês, adquirida da proximidade,
da produção de pequena escala. Vamos aderir ao consumo crítico,
tanto no Natal quanto nos outros 364 dias do ano!

São Valentim: rosas e espinhos


O amor tornou-se assunto de marketing. O dia de São
Valentim,* também chamado de dia dos namorados, é o melhor
exemplo. Tudo vale para fazer negócios e colocar preços sobre o
que sentimos. A rosa vermelha é a expressão sublime desse amor,
convertido em mercadoria. Milhões de rosas são vendidas no
Dia de São Valentim. Mas de onde é que elas vêm? Como foram
cultivadas? Por quem? A maior parte vem do Quênia, Etiópia,
Colômbia e Equador, os maiores exportadores para a União Eu-
ropeia. Sua origem tem pouco a ver com a imagem idílica que
procuram representar. A precariedade no trabalho, a má saúde
de seus trabalhadores, o impacto sobre o meio ambiente: eis o
que elas escondem.

* A data também é conhecida como Valetine’s Day, comemorada em 14 de fevereiro


nos Estados Unidos e muitos outros países. (N. T.)

58
O negócio da comida

Trabalhar de sol a sol


As mulheres são a principal força de trabalho nesses ambien-
tes “maquilados” dos países do Sul. Mulheres que não recebem
rosas, mas que as produzem de sol a sol por salários de miséria
e em condições de trabalho muito precárias. Em plantações na
África Oriental e na Colômbia, estima-se que chegam a traba-
lhar 15 horas por dia para atender às demandas dos clientes. Na
Colômbia, elas representam 65% da mão de obra, a maioria,
migrantes rurais, e no Quênia, 75%. Seus salários são miseráveis.
No Quênia, a remuneração é de cerca de 33 euros por mês, o
que não cobre necessidades básicas como alimentação, habitação
e transporte. Muitas vezes, elas são obrigadas a trabalhar horas
extras sem remuneração e, se recusarem, perdem seus empregos
(Morser e McRae, 2007). A “estabilidade” é a moeda de troca.
A presença de sindicatos independentes é quase inexistente. As
condições laborais precárias tornam difícil a organização sindical
e aqueles que tentam acabam sendo ameaçados e perseguidos pela
empresa. Na Colômbia, estima-se que menos de 5% dos traba-
lhadores são membros de um sindicato; no Quênia, a cifra oscila
entre 16 e 17%; e na Etiópia é igual a zero (Morser e McRae,
2007). As empresas de flores também têm um longo currículo de
perseguição sindical e de criação de sindicatos patronais.
A saúde da força de trabalho, especialmente a das mulheres, é
severamente prejudicada pelo uso sistemático de pesticidas. Aler-
gias, irritações da pele, dores de cabeça, problemas respiratórios
e desmaios são algumas das consequências. Embora a Organi-
zação Mundial de Saúde alerte para um intervalo necessário de
24 horas entre a aplicação de pesticidas e a entrada em estufas,
essas precauções não são atendidas. Estima-se que as trabalha-
doras estejam expostas a um total de 127 pesticidas diferentes,
20% deles proibidos nos Estados Unidos por serem considerados

59
E st her Vi va s E stev e

cancerígenos (Morser e McRae, 2007). Além disso, de acordo


com o Instituto Nacional de Saúde da Colômbia, as mulheres
que trabalham nestas culturas sofrem a maior parte dos abortos,
partos prematuros e malformações que ocorrem no país.

Água para pessoas ou para flores?


O impacto ambiental merece um capítulo à parte. O cultivo
de flores requer grandes quantidades de água, o que cria uma
forte concorrência entre o “consumo” de água das flores e o das
pessoas, ou de outras terras de cultivo. Assim, regiões como a
Sabana de Bogotá, na Colômbia – onde a indústria da floricul-
tura é concentrada –, sofrem graves problemas de abastecimento
de água, e esta tem que ser buscada de outras regiões. O mesmo
acontece em diferentes países exportadores de flores. Além disso, a
não rotação de culturas impede a regeneração do solo e o exaure,
e o uso indiscriminado de pesticidas polui a terra e a água. Sem
contar o impacto causado pelas flores que viajam milhares de
quilômetros para chegar a nossas casas.
A competição com a agricultura é outra consequência dessa
produção. Na Colômbia, em regiões onde hoje se cultivam rosas,
cravos, crisântemos e dálias, antes se plantava trigo, cevada, mi-
lho, batata e hortaliças (No te Comas el Mundo e Censat Agua
Viva, 2005a). Atualmente, a monocultura da flor ocupa extensas
latitudes, prejudicando a segurança alimentar das populações,
gerando aumento no preço dos produtos básicos e expulsando
os camponeses de suas terras.
Essas rosas perpetuam um arquétipo do amor romântico,
baseado na subordinação das mulheres aos homens. As flores de
São Valentim, para além do marketing, expressam a subordinação
de um sexo ao outro e impõem um amor normatizado e hete-
ropatriarcal. Essas rosas não somente escondem a dor daqueles

60
O negócio da comida

que são explorados a quilômetros de distância, como também


daqueles que, cegamente, como cupido, acreditam num ideal
impossível – gerador de dor, amargura e dependência.
As rosas de São Valentim nos prometem amor, mas ocultam
espinhos afiados.

61
A DEUS AO C A MPE SINATO?

Uma agricultura sem camponeses


Ano após ano, a população rural mundial vem diminuindo.
O êxodo rural tornou-se uma realidade palpável no decorrer do
século XX – o que levou a uma mudança radical no cenário e
na agricultura camponesa tradicional. Em 2008, pela primeira
vez na história da humanidade, a maior parte da população do
mundo estava vivendo em cidades, uma tendência que se inten-
sificará nos próximos anos. Estima-se que, até 2030, cerca de 5
bilhões de pessoas viverão em áreas urbanas, 80% nos países em
desenvolvimento. De acordo com o Fundo das Nações Unidas
para a População (UNFPA) (2007), este crescimento será particu-
larmente notável na África e na Ásia, onde a população urbana vai
dobrar entre os anos 2000 e 2030, com um consequente impacto
sobre o sistema agroalimentar.
Na América do Norte e na Europa, essa dinâmica aconteceu
antes. Ao largo de dois séculos, entre 1750 e 1950, a população
urbana nessas regiões aumentou de 10% para 52%. Desde 1950, a
migração rural-urbana se intensificou (UNFPA, 2007). Uma ten-
dência intimamente ligada ao modelo agrícola que foi se impondo
nas últimas décadas e que significou um abandono crescente de
E st her Vi va s E stev e

áreas rurais. Na Europa, mais de mil sítios agrários desaparecem


todos os dias, de acordo com dados do Eurostat (Coordinadora
Europea de la Vía Campesina, 2011). Especificamente, entre 2003
e 2010, em apenas oito anos, foram fechados 3 milhões de sítios,
uma redução de 20% dos empreendimentos agrícolas. Em alguns
países da Europa Central e do Báltico, a queda foi ainda maior. Na
Estônia, por exemplo, desapareceram 47% das explorações agrá-
rias. Hoje, na Europa, o número de agricultores soma 12 milhões
(Comisión Europea, 2013). Se considerarmos que, de acordo com o
discurso dominante, o desenvolvimento de um país é inversamente
proporcional à evolução do trabalho no campo, deveríamos estar
em situação melhor. A realidade, no entanto, é muito diferente.
Trata-se de um mundo rural empobrecido, como indicado
pela mesma Comissão Europeia, com um risco de exclusão social
maior do que nas áreas urbanas. Na verdade, um terço das pessoas
pobres da União Europeia estão concentradas em áreas rurais.
Pobreza que afeta, sobretudo, as mulheres. O envelhecimento da
população, a falta de oportunidades para os jovens, a dificuldade
de acesso aos serviços públicos, a migração, os baixos rendimentos
na agricultura, as deficientes infraestruturas são sintomas claros
dessa marginalização (Employment, Social Affairs and Equal
Opportunities. European Comission, 2008).

Menos sítios, maiores fazendas


O Estado espanhol não é uma exceção. A agricultura passou
de uma das principais atividades econômicas a uma prática quase
que residual. Em 1900, 70% da população ativa trabalhava no
setor agrícola; em 1950, esta tinha caído para 50%; em 1980,
representava apenas 19%; e em 2013, somava meros 4,3% (Rubio,
2013). As explorações agrárias, da mesma forma, desaparecem em
alta velocidade. No período de 1999 a 2009, em apenas em dez

64
O negócio da comida

anos, diminuíram em 23%, de acordo com o Censo Agrário do


Instituto Nacional de Estatística (INE, 2011a). Em breve teremos
que pendurar em nossos campos a placa “fechado por luto”.
A concentração corporativa é outra realidade, com menos sí-
tios, mas fazendas maiores. Entre 1999 e 2009, apesar da redução
das explorações agrícolas, as que permaneceram aumentaram suas
extensões em todas as regiões. Os maiores aumentos ocorreram
na Galiza, La Rioja e Cantábria. Na pecuária, a dinâmica se
repetiu: o número de fazendas de criação de animais de cada
espécie diminuiu, mas aumentou o número médio de cabeças.
Castilla y Leon ficou à frente na produção de bovinos e ovinos e
Catalunha foi a primeira na produção de aves e porcos, ambas as
comunidades autônomas com o maior número de exemplares de
cada uma destas espécies (INE, 2011a). De fato, na Catalunha,
existem praticamente tantas cabeças de porcos quanto de pessoas.
Os rendimentos agrícolas, em geral, também caíram nos
últimos anos, embora em 2013 tenham aumentado 7,7%, após
vários anos mantendo-se estáveis ou em queda livre. De acordo
com o Coordenador das Organizações de Agricultores e Pecua­
ristas (Coag), o setor agrícola perdeu 23% do seu rendimento
na última década: de um total de 26,324 bilhões de euros em
2003 para 24,337 em 2013 (Maté, 2013). Além disso, os custos
de produção continuam a aumentar e representam agora 93%
do rendimento agrícola como um todo. A alta dos preços da
energia, fertilizantes e rações tem contribuído decisivamente para
o aumento (Coag, 2013a). As receitas diminuem, mas os gastos
não fazem senão aumentar.

Os preços na origem e no destino


A diferença entre o preço pago ao produtor na fonte e o que
nós pagamos na loja ou supermercado continua a subir. Se em

65
E st her Vi va s E stev e

junho de 2013 o preço do produto alimentar da origem ao des-


tino se multiplicava em média por 3,79 (UCE, Coag e Ceaccu,
2013), um ano depois, em junho de 2014, o valor é multiplicado
por 4,52. Os produtos com maior aumento no custo foram: a
abobrinha, o repolho e a beringela, com diferenças percentuais
entre o preço na origem e no destino de 950%, 808% e 717%,
respectivamente (UCE, Coag e Ceaccu, 2014). Definitivamente,
quem produz o que comemos é quem menos dinheiro recebe.
Diante dessa situação, a Coag, a União dos Consumidores de
Espanha (UCE) e a Confederação Espanhola de Donas de Casa,
Consumidores e Usuários (Ceaccu) impulsionaram uma proposta
de lei sobre as margens comerciais de produtos alimentares, que
foi aprovada pelo Congresso dos Deputados em 2008. A proposta
era exigir maior transparência no processo de fixação dos preços
ao longo da cadeia alimentar, recomendando a criação de um
observatório de preços para monitorar e sancionar as práticas na
fixação dos montantes; exigia ação para eliminar a especulação
nos mercados de alimentos e para implementar uma dupla rotula-
gem (preços de origem e de destino), o que permitiria conhecer o
valor real dos alimentos e detectar distorções nesses preços, entre
outras medidas (UCE, Coag e Ceaccu, 2008). Embora seja mais
fácil falar do que fazer...
A “venda com prejuízo” por parte dos supermercados – ven-
der abaixo do preço que é pago ao produtor – é uma prática
comum, apesar de ser proibida pela Lei do Comércio Varejista
e pela Lei de Concorrência Desleal. Grandes mercados, no en-
tanto, usam esta medida a fim de fidelizar os clientes, vendendo
alguns produtos – os chamados “produtos-propaganda” – a um
preço muito baixo. Apesar de entrar menos dinheiro com essas
vendas, isso é compensado pelo aumento da comercialização de
outras mercadorias.

66
O negócio da comida

O azeite de oliva tem sido, nos últimos anos, um dos produtos


agrícolas mais afetados por essa prática. Agora, parece que chegou
a vez do arroz. Mas nem tudo que reluz é ouro. O consumidor
pensa poupar com estes métodos, mas, uma vez no “super”, o
que deixa de pagar em um produto acaba pagando em outro. Os
grandes varejistas sempre ganham. Entretanto, essas práticas têm
um efeito devastador sobre o campo, já que pressionam a baixa dos
preços que se pagam na origem por tais alimentos-de-promoção,
conduzindo à ruina o agricultor. Sem contar a fraude que ocorre
frequentemente com essas práticas, por exemplo, quando nos
vendem azeite extra-virgem a um preço extremamente barato,
e, analisando depois o produto, percebemos que não é o óleo de
primeira qualidade que nos foi dito.
Muitos agricultores, por conta dessas práticas, acabam falin-
do, pois não podem sobreviver nesse sistema preparado para o
agronegócio e para o grande varejo. Mas as nossas necessidades
alimentares continuam. Então, se eles desaparecerem, quem irá
nos alimentar? Quem vai produzir e distribuir a comida? Acho
que a resposta é clara: as poucas empresas que controlam cada
uma das etapas da cadeia alimentar. São as transnacionais como
a Dupont, Syngenta, Monsanto, Kraft, Nestlé, Procter & Gam-
ble, Danone, Carrefour, Alcampo, El Corte Inglés, Mercadona,
somente para mencionar algumas.
A falta de vontade política por parte dos governos e institui-
ções internacionais para sustentar uma agricultura local, familiar
e camponesa é a principal causa desse desvio. A Política Agrícola
Comum (PAC), promovida pela União Europeia, e a regulariza-
ção fundiária da Organização Mundial do Comércio, são bons
exemplos desse processo de globalização agroalimentar a serviço
de um punhado de empresas transnacionais que procuram fazer
negócios com os alimentos.

67
E st her Vi va s E stev e

Quem se beneficia da Política Agrícola Comum (PAC)?


A União Europeia parece determinada a acabar com o peque-
no agricultor. É o que se percebe da reforma da Política Agrícola
Comum (PAC), adotada em dezembro de 2013. As medidas mais
uma vez beneficiam os latifundiários e o agronegócio e penalizam
aqueles que trabalham e cuidam da terra.
Embora na Espanha apenas 350 mil pessoas sejam registra-
das como trabalhadores do campo, 910 mil recebem subvenções
(Coag, 2013b). Quem são estes 560 mil beneficiários de ajuda,
que não são camponeses, mas que recebem esse dinheiro? São as
empresas do agronegócio, as grandes vitícolas, os supermercados
e os proprietários de terras. Seus nomes: Pastas Gallo, Nutrexpa,
Bodegas Osborne, Nestlé, Campofrío, Mercadona, El Pozo,
García Carrión (Don Simon), Casa de Alba etc. (Veterinarios
sin Fronteras, 2012).

Uma elite hipersubvencionada


Dos beneficiários totais da PAC, 16% recebem 75% das
subvenções, enquanto 84%, a grande maioria, têm que dividir
25% – o que pode significar 500, mil ou mil e poucos euros por
contemplado por ano. Existe, portanto, uma elite hipersubvencio-
nada pelo PAC. Esse fato se tornou público em 2010, quando pela
primeira vez foi veiculada (com oposição por parte dos governos
e da Comissão Europeia) a lista de todos os favorecidos por seus
fundos (Veterinarios sin Fronteras, 2012). Políticas que levaram
17% dos proprietários das maiores fazendas na Espanha a ter uma
renda bem acima da renda média geral, enquanto que 60% dos
pequenos produtores estão abaixo dessa média (Oxfam, 2005).
No restante da Europa, a dinâmica é muito semelhante. De
acordo com a Comissão Europeia, em 2002, 5% dos maiores
produtores na Europa concentraram a metade das ajudas. Na

68
O negócio da comida

Grã-Bretanha, as famílias à frente das principais fortunas do país


recebem anualmente subsídios substanciais da PAC: o Duque de
Westminster recebe cerca de 470 mil euros; Sir Adrian Swire, 300
mil para sua fazenda em Oxfordshire; o Duque de Malborough,
535 mil para a sua exploração de cereais, entre outros. A mesma
lógica se repete em países como a França e a Alemanha. De acordo
com o governo francês, um quarto de todos os agricultores não
recebe qualquer auxílio, enquanto 15% das maiores propriedades
concentra 6 de cada 10 euros em subsídios (Intermón Oxfam,
2005).
Como denuncia o relatório “Golias contra Davi. Quem ganha
e quem perde com a PAC na Espanha e nos países pobres”, de
Intermón Oxfam (2005): “As ajudas milionárias da PAC susten-
tam um modelo de produção intensiva que premia os que mais
têm e provoca distorções significativas nos mercados internacio-
nais, muitas vezes, às custas dos países em desenvolvimento”, e
acrescenta que “por trás do emaranhado jurídico e técnico que
acompanha o funcionamento do sistema, se esconde um princípio
muito simples: quanto mais você produzir e mais terra possuir –
ou seja, quanto mais rico for – mais apoio público recebe”.
Nos Estados Unidos se repete e se aguça o mesmo padrão,
com a Farm Bill, o equivalente à PAC Europeia: 10% das fazendas
receberam, entre 1995 e 2003, uma média anual de US$ 34.424
per capita, enquanto 80% das menores obtiveram US$ 768 por
beneficiário (Oxfam, 2005). A pobreza rural nos EUA é um pro-
blema muito sério, resultado da alta concentração agroindustrial.

A superprodução, tônica dominante


A PAC, de acordo com a Coordenação da Via Campesina
Europeia (2008), é o resultado das más políticas agrárias apli-
cadas desde antes de 1992, e da implementação de algumas

69
E st her Vi va s E stev e

reformas ainda piores em 1992, 1999 e 2003, seguindo os


ditames da Organização Mundial do Comércio (OMC). A
PAC impulsionou, desde sua criação – a partir da aplicação de
medidas como a industrialização da agricultura e da pecuária
e o incentivo de preços garantidos – um aumento significativo
na produção. Tanto é assim que a superprodução, uma vez
alcançada a autossuficiência, tornou-se a tendência dominante
para certos produtos agrícolas, como cereais, leite e carne bovina
(Riechmann, 2003). Mas o que fazer com tanta comida para a
qual não havia demanda? Seu destino, então, foram os países
do Sul, onde estes produtos subsidiados eram vendidos a um
preço muito mais baixo do que o local, através de práticas de
concorrência desleal que geraram sérios prejuízos para os agri-
cultores locais. Além disso, a existência de excedentes tornava os
agricultores ainda mais dependentes dos preços subvencionados,
empurrando-os a uma maior produção para compensar os preços
baixos. Uma lógica produtivista que teve um impacto social e
ecológico muito negativo (Soler, 2007).
Com a nova reforma da PAC, nem ferrovias, nem aero-
portos e nem campos de golfe receberão mais ajudas agrícolas.
Imagino que o roubo ou desvio de fundos era demasiadamente
escandaloso, apesar da declaração de atividades só excluir estas
iniciativas e manter muitas outras que, de camponesas, não têm
absolutamente nada. A nova PAC, de fato, não endossa qualquer
definição de “agricultor ativo” ou “agricultor profissional”, deixan-
do a porta aberta para que qualquer um receba subsídios do setor
(Coag, 2003b). Assim, pessoas como Micaela Domecq, grande
proprietária de terras da Andaluzia, dona da Bodegas Domecq
e esposa do ex-ministro da agricultura (em várias legislaturas do
Partido Popular), Arias Canete, vai continuar a receber subsídios
substanciais.

70
O negócio da comida

Como afirma a Coag (2003b), na sua avaliação e análise da


reforma da PAC: “Corre-se o risco de desmantelamento de um
setor, o agrícola, estratégico para a nossa economia”. Algo que não
é novo, mas que com as medidas atuais apenas se intensificou. O
desaparecimento e o empobrecimento do campesinato são provas
irrefutáveis dessa tendência.

Via Campesina, um movimento global


A Via Campesina, o maior movimento internacional de
pequenos agricultores, trabalhadores assalariados e sem-terra
clama, todos os dias, que terra, água e sementes são essenciais
para cultivar e comer. Ou alimentos para a maioria, ou dinheiro
para a minoria, eis a questão. Vejamos essa história.

Camponeses de todo o mundo, uni-vos!


A globalização alimentar, concebida para beneficiar o
agronegócio e os supermercados, privatizou os bens comuns,
acabou com aqueles que se preocupam em trabalhar a terra e
transformou os alimentos em um negócio. A liberalização da
agricultura não é senão uma guerra contra o campesinato, for-
mada por políticas que, amparadas por instituições e tratados
internacionais, acabam com os pequenos e médios agricultores
e com as comunidades rurais.
Frente a essa ofensiva, surgiu em 1993 a Via Campesina
como a máxima expressão daqueles que combatem e resistem à
globalização neoliberal no campo e aos ditames de organizações
internacionais (como o Banco Mundial, o Fundo Monetário
Internacional e a Organização Mundial do Comércio). Os ante-
cedentes da Via Campesina remontam a meados dos anos 1980,
quando, na ocasião da Rodada Uruguai, do Acordo Geral sobre
Tarifas e Comércio (GATT), várias organizações camponesas

71
E st her Vi va s E stev e

realizaram esforços significativos para internacionalizar o movi-


mento (Desmarais, 2008).
No início dos anos 1990, foi formalmente constituída a
Via Campesina, em parte como uma alternativa mais radical à
Federação Internacional dos Produtores Agrícolas (Ifap), criada
em 1946, que, até então, era a única organização internacional
camponesa. Uma organização favorável ao diálogo com as ins-
tituições internacionais e que representava, sobretudo, interesses
dos grandes agricultores, geralmente localizados nos países do
Hemisfério Norte.
A Via Campesina nasceu, então, no alvorecer do movimen-
to antiglobalização, coordenando esforços com muitas outras
organizações, desde indígenas e feministas a grupos contra a
dívida externa – passando por aqueles que exigiam a tributação
das transações financeiras internacionais e grupos de solidarie-
dade internacional – unidos na luta contra uma globalização a
serviço dos interesses do capital. A Via Campesina provou ser o
“componente camponês” deste novo internacionalismo da resis-
tência, representada pelo movimento global de justiça (Antentas
e Vivas, 2009a).
Desde os finais dos anos 1990 e início dos anos 2000, a Via
Campesina promoveu e participou ativamente dos protestos em
massa contra a OMC e outras instituições internacionais. Em
marchas contra a cúpula da OMC em Cancun (2003) e Hong
Kong (2005), os agricultores foram os atores mais relevantes e
visíveis. Uma lembrança especial merece o agricultor coreano Lee
Kyung Hae, presidente da Federação de Agricultores e Pescadores
da Coreia do Sul, que tirou sua própria vida em protesto contra
a OMC em Cancun – após pular a cerca em torno do perímetro
de segurança – para denunciar como o agronegócio acaba com
a vida de muitos agricultores.

72
O negócio da comida

Por trás da política de alianças da Via Campesina estava a


convicção de que a luta contra o agronegócio era parte intrínseca
de uma luta mais ampla contra a globalização neoliberal, e que
outro modelo de agricultura e alimentação só seria possível no
âmbito de uma mudança global do sistema. Para isso, portanto,
era essencial a criação de amplas coalizões entre diferentes setores
sociais (Antentas e Vivas, 2009b). Golpear juntos, a partir de uma
unidade tecida com base na diversidade.
Assim, a Via Campesina foi capaz de construir uma
“identidade camponesa” global, politizada, ligada à terra e à
produção da comida. Seus membros representam os setores
mais atingidos pela globalização alimentar, pequenos e médios
agricultores, assalariados, sem-terra, mulheres rurais, comu-
nidades agrícolas indígenas, rompendo a divisão Norte-Sul e
integrando em seu seio organizações de todo o planeta: 150
grupos de 56 países (Borras, 2004). É um novo “internacio-
nalismo camponês”, como observou o economista Walden
Bello (2009).

Um novo olhar
O surgimento da Via Campesina também trouxe um novo
olhar para as políticas agrícolas e alimentares. Em 1996, no âm-
bito da Cúpula Mundial da Alimentação da FAO, em Roma, a
Via Campesina lançou um novo conceito político, o de soberania
alimentar. Até então, a fome só era abordada do ponto de vista da
segurança alimentar – no qual defende o acesso e o direito à ali-
mentação, mas sem questionar o que se come, como é produzido
e de onde vem –, e o novo conceito cunhado pela Via Campesina
“revolucionou” o debate (Vivas, 2010a).
Já não se tratava somente de comer, mas de ser “soberano”
e poder decidir. A soberania alimentar dá um passo além da

73
E st her Vi va s E stev e

segurança alimentar, e não só afirma que é preciso que todos


tenham acesso à comida, mas que também tenham acesso aos
meios de produção, aos bens comuns (água, terra, sementes). É
uma aposta na agricultura local e de proximidade, camponesa,
ecológica, sazonal – em oposição à agricultura do agronegócio,
que empobrece os camponeses, produz alimentos que percorrem
milhares de quilômetros, que acabam com a diversidade alimentar
e, além disso, nos adoecem.
Esta não é uma ideia romântica de um retorno a um passado
arcaico, mas, sim, de recuperar o conhecimento tradicional dos
camponeses e combiná-lo com novas tecnologias e conhecimentos;
para restaurar a dignidade daqueles que cuidam da terra e que
esta seja para aqueles que nela trabalham; para construir pontes
de solidariedade entre o rural e o urbano; e, especialmente, para
democratizar a produção, a distribuição e o consumo de alimen-
tos. Não é um conceito que deva ser interpretado em um sentido
autônomo, mas de solidariedade e internacionalismo, que incide
sobre uma agricultura local e camponesa, aqui e em todos os
cantos do planeta.

As mulheres contam
Uma soberania alimentar tem que ser feminista se quer sig-
nificar uma mudança verdadeira de modelo. Hoje, as mulheres,
apesar de serem as principais fornecedoras de alimentos nos paí­
ses do Sul – entre 60% e 80% da produção de alimentos é feita
por elas (FAO, 1996a) –, são as que mais sofrem com a fome,
padecendo 60% de fome crônica global (ONU Mujeres, 2011). A
mulher trabalha a terra, cultiva os alimentos, mas não tem acesso
à sua propriedade, a máquinas, a crédito agrícola. Se a soberania
alimentar não permitir a igualdade de direitos entre homens e
mulheres, não será uma alternativa de verdade.

74
O negócio da comida

A Via Campesina, ao longo do tempo, incorporou uma


perspectiva feminista, trabalhando para alcançar a igualdade de
gênero nas suas organizações e estabelecer alianças com grupos
feministas, como a rede internacional da Marcha Mundial das
Mulheres. Na Via Campesina, as mulheres se organizaram de
forma autônoma para reivindicar seus direitos, seja dentro de
seus coletivos ou em âmbito geral.
A Comissão das Mulheres da Via Campesina realizou um
trabalho fundamental, promovendo o intercâmbio entre as
mulheres rurais de diferentes países, organizando encontros
específicos de mulheres coincidindo com as cúpulas e reuniões
internacionais, e incentivando a sua participação em todas as
instâncias e atividades da organização. Em 2006, realizou-se, em
Santiago de Compostela, o Congresso Mundial das Mulheres da
Via Campesina, que destacou a necessidade de reforçar ainda mais
a articulação de mulheres e aprovou a criação de mecanismos para
uma maior troca de experiências e planos de luta específicos. Entre
as propostas aprovadas estava a decisão de lançar uma campanha
global contra a violência de gênero e pelo reconhecimento dos
direitos das mulheres rurais, exigindo igualdade real no acesso
à terra, ao crédito, aos mercados e aos direitos administrativos.
Apesar da paridade formal na Via Campesina, as mulheres
têm mais dificuldades para viajar ou participar de reuniões e en-
contros. Como observado por Annette Aurélie Desmarais (2008)
em seu livro La Via Campesina:
Há muitas razões pelas quais as mulheres não participam neste nível.
Talvez o mais importante é a persistência de ideologias e práticas culturais
que perpetuam as relações de gênero desiguais e injustas. Por exemplo, a
divisão do trabalho por gênero significa que as mulheres rurais têm muito
menos acesso ao recurso mais precioso, o tempo, para participarem como
líderes em organizações agrícolas. Dado que as mulheres são as principais
responsáveis por cuidar dos filhos e dos idosos (...) a tripla jornada para as

75
E st her Vi va s E stev e

mulheres – que envolve trabalho reprodutivo, produtivo e comunitário –


as tornam muito menos propensas a ter tempo para sessões de formação
e de aprendizagem para sua capacitação como líderes.

A despeito das dificuldades objetivas, avançar no sentido da


igualdade é uma prioridade para a Via Campesina, e isso é graças
a suas mulheres.
Há mais de 20 anos a Via Campesina vem articulando resis-
tência no campo e tecendo redes e alianças em âmbito interna-
cional. Alimentarmo-nos é essencial para todos, seja no campo,
seja na cidade, no Norte ou no Sul do planeta. Comer hoje, como
nos recorda a Via Campesina, tornou-se um ato político.

Terra para quem nela trabalha


A terra é uma fonte de negócios para uns poucos, seja aqui,
seja no outro lado do planeta. Na Espanha, o boom imobiliário
deixou um legado das urbanizações em ruína, aeroportos prati-
camente sem aviões, cidades fantasmas, grandes infraestruturas
obsoletas. Uma realidade que a fotógrafa Julia Schulz-Dornburg
(2012) retratou cruamente em seu livro Ruínas modernas, uma
topografia do lucro. Nos países do Sul, a ganância e os negócios
com a terra expulsam os camponeses e povos indígenas, impondo
monoculturas para exportação, grandes infraestruturas que só
servem ao capital e à pilhagem dos recursos naturais.

Os governos corruptos
A oligarquia do poder negocia compromissos urbanísticos nos
bastidores, propõe requalificações e transforma a terra rural em
edificável. Os casos de corrupção se multiplicam. A “cultura do
envelope marrom”* está na ordem do dia. Um novo despotismo

* Envelope com dinheiro, passado entre políticos. (N. T.)

76
O negócio da comida

que faz grandes negócios às escondidas, à custa da cidadania e do


território. Em outras latitudes, a história se repete: governos cor-
ruptos são os melhores parceiros para os investidores que querem
adquirir terrenos de forma rápida e barata. De acordo com um
relatório da Oxfam Internacional (2012), é vendida, a cada seis
dias, para investidores estrangeiros, uma superfície equivalente
ao tamanho da cidade de Londres. É a febre pela terra.
A privatização e a apropriação de terras estão na ordem do
dia. O que pode haver de mais precioso do que aquilo que pre-
cisamos para viver e comer? A crise alimentar e financeira, que
eclodiu em 2008, deu lugar a um novo ciclo de apropriação de
terras em escala global. Os governos dos países dependentes da
importação de alimentos, com o pretexto de garantir a produção
de comida para a sua população – assim como o agronegócio
e os investidores (fundos de pensão, bancos) com fome de in-
vestimentos novos e rentáveis – vêm adquirindo, desde então,
terras férteis em países do Sul (Grain, 2009a). Uma dinâmica
que ameaça a agricultura camponesa e a segurança alimentar
nesses países.

Povos indígenas em pé
Os povos indígenas, expulsos de suas terras, são a ponta de
lança da luta contra a privatização da terra. Uma batalha que não
é nova e da qual Chico Mendes, seringueiro, conhecido por sua
luta em defesa da Amazônia e assassinado em 1988 por fazendei-
ros brasileiros, foi um dos principais expoentes. Chico Mendes
articulou no Brasil a Aliança dos Povos da Floresta – composta
por índios, seringueiros, ambientalistas e agricultores campone-
ses – contra empresas madeireiras transnacionais, reivindicando
uma reforma agrária com propriedade comunitária da terra e seu
uso em usufruto por parte das famílias camponesas. Como ele

77
E st her Vi va s E stev e

costumava dizer, “não há nenhuma defesa da floresta sem a defesa


dos povos da floresta” (Porto-Gonçalves, 2009).
Na Espanha, o Sindicato Obreros del Campo (SOC), que faz
parte do Sindicato Andaluz de Tabajadores (SAT), tem sido uma
das principais referências na luta pela terra e em defesa dos direitos
dos trabalhadores assalariados do campo. Em março de 2012 eles
ocuparam a fazenda Somonte, em Palma del Río (Córdoba), uma
terra que a Junta de Andaluzia se preparava para vender embora
1.700 pessoas estivessem desempregadas no município. O objetivo
dos ocupantes, que desde 2012 passaram a trabalhar naquelas
terras, é de que a propriedade seja cultivada pela cooperativa de
trabalhadores desempregados, em vez de passar para as mãos
de banqueiros e grandes proprietários de terras. Somonte é um
símbolo da luta do SOC e do SAT, como também é Marinaleda*
e muitos outros projetos que eles impulsionam.
No início de 1900, Emiliano Zapata, camponês e referência
da Revolução Mexicana, exigia: “Terra para quem a trabalha”.
Passaram-se mais de 100 anos e esse slogan continua valendo.

* Marinaleda, um pequeno município de Sevilha, Espanha, tem sido chamada de


“utopia comunista”, por seu projeto cooperativista. (N. T.)

78
AGR ICULTUR A E A LIMENTAÇ ÃO,
NOME S DE MULHER

As invisíveis do campo
Agricultura e alimentação são áreas onde as mulheres tradi-
cionalmente desempenham um papel fundamental. Entre 60%
e 80% da produção de alimentos nos países do Hemisfério Sul é
realizada por elas – 50% em todo o mundo (FAO, 1996a).* Elas
são as principais fornecedoras de comida, encarregadas de traba-
lhar a terra, guardar as sementes, processar os alimentos, coletar
os frutos, obter água, cuidar dos rebanhos e vender no mercado.
Em muitos países africanos, de acordo com a FAO (1996a),
as mulheres realizam 70% do trabalho agrícola: são responsáveis
por 90% do abastecimento de água e lenha em suas casas; por
60% a 80% da produção de alimentos para o consumo familiar
e para a venda; por 60% das atividades de colheita e de comer-
cialização no mercado; por 100% do processamento de alimentos
e por 80% das ações para o armazenamento e transporte da roça
para a aldeia. Estes números mostram o papel crucial que as

* A FAO mesma reconhece que se torna difícil responder de maneira empírica


rigorosa a essas percentagens, devido às ambiguidades conceituais (o que se
entende por “alimento” e “produção”) e o caráter limitado dos dados.
E st her Vi va s E stev e

mulheres africanas têm na produção agrícola de pequena escala


e na subsistência da família.
Mas, apesar desse papel crucial na agricultura e na alimen-
tação, as mulheres são invisíveis neste modelo agrícola, e são as
mais afetadas pela fome. Especificamente, estima-se que 60%
da fome crônica do mundo afeta mulheres e meninas (ONU
Mujeres, 2011). Isto ocorre porque, em muitos casos, elas não
têm acesso à terra, máquinas, crédito agrícola, formação e à
tomada de decisões. Vemos como o modelo agroalimentar não
é determinado apenas pela lógica de um sistema capitalista, que
antepõe interesses particulares às necessidades coletivas, mas
também pela lógica de um sistema patriarcal que invisibiliza,
desvaloriza e subordina o trabalho das mulheres.

Sem acesso à terra


O acesso à terra não é um direito garantido para muitas mu-
lheres. Em vários países do Sul, elas são proibidas por leis de ter
titularidade da terra, e em outros – onde elas têm legalmente esse
direito assegurado –, às vezes, as tradições e práticas as impedem.
Além disso, como afirma a FAO (2010b), as mulheres “não só têm
menos acesso à terra do que os homens, como muitas vezes só detêm
direitos secundários à propriedade – ou seja, são titulares de tais
direitos através dos homens de sua família. Portanto, elas podem
perder seus direitos à terra em caso de divórcio, viuvez ou migração
de seus maridos”. É preciso ter em mente que a terra é o ativo mais
importante para as famílias que dependem da agricultura, pois
permite a produção de alimentos, serve como um investimento
para o futuro e como garantia no acesso ao crédito, uma vez que a
sua propriedade é sinônimo de riqueza e status social.
Internacionalmente, com base na comparação dos diferentes
censos agrícolas, estima-se que menos de 20% da propriedade

80
O negócio da comida

da terra pertence a mulheres. Na África do Norte, na África


Ocidental e Central e no Oriente Médio esse número cai para
menos de 10%. Estes dados são um pouco melhores na Ásia e
na África Oriental e Austral, assim como em algumas áreas da
América Latina, onde, em alguns países, essa porcentagem pode
chegar a 30% dos títulos de terra nas mãos de mulheres. Mesmo
assim, muito atrás dos homens. Além disso, geralmente as áreas
da propriedade feminina são de menor tamanho e de pior qua-
lidade (FAO, 2010b).
As mulheres também enfrentam mais dificuldades na ob-
tenção de crédito, serviços e insumos. Globalmente, e de acordo
com várias fontes (Fraser, 2010; FAO, 1996a), se calcula que
as mulheres consigam apenas entre 1% e 10% do total de em-
préstimos agrícolas, e, mesmo que os obtenham, não é claro se
o controle sobre eles é finalmente exercido por elas ou por seus
companheiros ou familiares.

Uma clara divisão de gênero


As mulheres camponesas, durante séculos, têm sido respon-
sáveis pelas tarefas domésticas: cuidado das pessoas, alimentação
de suas famílias, criação de gado, cultivo de subsistência e comer-
cialização de alguns excedentes de suas hortas, se encarregando
do trabalho reprodutivo, produtivo e comunitário, e ocupando
uma esfera privada e invisibilizada. Além disso, segundo a FAO
(2013b), elas são mais propensas a gastar os seus rendimentos em
comidas e necessidades das crianças, ao contrário de seus compa-
nheiros. Assim, consequentemente, as chances de sobrevivência de
uma criança, especialmente no Sul, aumentam em 20% quando
é a mãe quem controla o orçamento familiar.
Porém, as principais transações econômicas agrícolas são
tradicionalmente realizadas por homens; nas feiras, na compra

81
E st her Vi va s E stev e

e venda de animais, na comercialização de grandes quantidades


de cereais. Enfim, atividades que fazem parte da esfera pública
camponesa. Esta divisão de papéis atribui às mulheres o cuidado
da casa, da saúde, da educação e alimentação de suas famílias,
e outorga aos homens a gestão da terra e da maquinaria – ou
seja, da “técnica” – e mantém intactos os papéis definidos como
“masculinos” e “femininos” que, por muitos anos e ainda hoje,
persistem em nossas sociedades.
No entanto, ocorre uma notável “feminização” do trabalho
assalariado agrícola em muitas regiões do Sul global, na América
Latina, na África subsaariana e no Sul da Ásia. Entre 1994 e
2000, as mulheres ocupavam 83% dos novos postos de trabalho
no setor da exportação agrícola não tradicional (Fraser, 2009).
Esta dinâmica também veio acompanhada da marcada divisão
de gênero: nas plantações, as mulheres executam as tarefas não
qualificadas, tais como a respiga e a embalagem, enquanto os
homens se encarregam da colheita e do plantio.
Esta incorporação das mulheres no âmbito do trabalho re-
munerado implica uma carga de trabalho dupla, pois continuam
a realizar o cuidado de suas famílias enquanto trabalham para
gerar renda, geralmente em empregos precários. Elas têm piores
condições de trabalho do que seus pares masculinos e recebem
remuneração inferior para as mesmas tarefas, tendo que trabalhar
mais para ganhar o mesmo rendimento.

Migração em feminino
O aprofundamento da crise no campo nos países do Sul e
a intensificação da migração para as cidades provocaram, ao
longo da segunda metade do século XX, um claro processo de
“descampenização” (Bello, 2009) que, em muitos países, não
assumiu a forma de um clássico movimento campo-cidade – em

82
O negócio da comida

que os antigos camponeses iam para as cidades para trabalhar em


fábricas, no marco de um processo de industrialização. Em vez
disso, sucedeu o que o sociólogo Mike Davis (2006) chamou de
um processo de “urbanização desconectada da industrialização”,
no qual os camponeses, empurrados para as cidades, passaram a
engrossar a periferia das grandes urbes (favelas, barriadas, slums),
muitos sobrevivendo da economia informal, configurando o que
o autor chama de “proletariado informal”.
As mulheres têm sido um componente essencial destes fluxos
de migração nacionais e internacionais, que têm provocado o des-
mantelamento e abandono das famílias, da terra e dos processos de
produção. Ao mesmo tempo, esse processo gera para as mulheres
que permanecem em suas regiões um aumento da carga familiar e
comunitária. Na Europa, Estados Unidos e Canadá, as mulheres
migrantes acabam executando os serviços dos cuidados, que anos
atrás eram realizados pelas mulheres nativas, reproduzindo assim
uma espiral de opressão, sobrecarga e invisibilização dos cuidados.
A incapacidade para resolver a atual crise dos cuidados nos
países ocidentais, resultado da incorporação maciça das mulheres
ao mercado de trabalho, o envelhecimento da população e a falta
de resposta do Estado a estas necessidades implica a “importa-
ção” maciça do trabalho feminino de países do Sul global para
os trabalhos doméstico e de cuidados pagos. Assim, se estabelece
uma “cadeia internacional de cuidados”, que se torna um círculo
vicioso e permite, não o esqueçamos, a sobrevivência do sistema
capitalista e patriarcal (Ezquerra, 2010).
Frente a este modelo agroalimentar incapaz de atender às
necessidades das pessoas, que não respeita o ecossistema e é
especialmente injusto para as mulheres, se coloca o paradigma
alternativo da soberania alimentar. Uma proposta que necessa-
riamente tem que ser feminista, se quer significar uma alternativa

83
E st her Vi va s E stev e

real. Porque, sem igualdade de gênero no acesso à terra, às se-


mentes, ao crédito agrícola, às máquinas, à formação e à tomada
de decisões, que soberania alimentar vamos ter? Sem visualizar
ou valorizar o trabalho das mulheres no campo, que soberania
alimentar vamos construir?

