SILVA Edson. XUKURU. Memórias e História

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Edson Silva

2ª edição
Recife, 2017
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Reitor: Prof. Anísio Brasileiro de Freitas Dourado
Vice-Reitor: Prof. Sílvio Romero Marques
Diretora da Editora: Profa. Maria José de Matos Luna

COMISSÃO EDITORIAL
Presidente: Profa. Maria José de Matos Luna
Titulares: Ana Maria de Barros, Alberto Galvão de Moura Filho, Alice Mirian Happ Botler, Antonio Motta,
Helena Lúcia Augusto Chaves, Liana Cristina da Costa Cirne Lins, Ricardo Bastos Cavalcante Prudêncio, Rogélia
Herculano Pinto, Rogério Luiz Covaleski, Sônia Souza Melo Cavalcanti de Albuquerque, Vera Lúcia Menezes Lima.
Suplentes: Alexsandro da Silva, Arnaldo Manoel Pereira Carneiro, Edigleide Maria Figueiroa Barretto, Eduardo
Antônio Guimarães Tavares, Ester Calland de Souza Rosa, Geraldo Antônio Simões Galindo, Maria do Carmo de
Barros Pimentel, Marlos de Barros Pessoa, Raul da Mota Silveira Neto, Silvia Helena Lima Schwamborn, Suzana
Cavani Rosas.
Editores Executivos: Afonso Henrique Sobreira de Oliveira e Suzana Cavani Rosas.

CONSELHO CIENTÍFICO
Albanita Gomes da Costa de Ceballos - Medicina Social - CCS, Allene Carvalho Lage - Núcleo de Formação Docente
- CAA, Ana Emília Gonçalves de Castro - Design - CAC, Ana Lúcia Fontes S. Vasconcelos – Ciências Contábeis
- CCSA, Antônio Carlos Gomes do Espírito Santos - Medicina Social - CCS, Aurino Lima Ferreira - DPOE - CE,
Djanyse Barros Mendonça Villarroel - PROEXT, Edístia Maria Abath Pereira de Oliveira – Serviço Social - CCSA,
Eliete Santiago - Departamento de Administração Escolar - CE, Heloisa Maria Mendonça de Morais - Medicina
Social - CCS, José Luís Portugal - Engenharia Cartográfica - CTG, José Zanon de Oliveira Passavante - Oceanografia
- CTG, Jowânia Rosas - Coordenação de Gestão da Produção Multimídia e Audiovisual - PROEXT, Jerônymo José
Libonatti - Departamento de Ciências Econômicas - CCSA, Lucila Ester Prado Borges - Engenharia Química -
CTG, Luís De La Mora - Arquitetura - CAC, Marco Antônio Mondaini de Souza - Serviço Social - CCSA, Maria
Christina de Medeiros Nunes - Diretoria de Extensão Acadêmica - PROEXT, Maria de Fátima Galdino da Silveira
- Departamento de Anatomia - CCB, Maria de los Angeles Perez Fernandez Palha - Engenharia Química - CCEN,
Maria do Socorro de Abreu e Lima - Departamento de História - CFCH, Mauro Maibrada - Departamento de Música
- CAC, Oscar Bandeira Coutinho Neto - Medicina Social - CCS, Sandro Sayão - Filosofia - CFCH, Vanice Santiago
Selva - Geografia - CFCH,Wellington Pinheiro dos Santos - Coordenação de Gestão da Informação - PROEXT.

CÂMARA DE EXTENSÃO
Edilson Fernandes de Souza - Presidente - Pró-Reitor de Extensão, Aneide Rabelo - CCS, Oliane Magalhães - CCB,
Maria José Luna - CAC, Nélio Vieira de Melo - CAA, Osmar Veras - CAA, Rogélia Herculano - CAV, Zailde Carvalho
dos Santos – CAV.

Capa Índios na Vila de Cimbres - 1934 (fotos de Curt Nimuendajú - Museu Nacional/RJ)
Revisão O autor
Design gráfico Elvira de Paula

S586x Silva, Edson


Xukuru : memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/
PE), 1959-1988 / Edson Silva. – 2.ed. – Recife : Editora UFPE, 2017.
403 p. : il.

Originalmente apresentada como tese do autor. (Doutorado – UNICAMP.


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. História Social, 2008), sob o
mesmo título.
Inclui referências e anexos.
ISBN 978-85-415-0936-7 (broch.)

1. Índios da América do Sul – Brasil, Nordeste. 2. Índios Xucuru –


Pernambuco. 3. Índios – Vida e costumes sociais. 4. Antropologia. I. Título



980.41 CDD (23.ed.) UFPE
(BC2017-084)
Esse texto originalmente intitulado Xukuru: memórias e história
dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1959-1988, foi
apresentado como Tese de Doutorado em História Social na UNICAMP
em março/2008. Compôs a Banca Examinadora além do orientador o
Prof. Dr. John Manuel Monteiro/UNICAMP, a Prof.ª Drª. Maria Cristina
Pompa/USP, o Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira Filho/UFRJ-MN, o Prof.
Dr. Marcus Joaquim Maciel de Carvalho/UFPE e o Prof. Dr. Robert Wayne
Andrew Slenes/UNICAMP, aos quais sou muito grato pelos comentários,
observações e questionamentos. Para publicação desta 2ª edição, além de
pouquíssimas alterações no texto original, foi incluido um pós-escrito.
A publicação em forma de livro, após dezenas de fotocopias
encadernadas em espiral para atender as várias solicitações, possibilitará o
maior acesso, a circulação e favorecendo a leitura do texto pelas pessoas
que tem manifestado interesses.
Agradecimentos

Agradecer é, antes de tudo, um ato de humildade. É reconhecer, e


aqui de forma pública, as muitas pessoas que contribuíram de diferentes
maneiras e em diversos momentos para a realização e conclusão deste
estudo, desta etapa de vida. É também, como sempre, correr o risco do
esquecimento de nomes. Àqueles/as a quem possivelmente esqueci de
agradecer, peço minhas antecipadas e sinceras desculpas.
Sou grato:
Ao povo Xukuru, na pessoa de D. Zenilda, que tantas vezes me
acolheu generosamente em sua casa, nas viagens da pesquisa;
A Júnior, o “homem do vitrô”, meu “motoboy” nas muitas idas e
vindas pelas estradas, caminhos e veredas das aldeias espalhadas na Serra
do Ororubá, dividindo comigo as alegrias e frustrações nas conversas e
entrevistas com os “cabôcos véios” Xukuru;
A Zinha, esposa de Júnior, pelas acolhidas também sempre
generosas;
Ao Cacique Marcos e às lideranças Xukuru, pela confiança e
apoio irrestrito;
Aos/às entrevistados/as que, ao me receberem abriram a
intimidade de suas casas, de suas vidas e de suas histórias;
A Sheila Sá, Carlos Perez, Gessy Stancke, Maria Elizabeth Breá,
Gérson “Togo” Teodoro, Sônia Coqueiro e ainda a Carlos Augusto R. Freire
no Museu do Índio/RJ, pela acolhida sempre amável, pela disponibilidade,
pelo amplo acesso aos microfilmes e as valiosas indicações para pesquisas
nos documentos do SPI. Tenho também dívidas de gratidão com Gessy
Stancke, pelas fotos das panelas Xukuru e de documentos do acervo de
Curt Nimuendajú no Museu Nacional/RJ, e com Sheila, pela explícita
solidariedade no meu tempo de estada no Rio de Janeiro;
A Antonio de Souza Torres Souza, o conhecido “Prof. Souza”,
pelas fotos antigas e indicações sobre Pesqueira;
A Karla Melanias, pela disponibilização do acervo de suas
pesquisas pessoais e as indicações sobre o acervo de Curt Nimuendajú,
no Museu do Estado de Pernambuco (MEPE), bem como a Jozelito
Arcanjo, por me favorecer o amplo acesso à documentação do MEPE.
Ao pessoal do Conselho Indigenista Missionário–Regional
Nordeste (Cimi-NE): especialmente a Roberto Saraiva, Otto, pelo apoio,
amizade e o amplo e irrestrito acesso à documentação. A Carol, guardiã
dessa documentação sempre disponível e pelas fotografias que estão no
corpo da Tese;
Ao pessoal da equipe de Educação Escolar Indígena do Centro
de Cultura Luís Freire, pela disponibilidade das informações, sempre que
solicitadas, e pela torcida;
A Hildo Leal da Rosa e Marcília Gama, no Arquivo Público de
Pernambuco, pelas indicações e favorecerem o acesso à documentação;
A Ana Paula Pacheco e a Profª. Fátima Nascimento no Setor
de Etnologia/ Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ,
pelo acesso às panelas Xukuru;
À Profª. Marília Facó Soares, no Setor de Linguística do
Museu Nacional/UFRJ, pelo acesso à documentação microfilmada e
às fotografias do acervo Curt Nimuendajú. A Adilson Fonteneles, pela
gentileza, disponibilidade e cuidado com que me auxiliou na reprodução
das fotografias;
A Kelly Oliveira pela cessão das fotos e a Lusival Barcelos; e
também ao meu irmão Manoel Aires pelas leituras, comentários e
observações na primeira versão do texto para o Exame de Qualificação;
ao amigo Robson Dantas, igualmente pela leitura e ainda pelos livros
enviados dos sebos de São Paulo.
Aos/às colegas do Projeto Sossanin, da Fiocruz/Aggeu
Magalhães: André, Carlos Pontes, Idê, Evani, Tatiane, Glaciene, Ludimila,
pela amizade firmada nas pesquisas sobre ambiente e saúde entre os
Xukuru do Ororubá, pelo incentivo e a carinhosa cobrança da Tese;
Ao CNPq, pela Bolsa Doutorado Sanduíche no País, que
possibilitou minha estada no Rio de Janeiro, em 2005, onde, além de
pesquisar no Museu Nacional, sob a orientação do Prof. João Pacheco de

6
Oliveira, favoreceu também a pesquisa no acervo do SPI no Museu do
Índio, de grande importância para a elaboração da Tese;
Ao Prof. Marcus Carvalho, do PPGH/UFPE, pelo permanente
incentivo e pela amizade. Quero lembrá-lo que em grande parte, é o
responsável por essa difícil, mas recompensadora aventura chamada
Doutorado;
Ao Prof. João Pacheco de Oliveira (MN/UFRJ), pelas conversas,
orientações e indicações sempre valiosas no Rio de Janeiro durante o
período da Bolsa Doutorado Sanduíche no Museu Nacional em 2005,
e durante o tempo em que esteve no Recife, em 2006/2007, para as
discussões e montagem da exposição Índios: os primeiros brasileiros;
Ao Prof. John Monteiro, pela acolhida bastante amigável e sempre
incentivadora, as observações e comentários valiosos nas apresentações
de comunicações, embriões de capítulos da Tese, durante os GTs que
organizou e coordenou por ocasião dos Simpósios Anuais da ANPUH.
Meu reconhecimento pela orientação, confiança e credibilidade que me
foi dispensada;
A Mariana Françozo, pela gentileza, disponibilidade, solidariedade
e empenho em resolver as questões burocráticas junto à Secretaria da
Pós-Graduação em História no IFCH/UNICAMP.
A Cristina Malta, pela atenção, gentileza e disponibilidade com
que aceitou o meu pedido de correção da Tese.
Agradeço e muito ao Prof. Edilson Fernandes de Souza, Pró-
Reitor de Extensão (Proext/UFPE), pelo apoio, acolhida e viabilização
junto a EDUFPE para publicação da Tese em formato de livro.
Aos Encantados Xukuru, que me acompanharam o tempo todo
e durante todo o tempo na escrita dessa história, que é deles.

7
Dedicatória

Para meus filhos Potyguara e Tayguara, pelo roubo do convívio


durante o tempo de escrita do “livro”, como eles falavam, sobre os índios;
Para minha mãe, Dona Josefa (Dona Zefinha). Mulher negra,
pobre e agricultora precoce. Expulsa, ainda adolescente, com sua família,
das terras em poder de usineiros na Zona da Mata Norte em Pernambuco,
veio morar nos mangues fronteiriços de Olinda e Recife. Semi-analfabeta,
empregada doméstica, mulher de fibra que criou (sabe Deus lá como!),
18 filhos!
Homenagem Especial

É por demais importante registar uma homenagem ao Prof. John


Monteiro, que faleceu tragicamente vítima de um acidente automobilístico
em São Paulo, março/2013. Uma grande perda! Pela pessoa humana,
pelo amigo e colega pesquisador, reconhecidamente formador de
vários pesquisadores da história indígena e, nos estudos históricos,
de fundamental importância para os povos indígenas e o repensar da
História do Brasil.
Acredito que a melhor forma de homenagearmos a memória do
“John” e tê-lo sempre presente em nossas lembranças, é continuarmos
contribuindo com nossas pesquisas, reflexões e publicações sobre a
história indígena e os índios na História. em que “o John” será sempre a
nossa referência pelo seu pioneirismo, competência e generosidade.
Em memória de:

“Seu” Cíço Pereira,


“Seu” Herculano,
Zé Cioba,
“Seu” Zé Grande
“Seu” Gercino,
“Seu” João Jorge,
“Seu” Juvêncio,
“Dona” Santa,
Zé de Ismaé,
“Seu” Petru,
“Seu” Cassiano,
que, como dizem os Xukuru do Ororubá,
se encantaram.
PREFÁCIO

Subsídios para uma outra História de


Pernambuco e do Brasil
A publicação da tese de doutoramento de Edson Silva, resultado de
uma longa pesquisa arquivística e de campo sobre os Xukuru do município
de Pesqueira e Poção/PE, é uma ocasião importante e adequada para refletir
sobre o movimento de aproximação entre antropólogos e historiadores
ocorrido nas últimas três décadas no Brasil.
Qual a razão dessa busca por interdisciplinaridade (ou
transdisciplinariedade)? É evidente que isso resulta de uma tentativa de
ultrapassar algumas das limitações impostas aos estudos sobre os povos
indígenas pelas temáticas e métodos dominantes nessas duas disciplinas,
rigorosamente separadas na divisão entre os domínios das ciências no
contexto universitário. Tal divisão não decorre de maneira alguma da existência
empiricamente constatável de diferentes esferas dos fenômenos históricos e
sociais que possam ser tratados isoladamente e mediante quadros teóricos e
metodologias inteiramente distintas.
Trata-se apenas de um fato histórico – a implantação de uma forma
de hegemonia burguesa na esfera da produção de conhecimentos, cuja
consequência social mais imediata e visível é a monopolização do saber, com
a criação de um corpo de especialistas, qualificados através de procedimentos
burocráticos, que vem a tornar-se reconhecido (inclusive em termos legais)
como o único e exclusivo detentor de um saber autorizado. Por trás da divisão
de trabalho estabelecida no mundo universitário é possível ler os interesses,
necessidades e pressupostos para a implantação e reprodução de uma ordem
capitalista. A expansão colonial do século XIX veio a enquadrar-se perfeitamente
nas linhas divisórias já criadas e a ciência produzida no ocidente transformou-
se no modelo único e supostamente universal, repetido e espelhado em todos
os continentes, parte imprescindível da missão civilizadora que como nos
lembrou Edward Said, pretensamente legitimaria o colonialismo.
Em 1973, no livro The Colonial Encounter, Talal Asad, postulava
que a divisão entre as disciplinas universitárias foi formulada por interesses
antagônicos ao dos povos colonizados e que este “nascimento” não
deveria ser pensado como algo natural ou uma fatalidade imutável, mas
precisaria ser repensado e refeito em novas bases. Experiências pioneiras
de articulação entre Antropologia e História realizadas fora de contextos
metropolitanos devem ser examinadas com muito cuidado, pois podem
ser úteis e mesmo decisivas para uma reconfiguração de saberes dentro
dos desafios teóricos e políticos contemporâneos.
Certamente os povos e culturas não ocidentais foram decisivos
para a consolidação da Antropologia como um saber universitário, muito
embora os termos de que servem ao falar em “primitivos” e “selvagens”
(e por trás disso os modelos analíticos utilizados, materializados no
evolucionismo e no funcionalismo) pareçam hoje aos nossos olhos
demasiado preconceituosos, contribuindo para uma ciência falsamente
universal. Há é claro muito trabalho crítico a fazer de maneira a enfrentar
os desafios e perplexidades atuais1.
Mas, para a História que importância teve os indígenas? De
Michelet (Histoire de France, 1833) a Varnhagen (Historia Geral do
Brasil, 1854/1857), foi-se estruturando no século XIX, presidindo o
seu enraizamento acadêmico, uma narrativa onde é secundária a
importância dessas populações na marcha da humanidade. Os fatos,
marcas e rupturas fundamentais da História podem ser encontradas tão
somente na história do Ocidente, a partir daí repercutindo e espelhando-
se por todo o planeta. O foco principal do historiador foi a “disseminação
da nação” (um trocadilho feito por Homi Bhabha), sempre apoiado no
modelo criado pela revolução francesa. Ou seja, uma narrativa associada
ao capitalismo e a expansão de mercados, bem como ao poder de uma
burocracia apoiada em uma tendência à secularização (a qual engendrou
um novo pacto entre o Estado, o Cristianismo e a Ciência, este um saber
laico). As populações autóctones na África, na Ásia e nas Américas não
passavam de figurantes de uma História Universal, de base europocêntrica,
1
Vide nesse sentido o meu artigo “Etnografia enquanto compartilhamento e comunica-
ção: desafios atuais às representações coloniais da Antropologia”, no e-book Desafios
da Antropologia Brasileira, organizado por Bela Feldman Bianco, disponível no site da
Associação Brasileira de Antropologia/ABA, 2013, p. 47-74.