Onde estão as camponesas?


Quando pequena, eu ajudava meus pais na tenda de ovos que eles
tinham no Mercado Central de Sabadell. Ia depois da escola ou aos
sábados. No entorno do mercado sempre havia aquelas camponesas,
com suas barracas improvisadas e aqueles grandes cestos com legumes
e frutas frescas. Uma imagem que se repetia em inúmeros mercados.
Os anos se passaram e elas ainda estão lá. Mas quando olhamos
para áreas rurais, as camponesas são as invisíveis da terra. Quantas
trabalham a vida toda no campo e não constam em nenhum lugar?
O que é feito das camponesas? Onde estão? Analisaremos adiante o
passado, o presente e o futuro delas na Espanha.

Sem direitos
O papel das mulheres rurais tem sido fundamental no campo.
Mulheres que cuidam da terra, de filhas e filhos, da casa, dos
animais. Mesmo com as mudanças nas zonas rurais, elas ainda
têm um peso significativo na agricultura familiar. Estima-se que
82% das mulheres rurais trabalham atualmente no campo, mas a
maioria o faz na qualidade de cônjuge ou filha, invisibilizadas, sem
direitos, em atividades formalmente consideradas nas estatísticas
como “ajuda familiar” (Ministerio de Agricultura, Alimentación
y Medio Ambiente, 2011). Isso significa que elas não contribuem
para a seguridade social. Portanto, elas não têm acesso à indeni-
zação por desemprego, por acidente, por maternidade ou a uma
aposentadoria digna.

84
O negócio da comida

Nessas circunstâncias, as mulheres não têm independência


econômica, não recebem uma remuneração pessoal e direta
para o trabalho que realizam, e dependem dos maridos que
têm o título da exploração agrária. Esta é uma situação que
ocorre com frequência em pequenos sítios, onde as pessoas têm
baixos rendimentos e são incapazes de pagar duas contribui-
ções para a seguridade social. Portanto, opta-se por pagar a do
homem, em detrimento da contribuição das mulheres. María
del Carmen Garcia Bueno, do Sindicato de Trabalhadores do
Campo, deixa claro: “A nós não nos consideravam nem mes-
mo como diaristas, éramos donas de casa de acordo com as
estatísticas, e entre nós mesmas não tínhamos consciência de
sermos trabalhadoras” (Soberanía alimentaria, biodiversidad
y culturas, 2010).
A propriedade da terra é uma clara fonte de desigualdade.
Cerca de 76% das explorações têm como titular e chefe um ho-
mem, e apenas 24% estão nas mãos das mulheres, de acordo com
o Censo Agropecuário de 2009. Essa percentagem tem aumentado
recentemente, já que a morte do cônjuge significa a passagem da
propriedade para a esposa. Não é fácil encontrar mulheres jovens
ou de meia-idade como titulares das propriedades. Temos que ter
em mente que, pelos costumes, o herdeiro legítimo da propriedade
era o filho primogênito homem. A mulher, portanto, somente
herdava se não tivesse irmãos.
Nos casos em que a mulher é titular da propriedade, esta cos-
tuma ser área menor, menos rentável e está, geralmente, localizada
em áreas menos favorecidas ou montanhosas. Alguns dados para
ilustrar essa realidade: 61% das mulheres titulares de propriedades
agrícolas são donas de parcelas marginais e de difícil viabilidade
econômica; para sobreviver precisam de outro emprego e têm
maior risco de desaparecer como proprietárias. Na Galícia, por

85
E st her Vi va s E stev e

exemplo, 25% das mulheres são titulares e, dessas, 79% o são em


pequenas propriedades (VVAA, 2003).
A tomada de decisão no campo, de igual modo, recai em
grande parte no homem. Na unidade familiar há uma clara
divisão de trabalho por sexo. Assim, as atividades de caráter e
responsabilidade pública (trabalho assalariado, a participação nos
órgãos políticos, as transações econômicas relevantes) ficam com
homens, enquanto as de caráter privado (trabalho doméstico,
cuidado de dependentes, nutrição e saúde da família) ficam com
as mulheres. Uma divisão de papéis que dá ao camponês, e não à
camponesa, o poder de decisão. Da mesma forma, o acúmulo de
trabalho produtivo e reprodutivo e o não compartilhamento das
responsabilidades domésticas impedem as mulheres de ter tempo
disponível para participar em espaços de representação pública.
As cooperativas agrícolas são muito masculinizadas. Pelo
menos 75% de seus membros são homens, e os 25% de mulhe-
res enfrentam barreiras significativas para ascender aos órgãos
de administração. Nesses espaços, a participação feminina é de
apenas 3,5% (Carretero e Avello, 2011). A filiação e as direções
da maioria dos sindicatos agrícolas são outro claro exemplo: eles
são integrados essencialmente por homens, apesar do trabalho
fundamental e diário das mulheres no campo.

Abandonando o mundo rural


O mundo rural também sofreu uma perda constante da po-
pulação, o que significou seu envelhecimento e “masculinização”.
Se, em 1999, na Espanha, 19,4% dos habitantes residiam em
um município rural, dez anos depois este número havia caído
para 17,7%. Nos municípios com menos de dois mil habitantes a
queda foi mais acentuada, com a perda de 30% de sua população,
segundo os censos municipais de 1999 e 2008. A vida rural está

86
O negócio da comida

se estinguindo gradualmente. A migração de jovens, somada ao


baixo crescimento populacional, são causas disso. Embora pareça
que nos últimos anos esta tendência tenha sido estancada e se
observa um “retorno ao campo” por parte de pessoas da cidade,
isso é insuficiente, no momento, para frear o despovoamento.
O mundo rural está sofrendo de envelhecimento acelerado.
22,3% dos seus habitantes têm mais de 65 anos, sendo que nas
áreas urbanas este percentual é 15,3%. Os jovens que querem
estudar vão para as grandes cidades, e muitos não retornam. Ao
mesmo tempo, o número de mulheres com idade entre 20 e 50
anos diminui, resultando em um aumento da “masculinização”
(Ministerio de la Presidencia, 2010).
As mulheres migram para as cidades por causa da falta de
oportunidades de trabalho em seus municípios e, inclusive, tam-
bém por conta da “resistência social” ao assumirem trabalhos
tradicionalmente feitos por homens. Da mesma forma, e como
observado pela Federação de Mulheres Rurais (2012), sua saída
também se deve à “pressão social decorrente da presença de papéis
e estereótipos de gênero” e à falta de serviços e infraestruturas
(escolas, assistência sanitária, transportes públicos, centros cul-
turais) nos pequenos municípios.

Saúde ameaçada
Outro impacto do sistema agrícola industrial na vida das
mulheres camponesas e no mundo rural se dá sobre a saúde.
Meses atrás, em um encontro de mulheres rurais em Tenerife,
tive a sorte de encontrar a bailarina Ana Torres e sua companhia
Revolotearte. Nessa reunião, eles interpretaram a peça “Silent
Spring” [Primavera Silenciosa], inspirada na obra de mesmo
nome de Rachel Carson, na qual retratavam, através da dança, do
corpo e de imagens, o impacto brutal da utilização de pesticidas

87
E st her Vi va s E stev e

na saúde de trabalhadoras assalariadas nas plantações de tomates


nas Ilhas Canárias. A performance combinava uma impactante
coreografia com imagens e declarações de trabalhadoras do
campo, que explicavam, em primeira pessoa, suas experiências.
“Eu me lembro. Nós no campo e o avião acima de nós fumi-
gando. E ficávamos enchumbadas como quando lhe cai uma chu-
va, igual. Todas cheias de veneno”, disse uma das trabalhadoras
entrevistadas. Outra acrescentou: “Eu nunca conheci luvas, não
conheci uma máscara, não conheci lavar as mãos para sentar-me
para comer, porque ali não se dizia nada.” E mais outra: “Vivíamos
na ignorância. Sulfatavam, pois sulfatavam. O capataz dizia-nos
que isso não matava animais de ossos. E víamos as lagartas, la-
gartixas... e dizíamos: ‘Esta não tem osso, é claro, pois às pobres
as mata’. E então, não penses que a ti também pode causar dano”.
Nas Ilhas Canárias, de acordo com uma investigação da
Unidade de Toxicologia da Universidade de Las Palmas, o uso
sistemático de grandes quantidades de pesticidas na agricultura
intensiva, incluindo DDT (que foi proibido na Europa no final dos
anos 1970), teve um impacto direto sobre a saúde da população. Se-
gundo a Agência Internacional de Investigação do Câncer, o DDT
é uma substância cancerígena: “A exposição crônica ao DDT e seus
derivados tem sido associada a vários tipos de câncer dependentes
de estrogênio, tais como o câncer de mama” (Zumbado, 2004).
Ainda, de acordo com a investigação – que serviu de material
de trabalho e de documentação para a obra Silent Spring [Prima-
vera silenciosa] –, toda a população das Canárias tem níveis de
resíduos de DDT muito mais elevados do que a média europeia.
Especificamente, 99,3% dos casos analisados apresentaram algum
tipo de resíduo derivado do DDT, sendo as mulheres as mais
afetadas. Não surpreendentemente, como indicado pelo mesmo
estudo, “as Ilhas Canárias têm uma das mais altas taxas de inci-

88
O negócio da comida

dência e mortalidade por câncer de mama” em toda a Espanha.


Andaluzia é a segunda região mais afetada (Zumbado, 2004).
Há uma relação direta entre a agricultura intensiva, a utilização
de pesticidas e altos níveis de DDT na população, com impacto
direto na saúde pública, especialmente a das mulheres e, sobre-
tudo, camponesas.

Direito de propriedade compartilhado


Nesta situação de agressão, de falta de direitos e invisibili-
zação, as mulheres rurais se organizaram e exigiram mudanças.
Uma vitória significativa foi a Lei de Titularidade Compartilhada
das Explorações Agrárias, uma demanda reivindicada há anos, e
finalmente aprovada em setembro de 2011 pelo governo, que visa
promover a igualdade real de gênero no campo. A lei permite que
as agricultoras apareçam como coproprietárias do sítio com seu
cônjuge, permite que a mulher possa administrar e representar
legalmente a exploração agrária e que os rendimentos econômi-
cos, subsídios e subvenções correspondam a ambos. Deixa-se de
lado o conceito de “ajuda familiar” e se reconhece o trabalho das
mulheres na agricultura.
No entanto, como ressalta a secretária-geral do Sindicato
Labrego Galego, Carme Freire (2012), ainda que “a Lei de Ti-
tularidade Compartilhada represente um passo de gigante ao
avançar no reconhecimento dos direitos das mulheres no âmbito
profissional”, ela tem deficiências significativas. Por exemplo,
“para obter esse título, o parceiro ou cônjuge deve estar de acordo
em que possamos ser cotitulares. É como se tivessémos que dar
permissão para tornar efetivo um direito”. A responsável pela
política territorial do sindicato Unió de Pagesos, na Catalunha,
Maria Rovira, acredita que a lei beneficia as fazendas maiores
que podem registrar, sem problemas, as mulheres na Seguridade

89
E st her Vi va s E stev e

Social como cotitulares e serem, assim, consideradas fazendas


“prioritárias”, com maior acesso aos subsídios e incentivos fiscais,
em detrimento de pequenas propriedades (Lopez, 2011).
Mais de três anos após o seu lançamento, os limites da lei
são claros e sua efetiva implementação está ainda pendente. Na
realidade, somente uma centena de agricultoras, das 200 mil que
não são titulares, solicitaram propriedade conjunta. Isso se deve à
falta de interesse do governo em divulgar a medida. Além disso,
mesmo quando se tem a demanda por parte das agricultoras, a
falta de informação e os obstáculos burocráticos impedem sua
execução (Vía Campesina, 2013). A responsável pelo Depar-
tamento de Mulheres da Coag, Idáñez Vargas, tachou a lei de
ineficaz e criticou “o fracasso absoluto desta legislação por seu
caráter voluntário e não obrigatório” (Vía Campesina, 2013).

Um novo campesinato
Hoje, um novo campesinato começa a surgir no mundo ru-
ral. Isto é o que a doutora em Geografia, Neus Monllor (2012),
assim definiu:
os jovens que estão fazendo coisas de forma diferente, tanto se vêm de
agricultura tradicional quanto se são recém-chegados. São jovens que
estão a tomar conta da sua atividade, tentando ser independentes e vender
seus produtos diretamente, muito sensíveis ao território e à qualidade.
Acima de tudo, este novo campesinato rompe com o discurso pessimista
continuísta.

Neste novo campesinato, o papel das mulheres é importante


e fundamental. Em muitas partes da Espanha, vemos novas
experiências de trabalho no campo – na agricultura e na pecuá­
ria – dirigidas por mulheres, tendo os princípios da soberania
alimentar e da agroecologia como um estandarte. Ao mesmo
tempo, se multiplicam as iniciativas que propõem, nas cidades,

90
O negócio da comida

outro modelo de consumo, com uma relação direta e solidária


com o produtor, como são as cooperativas e grupos de consumo
agroecológicos, nos quais as mulheres, mais uma vez, têm um
papel primordial. E não nos esqueçamos dos projetos de hortas
urbanas e das propostas contra o desperdício de alimentos, que
ganharam peso nos últimos anos com a participação muito ativa
de mulheres.
Além da necessária coordenação entre estas experiências,
que apostam em outra forma de produzir, distribuir e consumir
alimentos, é imprescindível um olhar e uma reflexão feminista.
Algumas das dificuldades que essas iniciativas podem enfrentar
são idênticas àquelas de outros modelos, a partir de uma perspec-
tiva de gênero. As reflexões conjuntas das mulheres, sem dúvida,
podem significar um passo em frente.
Onde estão as agricultoras? Perguntávamos no início desse
capítulo. As agricultoras estão aqui, na frente, e pisando mais
forte do que nunca.

Da comida e dos cuidados


Hora de acender o fogão, preparar a comida, pôr a mesa e
tirar os talheres, de fazer a lista de compras e de se aproximar do
mercado ou do “super”. Essas tarefas foram realizadas, ao longo
dos anos, principalmente por mulheres. Um trabalho, o de nos
alimentar, essencial para a nossa vida e sustento. No entanto, uma
tarefa invisibilizada, desprezada. Comemos muitas vezes como
autômatos e, como tal, nem reconhecemos o que ingerimos, nem
quem põe o prato na mesa.
A alimentação nos lares continua, com frequência, sendo ter-
ritório feminino. Na Espanha, 80% das mulheres cozinham em
casa, em comparação com 46% dos homens. E quando elas vão
para a cozinha, lhe dedicam mais tempo, em média, 1 hora e 44

91
E st her Vi va s E stev e

minutos por dia. Já os homens, dedicam, em média, 55 minutos


por dia (INE, 2011b). Além disso, as mulheres também assumem
em maior medida outras tarefas organizacionais (preparar refei-
ções, previsão de compras de alimentos etc.), enquanto os homens
apenas as apoiam, quando o fazem, na execução.
As “tarefas alimentares” se enquadram no que a economia
feminista chama de “trabalho de cuidado”, atividades que não
contam para o mercado, mas são essenciais para a vida: criar,
alimentar, gerir a casa, cozinhar, atender aqueles com necessidade
(crianças, doentes, idosos), consolar, acompanhar. É um trabalho
sem valor econômico para o capital, “gratuito”, que nem é consi-
derado trabalho, e, portanto, é negligenciado, apesar de equivaler
a 53% do PIB espanhol (De Blas, 2012).

Sacrificadas e abnegadas
O patriarcado atribui algumas ocupações ao gênero feminino,
o qual, por “natureza”, tem de assumir tais funções. Mãe, esposa,
filha, avó abnegada, sacrificada, altruísta. Quem não cumprir com
este dever carrega o peso, a culpa de ser “mãe ruim”, “má esposa”,
“má filha”, “má avó”. Assim, ao longo da história, as mulheres têm
desenvolvido estas tarefas de cuidado, em função de seu papel de
gênero. A esfera do trabalho “produtivo”, desse modo, é domínio
da masculinidade, enquanto o trabalho considerado “improduti-
vo”, em casa e não remunerado, é patrimônio das mulheres. Fica
estabelecida uma clara hierarquia entre trabalhos de primeira e
“labores” de segunda. São impostas tarefas específicas, valorizadas
e não valorizadas, visíveis e invisíveis, dependendo do nosso sexo.
A alimentação, o cozinhar em casa, as compras de comida, as
pequenas hortas para o autoconsumo fazem parte desses trabalhos
de cuidados, que não são valorizados ou vistos, mas que são es-
senciais. Talvez por isso não apreciamos o que, o como ou quem

92
O negócio da comida

produz o que comemos: pensamos que quanto menos gastarmos


em comida, melhor; acreditamos que cozinhar é perder tempo;
optamos por comida fast food, “boa-bonita-barata” e rápida;
associamos ser camponês a “ser da aldeia” e ignorante. Nossos
cuidados, aparentemente, não importam. E acabamos delegando
ao mercado, que, ao final, faz negócios com esses direitos.
No entanto, todos estes trabalhos são vitais. O que seria de nós
sem comer? Sem uma alimentação saudável? Sem quem cultivasse
a terra? Sem cozinhar? Ou, o que seria de nós se ninguém nos
ajudasse ao ficarmos doentes? Sem quem cuidasse das crianças?
Sem um apoio aos idosos? Sem roupa lavada? Sem casas limpas?
Sem afeto ou carinho? Seríamos nada.

A “economia iceberg”
Esse trabalho invisibilizado é o que, definitivamente, sustenta
o lucro do capital. A metáfora da “economia iceberg”, criada pela
economia feminista, coloca isso em evidência (Duran, 2000;
Pérez Orozco, 2006). A economia capitalista funciona como um
iceberg, do qual você só vê a ponta, uma pequena parte da econo-
mia produtiva de mercado, o trabalho remunerado associado ao
masculino. Mas a maior parte do bloco permanece “escondido”
debaixo d’água. É a economia reprodutiva, da vida, do cuidado,
associada ao feminino. Sem ela, o mercado não funcionaria, por-
que ninguém a iria sustentar. Um exemplo: as horas de trabalho
invisibilizadas e incompatíveis com a vida pessoal e familiar, sem
alguém para ter o cuidado de manter a casa, preparar a comida,
buscar as crianças na escola, cuidar de idosos dependentes... Para
que alguns possam trabalhar “em maiúsculas”, outras têm que o
fazer “em minúsculas”.
Pegando a “economia iceberg” sob o ponto de vista ecológico,
vemos, também, como a natureza faz parte deste apoio invisível

93
E st her Vi va s E stev e

que permite ao capital se manter à tona. Sem sol, terra, água e ar


não há vida. A riqueza de uns poucos e o fetiche do crescimento
infinito se sustentam na exploração sistemática dos recursos na-
turais. Mas voltando ao que nos alimenta, sem esses recursos e
sem sementes, plantas ou insetos, não há comida. A agricultura
industrial capitalista avança gerando fome, descampesinação,
alterações climáticas etc, a partir do abuso indiscriminado desses
bens. Alguns ganham, a maioria perde.
O que fazer? Trata-se, como dizem as economistas feministas,
de colocar a vida no centro. Visibilizar, valorizar e compartilhar
esses trabalhos de cuidados. Tornar visível o invisibilizado,
mostrar a parte oculta do “iceberg”. Valorizar essas tarefas como
imprescindíveis, reconhecer aqueles que as exercem e dar-lhes o
lugar que merecem. E, finalmente, compartilhá-las, ser corres-
ponsáveis. A vida e o sustento são responsabilidade de todas e
todos. A comida, também.

94
TR A NSGÊNICOS NÃO, OBR IG A DO!

Transgênicos e agronegócio
Transgênicos – sim ou sim. Não nos deixam opção. A Comis-
são Europeia os impôs no início de 2014, quando decidiu adotar,
apesar da rejeição da maioria dos países membros, o cultivo do
TC1507, uma nova variedade de milho transgênico do Grupo
Pioneer-DuPont. De nada serviram os votos contra de 19 países,
de um total de 28, no Conselho de Ministros da União, inclu-
sive o rechaço da maioria do Parlamento Europeu. A Comissão
argumentou que a maioria contrária, manifestada no Conselho,
não sendo qualificada, era insuficiente para arquivar a proposta.
Desse modo funciona a Comissão, que usa esse mecanismo para
impor medidas impopulares quando lhe interessa. Quem manda
na Europa? Os cidadãos ou os lobbies?
A União Europeia, na verdade, já permite o cultivo de OGMs
(Organismos Geneticamente Modificados, ou transgênicos) –
mais especificamente, o milho MON810 da Monsanto. Um milho
geneticamente modificado, no qual é introduzido o gene de uma
bactéria que o leva a produzir uma toxina, conhecida como Bt,
que o torna resistente à broca, permitindo combater esta praga. No
entanto, muitos países membros, incluindo França, Alemanha,
E st her Vi va s E stev e

Áustria, Grécia, Irlanda, Polônia, Itália e Hungria, o proíbem. Os


relatórios científicos alertam para o seu impacto negativo sobre o
meio ambiente e assinalam claras incertezas em matéria de saúde
(Som lo que Sembrem, 2014). Prima, nesses países, o “princípio
da precaução”: se as consequências de uma prática podem ser
negativas e irreversíveis, ela não pode ser realizada até que sejam
adquiridos os conhecimentos científicos necessários para evitá-las.

Ligações perigosas
Porém, como se dizia nos tempos de Generalíssimo Francis-
co Franco, “a Espanha é diferente”. O país é o único da União
Europeia a cultivar milho transgênico em grande escala, espe-
cialmente em Aragão e Catalunha. Estima-se que na Espanha
esteja plantada 80% da produção da Europa, de acordo com o
Serviço Internacional de Agrobiotecnologia (ISAAA) (2010).
Isso sem levar em conta os campos experimentais. Por quê? O
cultivo começou em 1998 sob o governo de José Maria Aznar e
do Partido Progressista, com a produção da variedade de milho
Bt176 da Syngenta, que, em 2005, foi proibido por seus efeitos
negativos sobre o ecossistema. Desde então, a produção que se
leva a cabo é a do milho transgênico MON810. Os laços estrei-
tos entre a indústria da biotecnologia, principal promotora dos
OGMs, e as instituições públicas explicam o porquê. Amizades
perigosas para o bem comum.
A dinâmica de portas giratórias* – passagem da iniciativa pri-
vada à administração pública e vice-versa – tem estado na ordem
do dia tanto nos governos do PP quanto do Partido Socialista

* Portas giratórias se refere ao domínio das grandes companhias sobre o Estado,


expressando-se sobre a contínua troca de executivos de corporações por “servi-
dores” públicos, e vice-versa. (N. T.)

96
O negócio da comida

Operário Espanhol (Psoe).* Carmen Vela, secretária de Estado


do Desenvolvimento da Pesquisa e Inovação do Ministério da
Economia, foi anteriormente presidente da Sociedade Espanhola
de Biotecnologia (Sebiot) e tem um claro compromisso pelas
culturas geneticamente modificadas. No governo anterior do
Psoe, Cristina Garmendia, Ministra da Ciência e Inovação, foi,
antes de assumir este cargo, presidente da Asebio, o principal
lobby pró-transgênico na Espanha, que tem entre seus membros
empresas como a Monsanto, Bayer, Pioneer-DuPont. É óbvio a
quem beneficiam as medidas tomadas nessas administrações.
E estes não são os únicos exemplos. Há muitos mais, como o
observa o relatório “As más companhias. Quem decide a política
do Governo sobre transgênicos?”, publicado por Amigos de la
Tierra (2009).
A Espanha se tornou a porta de entrada dos transgênicos
na Europa. As mensagens divulgadas pelo Wikileaks deixaram
evidência disso ao revelar como o Secretário de Estado de Meio
Rural, Josep Puxeu, em 2009, chegou a pedir ao embaixador dos
EUA para “manter a pressão” sobre a União Europeia em favor dos
OGMs (El País, 2010). A aliança entre os dois governos é funda-
mental na defesa dos interesses de empresas como a Monsanto.
O governo também não poupou recursos para subsidiar a
pesquisa sobre as culturas e alimentos geneticamente modificados,
destinando 60 vezes mais dinheiro do que ao estudo da agricul-
tura ecológica, embora esta última gere 25 vezes mais empregos
do que a primeira (Amigos de la Tierra, 2010). E quando se trata
de fornecer dados sobre o número de hectares plantados, não
vacila em anunciar “novos recordes” ano após ano. Estes dados
contrastam com aqueles fornecidos por organizações agrícolas e

* Partido da direita espanhola. (N. T.)

97
E st her Vi va s E stev e

ambientalistas, e obtidos a partir das Comunidades Autônomas,


que as situam em níveis inclusive inferiores aos de 2008, com
um total de 70 mil hectares cultivados em comparação com 137
mil que indica o Ministério da Agricultura, Alimentação e Am-
biente (Ecologistas em Acción, 2014a). As organizações acusam
o governo de dar informações falsas. O discurso antitransgênico
parece estar pegando. Por isso, para a tristeza de alguns, estariam
sendo cultivados menos OGMs.

Contaminação, abelhas e mais herbicidas


Podemos situar o impacto dos transgênicos em três planos:
meio ambiente, saúde e político.
A coexistência entre culturas transgênicas e culturas conven-
cionais e ecológicas tem se demonstrado impossível (Binimelis,
2007). Embora existam recomendações que alertam para a ne-
cessidade de uma distância mínima entre elas, isto é insuficiente,
ineficaz e, além disso, o governo não mostra nenhum interesse
em regular isso formalmente. A contaminação pode ocorrer em
diferentes fases da cadeia: a partir da semente, por polinização,
meio de transporte, armazenamento ou durante o processamen-
to. Vários casos já foram denunciados. Esta situação levou ao
abandono da cultura do milho, especialmente o ecológico, depois
que muitas variedades foram irremediavelmente contaminadas.
Entre 2004 e 2005, a produção de milho orgânico na Espanha
diminuiu 42%. Em Aragão, onde mais crescem transgênicos,
69% (Cipriano, Carrasco e Arbos, 2006).
O impacto – especialmente em abelhas, mas também em
outros insetos-chave para a polinização, como zangões, borbo-
letas, vespas etc. – é uma realidade. Especificamente, o milho
transgênico Bt desprende uma toxina que não só termina com a
praga da broca, como também pode afetar esses outros insetos.

98
O negócio da comida

Desde o final dos anos 1980, tem havido um declínio significativo


na quantidade de abelhas por causa da agricultura industrial e
geneticamente modificada e o uso de pesticidas químicos que as
enfraquecem ou matam (Tirado, Simon e Johnston, 2013). Se as
abelhas desaparecerem, quem polinizará os cultivos?
Os defensores dos transgênicos afirmam que estes reduzem
o uso de pesticidas químicos. Nada é mais longe da realidade. O
milho Bt, por exemplo, ao desprender por si mesmo uma toxina
que acaba com certas larvas, torna-se o que poderíamos chamar
de “milho inseticida”. Obviamente, você não deve aplicar um
pesticida nessa cultura, porque ela mesma já o desprende 24 horas
por dia. Além disso, devemos levar em conta a resistência que
os insetos podem desenvolver nessas monoculturas com tantas
toxinas e o aparecimento de pragas secundárias, que precisam ser
tratadas com mais produtos químicos (Grain, 2013).
O mesmo é verdade com relação aos transgênicos tolerantes
a herbicidas, que incorporam um gene que permite fumigá-los
com um único herbicida, de modo que a planta, ao ser resistente
a ele, não se vê afetada, ao contrário de todas as outras que a ro-
deiam. O herbicida mais utilizado é o Roundup da transnacional
Monsanto e seu principal composto é o glifosato. A expansão em
grande escala desses cultivos, principalmente a produção de soja
transgênica em âmbito mundial, tem significado um maior uso
de herbicidas. Na Argentina, por exemplo, há 30 anos o cultivo
de soja era quase inexistente, mas, atualmente, mais da metade
de suas terras agrícolas são monoculturas de soja. Se em 1995
utilizavam-se 8 milhões de litros de glifosato para esses campos,
hoje totalizam mais de 200 milhões. Façam as contas. Além disso,
a expansão massiva desta cultura levou ao surgimento de cerca de
duas dezenas de plantas resistentes a esses herbicidas, o que tem
forçado a se usar mais pesticidas para combatê-las. O caso dos

99
E st her Vi va s E stev e

Estados Unidos é óbvio: os agricultores que em 2011 cultivaram


seus campos com sementes geneticamente modificadas necessita-
ram de 24% mais herbicidas para combater as “ervas daninhas”
resistentes do que aqueles que plantaram culturas convencionais
(Grain, 2013).

Saúde em jogo
Outra questão das mais controversas é o impacto dos OGMs
na saúde das pessoas. Muitos dizem que eles são seguros, que
foram suficientemente testados e não representam riscos para
o nosso corpo. Desde administrações públicas, departamentos
universitários até comitês científicos, muitos defendem essa po-
sição. No entanto, os interesses, muitas vezes escondidos por trás
dessas posições se tornam evidentes. Os tentáculos da indústria
de biotecnologia são muito longos. Mesmo empresas como a
Bayer e Syngenta, à frente da indústria transgênica, já têm suas
próprias cátedras: a cátedra Bayer CropScience na Universidade
Politécnica de Valência e a cátedra UAM-Syngenta de Fertilizante
de Micronutrientes na Universidade Autônoma de Madrid. É
evidente a que interesses respondem suas pesquisas universitárias,
bem como a divulgação de tais trabalhos.
Relatórios científicos independentes indicam o impacto ne-
gativo que podem ter os transgênicos sobre a nossa saúde: novas
alergias, resistência a antibióticos, diminuição da fertilidade, da-
nos aos órgãos internos etc. (Greenpeace, 2009). “Os riscos para a
saúde – em longo prazo – dos OGMs presentes na nossa alimen-
tação ou na dos animais, cujos produtos consumimos, não estão
sendo avaliados adequadamente”, sentencia Greenpea­ce (2009).
Assim que estes relatórios críticos são publicados, múltiplas
tentativas são feitas para desacreditá-los e difamar seus autores.
Há muitos interesses em jogo para empresas como a Monsanto,

100
O negócio da comida

Bayer, DuPont, Syngenta; dinheiro abundante para ganhar ou


perder, dependendo da opinião pública. Para essas empresas, se
trata de uma “guerra” onde vale tudo. As campanhas de difama-
ção contra àqueles que questionam suas verdades absolutas são
uma prova disso.
O caso do dr. Gilles-Eric Séralini (2013), que liderou um
dos estudos críticos com maior cobertura da mídia, é talvez o
melhor exemplo. Sua equipe de pesquisa na Universidade de
Caen, França, tornou público, em setembro de 2012, os resul-
tados de uma investigação científica que destacou os efeitos
nocivos, em longo prazo, do milho transgênico NK603 e do
pesticida Roundup. Em experimentos com ratos, o cientista
observou que eles desenvolveram grandes tumores e doenças
renais e hepáticas. A ofensiva contra este estudo foi imediata
e até mesmo a Agência Europeia de Segurança Alimentar se
posicionou contra. Agência essa, aliás, com laços estreitos com
a indústria da biotecnologia e cuja independência deixa muito
a desejar (Holanda, Robinson e Harbinson, 2012). Além disso,
em novembro de 2013, a revista científica Food and Chemical
Toxicology, que divulgou o relatório, se retratou por sua publi-
cação. Coincidência? A organização GMWatch (2013) mostrou
com dados esclarecedores a ofensiva da indústria biotecnológica
para controlar essas publicações.
Para além destes relatórios científicos, existem, infelizmente,
múltiplas evidências, documentadas em primeira pessoa e em
todo o mundo, do impacto negativo do cultivo de transgêni-
cos e da utilização sistemática de herbicidas com glifosato na
saúde humana. A experiência na Argentina, de Sofia Gatica,
fundadora da organização Madres de Ituzaingó e merecedora
de um Prêmio Nobel Alternativo, é um bom exemplo. Sofia
perdeu uma filha no nascimento devido a uma súbita parada

101
E st her Vi va s E stev e

renal. Ela passou a investigar as causas da doença e descobriu


que a pulverização de glifosato em plantações de soja em torno
de seu bairro, Ituzaingó, na cidade argentina de Córdoba, foi
a responsável. Seu trabalho de porta em porta a aproximou de
outras mulheres afetadas e a levou a descobrir dezenas de casos
de pacientes com câncer, malformações em crianças, problemas
respiratórios e renais, leucemia... Um estudo epidemiológico na
área confirmou seus receios: a água que bebiam estava contami-
nada com pesticidas e muitas crianças tinham tóxicos em seu
sangue. Muitas Sofias Gatica estão sofrendo as consequências
das práticas de transnacionais como a Monsanto. Embora a dor
afete geralmente os mais fracos, é impossível silenciá-la.

Concentração empresarial
Além do impacto sobre o ambiente e a saúde, um dos efeitos
negativos dos transgênicos se dá em âmbito político, com relação
ao controle das sementes – a essência da vida – e outros insumos
agrícolas (a genética do gado, os pesticidas e fertilizantes químicos
etc.). Hoje, umas poucas transnacionais como a Syngenta, Bayer,
BASF, Dow, Monsanto e DuPont controlam 60% das sementes
vendidas e 76% dos produtos químicos agrícolas aplicadas às
culturas (Grupo ETC, 2013a). Vemos como aqueles mesmos
que fazem negócio patenteando as sementes são os que também
lucram comercializando os pesticidas químicos que são utilizados
na agricultura “moderna”.
A concentração empresarial aumenta, e tem consequências.
Por exemplo, o preço das sementes nos Estados Unidos, entre
1994 e 2000, subiu mais do que os de quaisquer outros insu-
mos de produção agrícola, duplicando seu custo em relação
ao preço que os agricultores obtinham pelas colheitas (ETC
Group, 2013a). A Monsanto é a maior empresa de sementes

102
O negócio da comida

no mundo e é, ao mesmo tempo, a quarta maior produtora


de pesticidas.
Alguns dirão que os pensamentos aqui expressos são tenden-
ciosos, mas seria bom lembrar que o posicionamento dominante,
político, midiático e científico em relação aos transgênicos é um
discurso único, servido na bandeja pela indústria de biotecnologia.
São empresas que gastam milhões de euros para exaltar as virtudes
dos OGMs, que compram estudos, cátedras e departamentos
universitários e que estabelecem relações estreitas com os políti-
cos de turno. Para que não haja dúvidas: não se trata de se opor
aos avanços científicos. Muito ao contrário. O que precisamos é
incentivar uma ciência independente dos interesses das grandes
empresas e a serviço do bem comum.
Informação é poder. Aqui você a tem. Leia e julgue.

Wikileaks e os transgênicos
Os interesses da indústria de biotecnologia e as alianças
políticas para promover os transgênicos não escaparam ao le-
vantamento do Wikileaks. No final de 2010, este portal revelou
discussões entre a Embaixada dos EUA e o governo espanhol em
que este pedia a Washington que “pressionasse Bruxelas em favor
dos transgênicos” (El País, 2010).
Os telegramas, dos anos de 2008 e 2009, punham em evidên-
cia a aliança entre os dois governos em favor dos OGMs e suas
preocupações com o veto de diferentes países europeus – incluindo
Alemanha, França, Áustria, Grécia, Luxemburgo e Hungria – ao
milho transgênico MON810, de propriedade da Monsanto, e
com o avanço do movimento contra os transgênicos no Estado
espanhol. Além disso, os telegramas gravaram a mediação da
Embaixada dos Estados Unidos em favor da Monsanto e contra
as posições da Comissão Europeia para limitar o seu cultivo.

103
E st her Vi va s E stev e

Uma iniciativa legislativa popular com numerosos apoios


A Catalunha tem sido uma das principais arenas de luta contra
os OGMs, sob o impulso de uma Iniciativa Legislativa Popular
(ILP), promovida pela plataforma Som lo que Sembrem (Somos
o que semeamos), apresentado ao Parlamento da Catalunha
em 2 de julho de 2009, com o apoio de 106 mil assinaturas (o
dobro do número necessário para ser processada), exigindo uma
moratória sobre o cultivo de alimentos geneticamente modifica-
dos, uma investigação independente sobre os efeitos na saúde e
no meio ambiente, um processo de rotulagem transparente dos
produtos e, por fim, que a Catalunha fosse declarada “zona livre
de transgênicos”.
Apesar dos numerosos apoios, quando a ILP foi apresentada
ao Parlamento, as emendas de todos os partidos (Partido de los
Socialistas de Cataluña [PSC], Convergència i Unió [CiU] e
Partido Popular [PP]) a derrubaram, antes mesmo de ser discu-
tida. Enquanto isso, Esquerra Republicana de Catalunya (ERC)
e Iniciativa per Catalunya Verds (ICV), embora a tenham for-
malmente apoiado, optaram pela cômoda posição de desviar o
olhar ante a política do PSC, deixando claro que eram aliados
de seu governo nessa questão.
Relatórios aconselhando os parlamentares na tomada desta
decisão, procedentes do Conselho Consultivo do Parlamento
sobre Ciência e Tecnologia, estavam longe, como denunciou Som
lo que Sembrem (2009), de representar uma “assessoria neutra,
objetiva e independente”. Ao contrário, estes relatórios transmi-
tiam “uma aparência de inevitabilidade dos OGMs e uma suposta
coincidência de pontos de vista entre os especialistas e os setores
afetados”, ao mesmo tempo que “difamavam radicalmente um
extenso movimento camponês e social em nosso país, enquanto

104
O negócio da comida

evitavam todos os problemas dos OGMs agrícolas na Catalunha


e sua importância”.
Não devemos esquecer que a Catalunha é o segundo país
europeu com mais hectares cultivados de milho transgênico, um
total de 26 mil, logo após Aragon, com 31 mil hectares. Estes
números colocam o Estado espanhol como o principal produtor
de milho transgênico na União Europeia, com 75% da produção
total (OMS, 2009).
Assim, apesar de relatos de Som lo que Sembrem e outras orga-
nizações ambientais indicarem que o cultivo de OGMs promove
o aumento da utilização de herbicidas e a consequente contami-
nação do solo e da água; que a coexistência entre estas culturas
e outras convencionais e biológicas é impossível, como resultado
da contaminação genética, terminando com variedades locais
e tradicionais; que o cultivo de milhares de hectares de OGMs
não tem em conta o princípio da precaução defendido por outros
países europeus, a ILP não teve êxito contra os transgênicos.*
Os telegramas vazados pelo Wikileaks em 2010 colocaram
esses fatos sobre a mesa. Por que nos deveriam surpreender, não
só a aliança estratégica entre o governo americano e o governo
espanhol em favor dos transgênicos, como também dos dois go-
vernos com as transnacionais do setor de biotecnologia, como a
Monsanto e Syngenta? A informação que transcendeu à opinião
pública, graças ao Wikileaks, confirmou como, mais uma vez,
os interesses privados passam por cima do bem coletivo, dando
mais sentido do que nunca para o slogan de Som lo que Sembrem:
“Transgênicos, nem aqui nem em qualquer outro lugar”.

* Na página da internet de Som lo que Sembrem (http://www.somloquesembrem.


org/) pode-se consultar todos os documentos relativos à ILP apresentada em
2009.

105
E st her Vi va s E stev e

Moscas transgênicas para a agricultura?


“Moscas transgênicas, a solução definitiva para determinadas
pragas na agricultura”. Assim, em 2009, nos vendiam esta nova
“invenção” da indústria de biotecnologia. E o primeiro lugar onde
planejavam colocá-lo não era outro senão a Catalunha. Pena que
o que foi apresentado como a solução milagrosa para a praga da
mosca da fruta da oliveira gerava mais perguntas do que respostas.
A informação veio à luz no verão de 2009 e passou comple-
tamente despercebida, se considerarmos as consequências que
poderiam vir a ter para o meio ambiente e nossa saúde, além de
ser a primeira vez na Europa que se buscava soltar animais gene-
ticamente modificados no meio ambiente. A empresa de biotec-
nologia britânica Oxitec solicitou, no início de 2009, permissão
à Generalitat de Catalunya* para liberar as moscas transgênicas
na área rural de Tarragona, a fim de combater o problema da
mosca da azeitona.
Embora a empresa insistisse sobre as virtudes da medida, ela
suscitava sérias dúvidas. Qual seria a reação das moscas trans-
gênicas uma vez liberadas? Como iriam interagir com outros
seres vivos? Que consequências poderia ter sua entrada na cadeia
alimentar ao serem ingeridas por aves e roedores? E em nosso
corpo? Deve-se levar em conta que as moscas transgênicas só
foram testadas em laboratório, e que a natureza é um sistema
muito complexo, no qual interagem várias espécies, e ela não
responde mecanicamente.
O princípio da precaução é sempre aquele que tem que
prevalecer. Não é possível colocar em liberdade insetos que têm
seu DNA modificado com genes de outros organismos, sem ter

* Nome dado à instituição que representa a organização política da comunidade


autônoma da Catalunha. (N. T.)

106
O negócio da comida

certeza das consequências que isso pode ter, e se essas são reversí-
veis ou não. Vemos, novamente, como empresas de biotecnologia
apostam em fazer experimentos com a natureza e com nossa
saúde. Isso porque os insetos transgênicos são uma das novas
fontes de negócio para as transnacionais do setor.
O conflito de interesses é outro problema evidente. Nenhum
país tem uma regulamentação específica para a introdução de
insetos geneticamente modificados. A quem, por curiosidade, se
está encarregando a elaboração de tais regulamentos, diretivas e
marcos de referência? Aos mesmos funcionários da principal em-
presa que os fornece: Oxitec. O relatório “Insetos geneticamente
modificados: sob controle de quem”, de GeneWatch (2012) e ou-
tras organizações, assim o testemunham. Oxitec, aliás, conta com
o apoio ativo da gigante da indústria de biotecnologia Syngenta.
Felizmente, o Comitê Nacional de Biossegurança, no âmbito
do Ministério da Agricultura, rejeitou a proposta e exigiu novos
relatórios, caso a empresa demandasse reconsideração. A Genera-
litat de Catalunya – que teve a última palavra – também rejeitou
o pedido. Ainda assim, Oxitec disse que iria tentar novamente,
a partir de novos testes e resultados.

Monsanto, as sementes do diabo


“A semente do diabo”: foi assim que o popular apresentador
Bill Maher, do canal americano HBO, batizou a transnacional
Monsanto, em um de seus programas e referindo-se ao debate
sobre OGMs. Por quê? Trata-se de uma afirmação exagerada?
O que esconde esta grande empresa da indústria de sementes?
A Monsanto é uma das maiores empresas no mundo e a nú-
mero um em sementes transgênicas – 90% das culturas genetica-
mente modificadas globalmente têm seus traços biotecnológicos.
Um poder total e absoluto. Além disso, a Monsanto está na cabeça

107
E st her Vi va s E stev e

da comercialização de sementes, e controla 26% do mercado. É


seguida por DuPont-Pioneer, com 18%, e Syngenta, com 9%.
Apenas estas três empresas dominam 53%, mais da metade, das
sementes que são compradas e vendidas em todo o mundo. As
dez grandes controlam 75% do mercado (ETC Group, 2003b).
Isto lhes dá um enorme poder de impor o que se cultiva, e por
consequência, o que se come. Uma concentração empresarial
que tem aumentado nos últimos anos, e que corrói a segurança
alimentar.
A ganância dessas empresas não tem limites. E seus objeti-
vos são eliminar as variedades locais e antigas de sementes, que
ainda hoje detêm um peso muito significativo, especialmente em
comunidades rurais nos países do Sul. As sementes autóctones
representam uma competição clara para as híbridas e as trans-
gênicas das transnacionais (as quais privatizam a vida, impedem
os camponeses de obter as suas próprias sementes, os convertem
em “escravos” das companhias privadas, além de exercer impac-
to negativo sobre o meio ambiente e a saúde das pessoas, com
a contaminação de outras culturas por aquelas geneticamente
modificadas). A Monsanto não poupou recursos para acabar
com sementes camponesas: ações judiciais contra agricultores que
tentam preservá-las; patentes monopolizadoras, desenvolvimento
de tecnologias de esterilização genética de sementes etc. Trata-
-se de controlar a essência dos alimentos, e aumentar, assim, sua
cota de negócio.
A introdução nos países do Sul, em particular naqueles com
vastas comunidades camponesas ainda capazes de se prover com
as próprias sementes, é uma prioridade para essas empresas. Assim,
as transnacionais de sementes intensificaram aquisições e alianças
com empresas do agronegócio, principalmente na África e na
Índia, e têm apostado em culturas destinadas aos mercados do

108
O negócio da comida

Sul global e promovido políticas para desencorajar suas reservas


de sementes. A Monsanto, como reconhece sua principal rival,
DuPont-Pioneer, é a “única guardiã” do mercado de sementes,
controlando 98% da comercialização de sementes de soja trans-
gênicas, tolerantes a herbicida, e 79% do milho (ETC Group,
2011). Essa situação lhe dá poder suficiente para determinar o
preço das sementes, independentemente dos seus concorrentes.

Das sementes aos agrotóxicos


No entanto, a Monsanto não se contenta em controlar as
sementes. E, para fechar o círculo, busca também dominar o que
se aplica ao seu cultivo: os agrotóxicos. A Monsanto é a quinta
maior empresa agroquímica do mundo. Controla 7% do mercado
de inseticidas, herbicidas, fungicidas etc., atrás somente de outras
empresas líderes, como Syngenta, que domina 23% do negócio de
pesticidas, Bayer, com controle de 17%, BASF, com 12% e Dow
AgroSciences, com quase 10%. Cinco empresas controlam, assim,
69% dos pesticidas químicos sintéticos aplicados às culturas em
todo o mundo (ETC Group, 2013b). As mesmas que vendem ao
campesinato as sementes híbridas e transgênicas são as que lhes
fornecem pesticidas para aplicar. Um negócio redondo.
O impacto ambiental e na saúde das pessoas é dramático.
Embora as empresas do setor assinalem a relação “amigável” des-
tes produtos com a natureza, a realidade é exatamente o oposto.
Hoje, depois de anos do fornecimento do herbicida à base de
glifosato, Roundup Ready, da Monsanto – que já em 1976 era
o herbicida mais vendido do mundo, de acordo com dados da
própria empresa (Monsanto, 2014) –, o qual se aplica às sementes
geneticamente modificadas, da mesma empresa, para tolerar o
herbicida, constata-se que, enquanto o produto termina com as
ervas daninhas, várias são as ervas que desenvolvem resistência.

109
E st her Vi va s E stev e

Só nos Estados Unidos, estima-se que cerca de 130 ervas dani-


nhas resistentes a herbicidas têm aparecido, em 4,45 milhões de
hectares de culturas (Grupo ETC, 2011). Isto levou ao aumento
do uso de pesticidas, com aplicações mais frequentes e doses
mais elevadas para combatê-las, resultando na contaminação
ambiental do entorno.
As denúncias de agricultores e comunidades afetadas pela
utilização sistemática de pesticidas químicos sintéticos são cons-
tantes. Na França, a doença de Parkinson é inclusive considerada
uma doença profissional agrícola causada pelo uso de agrotóxi-
cos, depois de o agricultor Paul Francois ter vencido, em 2012,
a batalha judicial contra a Monsanto, no Tribunal de Grande
Instância de Lyon. Ele conseguiu demonstrar que o herbicida
Lasso foi responsável por tê-lo intoxicado e o deixado inválido
(Bellver, 2012). Uma sentença histórica que permitiu estabelecer
jurisprudência. Outro exemplo é o já mencionado caso das Mães
de Ituzaingó, que atuam em um bairro na periferia da cidade de
Córdoba, na Argentina, rodeado por campos de soja, lutando
contra as fumigações. Após dez anos de denúncia, e depois de ver
como o número de pacientes com câncer e crianças com defeitos
congênitos na vizinhança não parava de aumentar – de 5 mil
habitantes, 200 tinham câncer – elas conseguiram demonstrar o
vínculo entre doenças e agroquímicos (o endosulfan DuPont e o
glifosato Roundup Ready da Monsanto) aplicados nas plantações
de soja nos arredores. A Justiça proibiu, graças a essa mobilização,
a fumigação com agrotóxicos perto de áreas urbanas (Aranda,
2009). Estes são apenas dois dos muitos casos que podem ser
encontrados ao redor do planeta.
Agora, os países do Sul são o novo alvo das empresas agro-
químicas. Enquanto as vendas de pesticidas globais diminuíram
em 2009 e 2010, o seu uso nos países da periferia aumentou.

110
O negócio da comida

Em Bangladesh, por exemplo, a aplicação de pesticidas cresceu


328% na década de 2000, com o consequente impacto sobre a
saúde rural (Agronews, 2010). Entre 2004 e 2009, África e Oriente
Médio tiveram maior consumo de pesticidas. E na América Cen-
tral e do Sul é esperado um aumento do consumo nos próximos
anos. Na China, a produção de agrotóxicos em 2009 atingiu
2 milhões de toneladas, mais do que o dobro do que em 2005
(Grupo ETC, 2011).

Uma história de horror


Mas de onde surgiu esta empresa? A Monsanto foi fundada
em 1901 pelo químico John Francis Queeny, proveniente da
indústria farmacêutica. Sua história é a história da sacarina e do
aspartame, do bifenilos policlorados (PCB), do agente laranja,
dos organismos geneticamente modificados. Todos fabricados,
ao longo dos anos, por esta empresa. Uma história de horror.
A Monsanto foi constituída como uma empresa de produtos
químicos. E, em suas origens, seu principal produto foi a sacarina,
que era distribuída para a indústria alimentar, em particular para a
Coca-Cola, da qual foi uma das principais fornecedoras. Ao longo
dos anos, ela expandiu seus negócios para a química industrial,
tornando-se, nos anos 1920, uma das maiores fabricantes de ácido
sulfúrico. Em 1935, ela absorveu uma empresa que comercializava
bifenilos policlorados (PCB), usados nos transformadores da in-
dústria elétrica. Nos anos 1940, a Monsanto focou sua produção
em plásticos e fibras sintéticas. E, em 1944, começou a produzir
produtos químicos agrícolas como o pesticida DDT. Na década
de 1960, juntamente com outras empresas no setor, como a Dow,
foi contratada pelo governo dos EUA para produzir o herbicida
conhecido como agente laranja, que foi usado na Guerra do Vietnã.
Neste período, fundiu-se com a empresa Searla, descobridora do

111
E st her Vi va s E stev e

adoçante não calórico aspartame. A Monsanto também foi produ-


tora do hormônio sintético de crescimento bovino somatotropina
bovina. Nos anos 1980 e 1990, a Monsanto optou pela indústria
agroquímica e transgênica, para se tornar a número um indiscutível
das sementes geneticamente modificadas (Zacune, 2012).
Atualmente, muitos direitos de produtos made by Monsanto
foram proibidos, tais como os PCBs, o agente laranja ou o DDT,
acusados de causar sérios danos à saúde humana e ao ambiente. Só
o agente laranja, na Guerra do Vietnã, foi responsável por dezenas
de milhares de mortos e mutilados, bem como por crianças nascidas
com malformações. A somatotropina bovina também é proibida
no Canadá, União Europeia, Japão, Austrália e Nova Zelândia,
embora seja permitida nos Estados Unidos. O mesmo vale para
o cultivo de culturas geneticamente modificadas, onipresentes na
América do Norte, mas com seu cultivo proibido na maioria dos
países europeus, à exceção, infelizmente, do Estado espanhol.
A Monsanto também se move como um peixe n’água nos
corredores do poder. Wikileaks o constatou quando filtrou mais
de 900 mensagens mostrando como a administração dos Estados
Unidos gastou recursos públicos consideráveis para promover a
Monsanto e os transgênicos em muitos países, por meio de suas
embaixadas, de seu Departamento de Agricultura e de sua agência
de desenvolvimento Usaid (Food & Water Watch, 2013). A estra-
tégia consiste em promover palestras “técnicas” para jornalistas,
funcionários e criadores de opinião, realizar pressões bilaterais para
adotar legislações favoráveis e abrir mercado às empresas no setor
etc. O governo espanhol é o principal aliado dos EUA nesta matéria.

Fechando a cara
Confrontados com tal absurdo, muitos não permanecem em
silêncio e o enfrentam de cara amarrada. Milhares são as frentes

112
O negócio da comida

de resistência contra a Monsanto em todo o mundo (Zacune,


2012). O dia 25 de maio foi declarado o dia global de ação contra
esta empresa e centenas de manifestações e ações de protesto são
realizadas ao redor do globo. Em 2013, quando a primeira chama-
da foi feita, milhares de pessoas foram às ruas em várias cidades
de 52 países, da Hungria até o Chile, passando pela Holanda,
Estado espanhol, Bélgica, França, África do Sul, Estados Unidos,
entre outros. Em 25 de maio de 2014, a segunda chamada, menos
massiva, foi realizada com ações em 49 países.
A América Latina é, agora, uma das principais frentes de
luta contra a empresa. No Chile, o protesto social conseguiu, em
março de 2014, a retirada da chamada Lei Monsanto, destinada a
facilitar a privatização das sementes locais nas mãos da indústria.
Outra grande vitória foi na Colômbia, um ano antes, quando
uma forte greve agrícola, em agosto de 2013, obteve a suspensão
da Resolução 970, que obrigava os agricultores a utilizar apenas
sementes privadas, compradas de empresas do agronegócio, e lhes
impedia de guardar as suas próprias. Na Argentina, os movimen-
tos sociais estão em pé de guerra contra outra Lei Monsanto. Caso
seja aprovada, irá subordinar a política nacional de sementes às
exigências das empresas transnacionais. Mais de 10 mil argenti-
nos já assinaram contra tal lei no âmbito da campanha “Não à
privatização das sementes”.
Na Europa, a Monsanto quer usar a brecha aberta pelas
negociações do Tratado de Livre Comércio União Europeia-
-Estados Unidos (TTIP) para pressionar, em função de seus
interesses particulares, e poder legislar sobre a vontade dos
países membros, muitos deles contrários à indústria transgê-
nica. A resistência na Europa contra o TTIP, esperemos, não
se faça esperar.
A Monsanto é a semente do diabo, sem dúvida.

113
E st her Vi va s E stev e

Prêmios para os que geram a fome


Vivemos em um mundo de cabeça para baixo, no qual
se premiam as transnacionais da agricultura transgênica,
embora elas acabem com a agricultura e a agrobiodiversi-
dade. O Prêmio Mundial da Alimentação 2013, que alguns
chamam de Prêmio Nobel da Agricultura, foi atribuído a
dois representantes da indústria transgênica: Robert Fraley,
da Monsanto, e Mary-Dell Chilton, da Syngenta. O terceiro
vencedor foi Marc Van Montagu, da Universidade de Ghent
(Bélgica). Todos se distinguem por suas pesquisas em favor
da biotecnologia agrícola.
Me pergunto: como pode se conceder uma recompensa pre-
cisamente àqueles que promovem um modelo agrícola que gera
a fome, a pobreza e a desigualdade? Trata-se de um prêmio que,
teoricamente, e conforme definido, deveria reconhecer “as pessoas
que têm feito avançar (...) a qualidade, quantidade e acesso aos
alimentos”. São os mesmos argumentos, eu imagino, que levam
à atribuição do Nobel da Paz àqueles que fomentam a guerra.
Como o escritor Eduardo Galeano (2005) diz em seu livro Patas
Arriba [De pernas para o ar], se premia ao contrário: “a honesti-
dade é negligenciada, o trabalho é punido, a falta de escrúpulos
é recompensada e se alimenta o canibalismo”.
Somos informados de que, para acabar com a fome no mundo,
se deve produzir mais alimentos e que uma agricultura transgê-
nica é necessária. Mas hoje não há falta de alimentos, pois eles
sobram. Não temos um problema de produção, mas de acesso.
E a agricultura transgênica não democratiza o sistema alimentar
– ao contrário, privatiza as sementes, promove a dependência
camponesa, contamina a agricultura convencional e orgânica e
impõe seus interesses particulares ao “princípio da precaução”
que deveria prevalecer.

114
O negócio da comida

A jornalista Marie-Monique Robin, autora do documentário


“O mundo segundo a Monsanto”, diz sem rodeios: “essas empresas
querem controlar a cadeia alimentar, e os transgênicos são um
meio para atingir esse objetivo.” Prêmios como os concedidos à
Monsanto e Syngenta são uma farsa, para a qual somente uma
resposta é possível: a denúncia.

115
E STÃO NOS A DOECENDO!

Viciados em fast food


O que pode lhe acontecer se você se alimentar por um mês
à base de big macs, mc nuggets, cheese burguers e milk shakes de
morango? Resultado: 11 quilos extras, inchaço do fígado, dores
de cabeça, depressão e colesterol pelas nuvens. É o que relata o
cineasta Morgan Spurlock, no filme “Super Size Me”, que retra-
ta, em primeira mão, as consequências de tomar café, almoçar
e jantar diariamente no McDonald’s. E o problema é que fast
food não apenas nos adoece, como também nos torna viciados
em sua comida.
“O importante não é que você venha, mas que regresse”, diz
um recente anúncio da McDonald’s. Nada melhor dito. Junk food
(comida-lixo) se torna imprescindível para aqueles que frequentam
seus estabelecimentos. Assim constata o estudo realizado pelo
Instituto de Pesquisa Scripps (2010), publicado na revista Nature
Neuroscience: a ingestão de junk food desenvolve os mesmos me-
canismos moleculares do cérebro que propiciam a dependência
de drogas, e, portanto, seu consumo é particularmente viciante.
Devemos sugerir às autoridades de saúde para alertar os consumi-
dores de que – como fumar – comer em McDonald’s, Kentucky
E st her Vi va s E stev e

Fried Chicken, Pizza Hut, Burger King, Dunkin’Donuts etc.,


“pode prejudicar seriamente sua saúde”.
Mas não é necessário entrar em um estabelecimento de fast
food para consumir alimentos de baixa qualidade. A maioria
dos alimentos que compramos é processada com doses elevadas
de aditivos químicos sintéticos, como corantes, conservantes,
antioxidantes, espessantes, estabilizadores, intensificadores de
sabor, reguladores de acidez, amidos modificados etc., alterando
os alimentos em função dos interesses da indústria. Assim, é
possível dar ao produto uma cor mais atraente, a aparência de
recém-fabricado ou um sabor intenso. O objetivo: vender mais.

Consequências para a saúde


Quais são as implicações disso para a saúde? Várias investiga-
ções indicam o efeito que o consumo habitual de alguns desses
aditivos pode ter sobre a ocorrência de doenças, tais como alergias,
hiperatividade infantil, excesso de peso etc. – que têm aumentado
muito nos últimos anos. Uma pesquisa realizada na Universidade
de Southampton (2007), a pedido da Food Standards Agency
(Agência de Padrões Alimentares) da Grã-Bretanha e publicado no
The Lancet, demonstrou a ligação entre o consumo, por crianças,
de determinados aditivos e o desenvolvimento de hiperatividade. A
solução seria substituir esses aditivos artificiais por outros naturais
– mas estes são mais caros e a indústria alimentícia os descarta.
A jornalista francesa Marie-Monique Robin analisou isso em
detalhe em seu documentário, cujo título não deixa dúvidas –
“Nosso veneno cotidiano” –, que investigou o impacto sobre o
nosso corpo de uma agricultura viciada em fitossanitários e de uma
indústria alimentar viciada em aditivos químicos. Seus efeitos, de
acordo com este trabalho, foram chocantes: aumento de doenças
como câncer, infertilidade, tumores cerebrais, Parkinson. O dinhei-

118
O negócio da comida

ro manda! Senão, como é possível – como observado no filme – que


a indústria alimentar continue a usar um edulcorante não calórico,
como o aspartame, em produtos rotulados como light, “0,0%” ou
“sem açúcar”, quando vários experimentos têm demonstrado que
o consumo contínuo dessa substância pode ser cancerígeno?

Somos o que comemos


Alguns dirão que estes relatórios e investigações são alarmis-
tas, e que todos os aditivos químicos aplicados na União Europeia
são avaliados previamente por uma autoridade independente: a
Agência Europeia para a Segurança dos Alimentos (Aesa). Inde-
pendência e neutralidade postas em questão por organizações
internacionais, como o Observatório Europeu das Corporações
e a Earth Open Source, que, através de um relatório abrangente,
elucidou as relações estreitas entre a Aesa e a indústria biotecno-
lógica e alimentar, bem como a dinâmica das “portas giratórias”
entre ambas (Holanda, Robinson e Harbinson, 2012). O “con-
flito” de interesses entre aqueles que legislam e as empresas no
setor é evidente. Algo que, sem dúvida, e, infelizmente, afeta não
só esta área, como muitas outras.
Somos aquilo que comemos. E se consumimos produtos
elaborados com altas doses de pesticidas, fitossanitários, trans-
gênicos, adoçantes, corantes e substâncias que nos convertem
em viciados em junk food e fast food, isso acaba, mais cedo ou
mais tarde, por ter consequências sobre a nossa saúde. Chegou
o tempo de dizermos a Ronald McDonald’s e seus amigos: “Eu
NÃO amo tudo isso!”

Da junk food aos alimentos “milagrosos”


Vivemos atualmente obcecados por comer bem, mas nunca
antes havíamos comido tão mal. As prateleiras dos supermerca-

119
E st her Vi va s E stev e

dos estão cheias de batatas fritas, bebidas açucaradas, chocolates,


congelados, enlatados, produtos de pastelaria. Vendem-nos uma
variedade de comida desnaturalizada, processada com um “max
mix” de vários aditivos, que têm um impacto negativo sobre o
corpo. No entanto, os mesmos que com uma mão comercializam
ditos produtos, com a outra nos oferecem alimentos funcionais,
“milagrosos”, precisamente para combater os efeitos nocivos deste
tipo de alimento. O negócio está servido.

Doentes e gordos
A “dieta ocidental”, como o jornalista Michael Pollan (2009)
aponta em seu best-seller O detetive no supermercado, é responsável
por muitas das nossas doenças. “Quatro das dez principais causas
de morte hoje são doenças crônicas, cuja conexão com a dieta está
comprovada: doença cardíaca coronária, diabetes, infarto e cân-
cer”, afirma. A dieta ocidental, com muitos alimentos processados,
carne, muita gordura e muito açúcar, nos deixa doentes e gordos.
No início do século XX, como assinala Pollan, um grupo de
médicos observou que quando as pessoas abandonam sua forma
tradicional de comer e adotam a “dieta ocidental”, logo aparecem
doenças como obesidade, diabetes, problemas cardiovasculares e
câncer, batizadas como “doenças ocidentais”.
O relator especial sobre o direito à alimentação da ONU,
Olivier de Schutter, coincide nesse diagnóstico: “dietas não sau-
dáveis são um risco maior para a saúde global do que o tabaco”.
Ele acrescenta: “os governos têm colocado o foco no aumento da
quantidade de calorias disponíveis, mas muitas vezes têm sido
indiferentes sobre que tipo de calorias oferecer, a que preço, para
quem são acessíveis e como são comercializados” (Oficina del
relator especial sobre el Derecho a la Alimentación de las Nacio-
nes Unidas, 2014b). Não surpreendentemente, de acordo com a

120
O negócio da comida

Organização Mundial da Saúde (OMS, 2014), a obesidade é res-


ponsável, em todo o mundo, por 3,4 milhões de mortes por ano.
Os Estados Unidos são o melhor exemplo dessa tendência:
75% dos americanos estão acima do peso ou são obesos; 25%
têm síndrome metabólica, com maior probabilidade de ter doença
cardiovascular ou diabetes, e entre 4% e 8% da população adulta
tem diabetes tipo 2 (Pollan, 2009). Os dados da OMS (2014)
confirmam essa tendência em uma escala global: desde 1980, a
obesidade mais do que duplicou em todo o mundo. Atualmente,
1 bilhão e 400 milhões de adultos estão acima do peso e, destes,
500 milhões são obesos.
No Estado espanhol, a taxa de obesidade infantil não tem
feito senão aumentar nos últimos anos, convertendo-se numa das
mais elevadas da Europa. De acordo com o programa “Perseus”,
do Ministério da Saúde e da Agência Espanhola de Segurança
Alimentar (2005), estima-se que a obesidade afete 20% dos me-
ninos e 15% das meninas entre 6 e 10 anos. No que diz respeito
à população em geral, os números também são muito elevados.
O estudo “Enrica”, promovido pelo governo, assinala que 62%
da população têm excesso de peso, sendo que 39% padecem de
sobrepeso e 23% de obesidade (Ministério da Saúde e Agência
Espanhola de Segurança Alimentar, 2005).
Uma situação de crise que só tem se agravado. Cada vez
mais pessoas com menor renda são levadas a comprar produtos
mais baratos e menos nutritivos. O Livro Branco da Nutrição na
Espanha assim afirma: “Na atual situação de crise econômica, o
comportamento do consumidor também foi afetado. As pessoas
selecionam opções mais econômicas, tanto ao decidir o lugar onde
comprar alimentos e bebidas, quanto o tipo, qualidade e quanti-
dade de produtos” (Varela, 2013). Com a crise, a dieta dos quem
têm menos se deteriora muito rapidamente. Compra-se pouco e

121
E st her Vi va s E stev e

barato e se come mal. Os produtos que mais têm seu consumo


aumentado são os doces embalados (biscoitos, chocolates, doces
e bolos), com crescimento de 3,8% entre 2012 e 2013 (Ministerio
de Agricultura, Alimentación y Medio Ambiente, 2013b).
Os obesos, paradoxalmente, são os que menos têm e pior co-
mem. Olhando o mapa da península fica claro: as regiões com os
maiores índices de pobreza, tais como Andaluzia, Ilhas Canárias,
Castela-La Mancha e Extremadura, concentram as cifras mais
elevadas de população com excesso de peso (Instituto Geográfico
Nacional, 2006; Ministerio de Sanidad y Agencia Española de
Seguridad Alimentaria, 2005). A posição de classe determina,
em boa medida, o que comemos. A crise só acentua a diferença
entre comida para ricos e comida para pobres.

Doutor Jekyll e Mister Hyde


No entanto, os mesmos que promovem a junk food, de qua-
lidade muito baixa e com um impacto negativo sobre a nossa
saúde, são aqueles que nos vendem “alimentos milagrosos” para
perder peso, controlar o colesterol, reduzir a constipação, forta-
lecer o sistema imunológico, manter densidade óssea. No mais
puro estilo do Doutor Jekyll e Mister Hyde* – é como atuam as
grandes empresas do setor de alimentos.
Panrico afirma vender pão com “migalhas como a do pão de
sempre”. Meus avós, penso eu, não opinariam o mesmo. Para além
dos questionáveis ingredientes e resultado de seu pão, oferece,
também, Donuts Original, Donuts Bombom, Donettes, Donettes­
Rajados, Donettes Nevados, Bollycao Cacaco, Dip, Palmera de

* Livro de ficção de Robert Louis Stevenson (1886), publicado no Brasil como O


Médico e o Monstro, narra um fenômeno de múltiplas personalidades, quando
em uma mesma pessoa existem tanto uma personalidade boa quanto má, ambas
muito distintas uma da outra. (N.T.)

122
O negócio da comida

Choco, e a lista continua... Mas como toda boa indústria de


alimentos, se “passarmos da conta” com tantos doces, Panrico
nos ajuda a combater esses quilos extras com Panrico Line, “para
quem gosta de se cuidar sem renunciar a seu delicioso sabor”,
conforme definido pela empresa, ou o Panrico Integral, rico em
fibras. Panrico tem pão para tudo.
Nutrexpa, por seu lado, nos vende Cola Cao Original, que –
de pais e mães para filhas e filhos e netos e netas, nos repete – é
“o desjejum e a merenda ideal”. Nutrexpa, sempre pensando nos
mais jovens, também vende Nutella, “natural” com “leite, cacau,
avelã e açúcar”. E Phoskitos, com adesivos e artefatos vários, que
agora leva nova linha – o tempo passa, mas Phoskito não – com
Mini Phoskitos Hello Kitty e Phoskitos Bob Esponja. Sua gama
de produtos não termina aqui, e inclui biscoitos Cuetara, Chiqui-
lin, Artiach, Filipinos. Embora com tanto sobrepeso e obesidade
infantil, sua linha de cookies Fibra Linea ou o 0% açúcares, bem
como a Cola Cao Zero ou, melhor ainda, a Cola Cao Zero com
fibra, está aqui para nos dar uma mão.
Danone é o rei. Vende uma ampla gama de iogurtes de mo-
rango, coco, banana, salada de frutas, abacaxi, limão. Em todos
eles, o único que há de parecido à fruta é o sabor e a cor. Na sua
gama de sobremesas, estão sempre os cremes de baunilha e de
chocolate, que nos acompanharam desde pequenos. E, mais re-
centemente, as de “oreo” e “choco blanko”, para as novas gerações.
Que não seja o passar do tempo que faça com que se percam os
costumes... e se abandone a marca. Surpreendentemente, esses
produtos estão listados no site fora da seção que a empresa define
como a de produtos ligados a “bons hábitos”. Será que os outros
não são? O subconsciente do webmaster será que o traiu? É nesta
seção de produtos que a Danone demonstra a sua preocupação
pelo bem-estar pessoal, e oferece desde iogurtes Activia, “a ma-

123
E st her Vi va s E stev e

neira mais deliciosa para ajudar a sua saúde digestiva”, passando


pelos Actimel e “seu exclusivo L-Casei, que incorpora as vitaminas
B6 e D”, até o Danacol sem Lactose, que favorece “uma dieta
saudável e equilibrada para ajudar a diminuir o colesterol”. O
que mais podemos pedir?

Modus operandi
O modus operandi não falha. Em primeiro lugar, a publi-
cidade, tanto para vender um quanto o outro – embora entre
um Danone Morango e um Danacol não haja tantas diferenças
para além do marketing nutricional. Para os investimentos em
publicidade não são poupados recursos econômicos. Em 2005,
a indústria alimentar dos EUA gastou mais de 50 bilhões de
dólares em publicidade, mais do que qualquer outra indústria
do país. A Coca-Cola, especificamente, desembolsou 2 bilhões e
200 milhões, um total muito maior do que todo o orçamento da
OMS (De Sebastián, 2009). As crianças, com frequência, são o
público-alvo, e podem chegar a ver, pelo menos na Grã-Bretanha,
5 mil anúncios de junk food por ano (The Food Comission, 2004).
Como afirmado por Tim Lobstein, diretor da Food Comission
(organização britânica dedicada a garantir um alimento seguro
e saudável) em um debate na BBC britânica: “Vivemos em um
ambiente ‘obesogênico’, cheio de estímulos que nos incentivam
a comer mais, a se exercitar menos e, especialmente, a consumir.
Trata-se de um ambiente gerido comercialmente” (De Sebastián,
2009).
Em segundo lugar, a culpabilização. Somos culpados por
comer mal, engordar, adoecer. Se você ficar gordo, dizem eles,
você não tem força de vontade. Você tem que se sacrificar, dizem.
Vendem-nos o paradigma da mulher e do homem perfeito, como
se fosse fácil caber em um tamanho 38. Em suma, a culpa é nossa.

124
O negócio da comida

Enquanto isso, escondem as causas estruturais de tanta gordura


e doença. Ainda me lembro que meu antigo chefe, às vezes, no
desjejum, pedia no bar uma bomba de creme, decorada com
açúcar branco, e um café com leite – esse sim – com sacarina.
Cansamos de comer mal, para logo sacrificarmo-nos e comer,
supostamente, bem. É todo um negócio isso de culpar o estômago.
Em terceiro lugar, o produto “milagroso” ou especializado.
Os mesmos que nos vendem comida de má qualidade dão lições
de nutrição e nos oferecem alimentos funcionais que, asseguram,
beneficiam a saúde: leite enriquecido com ácidos graxos ômega 3,
ácido fólico, fósforo e zinco; iogurte com cálcio, vitaminas A e D;
cereais enriquecidos com fibras e minerais; sucos com vitaminas.
Mas de que serviriam tantos produtos, sem um “bom” perito ou
organização “especializada” que os ateste? A Fundação Espanhola
do Coração é habitual em emprestar sua imagem para endossar
tais produtos, o que lhe tem valido críticas significativas da co-
munidade científica. Entre seus “patrocinados” está a margarina
Flora Original, com Ômega 3 e 6, da Unilever; o leite fermen-
tado Danacol, com esteróis vegetais adicionados da Danone; o
suplemento MegaRed com Ômega 3; a Água Firgas com baixo
teor de sódio e alta concentração de cálcio e de magnésio. Mas
quanto dinheiro terá recebido a Fundação Espanhola do Coração
por seus “serviços”? Isso não se sabe... Em qualquer caso, se uma
empresa da indústria de alimentos colocar um “expert” em sua
vida, parece ganhar credibilidade – seja verdade ou não o que
conta – e aumentará suas vendas.

Comer bem
Tendo visto o que vimos, o que podemos fazer para comer
bem? Como diz Michael Pollan (2009): “Comer comida’ não
é tão simples como parece. Antes, o único que se podia comer

125
E st her Vi va s E stev e

era comida; hoje, nós encontramos nos supermercados milha-


res de outros alimentos comestíveis, parecidos à comida”. E
acrescenta: “se você está preocupado com a saúde, deve evitar
os produtos dos quais são feitas declarações de propriedades
saudáveis. Por quê? Porque tais afirmações sobre um produto
alimentar fazem supor que não se trata realmente de comida”.
Um contrassenso – se desnaturalizam os alimentos, para em
seguida vender outros artificialmente naturais, que nos dizem
serem melhores.
A indústria de alimentos e sua publicidade estigmatizaram
a comida de sempre. Eles nos fizeram acreditar que usar frutas,
verduras, legumes e cereais era coisa de pobres. Que sentido tem
espremer algumas laranjas, se podemos beber ‘Bifrutas Mediter-
rânea Pascual’, não apenas de laranja, mas com pêssego, cenou-
ra, leite e 0% de gordura, além de vitaminas A, C e E? Por que
perder tempo descascando batatas, cenouras e cebolas para fazer
um creme, quando posso comprar uma “Sopinstant de verduras
Galinha Branca” já preparada e, como eles dizem, “com baixo
teor de gordura, menos sal e sem conservantes”? Parece que a
comida de sempre já não tem glamour.
No entanto, comer bem implica comer natural. E, embora
alguns digam que os alimentos naturais são uma farsa, o golpe
acontece quando a indústria, através de tantos alimentos funcio-
nais e “milagrosos”, nos quer vender gato por lebre. Como diz
Michael Pollan (2009), “não coma qualquer coisa que sua bisavó
não reconheceria como alimento”.

Sabemos o que comemos?


Se antes nos vendiam gato por lebre, agora nos vendem
cavalo por vaca. Saber o que comemos tem se tornado cada vez
mais difícil. Assim vimos no escândalo alimentar do início de

126
O negócio da comida

2013, após a descoberta de carne de cavalo, onde supostamente


só haveria carne de vaca. Canelones La Cocinera, hambúrgueres
Eroski, ravióli e tortellini de carne Buitoni, almôndegas Ikea
foram alguns dos produtos retirados do mercado. Obviamente
não temos nem ideia do que levamos à boca.

Carne de cavalo por carne de vaca


Irlanda e Grã-Bretanha foram os primeiros países em que foi
detectado, em janeiro de 2013, o DNA de cavalo em hambúr-
gueres etiquetados como de carne bovina. Supermercados como
Tesco, Lidl e Aldi, e até mesmo Burger King, foram forçados
a retirar esses produtos de suas lojas. Enquanto isso, o governo
negava a existência de qualquer caso. Semanas depois, a Orga-
nização de Consumidores e Usuários encontrou carne de cavalo
em hambúrgueres de AhorraMás e Eroski.
A globalização alimentar, a deslocalização da agricultura e os
“alimentos viajantes” têm essas coisas. Mais cedo ou mais tarde
as consequências de tais escândalos chegam também à mesa de
casa. O Ministério da Agricultura, Alimentação e Meio Am-
biente teve que admitir, afinal, a existência de carne equina em
produtos vendidos como carne de gado. E transnacionais como
a Nestlé, entre outras, foram forçadas à retirar de circulação seus
alimentos afetados.
Embora a substituição de uma carne por outra não seja, em
si, prejudicial para a saúde, esse caso reacendeu as luzes de alar-
me sobre o que comemos e sobre quem puxa os fios do sistema
alimentar. Mais uma vez, foi demonstrado como os interesses
econômicos de um punhado de empresas são colocados antes
das necessidades alimentares da maioria. Assim, se a produção
de carne de cavalo resultava mais barata, carne de cavalo é o que
serviriam em nosso prato.

127
E st her Vi va s E stev e

Um hambúrguer globalizado
Além disso, em uma cadeia alimentar profundamente
globalizada, descobrir onde começou tal fraude é uma verda-
deira missão impossível. Um hambúrguer pode ser feito da
carne de 10 mil vacas, passando por cinco países diferentes,
antes de chegar ao supermercado. Onde foi “colada” a carne
de cavalo? A Irlanda acusou inicialmente o Estado espanhol,
e em seguida a Polônia. Quando o caso estourou na França,
a culpada era uma fábrica de Luxemburgo, que por sua vez,
alegou que a carne veio da Romênia, que ao mesmo tempo
disse que a mercadoria lhe chegava da Holanda e do Chipre.
Sem jeito de saber a resposta!
A história se repete. Cada vez que aparece um novo escândalo,
assistimos ao mesmo pingar de acusações cruzadas, alarme social,
impossibilidade de saber a origem, e toneladas de alimentos no
lixo. Foi o que aconteceu com a E. Coli e os pepinos, e muito antes
com os frangos com dioxinas, as “vacas loucas”, a peste suína e
um extenso etecetera. E vai acontecer novamente!

Quem garante a nossa segurança alimentar?


Dizem que nossa comida nunca foi tão segura como agora,
que os alimentos nunca haviam passado por tantos controles
como nesse momento. No entanto, novos escândalos alimentares
aparecem periodicamente. A Agência Europeia de Segurança
Alimentar é responsável por assegurar, em princípio, que o que
comemos seja saudável. Mas, quem está por trás desta agência e
tem um papel fundamental na autorização de milhares de pro-
dutos, como pesticidas, transgênicos e aditivos alimentares, que
acabam na mesa? Vejamos.
A Agência Europeia de Segurança Alimentar se apresenta,
como afirma em seu site, como “a pedra angular da União

128
O negócio da comida

Europeia na avaliação de risco sobre a segurança alimentar.” A


Agência foi criada em 2002, após uma série de escândalos, como
a doença da vaca louca, nos finais dos anos 1990. Seu objetivo:
melhorar a segurança alimentar e restaurar e manter a confiança
no abastecimento alimentar. Seu compromisso, afirma, é o de
“fornecer assessoria científica independente e objetiva”. Podemos
ter certeza disso?

Conflito de interesses
O Tribunal de Contas Europeu parece não estar muito de
acordo com tais declarações, como se depreende do seu relatório
sobre o conflito de interesses em certas agências da União, no qual
afirma que a Agência Europeia de Segurança Alimentar, junta-
mente com três outras agências europeias auditadas, “não lidam
corretamente com situações de conflito de interesses”. Acrescenta
que esses “riscos de conflito de interesses estão incrustados nas
estruturas destas agências (...) e dependem da investigação reali-
zada pela própria indústria” (European Court of Auditors, 2012).
Mais claro que água!
Como uma anedota, as conclusões do Tribunal de Contas
Europeu contrastam com os louvores de uma avaliação que,
pouco antes, havia feito a auditoria privada Ernst & Young –
contratada, evidentemente, pela mesma Agência Europeia de
Segurança Alimentar.
As críticas à falta de neutralidade da Agência não são novas.
Organizações como o Observatório Europeu das Corporações e
a Earth Open Source publicaram, em fevereiro de 2012 – coin-
cidindo com o décimo aniversário da instituição –, um relatório
que levantou polêmica. Eles questionaram a independência da
Agência e apontavam para os estreitos vínculos de seus peritos
com empresas do setor (Holanda, Robinson e Harbinson, 2012).

129
E st her Vi va s E stev e

E o que isso significa para o consumidor? Encontramos


um exemplo na regulação dos produtos alimentares. Quando
uma empresa quer introduzir uma nova substância ou produto
no mercado, deve apresentar à Agência Europeia de Segurança
Alimentar e às instituições correspondentes da União Europeia,
um dossiê sobre a avaliação do risco destes produtos. A pedido
da Comissão, o painel científico da Agência examina o dossiê e
publica um parecer científico sobre o assunto, a partir do qual os
representantes dos Estados membros tomam uma decisão. Qual
é o problema? A Agência baseia a sua avaliação principalmente
em estudos realizados pela própria indústria, que espera sacar
bons lucros e suculentos benefícios com a comercialização desses
produtos. Relatórios científicos independentes não são levados em
conta. Consequentemente, o mecanismo favorece, sem dúvida,
os interesses das grandes empresas do setor, em detrimento dos
interesses sociais.
Assim, as substâncias e produtos encontrados no mercado,
nas embalagens plásticas de alimentos – como o aspartame
(educolrante não calórico) ou bisfenol A (BPA) –, de acordo
com relatórios científicos independentes, afetam negativamente
a saúde. Esses estudos nunca foram devidamente avaliados pela
European Food Safety Authority. A situação não é nova: quantos
relatórios exaltando as virtudes do tabaco foram financiados pela
indústria do fumo, e hoje acabaram em papel mofado?

Portas giratórias
Para além do peso da indústria, está a dinâmica, também já
aventada, das “portas giratórias”: funcionários e peritos da Agên-
cia Europeia de Segurança Alimentar, que depois de um tempo
passam a trabalhar em empresas do agronegócio ou biotecnologia,
e vice-versa, dando lugar a uma situação óbvia – exceto para eles

130
O negócio da comida

mesmos – de conflito de interesses. Outros exemplos merecem


destaque. Suzy Renckens, coordenadora científica do Painel dos
OGMs da Agência, em 2008, deixou seu posto para assumir o
cargo de diretora do lobby da Syngenta para a União Europeia.
David Carlander, um funcionário da Agência e responsável por
projetar as diretrizes para o uso da nanotecnologia em alimentos,
em 2011, se tornou o diretor do grupo de pressão da Associação
de Indústrias de Nanotecnologia, em Bruxelas. Laura Smillie,
contratada pela Agência, em 2010, para desenvolver novas linhas
de comunicação sobre riscos alimentares, vinha do Conselho Eu-
ropeu de Informação Alimentar (EUFIC), think tank financiado
por empresas da indústria alimentícia como Coca-Cola, Danone,
Kraft Foods, McDonald’s, Nestlé e Unilever (Holanda, Robinson
e Harbinson, 2012).
Na Espanha, a Agência Espanhola de Segurança Alimentar
e Nutrição parece seguir o exemplo de sua “irmã mais velha”.
Basta ver o currículo da sua atual diretora, Ángela López de Sá
Fernandez, antes diretora de assuntos científicos e normativos da
Coca-Cola Iberia, e que para proceder à sua nova posição como
chefe da Agência Espanhola solicitou licença, e não demissão
voluntária, da Coca-Cola. Um pé em cada local. Comentários?
De agora em diante, quando nos dizem que não nos preo­
cupemos, que nossa segurança alimentar está em boas mãos,
devemos perguntar: em boas mãos para quem? Porque, visto o
que vimos, boas mãos para nós, a maioria, isso é claro que não!