16
que celebrava a conquista e minimizava ou omitia os atos de genocídio,
a tudo perdoando em nome do avanço da Civilização.
Importantes processos políticos ocorridos no pós 2ª Guerra
Mundial, com a partição de poderes entre o mundo capitalista e o
socialista, o fenômeno da descolonização, o internacionalismo terceiro-
mundista favoreceram o surgimento de novos espaços, sem questionar,
porém a divisão de domínios entre os saberes universitários. Em alguns
países surgiram linhas de investigação focadas especificamente sobre
as populações autóctones, para as quais foi reservada um pequeno e
circunscrito escaninho, em geral chamado de Etnohistória.
Tais estudos - ainda que em aparência com objetivos dirigidos e
modestos, sem questionar o estado de coisas na disciplina e abordando
de forma privilegiada fatos numa dimensão local e circunscritos em geral
aos primeiros séculos da conquista – foram reexaminando arquivos e
encontrando uma enormidade de documentos raramente explorados nas
grandes sínteses e interpretações históricas precedentes. Criaram assim
as bases empíricas para novas hipóteses e para a transformação das
anteriores práticas e prioridades de trabalho.
A ampliação no Brasil ao longo das últimas três décadas dos
estudos sobre história indígena (ou melhor, sobre as múltiplas e variadas
histórias indígenas) foi algo muito importante e que teve repercussões
profundas nos departamentos universitárias e na agenda das pesquisas
históricas. A publicação em 1994 do estudo de John Monteiro2, bem
como a sua intensa e fecunda atividade na formação de graduandos
e pós-graduandos na UNICAMP, foi um marca importante para essa
transformação da disciplina.
Num evento organizado pelo próprio Edson Silva e outros
pesquisadores, na conferência de abertura do 1º. Encontro de
Etnohistória dos Índios no Nordeste, realizado em Penedo (AL), em
30-05-1996, eu já perguntava: “Uma imagem muito popularizada e quase
arquetípica do tempo é a do lento, permanente e irrefreável fluxo das

2
MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de
São Paulo, São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

17
águas de um rio. Instalados ao longo de seu curso, escribas de diferentes
épocas, registraram os objetos que singravam as suas águas, descrevendo
formas, cores, ruídos e posições relativas. Será que para fazer etnohistória
bastaria comparar estes relatos, construindo uma trajetória imaginária
entre esses pontos? (...) Ou seja, com base nessas observações (...) o
trabalho do analista seria apenas de transformar o descontínuo em
contínuo, e o concebido em verossímil?”3
A resposta que se impunha era outra: “O que cabe esperar do
etnohistoriador (...) é resgatar a plena historicidade dos sujeitos históricos,
descrever como eles estão imersos em cada ambiente (as épocas e os
ecúmenos)”4. Mas isto exige que o pesquisador não se restrinja aos limites
atuais de uma dada coletividade e não pratique o anacronismo de buscar
encontrá-la tal e qual no passado. Nesse sentido é fundamental que os
pesquisadores e estudiosos desenvolvam uma consciência de que não se
trata de buscar encontrar no passado o rebatimento das coletividades
etnificadas de hoje em dia – uma vez que estas já são fruto de longos
e violentos séculos de dominação. A relevância que, constatava-se pela
documentação compulsada, os indígenas assumiam na configuração da
vida, das instituições e do próprio imaginário nacional, exigia uma nova
postura5.
A pesquisa de Edson Silva com os Xukuru nesse sentido é exemplar.
Ao empreender uma história ao revés não vamos encontrar o regime
tutelar e uma genérica “indianidade”, mas sim outros parâmetros políticos
e identitários, onde os sujeitos históricos precisam colocar em operação
jogos políticos bem distintos, que lhes permitam ter melhores chances
dentro de uma situação histórica e de um cenário de subalternidade em

3
OLIVEIRA, João Pacheco de. “A problemática dos índios misturados e os limites dos
estudos americanistas: um encontro entre antropologia e história” In: Ensaios em Antro-
pologia Histórica. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1999, p.. 99-123.
4
Idem.
5
Em 1988 em um estudo sobre os Tikuna do Alto Solimões (Amazonas) eu propunha
como imprescindível a articulação entre trabalho etnográfico e contextualização histórica,
inclusive apresentando uma ferramenta que operacionalizava a análise, a noção de situa-
ção histórica. OLIVEIRA, João Pacheco de “O nosso governo”: os Tikuna e o regime
tutelar, São Paulo/Brasília, Marco Zero/CNPq, 1988.

18
que estão em cada momento inseridos. A autoatribuição da identidade
de “caboclo” não pode ser lida como um “abandono da condição de
indígena”, mas simplesmente como produto de um regime político que
não oferece espaços nem reconhece direitos aos que venham a explicitar
sua condição étnica.
O avanço da pesquisa levou a romper com as rígidas linhas de
separação entre a história nacional (ou regional) e uma história indígena.
É o que vemos na análise de Edson Silva sobre a história Xukuru. Ao lado
de narrativas sobre algumas de suas principais famílias e de suas práticas
econômicas logo vemos surgir preciosas memórias sobre a participação
desses indígenas na Guerra do Paraguai. Longe de ser apenas um fato
episódico ou exótico, isso propiciou aos Xukuru ocasião para reafirmar
a e sua condição de cidadãos brasileiros e tornar reconhecidos os seus
direitos sobre a terra que habitavam.
Mais adiante podemos verificar que o mesmo raciocínio que se
aplicou ao passado deve ser estendido aos contextos contemporâneos.
Assim o estabelecimento de um campo político onde a utilização da
identidade de indígena tornou-se um fato essencial e corriqueiro, com a
implantação de um Posto Indígena e a imposição de um regime tutelar,
não aboliu de modo algum outras ações e articulações econômicas e
políticas realizadas pelos indígenas, e que não podem ser unicamente
vinculadas a estratégias étnicas. Isso repercutiu tanto no estabelecimento
de redes clientelísticas locais (patronagem) quanto, inversamente, na
importante participação de líderes Xucuru nas Ligas Camponesas e em
outras mobilizações de trabalhadores rurais.
Á medida que as suas investigações ganham maior profundidade,
logo se pode perceber que no estudo de Edson Silva (assim como outros
estudiosos da história indígena no Nordeste ou em outras regiões) os
limites entre o étnico e o não étnico, entre os povos indígenas e a sociedade
nacional, deixam de ser um a priori para serem permanentemente
reconstruídos dentro de cada situação histórica.
Longe de estarmos, à semelhança da Biologia, lidando com
um processo de filogênese, o que a História (e também a Antropologia)
estudam são pessoas e famílias que se integram em coletividades maiores

19
(etnias e nações) e que implicam diferentes escalas analíticas. Que elas
modificam continuamente suas formas e estratégias dentro de um regime
de distribuição de poder, cujas escolhas e potencialidades decorrem
de sua própria singularidade histórica. Que transmitem e atualizam
seletivamente a sua cultura bem como reconstroem de forma permanente
o seu passado6.
Quais serão as novas vertentes teóricas e linhas de pesquisa em
que estes novos esforços investigativos poderão florescer? Ao invés de
buscar isolar as duas ciências em escaninhos universitários separados
tratam-se a meu ver de seguir um movimento de repensar as temáticas
e as práticas das nossas disciplinas a partir do reconhecimento de
novos sujeitos de direito. Ou seja, recontar a história das regiões, nações
e do próprio mundo a partir das coletividades que foram oprimidas e
violentadas, subalternizadas e silenciadas. Os povos indígenas no Brasil
fazem parte desse amplo arco daqueles a que Frantz Fanon chamou de “les
damnés de la terre”, os amaldiçoados pela expansão do colonialismo e do
imperialismo, daqueles que em nome do progresso e da civilização foram
destituídos de seus territórios, de suas culturas e de seu protagonismo
político. Esforços como os empreendidos por Paul Thompson, Peter
Burke, Eric Wolf, Michel Foucault, Edward Said e tantos outros permitem
repensar as disciplinas em novas bases.
Uma mudança de perspectiva teórica não está nunca dissociada
de uma efetiva transformação na postura política e no compromisso ético
dos pesquisadores. É sem dúvida a rigorosa e competente investigação
empreendida por Edson Silva que vem neste livro a propiciar ao leitor
6
A clivagem estabelecida por Lévi-Strauss entre História e Etnologia (vide Antropolo-
gia Estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967, pg. 33/34), longe de contribuir
para a ampliação desses diálogos e colaborações entre estas duas ciências, as aprisiona
dentro de uma esquemática e perigosa dicotomia entre estruturas conscientes e inconsci-
entes. Tal postura de fato impõe uma visão bastante distorcida da História, impedindo-
a de operar com múltiplas escalas e temporalidades, enquanto exclui inteiramente do
domínio da Antropologia o estudo da dimensão consciente, dialógica e argumentativa
das ações sociais. Para uma crítica disso ver OLIVEIRA, João Pacheco de. “Uma etnolo-
gia dos índios misturados? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais”, Mana
4 (1), p. 66-69. (Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0104-93131998000100003).

20
acompanhar a luta dos líderes e famílias Xukuru para recuperar as
terras habitadas por seus antepassados e atualizar as tradições em que
eles mesmos se reconhecem. Mas esse movimento intelectual não seria
possível sem uma atitude não apenas de respeito e empatia para com as
diferenças, dentro de um marco do relativismo como valor acadêmico e
do multiculturalismo como princípio de política pública, mas também de
comprometimento com as estratégias, projetos políticos e utopias dos
próprios indígenas.
Longe de ser um “xucurulógo”, Edson Silva e seus colegas
de geração (historiadores e antropólogos), bem como seus muitos
discípulos, foram parceiros de um movimento social e do exercício
de um protagonismo indígena, produzindo sobre aquele coletivo uma
compreensão de natureza dialógica e participativa. Nesse movimento
intelectual e político, para os estudos históricos do nordeste, eu diria
que Edson Silva por seu compromisso com as lutas indígenas, por
sua erudita e generosa partilha de fontes bem como pelo permanente
estímulo à formação de novos pesquisadores e de incentivo ao debate
crítico, é uma daquelas figuras a que Brecht reservaria o qualificativo de
“imprescindíveis”.
A saga do Cacique Xicão7 e de muitos outros líderes que o
precederam, aqui narrada e analisada, não é de maneira alguma uma
simples reiteração de trajetórias já descritas em nossos livros de História
do Brasil. As dissertações e teses que ora vão se acumulando sobre
diferentes povos, períodos e eventos, que se expressam com muita pujança
nos congressos científicos, em redes de pesquisadores e em coletâneas
recentes8, não estão de maneira alguma apenas aportando mais dados às
interpretações históricas estabelecidas, mas apontam erros, preconceitos

7
Vide, entre outros, FIALHO, Vânia; NEVES, R. C. M; FIGUEIROA, M. (Orgs.). “Planta-
ram” Xicão: os Xukuru do Ororubá e a criminalização do direito ao território. Manaus/
AM: PNCSA/UEA/UEA Edições, 2011.
8
OLIVEIRA, João Pacheco de. (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de
territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro,
Contra Capa, 2012.

21
e incongruências que logo tornarão necessários novos esforços de síntese
e compreensão da história da região e do próprio país.

Museu Nacional, Rio de Janeiro, maio de 2014.


João Pacheco de Oliveira
Professor Titular de Antropologia
do Museu Nacional/UFRJ
Pesquisador do CNPq

22
SIGLAS

ANPUH – Associação Nacional de História


BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento
CEHM – Centro de Estudos de História Municipal (Recife)
Condepe – Companhia de Desenvolvimento de Pernambuco (Recife)
Cimi-NE – Conselho Indigenista Missionário/Regional Nordeste (Recife)
CNPI - Conselho Nacional de Proteção aos Índios
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
CMI – Conselho Mundial de Igrejas.
CPT – Comissão Pastoral da Terra.
Dops – Delegacia da Ordem Política e Social
Fiam – Fundação de Desenvolvimento Municipal do Interior de
Pernambuco
Funasa – Fundação Nacional de Saúde
IAHGP – Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia Estatística.
IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (UNICAMP).
IR4 – 4ª Inspetoria Regional do SPI (Recife).
MEPE – Museu do Estado de Pernambuco.
MN – Museu Nacional (Rio de Janeiro).
PFL – Partido da Frente Liberal
PT-PE – Partido dos Trabalhadores/Diretório Estadual de Pernambuco.
SPI – Serviço de Proteção aos Índios.
Sudene – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste.
UFF – Universidade Federal Fluminense
UFPB - Universidade Federal da Paraíba.
UFPE - Universidade Federal de Pernambuco.
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas.

23
LISTA DE ILUSTRAÇÕES E FOTOGRAFIAS

“Seu” Gercino ......................................................................................................................................... 32


Localização da Área Indígena Xukuru em Pesqueira/PE (mapa) ......... 32
Localização Geográfica das Aldeias Xukuru (mapa) ......................................... 40
“João Mundu”. O caboclo pernambucano do século XIX .............................. 47
Cabocla do Pajeú ................................................................................................................................ 48
Carta de Curt Nimuendajú sobre os Xukuru em 1934 ................................... 67
Panelas Xukuru .................................................................................................................................... 72
Bilhete de José Romão para Curt Nimuendajú ...................................................... 74
Índia Xukuru fazendo panela de barro .......................................................................... 75
O índio José Romão de Siqueira (?) ................................................................................... 76
Casa de índios Xukuru em Cimbres .......................................................................... 77
Família Xukuru em Cimbres .................................................................................................... 77
Mapa Geral da Aldeia Xukuru de Ororubá ................................................................ 99
Índios Xukuru no corredor do Congresso Nacional em Brasília/DF . 108
Área Indígena Xukuru Localização das Aldeias .................................................... 136
Mapa Geográfico Sub-Regiões Climáticas ................................................................... 142
Aldeia Cana Brava ............................................................................................................................. 165
Toré na Vila de Cimbres .............................................................................................................. 172
Festa de N. Sra. das Montanhas na Vila de Cimbres ........................................ 174
Romão José Barbosa e Antero Pereira na Festa de São João,
Cimbres 1963 ......................................................................................................................................... 176
“Seu” Gercino atuando como Bacurau em Toré na Vila de Cimbres
Rua da Mandioca ................................................................................................................................ 184
Atual Bairro “Xucurus” ................................................................................................................... 208
Casa de Milton ....................................................................................................................................... 238
Aldeia Brejinho ..................................................................................................................................... 283
“Usurpados os índios Xigurus” (jornal Folha do Povo, 1950) ................... 307
“Bispo de Pesqueira: comunistas agem no interior nordestino”
(jornal Diário de Pernambuco, 1959) .............................................................................. 309
Cacique “Xicão” em audiência com o Gov. Miguel Arraes (1996) ......... 317
“Seu” Cícero Pereira na Vila de Cimbres ...................................................................... 319
Mata na atual Aldeia Pedra d’Água ................................................................................... 321
Mapa População Xukuru ............................................................................................................. 327
Mapa das aldeias Xukuru do Ororubá ............................................................................ 334

26
Sumário

INTRODUÇÃO
“Seu” Gercino, uma trajetória de vida expressão da história
contemporânea Xukuru. Pelas estradas, nos caminhos e nas
veredas na Serra do Ororubá: as trilhas da pesquisa ....................................... 33

Capítulo I
OS “CABOCLOS” DA SERRA DO ORORUBÁ
A construção do caboclo: a fala oficial, intelectuais e
olhares literários .................................................................................................................................. 47
“Remanescentes”, “caboclos mesclados” e “restos dos
índios Sukurú de Cimbres” ........................................................................................................ 55
Os curibocas, os mamelucos e os “descendentes de índios”:
o olhar do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) ................................................... 82
A população misturada: caboclos, mestiços e afro- índios ............... 87
Os caboclos que são índios: a reflexão contemporânea
sobre o Nordeste indígena ......................................................................................................... 100

Capítulo II
HISTÓRIA E MEMÓRIAS DE MEDIAÇÕES E GUERRAS
Conflitos, alianças e milícias armadas na Serra do
Ororubá ........................................................................................................................................................ 105
Os Xukuru e a Guerra do Paraguai ........................................................................ 111
Os “bravos Voluntários da Pátria” do Ororubá ................................... 114
Guerras, história e memórias ....................................................................................... 118
Memórias Xukuru sobre a Guerra do Paraguai .......................................... 124

27
Capítulo III
VIVÊNCIAS, LUGARES E MEMÓRIAS
“Meu pai falava que aqui não tinha branco” ................................................................ 137
“Morador tinha em todo canto aqui em cima da Serra” .................................. 149
O sítio como espaço de sociabilidades .............................................................................. 164
Cimbres, um espaço de identidade e memórias ....................................................... 176

Capítulo IV
VIAGENS DE IDAS E VOLTAS: A CIDADE, “O SUL” E “O SERTÃO”
Sua majestade, o boi ................................................................................................................ 195
De agricultores a operários nas fábricas .............................................................. 208
Viagens para “o Sul” e para “o Sertão” .................................................................. 218

Capítulo V
QUEM SÃO ESSES ÍNDIOS? O PERÍODO DO SPI
Entre o selvagem, o pitoresco, o moderno e o oficial .............................. 235
A visita do sertanista Cícero Cavalcanti: memórias e
leituras indígenas .................................................................................................................................... 240
Os primeiros contatos com o SPI ............................................................................... 252
A conquista do Posto: a viagem a pé ao Rio de Janeiro
para falar com o Marechal Rondon ...................................................................................... 259
A instalação e o funcionamento do Posto Xukuru:
insatisfação e conflitos indígenas pela assistência oficial ................................ 276
Saberes e rotinas administrativas: retratos do Posto e
dos Xukuru .................................................................................................................................................... 292

Capítulo VI
“ISSO AQUI É NOSSO! ISSO É DA GENTE!”: A PARTICIPAÇÃO
DOS XUKURU NAS LIGAS CAMPONESAS
As Ligas Camponesas em Pesqueira: contra os tatuíras
integralistas ................................................................................................................................................... 303
O perigo comunista e os índios “ignorantes” ................................................... 308

28
As memórias indígenas sobre a Liga Camponesa e a
ocupação de Pedra D’Água ........................................................................................................... 316

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O vivido, o concebido e o expressado: a história a partir
das memórias .............................................................................................................................................. 327

ANEXO
Carta de Agnaldo Xukuru da Prisão ........................................................................ 341

FONTES
Impressas ............................................................................................................................................. 344
Manuscritas ....................................................................................................................................... 344
Entrevistas .......................................................................................................................................... 345

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................................ 347

PÓS-ESCRITO:
Xukuru do Ororubá: história indígena e História Ambiental no
Semiárido pernambucano ........................................................................................ 385
Introdução .............................................................................................................................. 385
As invasões coloniais no Semiárido pernambucano ............................. 388
Os brejos como lugares de fertilidade no Semiárido: os conflitos com
os índios ................................................................................................................................... 390
Os impactos socioambientais da ferrovia ....................................................... 393
Fertilidade em terras indígenas: diversidade da produção no Semiárido
pernambucano .................................................................................................................... 396
A produção agroindustrial e os impactos socioambientais .............. 398
Considerações finais: os indígenas refazendo a vida, reescrevendo a
História no Semiárido ................................................................................................... 400
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 402
FONTES ................................................................................................................................... 403

29
Quando eu morrer não tem mais o que contar?!
Cada um vai contando suas histórias...

Dona Santa, 89 anos, Aldeia Caípe, Serra do Ororubá.