131
SOBR E A NIM A IS E PEI X E S

Podemos continuar comendo tanta carne?


A carne tornou-se indispensável em nossas refeições. Parece
que não podemos viver sem ela. Se até há alguns anos seu uso era
um privilégio, uma refeição para certas datas especiais, hoje se
tornou um ato diário. Talvez até demasiado comum. Precisamos,
realmente, comer tanta carne? Qual é o impacto disso sobre o
meio ambiente? Quais as consequências para o bem-estar animal?
Para os direitos dos trabalhadores? E para a nossa saúde?
O consumo de carne está associado ao progresso e à mo-
dernidade. Na Espanha, entre 1965 e 1991, o consumo qua-
druplicou, especialmente o da carne de porco (Mili, Mahlau e
Furitsch, 1998). Nos últimos anos, no entanto, o consumo tem
se estagnado ou mesmo diminuído nos países industrializados,
devido, entre outros fatores, aos escândalos alimentares (vaca
louca, gripe aviária, frangos com dioxina, carne de cavalo em
vez de carne de vaca etc.) – e aumentou a preocupação sobre
aquilo que comemos. De qualquer forma, lembremo-nos que,
num contexto de crise, grandes setores da população não podem
optar por alimentos frescos ou de qualidade, ou escolher entre
dietas com ou sem carne.
E st her Vi va s E stev e

A tendência nos países emergentes – como no Brasil, Rússia,


Índia, China e África do Sul, o chamado Brics – é a oposta, e
o consumo está aumentando. Estes países são responsáveis por
40% da população mundial; entre 2003 e 2012, o consumo de
carne aumentou em 6,3%, e se espera que entre 2013 e 2022
cresça 2,5%. O caso mais espetacular é o da China, que no
período entre 1963 e 2009 passou de 90 quilocalorias de carne
por pessoa/dia para 694 (Chemnitz Becheva, 2014). As razões?
O aumento da população, a urbanização e a imitação de um
estilo de vida ocidental por parte de uma ampla classe média.
Chegamos ao ponto em que definir-se como “não vegetariano”
na Índia, um país vegetariano por excelência, tornou-se, entre
alguns setores, um status social.

A revolução pecuarista
A pecuária tornou-se uma parte fundamental do sistema
alimentar atual, investindo num modelo industrial e intensivo
que tem sido chamado de “revolução pecuária” (Delgado et al.,
1999). Este sistema tem implicado um aumento exponencial da
produção e consumo de carnes e produtos derivados, seguindo o
mesmo padrão produtivista da “revolução verde” (uso intensivo
da terra, insumos químicos, “melhoria” genética etc.), ao mesmo
tempo que modifica nossa dieta. Um modelo que tem promovi-
do a concentração empresarial, deixando para um punhado de
empresas transnacionais a capacidade de decidir quais carnes e
derivados consumimos, o quanto, e como elas são processadas.
No entanto, se a “revolução verde” prometeu acabar com
a fome no mundo e falhou, o aumento da produção de carne
tampouco tem significado uma melhoria na dieta alimentar. Ao
contrário, o aumento desse consumo tem levado ao aumento
dos problemas de saúde, e sua lógica produtivista tem tido um

134
O negócio da comida

impacto muito negativo sobre o meio ambiente, o campesinato,


os direitos dos animais e as condições de trabalho. O aumento
da produção não implica um maior acesso ao que é produzido,
como bem demonstrou o fracasso da “revolução verde”, e, pos-
teriormente, da própria revolução pecuária.

Um consumo caro para o planeta


O aumento da ingestão de carne, além disso, não é gratui-
to; ao contrário, sai muito caro, tanto em termos ambientais
quanto sociais. Se, para atender à demanda mundial atual de
carne, ovos e produtos lácteos, são necessários anualmente mais
de 60 bilhões de animais de granjas ou de fazendas, engordá-
-los sai caríssimo. Na verdade, a criação de animais industriais
provoca a fome, uma vez que um terço das terras aráveis e 40%
da produção de cereais no mundo destinam-se a alimentá-los,
em vez de dar de comer diretamente às pessoas. E nem todos
podem permitir-se um pedaço de carne do agronegócio. Meta-
de dos habitantes do planeta, cerca de 3,5 bilhões de pessoas,
poderia alimentar-se com aquilo que consomem esses animais
(Grupo ETC, 2011).
A pecuária é a principal utilizadora das terras agrícolas, seja
por via direta, através do pastoreio, ou indireta, por seu con-
sumo de rações e forragens (Bruinsma, 2003). Ambos os usos
resultam, muitas vezes, do desmatamento das florestas virgens
e florestas tropicais, com a consequente degradação dos solos e
recursos hídricos. Milhares de camponeses, em função dessas
práticas, têm sido expulsos das suas terras, agora destinadas à
monocultura de cereais para alimentação animal. A pecuária
camponesa, diversificada, local e familiar, está sendo substituída
por um modelo intensivo, monopólico, corporativo e exporta-
dor, com o qual os camponeses não podem competir.

135
E st her Vi va s E stev e

E mais, neste modelo, vacas, porcos e galinhas são os prin-


cipais geradores de mudanças climáticas. Quem diria! Calcula-
-se que o gado e os seus subprodutos geram 51% das emissões
globais de gases de efeito estufa (Goodland e Anhang, 2009).
Mesmo uma vaca e seu bezerro em uma fazenda de pecuária
emitem mais CO2 do que um carro que rodou 13 mil quilôme-
tros (Steinfeld et al., 2006). Nós, ao comermos carne, somos
corresponsáveis.
A poluição da água é outra das consequências desta revolu-
ção pecuária, bem como sua utilização intensiva. Agricultura
e pecuária consomem entre 70% e 80% do total de água doce
disponível.* Segundo o filósofo e ecologista Jorge Riechmann
(2003), produzir um quilo de proteína animal na indústria
pecuária exige 40 vezes mais água do que a produção de um
quilo de proteína cereal; ou 200 vezes mais do que um quilo
de batatas. Como salientou: “Em um mundo finito, onde a
escassez de água doce tornou-se um fator limitante essencial,
é a mesma coisa consumir um e consumir 40?” O autor nos
lembra que não dá no mesmo plantar espinafres ou ração para
as vacas. A mesma quantidade de terra vai produzir 26 vezes
mais proteína para consumo humano se cultivarmos espinafre
em vez de ração para forragem.

Saúde ameaçada
Embora a revolução pecuária afirme “melhorar” as raças
de gado – isso sim, respondendo aos interesses do mercado,
promovendo aquelas mais produtivas, resistentes a doenças, de
fácil adaptação ao ambiente etc. –, nada disso significou um
enriquecimento do que comemos. Na verdade, a variedade de

* Segundo dados do 2º Fórum Mundial da Água (Haya, 2000).

136
O negócio da comida

raças de animais e espécies de plantas diminuiu drasticamente


nos últimos anos. Estima-se que 30% das raças de animais
domésticos estão em perigo de extinção, o que significa o de-
saparecimento de três espécies domésticas a cada duas semanas
(Veterinarios Sin Fronteras, 2007). Nossa dieta diária depende
de menos variedades animais e vegetais, o que implica uma
maior insegurança alimentar.
Outra consequência na saúde humana é o impacto dos re-
síduos animais, antibióticos, hormônios e produtos químicos
utilizados na pecuária industrial, que afetam plenamente as
comunidades. “Os gases emitidos por uma fazenda de porcos
em escala industrial são muito tóxicos. Há muitos gases voláteis
misturado com poeira, bactérias, antibióticos que formam uma
mescla complexa de mais de 300 ou 400 substâncias, a que
estão expostos os vizinhos, famílias e crianças”, disse David
Walllinga do Instituto para Agricultura e Política Comercial,
no documentário Pig Business [Negócio de Porco, 2009] de
Tracy Worcester. Esse quadro leva ao aumento de vários tipos
de doenças entre aqueles que vivem perto dessas instalações.
O fornecimento de medicina preventiva aos animais para que
eles possam sobreviver às péssimas condições dos estábulos e dos
abatedouros, e para obter uma engorda mais rápida e com me-
nor custo para a empresa, também leva ao desenvolvimento de
bactérias resistentes às drogas. Bactérias que podem facilmente
passar às pessoas através, entre outras formas, da cadeia alimen-
tar. Atualmente, de acordo com a OMS (2012), são fornecidos
mais antibióticos para animais saudáveis do que para pessoas
doentes. Na China, por exemplo, estima-se que mais de 100
mil toneladas de antibióticos por ano são dadas aos animais, a
maioria sem qualquer controle. E, nos Estados Unidos, 80% dos
antibióticos produzidos vão para o gado (Chemnitz Becheva,

137
E st her Vi va s E stev e

2014). E isso não é tudo. A própria FAO reconhece que, nos


últimos 15 anos, 75% das doenças humanas epidêmicas têm sua
origem em animais, como as gripes aviária ou suína, resultado
de um modelo pecuário insalubre.

Direitos dos animais


O maltrato é a face mais cruel desse modelo pecuarista,
no qual os animais deixaram de ser considerados seres vivos
para se tornarem matéria-prima industrial. As granjas, assim,
deixam de ser sítios para se tornarem fábricas de produção de
carne, ou modelos de “pecuária não ligada à terra”, como são
chamadas no setor. A mesma lógica capitalista e produtivista
governa outros sistemas vigentes nesse modelo de pecuária,
mas neste caso as mercadorias são animais. “São aplicados
sistemas industriais desenhados para fabricar carros e máqui-
nas à criação de animais. Isso é algo incrivelmente cruel, que
nenhuma sociedade civilizada deveria tolerar”, afirma Tom
Garrett, do Welfare Institute, no documentário Pig Business. A
prática produtivista converte os animais em doentes crônicos:
instalações que impedem seu movimento, a má alimentação,
a superlotação e o estresse são apenas alguns exemplos desses
abusos.
Um fragmento do documentário Samsara (2011), de Ron
Fricke e Mark Magidson, sem cenas explícitas de violência,
mostra a brutalidade oculta e extrema das granjas de produção
de carne e leite, onde os animais sobrevivem e trabalhadores
os desmembram, golpeiam e estripam como se fossem objetos.
Esse modelo de produção tem suas origens nos matadouros de
Chicago, no início do século XX, onde a produção em linha
permitia, em apenas 15 minutos, matar e recortar uma vaca.
Um método tão “eficiente” que Henry Ford o adotaria para

138
O negócio da comida

fabricação de automóveis. Para o capital, não há nenhuma


diferença entre um automóvel e um ser vivo. E para nós? A
distância entre o campo e o prato foi tão alargada nos últimos
anos que, como consumidores, não temos mais consciência de
que, muitas vezes, por trás de um embutido, uma lasanha ou
um espaguete à carbonara, havia vida.

Smithfield Foods, a maior produtora de carne


A revolução pecuária significou um crescente monopó-
lio e integração vertical no setor, em que algumas empresas
controlam todo o processo de produção de carne, desde a
criação, passando pelo matadouro e chegando à embalagem.
A transnacional americana Smithfield Foods é a maior pro-
dutora e processadora mundial de carne de porco, com receita
anual de 11 bilhões de dólares, 48 mil pessoas contratadas e
presença em 15 países (Smithfield Foods, 2010). Para evitar
regulamentações trabalhistas e ambientais estritas, a empresa
mudou parte importante de suas operações para outros países,
com leis mais frouxas.
Entre 1990 e 2005, seu crescimento foi de 1000%, aumen-
tando seu controle sobre cada elo da cadeia produtiva e crescendo
com novos mercados, à custa de acabar com pequenos criado-
res. Smithfield Foods é conhecida pelas inúmeras acusações e
denúncias que tem recebido pela poluição ambiental. A mais
importante foi em 2009, quando Granjas Carroll, uma de suas
empresas subsidiárias no México, foi acusada de ser o epicen-
tro do surto de gripe suína, que devastou o país e se espalhou
globalmente (Hernandez Navarro, 2010).
A violação dos direitos dos trabalhadores é outra das suas
práticas habituais. Elevado número de acidentes de trabalho,
demissões e abusos verbais são alguns dos casos recolhidos no

139
E st her Vi va s E stev e

relatório “Embalado com abuso”, preparado pelo sindicato


United Food and Commercial Workers Union (UFCW), que
analisava as condições de segurança laboral no matadouro e no
setor de embalagem da empresa em Tar Hell, Carolina do Norte,
a maior do mundo, com 5.500 funcionários. Matadouro onde
o UFCW tentou, por mais de uma década, organizar os seus
trabalhadores, com a oposição frontal da empresa. Finalmente,
no final de 2010, foram realizadas eleições sindicais (Research
Associates da América, 2007).

O trabalho precário
As condições de trabalho das pessoas nessas fazendas deixam
muito a desejar. De acordo com um relatório da Human Rights
Watch (2004), trabalhar na indústria da carne é o mais perigoso
emprego industrial nos Estados Unidos. O relatório destacou o
abuso sistemático de mão de obra imigrante indocumentada,
intimidação, falta de indenizações, retaliações e ameaças de
demissão contra aqueles que denunciavam abusos.
De fato, entre os animais que são sacrificados e os funcio-
nários que trabalham, há mais pontos em comum do que estes
últimos poderiam imaginar. Upton Sinclair (2012 [1906]), em
seu brilhante livro The Jungle [A Selva], que retratou a vida
precária dos trabalhadores dos matadouros de Chicago nos
primeiros anos do século passado, deixou isso claro: “Aqui se
sacrificavam homens igualmente como se sacrificava o gado:
cortavam seus corpos e almas em pedaços e os convertiam em
dólares e centavos”.
Hoje, nos Estados Unidos, muitos matadouros contratam,
em condições precárias, os imigrantes mexicanos – como retrata
Nação Fast Food, o excelente filme de Richard Linklater – ou
nos países centrais da União Europeia, imigrantes da Europa

140
O negócio da comida

Oriental. A obra de Sinclair continua, 100 anos depois, plena


de atualidade.
Quem ganha com este modelo? Obviamente que não so-
mos nós, ainda que queiram nos fazer acreditar no contrário.
Umas poucas transnacionais controlam o mercado: Smithfield
Foods­, JBS, Cargill, Tyson Foods, BRF, Vion. E obtêm benefí-
cios significativos com um sistema que polui o meio ambiente,
gera mudança climática, explora os trabalhadores, maltrata os
animais e nos adoece.
A questão que surge é: podemos continuar comendo tanta
carne?

Do Big Mac ao hambúrguer Frankenstein


Quando pensávamos que já tínhamos visto tudo no mundo
dos hambúrgueres, mais uma vez a realidade nos surpreende. Se,
tempos atrás, alguns meios de comunicação ecoaram o achado,
em perfeitas condições, de um hambúrguer do McDonald’s,
14 anos depois de ser servido, em agosto de 2013 se difundia
o lançamento do hambúrguer de laboratório, que também po-
deríamos chamar de “hambúrguer Frankenstein”, concebido,
como o “monstro” de Mary Shelley, entre provetas.
Um hambúrguer que tem tudo: sua produção não polui,
gasta pouca energia, quase não usa solo e, além disso, não
contém gorduras. Sua “carne” é o resultado da extração de
algumas células-tronco a partir de tecido muscular da parte
traseira de uma vaca. O que mais podemos pedir? Hambúrguer
light. Perfeito para o verão. Embora o preço, ainda, não seja
acessível a todos os bolsos: 248 mil euros é o seu custo. Incluí-lo
no McLanche Feliz, parece, vai levar algum tempo. Mas, eles
nos dizem, essa descoberta científica vai acabar com a fome no
mundo. As pessoas querem comer e querem comer carne, então

141
E st her Vi va s E stev e

vamos dar-lhes carne! – parece ser o raciocínio dos “pais” dessa


monstruosidade.
Duas perguntas me vêm à mente. Em primeiro lugar, pre-
cisamos comer tanta carne para nos alimentarmos? Antes de
produzir mais carne, independentemente da sua origem, não
seria melhor fomentar outro tipo de alimentação mais saudável,
mais sustentável e respeitosa aos direitos dos animais? Quem se
beneficia com esse tipo de comida viciada em carne bovina e suí­
na? Smithfield Foods, o maior produtor e processador de carne
de porco, é um dos ganhadores. Em seu currículo se destacam
as violações dos direitos trabalhistas, a poluição ambiental etc.
Na Espanha, Smithfield Foods opera através da Campofrío.
A segunda questão é: para acabar com a fome é necessário
um hambúrguer de laboratório? De acordo com a ONU, já é
produzido, atualmente, alimento suficiente para alimentar 12
bilhões de pessoas, num planeta onde vivem 7 bilhões. Mas,
apesar destes números, quase uma em cada sete pessoas passa
fome (Centro de Noticias ONU, 2007). Comida há, o que
está faltando é justiça na sua distribuição. Não necessitamos
aumentar a produção, ou engendrar hambúrgueres em labo-
ratórios, nem de mais agricultura transgênica, mas, simples
e diretamente, que exista democracia na hora de produzir e
distribuir os alimentos.
Não existem soluções “milagrosas” para a crise alimentar.
Problemas políticos, como a fome, nunca serão resolvidos com
atalhos técnico-científicos. Não é o caso de rejeitar a pesquisa
científica. Ao contrário, deve-se promover a ciência, mas a ser-
viço da maioria social, empenhada em melhorar as condições
de vida das pessoas, não sujeita a interesses comerciais ou eco-
nômicos. Da revolução verde até os organismos geneticamente
modificados, nos prometeram acabar com a fome. A crua reali-

142
O negócio da comida

dade, no entanto, assinala o fracasso dessas promessas. Embora,


muitas vezes, se esconda o seu “sucesso”: enormes lucros para
as indústrias de alimentos e de biotecnologia. O hambúrguer
Frankenstein não é nenhuma exceção.

O leite* da má-fé
Os agricultores e produtores de leite estão em pé de guerra.
O setor está passando, como temos visto nos últimos anos, por
uma profunda crise, provocada pela queda acentuada do preço do
leite, o que é especialmente prejudicial para pequenos e médios
pecuaristas, que estão gradualmente abandonando suas fazendas.
Não é apenas uma “crise de preços”; estamos diante de uma
“crise do modelo agrícola”. Resultado de políticas governamen-
tais que promovem uma agricultura e uma produção intensiva e
insustentável. Apesar desta situação difícil, o Conselho Agrícola
da União Europeia, em setembro de 2009, manteve-se impassível,
permitindo uma alta produção enquanto a demanda diminuía,
com a consequente queda acentuada nos preços de leite e empo-
brecimento dos pequenos produtores.
Por essas razões, desde a Plataforma Rural e a Coordenação
Europeia da Via Campesina, insiste-se, em primeiro lugar, em
uma regulação do mercado, adaptando a oferta à procura. Não
como agora, que se promove um aumento da cota de produção,
independentemente da quantidade de demanda, uma política
que visa basicamente beneficiar a indústria de laticínios e os

* No original, “de mala leche”. Significando literalmente “mau leite”, é uma ex-
pressão normalmente traduzida como “má índole”, “má-fé”, e tem sua origem
na ideia de que o caráter das pessoas se vincularia estreitamente às heranças
familiares; como se a mãe, pelo amamentamento, pudesse transferir elementos
negativos para a formação da criança. O jogo de palavras foi aqui adaptado, em
livre tradução. (N. T.)

143
E st her Vi va s E stev e

grandes varejistas, à custa de pagar preços cada vez mais baixos


aos produtores.
Em segundo lugar, reivindicam o apoio às pequenas e médias
explorações agropecuárias – as quais estão pagando a crise. E não
como agora, em que elas são incentivadas, desde a UE, a aban-
donarem a produção. O ideal seria cortar a produção em função
do tamanho das propriedades, reduzindo indústrias intensivas e
isentando as pequenas. É necessária uma distribuição equilibra-
da das explorações leiteiras no território, em busca de equilíbrio
agroclimático, e, outra vez, não como agora, que se promove sua
transferência para portos marítimos importadores de soja para
alimentação animal.
Em terceiro lugar, é urgente um equilíbrio entre métodos de
produção e respeito ao meio ambiente. A produção leiteira intensiva,
com base na soja importada, nos animais confinados, na contami-
nação dos solos, é uma das principais causas da mudança climática.
Portanto, se deve optar por uma produção leiteira diversificada e
sustentável para as pessoas, os animais e para o ambiente.
A crise leiteira afeta a todos nós, porque é necessário um
mundo rural vivo, alimentos de proximidade e de qualidade,
pagando-se um preço justo ao produtor. Existem motivos, e
muitos, para se estar “de mala leche”.

Comer peixe é saudável?


Asseguram-nos que comer peixe é o que há de melhor – nos
fornece ácidos graxos ômega 3, vitaminas do complexo B, cálcio,
iodo etc. No entanto, comer peixe é realmente tão saudável? Há
certeza de que é benéfico para nós e para o meio ambiente? Que
efeitos isso tem sobre as espécies e os fundos marinhos? E nas
comunidades locais? Quem ganha com essa crescente demanda?
Águas barrentas se movem atrás das cenas da indústria da pesca...

144
O negócio da comida

O consumo de peixe está crescendo. Sua produção mundial


estabeleceu um novo recorde em 2013, atingindo 160 milhões
de toneladas, somando a pesca de captura e a das explorações
piscícolas, em comparação com 157 milhões no ano anterior
(FAO, 2014). Uma tendência que se sustenta na forte demanda
nos mercados internacionais e no aumento da procura na Ásia
Oriental e Sudeste da Ásia, especialmente na China. Na Europa,
a Espanha é um dos maiores consumidores, com uma média de
26,8 kg de peixe por pessoa por ano, apesar do declínio que o
consumo tem sofrido nos últimos tempos em função da crise
(Martin, 2012).
Uma demanda crescente, que está sendo atendida pela ex-
pansão da aquicultura intensiva ou, o que seria o mesmo, pelas
“granjas ou fábricas de peixes”. Imitação do modelo de agrope-
cuária industrial, desta vez aplicada à pesca. Hoje, um em cada
dois peixes que comemos vem dessa produção. É um modelo
em expansão, estimando-se que, em 2030, irá fornecer quase
dois terços de todo o peixe consumido no mundo (World Bank,
2013). No entanto, o negativo impacto social e ambiental deste
modelo, desde sua instalação ao “cultivo” e processamento de
peixes, é o outro lado da moeda.

Peixes comendo peixes


A lógica do capital impacta em cheio a produção do pescado.
Espécies de alto valor econômico são produzidas, mas as mais
populares para o consumo são: na Noruega, o salmão; no Estado
espanhol, a dourada, o robalo, a truta, o atum. Na maioria, peixes
carnívoros, que, por sua vez, necessitam de outros peixes para sua
engorda. O jornalista Paul Greenberg (2012), em seu trabalho
Cuatro peces. El futuro de los últimos alimentos salvajes deixou isso
claro: para produzir 1 quilo de salmão são necessários 3 quilos de

145
E st her Vi va s E stev e

outras espécies de peixes; e para 1 quilo de atum, nada mais e nada


menos do que 20 quilos. O que gera uma maior superexploração
dos recursos pesqueiros. Recursos, muitas vezes, roubados das
costas dos países do Sul, diminuindo assim bens imprescindíveis
para sua alimentação. O resultado é um produto de luxo, à mercê
dos bolsos de quem pode pagar.
Os tratamentos usados em incubadoras para combater as
doenças infecciosas de peixes são outro fator de risco para a saúde
ambiental e o consumo humano (Artijo, 2005). Um exemplo são
os banhos de formaldeído, com uma função antiparasitária, e o
fornecimento preventivo e continuado de antibióticos, que se
acumulam nos órgãos internos do animal, facilitando o apareci-
mento de agentes patogênicos resistentes. As condições nas quais
os peixes se encontram não ajudam. O confinamento em piscinas
superlotadas e gaiolas está na ordem do dia, e facilmente permite
a propagação de doenças pelo atrito, estresse ou canibalismo.
Seu impacto sobre o território e as comunidades também é
importante. As próprias instalações, grandes áreas de piscinas,
competem com o uso dessas terras pela população local, seja para
cultivo ou pastoreio. As águas desses lugares, com altas doses de
produtos químicos e substâncias tóxicas, contaminam os solos e
o ambiente aquático, e a introdução de espécies exóticas e a fuga
de espécimes pode afetar as espécies nativas.

Da costa ao mar adentro


A pesca de captura em larga escala, desde a costa até águas
mais profundas, também tem consequências muito negativas,
tanto para os recursos pesqueiros quanto para o meio ambiente.
No Mediterrâneo, 92% dos cardumes de peixes são superexplo-
rados, e no Atlântico, 63% (Ecologistas em Acción, 2012). Várias
espécies marinhas estão ameaçadas e em perigo de extinção. A

146
O negócio da comida

sobrepesca tem sido a prática dominante, e sua consequência é o


declínio de peixes no mar.
Além disso, a poluição da água afeta esses animais. A pre-
sença de mercúrio nos peixes é a mais conhecida, e prejudica o
ecossistema e a nossa saúde, pois é uma substância tóxica que
atinge o cérebro e o sistema nervoso. Segundo a Ecologistas em
Ação (2014), o peixe contém cada vez mais mercúrio. Em 2013,
na União Europeia, foram notificados 96 casos de peixes conta-
minados, em comparação com 68 no ano anterior. A organização
ambientalista afirma que os limites de mercúrio autorizados pela
União Europeia não são suficientes, porque eles não levam em
conta nem o consumo médio nem as características corporais do
consumidor. Os máximos permitidos pela FAO e pela Organi-
zação Mundial de Saúde, no entanto, são mais restritivos. Nossa
saúde está em jogo.
O ambiente também é prejudicado por técnicas como a pes-
ca de arrasto, que, através da utilização de redes que varrem o
fundo do oceano, destrói o fundo marinho e acaba com habitats
naturais, como recifes de corais. Além disso, devemos levar em
conta os peixes indesejados e imaturos que são obtidos mediante
esta técnica de “caça” indiscriminada, e que acabam sendo des-
cartados e jogados de novo, mortos ou quase mortos, na água.
No arrasto de lagostim no mar do Norte, por exemplo, estima-se
que as capturas indesejadas e descartadas chegam a 98% do total
(Ecologistas em Acción, 2012). Uma prática que também ocorre
em outros modelos de pesca, em teoria, mais seletivos, como a
do espinhel, com milhares de anzóis pendurados em linhas que
podem medir metros ou quilômetros e também tem seus riscos.
No mar Adriático, o descarte desse modelo de pesca pode chegar
a 50% das capturas. A pesca industrial com navios maiores tam-
bém aumenta o risco de poluição proveniente de derramamentos

147
E st her Vi va s E stev e

de petróleo e combustível. A água, parece, engole tudo. Mas a


vida no mar se esgota.
Outro impacto da pesca industrial ocorre em terra firme,
nas comunidades. Tão magnífico como duro, o filme de Hubert
Sauper, O Pesadelo de Darwin, mostra cruamente o retrato da
vida de 25 milhões de pessoas em torno do lago Vitória. Mais da
metade em uma situação de má nutrição, pegando as migalhas da
flutuante indústria de transformação e comercialização da pesca
do Nilo, destinada ao mercado externo. Este é o lado escuro, e
mais dramático, do que aqui, na peixaria ou no supermercado,
encontramos como “filé de garoupa”, e que compramos a um
preço razoável. Todos os dias, cerca de 2 milhões de pessoas no
Ocidente consumem pesca do Nilo. O que equivale a atender às
necessidades de proteína de um terço da população subnutrida
em torno do lago Vitória (No te comas el mundo, 2005b).

Em poucas mãos
Umas poucas empresas repartem o suculento bolo da pesca
industrial. São elas grandes companhias que compram e ab-
sorvem outras ainda pequenas, com o objetivo de exercer um
maior controle da indústria, integrando criação, processamento
e comercialização. Atualmente, para dar um exemplo, quatro
empresas controlam mais de 80% da produção mundial de sal-
mão. A noruego-holandesa Nutreco é a número um, seguida das
também norueguesas Cermaq, Fjord Seafood e Domstein que,
após uma fusão em 2002, ocupam a segunda posição.
Outras grandes empresas, como a Pescanova, de origem
galega, optam pela compra de cotas, investindo na produção de
salmão no Chile, da tilápia no Brasil, do pregado em Portugal,
do camarão na Nicarágua. No entanto, essas empresas vão do
sucesso à falência. Atualmente, a Pescanova está na corda bamba,

148
O negócio da comida

assolada por dívidas e à mercê do sistema bancário (Recio, 2013).


Um modelo industrial que acaba com a pesca artesanal, que não
pode sobreviver em um sistema projetado para a pesca intensiva
e em grande escala.
Neste ponto, mais uma vez perguntamos: comer peixe é tão
saudável para nós e para o ambiente? Tirem suas conclusões.

149
OS BA STIDOR E S DO AGRONEGÓCIO

Política a serviço do agronegócio


No Ministério da Agricultura, Alimentação e Ambiente,
“mudanças” ocorrem sem mudanças de verdade. Miguel Arias
Cañete deixou o cargo em abril de 2014 e Isabel García Tejerina,
sua mão direita, o ocupou. A submissão do Ministério a interesses
empresariais continua, com a nova ministra que, como seu an-
tecessor, fez carreira no setor privado. Cañete veio da Petrolífera
Ducar, García Tejerina vem do Grupo Fertiberia. A dinâmica de
portas giratórias se repete mais uma vez.
Isabel García Tejerina é quase parte do mobiliário do depar-
tamento de agricultura sob o PP, há dez anos rondando por suas
dependências. De 1996 a 2000, foi assessora executiva do minis-
tério, e de 2000 a 2004, Secretária Geral, durante os governos
de José Maria Aznar. Então, com a vitória do Psoe, ela retornou
para o setor privado como diretora de planejamento estratégico
da empresa de fertilizantes, adubos agrícolas e produtos químicos
Fertiberia, onde permaneceu até 2012, quando voltou ao Minis-
tério da Agricultura, para reocupar sua secretaria geral.
Fertiberia é propriedade do Marquês de Villar Mir, acusa-
do no caso Barcenas por doações ilegais para o PP, e uma das
E st her Vi va s E stev e

firmas-chave para seu conglomerado empresarial Grupo Villar


Mir. A nova Lei Costeira, aprovada por Cañete, e à qual Tejerina
dá continuidade, beneficia empresas do Grupo Fertiberia e lhes
permite manter-se nas imediações do litoral, graças à reforma re-
gulatória. A quem vão servir as políticas agrícolas e ambientais da
nova ministra? Aos poucos, que sempre se beneficiam do público,
em detrimento da maioria e do ecossistema...
As portas giratórias não são exceção, mas, sim, a regra, como
temos visto no governo do PP e do Psoe, e em várias administra-
ções e ministérios. Este é um sinal claro do sequestro da política
e da democracia.

“Coca-Cola é assim”
“Obrigado por compartilhar felicidade”, diz um recente
anúncio da Coca-Cola. Mas, olhando de perto, parece que a
Coca-Cola, de felicidade, reparte muito pouco. Perguntem aos
trabalhadores das fábricas que a transnacional começou a fechar
em 2014 em Fuenlabrada (Madrid), Mallorca, Alicante e Astúrias.
Ou perguntem aos sindicalistas perseguidos – alguns até mesmo
sequestrados e torturados na Colômbia, Turquia, Paquistão, Rús-
sia, Nicarágua – ou às comunidades na Índia, que ficaram sem
água após a passagem da empresa. E isso para não falar da péssima
qualidade de seus ingredientes e o impacto sobre a nossa saúde.
A cada segundo se consomem 18.500 latas ou garrafas de
Coca-Cola em todo o mundo, de acordo com a empresa. O im-
pério Coca-Cola vende suas 500 marcas em mais de 200 países.
Quem poderia ter dito isso a John S. Pemberton, quando criou,
em 1886, a tão bem-sucedida bebida em uma pequena farmácia
em Atlanta! Hoje, a transnacional já não vende apenas uma be-
bida, mas muito mais. Abusando do dinheiro e de campanhas de
marketing de milhões de dólares, a Coca-Cola nos vende algo tão

152
O negócio da comida

precioso como “felicidade”, “centelha de vida” ou “um sorriso”.


No entanto, nem seu Instituto Coca-Cola de Felicidade é capaz
de esconder toda a dor causada pela empresa. Seu currículo de
abusos sociais e laborais percorre, como seus refrigerantes, todo
o planeta.

Um rastro de abusos
Por fim, chegou a vez do Estado espanhol. A empresa anun-
ciou, em janeiro de 2014, um Expediente de Regulamentação de
Emprego que envolvia o fechamento de 4 de suas 11 fábricas, a
demissão de 1.250 trabalhadores e a realocação de outros 500.
Uma medida que foi tomada, de acordo com a transnacional, “por
razões organizativas e produtivas” (Bravo, 2014). Uma declaração
da Confederação Sindical de Comissões Obreras (CCOO), no
entanto, observou que a empresa detinha enormes lucros, de cerca
de 900 milhões de euros, e um faturamento de mais de 3 bilhões
(Europa Press, 2014).
As más práticas da empresa são tão globais quanto a sua
marca. Na Colômbia, desde 1990, 8 trabalhadores da Coca-
-Cola foram mortos por paramilitares e 65 receberam ameaças
de morte. O sindicato colombiano Sinaltrainal denunciou que,
por trás destas ações, se encontra a companhia. Em 2001, o Sinal-
trainal, através do Fundo dos Direitos de Trabalho Internacional
e do Sindicato dos Trabalhadores United Steel, conseguiu abrir
nos Estados Unidos um processo contra a empresa para estes
casos. Em 2003, o tribunal indeferiu o pedido alegando que os
assassinatos ocorreram fora dos Estados Unidos. A campanha de
Sinaltrainal, no entanto, já havia conseguido numerosos apoios
(Zacune, 2006).
A trilha de abusos da Coca-Cola é encontrada em pratica-
mente todos os cantos do mundo. No Paquistão, em 2001, vários

153
E st her Vi va s E stev e

trabalhadores da fábrica do Punjab foram demitidos por protestar.


E os esforços de sindicalização de seus trabalhadores em Lahore,
Faisal e Gujranwala, colidiram com as barreiras da empresa e
da administração. Na Turquia, os empregados denunciaram a
Coca-Cola, em 2005, por intimidação e torturas, e por usar um
braço especial da polícia para tais fins. Na Nicarágua, no mesmo
ano, o Sindicato Único de Trabalhadores acusou a transnacional
de não permitir a organização sindical e ameaçar com demissões.
Existem casos semelhantes na Guatemala, Rússia, Peru, Chile,
México, Brasil e Panamá (Zacune, 2006). Uma das principais
tentativas de coordenar uma campanha de denúncia internacional
contra a Coca-Cola ocorreu em 2002. Sindicatos na Colômbia,
Venezuela, Zimbábue e Filipinas relataram, conjuntamente, a
repressão sofrida por seus sindicalistas na empresa e as ameaças
de sequestros e assassinatos recebidas.
A empresa, entretanto, não é conhecida unicamente por seus
abusos de trabalho, como também pelo impacto social e ecológico
de suas práticas. Como ela mesma reconhece: “Coca-Cola é uma
empresa de hidratação. Sem água, não há negócio” (Zacune,
2006). E aspira até a última gota d’água onde se instala. Para
produzir um litro de Coca-Cola, são necessários 3 litros de água,
não só para a bebida em si, como também para lavar garrafas,
máquinas etc, água que é descartada a posteriori como água
contaminada, com o consequente dano ambiental. Para saciar
sua sede – uma engarrafadora de Coca-Cola pode consumir até
um milhão de litros de água por dia –, a empresa toma unilate-
ralmente o controle dos aquíferos que abastecem comunidades
locais, deixando-os sem esse bem tão essencial que é a água.
Na Índia, vários Estados (Rajasthan, Uttar Pradesh, Kerala,
Maharastra) estão em pé de guerra contra a empresa. Vários do-
cumentos oficiais indicam a queda drástica dos recursos hídricos

154
O negócio da comida

onde ela está instalada; acaba com a água corrente para consu-
mo humano, higiene pessoal e agricultura, e para o sustento de
muitas famílias. Em Kerala, em 2004, a fábrica de Coca-Cola de
Plachimada foi forçada a fechar depois que o conselho negou a
renovação da licença, acusando a empresa de esgotar e poluir suas
águas. Meses antes, a Suprema Corte de Kerala sentenciou que
a extração massiva de água pela Coca-Cola era ilegal (Adhyayan
Vikas Kendra, 2003). Seu fechamento foi uma grande vitória
para a comunidade.
Casos semelhantes ocorreram em El Salvador e Chiapas, entre
outros. Em El Salvador, a instalação de fábricas de engarrafa-
mento de Coca-Cola esgotou os recursos hídricos, após décadas
de extração. Poluiu os aquíferos pela eliminação de água não
tratada, procedente de tais fábricas. A empresa sempre se recu-
sou a assumir o impacto de suas práticas. No México, a empresa
privatizou numerosos aquíferos, deixando as comunidades locais
sem acesso a eles, graças ao apoio incondicional do governo de
Vicente Fox (2000-2006), ex-presidente da Coca-Cola México
(Zacune, 2006).

A fórmula secreta
O impacto de sua fórmula secreta sobre a nossa saúde também
é amplamente documentado. Suas altas doses de açúcar não nos
beneficiam e nos tornam “viciados” em sua mistura. O asparta-
me – um adoçante não calórico, substituto do açúcar usado na
Coca-Cola Zero –, se consumido em doses elevadas pode causar
câncer, como assinala a jornalista Marie-Monique Robin, em seu
documentário “Nosso veneno diário”.
Em 2004, a Coca-Cola na Grã-Bretanha foi forçada a reco-
lher, após seu lançamento, a água engarrafada Dasani, depois que
foram descobertos níveis ilegais de bromuro, uma substância que

155
E st her Vi va s E stev e

aumenta o risco de câncer. A empresa teve que separar meio mi-


lhão de garrafas do produto, que havia sido anunciado como “uma
das águas mais puras do mercado”. Anteriormente, um artigo na
revista The Grocer tinha descoberto que sua origem não era água
de nascente, como rezava sua publicidade, mas simplesmente a
água tratada da torneira de Londres (Garrett, 2004).
Os tentáculos da Coca-Cola são tão alongados que, em 2012,
uma de suas diretoras, Ángela López de Sá Fernandez, chegou
à direção da Agência Espanhola de Segurança Alimentar. Que
posição terá essa Agência frente ao uso do aspartame, quando a
empresa (que até então estava pagando os salários de sua atual
diretora) o usa sistematicamente? Conflito de interesses? Já o
assinalamos antes, com o caso de Vicente Fox.
A marca que nos diz vender felicidade, de fato, distribui
pesadelos. “Coca-Cola é assim”, diz o anúncio. Assim é, e assim
lhes contamos.

McDonald’s: comida-lixo e trabalho-porcaria


No McDonald’s, a qualidade da sua comida é tão baixa
quanto os salários que paga. Alimentos de baixo custo para os
consumidores, com nutrientes mínimos. A mão de obra que ex-
plora, a quem paga um salário de miséria, é a mesma que, com
tão pouca renda, só pode comer os McMenus de 4,90 euros. Uma
legião de trabalhadores pobres, que saem muito baratos para a
empresa, com remuneração suficiente para pagar por um Big Mac
ou um cheeseburger. Negócio perfeito!

Menor renda, pior alimentação


O que nós comemos, embora possa não parecer, é condicio-
nado pela classe social. Quem tem mais recursos financeiros pode
optar por um alimento de melhor qualidade. Quem estuda e tem

156
O negócio da comida

mais formação tem mais critério ao julgar o que come. Quando


nos querem ignorantes e buscam fazer da educação um privilégio,
isto implica em condenar-nos à pobreza, a trabalhos precários
e a uma alimentação deficiente. Algumas empresas, como a
McDonald’s, estão dispostas a aumentar os seus lucros com isso.
Vários relatórios indicam que, quanto menor renda, pior a
comida (Varela, 2013; Ipsos, 2013). Não surpreendentemente,
nos Estados Unidos, quem sofre maiores problemas de obesidade
são as comunidades afroamericanas e latinas. As mesmas que
configuram o exército de trabalhadores precários e os das cadeias
de comida rápida. Como já afirmamos, na Espanha, as regiões
com os maiores índices de pobreza, tais como Andaluzia, Ilhas
Canárias, Castela-La Mancha e Extremadura, concentram as
cifras mais elevadas de população com excesso de peso (Institu-
to Geográfico Nacional, 2006; Ministério da Saúde e Agência
Espanhola de Segurança Alimentar, 2005).