INTRODUÇÃO
“Seu” Gercino, uma trajetória de vida expressão da
história contemporânea Xukuru

Gercino Balbino da Silva, conhecido por “Seu” Gercino”, faleceu


aos 83 anos, em junho de 2007. Nasceu em 1924, em Cana Brava, uma
das muitas localidades espalhadas pela Serra do Ororubá, na área rural
da cidade de Pesqueira. Na época, as terras do antigo aldeamento de
Cimbres, declarado extinto em fins do século XIX, estavam invadidas por
fazendeiros criadores de gado e senhores de engenhos que produziam
cachaça e rapadura. Os ex-aldeados índios Xukuru eram chamados de
caboclos, tendo assim suas identidades negadas e, consequentemente, o
direito as suas terras. Muitas famílias indígenas perseguidas e expulsas se
dispersaram pela região, foram para as periferias das cidades e capitais.
Algumas poucas resistiram em pequenas glebas de terras, os “sítios”,
na sua maioria em locais de difícil acesso. A grande maioria passou a
trabalhar em suas próprias terras, tomadas pelos invasores.
Uma grande produção de leite era contabilizada no município
de Pesqueira. Fartura para poucos, miséria para muitas famílias Xukuru.
Época difícil, rememorada por “Seu” Gercino. Tempos de muita fome,
com muitas crianças mortas por desnutrição, como demonstram os
próprios dados oficiais nos arquivos da Prefeitura Municipal. O menino
Gercino foi um dos sobreviventes.
Sem terras para plantar e viver, os pais de Gercino foram morar
em Sítio do Meio, também na Serra do Ororubá, com os avós do menino,
que trabalhavam “de alugado” para um fazendeiro local. Desde criança,
Gercino enfrentou uma vida dura. Com oito anos, trabalhava no “cabo da
enxada”. Trabalho também “de alugado”, ganhando cinco tostões por dia.
Metade da diária paga a um trabalhador adulto.
Assim como as demais famílias indígenas na Serra do Ororubá,
além do trabalho alugado os familiares de Gercino eram moradores

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 33


nas terras em mãos dos fazendeiros. Moravam “de favor” e plantavam
roça: milho e feijão, para a subsistência. Com o compromisso de plantar
também o capim para o gado do invasor. Muitas vezes, mal dava tempo
para a colheita, pois, com o milho ainda verde, o fazendeiro soltava o
gado, destruindo a roça. Se reclamassem eram expulsos, sem direito
algum, a casa derrubada e o terreno transformado em plantio de pasto.
Na lógica capitalista, terras para bois não era lugar de gente!
Nos tempos em que a seca atingia o Agreste e até a Serra
do Ororubá, “Seu” Gercino acompanhava seus parentes xukurus
que migraram para “o Sul”, como chamavam a Zona da Mata Sul de
Pernambuco, para trabalhar nos canaviais, nas usinas de cana-de-açúcar.
Na esperança de retornar trazendo um pouco de dinheiro para os
familiares que ficaram como os mais idosos, mulheres, crianças, todos
que não puderam ir. Outros iam para o “algodão”, trabalhar em plantios
no sertão paraibano.
A viagem para “o Sul” era muito penosa. Feita a pé. Com poucos
víveres, eram percorridos muitos quilômetros em dois dias. Pela caatinga
seca até a cidade de Caruaru e dali continuavam a caminhada pelas matas
de Bonito, até a região dos canaviais. Enfrentavam vários perigos, além
dos ataques de animais, o risco de assaltos e emboscadas, principalmente
no retorno, quando portavam os valores ganhos no trabalho, às vezes de
até quatro meses.
Mas, mesmo com toda a exclusão imposta pelos fazendeiros,
os Xukuru, espremidos em seus pequenos sítios, como moradores ou
trabalhando nas fazendas e nos engenhos, por meio dos mutirões,
das festas e novenas realizadas em vários locais na Serra do Ororubá,
vivenciavam intensos laços e situações de solidariedade. “Seu” Gercino
recordou os namoros iniciados durante as novenas, muitos se tornariam
futuros casamentos.
Participante no Toré, sempre dançado anualmente na Vila de
Cimbres, em 23 de junho, nas festas de São João, Caô para os índios, e
em 2 de julho e nos festejos de “Nossa Mãe Tamain”, para os católicos
romanos Nossa Senhora das Montanhas, com doze anos Gercino recebeu
a incumbência de substituir o antigo “Bacurau”, o guia na frente dos que

34 Edson Silva
dançam o Toré. Exerceu essa função com maestria, desenvoltura e beleza
até ser impedido pela doença. Pois, mesmo com o peso dos anos de
idade, estava lá firme como o “Bacurau”, durante o Toré, após as reuniões
e nas festas realizadas na Vila.
“Seu” Gercino esteve ao lado do Cacique Xicão, de quem recebia
publicamente expressas manifestações de muita estima e consideração,
nas mobilizações contemporâneas dos Xukuru do Ororubá em busca
de seus direitos. Acompanhou Xicão nas muitas viagens dos xukurus ao
Recife e a Brasília, onde foram pressionar a Funai e os demais órgãos
públicos, bem como realizar articulações com aliados, parceiros da
sociedade civil, nas denúncias das perseguições, violências e assassinatos
de lideranças Xukuru, nas reivindicações pela demarcação das terras
indígenas.
Era morador na Aldeia Pedra d’Água, local considerado sagrado,
onde, no início dos anos 1960 ocorreu, com a participação Xukuru, uma
ocupação promovida pela Liga Camponesa, violentamente reprimida
pelas forças golpistas de 1964. Nas mobilizações dos Xukuru do Ororubá
pelas suas terras, no início dos anos 1990, com a participação de “Seu”
Gercino, Pedra d’Água foi a primeira área a ser retomada de posseiros
que estavam desmatando a localidade. E, por isso, o local se tornou um
marco na organização e mobilização indígena nas retomadas de terras
em poder dos fazendeiros e na reivindicação pela demarcação oficial do
território. Com a demarcação das terras, em 2001, “Seu” Gercino viu a
concretização do sonho tão esperado, que vem possibilitando a fartura, o
vicejar da vida, a dignidade e uma nova etapa na história do povo Xukuru.
A trajetória de vida de “Seu” Gercino é a expressão da história
contemporânea Xukuru! A história de um octogenário, bastante doente,
mas lúcido e muito ativo, que rememorava com sabedoria e vivacidade a
história do povo Xukuru por meio das histórias de seus antepassados, da
sua própria história de vida. Ele partiu. Encantou-se... Foi se encontrar,
como diz um dos cantos do Toré Xukuru do Ororubá, “na aldeia sagrada”,
com tantos outros, mortos ou matados: “Seu” Cícero Pereira, Zé Cioba,
“Seu” Herculano, Dona Du, Xicão, Xico Quelé... idosos e idosas, sábios e
sábias Xukuru do Ororubá, que nos últimos cem anos marcaram a história

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 35


de seu povo, na busca por seus direitos enquanto um povo indígena. Foi
essa história que buscamos pesquisar, compreender e analisar.

“Seu” Gercino.
Arquivo CIMI-NE, s/d.

LOCALIZAÇÃO DA ÁREA INDÍGENA XUKURU EM PESQUEIRA/PE

Fonte: Folha de São Paulo, São Paulo, 07/04/1996, p.11.

36 Edson Silva
Pelas estradas, nos caminhos e nas veredas da Serra do Ororubá:
as trilhas da pesquisa

Esta pesquisa se insere dentre aqueles estudos que vêm sendo


realizados nos últimos vinte anos sobre os chamados índios misturados
no Nordeste. Esses grupos, que se mobilizam desde as primeiras décadas
do século XX, colocando em questão crenças e afirmações sobre o
desaparecimento indígena na Região após extinção dos aldeamentos, a
partir de meados do século XIX, conquistaram considerável visibilidade
política em anos recentes. Constituindo-se, portanto, em um tema a ser
discutido na área de História, malgrado ainda preconceitos e o quase
desconhecimento, expresso pelos escassos estudos sobre o assunto,
nessa área do conhecimento.
A escolha e o interesse para um estudo sobre os Xukuru do
Ororubá, habitantes em Pesqueira/PE, decorreu da forma evidente como,
dentre os grupos que vivenciaram a chamada “emergência étnica”, esse
povo ocupou e ocupa um lugar de destaque em meio às mobilizações,
disputas e articulações políticas. Seja nos embates com os fazendeiros
invasores do território reivindicado por esses indígenas, seja junto aos
órgãos públicos, na busca pelo reconhecimento e garantia de seus direitos,
ou ainda nas articulações com a sociedade civil. A partir de uma pesquisa
documental e em relatos de memórias orais de indivíduos Xukuru do
Ororubá, procurou-se compreender como esse povo, a partir das
experiências vivenciadas, estabeleceu relações com a história e expressa
as interpretações que fazem do passado em função das situações do
presente.
Os conflitos entre os Xukuru e os fazendeiros se tornaram
mais latentes após a extinção do Aldeamento de Cimbres, em fins do
século XIX. Nos anos seguintes os Xukuru tiveram a identidade indígena
sistematicamente negada, ao serem considerados e chamados de caboclos.
Oficialmente não tinham o mínimo dos direitos reconhecidos, como
as pensões previstas em lei para os descendentes dos ex-combatentes
naquela Guerra. Essa situação e as condições em que viviam, com suas
terras espoliadas, motivaram a articulação de apoios para uma mobilização

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 37


Xukuru, em meados dos anos 1950, em busca da assistência do SPI
que atuava no Nordeste desde as primeiras décadas do Século XX, junto
aos Fulni-ô, um grupo indígena vizinho. A conquista do reconhecimento
pelo SPI, porém, não pôs fim aos conflitos por terras, uma vez que o
órgão governamental não tinha uma política fundiária para os índios no
Nordeste, permanecendo as disputas nos anos seguintes.
Em meados dos anos 1980 os Xukuru se mobilizaram e
participaram ativamente nos debates em torno da Assembléia Nacional
Constituinte e para elaboração da nova Constituição, no ano de 1988.
Apoiados e custeados pelo Cimi-NE, grupos de Xukuru, juntamente com
os de outros povos indígenas no Nordeste, viajaram por diversas vezes a
Brasília, onde participaram de encontros de estudos, seminários, etc., e
para fazer pressões sobre os deputados que discutiam a elaboração da
nova Constituição.
A presença dos Xukuru na Capital Federal, em conjunto com
índios vindos das demais regiões do Brasil, num momento político tão
significativo, em muito impulsionou a organização e mobilização Xukuru
nas reivindicações pelas terras. Após retornarem da Capital Federal,
assessorados pelos missionários do Cimi-NE os Xukuru promoveram
reuniões em várias localidades na Serra do Ororubá, para relatar os
acontecimentos vivenciados em Brasília, bem como tratar sobre os direitos
indígenas garantidos na nova Constituição. Nesse processo, destacou-se
a liderança de Francisco de Assis Araújo, o “Xicão”, que, mais tarde, seria
escolhido Cacique do povo Xukuru.
No final dos anos 1980 a afirmação, pelos Xukuru, do direito às
terras reivindicadas, acirrou os conflitos entre os índios e os fazendeiros,
na Serra do Ororubá, e nesse período os indígenas repetidamente se
reportaram a acontecimentos do passado, para legitimar os direitos
sobre o território reivindicado. Essas memórias remetem ao século XIX
quando da participação dos índios, como voluntários da pátria, na Guerra
do Paraguai, e o processo de extinção do Aldeamento de Cimbres, na
Serra do Ororubá, em 1879. Ao afirmarem os direitos sobre as terras
onde habitam, em constantes conflitos com os fazendeiros invasores, os
Xukuru dizem que esses direitos lhes foram garantidos pelo Governo

38 Edson Silva
Imperial, como recompensa pela participação dos seus antepassados na
Guerra do Paraguai.
O estudo, portanto, procurou a partir das memórias orais
Xukuru e registros escritos, compreender as conexões temporais entre
as mobilizações indígenas pelas terras, nos anos 1980, e as ocorridas
na década de 1950, quando os Xukuru conquistaram o reconhecimento
oficial, com a implantação de um Posto do SPI na Serra do Ororubá.
Em ambos os períodos, os Xukuru afirmaram seus direitos baseados nas
memórias que seus antepassados receberam as terras como recompensa
pela participação na Guerra do Paraguai, em um contexto de disputas
pelas terras do oficialmente extinto Aldeamento de Cimbres/Ororubá, em
fins do século XIX. Procuramos então evidenciar os nexos estabelecidos
pelos índios, por meio de suas memórias orais, com o século XIX e os
anos 1950/1960, e ainda em fins da década de 1980, quando ocorreu o
acirramento dos conflitos nas disputas entre índios e fazendeiros pelas
terras na Serra do Ororubá, após a participação dos índios nas discussões
para a elaboração da Constituição de 1988, que garantiu os direitos
indígenas. A partir da pesquisa dessas memórias e em fontes escritas,
buscamos demonstrar como os Xukuru vivenciaram diferentes situações
e elaboraram estratégias para afirmação da identidade e reivindicação
dos direitos sobre as terras.
Para a elaboração do estudo foram realizadas diversas
entrevistas e registrados relatos orais das memórias Xukuru. Utilizamos
também, em alguns momentos, além de uma coletânea de depoimentos
Xukuru publicados, as informações coletadas por outros estudiosos que
pesquisaram aquele povo com diferentes abordagens. Realizamos uma
pesquisa documental em diferentes fontes manuscritas e impressas dos
séculos XIX e XX, somando-se a consulta em jornais publicados em
Pesqueira e no Recife, entre os anos 1940-1980, disponíveis no Arquivo
Público de Pernambuco e microfilmados na Fundação Joaquim Nabuco,
no Recife. Além disso, buscamos fontes em outros arquivos, como os
documentos produzidos por Curt Nimuendajú, disponíveis no Museu do
Estado de Pernambuco (MEPE) e no Museu Nacional/RJ, com informações

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 39


sobre os Xukuru contidas em correspondências pessoais, fotografias e
relatórios elaborados pelo etnólogo alemão, que esteve na Serra do Ororubá
no início dos anos 1930. Como também consultamos, no acervo do Museu
do Índio/RJ, a documentação do SPI sobre o Posto Indígena Xucuru e
os registros da Inspetoria 4ª Regional do SPI, relacionados àquele povo.
Acrescentamos ainda ao texto algumas imagens, no sentido de contribuir
para uma maior compreensão do assunto estudado.
A pesquisa em documentos históricos procurou situar os
acontecimentos a que remetem as memórias Xukuru, todavia é sempre
importante ter presente os interesses na produção desses documentos, em sua
grande maioria nem sempre favorável aos indígenas. Nesse sentido, procurou-
se evidenciar a importância dos relatos das memórias orais, isso porque,
(...) o uso das fontes orais permite não apenas incorporar
indivíduos ou coletividades até agora marginalizados ou
pouco representados nos documentos arquivísticos, mas
também facilita o estudo de atos e situações que a racion-
alidade de um momento histórico concreto impede que
apareçam nos documentos escritos. Assim, portanto, as
fontes orais possibilitam incorporar não apenas indivíduos
à construção do discurso do historiador, mas nos permite
conhecer e compreender situações insuficientemente estu-
dadas até agora. (ALCAZAR I GARRIDO, 1992/1993, p. 36).

As entrevistas foram realizadas utilizando questões abertas, para


favorecer ao/à entrevistado/a um relato mais livre e amplo, interrompido
algumas vezes quando necessário um melhor esclarecimento dos assuntos
narrados. Privilegiamos entrevistar os/as índios/as mais velhos/as, pessoas
com idades entre 50 e até mais de 80 anos, que em suas narrativas
rememoram lembranças de vivências em suas infâncias e juventudes,
objetivando obter informações sobre a questão da terra, os conflitos com
os fazendeiros, as disputas internas, as relações de trabalho, o cotidiano,
as formas de lazer, as cerimônias e os ritos religiosos, as memórias sobre
a Guerra do Paraguai, as mobilizações para a instalação e as relações
com o Posto do SPI, e também quais os indícios que aparecem delas na
documentação pesquisada.

40 Edson Silva
Na elaboração do primeiro capítulo a finalidade foi apresentar e
analisar como, desde os fins do século XIX, após a extinção dos aldeamentos
e até os anos 1960, as autoridades oficiais e diferentes pesquisadores, em
artigos e livros publicados, sistematicamente questionaram ou negaram
a existência de uma população indígena na Serra do Ororubá, onde
atualmente habitam os Xukuru. Encerramos esse capítulo retomando
brevemente, baseados a partir das análises de João Pacheco de Oliveira,
a discussão sobre os índios Nordeste contemporâneo.
Procuramos demonstrar, no segundo capítulo, como os Xukuru
recorrem às memórias sobre a Guerra do Paraguai, para afirmar a
legitimidade de suas reivindicações do território disputado com os
fazendeiros. A opção foi fazer uma discussão fundamentada na pesquisa
documental e nas falas dos entrevistados. A pesquisa documental
procurou situar o quadro histórico a que se remetiam as narrativas das
memórias indígenas.
No capitulo terceiro buscamos descrever a Serra do Ororubá
enquanto espaço de disputas entre índios, pequenos agricultores e
fazendeiros. A partir de relatos orais que os indígenas ouviram de seus
antepassados sobre a posse e o uso da terra, e de uma bibliografia em
que foram citados relatos e esboçadas imagens do final do século XIX e
início do século XX, sobre as condições ambientais na Serra, invadida
pelos grandes criadores de gado, e nas áreas úmidas, por engenhos de
cana produtores de rapadura, com o trabalho da mão-de-obra indígena.
Foram utilizadas as informações sobre a produção industrial de doces
e conservas, em fábricas de propriedade dos fazendeiros, instaladas em
Pesqueira nos anos 1950, com plantios de frutas em partes consideráveis
das terras indígenas, bem como os indicadores de pobreza, fome,
mortalidade e desnutrição infantil ocorridas na Serra e nas periferias
urbanas do município, à margem do progresso industrial, principalmente
durante as secas periódicas na região. Foram evidenciados ainda os
sítios enquanto espaços de sociabilidades por meio das festas, novenas,
o trabalho em mutirão e as relações do cotidiano. Por fim, Cimbres foi
tratada como espaço de identidade e de memórias, expressas nas festas
religiosas e rituais anuais e, principalmente, na dança do Toré.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 41


O quarto capítulo, “Viagens de ida e volta: a cidade, ‘o sul’ e ‘o
sertão’”, baseado nas memórias orais indígenas, traz uma discussão sobre os
deslocamentos de índios Xukuru que, em virtude das terras para plantar e
viver estarem invadidas pelos criadores de gado, ou pelos plantios destinados
à fábrica Peixe, ou ainda por causa das secas que periodicamente atingiram
a Serra do Ororubá, foram trabalhar como operários nas indústrias urbanas
em Pesqueira. Ou migraram para trabalhar na lavoura canavieira na Zona da
Mata Sul pernambucana e Norte de Alagoas ou nas plantações de algodão
no Sertão da Paraíba. A reflexão foi realizada tendo presentes também os
estudos que tratam das migrações sazonais de trabalhadores nas regiões de
produção do açúcar.
Foi abordado, no quinto capítulo, o período das relações dos
índios com o SPI. Esse capítulo inicia discutindo a visão corrente sobre os
índios em Pesqueira, partindo das reflexões de um artigo publicado sobre
a apresentação do Toré Xukuru por ocasião da recepção do novo bispo
diocesano. Em seguida tratamos do sentido atribuído pelos indígenas à visita
do sertanista Cícero Cavalcanti na Serra do Ororubá. Com base em registros
oficiais e em memórias indígenas dos primeiros contatos dos índios com o
SPI, abordamos a viagem a pé realizada por três xukurus ao Rio de Janeiro,
onde foram falar com Rondon, conseguindo a instalação de um Posto do
órgão indigenista na Serra. Discutimos ainda, a partir da documentação
do órgão indigenista e relatos indígenas, as relações com o Posto Xucuru e
os conflitos resultantes da instalação do Posto no Sítio São José e não em
Brejinho, de onde partiram os índios que foram ao Rio de Janeiro.
No sexto e último capítulo, a partir de registros das memórias orais
indígenas, jornais, da documentação do Dops e relatórios oficiais do período,
discutiremos a mobilização e participação dos Xukuru nas Ligas Camponesas
em Pesqueira, na ocupação da área da Pedra d’Água. Foram evidenciadas
as memórias indígenas sobre a participação em uma polícia indígena, na
organização camponesa e na ocupação da citada área, em um quadro social
de exploração, conflitos, violências e expulsões de antigos moradores pelo
avanço agroindustrial na Serra do Ororubá.
Para a elaboração das considerações finais, partimos das constatações
em um texto publicado pelo Governo do Estado de Pernambuco, em

42 Edson Silva
1981, no qual os Xukuru são descritos como remanescentes de caboclos
“totalmente aculturados”, confrontando as afirmações do texto oficial
com a abordagem histórica das situações evidenciadas em nosso estudo.
Evidenciamos principalmente a mobilização Xukuru que apoiados pelo Cimi-
NE, após participarem do processo da Assembléia Nacional Constituinte, em
fins da década de 1980, passaram a reivindicar os direitos às suas terras,
garantidos na Constituição aprovada em 1988. Liderados pelo Cacique
“Xicão” posteriormente os Xukuru iniciaram as retomadas das terras sob o
domínio dos fazendeiros, justificando seus direitos baseados nas memórias,
pois as terras foram recompensas pela participação de seus antepassados
como voluntários na Guerra do Paraguai. As memórias Xukuru se situam
na dinâmica das experiências históricas, a partir do vivido, o concebido e o
expressado.
As análises em nossa pesquisa foram alicerçadas pelas reflexões de
estudos sobre as memórias e as suas relações com a História, em autores
clássicos como Maurice Halbwachs, como também nas idéias recentes de
Michael Pollak e Verena Alberti, sobre o assunto. Permeia a abordagem ainda
uma visão em uma abertura para o diálogo multidisciplinar com as recentes
discussões antropológicas sobre os índios no Nordeste, que favorecem o
estudo proposto.
A bibliografia utilizada em função da documentação primária e
das obras datadas analisadas, bem como das abordagens que adotamos, se
baseia na produção mais recente a respeito dos temas presentes no estudo
e sobre os povos indígenas. Nesse sentido, além das produções atuais e os
vários artigos publicados em periódicos que de alguma forma trataram de
assuntos relacionados à nossa pesquisa, recorremos também a dissertações e
teses acadêmicas. No caso específico sobre os Xukuru, foram de grande valia
o estudo de Vânia Fialho (SOUZA, 1989) e o de Kelly Oliveira (OLIVEIRA,
2006).
No primeiro estudo originalmente uma pesquisa para o Mestrado
em Antropologia, foi baseado na observação participante e em entrevistas,
além de fontes documentais dos séculos XIX e XX. A partir do conceito de
“campo intersocietário” elaborado por João Pacheco de Oliveira e na idéia
de “drama social” proposta por Victor Turner, foi analisada a afirmação

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 43


de uma etnicidade Xukuru em meio às situações de conflitos (os
dramas) geradas no processo de identificação entre 1988 e 1991 para a
demarcação oficial do território Xukuru. Para a autora, os dramas sociais
vivenciados remetem a um processo histórico explicativo da formulação
do modo de ser, da etnicidade/identidade Xukuru.

População: ~ 10.000 indivíduos em 2.165 famílias. Serra do


Ororubá, Pesqueira/PE a 215 km do Recife.
Fonte: Projeto de Capacitação e Assessoria Técnica/PCAT-Xukuru,
2007.

No segundo estudo, originalmente uma pesquisa realizada entre


2004 e 2006 para o Mestrado em Sociologia, a autora analisou o processo
de organização política e simbólica Xukuru e a formação de lideranças
indígenas e as inter-relações dos agentes envolvidos nesse processo. A
pesquisa, baseada em entrevistas e fontes documentais, contemplou o
período desde os primeiros contatos com o SPI na década de 1940 até
os anos 1990.
Ambas as pesquisas, se referiram às questões e temas expressados
nas memórias orais Xukuru: como a idéia do caboclo, a Guerra do

44 Edson Silva
Paraguai, o período da tutela do SPI, as migrações indígenas e as Ligas
Camponesas, que não foram aprofundados em razão da natureza e das
propostas dos objetos daqueles dois citados estudos. Em nossa pesquisa
retomamos e procuramos então discutir a partir de uma abordagem
histórica esses temas.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 45


Capítulo I

OS “CABOCLOS” DA SERRA DO ORORUBÁ

“Cadê os meus cabôcos,


Eu mandei chamar,
Cabôcos véios, do Orubá”.
Canto do Toré dos Xukuru do Ororubá

“Chamavam a gente dos cabôcos. Os cabôcos da Serra”.


José Gonçalves da Silva, “Zé Cioba”, 82 anos,
Bairro Portal, Pesqueira

“Chamavam os cabôcos da Serra do Ororubá. Não era


Xukuru, era Ororubá”.
(Cassiano Dias de Souza, 75 anos, Aldeia Cana Brava).

“Aqui chamava os cabôcos. Nesse tempo, chamava os cabô-


co, mas não tinha valor não. Era tudo uma coisa sem valor”.
Manoel Balbino Silva, “Mané Preto”, 73 anos,
Aldeia Cana Brava

“Eles chamavam os cabôcos. Os cabôcos de Cana Brava. Os


cabôcos... era assim. Até maltratava às vezes. Dizia que os
cabôcos daqui tudo era ladrão. (risos) Os fazendeiros tinha
esse dizer. Que os cabôcos tudo era ladrão! (risos). Eu disse,
‘Não. Menos eu! Nunca roubei nada de ninguém!”.
Brivaldo Pereira de Araújo, “Zé Grande”, 82 anos,
Aldeia Cana Brava

A construção do caboclo: a fala oficial, intelectuais e


olhares literários

A partir da segunda metade do século XIX intensificou-se a defesa


oficial do desaparecimento dos índios em Pernambuco e da extinção dos
aldeamentos. Quem eram os índios? Como eram vistos pelas autoridades
provinciais e quais as bases da política indigenista oficial naquele período.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 47


As afirmações do Diretor Geral dos Índios sobre os habitantes dos antigos
aldeamentos nos apontam respostas:
Em geral os índios são inclinados a embriaguês; ao furto e a
devassidão; a preguiça os domina; a pesca e a cassa são a
sua habitual occupação; tem gênio bellicoso, e são valentes,
o que prova que ainda se ressentem de sua selvageria. Elles
são susceptíveis de educação e ensino. Perdem-se bons
músicos, etc., etc..9

Essas imagens serão repetidas em vários discursos oficiais,


reproduzidas em escritos literários e estudos acadêmicos posteriores. A
extinção dos aldeamentos estava baseada na idéia de assimilação dos
índios, como enfatizava a mesma autoridade: “Hoje talvez fosse mais
conveniente confundir esse resto de índios com a massa da população; e
o governo dispor de suas terras como milhor lhe parecesse; porque isto de
Aldêas é uma chimera”.10 (Grifo nosso). Com essa idéia de que as aldeias
eram uma “chimera”, uma fantasia, e que por isso não havia mais razão
para existirem. Posseiros, senhores de engenho e latifundiários, sobretudo
após a Lei de Terras de 1850, como se constata na documentação
pesquisada, ampliaram suas invasões nas terras dos antigos aldeamentos
em Pernambuco.
O discurso oficial nesse período justificava a medição, demarcação
e loteamento das terras indígenas, como forma de solucionar conflitos
entre os índios e os invasores, o que legitimou arrendatários tradicionais
que paulatinamente tinham se apossado das terras dos aldeamentos.
Encontramos sistematicamente, nas falas oficiais, a afirmação de que
os índios estavam “confundidos com a massa da população”. Somava-
se à negação da identidade dos índios, muitos pedidos de invasores dos
territórios indígenas e autoridades, para declaração legal da extinção
dos aldeamentos, em razão do suposto desaparecimento dos grupos
indígenas (PORTO ALEGRE, 1992/1993; SILVA, 1995; 1996).
9
Ofício de Francisco Caboim (Barão de Buíque), Diretor Geral interino dos Índios da
Província de Pernambuco, em 15/11/1870, ao Presidente da Província de PE. APE, Cód.
DII-19, fl.175.
10
Idem, nota anterior.

48 Edson Silva
Os habitantes dos lugares onde existiram antigos aldeamentos
passaram a ser chamados de caboclos, condição muitas vezes assumida
por eles para esconder a identidade indígena diante das inúmeras
perseguições. A essas populações foram dedicados estudos sobre seus
hábitos e costumes, considerados exóticos, suas danças e manifestações
folclóricas, consideradas em vias de extinção, como também aparecerem
nas publicações de escritores regionais, cronistas e memorialistas
municipais que exaltam de forma idílica a contribuição indígena nas
origens e formação social de cidades do interior do Nordeste.
Escritores e vários estudiosos, como Gilberto Freyre, Estevão
Pinto, Câmara Cascudo, dentre outros, reafirmaram o desaparecimento
dos indígenas no processo de miscigenação racial, integração cultural e
dispersão no conjunto da população regional. Discutiremos, a seguir,
alguns desses textos que, a partir dessa perspectiva, se referiram aos
Xukuru, na ordem cronológica em que eles foram publicados, desde as
primeiras décadas do século XX até os anos 1960, período contemporâneo
ao recortado para o início do nosso estudo.
A imagem do caboclo aparece em obras literárias sobre
fatos pitorescos, recordações, “estórias” das regiões Agreste e Sertão
pernambucano. Como personagens “típicos” e curiosos que buscavam se
adaptar às novas situações de sem-terras, vagando em busca de trabalho
para sobrevivência, a exemplo João Mundu, no conto “O caboclo”,
publicado por Estevão Pinto no livro Pernambuco no século XIX. Esse
livro, de 1922, é uma coletânea de crítica de costumes e descrições de
tipos populares. No referido conto, o autor respondeu a sua própria
pergunta: “Quem era João Mundu? O caboclo pernambucano, o cruzado
de elementos dispares e formadores, a soldagem que se diluía na fluidez
dos termos — cariboca, mamaluco, ‘tapanhuma’, carijó...”. (PINTO, 1922,
p.105).
No texto, lemos ainda:
Seus avós, cariris ou sucurus, occupavam-se em fazer os ar-
cos e tacapes, fabricavam partazanas da branca ‘ubiritanga’
e cortavam, donde lhes parecia melhor, da sapucaia ou do
genipapeiro, os eixos de moer e o remos de canoa...João

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 49


Mundu, não! Custava-lhe muito menos enfiar as continhas
de côco, enfeixar as vassouras de piaçaba e perfurar os canu-
dos de cachimbo (PINTO, 1922, p.106). (Grifamos).

Segundo esse trecho, não se sabia ao certo de onde viera o


caboclo João Mundu. Apenas que chegara maltrapilho e cheio de piolhos.
Fizera um casebre de barro, coberto com palhas de carnaúba, adaptado
às suas necessidades e hábitos no mínimo exóticos: “Como cabide, um
prego; como leito, uma rêde. A mobília? A esteira. A baixella? A caneca.”
No local da nova moradia a terra era exuberante e ao redor da casa
existiam muitas frutas silvestres; todavia, diz o autor: “o caboclo morria
de fome e terminava na miséria”. (PINTO, 1922, p.106). Esse era o seu
destino.
Quem era João Mundu? Para Estevão Pinto, era a imagem
do caboclo, do habitante do interior: “João Mundu era o sertanejo
pernambucano da primeira metade do século XIX”. Mas também de
indiscutíveis origens indígenas, “Filho dos tapuios de frechas farpadas,
dos ‘paparicós’ de Ararobá ou dos ‘carijós’ de Rodelas, trazia nas veias as
superstições ferrenhas de seus antepassados”. O autor metaforicamente
se referiu aos Paratió, habitantes, juntamente com os Xukuru, na Serra
do Ororubá (Cimbres), e aos Fulni-ô (Carnijós)11, todavia relacionando
esses últimos ao Sertão de Rodelas, região com reconhecida presença
de populações indígenas. Mais adiante em seu texto, reafirmava o autor
a idéia do processo de miscigenação racial: “João Mundu descendia
dos bugres. Ponto de conjunção de dois elementos formadores, um
authocthene e outro alienígena”. (PINTO, 1922, p.107).
Observemos em seguida a figura de João Mundu pintada a bico
de pena, representando a imagem de um caboclo sertanejo descrita por
Estevão Pinto.

11
Citando o geólogo norte-americano John C. Branner que estivera entre os índios em
Águas Belas no último quartel do século XIX, Estevão Pinto escreveu; “segundo Branner,
a tribo nativa de Águas Belas, denominada pelos alienígenas de Carnijó, chamava-se a si
própria de Fulniô, usando ainda uma espécie de designativo para distinguir-se dos demais
grupos de silvícolas do Brasil” (PINTO, 1956, P.61).

50 Edson Silva
“João Mundu”, o caboclo pernambucano do
século XIX.

“O cruzado de elementos díspares”.

Desenho que ilustra a crônica “O caboclo” (In:


PINTO, 1922, p.106)

Para Pinto (1922), da coragem e virtudes do caboclo João Mundu


e dos seus antepassados restara o culto ao nativismo e da literatura
indianista, de um índio idealizado do passado. Todavia, no presente:
Tal herança de tangas fez João Mundu viver constantemente
espoliado. Se era “lavrador” dividia a cana com o senhor de
engenho e descurava do terreno, porque sem segurança de
um contacto, podia ser expulso a qualquer hora. A mesma
coisa se “morador”. (PINTO, 1922, p.109).

O autor finda seu texto explicando a razão de Euclides da Cunha


ter enfatizado ser o sertanejo um forte, dizendo Pinto com isso que o
lugar ocupado por João Mundu, a imagem do caboclo, era também
idealizada. Trata-se de uma visão em que historicamente os expropriados
eram justificados e justificáveis nas suas condições, em um cenário no
qual eles eram meros espectadores, e por esse motivo condenados ao
desaparecimento no suposto curso linear da formação da sociedade e da
história do país.
Outro escritor que se referiu aos caboclos foi Luis Cristovão dos
Santos. No livro Caminhos do Pajeú, de 1954, no conto “Vingança de

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 51


caboclo”, lemos: “Entrou em silêncio, colocou a enxada ao canto da
saleta humilde e pendurou o aió de caroá no gancho de madeira fincado
na parede”. E em outros trechos: “Cabocla olhava tudo aquilo, também
em silêncio, o coração sangrando”. “Por isso cabocla ficou quieta”. “Então
cabocla rememorou tudo”. (SANTOS, 1954, p.87-89). (Grifamos). O
citado “aió de caroá” é uma bolsa típica ainda hoje fabricada e usada
pelos Kapinawá, habitantes em Buíque, cidade próxima a Pesqueira. Na
descrição de um drama sobre amor, traição e despedida, a personagem
não foi nomeada, apenas chamada de “cabocla”.
Para Luis Cristovão dos Santos o Agreste e Sertão eram povoados
de caboclos, como expressa a legenda da fotografia abaixo que consta em
um dos seus livros.

Cabocla do Pajeú, apanhando água na cacimba. Será mãe de vaqueiros e de


“cabras” valentes.
Fotografia impressa no livro Caminhos do Pajeú (SANTOS, 1954, p.94).

Em outro livro publicado em 1970, intitulado Caminhos do


Sertão: crônicas, contendo fotografias em preto e branco de homens
e mulheres sertanejos, encontramos descrições das lembranças das
caçadas do pai de Luís Cristovão em Pesqueira:

52 Edson Silva
E continuou caçando, já agora por tudo que fosse sítio dos cabo-
clos xucurus, que plantavam roças nas quebradas da Serra do
Ororubá e bebiam aguardente, depois das novenas de maio e
da Senhora Sant’Águeda, resadas na capelinha de “Pai Simplício”.
(SANTOS, 1970, p.47) (Grifamos).

A citada “capelinha” é a dedicada a São José e está localizada na atual


Aldeia São José, habitada pela antiga Família Simplício, da qual era membro
Petronilho Simplício, o primeiro funcionário do Posto do Serviço de Proteção
aos Índios/SPI entre os Xukuru.
Na crônica “O sabiá da Serra”, ainda no mesmo livro, o autor recordou
lugares onde estavam os caboclos,
Defronte, se levantava a majestade verde da Ororubá, cuja lomba-
da era cortada pelo sinuoso caminho, antiga vereda dos xucurus,
que levava a gente para o açude da ‘Pedra d’Água’, para a en-
genhoca de Seu ‘Mingo’, também para as laranjeiras dos ‘Afetos’
de Seu Veríssimo, ou para o sitio ‘São José’ do caboclo Arcelino, e,
cujo riacho havia um poço azulado onde eu mergulhava, pulando
dos galhos de uma ingazeira. (SANTOS, 1970, p.67). (Grifamos).

Na mesma crônica, lemos ainda:


Furando para mais longe desembocava na vila de Cimbres, ...
Padre Rafael, festejava a Senhora Sant’Ana, ao som do bombo
da zabumba, batendo o dia todo, enquanto os caboclos bebiam
cachaça, ‘mode esquentá a cruviana’ e a sanfona gemia...(SAN-
TOS, 1970, p.68). (Grifamos).

Na pesquisa documental e nas entrevistas realizadas para elaboração


de nossa pesquisa, essas localidades citadas nas crônicas de Luis Cristovão
aparecem como antigos lugares de moradias e espaços de presença de famílias
Xukuru.
Lendo os trechos aqui transcritos, cabe perguntar: quem eram esses
autores aqui citados? Quais os destinatários de suas obras? Qual o alcance
delas sobre o público leitor? Quais influências que as imagens, metáforas,
descrições por eles usadas trariam sobre o conhecimento a respeito dos
índios?

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 53


O então escritor Estevão Pinto, no texto “O caboclo” publicado
no começo da década de 1930 e anteriormente analisado, reafirmou
a idéia do caboclo como resultado do amálgama das raças, que gerou
um tipo curioso, situado entre um passado primitivo longínquo dos
seus ancestrais e a situação dos novos tempos: o caboclo. O significado
intelectual e a relevância da produção desse autor serão analisados nos
tópicos seguintes.
Os livros de Luís Cristovão dos Santos tiveram uma boa acolhida
da crítica, do público leitor e o escritor recebeu vários prêmios literários.
Uma breve análise de sua biografia revela suas vinculações com as
elites sociais do interior de Pernambuco. Em 1953, ele publicou Carlos
Frederico Xavier de Brito: o “bandeirante” da goiaba Trata-se de um
livreto de 29 páginas, contendo a biografia laudatória e bajulatória, como
bem expressa o subtítulo, do fundador da fábrica de doces Peixe. O
texto foi escrito por ocasião do centenário de nascimento do Coronel da
Guarda Nacional, considerado o grande industrial pioneiro de Pesqueira,
patriarca da Família Brito tradicional invasora das terras do Aldeamento
de Cimbres, como discutiremos nos próximos capítulos.
O livro Caminhos do Pajeú (SANTOS, 1954) foi prefaciado pelo
reconhecidíssimo escritor José Lins do Rego. Tal prefácio, além de ter
sido publicado em jornais de grande circulação no Recife, foi também
reproduzido no jornal A voz de Pesqueira. Luís Cristovão era natural
de Pesqueira, onde seu pai foi farmacêutico. O autor viveu parte de sua
infância no Sertão pernambucano, na cidade de Custódia, retornando
posteriormente ao lugar aonde nascera. Estudou Direito no Recife.
Como advogado e promotor público nas décadas de 1950/60, conheceu
e atuou em fazendas, vilas, povoados e cidades do Agreste e Sertão
pernambucano. Seus livros de crônicas evocam suas lembranças, com
narrativas sobre diversos personagens todos ambientados nas regiões
onde atuou: coronéis, políticos, fazendeiros, padres, cangaceiros, cegos,
cantadores, dentre outros. E também aparece a figura do caboclo, visto
ora como base da formação social e cultural, ora como pária de uma
sociedade sertaneja caminhando com passos largos para a civilização.

54 Edson Silva
“Remanescentes”, “caboclos mesclados” e “restos dos
índios Sukurú de Cimbres”
Para o verbete “caboclo” contido no Vocabulário de
Pernambucano, Pereira da Costa fez uma pesquisa do uso da palavra
desde os primeiros tempos da colonização do Brasil e seu emprego
por administradores, missionários e viajantes, pelos séculos seguintes,
concluindo que,
O vocábulo, porém, que out’ora tinha uma expressão depre-
ciativa, injuriosa mesmo ao infeliz aborígene como vimos,
constitue hoje, e vinda naturalmente já de longe, uma dicção
familiar de affecto, intima, carinhosa mesmo: Meu caboclo;
caboclo velho; que bonita cabocla! Phrase e ditados popu-
lares: Somos caboclos na mesma aldeia; Espingarda em mão
de caboclo; Caboclo não quer mingáo; mingáo no caboclo;
Caboclo gato põe ovo? (PEREIRA DA COSTA, 1976, p.145).
(Grifos do autor).