Unidos contra a precariedade


McDonald’s não é a exceção, mas a regra. Burger King, Ken-
tucky Fried Chicken, Subway, Pizza Hut são outras transnacionais
que seguem esse padrão. Em 5 de dezembro de 2013, seus traba-
lhadores nos Estados Unidos reagiram. Mais de uma centena de
cidades, como Nova York, Chicago, Boston, Detroit, Houston,
Los Angeles, acolheram, nessa jornada, greves e protestos dos em-
pregados no setor de fast food. A demanda: um aumento salarial.
Passar dos 7,25 dólares por hora para 15 dólares. As condições
de trabalho nesses centros são tão ruins, das piores possíveis, que
muitos trabalhadores têm de recorrer a outros empregos. E ainda
dependem de assistência social para chegar ao fim do mês. No
verão de 2013, já tinha ocorrido uma primeira mobilização, e em
5 de dezembro se estendeu a mais cidades.

157
E st her Vi va s E stev e

As manifestações do setor são escassas devido às dificuldades


para os funcionários se organizarem no local de trabalho. Qual-
quer tentativa de coordenação sindical é fortemente reprimida.
No entanto, esses protestos apontam para um novo tipo de luta
que une diferentes atores: os trabalhadores precários, sindicalistas
e ativistas de bairro. Um grande exemplo.
Na Espanha, McDonald’s também tem sido foco de protestos.
Suas práticas laborais, assim como as “culinárias”, são internacio-
nais. Em 2007, no McDonald’s Estação de Granada, começou
uma grande luta sindical. Seus trabalhadores se organizaram para
exigir condições de trabalho decentes, e como resposta a empresa
realizou demissões, reduções no contrato, pressão psicológica,
impôs férias e elaborou uma “lista negra”. A luta continuou. E,
apesar da pressão da empresa e da discriminação sindical, eles
têm conseguido melhores condições de trabalho para todo o
conjunto de funcionários. Um protesto que tem recebido apoio
e jornadas de mobilização contra o McDonald’s no restante do
Estado espanhol.
Um trabalho decente envolve uma vida digna e uma comida
digna. McDonald’s significa exatamente o oposto. McMenus e
McSalários não, obrigado.

De Panrico a “panpobre”
Até recentemente, os anúncios de Donuts nos diziam: “Co-
mece o dia com um sorriso”. No entanto, nas fábricas Panrico
já não se espalham sorrisos. De algum tempo para cá, a vida da
força de trabalho tornou-se uma roleta russa. Agora nas mãos
de uns, depois nas mãos de outros. A usura, que não conhece
limites, tem sido a sentença de morte da empresa, e o corte nos
direitos de seus trabalhadores, como nos repetem, é o “sacrifício
necessário”.

158
O negócio da comida

O que era uma empresa familiar líder na produção de pas-


telaria industrial se tornou um negócio em falência. Panrico foi
fundada, em 1962, pelo empresário Andreu Costafreda e os Do-
nuts se destacaram logo como seu principal produto, seguidos, a
posteriori, pelos tão lembrado Bollycao. No final dos anos 1970,
a empresa consolidou sua expansão na Espanha. Em meados dos
anos 1980, abriu fábricas em Portugal. E, nos 1990, em Pequim.
Seu crescimento parecia ilimitado. Com a morte de seu fundador,
em 1998, se escreveu nos jornais: “Panrico Donuts tornou-se uma
das empresas de alimentos mais importantes da Espanha, com
um volume de negócios de 70 bilhões de pesetas, 22 fábricas de
produção e uma folha de pagamentos de 7 mil trabalhadores”
(Horcajo, 1998). Que tempos, aqueles!
As instituições financeiras não deixaram passar a oportuni-
dade. Em 2001, La Caixa e o Banco de Sabadell tornaram-se
acionistas, adquirindo 30% e 5%, respectivamente. Empréstimos
para que a empresa pudesse continuar a crescer foram garanti-
dos. Panrico, em pouco tempo, entrou no mercado dos produtos
congelados de pão e pastelaria. Abrangia, assim, novos mercados.

Nas mãos do capital de risco


Em 2005, a empresa mudou de mãos completamente. 100%
de suas ações foram adquiridas pela empresa de capital de risco
Apax Partners, uma companhia dedicada à compra e venda de
empresas em todo o mundo, lucrando com a reavaliação do
seu suprimento de ações. Apax Partners pagou muito alto pela
aquisição da Panrico: 900 milhões de euros, acima dos 600-700
milhões em que estava avaliada. O objetivo: fatiar a transnacional,
vender seus ativos, obter dinheiro rápido, recuperar o investimen-
to e posicionar a empresa no topo da sua cota de mercado, para
vendê-la novamente e obter mais benefícios. Voilà.

159
E st her Vi va s E stev e

Em 2011, a empresa foi novamente vendida. Desta vez, o


comprador foi o fundo-oportunista Oaktree, especializado em
“desencalhar” empresas falidas, e, no ínterim, fazer negócios com
elas. Em seu portfólio, já tem a participação de 24% das ações da
Campofrío. A roleta continua a girar. E a história é muito bem
conhecida. Mais dinheiro para uma minoria (o proprietário),
menos direitos para a maioria (os trabalhadores).
Na Panrico, o último fator que importava era sua equipe.
Chantagem atrás de chantagem, a situação tornou-se insustentá-
vel. Em outubro de 2014, Oaktree impôs 1.914 demissões, quase
metade de seu pessoal, e uma redução de salário entre 35% e
45%, que se somaram a cortes anteriores na linha de produção.
A fábrica de Santa Perpétua de Mogoda se levantou e manteve,
durante oito meses, uma das greves mais prolongadas desde a
democracia. Oaktree, entretanto, não cedeu em seu empenho.
Passamos, como dizem alguns, do Panrico ao “panpobre”.

Telepizza – o segredo está na massa?


Telepizza nos diz que “seu” segredo está na massa. No entanto,
a fórmula para o sucesso do Telepizza não se encontra na massa,
mas nas precárias condições de seus trabalhadores, na baixa qua-
lidade de seus produtos e numa agressiva publicidade de ofertas
e promoções – embora o “rei” da entrega de pizza cambaleie em
suas bases e, após uma trajetória ascendente de sucesso, acumule,
já há anos, saldo no vermelho. O drama da mudança de mãos de
propriedade da empresa, atualmente 100% detida pelo fundo de
capital de risco Permira, explica sua situação de ruína econômica.

Uma história de sucesso


As origens da Telepizza datam de 1987, quando Leopoldo
Fernandez Pujals decidiu, aos 40 anos, dar uma reviravolta em

160
O negócio da comida

sua carreira e abrir uma pizzaria, incorporando uma novidade im-


portante: as pizzas não só podiam ser consumidas no local, como
também encomendadas por telefone e entregues em domicílio,
sem custo adicional. Isto, hoje, nos parece muito normal, mas
nos meados dos anos 1980 foi uma grande novidade. Fernández
Pujals tinha “importado” a ideia dos Estados Unidos, onde este
sistema já funcionava há décadas.
Leopoldo Fernández Pujals viveu desde os 13 anos nos Esta-
dos Unidos, para onde sua família migrou desde Havana, após a
revolução. Em seu país de acolhimento, ele se juntou aos marines,
lutou na Guerra do Vietnã, cursou estudos de finanças, traba-
lhou na transnacional Procter & Gamble e depois na Johnson
& Johnson, que lhe enviou à Espanha em 1981, como diretor de
marketing. No começo, ele alternava o terno e gravata da manhã
na empresa estadunidense com o avental da cozinha pela tarde
e à noite na pizzaria. Seu objetivo: obter uma fatia do negócio
de fast food à base de pizzas. Assim nasceu Telepizza. No capital
inicial, ele era o sócio sênior, seguido por seu irmão Eduardo e
outros acionistas minoritários.
A empresa cresceu como capim. Se em 1990, se contabiliza-
vam 18 pizzarias, em 1995 já eram 245. No final dos anos 1990,
somavam 767, na Espanha e no exterior. A expansão de Telepizza
combinava a abertura de lojas próprias, 40%, e franquias, 60%,
o que permitiu um crescimento muito rápido. Em acréscimo,
o sistema de franquia permitiu a abertura de novas lojas, sem
investimento inicial pela empresa. Novas pizzarias foram inau-
guradas, primeiro em cidades maiores, como Zaragoza, Vigo,
Santander, Bilbao, Alicante, Valladolid, Málaga, e depois em
outras de tamanho médio.
Em menos de dez anos, Telepizza tornou-se a segunda empresa
de fast food no Estado espanhol, atrás de McDonald’s, e a primeira

161
E st her Vi va s E stev e

na entrega de pizza. Naquela época, em 1995, um “golpe interno”,


tramado por seu irmão e outros pequenos acionistas, destituiu
Leopoldo Fernández Pujals da presidência. O fundador do Tele-
pizza não se rendeu, e um ano mais tarde, depois de pactuar com
o BBVA, passaria a fazer parte do corpo de acionistas da empresa,
e recuperou novamente seu cargo de presidente.
Ao mesmo tempo, a empresa passou a cotizar com sucesso
na Bolsa, adquirindo redes concorrentes como a Pizza World. E
iniciou um processo de integração vertical, incorporando vários
dos seus fornecedores ao negócio, desde a empresa de transporte
aos produtores de queijo. Criou-se assim um grande holding em-
presarial, que controlava cada uma das fases do processo – desde
a coleta e processamento das matérias-primas, com fábricas onde
eram produzidas as massas das pizzas, e o queijo, passando pela
distribuição destes materiais aos estabelecimentos – até a elabo-
ração da comida e sua distribuição. Um controle total da cadeia,
o que lhe permitiu reduzir os custos e aumentar os lucros.

A chave do sucesso
Qual é o segredo do sucesso? Embora Telepizza nos venda
que “o segredo está na massa”, e seu fundador Leopoldo Fernán-
dez Pujals se apresente como um homem que fez a si mesmo, na
verdade a chave para o triunfo reside no domínio completo da
cadeia (desde a produção até a entrega), nas precárias condições
de trabalho, na baixa qualidade de seus alimentos e em uma
publicidade agressiva de ofertas e promoções.
A corrida para ganhar dinheiro – e quanto mais, melhor –
levou a empresa a cortar cada vez mais direitos de seus trabalha-
dores. Se, em 1994, a sua equipe estava incluída no Convênio de
Hotelaria, a partir de 2017, e com o beneplácito dos sindicatos
majoritários, se criou um novo Convênio de Delivery (entrega), o

162
O negócio da comida

que significou um retrocesso nos direitos consolidados. Perdeu-


-se uma parcela significativa do salário, do pagamento extra, do
bônus de Natal. Os acionistas da empresa passaram a ganhar
mais, e os trabalhadores, menos. E assim sucessivamente. Em
2000, se foram os adicionais de tempo de serviço e de trabalho
noturno, e, em 2001, o de transporte. Embora, em 2000, a Su-
prema Corte tenha decidido que os trabalhadores da Telepizza
deveriam ter as mesmas categorias e condições que os do setor
de hotelaria, nem as direções da CCOO nem da UGT (então
os únicos representantes da força de trabalho) exigiram que essa
sentença fosse aplicada (Seção Sindical Telepizza CGT, 2013).
A pressão laboral para atingir vendas superiores, trabalhar
mais horas, e a repressão à organização sindical são outra cons-
tante, como denunciaram seus trabalhadores (Kaos en la red,
2010). Em outubro de 2010, um funcionário da Telepizza, de
um estabelecimento de Zaragoza, foi demitido exatamente pela
tentativa de criar um comitê de empresa. Em janeiro de 2013, três
trabalhadores de uma loja em Sevilha também foram demitidos
por denunciar as más práticas da empresa. Isto levou à organização
de protestos em vários estabelecimentos de Telepizza, em distintas
partes do país. Em março de 2013, a empresa anunciou a demissão
de 145 trabalhadores, o encerramento de cinco estabelecimentos
em Málaga, Sevilha e Madrid, e a redução do adicional de entrega.
A crise lhe permitiu apertar ainda mais as rédeas.*
A companhia está também empenhada em impulsionar “sindi-
catos amarelos”, sob seu controle, enquanto divide sua equipe em
uma série de categorias profissionais, para combater a organização
sindical. Seus funcionários denunciavam salários mensais de 250

* Mais informações no endereço eletrônico da Seção sindical Telepizza CNT


Sevilla: <https://elsecretoestaenlarata.wordpress.com/>.

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E st her Vi va s E stev e

a 350 euros, e agora os novos contratos são de apenas 24 horas por


mês e com um salário de 125 euros, 5 por hora (Sección Sindical
Telepizza CGT, 2010). O pessoal é composto, principalmente, por
menores de 25 anos, muitos estudantes. E, cada vez menos, pais
e mães de família, em dificuldades e com medo de perderem seus
empregos. Aqui vocês vêem a chave para o sucesso.
E na massa, haveria algum segredo? A baixa qualidade dos
seus ingredientes, na corrida para obter o máximo lucro com
o produto mais barato possível, e depois vendê-lo a um preço
competitivo, é a norma. O truque não está, em qualquer caso,
na fórmula da massa, mas no seu custo. A revista Interviú dei-
xou isso claro em um artigo analisando a qualidade das pizzas
de quatro grandes cadeias de fast food que servem em domicílio,
incluindo Telepizza. A análise concluiu: “Altos níveis de colesterol,
significativa presença de gorduras saturadas, as mais prejudiciais
para a saúde, ingestão calórica excessiva, poucos ingredientes, e
de muito má qualidade, e um monte de massa; e, o que é pior,
condições de higiene deficientes em todas as amostras analisadas”
(Salinas, 2008).
De acordo com o laboratório Quimicral, responsável pela
realização da análise, as pizzas de tais estabelecimentos podem ser
consideradas “bombas calóricas”, com aporte calórico excessivo,
derivado da gordura de ingredientes de má qualidade, muitas
vezes substitutos do que eles dizem ser, desde o bacon aos pre-
parados de queijo e carne. Nas pizzas analisadas, o ingrediente
principal era a massa, entre 50 e 66%, em detrimento de outros
mais caros, o que favorece um maior benefício econômico para
a companhia à custa do cliente (Salinas, 2008).
A publicidade agressiva de ofertas e promoções é outro dos
recursos mais utilizados: “Desfrute com o triplex Telepizza. Três
médias a 7 euros cada uma. Peça já!” ou “Duas por uma em do-

164
O negócio da comida

micílio”. Fazem-nos crer que compramos barato, no entanto, no


final das contas, e com todo o consumido, o total soma muito
mais do que se imaginava. A última ofensiva foi a pizza a 1 euro,
levada a cabo em dias muito específicos e que multiplicou por
seis o faturamento. Em 2013, esta promoção registrou mais de 2
milhões de pizzas vendidas.
Que modelo de alimentação se promove, além disso? Como
dizia a página de facebook da Telepizza: “Esta noite... pare de
cozinhar!”. Se trata de uma refeição fast food, onde o único que
parece importar é comer rápido e barato. Não entra na conta
a qualidade do que comemos, tampouco a informação sobre a
origem do produto, o processo de elaboração ou a valorização
da nossa alimentação. E em todos estes aspectos a “receita” de
Telepizza é a mesma da Pizza Hut, Domino’s Pizza, Pizza Mobile,
Voy Volando etc.

O declive: à mercê do capital especulativo


Voltando à história da Telepizza. Em 1999, seu fundador e
acionista majoritário, Leopoldo Fernández Pujals, optou por dei-
xar a empresa. Vender sua participação por 300 milhões de euros
e “dedicar-se, de corpo e alma, a espalhar os males do regime
castrista em Cuba”, à frente da Fundação Elena Mederos, que
ele mesmo havia criado. Anos mais tarde, em 2004, regressa à
primeira linha da cena empresarial, adquirindo 24,9% da Jazztel
e sua presidência. Ali aplicaria, uma vez mais, sua fórmula habi-
tual: máxima precariedade, máximos lucros. Leopoldo Fernández
Pujals (2005) assim o reconheceu em uma entrevista: “Eu sou
um grandessíssimo capitalista, mas tenho mentalidade social”.
Eu me pergunto: que mentalidade social?
Continuando com Telepizza. Leopoldo Fernández Pujals
vendeu sua participação a um grupo de acionistas liderado por

165
E st her Vi va s E stev e

Pedro e Fernando Ballvé, proprietários da transnacional de


carne Campofrío, e Aldo e José Carlos Olcese, proprietários,
juntamente com os Ballvé, de Telechef, uma cadeia de fast food
em domicílio de sanduíches, hambúrgueres etc., concorrente de
Telepizza. Curiosamente, foi a Lehman Brothers que facilitou as
gestões para os proprietários de Campofrío adquirirem Telepizza.
Pedro Ballvé passou, assim, a assumir a presidência da Telepizza.
Campofrío tornou-se o principal fornecedor de ingredientes para
as suas pizzas, e a marca Telechef foi integrada na cadeia, passando
a oferecer também aos seus clientes sanduíches, hambúrgueres,
cachorros-quentes e pratos combinados.
Em 2006, seu presidente, Pedro Ballvé recorreu ao fundo
de capital de risco britânico Permira, para recapitalizar a em-
presa, que, apesar de seu sucesso nos anos 1980 e início dos
anos 1990, converteu-se, depois de sua entrada na Bolsa, em
pasto de especulação com ações. Ambos lançaram uma oferta
pública de ações (OPA) sobre as ações e obrigações conversíveis
da Telepizza, tomando o controle total da empresa, tirando
a companhia do mercado acionário. Em 2012, Pedro Ballvé
vendeu sua participação à Permira, que agora controla 100%
da Telepizza.
O objetivo da Permira era ficar por cinco ou seis anos com
Telepizza e depois vendê-la ou trazê-la para o mercado de ações e
ganhar dinheiro. Um padrão seguido por outros fundos de capital
de risco e fundos oportunistas, como Apax Partners e Oaktree
fizeram com Panrico. Permira, aliás, também é proprietária de
eDreams e Cortefiel. As previsões não foram atendidas. Tenhamos
em conta que, quando a empresa de capital de risco adquiriu a
empresa, a endividou para realizar esta operação. E isso provo-
cou a difícil situação econômica atual. Agora, Permira procura
comprador para Telepizza, a fim de evitar a falência.

166
O negócio da comida

O problema da cadeia de distribuição de pizzas em domicílio


não é operacional, mas, sim, financeiro. Em 2012, por exemplo,
suas vendas cresceram 0,9%, chegando a 351 milhões de euros.
O ônus recai sobre a dívida que a empresa tem, gerada quando o
fundo de capital de risco Permira a comprou e transferiu a dívida
assumida pela sua compra. Uma operação de manual financeiro.
Agora, a estagnação do consumo dificulta muito mais do que o
esperado. Quem paga as consequências? Como visto anteriormen-
te, a força de trabalho, que vê cortados seus direitos.
Pelo visto, o segredo de Telepizza não é a massa.

167
O PODER DOS SUPER MERC A DOS

O que se esconde na grande distribuição


A grande distribuição varejista comercial (supermercados,
hipermercados, redes de desconto etc.) tem experimentado, nos
últimos anos, um forte processo de expansão, crescimento e
concentração empresarial. As principais empresas de varejo se
tornaram parte do ranking das maiores transnacionais no mundo
e se tornaram um dos atores mais importantes no processo de
globalização capitalista.
Seu surgimento e desenvolvimento mudaram radicalmente a
nossa forma de comer e de consumir, submetendo nossas necessi-
dades básicas a uma lógica comercial e aos interesses econômicos
das grandes empresas do setor. Produz-se, distribui-se e come-se
aquilo que é considerado mais rentável.

Operação Supermercado
Na Espanha, a abertura do primeiro supermercado foi realiza-
da em 1957 e teve lugar em Madrid. Tratava-se de um self-service
de natureza pública, promovido pelo regime de Franco no âmbito
do programa “Operação Supermercado”, que importou o modelo
de distribuição comercial dos Estados Unidos, sob a influência do
E st her Vi va s E stev e

Plano Marshall. Seu objetivo: modernizar o “comércio pátrio”.


A experiência foi um sucesso, dando lugar, em um tempo muito
curto, a uma rede de supermercados públicos em várias cidades,
como San Sebastian, Bilbao, Zaragoza, Gijon, Barcelona, La
Coruna etc. (Venteo, 2009).
O primeiro supermercado de capital privado foi aberto em
Barcelona em 1959, fundado pelas famílias Carbó, Prat e Botet,
proprietárias de comércios ultramarinhos. Foi batizado com o
nome de Caprabo, tomando a primeira sílaba de cada um dos seus
sobrenomes. Sua abertura significou uma verdadeira revolução
entre os consumidores, atraídos, principalmente, pela possibi-
lidade de escolher produtos diretamente nas prateleiras. Com
o tempo, os supermercados privados, incentivados pelo mesmo
governo franquista, se impuseram, criando uma extensa rede de
autosserviços em todo a Espanha, enquanto os de caráter público
foram desaparecendo.
Naquele mesmo momento, no restante da Europa, os su-
permercados eram uma realidade emergente. Em 1957, na Grã-
-Bretanha havia 3.750 estabelecimentos; na República Federal
da Alemanha, 3.183; na Noruega, 1.288 e na França, 663. A
Espanha* e a Itália ficavam no final da lista, com 3 e 4 supermer-
cados, respectivamente. Os supermercados eram considerados um
símbolo de modernidade e progresso. A partir daí, sua extensão
foi crescendo, e dez anos depois, em 1968, o número de super-
mercados na Espanha somava 3.678, e 20 anos depois, em 1978,
13.215 estabelecimentos. Seu modelo de distribuição e venda a
varejo se generalizou ao largo das décadas de 1980 e 1990, exer-
cendo, hoje, um domínio absoluto da distribuição de alimentos.

* Os dados da Espanha são de 1958, não se contando com as cifras de 1957.

170
O negócio da comida

A maior parte de nosso carrinho de compras – entre 68% e


80% – adquirimos em supermercados, hipermercados e cadeias de
desconto. De acordo com a revista Alimarket, com dados de 2012,
68,1% dos alimentos embalados e de farmacêuticos são adquiridos
nesses canais, principalmente em supermercados, em comparação
com 1,5% que adquirimos em lojas tradicionais, 25,1% em lojas
especializadas e 5,3% em outras lojas (Segura, 2012). De acordo
com o relatório Expo Retail de 2006, quase 82% das compras
de alimentos é realizada através da grande distribuição, 2,7%
em lojas tradicionais, 11,2%, em estabelecimentos especializados
e 4,2% é adquirido em outro lugar (Garcia e Rivera, 2007a).
Consequentemente, o consumidor tem cada vez menos portas de
acesso aos alimentos. E, o produtor, menos opções para chegar
ao consumidor. O poder de venda dos supermercados é total.

Muito poder em poucas mãos


É uma distribuição moderna, que concentra seu peso em um
número muito pequeno de empresas. A maior parte das compras
no supermercado é realizada em apenas seis cadeias, que contro-
lam 60% desse setor: Mercadona, com 23,8% de participação
de mercado; Carrefour, com 11,8%; Eroski (que inclui Caprabo),
com 9,1%; Dia, com 6%; Alcampo (que integra os supermercados
Sabeco), com 5,9%; e El Corte Inglés (com Supercor OpenCor),
com 4,3%. Eles são seguidos pelo Lidl, Consum, AhorraMás e
DinoSol, que, juntos, conformam as 10 maiores empresas do setor
(Segura, 2012). Nunca o mercado da distribuição de alimentos
esteve em tão poucas mãos.
Na Europa, a dinâmica é a mesma. Em todo o continente,
as 10 principais cadeias de supermercados controlavam, segundo
dados de 2000, mais de 40% da cota de mercado, o dobro do
que em 1987, e se previa que entre dez e quinze anos seguintes

171
E st her Vi va s E stev e

a concentração aumentaria até 75%. Na Suécia, apenas três


empresas de supermercados monopolizam em torno de 95% da
distribuição. E, em países como a Dinamarca, Bélgica, França,
Holanda e Grã-Bretanha, algumas poucas empresas dominam
entre 60% e 45% do total (Garcia e Rivera, 2007a).
Algumas das maiores fortunas na Europa estão ligadas à his-
tória da grande distribuição. Na Alemanha, a pessoa mais rica no
país era – até 16 de julho de 2014, data de seu falecimento – Karl
Albrecht, fundador e coproprietário dos supermercados Aldi.
Após sua morte, o número 1 passou a ser ocupado por Dieter
Schwarz, proprietário do grupo Schwarz, que inclui as redes de
supermercados Kaufland e Lidl (Comas, 2014). Na França, a
segunda fortuna do país está em mãos de Bernard Arnault, pro-
prietário do grupo de artigos de luxo LVMH e com uma grande
participação no Carrefour. E sem ir mais longe, na Espanha, no
quarto lugar no ranking das grandes fortunas encontra-se Juan
Roig, proprietário da Mercadona (EFE, 2014).
Uma concentração que é claramente visível na “teoria do
funil”: milhares de agricultores por um lado, milhões de con-
sumidores pelo outro. E apenas algumas poucas empresas da
grande distribuição controlam a maior parte da comercialização
dos alimentos. Tomemos o exemplo da Espanha. Na extremidade
superior do funil, temos cerca de 720 mil agricultores e pessoas
que trabalham no campo. Na extremidade inferior, cerca de 46
milhões de pessoas e consumidores.* No meio, 619 empresas e
grupos do setor de distribuição de alimentos (com Mercadona,
Carrefour, Eroski, Dia, Alcampo, El Corte Inglés, Lidl, Consum,
AhorraMás, Makro, Gadisa, El Árbol, Condis, Bon Preu, Aldi
e Alimerka à frente) determinando a relação entre ambos. E um

* Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (final de 2013).

172
O negócio da comida

fato a considerar: entre essas 619 empresas, apenas as 50 primei-


ras controlam 92% do total da cota de mercado (Segura, 2012).
O poder dos grandes varejistas é enorme e nossa alimentação
está sujeita a seus interesses econômicos. São essas empresas que
determinam o preço a pagar ao agricultor por seus produtos e
qual o custo a ser cobrado no “super”. Dando-se o paradoxo de
que o camponês cada vez recebe menos dinheiro pelo que vende,
e nós, como consumidores, pagamos cada vez mais. Fica claro
quem ganha. Trata-se de um oligopólio, em que poucas empresas
controlam o setor, que empobrece a atividade rural, homogeneiza
o que comemos, precariza as condições de trabalho, acaba com o
comércio local e promove um modelo de consumo insustentável
e irracional.

A cadeia de exploração
Os supermercados impõem um modelo de agricultura e ali-
mentação no qual o campesinato não tem lugar. O seu objetivo é
controlar toda a cadeia alimentar, desde a fonte até a boca, reduzir
custos de produção e aumentar o preço final dos alimentos, para
obter o máximo benefício econômico (lucro). Ao agricultor é pago
o menor preço possível para a sua produção, condenando-o à mi-
séria e, muitas vezes, ao fechamento de seu sítio. Uma dinâmica
que permite à grande distribuição a sujeição do agricultor, e que
é extensível a outros fornecedores, numa cadeia de exploração
do maior ao menor.
Nos shoppings, segue-se a mesma política. O quadro de pessoal
está sujeito a uma estrita organização taylorista, caracterizada por
um ritmo de trabalho intenso, tarefas repetitivas e de rotina, e
com pouca autonomia de decisão. Uma situação que envolve o
aparecimento de esgotamento, estresse e enfermidades laborais
próprias da indústria, como dor crônica nas costas e dores cer-

173
E st her Vi va s E stev e

vicais. Em acréscimo, nas condições contratuais, prevalecem


as baixas tabelas de salários e a “flexibilidade numérica”, que
permite à empresa ter um grupo de trabalhadores temporários,
com horários de trabalho flexíveis, que são usados para ajustar o
número de pessoal a cada momento da produção. Estas jornadas e
horários atípicos geram nos trabalhadores sérias dificuldades para
conciliar sua vida profissional com a pessoal e familiar, perdendo,
inclusive, o controle sobre seu tempo de “não trabalho”, por não
contarem com um horário estável (Barranco, 2007).
A política antissindical também é frequente, objetivando
evitar a criação de organizações de trabalhadores através de
práticas ilegais, impedindo o direito de reunião, pressionando
psicologicamente os trabalhadores que querem se organizar, dis-
criminando os sindicalistas, ou através da criação de sindicatos
“amarelos”, sob controle dos próprios empregadores. Uma das
cadeias de distribuição moderna que mais acumula abusos tra-
balhistas é a Wal-Mart. A gigante do setor, a maior empresa do
mundo, segundo a lista Fortune Global 500, e a transnacional
com maior número de trabalhadores em todo o mundo. Wal-Mart
tem uma política de gestão do trabalho com base em salários
extremamente baixos (20% inferior à média do setor, nos EUA).
E uma feroz estratégia antissindical, que conseguiu deter quase
todas as tentativas de sindicalização em suas lojas na América do
Norte (Antentas, 2007).
O impacto sobre as pequenas empresas também é devastador.
Se no ano de 1998 havia 95 mil lojas na Espanha, em 2004 este
número caiu para 25 mil (Garcia e Rivera, 2007b). O comércio
tradicional de alimentos sofreu uma erosão constante, em con-
traste com o crescimento dos supermercados e hipermercados.
Se tomarmos o caso do “todo-poderoso” Wal-Mart, estima-se,
de acordo com um estudo realizado na Universidade Estadual

174
O negócio da comida

de Iowa (Stone, 1997), nos Estados Unidos, que os pequenos


municípios podem perder até 47% do comércio local dez anos
após a abertura desses estabelecimentos. Isso foi precisamente o
que aconteceu com os 34 municípios de 5 mil a 40 mil pessoas
no Estado rural de Iowa analisados no estudo.
Outros estudos apontam para a mesma direção, mas com
nuances. De acordo com uma investigação conjunta, realizada por
professores da Universidade Estadual de Iowa e da Universidade
do Estado do Mississippi, a entrada de um novo supermercado
em uma comunidade pode ter consequências dramáticas para
as empresas existentes, já que as lojas que vendem os mesmos
produtos terão suas vendas reduzidas drasticamente, devido
à dificuldade de competir com as grandes redes. Entretanto,
aquelas que distribuíam produtos diferentes, ou mesmo outros
supermercados, podem se beneficiar desta abertura pelo aumento
do tráfego comercial (Stone, Artz e Myles, 2002).
Aqui estão alguns números apresentados pelo estudo sobre o
impacto causado pelo estabelecimento da Wal-Mart no Estado
do Mississippi. Ao analisar o impacto no negócio de mercearias
previamente existentes, se constatou a alta capacidade destes su-
permercados de “capturar” sua clientela. Especificamente, essas
lojas perderam 10% de suas vendas no primeiro ano de abertura
de um Wal-Mart e até 20% cinco anos depois. Os municípios
em que Wal-Mart não se instalou, por sua vez, mantiveram seus
lucros estáveis. As lojas de móveis, de decoração doméstica, de
presentes, esportes ou que vendem outros artigos diversos tam-
bém saíam perdendo com a redução de seus rendimentos. As
conclusões foram enfáticas: “Os resultados da pesquisa mostram
claramente como os benefícios de supermercados Wal-Mart são
equivalentes às perdas dos negócios previamente existentes nessas
áreas” (Stone, Artz e Myles, 2002).

175
E st her Vi va s E stev e

“Passando um pano”
Confrontada com os impactos negativos que lhe são atribuí-
dos, a grande distribuidora desenha uma estratégia de limpar sua
imagem com um revestimento verde e solidário. Desse modo, nos
últimos anos têm proliferado nas prateleiras de seus estabeleci-
mentos produtos ecológicos e de comércio justo. Uma estratégia
que tem atraído críticas do movimento por um consumo ecológico
e do comércio justo.
Na Espanha, cadeias como Carrefour, Alcampo e Eroski sãos
algumas das que mais esforço têm dedicado para adquirir uma
imagem “justa e responsável” a partir da comercialização de tais
artigos. No entanto, apesar da introdução de produtos rotulados
como “justos” e “verdes” em suas linhas, as práticas comerciais
destas cadeias não mudaram e deixam muito a desejar. O comér-
cio justo e ecológico é usado como um instrumento de limpeza
de imagem, atrás da qual se escondem graves impactos sobre o
meio ambiente, a comunidade, os direitos dos trabalhadores e o
comércio local (Vivas, 2007b).
A maioria das grandes redes de varejo tem as suas próprias
fundações, ou se integra a outras, com o objetivo de promover
uma imagem “socialmente responsável”. O grande gigante do
varejo, Wal-Mart, tem a Fundação Wal-Mart, que financia
principalmente atividades em âmbito local. Coincidentemente,
é nesse âmbito que sua imagem está se deteriorando, devido a
suas práticas antissindicais e desleais na fixação dos preços dos
produtos, que acabam matando o pequeno comércio e precari-
zando a mão de obra.
Na mesma linha, podemos citar o exemplo de outras grandes
cadeias como Carrefour (com a Fundação Solidariedade Carre-
four), Eroski (com a Fundação Eroski) e Alcampo – que não tem
uma fundação própria, mas faz parte da Fundação Empresa e

176
O negócio da comida

Sociedade, à qual pertencem outras transnacionais com registro


“solidário” como BBVA, Nike, Novartis, Telefonica-Movistar,
Iberdrola, Inditex, La Caixa, El Corte Inglés, Sol Meliá, Repsol
e Union Fenosa, para citar apenas algumas.
Atenção, pois, para que não nos vendam gato por lebre.

O Big Brother no supermercado


Associamos a compra no supermercado à modernidade, auto-
nomia, liberdade de escolha. No entanto, existem poucos lugares
no mundo, que fazem parte da nossa vida diária, tão controlados
e monitorados como tais estabelecimentos. Por trás de nossa
compra, embora não pareça, há muito em jogo. Daí que em um
supermercado nada é deixado ao acaso. Tudo foi concebido para
que compremos. E quanto mais, melhor.

Um laboratório chamado de “super”


Assim que chegamos ao “super”, alguns cartazes, geralmente
de cores vivas, nos acolhem, encorajando-nos a entrar, muitas
vezes acompanhados por ofertas e promoções que anunciam pre-
ços muito baratos. Pegamos o carrinho de compras – tão grande
que muito temos a preenchê-lo para que não pareça vazio – e
começamos a busca do que precisamos, por inúmeros corredores
com gôndolas transbordantes de produtos. O carrinho, mesmo
que o levemos em linha reta, sempre gira de volta às prateleiras
e acabamos tendo que ver, como quem não quer nada, um novo
artigo que não esperávamos, e que acabamos levando.
Precisamos de leite e iogurte, por exemplo, mas nos fazem
atravessar todo o centro comercial para consegui-los. Por que
colocam sempre o que é mais necessário no final do estabeleci-
mento? No caminho, um alto-falante animado soa ao fundo; mal
o escutamos, no entanto está ali, incentivando-nos a comprar.

177
E st her Vi va s E stev e

Olhamos os preços dos produtos e nunca entendemos porque os


valores nunca são redondos, mas sempre acabam com decimais,
tornando muito difícil comparar um com o outro. Acabamos
por escolher os terminados em 9, para assim economizarmos
um pouco. Embora talvez possa não haver muita diferença entre
pagar um centavo a mais ou menos, o produto parece mais barato.
Mas temos que parar, pois dois carrinhos com gente compran-
do estão no meio. E eu me pergunto, por que os corredores são
tão estreitos? Enfim, aproveito esta oportunidade para olhar uma
prateleira e outra. E ali está o saco de batatas fritas (que não me
convém) olhando-me de frente. E já que estou aqui... ao carrinho!
Avanço agora buscando o pacote de arroz que preciso, mas ele já
mudou novamente de lugar. Não entendo porque periodicamente
movem os produtos de lugar. Novamente me fazem dar mil voltas
antes de encontrar o que preciso. No novo caminho, descubro
novos produtos, os quais antes eu nem havia notado.
Só me resta pegar o detergente. Na seção de limpeza, e à al-
tura de meus olhos, vejo a marca que dizem pela TV que deixa
as roupas muito mais limpas. Eu pego o recipiente e, por acaso,
olho seu preço... que caro! Devolvo a unidade. Olho para cima e
para baixo na prateleira e consigo encontrar outra marca, menos
conhecida, mas mais barata. Tenho que me agachar para pegá-la.
Por que a colocam de uma forma mais difícil de pegar? Chega
a hora de passar no caixa. Na fila, aborrecida pela espera, vejo
aqueles chocolates, caramelos, doces... e só a um palmo. Impos-
sível dizer “não”: venha, um dia é só um dia, à cesta!
Analisando o meu tour, me coloco: quantas coisas eu com-
prei que não precisava? Adquiri os produtos que me interessam?
Estima-se que entre 25% e 55% de nossa compra de supermercado
é compulsiva, resultando de estímulos externos. Nós colocamos
no carrinho, embora não precisemos. E ao passar por uma prate-

178
O negócio da comida

leira, 20% de nós compramos antes a marca que está no nível dos
olhos do que qualquer outra, apenas por conveniência, mesmo
que as outras sejam mais baratas. Sem saber, somos cobaias em
um grande laboratório chamado “super”.

Sorria, você está sendo filmado


Nossos movimentos em um supermercado nunca passam
despercebidos. Uma câmera ou outra, colocada aqui ou ali, regis-
tra tudo. No entanto, o que é feito com essas imagens? Sabemos
quando estamos sendo gravados? Podemos acessar esses filmes?
O professor Andrew Clement, da Universidade de Toronto e
fundador do Instituto de Identidade, Privacidade e Segurança,
assinala como somos indefesos contra essas práticas. De acordo
com um estudo realizado por sua equipe no Canadá, nenhuma
das câmeras colocadas em grandes centros comerciais canaden-
ses atende aos requisitos de sinalização regulamentados por lei
(Brosnahan, 2012). Na Europa, a controvérsia é a mesma. Nós
não temos nenhuma ideia do que ou como ou quando gravam
ou o que eles fazem com as imagens.
A cadeia de supermercados Lidl, protagonizou um dos maiores
escândalos em 2008, quando se descobriu que espionava siste-
maticamente seus funcionários em vários estabelecimentos na
Alemanha, por minicâmeras colocadas em locais estratégicos.
Toda segunda-feira, de acordo com o semanário alemão Stern,
uma equipe de detetives instalava entre 5 e 10 câmeras, a pedido
da direção, a pretexto de evitar roubos. No entanto, estas câmeras
serviam para controlar os trabalhadores, registrar suas conversas
e elaborar perfis pessoais detalhados. Este não é um caso isolado.
A competidora Aldi foi acusada, em 2013, de espionar seus em-
pregados em vários supermercados na Alemanha e Suíça, através
de câmeras escondidas, segundo vazou a revista alemã Spiegel.

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A Agência Espanhola de Proteção de Dados abriu um processo


disciplinar contra Alcampo por espionar seus funcionários. No
final de 2007, a Alcampo instalou secretamente em um hiper-
mercado de Ferrol três câmeras escondidas em espaços reservados
ao pessoal. Semanas mais tarde, ela usou o conteúdo dessas fitas
para despedir um empregado e punir outros onze.
Os consumidores também são objeto de voyeurismo. O últi-
mo foi estrelado pela cadeia de supermercados Tesco, no final de
2013, na Grã-Bretanha. A empresa instalou câmeras pequenas
em 450 postos de gasolina para escanear os rostos de seus clien-
tes na fila do estabelecimento, a fim de detectar sua idade, sexo
e oferecer-lhes, através de uns monitores instalados no mesmo
local, a publicidade mais consistente com seus perfis. O filme
de ficção científica “Minority Report”, de Steven Spielberg, se
torna realidade, e os anúncios personalizados a partir da leitura
da retina, como aparecem no filme, parece que não terão que
esperar até 2054.

A nossa vida em um cartão


“Já tem o cartão de cliente?” se tornou um ritual que nos per-
guntam ao passar pelo caixa. E, se não tivermos, nos oferecem um
monte de vantagens, descontos e recompensas dentro do cartão.
Assim fisgados, corremos a preencher o formulário, apontando
todos nossos dados, sem nem mesmo ler o que assinamos, para
poder obter o quanto antes as tão fantásticas promoções. Entre-
tanto, o que sucede com a informação que damos? Quem a usa?
Para que fins? Isso é algo que não nos contam ao nos registrarem...
Os supermercados são os reis dos cartões de fidelidade. Ofere-
cem-nos brindes, descontos, pontos etc., a cada vez que passamos
pelo caixa. Além de contar com a nossa fidelidade, as empresas
do varejo buscam, através destes cartões de cliente, saber tudo ou

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O negócio da comida

quase tudo sobre nossas vidas privadas: quem somos, qual a nossa
idade, estado civil, preferências, hobbies. À margem do que diz a
ficha que preenchemos, as compras regulares que fazemos ficam
gravadas para sempre em nosso arquivo: se nós gostamos ou não
de chocolate, se preferimos carne ou peixe, qual café, que massas,
doces, bebidas, conservas, verduras que usamos. Eles sabem tudo.
As empresas armazenam esses dados e os utilizam através do
marketing para melhorar suas vendas. Assim, eles sabem quem
consome o quê e quando, podendo realizar perfis detalhados de
seus compradores. A partir desse momento, nos oferecem, através
de publicidade variada, tudo aquilo que “necessitamos” – e com-
pramos, encantados. Nossa vida privada nas mãos de empresas
torna-se uma nova fonte de negócios, sem que possamos nos dar
conta.