Na definição do vocábulo “Toré”, ainda na mesma obra, o autor


depois de afirmar ser um tipo de flauta feita de taquara usada pelos
índios, escreveu: “antiga dança dos íncolas, e tradicionalmente ainda em
voga, nomeadamente, entre os semi-selvagens de Cimbres” (Idem, p.754).
(Grifamos).
O conhecido e aclamado como folclorista, jornalista, escritor e
historiador autodidata Francisco Augusto Pereira da Costa, chamado
apenas Pereira da Costa, foi um pesquisador incansável e publicou
uma vasta obra, resultado de uma paciente e longa pesquisa sobre a
história de Pernambuco. De origem muito humilde, Pereira da Costa só
conseguiu concluir o Curso de Direito aos 40 anos. (ANDRADE, 2002). Foi
funcionário público e deputado estadual. Suas pesquisas favoreceram o
seu reconhecimento público como um “homem de ciência” (SCHWARCZ,
1993), tornando-o sócio do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico
Pernambucano (IAHGP).
Em 1916, Pereira da Costa começou a divulgar, na Revista do
IAHGP, os seus Apontamentos para um vocabulário pernambucano. A

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 55


publicação foi interrompida, por falta de recursos, na letra B. Após a sua
morte, em 1923, seus familiares doaram os originais completos do que
veio a ser publicado, na íntegra, pelo IAHGP, em 1937, como Vocabulário
Pernambucano. O livro é uma espécie de coletânea minuciosa de
verbetes e expressões corriqueiramente faladas e escritas no Estado de
Pernambuco e regiões circunvizinhas.
Se confrontarmos o que escreveu Pereira da Costa sobre o
verbete “caboclo” e aquilo que encontramos em documentos oficiais
do último quartel do século XIX e também na produção literária
contemporânea ao autor, constatamos que o pesquisador pernambucano
estava possivelmente equivocado quando afirmou ser “caboclo” uma
expressão “familiar de affecto, intima, carinhosa”. A própria expressão
citada por Pereira da Costa: “Caboclo gato põe ovo?”, denota a visão com
a atribuição, no mínimo, de imbecilidade ao chamado “caboclo”.
A referência que o Toré era uma expressão dos “semi-selvagens
de Cimbres” revela que Pereira da Costa comungava com a idéia cultivada
no IAHGP, pois: “Quando se tratou de tematizar a questão racial, o
Instituto mostrou, na saída via branqueamento, a mesma atitude que
caracterizava até então a sua atuação” (SCHWARCZ, 1993, p.125). Na
definição do autor sobre o Toré temos a defesa da superioridade da raça
branca, sendo os índios moradores de Cimbres vistos como bárbaros,
o que os aproximava da outra visão do desaparecimento indígena, na
figura irracional e primitiva do caboclo. Outros autores contemporâneos
e confrades de Pereira da Costa no IAHGP comungavam dessas idéias.
No artigo “A religião dos índios e dos negros de Pernambuco”,
publicado em 1922 na Revista do IAHGP, Pedro Roeser, depois de
discorrer sobre “as práticas supersticiosas” dos Carijós de Águas Belas,
que dançavam o Toré e guardavam silêncio total sobre o ritual sagrado
do Ouricuri, reproduziu um relato do Vigário da Freguesia de Cimbres,
Pe. Raphael de Meira Lima, sobre “os caboclos de Cimbres”:
Esses índios conservam a tradição de uma dansa religiosa,
chamada o Toré, a qual elles executam todos os annos, na
villa, nas vésperas de S. João e de São Pedro. Apresentam-se
vestidos com um efeite de palhas e ramos, trazendo a mais

56 Edson Silva
uma grande canna de assucar nos hombros. Assim passam
uma noite com uma dansa monótona, repetindo a mesma
cantiga, acompanhada ao som de 2 ou 3 pifanos.

Para o Padre Raphael, as manifestações indígenas não passavam


de “divertimentos” que eles tinham como uma cerimônia religiosa de
devotos:
Elles não há dúvida, dão ou pretendem dar taes divertimentos
como uma cerimônia religiosa, tanto mais que há quem
faça promessa para dansar o Toré em honra de N. Snra. Das
Montanhas, a quem tem elles muita devoção. Dizem elles,
que esta imagem appareceu no tempo da cathechese dos
religiosos de S. Felippe Nery, que lá tinha um convento.
(ROESER, 1922, p. 200-201).

Ao trecho transcrito do Vigário de Cimbres, Pedro Roeser nada


acrescentou ou fez qualquer comentário. Para Roeser, a descrição dos
“caboclos de Cimbres”, chamados pelo Padre Raphael de “esses índios”,
o que podemos interpretar como pejorativo, falava por si só, como uma
última palavra no seu texto. Roeser concluiu o artigo enfatizando a
ignorância causadora de feitiçarias e bruxarias, que poderia “fazer duvidar
da inteligência normal do índio ou do africano” e se não fosse o caso de
existirem também (e ainda) “as mesmas crenças e crendices absurdas
dos indígenas” no seio do homem moderno, em sua mais adiantada
civilização.
O Abade do Mosteiro Beneditino de Olinda, Pedro Roeser,
publicou seu longo artigo repleto de citações, em 1922. E o fez com a
sua pretensa autoridade de também ser um “homem de ciência”, já que
era sócio do IAGHP. Possivelmente ele era visto como representante do
universo intelectual católico romano, em um ambiente que reunia a elite
pensante de Pernambuco que, no início da década de 1920 era tributária
de idéias do ainda tão próximo século XIX. No seu texto, quando tratou
sobre os índios, o religioso estava em consonância com a discussão do
IAGHP, ou seja, a opção por uma visão civilizatória na qual os índios
desapareceriam, transformados em caboclos como expressavam outros
textos publicados por sócios daquele Instituto.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 57


A Revista do IAGHP publicada no ano de 1935 trouxe um artigo
de Mário Melo, intitulado “Etnografia pernambucana: os xukurus de
Ararobá”. O autor iniciou o texto comentando da satisfação de ter sido
procurado por Curt Nimuendajú, de quem recebera, de Carlos Estevão,
então Diretor do Museu Goeldi em Belém/PA, informações de tratar-se
de um grande etnólogo. Melo comentou ainda que o etnólogo Alfred
Métraux, Diretor do Museu de Tucumán, na Argentina, de passagem
pelo Recife falara do alemão Nimuendaju como um nome mundialmente
“conhecido e acatado nos meios científicos pelos seus trabalhos”.
Voltando da Suécia, de passagem pelo Recife, Nimuendajú
procurou Mário Melo e, segundo este, o alemão estava “desejoso de
estudar os remanescentes indígenas de Pernambuco. Depois da
conversa, o etnólogo resolveu começar suas investigações por Cimbres,
onde existiu um aldeiamento” (MELO, 1935, p.43). (Grifamos). Dizia
ainda Melo que, logo após ter regressado de “Ararobá”, Nimuendajú o
procurara, “para transmitir-me suas impressões dos xucurus”, pois ele
“estivera em contacto com os descendentes dos xucurus” (MELO, 1935,
p.44). (Grifamos). Foi, portanto, com base nas informações de Curt
Nimuendajú que Mário Melo redigiu o seu artigo aqui citado.
Escreveu Melo: “Existem ainda cerca de 50 indivíduos, já
cruzados alguns, porém que conservam estigmas dos ameríndios, como
tais facilmente reconhecíveis, apesar de ausência completa de semelhança
com o mongol”. (MELO, 1935, p.45). (Grifamos). O autor pernambucano
fez mais uma comparação com os Carnijós de Águas Belas, acentuando
que, contrariamente àqueles, os de Cimbres “vivem desagrupados” e
“já não conservavam tradições, nem religião”. “Quase que perderam a
língua”, mas guardavam ainda algumas palavras, faladas com o português
“em forma de gíria”. (MELO, 1935, p.45).
Sobre a religião, Mário Melo escreveu que se tratava de “uma
espécie de idolatria, por infiltrações do catolicismo”. E ainda: “Sabem,
perfeitamente, que descendem da tribu xucurú, que ocupou aquela
região, tem orgulho da sua procedência e se julgam superiores aos outros
habitantes, guardando rancôr dos brancos por lhes haverem tomado as
terras”. (Id., ib.). Melo, depois de citar informações históricas da formação

58 Edson Silva
“Aldeia do Ararobá”, afirmou que as investigações de Nimuendajú eram
de primeira importância, em razão da “identificação dos remanescentes
indígenas”, criando um neologismo para expressar sua visão sobre a
situação: ocorria uma “defamiliarização”. (Grifamos).
Após registrar a produção de esteiras e de “grosseira” cerâmica,
Melo afirmou a não filiação dos “xucurus” com outra família indígena.
Mário Melo teceu considerações sobre o processo de fabricação dos
utensílios de cerâmica, concluindo: “não andaram em contacto com
outras tribus mais adiantadas”. O autor pernambucano terminou seu
artigo reiterando a necessidade de meios públicos que favorecessem
“estudar e identificar os remanescentes indígenas”, encontrados em
“pequenos grupos” na Serra Negra, na Serra de Tacaratu, em Rodelas, no
Sertão, pois se tratava de um “material precioso que vai desaparecendo
sem deixar vestígios”. (1935, p.45) (Grifamos).
O conhecido Secretário Perpétuo do IAGHP, editor da sua Revista
e assim também um “homem de ciência”, Mário Melo, além de professor,
foi um jornalista muito atuante na imprensa. Bacharel em Direito,
deputado estadual, notabilizou-se ainda como filólogo, escritor, folclorista,
pesquisador da historia e geografia de Pernambuco. Escreveu dezenas de
artigos sobre diversos temas e publicou livros em sua maioria exaltando
o heroísmo pernambucano nas revoltas liberais de 1817 e 1824. Além do
citado artigo sobre os Xukuru, publicou outros a respeito dos Fulni-ô, em
jornais do Recife e na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo. Já em
1928, no Congresso Brasileiro de Geografia, realizado no Espírito Santo,
ele sensibilizara os presentes para a defesa dos Carnijós, por se tratarem
de “uma relíquia histórica”.12
Quando afirmou, ao longo do texto e nas conclusões de seu artigo
sobre os “xucurus”, a necessidade de estudar “os remanescentes indígenas”
que, nas citadas localidades do Agreste e Sertão pernambucano estavam
“desaparecendo sem deixar vestígios”, Mário Melo fez comparações entre
o primitivo/degenerado, o bárbaro/moderno. O autor expressou, nesse
e em seus demais artigos publicados, uma perspectiva que via os índios

12
Diário de Pernambuco, Recife, 20/06/1928, p.1.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 59


como vítimas do progresso inerente à civilização. Uma civilização da
qual ele próprio se julgava um representante, um observador enquanto
estudioso e que naturalmente era construída sobre as ruínas de grupos
inadaptáveis. Os “remanescentes” de índios eram os caboclos em
degeneração. Essa imagem foi defendida por outros pesquisadores fora
da órbita intelectual do Recife.
Em Pesqueira, José de Almeida Maciel, que ainda hoje é
considerado o maior historiador local, desde os fins da década de 1910
publicou regularmente um considerável número de crônicas em jornais
daquela cidade. No final dos anos 1940 começou a escrever sobre a
história do município, na qual tratou dos Xukuru. Para esses artigos
realizou pesquisas em documentos cartoriais, tais como inventários,
testamentos e escrituras de imóveis. Além de fontes orais, ele pesquisou
também a documentação da Câmara de Cimbres e Pesqueira, organizada
e publicada no “Livro da criação da Vila de Cimbres, 1762-1867”. Todos
os seus textos, após seu falecimento, foram reunidos e publicados ao
longo da década de 1980 pelo CEHM, no Recife.
O então vereador em Pesqueira José de Almeida Maciel apresentou
em, 1948, à Câmara Municipal, um projeto para restauração do prédio
do Senado da Câmara, localizado na antiga Vila de Cimbres, que se
encontrava em estado de abandono e provável ruína. Na justificativa do
seu projeto, publicada em um jornal local lemos: “Os Xukurus habitavam
a extensa serra do Ororubá (ou Urubá), os Paratiós espalhavam-se pelos
contrafortes da mesma, isto é, pelas serras do Gavião, Jardim, Guerra,
Barra da Onça, etc.”.13 (Grifamos). Naquele mesmo ano, comentando
como apareciam nas atas da Câmara de Cimbres as disputas político-
administrativas distritais, Maciel escreveu:
Subsistem as tradicionais festas da padroeira Na. Sa. das
Montanhas e de São Miguel a que comparecem caboclos
na indumentária indígena, realizadas em Junho e Setembro
de cada ano, com grande afluência de fiéis de várias locali-
dades, principalmente de Pesqueira.14 (Grifamos).
13
A voz de Pesqueira. Pesqueira, 04/07/1948, p.3.
14
A voz de Pesqueira. Pesqueira, 07/09/1948, p.2.

60 Edson Silva
Ainda em 1948, Maciel foi o responsável por responder ao
questionário enviado pelo IBGE aos municípios brasileiros, em que
algumas das questões eram relacionadas às populações índígenas. José
Maciel publicou suas respostas e comentários em uma série de artigos no
jornal “A voz de Pesqueira”. Respondendo a questão sobre a existência de
tribos indígenas no município, afirmou o pesquisador: “Não mais existem
tribos indígenas no município. Há remanescentes, em grande número
que habitam a serra do Ororubá, chamados ‘caboclos da serra’ e que
falam o idioma português, mesclados ligeiramente de termos da língua
nativa”. (Grifamos). Em resposta a uma outra questão, escreveu que: “Não
consta ter havido deslocamentos de tribos neste município: o que se vem
operando como correr dos tempos, é o cruzamento e consequentemente
a assimilação.” 15 (Grifamos).
Em relação às festividades cívicas e religiosas ocorridas no âmbito
municipal, escreveu Maciel: “Em Cimbres os caboclos remanescentes dos
Xucurus, em indumentária semelhante a primitiva, dançam o ‘toré’ nas
tradicionais festas da padroeira e de S. Miguel”.16 (Grifamos). E sobre
as crenças religiosas: “Nenhuma crença antiga de origem indígena ou
africana, existe no município a não ser a secular devoção dos caboclos,
remanescentes dos Xucurus a N. S. das Montanhas de Cimbres”.17
(Grifamos).
O então renomado pesquisador municipal não reconhecia a
existência de índios na Serra do Ororubá, tampouco em Cimbres, antigo
centro da implantação administrativa colonial na região do Agreste, onde
fora fundada a Missão do Ararobá entre os índios Paratíó e Xukuru, em
meados do século XVII. Para ele, os índios estavam vinculados a um
passado distante, heróico, como o da Guerra do Paraguai. O que existia
em Pesqueira eram os descendentes, remanescentes dos Xukuru.
A pedido do Bispo de Pesqueira, em 1951, o então exaltado
pesquisador José de Almeida Maciel realizou, em um clube social daquela
cidade, a rememorada e longa palestra “Vila de Cimbres”, na qual esteve
15
A voz de Pesqueira. Pesqueira, 21/11/1948, p.2.
16
A voz de Pesqueira. Pesqueira, 28/11/1948, p.4.
17
A voz de Pesqueira. Pesqueira, 05/12/1948, p.1.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 61


presente a elite social e intelectual do município. O texto da citada
palestra foi também publicado em vários números do jornal A voz de
Pesqueira. Em um dos trechos dos artigos publicados, o autor afirmou
sua discordância com aqueles que enfatizavam a incapacidade indígena
e escreveu que, além de trabalharem na agricultura, os índios tinham
participado com bravura na Guerra do Paraguai, sendo eles “valentes
como se pode ser, servindo de exemplo o pouco número dos que voltaram
do Paraguai, tendo ido voluntariamente cento e tantos, e morrendo destes
a maior parte no ferro inimigo, em defesa da pátria”.18 Maciel prosseguiu
exaltando a participação dos “nossos xucurus”, destacando também o
heroísmo dos “nossos índios” como soldados combatentes naquele
conflito.
O autor evidenciou a importância dos índios em tempos pretéritos,
no passado em que bravamente estiveram, espontaneamente, guerreando
a serviço da pátria, ou seja, em uma causa que seria supostamente comum
de todos os brasileiros. Essa postura fica clara quando, no mesmo texto, o
pesquisador escreveu sobre a presença indígena na Festa de São Miguel
em Cimbres. Segundo ele, o evento ocorria
Anualmente com afluência vultosa de fiéis de toda a região,
aquela quase trissecular, acompanhadas de formações de
índios (hoje, dos seus descendentes, os caboclos) com indu-
mentárias características, conjunto de pífanos e zabumbas,
e de banda musical própria ou de Pesqueira”.19 (Grifamos).

Para o pesquisador, os participantes da festa no período de sua


palestra não eram mais os índios do passado e, sim, os agora caboclos.
Quando escreveu, em 1950, exaltando a longevidade da Guarda
Nacional, José de Almeida Maciel lembrou a importância da instituição
na Guerra do Paraguai, ressaltando o “valoroso” Batalhão “30 de
Voluntários”. Nesse artigo, Maciel mencionou não mais os índios como
soldados, afirmando que o citado Batalhão fora “composto de caboclos

18
A voz de Pesqueira. Pesqueira, 22/07/1951, p.4
19
A voz de Pesqueira. Pesqueira, 19/08/1951, p.3.

62 Edson Silva
da nossa serra de Ororubá e da aldeia de Comunati, de Águas Belas”20
(Grifamos).
Pesquisador notável e reconhecido como historiador do
município, nascido em Pesqueira, em 1884, José de Almeida Maciel foi
um tradicional comerciante, professor municipal e Major da Guarda
Nacional. Como político, foi vereador, Vice-Prefeito e Prefeito de
Pesqueira e Presidente do Conselho Municipal. Foi cassado em 1930
e reeleito vereador em 1947. Era integralista, um conservador católico
romano praticante e devoto. Em reconhecimento por suas pesquisas, foi
eleito Sócio Correspondente do IAHGP, a partir de 1951. Cronista que
publicou muitos artigos em jornais locais e da Capital, era um autodidata
que se dedicou incansavelmente à pesquisa sobre a história de Cimbres e
Pesqueira, méritos exaltados em comentário necrológico de Mário Melo.21
O pesquisador pesqueirense foi aclamado pela sua vasta produção,
conhecimentos históricos e geográficos do município e da região em seu
entorno. Por essa razão, ele detinha um considerável capital simbólico,
uma vez que “o campo de produção erudita” deve ser compreendido
“enquanto sistema que produz bens culturais” (BOURDIEU, 1992, p. 105).
Sua autoridade de “historiador” foi reconhecida pelas elites intelectuais
e sociais locais, como comprovou sua palestra sobre Cimbres a convite
do Bispo de Pesqueira, também uma autoridade municipal. Assim, ele
participava do “sistema das relações constitutivas do campo de produção,
de reprodução e de circulação de bens simbólicos”. (BOURDIEU, 1992,
p. 105).
Seu reconhecimento como um especialista na história municipal
resultava dos seus conhecimentos e favoreceu as suas relações com
as autoridades e instituições como a Igreja Católica Romana local e o
IAHGP. Isso por que:
Todas as relações que os agentes de produção, de reprodução
e de difusão, podem estabelecer entre eles ou com institu-
ições específicas (bem como a relação que mantém com a
20
A voz de Pesqueira. Pesqueira, em 04/06/1950, p.4
21
Grande perda para Pesqueira. Jornal do Commercio, Recife, 18/05/1957, Crônica
da Cidade, p.6

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 63


sua própria obra), são medidas pela estrutura do sistema das
relações entre as instâncias com pretensões a exercer uma
autoridade cultural (ainda que em nome de princípios de le-
gitimação diferentes). (BOURDIEU, 1992, p. 118).

Ele ocupou um lugar primordial em Pesqueira. Podemos


constatar isso pelas homenagens que recebeu por ocasião do seu
aniversário, em 1952, quando foi saudado como “O ilustre historiador e
jornalista pesqueirense que se tem destacado como um dos estudiosos
da vida deste município e deste Estado”, e ainda como um “elemento dos
mais relacionados nos meios políticos e sociais”.22 E, além disso, foi e é
visto enquanto um produtor de informações sobre os Xukuru, pois:
A forma das relações que as diferentes categorias de produ-
tores de bens simbólicos mantêm com os demais produtores,
com as diferentes significações disponíveis em um dado es-
tado do campo cultural e, ademais, com a sua própria obra,
depende diretamente da posição que ocupam no interior do
sistema de produção e circulação de bens simbólicos e, ao
mesmo tempo, da posição que ocupam na hierarquia propri-
amente cultural dos graus de consagração, tal posição impli-
cando numa definição objetiva de sua prática e dos produtos
dela derivados. (BOURDIEU, 1992, p.154).

E assim influenciando, como é facilmente verificável, a visão da


população municipal, sobretudo na formação de estudantes e professores/
as. Como um “conhecido historiador”, o “professor” José Maciel recebeu,
ainda em vida, uma “bem merecida” homenagem quando a Prefeitura
de Alagoinhas, um antigo distrito de Cimbres, inaugurou com pompas,
em 1953, uma escola municipal com seu nome. O evento foi destacado
em matéria de capa do jornal A voz de Pesqueira.23 Atualmente uma das
maiores escolas públicas de Pesqueira traz também o nome de Maciel.
A visão positivista da história expressa por Maciel se refletiu nos

22
Aniversário de José de Almeida Maciel, A voz de Pesqueira. Pesqueira 20/7/1952, p.1.
23
Homenagem ao Professor José de Almeida Maciel. A voz de Pesqueira. Pesqueira,
23/03/1953, p.1.

64 Edson Silva
seus escritos, nos quais ele privilegiou extensas genealogias e biografias
dos considerados grandes homens fundadores e civilizadores municipais.
Enfatizando os grandes feitos dessas figuras eleitas como personalidades
históricas marcantes de Pesqueira e da região circunvizinha do Agreste
pernambucano. Enfim, uma perspectiva histórica em que os índios, e
mais especificamente, os antigos habitantes da Serra do Ororubá,
ocuparam uma posição marginal e marginalizada, em seus textos.
Escrevendo e publicando sobre a história municipal, na mesma época
em que os Xukuru iniciavam os contatos com o SPI e eram logo depois
oficialmente reconhecidos, com a instalação de um Posto do órgão
indigenista na Serra do Ororubá, José de Almeida Maciel ignorou esse fato
e as mobilizações indígenas naquele período. Os índios, nos escritos de
Maciel, foram relegados a um passado idílico. E, uma vez desaparecidos,
no presente restavam seus descendentes em degeneração, os caboclos.
Outros pesquisadores da época expressaram idéias semelhantes.
Acompanhando a trajetória intelectual de Estevão Pinto,
constatamos que ela alcançou o auge entre as décadas de 1930 e 1950,
período no qual o autor publicou um grande número de artigos e os
livros sobre os indígenas. Nascido em Maceió, em 1895, Pinto veio para
o Recife cursar Direito e nesta cidade constituiu família. Sócio do IAHGP,
a partir de1922 começou a publicar seus primeiros artigos históricos
em jornais recifenses. Trabalhava, assim como outros intelectuais da
época, como professor, nos tradicionais ginásios da capital, nos quais
conviveu, por exemplo, com Gilberto Freyre, Manuel Correia de Andrade,
Waldemar Valente, Costa Porto, Amaro Quintas, dentre outros. Em sua
casa trabalhou Nãna, índia fulni-ô que esteve com a família de Estevão
Pinto por mais de quarenta anos (ROCHA, 1992, p.8). Possivelmente essa
presença indígena nos limites domésticos tenha motivado, influenciado
e colaborado em muito para os estudos do autor sobre os índios,
particularmente os Fulni-ô.
O primeiro volume de Os indígenas do Nordeste, com o subtítulo
“Introdução ao estudo da vida social dos indígenas do Nordeste brasileiro”,
é uma minuciosa pesquisa bibliográfica e documental ilustrada com
mapas, quadros e fotografias. Foi publicado por Estevão Pinto, em 1935.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 65


O segundo volume, trazendo o subtítulo “organização dos indígenas do
Nordeste brasileiro”, veio a público em 1938 e, além de mapas e quadros,
trouxe diversos desenhos, gravuras e estampas, reproduzidas de livros de
viajantes que estiveram no Brasil. Esse volume é baseado principalmente
nas informações dos cronistas coloniais e viajantes, tratando, em quase
sua totalidade, dos tupis do litoral.
Apenas no primeiro volume o autor se referiu aos “sucurús”.
A primeira referência aparece quando foi tratada a classificação dos
índios no Brasil. Estevão Pinto localizou vários grupos como “cariris”
e, dentre eles, “Os sucurús, que se encontravam nos rios do Meio, da
Serra-Branca, de São José e de Taperoá, todos tributários do Parnaíba,
assim como nos afluentes do alto Piranhas, na serra do Arubá e em
Cimbres (Pernambuco)”. A segunda referência encontra-se no “Mapa da
distribuição dos principais grupos indígenas do Brasil”; na lista de nomes
que acompanha o tal “Mapa” encontramos os “Sucurús” (PINTO, 1935,
p.138; 151) (Grifamos).
Observa-se um erro possivelmente de grafia, pois o correto seria
rio Paraíba e não Parnaíba (PI), já que as localidades citadas como lugares
de moradia de “sucurús” estão em uma região reconhecida historicamente
como paraibana. Percebe-se também que, ao informar sobre os índios, o
autor usou o verbo no passado: “se encontravam”. O mesmo verbo está
ainda relacionado à “serra do Arubá e Cimbres”, o que expressava o não
reconhecimento, pelo autor, da efetiva presença indígena no período da
pesquisa que resultou no livro publicado em 1935.
Na conclusão do primeiro volume do seu estudo, Estevão Pinto
escreveu:
Condições bio-sociológicas concorrem, sobremodo, para a
obra de miscigenação dos portugueses, à qual, aliás, não era
indiferente o Estado. O caboclo do nordeste, é o resultado
desses cruzamentos, que uma antropologista chamou de
homogenésico-paragenésico. O nosso xantodermo, braqui-
céfalo, mediano na estatura, de cabelos negros e face larga,
mostra ainda alguns dos caracteres mais comuns do tipo
ameríndio. (PINTO, 1935, p.255). (Grifamos).

66 Edson Silva
As afirmações do autor expressam explicitamente a idéia
do desaparecimento do índio, fundamentada na mistura de raças
iniciada com a colonização portuguesa no Nordeste; assim, o caboclo
“xantodermo”, ou seja, aquele com a pele de cor amarelada ou ocre,
resultante dessa miscigenação, ainda que carregasse traços físicos do seu
antepassado indígena, significava o fim deste. Isso explica porque o autor
não considerou a existência contemporânea ao seu estudo de índios em
Cimbres, referindo-se aos “sucurús” no passado.
A obra Os indígenas do Nordeste recebeu efusivas acolhidas de
estudiosos da época, dentre os quais elogios de Gilberto Freyre e Pedro
Calmon, que saudaram a erudição, a capacidade de interpretação e
síntese do autor. O antropólogo Herbert Baldus fez também uma resenha
crítica favorável, publicada na Revista do Arquivo Municipal de São
Paulo, em 1938. (ROCHA, 1992, p.193-196; 280). Com Os indígenas do
Nordeste Estevão Pinto passou a ser conhecido no Brasil e no exterior,
realizando conferências, participando de congressos, publicando artigos.
Naquele mesmo ano, o autor realizou uma viagem de pesquisa para o
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, resultando em um
artigo intitulado “As máscaras de dança dos Pankararu”, com o subtítulo
“remanescentes indígenas dos sertões de Pernambuco”. O artigo foi
publicado no Recife e republicado em revistas na Argentina, em Lisboa e
no Journal de la Société des Americanistes. (ROCHA, 1992, p.196).
Nos anos seguintes, Estevão Pinto publicou outros artigos em
periódicos nacionais e na imprensa pernambucana e, em 1952, foi a Paris,
onde fez uma conferência sobre a Antropologia no Brasil, na Sorbonne.
Entre 1953 e 1955, Pinto publicou, em jornais do Recife, artigos sobre os
Fulni-ô, ora defendendo que eles vivenciavam uma “cultura em transição”
ou que estavam ameaçados de extinção. Encontramos na documentação
do SPI um telegrama da 4ª Inspetoria Regional, informando que Estevão
Pinto, em 1953, estava realizando pesquisas sobre o vocabulário Fulni-ô16.
No artigo “Remanescentes indígenas”24, assinado por “Z” e
publicado no jornal Diário de Pernambuco, em 1955, foi enfatizada
24
Diário de Pernambuco, Recife, 16/06/1955, p.4.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 67


a tenacidade do professor Estevão Pinto “em estudar o que resta dos
remanescentes indígenas no Estado”, que publicara, em edição não
comercial e de uso restrito ao alunado, mais um estudo sobre os Fulni-ô. O
articulista afirmava ser o professor um incansável pesquisador de campo,
conhecedor dos aldeamentos indígenas que “se vão aos poucos se diluindo
tanto”, se encontrando os Fulni-ô reduzidos, embora os relatórios oficiais
duplicassem a população indígena daquele aldeamento. Questionava o
autor do artigo se tal medida não seria para justificar a “burocracia do
SPI”, pois, “aos poucos, os descendentes dos índios se vão dissolvendo
na população alienígena”. (Grifamos). Concluiu o artigo questionando o
nível da proteção do SPI e assinalando o registro pelo professor Estevão
Pinto da, “má impressão” causada ao antropólogo americano William
Hohental, que visitara os Fulni-ô, uma vez que o órgão indigenista oficial
parecia preocupar-se mais com si próprio do que com os “pobres nativos
das primitivas selvas”. Essa era a razão porque “os remanescentes vão
rareando”, daí a importância dos estudos de pesquisadores, “para que
não se perca o traço do primitivo habitante”. (Grifamos).
Quando lemos o artigo, percebemos que o seu objetivo parece ser
destacar o esforço de Estevão Pinto em pesquisar os vestígios indígenas
que desapareciam. Por ser bem elaborado e pelo tom da escrita é possível
se suspeitar ser o artigo de autoria do próprio Estevão Pinto. Essa suspeita
se evidencia pela ênfase na utilização do termo “remanescente”, na idéia
do desaparecimento dos índios e em razão do que ele expressara nos
seus escritos anteriores sobre as populações dos antigos aldeamentos.
Como respeitável professor e reconhecido pesquisador, Estevão Pinto
influenciava com seus conceitos e concepções o alunado e o ambiente
intelectual da época na visão sobre os índios.

O então professor da Universidade do Recife Estevão Pinto


publicou, em 1956, o livro Etnologia brasileira: Fulniô, os últimos tapuias.
O autor, além de uma considerável pesquisa bibliográfica, realizou
uma minuciosa pesquisa de campo, expressa no volume dos dados
apresentados na obra. O livro foi recebido com entusiasmo e comentários
críticos de Alfred Métraux, Roger Bastide, Betty Meggers e outros autores

68 Edson Silva
europeus e norte-americanos (ROCHA, 1992, p.69; 206). Estevão Pinto
enfatizou as péssimas condições de vida em que se encontravam os
chamados “caboclos”, pelo autor, dependentes dos arrendatários e sem
quase assistência do SPI.
Ao tratar da “mudança cultural entre os índios de Águas Belas”,
o autor apresentou um levantamento minucioso de elementos da
cultura material de origem alienígena, a dos “remanescentes indígenas”.
Concluindo que a cultura indígena se achava em vias de desaparecimento,
daí porque ele acreditava e afirmava serem os Fulni-ô “os últimos tapuias”,
pela aculturação e assimilação.
Nesse estudo sobre os Fulni-ô, ao citar os postos do SPI então
instalados no Nordeste, Estevão Pinto reconheceu a existência dos Xukuru,
citando-os também em Palmeira dos Índios (AL), quando escreveu: “Na
Fazenda Canto vivem perto de 80 descendentes dos Shucurus; outros,
mais numerosos estão espalhados pela serra de Ararobá ou Ororobá”.
O autor repetiu o que escrevera no primeiro volume do livro em que se
propôs tratar dos índios no Nordeste, ao citar as localidades da Paraíba
onde habitavam os Xukuru, no Período Colonial.
Em seu novo estudo, Pinto citou ainda o sertanista do SPI Cícero
Cavalcanti e o antropólogo norte-americano Hohenthal, que visitara os
Xukuru entre 1951 e 1952, e concluiu afirmando que: “No momento, os
Shucuru vivem nos ‘sítios’ de Canabrava, Brejinho, Caldeirão, Machado,
Lagoa e alguns mais”, voltando a afirmar a presença de Xukuru em
Palmeira dos Índios, vivendo em “íntima relação” com os Wakona, que se
autodenominavam “Shucuru-Cariri” (PINTO, 1956, p.26-27). Observemos
que, nas afirmações do autor, não há nenhuma informação mais precisa
sobre as condições em que, na época, viviam os chamados “Shucuru”, o
que pode dar ao leitor uma idéia vaga a respeito desse grupo indígena,
além da impressão de tratar-se de indivíduos em sua maioria dispersos.
Ainda nesse mesmo livro, quando discorreu sobre as aldeias,
as missões religiosas em Pernambuco e os hábitos culturais dos grupos
indígenas, Estevão Pinto chamou os Xukuru de “caboclos” já muito
misturados, quando escreveu:

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 69


Os Shucuru, cuja localização já se fez linhas atrás, merecem
especial atenção. Hohenthal, que acaba de escrever, a res-
peito desses caboclos já bastante mesclados, uma excelente
monografia, chegou à conclusão de que os mesmos, sob o
ponto de vista cultural, parece que se achavam ligados aos
históricos ‘Tapuya’ do Nordeste brasileiro. (PINTO, 1956, p.47)
(Grifamos).
Posteriormente, muitos dos artigos publicados em periódicos
sobre os povos tupis, que retomavam os temas abordados em Os
indígenas do Nordeste (PINTO 1935; 1938), foram juntamente com
estudos arquitetônicos, sobre a religião popular e ensaios histórico-
biográficos, organizados em 1956 por Estevão Pinto, numa 3ª edição
reformulada de Muxarabis & balcões e outros ensaios, obra bem recebida
pelo público, alcançando várias tiragens. Na conclusão de “Tendências
atuais da Antropologia”, um dos artigos desse livro, o autor escreveu que,
em Pernambuco, existiam alguns “núcleos de remanescentes indígenas”,
citando dentre eles os de Águas Belas e deixando de fora Cimbres, na
Serra do Ororubá.
Nessa época, Estevão Pinto, um renomado professor universitário
no Recife, era reconhecido ainda pelos seus estudos a respeito dos índios
no Nordeste, particularmente sobre os Fulni-ô, pelos artigos publicados
e como conferencista no Brasil e no exterior. Um futuro pesquisador e
antropólogo da Fundação Joaquim Nabuco, dirigida por Gilberto Freyre,
de quem era muito próximo, e principalmente de suas idéias a respeito
da mestiçagem. Estevão Pinto, nessa sua última obra sobre os indígenas,
publicada por uma editora com ampla distribuição no país, como adepto
das concepções da aculturação e assimilação das populações indígenas
com ênfase na progressiva caboclização, reafirmava tão somente sua
visão sobre o desaparecimento paulatino dos índios e a crença em sua
total extinção.
Os estudos sobre as populações dos extintos aldeamentos em
Pernambuco chamaram a atenção de outros pesquisadores, a exemplo de
Curt Nimuendajú, para conhecerem o que ocorria com essas populações.
Voltando de uma viagem à Europa, Curt Nimuendajú, em outubro de

70 Edson Silva
1934, chegou ao Recife, onde, por recomendações antecipadas de Carlos
Estevão, foi bem recebido por Mário Melo que escreveu posteriormente
sobre a satisfação do encontro, que “aguçara a sua vaidade”, ao saber
que Curt conhecera os seus artigos sobre os “Carnijó”, publicados na
imprensa pernambucana. Em uma pesquisa mais recente, encontramos
que Nimuendajú viera conhecer os Fulni-ô e os Xukuru a serviço do Museu
Nacional/RJ (WELPER, 2002, p.60), embora o que lemos em um estudo
anterior nos leva a crer que os custos dessa viagem a Pernambuco tenha
sido favorecidos pelo Carnegie Institution de origem norte-americana.
(GRUPIONI, 1998, p.184).

Parte da cópia de Carta de Curt Nimuendajú enviada a Heloísa Torres,


com as impressões da visita do autor aos índios em Cimbres, em 1934.

Ainda em outubro de 1934, Curt Nimuendajú escreveu a Heloísa


Torres, então Diretora do Museu Nacional/RJ, relatando o resultado do
retorno da sua “excursão aos restos dos índios Sukurú de Cimbres e
Fulniô de Águas Bellas” (Grifamos). Ele confessava sua frustração com
o investimento na viagem e das possibilidades de futuras pesquisas:
“Infelizmente o resultado não compensa de forma alguma as despezas:
ambas as tribus quasi nada mais guardam as sua antiga cultura material”.
O pesquisador assim descreveu os índios em Cimbres:

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 71


O que hoje se chama Sukurú são uns 50 indivíduos, entre
os quais uma escassa meia dúzia que ainda causa a im-
pressão de índios puros. Ninguém mais fala a língua antiga
com muito trabalho e paciência consegui uns 150 vocábulos,
em parte de valor bem duvidoso. A língua não a apresenta a
menor semelhança com outra qualquer.25

Na concepção de Curt Nimuendajú, além de uma irrelevante


cultura material, pouquíssimos “Sukurú” possuíam o fenótipo do que
seria supostamente indígena. E o fato de não falarem correntemente uma
língua materna e os vocábulos recolhidos não possuírem semelhanças
com nenhuma outra língua indígena conhecida no Brasil, era um
indicador negativo que impedia definí-los como “índios puros”. O critério
de comparação com a pureza de uma cultura material indígena e mesmo
de comparação entre os “Sukurú” e os “Fulni-ô” continuou sendo usado
por Curt, em seu relato, quando ele descreveu uma técnica de fabricação
de cerâmica própria dos índios de Cimbres, diferente da usada pelos
povos amazônicos. Por essa razão, Nimuendajú afirmou ter adquirido,
além de utensílios cerâmicos fabricados, amostras de barro usado pelos
“descendentes dos Sukurú”.
Para o pesquisador, ao contrário dos “Sukurú”, os índios de
Águas Belas “perderam por completo sua cultura material e tudo quanto
diz respeito a sua cultura social”, restando, todavia a tenacidade de sua
“cultura espiritual”, expressada pela língua e a religião. Curt Nimuendajú
classificou como “interessante” a afirmação da identidade indígena
em Águas Belas, quando reconheceu o “pronunciado sentimento de
tribu” existente nos habitantes do antigo aldeamento. Embora tenha
acentuado, em seu relato, que “tanto mais quanto 2/3 deste povo não
é índio, de maneiras que também lá se contam os índios puros de raça
pelos dedos”. Findando sua carta, Curt Nimuendajú escreveu que, entre
os “Fulniô”, apenas recolhera “um machado de pedra”, o vestígio de uma
cultura material passada. Ainda que eles produzissem esteiras, bolsas e

25
Carta de Curt Nimuendajú, Recife 12/10/1034, para Heloísa Alberto Torres. Museu
Nacional/RJ, Setor de Linguística Arquivo CN/MN.