O rastro do que compramos


Eles dizem que comprar no supermercado do futuro será mais
prático, confortável, ágil, rápido e não precisaremos fazer filas
nem passar pelo caixa. Tudo graças, entre outras, à tecnologia
de identificação por radiofrequência – as etiquetas RFID. Umas
etiquetas contendo um microchip que registra informações deta-
lhadas sobre a “vida” do produto. Elas são como um número de
série único que armazena e emite, através de uma antena, dados
específicos sobre esse produto.
Assim, no futuro não tão distante, poderemos entrar em
um supermercado, pegar um carrinho de compras “inteligente”,
carregar em seu banco de dados a lista do que queremos comprar,
deixar que ele nos guie ao encontro desses produtos, dar-nos
informações sobre eles e ir calculando o total que estamos gas-
tando. E, ao sair, nem vamos precisar fazer o check-out – já que
cada produto leva uma dessas etiquetas e uma antena receptora

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E st her Vi va s E stev e

os identificará. O total nos será cobrado diretamente em nossa


conta, e sem entrar em filas. O que mais poderíamos pedir?
O problema reside – como denunciado nos Estados Unidos
por Consumidores Contra a Invasão de Privacidade dos Super-
mercados (Caspian) e pelo Centro de Informação sobre Priva-
cidade Eletroeletrônica (Epic) – no controle que esses sistemas
exercem sobre as pessoas. Ninguém impede, por exemplo, que
tais etiquetas possam continuar a acumular informações, uma
vez fora do supermercado, seguindo cada um dos passos dos
produtos e de nós mesmos, como consumidores.
Hoje já encontramos essas etiquetas RFID em alguns produ-
tos dos supermercados, coexistindo com os tradicionais códigos
de barras. Seu custo limita no momento, e em parte, uma maior
generalização, embora, de acordo com a Agencia Española de
Protección de Datos e Instituto Nacional de Tecnologías de la
Comunicación (2010), seja cada vez mais comum encontrá-las
na rotulagem de vestuário e calçado. Assim como em sistemas
de identificação de animais de estimação, cartões de transporte,
pagamento automático de pedágio, passaportes, entre outros,
colocando em risco a nossa privacidade.
Querem que acreditemos que os centros comerciais são sinô-
nimos de liberdade. Agora, Caprabo apela, em sua publicidade,
ao “livre-comprador” que levamos dentro de nós. “Damos tudo
para você ser livre para escolher o que você mais gosta”, diz.
No entanto, a liberdade de escolha não está no supermercado,
mas, sim, fora dele.

Os supermercados criam empregos?


A abertura de um grande centro comercial ou supermerca-
do está sempre associado à promessa de criação de empregos,
impulsionamento da economia local, preços acessíveis e, defi-

182
O negócio da comida

nitivamente, o progresso. A realidade é mesmo assim? A grande


distribuição comercial é baseada em uma série de mitos que,
muitas vezes, sua prática desmente.
A Associação Nacional de Grandes Empresas de Distribuição
(Anged), organização patronal do grande varejo – que agrupa
companhias como Alcampo, El Corte Inglés, FNAC, Carrefour,
Ikea, Eroski, Leroy Merlin, entre outras – impôs, no início de 2013,
um novo e duro convênio a seus 230 mil funcionários. Com sua
aplicação, trabalhar em um domingo é equivalente ao trabalho em
um dia de semana. E aqueles que até então estavam isentos, por
razões familiares, são agora obrigados a cumprir. De tal modo que
se dificulta, ainda mais, a conciliação entre a vida pessoal e a laboral,
num setor onde a maior parte do pessoal é composta por mulheres.

Trabalhar mais por menos


Com esse novo convênio, se aplica a regra de ouro de capital:
trabalhar mais por menos, estendendo as horas de trabalho e
baixando os salários. Além disso, se as vendas caírem abaixo
daquelas de 2010, os salários podem ser cortados em até 5%.
Uma prática cruel, num setor já extremamente precarizado. A
Anged, entretanto, afirma que “o convênio reflete os esforços
das empresas e dos trabalhadores para manter o emprego”.
Mas, que tipo de empregos fomentam supermercados,
cadeias de desconto e hipermercados? A resposta é fácil: horas
flexíveis de trabalho, contratos a tempo parcial, baixos salários e
tarefas rotineiras e repetitivas. E o que acontece se você decidir
se organizar em um sindicato e lutar por seus direitos? Acontece
que, se você tem um contrato precário, melhor se despedir de
seu trabalho. Wal-Mart, o “colosso” do varejo, é o exemplo por
excelência (Antentas, 2007). Seu slogan “Preços sempre baixos”
poderia ser substituído por “Salários sempre baixos”.

183
E st her Vi va s E stev e

No início de 2013, a Caprabo, de propriedade da Eroski,


anunciou sua intenção de despedir 400 trabalhadores, para não
aplicar o aumento salarial acordado e cortar até 20% dos salários
do seu pessoal. A culpa? Da “previsível” queda das vendas e a
crise. Um ano antes, curiosamente, a empresa havia afirmado
que os seus lucros aumentaram 12% em relação ao ano anterior.
A “Santa Crise” resgata de novo a empresa.

O fim do comércio local


Tendo visto o que vimos, supermercados e criação de em-
prego parecem, isso sim, um oxímoro.* Existem vários estudos
que apontam como a abertura destes estabelecimentos envolve
o encerramento de lojas e o declínio do comércio local. E, con-
sequentemente, a perda de postos de trabalho. Especificamente,
a investigação sobre o impacto do Wal-Mart no mercado de tra-
balho local concluiu que, para cada posto de trabalho criado por
ela, 1,4 empregos foram destruídos em negócios pré-existentes
(Neumark, Zhang e Ciccarella, 2005). Na Espanha, a partir
dos anos 1980, e “a medida que a distribuição moderna se con-
solidava, o comércio tradicional sofreu uma erosão constante e
invencível, tornando-se hoje quase residual. Se em 1998 havia
95 mil lojas, em 2004 este número caiu para 25 mil” (Garcia
e Rivera, 2007b).
Quando desaparece o pequeno comércio, diminui também
a renda da comunidade, já que a compra em uma loja de bairro,
ao contrário de compras em uma “grande superfície”,** repercute
em maior medida na economia local. De acordo com um estudo

* Figura em que se combinam palavras de sentido oposto que parecem excluir-se


mutuamente; paradoxo. (N. T.)
** “Grande superfície” refere-se aos grandes centros comerciais horizontais, como
os supermercados. (N. T.)

184
O negócio da comida

realizado por Amigos de la Tierra na Grã-Bretanha, 50% dos


lucros do comércio em pequena escala retorna ao município.
Geralmente através da compra de produtos locais, salários dos
trabalhadores e dinheiro gasto com outros negócios, enquanto
as grandes empresas de distribuição reinvestem escassos 5%
(Amigos de la Tierra, 2005a).
E não param por aí as consequências negativas que a grande
distribuição causa para os envolvidos na cadeia de produção,
distribuição e consumo. Desde os camponeses, que são os
maiores perdedores, obrigados a acatar termos comerciais in-
sustentáveis, que os condenam a desaparecer, passando pelos
consumidores, instados a comprar acima de suas necessidades,
produtos de má qualidade e não tão baratos quanto parecem,
até o tecido econômico local, que é fragmentado e decomposto.
Este é o paradigma de “desenvolvimento” que promovem os
supermercados.

A outra cara de uma cadeia de supermercados


Mercadona não é apenas uma cadeia de supermercados, é
muito mais. Mercadona significa poder. À frente, seu fundador
e presidente Juan Roig. Porém, por trás da imagem de empresa
familiar que cria empregos em tempos de crise e que se preo­
cupa com seu quadro de pessoal, seus bastidores escondem
uma realidade pouco conhecida, e muito menos divulgada.
Financiamento de partidos, exploração laboral, extinção do
pequeno comércio, sufocamento do campesinato, alimentos
quilométricos. Este é o outro lado da Mercadona.
Nem a crise tem sido um impedimento para que Juan Roig
– um self-made man, como ele gosta de se apresentar – tenha
consolidado uma das maiores fortunas da Espanha, ocupando o
número 4 no ranking dos mais ricos, segundo a revista Forbes,

185
E st her Vi va s E stev e

logo atrás dos proprietários dos impérios Inditex (Amancio


Ortega y Sandra Ortega, números 1 e 2, respectivamente) e
Mango (Isak Andic, em terceira posição). Uma herança que ele
atribui à “cultura do esforço”, à qual costuma apelar. Sua receita
para superar a crise é simples. É só uma questão de esforço: “A
crise vai levar mais ou menos anos, dependendo de mudarmos
nossa atitude, pensar mais sobre os nossos deveres e menos so-
bre nossos direitos” (Jimenez, 2012). Aceitar a reforma laboral,
imagino, deve ser parte deste esforço.
Mercadona sabe tirar partido – como nenhum outro su-
permercado – da crise. Desde 2008, seus lucros aumentaram
58%, consolidando-se como o número um da grande distri-
buição alimentar. Em 2011, sua cota de mercado foi de quase
24%, um total superior à soma de seus três principais rivais:
Carrefour, Eroski e Dia (Segura, 2012). A “receita mágica”?
De acordo com a empresa: preços baixos sempre, comércio
de proximidade etc. Mas há uma parte da “receita” que ela
costuma “esquecer”.
Juan Roig compareceu, em fevereiro de 2014, à Audiência
Nacional, pelos “papéis” de Barcenas, a “suposta” contabilidade
B do PP; “papéis” que mencionavam o magnata dos supermer-
cados e indicavam supostas doações de Mercadona para o PP
no valor de 240 mil euros. Juan Roig negou tudo ante o juiz
Pablo Ruz, apesar de ter admitido doações para a Fundação para
a Análise e Estudos Sociais (Faes), do ex-presidente José María
Aznar, num valor total de 100 mil euros em 2005 e 2012, e
outro semelhante à Fundação Mulheres pela África, da ex-vice-
-presidente do Governo, do Psoe, Maria Teresa Fernández de
la Vega. Assim, todos ficaram satisfeitos. Juan Roig declarou,
também, que tinha se encontrado “cinco ou seis vezes” com o
primeiro-ministro Mariano Rajoy, não surpreendentemente

186
O negócio da comida

o terceiro empresário mais influente, atrás de Emilio Botín e


Amancio Ortega (Ipsos, 2014).

“Modelo alemão”
Mercadona sempre se gabou de seus contratos estáveis, de
oferecer salários acima da média do setor e formação, além de
apostar na conciliação entre trabalho e vida familiar. O próprio
The Wall Street Journal elogiou o “modelo alemão” da empresa,
considerando-o a chave para o seu sucesso: condições de traba-
lho flexíveis e salários vinculados à produtividade (Ball e Brat,
2012) – o que não parece o mais adequado a conciliar a vida
pessoal com o trabalho, nem o melhor para um salário estável.
Na verdade, o mesmo Juan Roig, como presidente do Instituto
da Empresa Familiar, que reúne centenas de empresas líderes em
seu setor, tem repetidamente exigido a “necessária” flexibilidade
do mercado de trabalho, a redução do custo de demissão, a ele-
vação da idade de aposentadoria para 67 anos, a transferência de
feriados de terça a sexta para a segunda-feira para evitar “pontes”,
e a desvinculação do aumento salarial ao aumento do IPC (Índice
de Preços ao Consumidor) (Lafont, 2006). Tudo, claro, pensando
nos trabalhadores...
As denúncias feitas contra Mercadona por abusos laborais são
muitas e vêm de longe. As demissões improcedentes, a política
antissindical, a extrema pressão sobre a força de trabalho, as
dificuldades para conceder a aposentadoria, o assédio aos traba-
lhadores (Llopis, 2014). Em 2006, começou um longo conflito no
Centro Logístico de Sant Sadurní d’Anoia – encarregado do abas-
tecimento dos supermercados da Catalunha, Aragão e Castelló.
Vários vendedores começaram um processo de auto-organização
contra os abusos da empresa, com o apoio do sindicato CNT. A
resposta de Mercadona foi rápida: três funcionários para a rua! Isso

187
E st her Vi va s E stev e

desencadeou uma longa greve, de março a setembro de 2006 (An-


tentas e Vivas, 2007). Muitos são os outros casos que poderiam
ser compartilhados. Basta acrescentar mais um: o de Francisco
Enriquez, sete anos em um Mercadona em Málaga, demitido em
outubro de 2013, depois de ser eleito delegado sindical da CGT
(Llopis, 2014b). Muitas vezes, a realidade desmente o marketing.

Adeus, quitandas!
O desaparecimento do pequeno comércio local é outro dos
“danos colaterais” da proliferação de supermercados, a despeito
de Mercadona dizer que várias lojas se desenvolvem no entorno
de seus estabelecimentos. No entanto, eu diria que se instalam
“apesar” da empresa. E não se trata de qualquer tipo de loja, mas
quitandas que se aproveitam do insípido e embalado produto que
Mercadona vende para oferecer uma alternativa fresca aos clientes
da cadeia. O próprio Juan Roig deixou isso claro ao afirmar que
em torno de cada Mercadona “não há supermercados, mas há
oito quitandas”. E acrescentou: “Sem ir a Harvard, mas a ‘Har-
vacete’, os vendedores de frutas e verduras são mais espertos do
que nós” (Zafra, 2013a). Qual é a sua meta agora? Eliminar lojas
de conveniência e quitandas nas proximidades de Mercadona.
A empresa lançou, no final de 2013, uma nova estratégia para
vender diretamente produtos frescos.
Agricultores, pecuaristas e fornecedores tampouco estão satis-
feitos com Mercadona. Sindicatos agrários como o Coordinadora
de Organizaciones de Agricultores y Ganaderos [Coordenação
das Organizações de Agricultores e Pecuaristas] (Coag) (2009)
denunciaram várias vezes como o processo de concentração dos
supermercados só favorece o enriquecimento deles mesmos, à
custa da redução da renda dos agricultores. Em junho de 2013,
camponeses das Canárias, concentrados no portão de um Merca-

188
O negócio da comida

dona em Las Palmas, “presentearam” o povo com oito toneladas


de batatas, para denunciar os preços miseráveis que lhes pagavam
o supermercado, abaixo do custo de produção. Segundo a Coag
Canárias, as grandes redes de varejo realizam “guerras de preços”
para ganhar cotas de mercado, e quem paga a conta são os que
estão no início da cadeia” (Coag, 2013c).
Não se trata de um caso pontual. A Unións Agrarias e a As-
sociação Setorial de Criadores de Aves de Galícia informaram,
em agosto de 2013, perante o Conselho Galego da Competi-
tividade, como sete supermercados vendiam frango abaixo do
custo de produção e praticamente ao mesmo preço. A Unións
Agrarias acusava diretamente Mercadona de “liderar” esse pacto
de preços. “Se Mercadona varia dez centavos no preço, os demais
não tardarão em fazê-lo”. O que coloca as quase 800 granjas
existentes na Galícia em uma situação “muito difícil”, acrescen-
taram (Dominguez, 2013). Juan Roig disse que Mercadona quer
“dignificar o trabalho do agricultor, pescador e criador de nosso
país” e argumenta que “fazendeiros e agricultores têm de ganhar
dinheiro” (Zafra, 2013b). Palavras ao vento.

Alimentos “viajantes”
De onde vêm os alimentos até a rede Mercadona? Um
relatório de Amigos de la Tierra afirma que, se os alimentos
que compramos tivessem um velocímetro, a média antes de
alcançar nosso prato seria de 5 mil quilômetros (Gonzalez,
2012). Mercadona, a maior cadeia de supermercados, não é
uma exceção a isso. A Coag denunciou, em março de 2009, o
contrato entre Mercadona e a empresa portuguesa Sovena, cujo
principal acionista é um dos genros de Juan Roig, para plantar
oliveiras e produzir azeite em Portugal e no Norte do Magrebe,
deslocalizando a produção.

189
E st her Vi va s E stev e

E eis que a famosa orchata valenciana parece não ser mais


de Valência. A Unió de Llauradors (2013) revelou que a orchata
vendida em Mercadona não usa o rótulo “designação de origem”,
já que muito provavelmente provinha da África, com a conse-
guinte exploração do trabalho de seus produtores e o impacto
ambiental de tais alimentos “viajantes”. Mercadona negou. Mas
não passou a rotular os seus produtos com essa denominação,
como fazem outros supermercados. Portanto, a origem da chufa*
é desconhecida. Além disso, têm sido detectadas em Mercadona
laranjas etiquetadas como valencianas, ainda que com origem
na Argentina, abóboras do Panamá, peixe congelado africano
ou da América do Sul, bem como outros produtos com muitos
quilômetros rodados.
Mercadona investe milhares de euros em cuidar de sua ima-
gem. “Os supermercados de confiança”, anunciam. Será?

* “Orchata” é o nome dado a um tipo de bebida não alcoólica, típica da cultura


espanhola, que pode ser produzida a partir de diversas bases vegetais, como
cevada, amêndoas ou chufa. (N. T.).

190
SIM, E X ISTEM A LTER NATI VA S!

Soberania alimentar: poder decidir o que se


cultiva e o que se come
Comer significa mastigar e decompor o alimento na boca e
enviá-lo para o estômago, segundo definição da Real Academia
Espanhola. Comer, no entanto, é muito mais do que engolir ali-
mentos. Comer de forma consciente envolve perguntar-se de onde
vem o que consumimos, como foi elaborado, em que condições, e
por que pagamos por isso um determinado preço. Significa tomar-
mos o controle de nossos hábitos alimentares, e não simplesmente
delegar. Em outras palavras, ser soberano, poder decidir quanto à
nossa alimentação. Esta é a essência da soberania alimentar.
Uma proposta que surge diante da ineficácia e mau funcio-
namento do sistema agrícola e alimentar – do qual o melhor
exemplo é a fome, em um mundo onde há comida para todos.
Hoje, o modelo agroalimentar foi sequestrado pelos interesses de
um punhado de corporações do agronegócio e grandes varejistas,
que buscam apenas ganhar dinheiro com algo tão essencial como
é a comida. Confrontado com este absurdo, emerge a ideia da
soberania alimentar: o poder e a capacidade de decisão, também
relativo ao que se come, têm que estar nas mãos da maioria.
E st her Vi va s E stev e

Um direito dos povos


A soberania alimentar implica reivindicar o direito de cada
povo de definir suas políticas agrícolas e alimentares. De controlar
seu mercado interno e impedir a entrada de produtos subvencio-
nados ou excedentes da agroindústria vindos de outros países e
que competem de forma desleal com os alimentos locais. Trata-se
de optar por uma agricultura local, diversa, camponesa, susten-
tável, culturalmente adequada ao seu ambiente e que respeite o
território, entendendo o comércio internacional como apenas um
complemento à produção local. A soberania alimentar significa
devolver aos povos o controle dos recursos naturais, daquilo que
nos dá de comer, e lutar contra a privatização da vida.
O leitmotiv da soberania alimentar reside no “poder de deci-
dir”: que os agricultores possam decidir o que cultivar, que tenham
acesso à terra, à água, às sementes. E que nós consumidores te-
nhamos todas as informações sobre o que comemos, que saibamos
como foi produzido, se contêm ingredientes transgênicos ou não.
Tudo isso é impossível hoje. Especula-se com a terra, as sementes
são privatizadas, a água está se tornando cada dia mais cara, os
rótulos de um produto mal informam o que levamos à boca. E
a Espanha é uma das principais áreas de cultivo de transgênicos
na Europa. A lista poderia continuar.
Em 1996, a Via Campesina colocou, pela primeira vez sobre
a mesa, a demanda da soberania alimentar, que coincidiu com
a Cúpula Mundial sobre Alimentação da FAO, em Roma. A
Via definiu formalmente este conceito como “o direito de cada
nação de manter e desenvolver seus alimentos, tendo em conta a
diversidade cultural e produtiva” (Desmarais, 2008). Em suma,
o direito de ter plena soberania para decidir o que é cultivado e
o que é comido. As políticas alimentares e agrícolas atuais não
permitem isso. Em termos de produção, muitos países foram

192
O negócio da comida

forçados a abandonar sua diversidade agrícola em favor de mono-


culturas para exportação, que só beneficiam algumas empresas.
No âmbito comercial, sua soberania está sujeita aos ditames da
Organização Mundial do Comércio (OMC), entre outras insti-
tuições e tratados internacionais.

Para além da segurança alimentar


Desde os anos 1970, o debate sobre o direito à alimentação
girava em torno da demanda de segurança alimentar. Em 1974,
frente aos desequilíbrios e limites do sistema alimentar mundial, e
coincidindo com a crise alimentar daquele ano, a FAO cunhou o
conceito de “segurança alimentar”, com o objetivo de defender o
direito e o acesso à alimentação para toda a população do planeta.
Nas palavras da FAO (1996b), “existe segurança alimentar
quando todas as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico
e econômico a alimentos suficientes, inócuos e nutritivos, para
satisfazer suas necessidades dietéticas e suas preferências alimen-
tares, para levar uma vida ativa e saudável”. Uma proposta que
coloca ênfase na disponibilidade de alimentos, no acesso a eles,
na sua utilização e estabilidade no abastecimento, mas que não
questiona o lugar, nem quem os produz, assim como em mãos
de quem estão os recursos naturais (água, terra, sementes...) que
permitem o cultivo de alimentos. Em suma, é uma abordagem
que pode ser facilmente enquadrada em uma visão neoliberal
das políticas agrícolas e alimentares e nas políticas comerciais
promovidas pela OMC, para não questionar as causas estruturais
da pobreza e da fome.
Assim, o conceito de segurança alimentar tem sido muitas
vezes despojado de seu significado original e a indústria agroa-
limentar, bem como as instituições internacionais, o têm usado
para justificar a exportação de alimentos subsidiados, a partir dos

193
E st her Vi va s E stev e

Estados Unidos ou da União Europeia, para os países do Sul, com


o objetivo “teórico” de acabar com a fome. No entanto, como
vimos nos capítulos anteriores, essas práticas, longe de resolverem
os problemas agrícolas e alimentares no Sul, os agudizam.
Frente à constatação de que o conceito de segurança alimentar
não representa um paradigma alternativo ao agronegócio e às
políticas neoliberais, emergiu a proposta da soberania alimentar,
que inclui essa demanda e vai mais além. A soberania alimentar
visa atender à segurança alimentar das pessoas – que todo mundo
possa comer. Ao mesmo tempo, coloca em questionamento o
atual modelo de produção agrícola (intensiva, industrial, deslo-
calizada, insustentável, quilométrica), assim como as políticas
das instituições internacionais que o sustentam. A soberania
alimentar coloca os agricultores no centro, apoiando-os na sua
luta para produzir alimentos à margem das condições impostas
pelo mercado, dando prioridade aos circuitos locais e nacionais,
quebrando o mito de que somente os mercados e o comércio in-
ternacional poderão acabar com a fome no mundo. E colocando
a produção de alimentos, a distribuição e o consumo na base da
sustentabilidade social, econômica e ambiental.

Nem romantismos, nem localismos


Reivindicar a soberania alimentar não implica um retorno
romântico a um passado arcaico, mas, sim, recuperar o conhe-
cimento e as práticas tradicionais e combiná-las com as novas
tecnologias e os novos saberes (Desmarais, 2008). Não deve
consistir, tampouco, em uma abordagem localista ou de uma
“mistificação do pequeno”. Mas deve repensar o sistema alimen-
tar mundial para promover formas democráticas de produção
e de distribuição de alimentos. A proposta da Via Campesina
não procura um retorno ao “local”, ao contrário, seu objetivo

194
O negócio da comida

é repolitizar um sistema alimentar globalizado, a serviço das


comunidades e do coletivo, a partir de uma perspectiva inter-
nacionalista (McMichael, 2006).
Atualmente, a demanda por soberania alimentar já não se
limita, como em suas origens, somente ao mundo camponês,
atingindo amplos setores sociais, desde grupos de consumidores,
organizações de mulheres, ambientalistas, ONGs, coletivos em
defesa do mundo rural, entre muitos outros que a reclamam.
Alimentar-se, e poder decidir como o fazer, é coisa de todos.
E como levar essa soberania alimentar à prática? Muitas
são as iniciativas sociais que apontam nessa direção, a partir da
agroecologia, grupos e cooperativas de consumo, hortas urbanas,
cozinha comprometida e de quilometragem zero, compras dire-
tas e sem intermediários aos agricultores locais e orgânicos. São
iniciativas que ligam produtores e consumidores; estabelecem
relações de confiança e solidariedade entre o campo e a cidade.
Fortalecem o tecido social; promovem outra forma de produzir,
no marco da economia social e solidária, e demonstram que
existem alternativas.
O desafio é fazer chegar essa soberania alimentar a toda a po-
pulação. Para isso, são necessárias mudanças políticas. É urgente
que se proíba o cultivo de espécies transgênicas que contaminam
a agricultura convencional e ecológica. Construir um banco
público de terras que torne o solo acessível a quem quer viver e
trabalhar no campo; aprovar uma Lei do Artesanato, adequada
às necessidades dos pequenos artesãos. É essencial reconverter as
cantinas e restaurantes de centros públicos (escolas, residências,
universidades, hospitais...) em cozinhas e refeitórios ecológicos e
de proximidade, e introduzir o “saber comer” no currículo escolar,
entre outras propostas.
A soberania alimentar é possível. Se queremos, podemos.

195
E st her Vi va s E stev e

A agricultura camponesa ecológica


pode alimentar o mundo?
A população do mundo vai chegar aos 9 bilhões e 600 mi-
lhões de habitantes em 2050, de acordo com a Organização das
Nações Unidas (ONU, 2013). Isso significa mais 2 bilhões e 400
milhões de bocas para alimentar. Tendo em conta esses números,
veicula-se um discurso oficial que afirma que, para alimentar
tantas pessoas, é essencial produzir mais. No entanto, é necessário
perguntar: falta comida hoje? O cultivo atual é suficiente para
toda a humanidade?
Atualmente, no mundo, “se produzem alimentos suficientes
para dar de comer a 12 bilhões de pessoas, segundo dados da
FAO”, afirmava Jean Ziegler, relator especial sobre o direito à
alimentação da Organização das Nações Unidas entre 2000 e
2008 (Centro de Noticias ONU, 2007). E lembre-se que no
planeta habitam 7 bilhões. Além disso, todos os dias são colhidos
1,3 bilhão de toneladas de alimentos em todo o mundo, um terço
do total do que se produz (FAO, 2012b). Conforme esses dados,
de comida não há falta!
Os números indicam que o problema da fome não se deve à es-
cassez de alimentos, embora alguns insistam em dizer o contrário.
O próprio Jean Ziegler dizia: “As causas da fome são provocadas
pelo homem. É um problema de acesso, não de superpopulação
ou de subprodução” (Centro de Noticias ONU, 2007). Em suma,
é uma questão de falta de democracia nas políticas agrícolas e
alimentares. Na verdade, se estima que cerca de uma em cada oito
pessoas no mundo passem fome (FAO, 2013a). A aberração da
fome é que ela se dá em um planeta com abundância de alimentos.
Então, por que há fome? Porque muitas pessoas não podem
pagar o preço cada vez mais caro dos mantimentos, seja aqui,
seja nos países do Sul. A comida tornou-se uma mercadoria. E se

196
O negócio da comida

você não pode pagá-la, em vez de lhes dar para comer, jogam no
lixo. Da mesma forma, os cereais não são produzidos apenas para
alimentar as pessoas, mas também para alimentar carros (como
os biocombustíveis) e animais – cuja criação exige muito mais
energia e recursos naturais do que se gastaria, com tais cereais,
para alimentar pessoas diretamente. Produz-se comida, mas uma
grande quantidade dela não acaba em nosso estômago. O sistema
de produção, distribuição e consumo de alimentos é projetado
para dar dinheiro às empresas do agronegócio, que monopolizam,
do início ao fim, a cadeia alimentar. Eis, aqui, a causa da fome.
Portanto, por que alguns ainda insistem que temos de produ-
zir mais? Por que nos dizem que precisamos de uma agricultura
industrial, intensiva e geneticamente modificada que nos permita
alimentar toda a população?
Querem nos fazer crer que as próprias causas da fome serão
a solução. Mas isso é falso. Mais agricultura industrial, mais
agricultura transgênica, como já foi demonstrado, significa mais
fome. Há muita coisa em jogo quando falamos de alimentos. As
grandes empresas do setor sabem disso muito bem. Daí vem o
discurso hegemônico dominante nos dizer que elas têm a solução
para a fome no mundo, quando na verdade são elas que, com
suas políticas, a causam.

Outro paradigma agroalimentar


Visto isso, o que podemos fazer? Que alternativas existem?
Se tudo o que queremos é comer e comer bem, é necessário que
apostemos em outro modelo de alimentação e de agricultura.
Anteriormente, afirmamos que agora existe comida suficiente para
todo o mundo. Isto seria assim com uma dieta diferente, com
muito menos consumo de carne que a dieta ocidental atual. O
nosso “vício” de carne faz com que precisemos de maior quanti-

197
E st her Vi va s E stev e

dade de água, cereais e energia para produzir comida para cevar o


gado do que se nossa dieta fosse mais vegetariana. Estima-se que
um terço das terras agrícolas e 40% da produção de cereais no
mundo destinam-se a alimentar gado (Chemnitz Becheva, 2014).
Tornar compatível a vida humana com os limites e recursos finitos
do planeta Terra também envolve questionar o que comemos.
Além disso, outro problema surge: caso façamos a proposta de
dispensar a produção industrial, intensiva, transgênica de alimentos,
que alternativa temos? A agricultura camponesa e ecológica pode
alimentar o mundo? Cada vez são mais vozes que dizem SIM. Uma
das mais reconhecidas é a de Olivier de Schutter, relator especial
sobre o direito à alimentação da ONU entre 2008 e 2014, que
afirmou em seu relatório “A Agroecologia e o direito à alimenta-
ção” que “os pequenos agricultores poderiam dobrar a produção
de alimentos em uma década, se utilizassem métodos ecológicos de
produção”. Ele acrescenta que “é imperativo aplicar a agroecologia
para acabar com as crises alimentares e ajudar a enfrentar os desafios
ligados à pobreza e às alterações climáticas” (De Schutter, 2010).
De acordo com De Schutter, a agricultura camponesa e eco-
lógica é mais produtiva e eficiente, e garante melhor a segurança
alimentar das pessoas que a agricultura industrial: “A evidência
científica mostra que a agroecologia supera o uso de fertilizantes
químicos no aumento da produção de alimentos, especialmente
nos ambientes desfavoráveis onde vivem os mais pobres” (Centro
de Noticias ONU, 2011). O relatório citado, a partir da sistema-
tização de dados de vários estudos de campo, deixou isso claro:
“Em diferentes regiões se tem desenvolvido e testado, com exce-
lentes resultados, técnicas muito variadas baseadas na perspectiva
agroecológica (...). Tais técnicas, que conservam recursos e utili-
zam poucos insumos externos, têm demonstrado potencial para
melhorar significativamente os rendimentos” (De Schutter, 2010).

198
O negócio da comida

Um dos principais estudos sobre esta questão, liderado por


Jules Pretty (2006) e citado no referido relatório, analisou o
impacto da agricultura sustentável, ecológica e camponesa em
286 projetos de 57 países pobres, num total de 37 milhões de
hectares (3% da área cultivada em países em desenvolvimento).
Suas conclusões não deixaram dúvidas: a produtividade dessas
terras, através da agroecologia, aumentou 79%, e a produção
média de alimentos por família aumentou em 1,7 toneladas por
ano, em até 73%. Posteriormente, a Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento e o Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente retornou a esses dados
para analisar o impacto da agricultura ecológica e camponesa
nos países africanos. Os resultados foram ainda melhores: o au-
mento médio das colheitas nos projetos da África foi de 116% e
na África Oriental, de 128%. Outros estudos científicos, citados
no relatório “A Agroecologia e o direito à alimentação”, chegaram
às mesmas conclusões.
Em suma, a agricultura ecológica e camponesa não é só alta-
mente produtiva – inclusive mais até do que a agricultura indus-
trial, especialmente nos países pobres. Mas, tal como reivindicado
pelos estudos citados, cuida dos ecossistemas, permite “conter e
inverter a tendência de perda de espécies e a erosão genética” e
aumenta a resiliência às mudanças climáticas. Ela também dá
maior autonomia para o campesinato: “ao melhorar a fertilidade
da produção agrícola, a agroecologia reduz a dependência dos
agricultores dos insumos externos e dos subsídios estatais” (De
Schutter, 2010).

A agroecologia arregimenta apoios


A Avaliação Internacional do Papel do Conhecimento, da
Ciência e da Tecnologia no Desenvolvimento Agrícola (IAASTD,

199
E st her Vi va s E stev e

na sigla em inglês) foi um dos principais processos intergoverna-


mentais que se levaram a cabo para avaliar a eficácia das políticas
agrícolas e também chegou a conclusões que apontam no mesmo
sentido. A iniciativa, no início, teve apoio do Banco Mundial e
da FAO, e o patrocínio de outras organizações internacionais,
como a Global Environment Facility (GEF), o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Programa das
Nações Unidas para o Ambiente (Pnuma), a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)
e a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O objetivo foi avaliar o papel do conhecimento, da ciência
e da tecnologia agrícola na redução da fome e da pobreza no
mundo, na melhoria dos meios de subsistência nas zonas rurais
e na promoção do desenvolvimento ambiental, social e econô-
mico sustentável. A avaliação, realizada entre 2005 e 2007, teve
a participação de uma delegação composta por representantes de
governos, ONGs, grupos de produtores e consumidores, entidades
privadas e organizações internacionais, com um claro equilíbrio
geográfico. Foram escolhidos 400 especialistas mundiais para efe-
tuar o estudo, que incluiu uma avaliação global e cinco regionais.
Suas descobertas foram um marco importante, porque pela
primeira vez um processo intergovernamental dessas caracte-
rísticas, e patrocinado por essas instituições, manifestava um
compromisso claro e firme com a agricultura biológica e sinali-
zava sua alta produtividade. O relatório afirma que “o aumento
e fortalecimento dos conhecimentos e da tecnologia agrícola,
orientados às ciências agroecológicas, irão contribuir para lidar
com as questões ambientais, mantendo e aumentando, ao mesmo
tempo, a produtividade” (IAASTD, 2008).
A pesquisa também considerou que a agricultura ecológica
era uma alternativa real e viável à agricultura industrial; dava

200
O negócio da comida

melhores garantias à segurança alimentar das pessoas; e era capaz


de reverter o impacto ambiental negativo dessa última.
A pegada ecológica da agricultura industrial já é demasiadamente grande
para ser ignorada (...). As políticas que promovem a adoção mais rápida de
soluções eficazes (...) para a mitigação e adaptação à mudança climática
podem ajudar a retardar ou inverter esta tendência e, ao mesmo tempo,
manter a produção adequada de alimentos. As políticas que promovem
práticas agrícolas sustentáveis (...) estimulam uma maior inovação tec-
nológica, como a agroecologia e a agricultura orgânica, para aliviar a
pobreza e melhorar a segurança alimentar (IAASTD, 2008).

Os resultados da IAASTD consideravam, igualmente, a agri-


cultura industrial e intensiva como geradora de “desigualdades”,
acusando-a de “gestão insustentável da terra ou da água” e de
práticas baseadas na “exploração laboral”. A avaliação concluía
que “as variedades de cultivo de alto rendimento, os produtos
agroquímicos e a mecanização têm beneficiado principalmente os
grupos dotados de maiores recursos da sociedade e as corporações
transnacionais, e não os mais vulneráveis”. Afirmações inaudi-
tas até agora, na cena internacional, por parte de instituições e
governos.
Este relatório, com estas conclusões, foi aprovado em abril
de 2008 em Johanesburgo, pelas autoridades de 58 países, em
uma assembleia intergovernamental, que mostrou seu acordo e
aprovou seus resultados. Estados Unidos, Canadá e Austrália,
entretanto, recusaram-se a endossar a proposta e mostraram re-
servas e desconformidades em relação à totalidade da avaliação.
Os relatórios de Olivier de Schutter e o IAASTD indicam
de forma inequívoca a alta capacidade produtiva da agricultura
camponesa e ecológica – igual ou superior, dependendo do con-
texto, à agricultura industrial. Ao mesmo tempo, consideram
que aquela permite maior acesso aos alimentos pelas pessoas, ao
investir na produção e comercialização local e também, com suas

201
E st her Vi va s E stev e

práticas, respeita, preserva e mantém a natureza. O “mantra” de


que a agricultura industrial é mais produtiva e a única capaz de
alimentar a humanidade se demonstra, com base nesses estudos,
totalmente falso.
Na verdade, não só a agricultura camponesa e ecológica pode
alimentar o mundo, mas é a única capaz de fazê-lo. Não se trata
de um retorno romântico ao passado ou de uma ideia bucólica
do campo, mas de fazer confluir os métodos camponeses de
ontem com os saberes de amanhã, e democratizar radicalmente
o sistema agroalimentar.

A comida ecológica em tempos de crise


Muitas vezes associamos o “comer orgânico” com comer caro.
E, em tempos de cortes, pensamos que não podemos gastar tanto
dinheiro na alimentação. Na verdade, calcula-se que 41% das
famílias na Espanha tenham mudado seus hábitos de consumo
como um resultado da crise, com o objetivo de economizar (CIS,
2011). Mas os alimentos ecológicos e de qualidade não precisam
ser, necessariamente, mais caros. Há opções para comprar orgâ-
nicos a bom preço: alimentos sazonais, locais ou de proximidade,
a compra direta com os agricultores, os mercados locais, grupos e
cooperativas de consumo etc., são alternativas que nos permitem
comer bem e a preços acessíveis.

Produtos de época
Estamos acostumados a comprar, se quisermos, tangerinas,
uvas, morangos, melão etc., durante todo o ano. Já não sabemos
se os tomates ou as laranjas são cultivos da época ou não. Desa-
prendemos os ritmos de produção da terra, e nos distanciamos do
trabalho no campo. Comprar produtos que não são da temporada
faz com que acabemos pagando mais pelo que comemos, obtendo

202
O negócio da comida

produtos de pior qualidade. Temos que voltar a aprender a nos


alimentar com os frutos que a terra nos dá, em cada época do
ano. Que se explique nas escolas quando é o tempo das cerejas,
quando as árvores dão figos, quando encontramos vagens na
horta. Comprar alimentos ecológicos e da época nos permitirá
comer bem e a um preço que não será tão caro.
Camarões da Argentina e abacaxis da África do Sul, com
aspargos do Peru de entrada... Os alimentos viajam milhares
de quilômetros, do campo à nossa mesa. Muitas vezes, se trata
de uma estratégia para produzir barato, explorando direitos
trabalhistas e ambientais, para depois vender o produto tão caro
quanto as transnacionais da agroindústria considerem ser possível.
Alguns alimentos podem nos resultar mais econômicos, outros
nem tanto. Uma compra local e de proximidade não chega a ser
cara, e estaremos ainda reduzindo o impacto ecológico de um
modelo de alimentação quilométrico. Que sentido tem comer
aqui alimentos que vêm de outra parte do mundo, e que lá seus
mercados estejam “invadidos” por produtos subvencionados do
agronegócio, vendidos abaixo do preço de custo, competindo
deslealmente com os camponeses nativos?

Compra sem intermediários


A outra questão é de onde compramos. Pensamos que ir ao
supermercado sairá barato. Mas, frequentemente, acabamos com-
prando mais do que necessitamos. Ofertas de 3 por 2, descontos,
colocação estratégica para que enchamos nossa cesta sem pensar.
Alguns produtos são anunciados mais baratos, ainda que seja ape-
nas um atrativo para que, quando formos pegá-los, adquiramos
outros que já não o são tão baratos. Comprar diretamente do
agricultor, em mercados locais, via comércio eletrônico ou indo
ao seu próprio sítio são boas opções para saber de onde vem o que

203
E st her Vi va s E stev e

comemos, pagar o preço justo a quem o cultivou, e economizar


dinheiro. Os grupos e as cooperativas de consumo, que nos últi-
mos anos têm proliferado, são também uma escolha adequada.
Pessoas de um bairro ou de um município que se organizam para
comprar alimentos orgânicos do agricultor, sem intermediários,
e obter um produto de qualidade a um preço acessível.
Percebemos que o consumo de carne, nos últimos tempos, não
para de aumentar. Com uma dieta mais vegetariana, não apenas
reduziremos o impacto tão negativo da produção intensiva de
carne no meio ambiente – que gera gases de efeito estufa, entre
outros – e em nosso organismo, mas também conseguiremos
baixar o custo de nossa cesta básica. Mais consumo de frutas
e verduras orgânicas é uma boa alternativa, tão saudável como
econômica, a uma dieta excessivamente carnívora.
Desse modo, comer ecologicamente não tem porquê sair
caro, ao contrário. Trata-se apenas de saber comer e comprar. E
fazê-lo com critérios de justiça social e ecológica. Não só ganha-
rá nosso bolso, como também nossa saúde, nossa agricultura e
nosso planeta.

Quem tem medo da agricultura ecológica?


A agricultura ecológica deixa alguns muito nervosos. Assim
se constata, nos últimos tempos, pela multiplicação de artigos,
entrevistas, livros que têm por único objetivo desprestigiar esse
trabalho, desinformar acerca de sua prática e desacreditar seus
princípios. É um discurso carregado de falsidades, travestido de
uma suposta independência científica. E que, para se legitimar,
nos fala dos “malefícios” de um modelo de agricultura e alimen-
tação que, entretanto, agrega progressivamente mais apoios. Por
que tanto esforço em desautorizar tal prática? Quem tem medo
da agroecologia?