72 Edson Silva
espanadores, para Nimuendajú apenas tinham de “original somente o
material. Tanto a técnica como os tipos são modernos”. Diferentemente,
se comparados com os índios de Cimbres, que fabricavam “mais umas
coisinhas”, além dos utensílios adquiridos por Nimuendajú. 26
A visão de uma cultura indígena primitiva congelada, da perda
cultural pela assimilação frente a uma modernização, com a degeneração
dos índios, aparece expressa no relato que Curt Nimuendajú fez da sua
estada entre os habitantes dos extintos aldeamentos de Cimbres e Panema
(Águas Belas). Essas impressões e critérios usados por Nimuendajú para
uma suposta classificação etnológica sobre a ausência de uma identidade
“Sukurú” foram reproduzidos no anteriormente citado artigo publicado
por Mário Melo, em 1935, na Revista do IAHGP.
As concepções de Nimuendajú sobre os índios de Cimbres e
Águas Belas em muito se aproximavam da idéia de mestiçagem como base
da formação do povo brasileiro, defendida por Gilberto Freyre. Talvez por
esse motivo Freyre se mostrou interessado no relato de Curt Nimuendajú.
É o que afirmou Heloísa Torres, em carta endereçada a Nimuendajú: “O
Dr. Gilberto Freyre, a quem falei dos seus trabalhos em Pernambuco, ficou
muitíssimo interessado”. Heloísa solicitava autorização a Nimuendajú
para repassar a Freyre as “notas” contidas na carta que ele lhe enviara,
relatando sua visita aos índios em Pernambuco. Heloísa afirmava ainda
para Nimuendajú que acreditava ser de muita importância, “do máximo
interesse”, a publicação “das suas notas sobre os seus trabalhos recentes
em Pernambuco”, e perguntava: “Porque importância quer ceder ao
Museu a sua pequena coleção feita em Cimbres?”.27
Respondendo de Belém/PA, dois anos depois, Nimuendajú
autorizou Heloísa a cessão, a Freyre, do relato da sua visita a Pernambuco,
acrescentando,
Os meus conhecimentos neste ponto são tão fragmentários

26
Carta de Curt Nimuendajú, Recife 12/10/1034, para Heloísa Alberto Torres. Museu
Nacional/RJ, Setor de Linguística Arquivo CN/MN.
27
Carta de Heloísa Alberto Torres, Rio de Janeiro 25/09/1936, a Curt Nimuendajú. Museu
Nacional/RJ, Setor de Linguística Arquivo CN/MN, Correspondências 1936/1938, CVO
fotograma 1/3, p.25.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 73


que me valem à pena de uma publicação. Melhor material
teremos com certeza no anno vindouro porque D. Carlos Es-
tevão que em 1934 vizitou os Fulnió e Makuru ligeiramente
tenciona voltar ao campo em começo de 1937 fazendo uma
estada de um mês em cada uma destas duas tribus28.

Escreveu também Curt que naquele momento estava muito


ocupado com a leitura de Marcgrav, um cronista holandês que escreveu
sobre os tapuias no Rio Grande do Norte, e afirmou ainda: “O que
observei em Pernambuco em 1934 não contribue para elucidar não o
que elle escreveu, além de que essas observações minhas não passam
muito daquilo que lhe comuniquei em carta”. Concluindo: “A meia dúzia
de objetos que eu trouxe dos Sukurú de Cimbres estou guardando para
o Museu Nacional, conforme lhe tinha prometido”.29 (Grifamos).
Chama-nos a atenção que, nessa carta, diferente da postura
assumida em 1934, Curt Nimuendajú tenha afirmado que possuía um
conhecimento superficial, “fragmentário”, sobre os índios de Cimbres e
Águas Belas e da necessidade de novas observações in loco para possíveis
maiores conclusões. Um outro detalhe é que o pesquisador, diversamente
também do ano da sua visita, nomeou de forma diferente, como “Fulnió”
e “Makuru”, os índios de Águas Belas e de Cimbres. Qual o porquê desse
lapso em relação à grafia usada no seu relato de 1934? No acervo de
Carlos Estevão, doado por sua filha ao Museu do Estado de Pernambuco
(MEPE), não localizamos nenhum relato sobre a suposta viagem de seu
pai a Cimbres ou a Águas Belas.
No acervo do MEPE, na documentação da Coleção Carlos
Estevão, ora em processo de reorganização, encontramos, junto a um
considerável número de cartas, relatórios de viagens com croquis e listas
de vocabulários, principalmente de povos indígenas na Região Norte,
uma relação de vocábulos “Fulnió” e outra “Sukurú”, ambas datadas de
1934, e a “Sukurú”, assinada por Curt Nimuendajú. No início da lista
28
Carta de Curt Nimuendajú, Belém/PA 27/10/1936, para Heloísa Alberto Torres. Museu
Nacional/RJ, Setor de Linguística, Arquivo CN/MN, Correspondências 1936/1938, CVO
fotograma 1/3, p.25.
29
Idem.

74 Edson Silva
“Sukurú” lemos, entre parênteses, “Levantado com os índios José Romão,
Chico Rodrigues, Romão da Hora e José Pereira, na Villa de Cimbres e
na Serra de Ororobá, 21-26 de setembro de 1934”30. Nas entrevistas que
realizamos, esses nomes foram citados por diversas vezes. Os Romão
foram também considerados quase todas às vezes, pelos/as entrevistados/
as, como líderes Xukuru daquele período. As palavras que aparecem na
lista, em sua maioria, são as que nomeiam partes do corpo humano,
animais, alimentação, objetos e situações do cotidiano. Alguns desses
vocábulos foram reproduzidos por Mário Melo, no seu já citado artigo
publicado na Revista do IAHGP.
É surpreendente que Curt Nimuendajú tenha afirmado que o
seu relato possuía um caráter “fragmentário” e, por que não dizermos
superficial, no entanto, com ênfases conclusivas definitivas. Localizamos
o que pode ser uma cópia da carta de 1934 de Curt Nimuendajú, no
acervo das correspondências passivas de Gilberto Freyre, no Recife. O
documento contém uma anotação a lápis grafite: um convite a Freyre
para ida ao Rio de Janeiro assinado por “Heloísa”31. Segundo Estevão
Pinto, a referida carta foi publicada no Handbook of South Indians Vol. I
p.382-383. (PINTO, 1956, p.32).
Em uma correspondência de 1937 à Direção do Museu
Nacional, três anos depois da visita de Curt Nimuendajú a Pernambuco,
lê-se uma lista de “material ethno-geographico” que o pesquisador
“offerece ao Museu Nacional”. A carta descreve, dentre outros itens,
“peças” dos “índios Cherente/Tocantis”, e mais “Uma série de 17 peças
colhidas entre os remanescentes da tribu Chucurú Cimbres, Estado de
Pernambuco. Acompanhará o material uma colleção de 25 photos”.32

30
MEPE, Coleção Carlos Estevão, (Acervo Curt Nimuendajú), pasta 1. (em organização).
31
Fundação Gilberto Freyre, Correspondências GF/CR 140.
32
Carta de Curt Nimuendajú, Belém/PA, 20/09/1937, ao Diretor do Museu Nacional no
Rio de Janeiro. Museu Nacional/RJ, Setor de Linguística Arquivo CN/MN, Correspondên-
cias 1936/1938, CVO fotograma1/3, p.26

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 75


Panelas Xukuru recolhidas por Curt Nimuendajú em 1934.
Arquivo Curt Nimuendajú / Setor de Linguística — Museu Nacional / RJ. Foto: Gessi Stancke,
julho/2003.

Na pesquisa que realizamos no Museu Nacional, além de


algumas das citadas fotografias, no atual Setor de Linguística, também
foram localizadas, no Setor de Arqueologia, três panelas que integrariam
o conjunto enviado ao Museu por Curt Nimuendajú. Uma primeira
observação nos leva a perceber as semelhanças das peças aos utensílios
que comumente encontramos, ainda hoje, à venda em feiras nos
municípios do interior do Nordeste, ou mais raramente nas periferias
das capitais dos Estados da Região. Talvez por esse motivo, como nos foi
informado por ocasião da apresentação das referidas peças, durante um
certo tempo elas foram tidas como “um conjunto de feijoada cearense”!
O que nos leva a pensar ser muito difícil, para um determinado
número de pesquisadores/as, compreender as relações culturais de povos
indígenas “misturados”, habitantes em regiões antigas, de colonização
portuguesa, a exemplo do Nordeste, que tanto se apropriaram como
legaram à população não-índia regional as peculiaridades expressas nos
artefatos da cultura material indígena.
Algumas das fotos de Curt Nimuendajú, sem legendas indicativas
claras, estão no acervo do Setor de Linguística do Museu Nacional/RJ. O
estado de conservação não é bom, em virtude possivelmente do tanto
tempo passado desde que foram tiradas e talvez do material utilizado na
época, sem falar nas condições em que estão armazenadas.

76 Edson Silva
No acervo das correspondências microfilmadas de Nimuendajú,
encontramos também um pequeno “bilhete”33, datado de Cimbres, 1934,
dirigido a Curt Nimuendajú, por José Romão Siqueira. O “bilhete” foi
redigido com letras bem desenhadas, em um papel que traz no canto
superior esquerdo a imagem de uma santa católica romana (N. Sra. das
Montanhas, Padroeira de Cimbres?!), acusava o recebimento de uma
carta com “retratos” enviados por Curt e que foram distribuídos aos
fotografados. José Romão Siqueira cobra de Nimuendajú outras fotos,
“inclusive os meus fardados”, afirmando esperar receber o solicitado,
como fora prometido de ser enviado.
Do pequeno texto do “bilhete”, podemos inferir, dentre outras
coisas, que, além da relação próxima estabelecida entre Nimuendajú e
os índios em Cimbres, ocasionada pela permissão para tirar as fotos e
o envio delas, pela troca de correspondências, Romão era alfabetizado
e, tomando a iniciativa de escrever a Nimuendajú, ao que tudo indica
exercia um papel local de liderança. Outros aspectos a serem levados em
consideração foi o papel com a imagem usado no “bilhete”, o que pode
significar as estreitas relações dos índios com a Paróquia de Cimbres.
E ainda, que foram tiradas fotos de índios “fardados”, ou seja, com as
vestimentas de palha ainda hoje usadas pelos Xukuru nas cerimônias
religiosas que ocorrem anualmente em Cimbres.
Localizamos além de fotos de casas dos “Carijós”, uma foto de
uma mulher fabricando utensílios cerâmicos, que pode ser (já que não
existe legenda,) uma índia Xukuru fabricando as panelas que Nimuendajú
enviou para o Museu Nacional/RJ, hoje encontrado no acervo daquela
instituição.

33
Carta (“bilhete”?) de José Romão Siqueira, em 30/10/1934, a Curt Nimuendajú.
Arquivo CN/MN, Correspondências 1930/1934, CVO fotograma 2/3, p.23.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 77


Bilhete enviado pelo índio José Romão Siqueira, em
Cimbres 30/10/1934, a Curt Nimuendajú.
Arquivo Curt Nimuendajú / Setor de Linguística — Museu Nacio-
nal / RJ. Foto: Gessi Stancke, julho/2003.

Com relação às fotografias de Curt Nimuendajú, em um estudo


recente (MELANIAS, 2006, p.19) a autora afirmou que: “Essas imagens
inserem-se num contexto de colecionamento etnográfico mais amplo,
no início do século XX, quando o objeto de estudo da antropologia se
definia como o estudo do homem ‘primitivo’ ou ‘selvagem’”. O estudo
revelou ainda: “Em geral, essas fotografias foram realizadas em pesquisas
de campo com objetivos etnográficos, ou pelo menos, em encontros

78 Edson Silva
esporádicos com grupos indígenas, nos mais variados lugares, cuja
observação das peculiaridades da aparência visual étnica, motivou o seu
registro imagético”. (MELANIAS, 2006, p.36).

Índia Xukuru fazendo panela de barro.


Foto: Curt Nimuendajú, 1934. Acervo Setor de Linguística / Mu-
seu Nacional-RJ.

Essas imagens podem então ser compreendidas, “como fotografias


que cumprissem o objetivo do fotógrafo ao realizá-las: transmitir uma
informação ou um conjunto de informações por meio de uma mensagem
visual, nesse caso e transmitir a informação etnográfica específica no

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 79


olhar do fotógrafo-etnográfo sobre o fato observado e representado
fotograficamente”. (MELANIAS, 2006, p.67). Portanto, a fotografia da
suposta índia Xukuru confeccionando as panelas de barro, bem como
as demais, não devem ser analisadas de uma forma isolada, uma vez
que elas tinham por finalidade fazer um registro etnográfico daquele
momento escolhido pelo pesquisador, a partir de suas concepções e
convicções antropológicas sobre os índios no Brasil.

O índio José Romão de Siqueira.


Foto: Curt Nimuendajú, 1934. Acervo Setor de Linguística / Museu Na-
cional — RJ.

Na carta resposta enviada ao Smithonion Institution em


Washington, em 1943, Curt Nimuendajú comentava da dificuldade
em conseguir do ocupado Carlos Estevão o artigo sobre os índios
no Nordeste solicitado por aquela instituição. Curt também se negou
ele mesmo a atender ao pedido, escrevendo: “Que eu mesmo forneça
informações sobre essas tribus (talvez com exceção dos Sukurú de
Cimbres, quase aculturados, e que visitei em 1934 não acho viável”.34
34
Carta de Curt Nimuendajú, em Belém/PA 26/10/1943, para Julian H. Steward. Museu

80 Edson Silva
(Grifamos). Nimuendajú reafirmava sua crença no desaparecimento dos
“Sukurú”, assimilados pela população envolvente, ou seja, ele continuou
pensando que a aculturação dos índios de Cimbres era um caminho
natural e progressivo e por esse motivo sequer valeria a pena escrever
sobre eles.

Casa e índios Xukuru em Cimbres. Família Xukuru em Cimbres.


Foto: Curt Nimuendajú, 1934. Acervo Setor de Foto: Curt Nimuendajú, 1934. Acervo
Linguística / Museu Nacional — RJ. Setor de Linguística / Museu Nacio-
nal — RJ.

Essa idéia era também partilhada por outros pesquisadores. Em


um artigo publicado no Recife, um ano antes, fazendo um balanço histórico
dos extintos aldeamentos indígenas em Pernambuco, Costa Júnior só
reconheceu a existência, naquele momento, de dois aldeamentos no
Estado, o do Brejo dos Padres e o de Águas Belas “e restos desagregados
de um outro: o de Cimbres”. (1942, p.14). (Grifamos). A extinção dos índios
habitantes em Cimbres foi uma convicção e uma afirmação corrente,
entre aqueles que, na primeira metade do século XX, escreviam sobre os
índios em Pernambuco, como também do SPI, o órgão indigenista oficial.

Nacional/RJ, Setor de Linguística, Arquivo CN/MN, CVO fotograma 1/3, p.31.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 81


Os curibocas, os mamelucos e os “descendentes de
índios”: o olhar do SPI

O sertanista do SPI Cícero Cavalcanti esteve na Serra do Ororubá


em 1944, e escreveu o “Relatório tratando da situação dos índios
Xukurús e suas terras na Serra de Urubá”35. As descrições do sertanista
serão citadas nos anos seguintes, por Estevão Pinto (1956) e o lingüista
Geraldo Lapenda (1962) e pelo próprio órgão indigenista oficial, como
referência sobre os índios daquela localidade. O Relatório é o primeiro
documento oficial contemporâneo, após a extinção dos aldeamentos, em
fins do século XIX, que reconheceu os índios em Cimbres e adjacências.
Embora a presença de Cavalcanti na Serra do Ororubá para os índios
tenha assumido outros significados, que serão discutidos em um dos
capítulos seguintes.
Em seu Relatório, Cavalcanti (apud, ANTUNES, 1973, p.40) citou
os lugares de moradias “Xukurus” na Serra do Ororubá: “estão localizados
em nove malocas, sendo elas as seguintes: Cana-brava, Brejinho, Caldeirão,
Jitó, Lagoa-Machado, Sítio do Meio, Riacho dos Afetos”, locais confirmados
nas entrevistas que realizamos. Cavalcanti utilizou o termo “maloca”
para se referir aos locais de habitações indígenas, uma terminologia
corriqueiramente usada em relação aos indígenas, principalmente os da
Região Norte do Brasil. Afirmou ainda o sertanista:
A coletividade dos xucurus é constituída de 2.191 membros.
Os curibocas ou mamelucos têm os traços característicos da
raça indígena. Os índios puros têm as seguintes característi-
cas: cor bronzeada, mãos e dedos curtos, cabelos lisos, pretos
e grossos conservando-se arrepiados. O índio é quase imber-
be e não tem pêlos no corpo”. (CAVALCANTI, apud, ANTUNES,
1973, p. 40-41). (Grifamos).

Quando o sertanista Cícero Cavalcanti citou categorias de tipos


raciais, ele enfatizou a mistura, destacando a existência, entre os “xucurus”,
de “índios puros”, para os quais descreveu expressões fenotípicas
35
Publicado, em sua quase sua totalidade, em: Antunes, 1973, p.40-43.

82 Edson Silva
específicas. A idéia de impureza étnica caracterizadora daquele grupo
indígena ficou mais clara quando ele os chamou de caboclos, “os caboclos
mais velhos reuniam-se algumas vezes por ano para realizar seus ritos”.
(CAVALCANTI, apud, ANTUNES, 1973, p.41). (Grifamos). As concepções
de Cavalcanti provinham de sua própria história anterior de contato
com os índios, em outras regiões. Ele viajara por postos indígenas do
Mato Grosso, organizados logo após as frentes de instalações das linhas
telegráficas, sob o comando de Rondon, conhecendo os impactos dessas
frentes para os grupos indígenas naquelas regiões. Depois da apresentação
a Rondon de suas pesquisas sobre “línguas e costumes indígenas”, ele foi
convidado pelo militar para trabalhar no SPI, inicialmente como auxiliar
de sertão (FREIRE, 2005, p. 328).
O sertanista descreveu ainda as perseguições aos “Xucurus”,
impedidos de realizar seus rituais religiosos:
Os brancos denunciaram-lhes de catimbozeiros a polícia. Os
chefes de culto, José Romão Jubêgo e Luiz Romão Nure foram
intimidados a comparecer a delegacia. Eles estão vedados de
praticar o “Seu” segredo, ou seja, o “Seu” Ouricuri pela polícia.
Romão e Luiz conhecem bastante de ervas medicinais. Eles
têm feitos inúmeras curas que tem causado admiração aos
próprios médicos. ‘Os civilizados’ deram também denúncias
contra os dois caboclos, tendo a polícia os proibido de cu-
ratórias (Antunes, 1973, p. 41).

Em outro trecho o autor explicou: “O ‘segredo’ ou ‘ouricuri’


ou melhor ‘os ritos’ são praticados pelos caboclos mais idosos, muitos
ocultamente, por causa da polícia que diz ser ‘macumba’”. (Antunes,
1973, p.42). (Grifamos).
Podemos fazer algumas observações sobre esses comentários de
Cavalcanti. Uma primeira é a repetição do termo “caboclo” para referir-se
aos índios. Uma segunda é que os cultos religiosos indígenas, segundo o
sertanista, eram perseguidos por serem acusados de práticas de expressões
religiosas afro-brasileiras. O que significava, possivelmente, resquícios das
grandes perseguições da polícia aos terreiros de “Xangô” localizados nas

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 83


periferias do Recife, durante a década de 1930/1940, quando, além de
prisões de lideranças de cultos, vários terreiros foram fechados. Apesar
do reconhecimento oficial à liberdade de culto, na década de 1950, os
terreiros deviam ser legalmente registrados e só podiam funcionar com
licença da Delegacia de Ordem Social, medida que vigorou até os fins da
década de 1970. (COSTA, 2006).
Uma terceira observação diz respeito à citação dos sobrenomes
supostamente próprios dos indígenas: “Jubêgo” usado por José e “Nure”
por Luiz Romão, o que pode ser significativo por atuarem como líderes
do culto religioso. Uma outra observação sobre a afirmativa do sertanista
levanta uma dúvida: o ritual religioso tido como o “segredo” ou “o
Ouricuri”, era realmente assim chamado e praticado pelos “Xucurus”?
Daí, quais as relações com os cultos praticados pelos Fulni-ô, em Águas
Belas? Será discutido posteriormente o papel desempenhado pelos
“Romão”, uma família vinda do aldeamento em Águas Belas, segundo o
atual Pajé Xukuru, nas mobilizações Xukuru na década de 1950.
Comentou ainda Cícero Cavalcanti que, em razão das constantes
perseguições, muitos índios tinham abandonado seus locais de moradia. E
que ainda assim, eles permaneciam com suas práticas culturais religiosas,
descrevendo-as com detalhes:
Alguns costumes xucurús ainda vivem em seu coração. O
toré é dançado quando fazem festa de Nossa Senhora da
Montanha. Eles reúnem-se e apresentam-se com uns anéis
de palha de milho amarrados aos outros, cintura, braços e
joelhos e canelas. Na cabeça usam o ‘kréagugo’ (canitara)
feito de palha de coqueiro, que rodeiam com flores. No toré,
um caboclo fica de parte tocando gaita, enquanto os outros
dançam formando dois a dois, cada um com um ‘ximbó’ (ca-
cete) na mão a bater no chão acompanhado com o sapatea-
do que fazem. Às vezes cantam e de vez em quando dão um
assobio bastante forte, em sinal de alerta. (ANTUNES, 1973,
p. 41). (Grifamos).