204
O negócio da comida

Quando uma alternativa “pega” socialmente, duas são as


estratégias para neutralizá-la: a cooptação e a estigmatização. A
agricultura ecológica, ou agroecologia, é torpedeada por ambas.
Por um lado, cada vez mais, grandes empresas e supermercados
estão produzindo e comercializando esses produtos, cobrindo
assim um florescente nicho de mercado – e, ao mesmo tempo,
“clareando” suas imagens – apesar de suas práticas não terem nada
a ver com o que defende esse modelo. O objetivo das empresas:
cooptar, comprar, submeter e integrar a alternativa agroecológica
ao modelo agroindustrial dominante, esvaziando-a de conteúdo.
Por outro lado, a estratégia do “medo”: estigmatizar, mentir e
desinformar acerca da proposta, confundir a opinião pública
para, assim, desautorizar o modelo alternativo.
E se levantamos a voz em sua defesa? Insultos e desqualifica-
ções. Se um cientista se posiciona contra a agricultura industrial
e transgênica, é tachado de “ideológico”. Como se defender este
tipo de agricultura mainstream, hegemônica, não respondesse a
uma determinada ideologia: a daqueles que se situam na órbita
das transnacionais agroalimentares e biotecnológicas, e que
frequentemente cobram delas por isso. Se um “não cientista”
faz uma crítica, então seu problema é que não sabe nada, que é
um ignorante. Segundo a ideologia dominante, parece que só
os cientistas – em particular aqueles que defendem os mesmos
postulados do agronegócio – podem ter uma posição válida
a respeito do assunto. Uma atitude muito “respeitosa” com a
diferença. Outra prática habitual é qualificar quem critica de
magufo,* sinônimo, segundo o jargão dessa “elite científica”,

* “Magufo” é uma designação cética, combinação de “mago” e “ufólogo”, usada


em relação a praticantes de supostas pseudociencias. Nesse caso, utilizada pelos
defensores do agronegócio para depreciar a agroecologia. (N. T.)

205
E st her Vi va s E stev e

de anticientífico. Vê-se que defender uma ciência a serviço


do público e do coletivo implica ser contrário à ciência. Uma
argumentação de loucos.
Vejamos, na continuação, algumas das afirmações mais repeti-
das para desqualificar e desinformar sobre a agricultura ecológica.
Porque existem os que creem que repetir mentiras serve para
construir uma “verdade”. Frente à calúnia, dados e informação.

O perigo dos agrotóxicos


“A agroecologia não é mais saudável nem melhor para o meio
ambiente”, dizem. Querem-nos fazer crer que uma agricultura
industrial, intensiva, que usa sistematicamente produtos químicos
sintéticos em sua produção é igual a uma agricultura ecológica
que prescinde deles. Como seria possível, se as práticas agroeco-
lógicas emergem precisamente como resposta a um modelo de
agricultura que contamina a terra e nossos corpos?
Há alguns anos, a retirada e proibição de fitossanitários –
agrotóxicos utilizados na agricultura convencional – tem sido
uma constante, depois que se demonstrou seu impacto negativo
na saúde do campesinato, dos consumidores e no meio ambiente.
Talvez o caso mais conhecido seja o do DDT, um inseticida utili-
zado para o controle de pragas, em uso desde os anos 1950, e que
devido à sua alta toxidade ambiental e humana, e sua escassa ou
nula biodegradabilidade, foi proibido em muitos países. No ano
de 1972, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos
vetou seu uso, ao considerá-lo um “cancerígeno potencial para
as pessoas”. Outras agências internacionais, como o Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), a Agência
Internacional de Investigação em Câncer, entre outras, também
denunciaram tais efeitos. Ainda assim, aqueles que mantêm a
afirmação inicial, todavia, se mostram, surpreendentemente

206
O negócio da comida

partidários do DDT, e continuam defendendo-o, apesar de


todas as evidências.
Infelizmente, o DDT não é um caso isolado. A cada ano, pro-
dutos químicos sintéticos, utilizados na agricultura industrial, são
retirados do mercado pela Comissão Europeia. Sem ir mais longe,
em 2012 o Tribunal Superior de Lyon concluiu que a intoxicação
do agricultor Paul François, e as sequelas em sua saúde, foram
devidas ao uso e manipulação do herbicida Lasso, da Monsanto,
que não informava nem a correta utilização do produto, nem
seus riscos sanitários (Bellver, 2012). A própria FAO afirma que
o uso de pesticidas na agricultura tem efeitos negativos em vários
níveis: 1) nos sistemas aquáticos, já que sua alta toxicidade e a
persistência de químicos degradam as águas; 2) na saúde humana,
pois a inalação e a ingestão, assim como o contato desses produtos
químicos com a pele, incidem no número de casos de câncer,
deformidades congênitas, deficiências no sistema imunológico,
mortalidade pulmonar; 3) no meio ambiente, com a morte de
organismos, geração de cânceres, tumores e lesões em animais,
através da inibição reprodutiva e o rompimento endócrino, en-
tre outras (Ongley, 1996). Quais fitossanitários serão proibidos
amanhã? Impossível saber. Até quando seguiremos sendo cobaias?

Jogando com a saúde dos países do Sul


Capítulo à parte seria analisar o impacto dos agrotóxicos na
saúde das comunidades que ficam no entorno das plantações
onde são aplicados. Inumeráveis têm sido os casos reportados,
especialmente nos países do Hemisfério Sul, onde seu uso é mais
permissivo. Em Córdoba, na Argentina, temos o documentadís-
simo caso das Madres de Ituzaingó,* em pé de guerra contra as

* Mais informações: http://madresdeituzaingo.blogspot.com.es/.

207
E st her Vi va s E stev e

fumigações nas plantações de soja ao redor de sua comunidade,


responsáveis pelo alto número de casos de câncer, malformação
congênita em recém-nascidos, anemia hemolítica etc., que afe-
tam a população. Em vários países da América Central, o uso
sistemático do Dibromo Cloropropano (DBCP) em plantações
da Standard Fruit Company, da Dole Food Corporation Inc. e
da Chiquita Brands International foi responsável por provocar,
em seus trabalhadores, centenas de mortes, cânceres, deficiências
mentais, deformações genéticas, esterilidade e dores por todo o
corpo. Embora ainda em 1975 a Agência de Proteção Ambiental
dos Estados Unidos tenha considerado o DBCP um possível
agente cancerígeno, as transnacionais bananeiras continuam a
utilizá-lo (Boix, 2007). A lista poderia continuar com casos de
comunidades afetadas pelo uso de agrotóxicos na Índia, Tailân-
dia, Paraguai e muitos outros países (Adithya, 2009; Torres y
Capote, 2004; Arias et al., 2006). A agricultura industrial gera
enfermidade e morte, os dados assim o demonstram. Quem o
nega, mente.
Se falamos de alimentação e saúde, é necessário referirmo-nos
também ao negativo impacto de alguns aditivos alimentares (aro-
matizantes, colorantes, conservantes, antioxidantes, edulcorantes,
espessantes, potencializadores do sabor, emulsionantes etc.) em
nosso organismo. Está claro que, desde a origem da comida,
existem métodos para conservá-la, e é fundamental que assim
seja, senão o que comeríamos? No entanto, o desenvolvimento da
indústria alimentar tem generalizado o uso de aditivos químicos
sintéticos para adaptar a comida às características de um merca-
do quilométrico, consumista (potencializando a cor, o sabor e o
aroma do que comemos, para tornar a comida mais apetecível e
atrativa) e que adoça artificialmente os alimentos com produtos
que deixam muito a desejar.

208
O negócio da comida

O aspartame e o glutamato monossódico


Não se trata de colocar todos os aditivos no mesmo saco, mas,
sim, de assinalar o impacto que alguns deles podem ter em nosso
organismo, especialmente os aditivos sintéticos, em comparação
com os naturais. O livro Los aditivos alimentarios, de Corinne
Gouget (2008), assinala concretamente dois deles: o aspartame
(codificado na Europa com o número E951) e o glutamato mo-
nossódico (E621).
O aspartame é um edulcorante não calórico empregado em re-
frescos e comida light. Alguns estudos apontam as consequências
negativas que pode ter em nossa saúde. A Fundação Ramazzini
de Oncologia e Ciências Ambientais, com sede na Itália, publicou
em 2005, na revista Environmental Health Perspectives, os resul-
tados de um exaustivo trabalho, no qual, a partir de experiências
com ratos, assinala os possíveis efeitos cancerígenos do aspartame
para o consumo humano. O informe concluía que o aspartame
é um agente carcinogênico potencial, mesmo numa dose diária
de 20 miligramas por quilograma – muito abaixo das 40 mg/kg
de ingestão diária aceita pelas autoridades sanitárias europeias
(Soffritti, et al., 2006). A Fundação Ramazzini sentenciava que
era necessário revisar as diretrizes sobre utilização e consumo
do produto. Mesmo assim, a Agência Europeia de Segurança
Alimentar (EFSA, sigla em inglês) foi omissa em relação a essas
conclusões. E, seguindo sua pauta habitual com os informes
científicos críticos, desautorizou o trabalho. Não esqueçamos os
laços estreitos da EFSA com a indústria alimentar e biotecnoló-
gica, por exemplo, o fato da presidente da Agência Espanhola de
Segurança Alimentar, Ángela López de Sa Fernández, ter sido
diretora da Coca-Cola.
O glutamato monossódico, por sua vez, é um aditivo poten-
cializador do sabor, muito utilizado em fiambres, hambúrgueres,

209
E st her Vi va s E stev e

mesclas de especiarias, sopas de pacote, molhos, batatas fritas,


salgadinhos – estes últimos, muito consumidos pelas crianças.
Em 2005, o catedrático de fisiologia e endocrinologia experimen-
tal da Universidad Complutense de Madrid, Jesús Fernández-
-Tresguerres, um dos 35 membros da Real Academia Nacional
de Medicina, publicou nos Anales de la Real Academia Nacional
de Medicina os resultados de um grande trabalho, em que analisa
os efeitos da ingestão do glutamato monossódico no controle do
apetite. As conclusões foram demolidoras: tal ingestão aumentava
a fome e a voracidade em 40% e impedia o bom funcionamento
dos mecanismos inibidores do apetite, o que contribuía ao incre-
mento da obesidade. E, a partir de certas quantidades, poderia
ter efeitos tóxicos sobre o organismo (Fernández-Tresguerres,
2005). Informalmente, essa substância chegou a ser chamada de
“a nicotina dos alimentos”.
Para além do aspartame e do glutamato monossódico, outros
aditivos têm se mostrado prejudiciais para a saúde humana, e
acabaram sendo retirados do mercado. Em 2007, a Comissão
Europeia proibiu o uso do corante vermelho 2G (E128), utiliza-
do particularmente em salsichas e hambúrgueres, ao considerar,
depois de uma reavaliação da EFSA, que ele poderia ter “efeitos
genotóxicos e carcinogênicos” (Agencia Catalana de Seguridad
Alimentaria, 2008). A avaliação toxicológica anterior havia sido
realizada 25 anos atrás. Outros estudos têm sinalizado como a
mescla de alguns corantes, frequentemente utilizados em refres-
cos e guloseimas, combinados com a ingestão de outros aditivos
também presentes nesses produtos, provocariam hiperatividade
infantil. Assim concluía um estudo sobre os aditivos alimentares
publicado na revista The Lancet, em 2007: “As cores artificiais,
ou o conservante benzoato de sódio (ou ambos) na dieta pro-
vocam um aumento da hiperatividade em crianças de 3 anos,

210
O negócio da comida

e em crianças entre 8 e 9 anos” (McCann, D. et al., 2007). O


maravilhoso e chocante documentário francês “Nossos filhos
nos acusarão”, de Jean-Paul Jaud, nos recorda, como assinala seu
título, a responsabilidade que temos.
A agricultura ecológica, ao contrário, prescinde desses adi-
tivos químicos sintéticos, colocando no centro da produção de
alimentos a saúde das pessoas e a do planeta.

Eficiência e preço
“A agricultura ecológica é pouco eficiente e cara”, dizem seus
detratores. Aqueles que fazem essa afirmação se esquecem de que
é precisamente o atual modelo de agricultura industrial que des-
perdiça anualmente um terço dos alimentos que são produzidos
para consumo humano – à escala mundial, cerca de um bilhão e
300 milhões de toneladas de comida, segundo os dados da FAO
(2012b). Trata-se de uma agricultura de “usar e jogar fora”. Em
consequência, o que é aqui o ineficiente? Para além dessas cifras,
é óbvio que o atual modelo de agricultura industrial, intensiva e
transgênica não satisfaz às necessidades alimentares das pessoas.
A fome, num mundo onde se produz mais comida do que nunca,
é o melhor exemplo.
Por sua parte, a agricultura ecológica e de proximidade tem
demonstrado que garante melhor a segurança alimentar do que
a agricultura industrial. E permite uma maior produção de co-
mida, especialmente nos ambientes desfavoráveis, nas palavras
de Olivier de Schutter (2010), apoiando-se em seu relatório “A
agroecologia e o direito à alimentação”. A partir dos dados ex-
postos neste trabalho, a reconversão de terras em países do Sul
ao cultivo ecológico aumentou sua produtividade em até 79%, e,
particularmente na África, a reconversão permitiu um aumento
de 116% nas colheitas. Os números falam por si só.

211
E st her Vi va s E stev e

Se nos referirmos ao preço, sobretudo se o comparamos com


a qualidade, uma vez mais a agricultura ecológica sai em melhor
posição. Talvez não o pareça à primeira vista, porque há um dis-
curso único, que se repete e se repete e se repete, que nos diz que
o ecológico é sempre mais caro. Entretanto, não é assim. Com
frequência, depende de onde e do que compramos. Não é o mesmo
comprar em um supermercado ecológico, ou em uma loja gourmet,
do que comprar diretamente do agricultor, seja num mercado ou
através de um grupo ou cooperativa de consumo agroecológico.
Nos primeiros, os preços costumam ser mais caros do que nos
segundos, onde o custo pode ser igual, ou mesmo inferior, ao
do comércio tradicional, por um produto da mesma qualidade.
À parte, teríamos que nos perguntar como pode ser que de-
terminados produtos ou alimentos no supermercado sejam tão
baratos. Estamos pagando seu preço real? Qual é sua qualidade?
Em que condições foram elaborados? Quantos quilômetros per-
correram desde o campo? Com frequência, um preço muito baixo
esconde uma série de custos invisíveis: condições trabalhistas pre-
cárias na origem e no destino, má qualidade do produto, impacto
ambiental etc. Existe uma série de gastos ocultos que acabamos
socializando entre todos, porque se a comida percorre longas
distâncias, e se agudiza a mudança climática, com a emissão de
gases de efeito estufa, quem paga isso? Se comemos alimentos de
baixa qualidade, que têm um impacto negativo em nossa saúde,
quem o custeia? Definitivamente, como diz o refrão: “Pão para
hoje e fome para amanhã”.
E não somente isso. Quando entramos no “super”, o que
compramos? Calcula-se que entre 25% e 55% da compra no
supermercado é compulsiva, fruto de estímulos externos que nos
induzem a consumir à margem de qualquer raciocínio. Quantas
vezes já fomos ao supermercado para comprar quatro coisas, e

212
O negócio da comida

acabamos saindo com o carrinho cheio? O supermercado é uma


máquina de vender, não cabe a menor dúvida. Um dos espaços
mais estudados de nossa vida cotidiana para que nossa compra
nunca fique à própria sorte.
Outra afirmação, mil vezes repetida, é a que diz que “a agri-
cultura ecológica é só para os ricos”, ou, se quem fala busca o
insulto – algo frequente no setor “antiecológico” –, nos dirá que “a
agricultura ecológica é só para pretensiosos”. Seja num caso, seja
no outro, àqueles que afirmam isso certamente, nunca puseram
um pé num grupo ou cooperativa de consumo agroecológico,
porque seus membros, em geral, podem ser qualificados com
muitos adjetivos, mas de “ricos” e “pretensiosos” têm muito pouco.
Trata-se de pessoas que optam por outro modelo de agricultura
e alimentação, a partir da informação, de tomar consciência, de
buscar dados contrastados sobre os impactos daquilo que come-
mos em nossa saúde, no meio ambiente, no campesinato.
Em nossa vida, somos “instruídos” a pensar que “gastamos di-
nheiro em comida”, mas é de fato um gasto ou um investimento?
A educação é a chave. Portanto, é fundamental fazer chegar
os princípios e as verdades da agricultura ecológica ao conjunto
da população. Comer bem e ter direito a comer bem é assunto
de todos.

Uma “agricultura ecológica” a serviço do capital


“A agricultura ecológica não tem fins sociais e agudiza a pe-
gada de carbono”, afirmam seus críticos. A pergunta, então, é:
de que agricultura ecológica estamos falando? Uma das ameaças
à agroecologia é sua cooptação, a assimilação de sua prática por
parte da indústria agroalimentar. Cada vez mais, grandes em-
presas do agronegócio e os supermercados aderem a esse modelo
de agricultura livre de pesticidas e aditivos químicos sintéticos,

213
E st her Vi va s E stev e

esvaziando-a de qualquer pretensão de mudança social. Seu obje-


tivo é claro: neutralizar a proposta! Trata-se de uma “agricultura
ecológica” a serviço do capital, com alimentos quilométricos e
escassos direitos trabalhistas. Essa não é a alternativa na qual
apostamos por uma mudança no modelo agroalimentar. A
agricultura ecológica só tem sentido a partir de uma perspectiva
social, local e camponesa, como sempre tem defendido a maioria
de seus impulsionadores.
Por outro lado, me surpreende que os detratores da agricul-
tura ecológica se preocupem tanto com a pegada de carbono e o
impacto dos gases de efeito estufa no meio ambiente. Sua opção
por uma agricultura industrial é exatamente uma das principais
responsáveis pela poluição. Segundo a organização Grain (2011b),
entre 44% e 55% dos gases de efeito estufa são provocados pelo
conjunto do sistema agroalimentar, como consequência da soma
das emissões geradas pelas mudanças no uso do solo e o desflo-
restamento; a produção agrícola; o processamento, o transporte
e embalagem dos alimentos; e os desperdícios gerados. Se a
mudança climática inquieta tanto os críticos da agroecologia,
lhes sugeriria que optassem por uma agricultura ecológica, local
e camponesa.

Quem impõe o quê?


“Estão nos impondo a agricultura orgânica. Eu quero comer
transgênico, mas não me deixam”, dizem alguns, ainda que isso
pareça uma piada. Entretanto, quem impõe o quê? A agricultura
industrial, sim, foi resultado de uma imposição, a da “revolução
verde”. Promovida desde os anos 1940, e em décadas posteriores,
por governos como o dos Estados Unidos e fundações como a
Ford e a Rockefeller, significou a progressiva substituição de
um modelo de agricultura tradicional – no qual os camponeses

214
O negócio da comida

tinham a capacidade de decidir sobre o que e como produziam


– por uma agricultura industrial, “viciada” em petróleo e em
fitossanitários, que conduziu à privatização dos bens comuns,
em particular as sementes. Muitos camponeses não tiveram es-
colha. Hoje, vemos as consequências desse modelo agrário: fome,
descampenização, patentes sobre as sementes, monopolização de
terras etc.
As imposições agrárias principais têm sido, sem dúvida, a
do cultivo transgênico e a impossível coexistência entre agricul-
tura transgênica e a agricultura convencional ecológica, como
assim nos demonstra (Cipriano, Carrasco y Arbós, 2006). Os
cultivos transgênicos contaminam os outros através do ar e da
polinização, e desse modo funciona o que poderíamos chamar
de “ditadura transgênica”. Em Aragão e Catalunha, zonas onde
mais se cultivam transgênicos em toda a Europa, a produção de
milho orgânico praticamente desapareceu, devido aos múltiplos
casos de contaminações sofridas. As evidências são irrefutáveis.
A enumeração de frases com o único propósito de desautorizar
a agricultura ecológica poderia continuar. As falsidades vertidas
são incontáveis. Entretanto, quem pode considerar, em função
do que vimos, que a agricultura e a alimentação industrial, in-
tensiva e transgênica seja mais respeitosa com as pessoas e o meio
ambiente que a ecológica?
Vocês decidem.

215
O QUE ENTENDEMOS POR
COMÉRCIO JUSTO?

Olhando o comércio justo pela soberania alimentar


Olhar o comércio justo com as lentes da soberania alimentar.
Este é o desafio, se quisermos desenvolver relações comerciais
justas, tanto em escala internacional quanto local. Uma relação
na qual não se imponham os interesses de umas poucas trans-
nacionais, mas, sim, as necessidades das pessoas e o respeito aos
ecossistemas.
Não queremos mais comércio, mas, sim, mais justiça, social e
ecológica. Optar por um comércio justo – radicalmente transfor-
mador das relações de produção, distribuição e consumo – passa
por reinterpretá-lo. E levá-lo à prática a partir da demanda política
da soberania alimentar.

Quando o “ discurso único” se desmorona


Muitas águas já rolaram desde o início do movimento por
um comércio justo na Espanha, nos anos 1980, quando se levava
a cabo uma atividade comercial irregular e voluntarista. E não
existiam canais de distribuição estáveis para além dos pontos de
venda em feiras, em jornadas solidárias, concertos etc. Só em
meados da década de 1990 é que o movimento experimentou
E st her Vi va s E stev e

crescimento e consolidação importantes. As organizações vete-


ranas aumentaram, então, seu tamanho. E algumas ampliaram
suas atividades, assumindo tarefas de importação e distribuição
de produtos, enquanto o número de organizações se ampliava em
60%, com a incorporação de novas ONGs, lojas, importadoras
e distribuidoras. O volume de vendas, nesse mesmo período,
também cresceu consideravelmente, passando de 13 milhões de
pesetas em 1990 a 700 milhões em 1997 (EFTA, 1998).
O desenvolvimento e o crescimento do movimento por um
comércio justo não ficou isento de debates nem de polêmicas ao
longo desses anos, tanto “para dentro” quanto “para fora”. A ne-
cessidade de enfrentar novos desafios colocou em relevo diferenças
fundamentais entre as organizações acerca do que se entende
por comércio justo, qual é seu objetivo, através de que meios se
realiza, com que aliados etc. Deste modo, o “discurso único”
acerca do comércio justo, centrado nas desigualdades comerciais
Norte-Sul, que deu origem ao movimento, se desmoronou. Uma
situação que aconteceu não somente na Espanha, mas que teve
lugar em países como a França e a Itália, e posteriormente em
outros, como Portugal e Grécia.
O movimento por um comércio justo, ao longo desses anos,
não ficou imune aos acontecimentos que ocorreram em seus
arredores. A emergência do ciclo antiglobalização, nos finais dos
1990, e sua crítica às políticas da OMC, os debates acerca das
relações comerciais em escala global e as contribuições para outro
modelo de produção agrícola e alimentar impactaram a análise
e a prática de algumas de suas organizações.
A partir dos anos 2000, podemos considerar que, na Espanha,
foram se configurando dois polos de referência no movimento por
um comércio justo. Por um lado, uma visão que se restringe aos
princípios originais que deram lugar a este movimento (critérios

218
O negócio da comida

justos de produção na origem, apoio às organizações produtoras


na periferia, ênfase na comercialização e na sensibilização no
Norte); que investiu na colaboração com estratégias de respon-
sabilidade social corporativa com empresas e transnacionais; que
trabalha com a grande distribuição e que conta com uma presença
pública hegemônica (em âmbito social, institucional, mediático e
empresarial). A este, em consequência, denominaremos de polo
“tradicional e dominante”.
Por outro lado, há uma visão mais integral do que é o comércio
justo, que não se centra somente nas condições de produção justas
na origem, mas que considera toda a cadeia de comercialização
do produto, desde sua elaboração na origem, até sua distribuição
e venda final; que não defende unicamente relações de justiça
comercial em escala global, mas também no local; que rechaça
colaborar com transnacionais da indústria agroalimentar e su-
permercados, optando por estabelecer alianças com movimentos
sociais de base e que tem uma presença pública minoritária. Este
é o que chamamos polo “global e alternativo” (Vivas, 2006).
Temos que ter presente que o movimento por um comércio
justo não é algo estanque, ainda que encontremos organizações
estáveis e com papel de liderança em ambos os polos de referência.
Uma parte das organizações flutua entre um e outro, segundo o
tema e o modo como se veem afetadas pelas problemáticas com
que se deparam. Poderíamos, portanto, caracterizar a situação
como uma situação de “polarização dinâmica”.

A soberania alimentar como bússola


Estes dois grandes polos de referência, sensibilidades e inter-
pretações sobre o que é o comércio justo, foram se configurando,
como dissemos anteriormente, à medida que suas organizações
foram tendo que enfrentar novos debates e desafios: o prioritário

219
E st her Vi va s E stev e

é vender produtos de comércio justo? E neste caso, a que preço?


Com quais aliados? Como chegar a mais pessoas? Que equilíbrio
se necessita entre comercialização e sensibilização? Devemos
trabalhar com o comércio justo só em escala internacional, ou
também local? Tem sentido um sem o outro?
A emergência, em meados dos anos 1990, da proposta política
da soberania alimentar, advinda da Via Campesina, e o eco que
conseguiu, depois, com o ciclo antiglobalização, interpelaram
algumas das organizações do movimento por um comércio justo
– as que situamos no polo “global e alternativo” – e as orientaram,
atuando como guia e bússola, a se posicionarem nesses debates.
Ainda que o comércio justo enfatize a demanda de justiça
na comercialização internacional – pondo ênfase nos critérios de
produção na origem –, não podemos esquecer que estes repre-
sentam, exclusivamente, um ramo de uma cadeia de produção,
distribuição e consumo muito mais ampla. Nem que a justiça nas
práticas comerciais seja indissociável da justiça em cada um dos
ramos desta cadeia – desde a produção até a distribuição final –
seja no Sul, seja no Norte. A partir deste olhar sobre o todo que
a soberania alimentar orienta um comércio justo que não apenas
busque transformar um sistema comercial injusto, mas todo um
modelo produtivo e consumista irracional e insustentável (Vivas,
2010a).
A soberania alimentar dota de perspectiva política um setor
do movimento por um comércio justo, estabelecendo as linhas
de base de sua teoria e prática.

Do local e do global
A maior parte das organizações que podemos demarcar no
polo “tradicional e dominante” tem uma visão unidirecional
do comércio justo Sul-Norte. Trabalhar a favor da justiça nas

220
O negócio da comida

transações comerciais, desde meu ponto de vista, implica reivin-


dicar também essa justiça no comércio local, seja no Sul, seja no
Norte. Alguns grupos, ativistas e intelectuais latino-americanos
optam por esta visão, a especialista brasileira em comércio justo
Rosemary Gomes (2007) afirma que:
O comércio justo está baseado historicamente na exportação Sul-Norte,
e cremos que deve ultrapassar esse limite de origem. (...) Avançar pro-
movendo o desenvolvimento de mercados internos justos e solidários, e
relações comerciais regionais Sul-Sul.

Na mesma direção se posiciona o sociólogo uruguaio Pablo


Guerra (2007):
O comércio justo foi criado e desenvolvido com uma visão muito paterna-
lista, e apesar dos esforços contrários, também fortemente eurocentrista.
Em outros termos, diríamos que o comércio justo deve progredir de uma
concepção altruísta a uma concepção solidária.

Na perspectiva da soberania alimentar, o eixo de gravidade


se centra no local, enxergando o comércio internacional como
um complemento. De tal modo que a prioridade já não é “vender
mais” no Norte, mas, sim, que os produtores e consumidores nos
países do Sul possam produzir e alimentar-se de forma saudável. E
que tenham a capacidade de decidir sobre suas políticas agrícolas
e alimentares. Este marco é o melhor antídoto a um comércio
justo que, apesar de sua etiqueta, pode cair com facilidade nas
mesmas práticas do comércio internacional que diz combater.
Um produtor de comércio justo tem que ter assegurado, pri-
meiramente, sua segurança e soberania alimentar. Que sentido
teria investir na exportação de café, cacau, quinoa, através do
comércio justo, se aqueles que os produzem não têm o que comer?
Isso, que pode parecer óbvio, não é tanto quando analisamos
algumas práticas. Ao pôr ênfase na exportação, esta questão pode
ficar em segundo plano. Vender mais café via comércio justo não

221
E st her Vi va s E stev e

garante que seus produtores saiam da pobreza. Assim comprovou


uma investigação realizada pela organização internacional Rede
Agroecológica Comunitária, que, depois de entrevistar vários
produtores de café de comércio justo no México, Guatemala, El
Salvador e Nicarágua, concluiu que nem sua segurança alimentar,
nem sua capacidade para mandar suas filhas e filhos à escola eram
superiores à média. A melhora de sua assistência sanitária e edu-
cativa, afirmavam, respondia mais às redes locais de apoio mútuo
que ao preço maior que era pago por seu café (Holt-Giménez,
Bailey y Sampson, 2008).
Outro elemento a ter em conta é onde se comercializam os
produtos. Ao priorizar o comércio internacional, mesmo que “jus-
to”, vemos – como também sucede com o comércio convencional
de café – que onde menos se consume um café de qualidade é
precisamente nos países produtores. Investir numa produção
e numa distribuição locais garante seu consumo na origem, o
que implica não apenas em dar saída aos produtos em escala
nacional, mas também um maior benefício para a economia de
base e um menor impacto ambiental no que se refere ao trans-
porte de mercadorias. Experiências como as da União Nacional
de Organizações Regionais Camponesas Autônomas (Unorca),
no México, que promove no país a comercialização do café de
comércio justo, produzido por pequenos camponeses locais, são
exemplos a seguir (Montagut y Vivas, 2009).
Olhar com as lentes da soberania alimentar nos permite, igual-
mente, combater outra das práticas que se levam a cabo a partir
de uma visão “tradicional e dominante”: importar produtos que se
produzem aqui, como vinho, mel, azeite etc., com componentes
sociais e ecológicos equivalentes. Vender mais, com o consequente
benefício para as comunidades de origem, justifica essas práticas.
Mas do ponto de vista da soberania alimentar, e como defendem

222
O negócio da comida

as organizações situadas no polo “global e alternativo”, isso não


tem nenhum sentido, já que este benefício não compensa nem o
impacto ambiental de seu transporte, nem a competição com o
produtor ou com o artesão no Norte.

Tomar a parte pelo todo


Outra debilidade é tomar a parte pelo todo. Considerar que
“comércio justo” é um pacote de café, de cacau, de chá, quando em
realidade é muito mais. A partir de um ponto de vista “tradicional
e dominante”, ao pôr ênfase nos critérios de produção na origem
(salários dignos, igualdade de gênero, respeito ao meio ambiente
etc.), a visão de conjunto da cadeia de comercialização se perde.
Em consequência, se aplica uma série de critérios de justiça
social e ecológica na origem, mas não aos demais atores que
participam da cadeia, caindo em uma visão muito reducionista
do que são as relações comerciais. Dá-se, assim, o paradoxo de
se punir o produtor no Sul, se não cumpre tais critérios, e não
ao vendedor no Norte, mesmo que – como no caso dos grandes
centros comerciais ou das transnacionais da agroindústria – ele
não cumpra nenhuma dessas garantias.
Não se pode entender o comércio justo como uma prática iso-
lada em relação ao modelo de produção, distribuição e consumo.
Não se trata de uma “ilhota” à margem do sistema capitalista,
mas nele se insere. Estar conscientes disso, como nos coloca a
perspectiva política da soberania alimentar, é a melhor maneira
de lutar contra os “cantos de sereia” de um capitalismo pintado
de solidário e de verde.

Vender: quanto mais, melhor?


Querer “vender quanto mais, melhor”, ainda que possa
parecer contraditório, não é sempre a melhor opção. Vender

223
E st her Vi va s E stev e

mais produtos de comércio justo, a que preço? Através de que


canais de distribuição? Com que estratégias comerciais? São
perguntas-chave para não nos precipitarmos ao escolher “com-
panheiros de viagem”. Frequentemente, as organizações que
situamos no polo “tradicional e dominante”, justificam a venda
de produtos de comércio justo em supermercados, ou através
de transnacionais da indústria agroalimentar, com o fim teó-
rico de fazer chegá-los a mais gente, conseguir mais vendas, e,
portanto, mais renda para as organizações do Sul. Entretanto,
há uma questão fundamental a se ter em conta: trabalhando
com os mesmos que geram e se beneficiam das regras injustas
do comércio internacional, conseguiremos mudar tais políticas?
Creio que não.
As empresas da grande distribuição têm visto na comer-
cialização de produtos de comércio justo, como também dos
ecológicos, um novo nicho de mercado e uma opção para o
marketing empresarial. Carrefour, Eroski, El Corte Inglés,
Alcampo, entre outras – apesar de quererem se dotar de uma
imagem “equitativa e responsável” com a comercialização des-
ses produtos – não têm mudado suas práticas. E continuam
acumulando denúncias de políticas antissindicais, falta de
transparência na fixação do preço de seus produtos, competição
desleal com o comércio local etc.
Transnacionais como Nestlé, Kraft Foods, Procter&Gamble,
McDonald’s ou Starbuck’s têm promovido marcas próprias de
comércio justo, e distribuem em alguns de seus estabelecimentos
produtos certificados. O caso da Nestlé é um dos que tem gerado
maior polêmica. Como a empresa mais boicotada do mundo,
acusada de violar direitos ambientais e humanos, pode promover
o comércio justo? Em 2005, a Nestlé, na Grã-Bretanha, lançou
seu primeiro café de comércio justo: o Nescafé Partner’s Blend,

224
O negócio da comida

certificado pela Fairtrade Foundation (FLO Internacional*). O


diretor da certificadora, Harriet Lamb, demonstrou sua satis-
fação ao afirmar que a decisão tomada pela Nestlé resultava da
pressão exercida pela cidadania, e considerava a Nestlé como
uma “grande multinacional que escuta as pessoas e lhes dá o
que elas pedem” (Jacquiau, 2006).
A certificação de produtos de comércio justo é outra questão
controversa e polêmica. Para o setor “tradicional e dominante”,
a certificação permite alcançar mais gente, fazendo com que
“grandes superfícies” (centros comerciais) e transnacionais co-
mercializem estes produtos. Consideram como uma realização
do movimento. Para o “polo global e alternativo”, a certificação
responde somente a uma lógica comercial, e o selo FLO Interna-
cional acaba excluindo a loja de comércio justo como garantia
da equidade do produto. A partir dessa certificação, qualquer
supermercado ou grande superfície fica legitimado a vender um
produto de comércio justo com o selo correspondente. Ninguém
pode evitar que Wal-Mart, Carrefour, Eroski etc., tenham em
seus estabelecimentos produtos certificados de comércio justo,
nem que a Nestlé, Chiquita ou Dole promovam marcas próprias
de comércio justo e solidário.
Outra prática polêmica é a certificação de grandes planta-
ções privadas no Sul, com o objetivo de atender ao aumento
da demanda do mercado de comércio justo. A Coordenadora
Latino-Americana e do Caribe de Pequenas Produtoras de Co-

* O selo FLO Internacional (Fairtrade Labelling Organizations) foi criado em


1997, com o objetivo de homogeneizar critérios de certificação dos produtos de
comércio justo, e de integrar em uma única certificadora internacional iniciativas
surgidas anteriormente em outros países, como Max Havelaar na Suíça, Bélgica
e França; Transfair, na Alemanha, Itália, Estados Unidos, Áustria; Fairtrade, na
Grã-Bretanha e Irlanda, entre outros.

225
E st her Vi va s E stev e

mércio Justo (Clac) denuncia este fato ao considerar que essa


prática antepõe os interesses do mercado às necessidades dos
pequenos produtores (Setem, 2006). No que pesem as críticas,
as transnacionais da indústria bananeira, como Chiquita e Dole,
têm conseguido a certificação de suas plantações de banana. E
estas já podem ser encontradas nos supermercados britânicos
e estadunidenses.

Aprendizagens mútuas
A partir do que já assinalamos, podemos concluir que só um
discurso e uma prática de comércio justo que rompam com as
injustas políticas agrárias e comerciais, tanto no Norte quanto
no Sul, nos permitirão avançar em direção a um modelo social
e ecológico mais justo.
A soberania alimentar propõe um paradigma global al-
ternativo ao atual sistema agroalimentar, desde a produção,
passando pela distribuição, até o consumo: ao mesmo tempo
que o comércio justo incide em uma parte – a comercialização
e distribuição –, tem-se em conta, desde a perspectiva “global
e alternativa”, o conjunto da cadeia. É aqui onde a soberania
alimentar e o comércio justo se encontram. E a primeira dá uma
perspectiva ao segundo.
Um comércio justo é impossível fora do marco político da
soberania alimentar. Se os camponeses não têm acesso aos bens
naturais (água, terra, sementes); se os consumidores não podem
decidir, por exemplo, sobre o consumo de alimentos livres de
transgênicos; se os países não são soberanos para estabelecer suas
políticas agrícolas e alimentares; não pode existir um comércio
justo, porque as transações comerciais seguirão em mãos de em-
presas transnacionais, apoiadas por elites políticas, que buscam
fazer negócio com a agricultura e com a alimentação.

226
O negócio da comida

Na medida em que o comércio justo, como é o caso na visão


“tradicional e dominante”, não tem como demanda estratégica a
soberania alimentar, nem se situa nesta perspectiva política, suas
práticas comerciais, mais que avançar para um comércio com jus-
tiça, contribuem, no melhor dos casos, à venda de alguns produtos
de comércio justo em escala internacional – em percentagens
anedóticas, se as compararmos com o fluxo comercial global.
No pior dos casos, acabam limpando a imagem de determinadas
transnacionais; justificando suas injustas práticas comerciais,
sociais e trabalhistas, e contribuindo para uma percepção social
favorável a elas, escondendo, assim, as causas de fundo dos dese-
quilíbrios Norte-Sul. Desse modo, o comércio justo pode acabar
sendo uma alternativa muito limitada. Ou, então, uma correção
apenas parcial ao paradigma comercial dominante.
A soberania alimentar também deveria incorporar as deman-
das do comércio justo, desde uma perspectiva “global e alterna-
tiva”, pois elas permitem aprofundar alguns critérios de justiça
social e ecológica nos intercâmbios comerciais. Ao mesmo tempo,
a experiência e o saber acumulados pelo comércio justo Norte-
-Sul pode ser muito útil na hora de enfrentar novos desafios na
comercialização e distribuição alternativa. Se o comércio justo
Norte-Sul consegue aplicar alguns critérios de justiça, e uma alta
transparência e confiança nos intercâmbios comerciais de “longa
distância”, aplicar essas mesmas práticas nos circuitos curtos de
comercialização deveria ser muito mais fácil.
A complexidade do comércio justo em escala internacional,
com intercâmbios que vão além da relação direta entre agricultores
e consumidores, e que envolvem mais atores (distribuidores, trans-
formadores, transportadores etc.), pode nos dar instrumentos,
na medida em que é necessário complexificar os circuitos curtos
de comercialização, no quadro da economia social e solidária.

227
E st her Vi va s E stev e

Além disso, a soberania alimentar não nega o intercâmbio co-


mercial internacional, apesar de pôr ênfase na comercialização
local, dado que as práticas de comércio justo internacional para
aqueles produtos que não se produzam no Norte (café, cacau,
açúcar etc.) – tendo, portanto, que serem importados do Sul, e
vice-versa – continuarão sendo necessárias.
As lentes da soberania alimentar são imprescindíveis para do-
tar de perspectiva um comércio justo radicalmente transformador.
Por outro lado, a experiência, teórica e prática, acumulada pelo
movimento por um comércio justo, é uma boa bagagem a se ter
em conta por aquela abordagem.

Comércio justo no “super”?


Comércio justo no “super”? Frente a esta pergunta, poderíamos
pensar que a presença crescente de produtos de comércio justo nas
gôndolas dos supermercados é uma tendência positiva, que permite
um fácil acesso a estes alimentos e um número mais alto de vendas.
Mas o comércio justo se limita somente a uma questão comercial?
Que tipo de comércio justo pode levar a cabo empresas com du-
vidosas trajetórias de respeito aos direitos trabalhistas, ambientais
e sociais? Comércio justo no “super” é realmente comércio justo?
Frente ao crescente interesse pelo comércio justo por parte de
“grandes superfícies” como Carrefour, Alcampo, Eroski e outros,
deveríamos nos perguntar o que há por trás dessa estratégia e suas
declarações de boas intenções. Todos estamos de acordo que, para
mudar as injustas regras do mercado, é fundamental uma tarefa
de sensibilização e conscientização sobre quais são as causas e
consequências do atual modelo comercial e econômico. Contudo,
as empresas da grande distribuição são capazes de realizar esta
tarefa? Os mesmos que se beneficiam da globalização capitalista
estarão aptos para lutar contra ela?

228
O negócio da comida

Algumas considerações
Para dar respostas às perguntas formuladas, gostaria de fazer
três considerações.
Em primeiro lugar: comércio justo não significa somente ven-
der. O comércio justo tem por objetivo mudar as regras injustas
do comércio internacional, e submeter o comércio às necessidades
dos povos. Vender não deveria ser um fim em si mesmo, mas
um meio para sensibilizar as pessoas sobre esses temas e apoiar
solidariamente os produtores do Sul. Vender através dos grandes
centros comerciais nunca nos permitirá modificar tais regras
injustas do comércio, já que estes são os primeiros interessados
em manter um modelo comercial injusto, que lhes rende lucros
e importantes benefícios econômicos.
Em segundo lugar: o comércio justo não é uma lista de cri-
térios, nem uma mera transferência monetária Norte-Sul. Não
podemos limitá-lo a uma série de normas, aplicadas unicamente
à produção na origem. Trata-se de algo muito mais complexo
do que um produto elaborado com base em princípios de justiça
social e ambiental. O comércio justo é um processo que vai desde
o produtor até o consumidor, e do qual participam muitos outros
atores. Não podemos submeter o produtor no Sul ao cumprimento
de uma série de requisitos na produção (pagamento de um salário
digno, organização democrática, políticas de gênero, respeito ao
meio ambiente) e não aplicar ao resto da cadeia estes mesmos
critérios. Se impuséssemos os princípios do comércio justo aos
supermercados que vendem alimentos com a etiqueta de “justo”,
nenhum deles os cumpriria. Dessa forma, temos que transcender
o olhar assistencial sobre os produtores no Sul e avançar a uma
prática de solidariedade internacionalista.
Em terceiro lugar: o comércio justo não é apenas Norte-Sul.
A justiça nas práticas comerciais não deve se limitar ao comércio

229
E st her Vi va s E stev e

entre países do “centro” e da “periferia”. Devemos reclamar uma


justiça comercial tanto em âmbito internacional quanto na escala
nacional e local, e exigir um comércio justo Norte-Norte e Sul-
-Sul. O que implica também colocar ênfase na comercialização
de produtos locais, elaborados por atores da economia social e
solidária.
As grandes cadeias de distribuição promovem uma agricultura
e uma produção deslocalizadas, viciadas em petróleo, com alimen-
tos que percorrem milhares de quilômetros antes de “aterrissarem”
em nossas mesas. Os supermercados não defendem o pequeno e
médio agricultor, nem respeitam os direitos de seus trabalhadores,
nem o comércio local, nem favorecem um consumo responsável.
Então, que sentido tem eles venderem produtos de comércio justo?

Justificar o injustificável
O comércio justo é utilizado pelas grandes superfícies como
um instrumento de marketing empresarial e limpeza de imagem.
Vendendo uma ínfima parte de seus produtos de comércio justo,
pretendem justificar uma prática comercial totalmente injustifi-
cável: precarização da mão de obra, submissão do pequeno agri-
cultor, exploração do meio ambiente, promoção de um modelo de
consumo insustentável, competição desleal com o comércio local.
Frente à pergunta “existem supermercados bons e maus?” é
importante destacar que o modelo de produção e comercialização
de todos eles parte de uma lógica de mercado, que antepõe a ma-
ximização de seus benefícios econômicos, ao respeito aos direitos
sociais e ambientais. Em consequência, a lógica de funcionamento
de todos eles é a mesma, ainda que existam alguns que tenham
uma estratégia melhor de limpar sua imagem que outros.
Diante desse cenário, temos que advogar por um comércio
justo que rechace ser um instrumento de “maquiagem” a serviço

230
O negócio da comida

da agroindústria e da grande distribuição. É necessário um comér-


cio justo transformador, que tenha em conta todos os atores da
cadeia comercial, que trabalhe ligado a uma perspectiva global e
integral das relações comerciais e que defenda o direito dos povos
à soberania alimentar.

Quando o “justo” se limita a uma etiqueta


Apesar do oxímoro que significa “supermercado justo”, em
que o primeiro conceito anula o segundo e vice-versa, numerosos
são os casos de grandes cadeias de distribuição que contam, em
seus catálogos, com produtos certificados como justos e solidários.
Alguns dos maiores supermercados do mundo, como Wal-Mart e
Tesco, vendem alimentos de comércio justo e promovem marcas
próprias, dando-se uma imagem “responsável” e “equitativa”.
Empresas como Eroski, Alcampo, Carrefour e El Corte Inglés
fazem o mesmo na Espanha.

Preços mais baixos


O caso da Wal-Mart – a número 1 dos supermercados e a
maior empresa do mundo, segundo a lista da Fortune Global
500 – é um bom exemplo da referida incompatibilidade. A pe-
leja por oferecer os preços mais baixos, signo de identidade da
companhia, chegou aos produtos de comércio justo. Se há alguns
anos o carro-chefe das marcas de café de comércio justo era
Millstone Coffee, a batalha pelos preços a levou a buscar novos
fornecedores, que pudessem oferecer custos de produção mais
baratos. A estratégia da Wal-Mart para “economizar” – e assim
maximizar benefícios – consistia em controlar toda a cadeia de
comercialização, desde sua origem. Assim, ela entrou em contato
com uma pequena cooperativa do Norte de Minas Gerais, no
Brasil, que podia oferecer preços inferiores – enquanto a Trans-

231
E st her Vi va s E stev e

fair USA (FLO Internacional nos Estados Unidos) legitimava a


estratégia de Wal-Mart, certificando a produção.
Com essa nova manobra, o quilo de café de comércio justo,
comprado em um supermercado Sam’s Club (da Wal-Mart), saía
quase um terço mais barato do que outras marcas. Desse modo,
Sam’s Club se converteu numa das três principais distribuidoras
a varejo de comércio justo dos Estados Unidos, vendendo o café
de comércio justo mais barato do mercado, nos milhares de
estabelecimentos da companhia. Os executivos da Wal-Mart já
falam até de uma nova etapa, na qual os conceitos de “sustenta-
bilidade” e “comércio justo” se somam ao slogan da corporação:
“Preços cada vez mais baixos” (Mui, 2006). Mas o que sucederá
à pequena cooperativa de Minas Gerais no dia em que Wal-Mart
encontrar um provedor ainda mais barato?

Somar-se ao cortejo
Tesco, o maior supermercado da Grã-Bretanha, tampouco
deixou escapar a oportunidade de aderir ao cortejo. Não é em vão
que a Grã-Bretanha, juntamente com a Suíça, é um dos merca-
dos mais importantes de produtos de comércio justo na Europa.
Tesco afirma contar com “a maior oferta de produtos de comércio
justo”, desde frutas, bolachas, musli, chá, aperitivos, sucos etc.,
chegando a totalizar mais de 90 produtos, alguns dos quais com
marca própria. Uma cifra irrisória – 0,2% do total da oferta – se
comparada com os mais de 40 mil produtos que a companhia
comercializa (Amigos de la Tierra, 2005b).
Na gama de comércio justo da Tesco, as rosas vermelhas
constituem um dos produtos carro-chefe. A companhia fez um
lançamento publicitário sem precedentes, afirmando que se trata-
va das primeiras flores de comércio justo comercializadas na Grã-
-Bretanha, e que garantiam “um melhor intercâmbio econômico

232
O negócio da comida

para os pequenos produtores nos países em desenvolvimento”.


No entanto, a realidade dista muito dos slogans publicitários.
Segundo a jornalista Felicity Lawrence (2005), nenhuma das duas
companhias quenianas provedoras de rosas “justas” poderia ser
considerada “pequena produtora”. Ambas eram transnacionais,
com 4.500 e 2.500 trabalhadores respectivamente, a maior delas
de propriedade holandesa. E as comunidades beneficiadas não
eram cooperativas de produtores, como muitos consumidores
poderiam pensar, mas imigrantes que vivem em barracas de pro-
priedade das companhias. O caso das rosas vermelhas é somente
um exemplo do cenário que esconde a prática do comércio justo
por parte de grandes distribuidoras, como a Tesco.
Outras transnacionais, como McDonald’s, também têm
aderido à moda do “justo”. Na Suíça, a partir de 2003, os 144
restaurantes da gigante do fast food começaram a distribuir
café de comércio justo, com a certificação Max Havelaar (FLO
Internacional). Uma iniciativa destinada a melhorar a imagem
da transnacional, depois que, em 2002, a companhia passou a
ter números vermelhos nesse país (Jacquiau, 2006; Bezençon,
2007).
Em 2005, os estabelecimentos de McDonald’s nas regiões da
Nova Inglaterra e de Albany (Nova York), nos Estados Unidos,
seguiram o exemplo. Mais de 600 restaurantes do noroeste do
país incluíram, em seus McMenus, café certificado de comércio
justo. Organizações como Oxfam América e Transfair USA
felicitaram a companhia e a instaram a incorporar produtos de
comércio justo em todos os restaurantes McDonald’s dos Estados
Unidos. O presidente da Transfair USA, Paul Rice, declarou que a
entrada de McDonald’s no comércio justo “enviava uma poderosa
mensagem à indústria alimentar, indicando que comércio justo
é qualidade”, ao mesmo tempo que considerava que este passo

233
E st her Vi va s E stev e

aceleraria a incorporação de novas companhias ao mercado do


comércio justo (Chettero, 2005).

Limpando a imagem
Na Espanha, várias cadeias de supermercados vendem alimen-
tos etiquetados como justos. Deve-se ter em conta que a comer-
cialização destes produtos não tem parado de crescer há vários
anos. Se, em 2000, suas vendas chegavam apenas aos 7 milhões de
euros, em 2012, somaram mais de 28 milhões, multiplicando-se
por quatro, e com um crescimento interanual de 11,4% (Donaire,
2013). Carrefour, Alcampo e Eroski são algumas das que mais
propagandeiam estes alimentos.
O comércio justo passou a fazer parte da estratégia de Respon-
sabilidade Social Corporativa (RSC) da indústria agroalimentar
e da grande distribuição. As transnacionais buscam associar sua
marca a conceitos como ecologia, solidariedade, justiça – com
o objetivo de adotar uma imagem responsável e comprometida,
que lhes permita aumentar os lucros de seus negócios. O relatório
“O Comércio Justo e a Grande Distribuição na Catalunha” não
poderia deixar isso mais claro:
O componente social é um atributo importante para a marca, e aporta
valor e prestígio às entidades que são mais sensíveis. Incorporar produ-
tos de comércio justo e solidário aos catálogos das grandes cadeias de
distribuição mostra essa sensibilidade e atitude de cumplicidade (...). É
nesses detalhes que a empresa incrementa um valor intangível, até o do-
bro do valor de mercado, e contábil (Grup de Recerca em Comunicació
Empresarial, Institucional i Societat, 2006).

Não obstante, a introdução de alimentos de comércio justo em seus


catálogos não modifica o conjunto de sua prática comercial. O comér-
cio justo é utilizado como um instrumento de lavagem de imagem, por
trás do qual se escondem baixos salários, precariedade laboral, práticas

234
O negócio da comida

antissindicais, extorsão de agricultores e produtores, competição


desleal com o pequeno comércio e promoção de um consumismo
exacerbado.

235
PA SSA R À AÇ ÃO

Grupos de consumo: retomar o


controle sobre a alimentação
O que comemos? De onde vem nosso alimento? Como foi
elaborado? Que preço pagamos por aquilo que compramos? São
perguntas cada vez mais formuladas pelos consumidores. Num
mundo globalizado, onde a distância entre agricultor e consumi-
dor se alargou tanto e a tal ponto que, praticamente, ambos não
têm nenhuma influência na cadeia agroalimentar, saber o que
nós levamos à boca importa muito, sempre.
Assim o manifestam as experiências de grupos e cooperativas
de consumo agroecológico* que, nos últimos anos, têm proliferado
em todas as partes da Espanha. São coletivos que agrupam pessoas
de um mesmo bairro ou cidade, com o objetivo de realizar um
consumo alternativo, ecológico, sazonal, solidário com o mundo
rural, relocalizando a alimentação e estabelecendo relações diretas
com o produtor, a partir de circuitos curtos de comercialização.

* Chamamos a estas experiências de “grupos e cooperativas de consumo agroeco-


lógico”, apesar de que muitos se autodefinem apenas como grupos e cooperativas
de consumo ecológico, porque sua prática vai mais além e se insere nos princípios
da agroecologia, com o peso central também do social e do político.
E st her Vi va s E stev e

Esses núcleos se constituíram, em geral, nos centros urbanos, onde


há uma maior distância entre a cidade e o campo, e seu formato
costuma ser o de uma associação ou cooperativa.

Consumidores e camponeses
Na Espanha, encontramos duas grandes tipologias de grupos
e cooperativas de consumo agroecológico. Aqueles que integram
consumidores e camponeses, e outros que estão formados apenas
por consumidores. No primeiro grupo, destacaria a experiência
da cooperativa de produção e consumo Bajo el Asfalto está la
Huerta! (BAH!), em Madri e arredores, que se inspirou em mo-
delos europeus de longa data, como nas Associações pela Ma-
nutenção da Agricultura Camponesa (Amap) francesas (López
García, 2007), ou nas associações históricas andaluzes, como La
Ortiga de Sevilla, La Breva de Málaga, El Encinar de Granada.
Todas elas buscam integrar, num mesmo marco, produtores e
consumidores, conseguindo um compromisso estável, em que os
consumidores garantem de maneira antecipada a compra total da
produção dos agricultores, solidarizando-se com eles tanto nos
benefícios quanto nas perdas. Em determinados projetos, seus
membros, inclusive, trabalham em um sítio alguns dias do ano,
apoiando o trabalhador rural.
No segundo grupo, encontramos a maioria das experiências
catalãs e outras cooperativas de referência, como Landare, em
Pamplona, Bio Alai, em Vitoria, La Llavoreta, em Valência, ou
Arbore, em Vigo, entre outras. Nestas, a relação consumidor/
camponês é mais flexível, baseada na confiança e no conheci-
mento mútuo (com visitas periódicas aos sítios), mas cada um
se encontra em marcos separados. Alguns grupos e cooperativas
mantêm uma relação mais estreita com os camponeses com os
quais trabalham, outros, menos.

238
O negócio da comida

Apesar de compartilharem alguns critérios ideológicos co-


muns, existe uma grande variedade de modelos organizativos, de
relação com o produtor e com o camponês, de formato de compra
etc. Por exemplo, alguns grupos e cooperativas, com o passar do
tempo, vêm ampliando e adequando sua oferta às necessidades
de consumo de seus membros. Atualmente, muitas oferecem o
que chamam de “cestas abertas”, na qual cada consumidor pode
pedir de maneira regular, geralmente a cada semana, aqueles
produtos de que necessita, pagando apenas por eles – se bem
que existam também formatos de “cestas fechadas”, nas quais o
consumidor recebe periodicamente uma cesta com produtos do
camponês, pagando sempre o mesmo preço (com o objetivo de
garantir anualmente a compra do produto).
Outro elemento que distingue os grupos e cooperativas de
consumo agroecológico é seu grau de profissionalização. Algumas
experiências contam com pessoas contratadas, que executam as
tarefas de gestão, como é o caso de várias das iniciativas históricas
na Andaluzia, Valência, algumas na Catalunha ou outras que
surgiram mais tarde na Galícia. Frequentemente, esses grupos e
cooperativas contam com uma loja aberta ao público, acessível
tanto a sócios quanto a não sócios. Outras, entretanto, optam
por um modelo sem pessoas assalariadas.

Do anedótico ao significativo
Os primeiros grupos no Estado espanhol surgiram no final
dos anos 1980 e princípios dos 1990. Na Andaluzia, na origem
da constituição do Instituto de Sociologia e Estudos Camponeses
(Ised) na Universidade de Córdoba, se introduziram os princípios
da agroecologia, dando lugar a experiências como a cooperativa
Almocafre, em Córdoba (1994). Outras iniciativas andaluzes
foram: La Ortiga, em Sevilla (1993), El Encinar, em Granada

239
E st her Vi va s E stev e

(1993), La Breva, em Malága (1995) ou El Zoco, em Jaén (1995).


Na Catalunha, se constituíram El Brot, em Reus (1987), El Re-
bost, em Girona (1988) e Germinal, em Barcelona (1993). Em
Pamplona se criou Landare (1992); em Valência, La Llavoreta
(1993); em Euskadi, Bio Alai (1993), entre outras.
A maior parte destas experiências nasceu de núcleos de mi-
litantes dos movimentos sociais da época, mesmo considerando
que existam distintas trajetórias e motivações por trás de cada
uma. Na Andaluzia, por exemplo, foram desenvolvidos vínculos
com o Sindicato de Trabalhadores do Campo (SOC, da sigal
em espanhol) (López García, 2009). Nessa primeira onda, vá-
rias iniciativas se formalizaram como sociedades cooperativas,
enquanto outras optaram pela forma jurídica de associação. É
interessante observar que, com o tempo, várias destas últimas se
legalizaram como cooperativas, ao considerar que era um modelo
mais adequado aos seus princípios.
Uma segunda onda se desenvolveu ao longo dos anos 2000.
Na Catalunha, de menos de 10 cooperativas que então existiam,
se chegou a mais de 90 em 2009, com uma média de 32 cestas
por grupo. Se uma cesta equivale a uma unidade de consumo
– que pode ser uma família, uma “república” (pessoas que di-
videm um apartamento) ou um grupo de amigos, que a pedem
conjuntamente – e cada uma delas possa ter uma média de três
membros, um total de 8.640 pessoas se “alimentam” assim. Em
relação à distribuição geográfica, 86% dos grupos e cooperativas
de consumo na Catalunha se encontram na província de Bar-
celona (46% na capital), 7% em Tarragona, 3,5% em Girona e
outros 3,5% em Lleida (Descombes, 2009).
Em Madri, no final dos anos 1990, várias pessoas advindas dos
movimentos sociais, que buscavam consumir de outra maneira,
impulsionaram os Grupos Autogestionados de Konsumo (GAKs),

240
O negócio da comida

que deram lugar, em pouco tempo, a seis coletivos. Pouco depois,


no ano 2000, se constituiu Bajo el Asfalto está la Huerta! que
desembocou na criação de dez grupos em diferentes bairros da
capital e seus arredores, somando 130 unidades de consumo, com
uma equipe de produção encarregada de trabalhar os terrenos do
coletivo. O BAH! inspirou outras iniciativas madrilenas, como
a Surco a Surco.
Na Galícia e em outros territórios, novas experiências desse
tipo também surgiram. Em Vigo, em 2001, se criou a cooperati-
va Arbore, que em 2009 já distribuía 290 cestas (multiplicando
por dez o número inicial de sócios), acompanhando a criação de
outras iniciativas galegas, como a cooperativa A Xoaninha, em
Ferrol. Durante os anos 2000, os grupos históricos ampliaram
seus membros e o número de sócios. Ao mesmo tempo se tor-
naram capazes de oferecer uma maior variedade de produtos.
Enquanto isso, novos coletivos surgiam em Madri, Valência,
Murcia, Catalunha, País Basco, Andaluzia, Ilhas Baleares, entre
outros territórios.
É importante ter em conta como, neste período, organizações
de comércio justo com uma visão “global e transformadora”,
começaram a incluir em suas lojas produtos agroecológicos ou a
promover grupos de consumo em suas áreas (Vivas, 2006). Esse
foi o caso de muitas das organizações da rede Espacio por un
Comércio Justo, como a Xarxa de Consum Solidari, em Barce-
lona; Sodepaz, em Madrid; A Cova da Terra, em Lugo; Gira por
el Desarrollo, em Santander; Picu Rabicu, em Xixón.
Devemos também assinalar a inciativa Agricultura de Respon-
sabilidade Compartilhada (Arco), impulsionada pelo sindicato
camponês Coag, a partir de 2009, com o objetivo de promover
os circuitos curtos de comercialização (mercados de produtores,
grupos de consumo, cestas/caixas em domicílio, venda nos sítios

241
E st her Vi va s E stev e

agrícolas, refeitórios coletivos). Uma estratégia que permitia aos


pequenos produtores chegarem diretamente ao consumidor e
aumentarem sua renda, eliminando intermediários.
O auge dos grupos e das cooperativas de consumo agroeco-
lógico, no transcurso dos anos 2000, se deu em resposta a duas
questões centrais. Por um lado, uma crescente preocupação so-
cial acerca do que comemos, frente à proliferação de escândalos
alimentares como o das vacas loucas, os frangos com dioxinas, a
gripe porcina, a e-coli. Comer, e comer bem, voltou a ser importan-
te. Por outro lado, a emergência do movimento antiglobalização
deixou um substrato de relações férteis e de cumplicidades locais,
que facilitaram a criação destes espaços. Ao mesmo tempo, se fez
evidente, para muitos ativistas, a necessidade de vincular a luta
global com a prática cotidiana. Isso explicaria o ingresso a poste-
riori de uma nova geração militante, muito ativa no movimento
antiglobalização, nessas experiências de consumo alternativo,
como usuários ou como promotores.
Uma terceira onda teve lugar depois da eclosão do Movimento
dos Indignados, em maio de 2011. Após a ocupação de praças
em centenas de municípios, em toda a Espanha, e do auge do
protesto e da mobilização social, algumas das experiências que
continuaram optaram pela construção de iniciativas em escala
local, como hortas urbanas, mercados de trocas e grupos de
consumo. Desse modo, novos grupos e cooperativas de consumo
agroecológico têm emergido.

Limites e oportunidades
A multiplicação de grupos e cooperativas de consumo agroe-
cológico apresenta uma série de oportunidades, mas o desenvol-
vimento levado a cabo neste momento também põe em relevo
uma série de limites.

242
O negócio da comida

“Comer bem” versus mudança política. Em muitos dos grupos


de consumo encontramos dois grandes traços dessas sensibilida-
des. Uma que aposta, em termos gerais, por “comer bem”, dando
um peso maior a questões relacionadas com a saúde, e outra que,
apesar de ter em conta esses elementos, enfatiza mais o caráter
transformador e político dessas iniciativas. Esse é, de fato, o
desafio dos grupos e cooperativas de consumo. Reivindicar uma
alimentação saudável para todo o mundo, sem perder de vista a
perspectiva política de mudança. Uma opção que apenas busque
o “comer bem” pode facilmente ser cooptada por um discurso e
uma prática “verde” capitalista.
Se queremos uma agricultura sem pesticidas nem transgêni-
cos, é necessário começar a exigir a proibição de seu cultivo na
Espanha, porta de entrada e paraíso dos organismos geneticamen-
te modificados na Europa. Se optarmos por uma agricultura de
proximidade, é imprescindível uma reforma agrária e um banco
público de terras, que em vez de especular com o território, o
torne acessível àqueles que querem o solo para nele viver e traba-
lhar. Em definitivo, ou mudamos este sistema, ou “comer bem”
se converterá em um privilégio apenas acessível para aqueles que
possam ter essa opção.
Uma gestão e participação que nos paralisa? O dia a dia de boa
parte dos grupos de consumo acaba se centrando nas tarefas co-
tidianas de gestão. Contabilidade, pedidos, limpeza, controle de
estoques etc., que subtraem tempo e esforço para uma ação e um
debate político mais além do consumo. Mesmo assim, a disponi-
bilidade de tempo que requerem provoca, por um lado, uma alta
rotatividade entre seus membros – o que lhes tira força e capacidade
de consolidação (muitas pessoas, não podendo seguir o ritmo,
abandonam o grupo) – e, por outro lado, dificulta a participação
de outras pessoas ou ativistas com pouca disponibilidade de tempo.

243
E st her Vi va s E stev e

Para dar resposta a esses problemas, alguns grupos e coo-


perativas têm optado por se profissionalizar e contratar pessoal
para realizar determinadas tarefas. Mas isso, com frequência,
enfraquece o envolvimento de uma parte importante de seus
sócios. Entretanto, a participação ativa naqueles grupos que
só contam com voluntários tampouco está assegurada, nem é
muito elevada.
Uma relação igualitária entre consumidor e campesinato. É
necessário assinalar também que tipo de relações se estabelece
entre consumidores e produtores. E que interesses tem cada
um deles. Do mesmo modo que se deve rechaçar uma relação
puramente mercantil entre ambos. Não é tampouco positivo
cair numa mistificação da prática camponesa, nem daqueles
que a exercem.
Os grupos e cooperativas de consumo têm necessidades espe-
cíficas (rotinas em seu funcionamento, oferta ampla, qualidade
dos produtos etc.) que podem não casar com as dos agricultores
(produção limitada, vários clientes, rotas de distribuição etc.).
Temos que considerar essas “tensões” como naturais entre atores
que exercem papéis distintos. Os consumidores têm que estar
conscientes de que consumir de “outro modo” implica adaptar-
-se às características de um modelo de produção agroecológica,
e os camponeses têm que aceitar demandas determinadas. O
que é fundamental é que essas relações se estabeleçam de igual
para igual, com base na confiança e no conhecimento mútuo.

Coordenação
Outro elemento a se ter em conta, ao analisar o crescimento
dessas experiências, é a capacidade de articulação entre elas. Nos
territórios com um maior número de grupos de consumo, se têm
consolidado coordenadorias e federações que cumprem este papel,

244
O negócio da comida

mas que em geral só reúnem uma pequena parte dos membros,


enquanto muitos outros ficam de fora. O grande desafio está em
fazer com que os instrumentos de coordenação sejam realmente
úteis.
Assim, temos que discutir quais estruturas necessitamos, para
uma maior coordenação entre os grupos de consumo e aqueles
atores que trabalham na mesma direção. Algumas cooperativas
já incluem consumidores e produtores. Para melhorar o contato
entre ambos, se lançaram iniciativas que permitem coordenar
aqueles que consomem com os que trabalham a terra: experiên-
cias como La Repera, na Catalunha, ou La Rehuerta, em Madri.
Num sentido mais amplo, existe como marco de trabalho a
Plataforma Rural. Um espaço onde se encontram organizações
camponesas, ecologistas, ONGs, cristãos de base, consumidores,
grupos de comércio justo, que apostam na criação de maiores laços
de solidariedade entre o rural e o urbano, no fortalecimento da
vida no campo e na promoção de uma agricultura social, ecológica
e de proximidade. A partir da Plataforma Rural, se promovem
campanhas unitárias contra os transgênicos, as grandes superfí-
cies, a PAC, os agrocombustíveis, e a favor da soberania alimentar,
do comércio local, do turismo responsável, dos serviços públicos
e do “bem viver” no campo.

O que está acontecendo na Europa


Por toda a Europa encontramos cada vez mais iniciativas que
apostam em outro modelo de produção, distribuição e consumo
de alimentos. Algumas mais consolidadas, outras menos. Todas
têm em comum a vontade de se reapropriarem do como e do
que comemos.
Em países como França e Itália encontramos algumas das
experiências mais desenvolvidas na Europa. No Japão encontra-

245
E st her Vi va s E stev e

mos os chamados Teikei – grupos de consumidores que compram


diretamente de um ou vários camponeses, com raízes nos anos
1960 e 1970 e com mais de 16 milhões de consumidores. Nos
Estados Unidos, os grupos de Agricultura Sustentada pela Comu-
nidade (CSA), criados na década de 1980, somam hoje mais de
12 mil iniciativas. São países com forte e prolongada experiência
dessas práticas (Japan Organic Agriculture Association, 1993;
Soil Association, 2011).

“Contrato solidário” entre consumidores e camponeses


Na França se têm desenvolvido, há anos, redes de solidarie-
dade entre produtores e consumidores, através das Associações
pela Manutenção da Agricultura Camponesa (Amap). Essas
experiências partem de um “contrato solidário” entre um grupo
de consumidores e um camponês agroecológico local, à base do
qual os primeiros pagam adiantado o total de seu consumo por
um período determinado, e o agricultor lhes provê semanalmente
os produtos de sua horta. Desde a criação da primeira Amap, em
abril de 2001, entre um grupo de consumidores de Aubagne, e
a exploração agrícola das Olivades, na região de Provença, elas
têm se multiplicado por todo o país, somando, atualmente,
1.600 grupos, representando um total de 200 mil consumidores
(Bashford, J. et al., 2013).
Na Itália, desde a década de 1990, encontramos os Grupos
de Compra Solidária (GAS). São grupos de consumidores que se
organizam de maneira espontânea, para comprar de um ou de
vários camponeses e artesãos, a partir de alguns critérios de con-
sumo solidário, em que priorizam a aquisição de produtos locais,
justos, ecológicos, estabelecendo uma relação direta com seus
provedores. Na atualidade, se calcula que existam 900 grupos em
toda a Itália, coordenados através da rede GAS, criada em 1997.

246
O negócio da comida

Na Grã-Bretanha, como nos Estados Unidos e Canadá, essas


propostas recebem o nome de CSA* (Agricultura Sustentada pela
Comunidade). Como seu nome indica, consistem em grupos de
consumidores que apoiam os camponeses, a partir de uma com-
pra sem intermediários, proporcionando-lhes uma estabilidade
financeira, em troca de que estes lhes sirvam de forma regular
– geralmente uma vez por semana – frutas, verduras, leite, carne
etc. Em 2011, existiam cerca de 80 grupos, com uma média de
69 unidades de consumo, que davam de comer a cerca de 12.500
pessoas. A maior parte destes grupos tomaram impulso a partir
de 2009, graças ao apoio da organização Soil Association e seu
programa “Making Local Food Work”, embora algumas delas
já tivessem mais de 10 anos de atuação (Soil Association, 2011).
Em outros países da Europa encontramos também experiên-
cias destacadas. É o caso de Les Jardins de Cocagne, na Suíça,
uma cooperativa de produtores e consumidores de verduras eco-
lógicas, fundada em 1978, e que agrupa mais de 400 lares. Na
Bélgica, essas iniciativas têm se desenvolvido mais recentemente,
ao longo dos anos 2006 e 2007, sobretudo em Bruxelas, onde
encontramos atualmente cerca de 200 unidades que recebem,
de forma regular, frutas e verduras frescas, através dos Gasap
(Grupos de Compra Solidária com a Agricultura Camponesa).

Das batatas a outros comestíveis


Na Alemanha, o primeiro grupo CSA foi criado em 1988,
em Buschberghof, próximo a Hamburgo. Mas foi desde cinco
anos atrás que estas propostas se estenderam por todo o país,
dando lugar aos 35 grupos atuais. Desde 2011, existe uma rede

* Community Supported Agriculture, também conhecida como Vegetable box scheme.


(N. T.)

247
E st her Vi va s E stev e

nacional que permite sua coordenação (Bashford, J. et al., 2013).


Na Grécia, a crise e a perda de poder aquisitivo deram lugar à
emergência de práticas para o autoabastecimento alimentar, à
margem dos canais convencionais, a partir do apoio mútuo e
estabelecendo uma relação direta com o campesinato. Assim,
surgiu o conhecido Movimento da Batata (Morán y Fernández
Casadevante, 2013/2014), que facilita a venda direta de tal pro-
duto nas cidades, permitindo uma maior renda aos produtores
e barateando o preço aos consumidores. Das batatas passaram a
outros comestíveis, num exercício complementar dos grupos de
consumo agroecológicos já existentes no país.
Todas essas práticas colocam em destaque que é possível ou-
tro modelo de distribuição e consumo de alimentos, mediante
uma relação direta com os camponeses e com base em alguns
critérios de justiça ambiental e social. Essas experiências têm se
multiplicado em toda Europa nos últimos anos, assim como
outras que apontam na mesma direção: mercados camponeses,
distribuição direta, modelos de certificação participativa, hortas
urbanas, redes de intercâmbio, cozinha comprometida, refeitórios
escolares ecológicos etc.
Politicamente, redes de coordenação de atores que trabalham
na produção, distribuição e consumo alternativo de alimen-
tos têm se desenvolvido e fortalecido, ainda que exista muito
trabalho por fazer. No continente, uma das principais redes
de referência é a Coordenadora Europeia da Via Campesina,
que agrupa organizações e sindicatos agrários da Dinamarca,
Suíça, França, Itália, Holanda, Grécia, Malta e Turquia, além
da Espanha. Seu objetivo é lutar contra as políticas agrícolas e
alimentares promovidas pela União Europeia no marco da PAC,
e apostar em uma agricultura camponesa, diversa, ecológica
e vinculada ao território. Um desafio importante consiste em

248
O negócio da comida

aumentar a articulação entre estas iniciativas, assim como com


outros movimentos sociais.

Hortas entre o asfalto


Existe vida debaixo do asfalto, embora às vezes isso pareça
mentira. As hortas urbanas, que proliferam dia a dia em nossos
bairros e cidades, assim nos demonstram. Um exemplo a mais
da vontade de reconstruir os vínculos entre o campo e a cidade, a
natureza e as pessoas, frente a um urbanismo que nos fragmenta
e isola.
As hortas urbanas, contudo, não são algo novo. Nossos avôs
e avós, vindos do campo no pós-franquismo, trabalhavam fre-
quentemente seu pedaço de terra nas cidades. Não chamavam
isso de “horta urbana”, mas a ideia de alimentar-nos do que nos
dá a terra era a mesma. Hoje, anos depois, essas experiências têm
tomado força novamente, e entre a moda e uma opção de vida,
produzem frestas entre o cimento dos municípios.

Mil e um modelos
Existem diferentes tipos de hortas urbanas. Desde os espaços
que uma instituição, pública ou privada, cede ou aluga à vizi-
nhança, passando por mansões abandonadas (e ocupadas para
lhes dar uma função social), até hortas nas escolas, ou experiên-
cias individuais, como as hortas em casa ou na varanda. Todas
têm em comum a vontade de se reapropriar do que comemos, de
trabalhar a terra, do contato com a natureza.
Frente à irracionalidade de um sistema agrícola e alimentar que
abandona o saber camponês, que acaba com a diversidade alimentar,
que nos oferece produtos quilométricos vindos do outro lado do
mundo – quando estes também podem ser cultivados aqui – as hor-
tas urbanas demonstram que há alternativas. Ensinam-nos de onde

249
E st her Vi va s E stev e

vem o que comemos. E, assim, aprendemos a valorizar o alimento e


redescobrir que formamos parte indissociável do ecossistema.
Ganhar terreno no asfalto, confrontar a lógica urbanístico-
-depredadora nas cidades e criar novos marcos de socialização são
outros elementos-chave. A resistência – e a explosão da criatividade
– social se expressa também nas mansões ou solares ocupados,
que têm transformado o abandono e o lixo em fonte de vida.
Hortaliças e plantas que crescem onde antes havia escombros, das
mãos de uma vizinhança que se encontra e que constrói espaços
comunitários e de apoio mútuo. O movimento espanhol 15M tem
dado lugar e reforçado essas experiências em alguns municípios,
na busca de alternativas práticas e cotidianas.
A crise econômica e social dá funções novas a essas iniciati-
vas, já que são fonte de recursos alimentares. Em um contexto
no qual as pessoas estão sem trabalho, sem casa e cada vez mais
sem comida, as hortas urbanas têm uma função prática de prover
comestíveis aos que não têm condições de adquiri-los.
São experiências na contracorrente, laboratórios de resistên-
cia, que, de maneira imprescindível, não apenas questionam um
modelo determinado de cidade e de sistema agrícola-alimentar,
como também o padrão que os sustenta, o capitalismo, que faz de
onde vivemos lugares inabitáveis e, do que comemos, alimentos
insalubres. Não se trata unicamente de trabalhar a terra e criar
jardins e hortas urbanas. Mas se trata de gerar uma dinâmica
de fundo, de travar alianças com outros movimentos sociais, de
propor mudanças políticas e de dar, de uma vez por todas, uma
volta por cima neste insustentável sistema.

Do campo à escola: comida boa e justa


“Menino, de onde vem o leite?”, perguntamos. “Do tetrapack”,
responde a criança. A distância entre o campo e o prato, entre

250
O negócio da comida

a produção e o consumo, não tem feito mais que aumentar nos


últimos anos. Os menores, muitas vezes, nunca pisaram numa
horta, ou viram uma galinha, ou se aproximaram de uma vaca.
Alimentar-se não consiste apenas em ingerir alimentos, mas
também em saber de onde eles vêm, o que nos propiciam, como
foram elaborados. Educar implica ensinar a comer e a comer
bem. Isso é o que fazem os refeitórios escolares ecológicos, que
nos últimos tempos têm se ampliado localmente.
O interesse por comer bem, com boa qualidade e com justi-
ça, chega pouco a pouco nas mesas das escolas. Refeitórios que
buscam, para além da administração calórica necessária, uma
alimentação ecológica e de proximidade. Trata-se de aproveitar
alguns espaços que permitam, como nenhum outro, a interação
entre alunos, educadores, cozinheiros. E, num segundo plano,
com famílias, professores e agricultores – para recuperar não
somente o saber e o sabor da comida, como também aprender e
valorizar o trabalho que há por trás da produção – a agricultura
– e por trás do fogão – a cozinha.
Os refeitórios escolares ecológicos têm uma vertente educativa
e nutricional, uma vez que defendem a economia social e solidária
no território. Alimentos ecológicos sim, mas locais ou de proxi-
midade. Uma aposta imprescindível num contexto de crise que,
por um lado, dá uma saída econômica à pequena agricultura –
que procura viver dignamente do campo, fomentando circuitos
de comercialização alternativos e de venda direta – e, por outro,
oferece uma alimentação saudável e ecológica aos mais pequenos,
num contexto no qual tem aumentado a pobreza e a má nutrição.
Na Catalunha, 40% das crianças têm sua principal refeição
do dia, o almoço, nos centros educativos. Incorporar valores
ecológicos aos refeitórios das escolas deveria ser uma prioridade,
e os custos econômicos não podem ser o argumento para não

251
E st her Vi va s E stev e

fazê-lo. Integrar a cozinha aos refeitórios e cantinas desses centros


permite um maior controle sobre a alimentação dos alunos e, se
compramos alimentos de proximidade, de temporada e direto do
agricultor, podemos até baratear os custos. Do campo, passando
pelos fogões das escolas até o prato do aluno, com transparência,
qualidade e justiça. Este é o desafio. A administração pública
tem que estar comprometida com este fim. Investir em uma boa
alimentação na sala de aula é investir no futuro.
É preciso apostar em refeitórios escolares que levem os prin-
cípios da soberania alimentar às escolas. Não unicamente em
teoria, mas, o que é mais importante, na prática. A soberania
alimentar nos permite recuperar a capacidade de decidir sobre
como nos alimentamos; acredita numa agricultura camponesa,
local e agroecológica; e devolve aos agricultores e consumidores,
e também às crianças, o controle e o saber sobre sua alimentação.

Cozinhando devagar se chega longe


Ao defender outro modelo de agricultura e alimentação,
pensamos sempre no importante papel de quem trabalha a terra
e de quem consome. Mas esquecemos que, nesta cadeia, que vai
do campo ao prato, se encontram também outros atores que têm
um papel importante na hora de apostar em práticas de produção,
distribuição e consumo mais justos. Cozinheiras e cozinheiros,
à frente de fogões e restaurantes, têm muito a nos dizer sobre o
que cozinham e o que comemos.
O movimento Slow Food até lhes colocou um nome: “Slow
Food km 0”. E sob essa “etiqueta” se agrupam cozinheiros com-
prometidos com uma agricultura local, ecológica, camponesa e
sazonal. Como eles mesmos afirmam: optam por alimentos “bons,
limpos e justos”. O que é o mesmo que comida de qualidade, sem
transgênicos, e que defende um mundo rural vivo. Deste modo,

252
O negócio da comida

nesses restaurantes, encontramos produtos adquiridos de agricul-


tores locais, com os quais se estabelecem uma relação direta e de
confiança. Neles podemos degustar variedades mais antigas e em
risco de desaparecimento, alimentos colhidos a não mais de 100
km de raio de distância, ou pescado em capturas sustentáveis.
Trata-se de um trabalho laborioso de chefs comprometidos
com aquilo que cozinham – geralmente em restaurantes peque-
nos, espalhados por todo o território. Mas também alguns em
cidades grandes – que trabalham em aliança com camponeses
e artesãos locais. Campo e cozinha unidos, como não poderia
deixar de ser, por uma alimentação a serviço das pessoas.

Para além do marketing


Falar hoje de produtos “zero km” está na moda. O movimento
Slow Food começou a promover esse conceito nos anos 1990, na
defesa de uma alimentação local, saudável e de qualidade. Uma
comida slow (devagar) em oposição à fast food (rápida). De fato, na
atualidade, existem inclusive bancos que promovem seus serviços
com este lema. O local, ainda mais num contexto de crise, vende.
Mas o que queremos dizer quando falamos de km 0? Trata-se de
uma moda, uma marca ou uma opção pela mudança?
Os ativistas do Slow Food têm isso claro. Promover alimentos
km 0 implica apoiar uma agricultura local, ecológica, sazonal,
camponesa. Comprar diretamente e sem intermediários do pe-
queno produtor, recuperar nossa gastronomia. Uma cozinha na
qual não há lugar para transgênicos ou para aqueles cultivos que
contaminam o meio ambiente e nossa saúde. Uma alimentação
que defende produzir, distribuir e consumir à margem da agroin-
dústria e dos supermercados.
Uma proposta que tem dado tão certo que alguns a utilizam,
inclusive, como mero instrumento de marketing, esvaziando-a de

253
E st her Vi va s E stev e

conteúdo, com o único propósito de vender mais. Caixa Catalunya é


o expoente máximo. Não tem vergonha em definir-se como “Banco
km 0, banco de proximidade”, acrescentando “trabalhando desde
aqui e para a gente daqui”. Eu diria: “expulsando e explorando desde
aqui as pessoas daqui”. Os supermercados se alinham também nesse
cortejo. Carrefour, Mercadona, Alcampo, Eroski, El Corte Inglés di-
zem privilegiar o local. Esquecem que são precisamente suas práticas
que têm acabado com o comércio, o emprego e a agricultura local.

Alimentos com bandeira?


Em tempos de crise, a comida “com bandeira” vende. Consumé
nacional e “batata negra”. Na França, desde muitos anos a extrema
direita reclama o Made in France, esse sim, puro sangue. Antes,
o Partido Comunista Francês abraçou esse lema. Nos Estados
Unidos, os conservadores nos anos 1990 fizeram campanha
com o lema Buy American, contra o Tratado de Livre Comércio
da América do Norte. Na Espanha, nesses momentos de crise,
se louva o “Hecho em España”. Exigir “local”, entretanto, nada
tem a ver com uma questão de bandeiras, mas sim, de justiça. O
leitmotiv do km 0 é o exato oposto da mera exaltação patriótica.
Trata-se de promover uma produção e um consumo de proxi-
midade com a imprescindível perspectiva da soberania alimentar,
devolvendo às pessoas a capacidade de decidir, apostando num
mundo rural vivo, com total respeito à terra e em aliança e soli-
dariedade com outros povos. Exatamente o contrário de chauvi-
nismos e racismos. Nada a ver com a indústria agroalimentar e o
poder financeiro. Só assim a defesa do local tem sentido.
Quando emergiu o movimento 15M, por volta de 2011, se
dizia: “Vamos devagar porque vamos longe”. Peço emprestado
esse slogan, com uma pequena modificação: “Cozinhe devagar
para chegar longe”.

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