Em um outro trecho transcrito do Relatório explicou o sertanista:


“Os xucurús mais idosos” não falavam “corretamente seu dialeto, todavia,

84 Edson Silva
conservavam alguns vocábulos e frazes com os quais se exprimem nos
assuntos que lhes são peculiares com auxílio de palavras em português”
(ANTUNES, 1973, p. 42). Ora, a partir de qual parâmetro Cavalcanti
poderia fazer tal afirmação sobre a fala correta dos “xucurús”? O que ele
escreveu revela mais uma vez não somente as suas concepções de pureza
cultural, como também sua visão das relações dos índios no quadro social
em que estavam inseridos.
Em sua reunião de novembro de 194436, o Conselho Nacional de
Proteção aos Índios (CNPI) ouviu o relato de José Maria de Paula, Diretor
do SPI que, acompanhado do Chefe da Inspetoria Regional IR4, viajara
recentemente aos Estados de Pernambuco e Paraíba. O Diretor afirmou
ter percorrido a Serra do Ororubá e verificado “que se trata de terreno
que há anos e anos vem sendo parcelado e vendido ou transferido, por
herança, pelos descendentes dos índios Urubú”. (Grifamos).
Dizia ainda José Maria:
Desses antigos descendentes existem muito poucos, mas in-
teiramente ligados à população rural que trabalha nos en-
genhos, mas sem hábitos tribais. Já não falam a língua, já
não conservam a tradição – são enfim o que se chamam
trabalhadores nacionais. Alguns não têm sequer vestígios de
índios. Falei por exemplo com um que estava sendo aureo-
lado como índio legítimo e que me disse que era remotíssima
a sua origem indígena. Por motivo independente do espírito
do SPI não podemos dar assistência a todos esses descen-
dentes. (Grifamos).

O Diretor do SPI, ao relatar as impressões da visita à Serra do


Ororubá, expressou suas convicções sobre a inexistência de índios naquela
região. Ele recorreu à idéia da mistura, da dispersão dos “descendentes
de índios”, que eram em um número diminuto, na população local. Não
foram encontrados sinais da língua materna, condição para garantir uma
autenticidade indígena. A inexpressiva quantidade de “descendentes”,
portanto, não justificava a instalação de um posto do órgão indigenista
Relatório Anual do CNPI, 1944/Ata da 14ª Sessão (versão não microfilmada). SEDOC/
36

Museu do Índio/RJ

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 85


na localidade. A partir dessas concepções, compreende-se que estava em
Jogo não a capacidade dos povos nativos imporem e fazerem
reconhecer uma territorialidade própria, articulada a uma
identidade distintiva e a tradições em permanente mudança
frente à interação com outras populações e com o aparelho
de poder, mas sim processos geridos pelo próprio Estado
(LIMA, 1997, p.353).

Na Ata daquela reunião está expressa a posição do General


Rondon, que ponderando e com na base a “teoria mexicana” ele afirmou
que:, “se deve ao menos pensar futuramente proteger todos esses mestiços
de índios”, “eles merecem toda a proteção do Estado”. (Grifamos).
Na continuidade do relato de José Maria, percebemos que ele
usou como parâmetro, para tratar dos índios na Serra do Ororubá, os
índios do Posto Nísia Floresta, na Paraíba, visita sobre a qual ele disse:
“colhi a melhor das impressões. A escola é um modelo”. O Diretor
enfatizava que levou consigo, na viagem até aquele Posto, o “Prof. Dr.
Valdemar Valente, de Antropologia e Etnologia da Faculdade de Filosofia
do Recife”. Vale salientar que o citado professor, conhecido pelos seus
estudos sobre o sincretismo e os cultos afro-brasileiros no Nordeste, era
colega de Estevão Pinto na mesma instituição de ensino e, mais tarde, na
Fundação Joaquim Nabuco, e esteve acompanhando Pinto nas viagens
de pesquisas entre os Fulni-ô, em Águas Belas.
O Diretor José Maria falou ainda ter chamado Valdemar Valente
para acompanhá-lo na viagem à Paraíba, ”para ter uma idéia do que é
nosso SPI e ele veio encantado com o que viu e teve até estas palavras:
‘pelo que vi, posso dar testemunho pessoal de que esses índios estão
realmente protegidos’”. O convite a estudiosos da Antropologia na Região
era uma estratégia para dar conhecimento e legitimação acerca da
atuação do órgão indigenista. A estratégia pode ainda ser confirmada na
conclusão do relato de José Maria:
Tive também ocasião para convidar todos os estudiosos de
etnografia indígena, dos Estados de Pernambuco e Paraíba
para prestar ao SPI sua colaboração, e pretendo fazer assim

86 Edson Silva
em todo o Brasil. Congregar todos aqueles que se interessam
pela matéria, a fim de coordenar gente ao núcleo central, em
benefício da etnografia.37

Não foi, portanto, sem motivos que, findo seu relato, José Maria
recebeu as felicitações do General Rondon, pelo cumprimento da missão
de que fora encarregado.

A população misturada: caboclos, mestiços e afro-


índios

No início de agosto de 1951, o Diretor do SPI no Rio de Janeiro


enviava ao Chefe da 4ª Inspetoria Regional, sediada no Recife, uma
comunicação apresentando e recomendando toda a colaboração a
William Hohenthal, etnólogo da Universidade da Califórnia que realizaria
estudos com os índios assistidos pelos Postos do SPI na jurisdição da
IR4.38 A estada do pesquisador norte-americano entre os índios de
parte do Nordeste recebeu a chancela estatal, o que o obrigava a dar
conhecimento ao órgão indigenista oficial sobre os resultados de suas
pesquisas, o que ele fez por meio de um relatório encaminhado ao SPI,
além da publicação de artigos em periódicos sobre suas observações.
O pesquisador norte-americano teve sua viagem financiada por
uma bolsa de estudos do Conselho de Pesquisas em Ciências Sociais,
então sediado em Washington, percorreu, entre outubro de 1951
até maio de 1952, postos do SPI nos Estados da Bahia, pelo Sertão
do São Francisco, Sergipe, Alagoas e Pernambuco. Durante quatro
meses, acompanhado de sua esposa, Hohenthal esteve em Águas Belas,
pesquisando os Fulni-ô. Além de um extenso relatório datado de 1952,
encaminhado ao SPI, o pesquisador enviou ao seu país de origem um

37
Relatório Anual do CNPI, 1944/Ata da 14ª Sessão (versão não microfilmada). SEDOC/
Museu do Índio/RJ
38
Ofício de José Maria da Gama Malcher, Diretor do SPI, Rio de Janeiro em 7/08/1951,
para Chefe da 4ª Inspetoria Regional do Serviço de Proteção aos Índios. Museu do Índio/
Sedoc, microfilme 182, fotograma 265.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 87


caixão com “artefatos” recolhidos entre os índios, destinados ao Museu
de Antropologia da Universidade da Califórnia.39
No seu “Relatório de viagem aos índios da I.R.4”, enviado à Diretoria
do SPI no Rio de Janeiro, em 1952, Hohenthal afirmou que a finalidade
de sua viagem foi “fazer um levantamento etnológico dos remanescentes
dos índios”. Segundo o pesquisador, os grupos foram descritos no seu
Relatório de acordo com a ordem cronológica de sua estada entre eles.
Assim, o primeiro dos “remanescentes de grupos indígenas” descrito
foram os “Shucurú”, visitados em 1951, os quais o antropólogo dedicou
quatro breves parágrafos. Sobre a visita a “alguns estabelecimentos dos
remanescentes da tribu Shucurú”, etnômio que Hohenthal retomou de
Nimuendajú, o antropólogo norte-americano escreveu:
Devido a dois séculos ou mais de miscigenação e influên-
cia cultural alheia, os remanescentes dos Shucurú hoje em
dia são, de grande parte, mestiços, e somente guardam uma
vaga lembrança de sua antiga cultura, e poucas palavras da
própria língua indígena, que, aliás, nenhum indivíduo fala
correntemente. O vocabulário que consegui registrar é sus-
peito, pois contém palavras induvitalmente de origem Tupi.
Como muitos outros grupos da região nordestina, descen-
dentes das antigas tribus, talvez uma designação melhor
para os Shucurú atual seria ‘Afro-índios’, pois a influencia
negra na sua raça e na sua cultura era e é forte.40 (Grifamos).

É importante salientar, como veremos nos capítulos posteriores,


que nessa época os índios da Serra do Ororubá não contavam ainda
com um Posto do SPI, mas mantinham já há alguns anos relações muito
próximas com o órgão indigenista oficial, no Recife. Portanto, a pesquisa
entre os índios na Serra do Ororubá foi apoiada desde o início pela
chefia da I.R.4, pois era esperada pela seção regional a elaboração de

39
Ofício de Raimundo Dantas Carneiro, Chefe da IR4 SPI, em 06/05/1952, para o Diretor
de Carteira de Expedição do Banco do Brasil Recife. Museu do Índio/Sedoc, mic. 182,
fotog. 292.
40
Relatório de viagem aos índios da I.R.4, pelo Dr. William D. Hohenthal Jr. no ano de
1952, p.2. Museu do Índio/Sedoc, mic. 379, fotog. 798-821.

88 Edson Silva
um Relatório que viesse justificar, apesar dos argumentos contrários
apresentados anteriormente por José Maria de Paula, junto à Diretoria no
Rio de Janeiro, a necessidade da instalação de um posto do SPI naquela
localidade. Isso fica claro quando Hohenthal afirmou, na introdução da
sua brevíssima descrição sobre os “Shucurú”, que a cópia de um relatório
por ele elaborado em 1951 e entregue “a pedido do Dr. Raimundo
Dantas Carneiro, chefe da 4ª IR”, fora remetido à Diretoria do SPI/RJ. Não
conseguimos localizar a cópia do referido relatório, que possivelmente
serviu de base para a elaboração de um texto ou talvez tenha sido o
mesmo publicado sob o título “Notes on the Shucurú indians of Serra
Ararobá, Pernambuco, Brasil”, na Revista do Museu Paulista, em 1954. 41
Lendo o que escreveu o etnólogo norte-americano sobre os
“Shucurú”, percebemos de pronto sua determinação em classificar
os índios na Serra do Ororubá como mestiçados. Os critérios para
essa classificação foram a suposta ausência de uma cultura material
originária e a inexistência de uma língua nativa. Hohenthal também
utilizou comparações, como fizeram outros pesquisadores sobre o
grupo, para explicar os vocábulos indígenas coletados. Suspeitava serem
originalmente “Tupi”, muito embora na introdução geral do seu Relatório
tenha afirmado que os grupos indígenas visitados deviam ser classificados
como “Tapuias”, que estes grupos não eram nem Gê nem Tupi. Diante
de uma vaga memória cultural, da falta de uma língua nativa corrente e
da enfatizada mestiçagem dos “remanescentes dos Shucurú”, o etnólogo
propôs classificá-los na categoria “Afro-índos”, o que, além de negar a
identidade indígena diluída na mistura com os negros, significava afirmar
também o desaparecimento dos índios.
No texto publicado pelo Museu Paulista, Hohenthal escreveu
que viajou à Serra do Ororubá tendo como guia um índio “Shucurú”,
empregado da Inspetoria .Regional do SPI no Recife.42 Possivelmente
se tratava de Jardelino Pereira de Araújo, ex-morador em Cana Brava
(“Cana Braba”), citado em vários depoimentos que colhemos como um

41
Revista do Museu Paulista (Nova Série). São Paulo, vol. VIII, p.93-166, 1954..
42
“Notes...”, op. cit., p. 95.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 89


índio que se aposentou como funcionário do órgão indigenista na Capital
pernambucana. Jardelino era considerado, pelos índios moradores
na Serra do Ororubá, seu Cacique junto ao SPI e assim também pelo
órgão indigenista oficial. Segundo ainda os/as entrevistados/as, ele fora
acolhido pelo SPI quando fugiu para o Recife, após ter assassinado um
tio na localidade onde morou.
As descrições de Hohenthal Jr. (1954) sobre os Xukuru, em
“Notes...”, não permitem maiores possibilidades de compreender as
condições em que foi realizada sua pesquisa, ou seja, dentre outras
questões, o conhecimento mais preciso da forma como ele coletou os dados
a respeito do grupo em estudo, a partir de quais perspectivas teóricas fez
suas observações e fundamentou sua narrativa. Sabe-se das suas relações
acadêmicas com o também antropólogo norte-americano Robert Lowie,
um dos organizadores do Handbook of South American Indians no qual
foi publicado “The marginal tribes”, e ainda das influências recebidas de
Alfred Métraux que igualmente participou da mesma coletânea sobre os
índios (BARRETO FILHO, 1989, p.5-6).
Nos estudos de Hohenthal Jr. sobre os índios no Nordeste,
A noção de cultura que está em jogo está ancorada no
realismo positivista do evolucionismo e do difusionismo,
principalmente, expresso na idéia de ‘traços culturais’
objetivos e visíveis que um grupo consegue reter após o
momento desorganizador do contato cultural. Na perspectiva
de Hohenthal são os critérios de evidência empírica observável
de distribuição de traços culturais originais (‘aborígenes’) que
vão fornecer as ‘fronteiras étnicas’ e culturais de um grupo e
vão permitir definir, dependendo do grau de retenção destes
traços por parte deste, o “seu” nível de aculturação. (1954,
p.9).

O pesquisador norte-americano estava, portanto, preocupado em


recuperar uma suposta originalidade perdida dos índios que viviam em um
estado de progressiva aculturação e desintegração social. Nesse sentido,
Hohenthal Jr. Afirmou após citar as impressões de Curt Nimuendajú, que
os “Shucurú” eram “um grupo que sofreu grande perda cultural e onde os

90 Edson Silva
integrantes foram aculturados ao ponto deles serem quase indistinguíveis
de seus vizinhos neo-brasileiros”.43 Por diversas vezes ele se referiu aos
índios em uma situação de continuidade aculturadora na convivência
circunvizinha com os “neo-brasileiros”, termo utilizado de forma ufanista
por Darcy Ribeiro (1982) para descrever, a partir de sua análise, a nova
configuração uniétnica do Brasil, constituído pelos novos brasileiros.
Na visão do antropólogo, cabia aos pesquisadores reconstituir
historicamente o passado indígena e salvar o possível do que restava,
fossem vocábulos, vestígios da cultura material, por meio da investigação
da organização social pretérita, das expressões culturais e míticas
desses povos em adiantado estado de aculturação e miscigenação. Em
seu texto sobre os “Shucurú”, o antropólogo além dos relatos oficiais
de administradores coloniais, missionários e cronistas, retomou as
informações contemporâneas de Estevão Pinto, Curt Nimuendajú, Mário
Melo e Cícero Cavalcanti, inclusive transcrevendo os vocábulos indígenas
coletados por esses últimos. Porém, ao realizar seu levantamento de
informações, Hohenthal desconsiderou os diversos contextos e situações,
bem como as origens da produção das fontes históricas por ele citadas,
quais interesses e perspectivas sobre os índios permeavam essas fontes.
Para esses autores contemporâneos a Hohenthal e citados pelo
antropólogo norte-americano, a ausência de uma pureza étnica dos
índios, em razão das misturas, resultava das relações de convivência, dos
casamentos entre indivíduos de supostos grupos originários (africanos,
lusos, índios) na região. Essa mistura, se por um lado provocava a perda
de uma essência cultural indígena, por outro lado, por meio do amálgama,
gerava uma população brasileira. Nessa perspectiva, os “Shucurú” viviam
um processo de desintegração social. Os índios, portanto, desprovidos de
sua pureza física e cultural originária, desapareciam rapidamente com o
surgimento do caboclo.
Nessa mesma perspectiva, em 1970 Darcy Ribeiro publicou a
primeira edição do livro Os índios e a civilização, com o subtítulo “a
integração das populações indígenas no Brasil moderno”. Em nota na

43
“Notes...”, op. cit., p.94.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 91


Introdução, o antropólogo afirmou que o livro era resultado do relatório
de pesquisas que ele realizara desde 1952 para a Unesco, parcialmente
publicado em 1958 e com versões de alguns dos capítulos divulgadas em
periódicos nacionais e internacionais, nos anos subseqüentes. No livro
o autor fez uma retomada histórica sobre o processo de esbulho das
terras dos “índios do Nordeste”. Cabe lembrar ainda que Darcy Ribeiro
foi funcionário do SPI e um grande admirador das idéias e da pessoa do
Marechal Rondon.
A partir de um relatório de Alípio Bandeira, que visitou, em 1913,
os Potiguara na Paraíba, Darcy Ribeiro afirmou:
Já então, nenhum potiguara falava o idioma tribal e, vistos
em conjunto, não apresentavam traços somáticos indígenas
mais acentuados que qualquer população sertaneja do Nor-
deste, muitos deles tinham até fenótipo caracteristicamente
negróide ou caucasóide. (1982, p.53).

O autor enfatizava a pouca diferença entre aquele povo indígena


e seus vizinhos, e que os índios, em seus cultos, estavam em um “processo
de aculturação”, por terem adotado, além de instrumentos musicais,
cantos e danças de origem africana.
Para Darcy Ribeiro, outros povos indígenas na Região viviam em
condições semelhantes aos potiguaras. Em alguns deles se encontrava um
pouco mais da cultura original, inclusive o uso da língua em cerimônias
religiosas. Tomando por base as informações de Hohenthal, em um artigo
publicado em inglês, na Revista do Museu Paulista, Ribeiro escreveu: “Na
Serra do Ararobá, em Pernambuco, sobrevivem cerca de mil e quinhentos
índios Xukurú, em condições ainda mais precárias que a dos Potiguara”.
Com suas terras esbulhadas desde os tempos coloniais, os índios estavam
“Altamente mestiçados com brancos e negros, já não se diferenciavam,
pelo tipo físico, da população sertaneja local. Haviam esquecido também o
idioma e abandonado todas as práticas tribais, exceto o culto do Juazeiro
Sagrado, se é que este cerimonial fora originalmente deles”. (1982, p.54).
O que podemos entender das afirmações de Darcy Ribeiro é
que, em razão do culto ao Juazeiro Sagrado, existia um possível vínculo

92 Edson Silva
religioso entre os Xukuru e os Fulni-ô. Sendo que, para Ribeiro, ainda
baseado em Hohenthal Jr. e também em Estevão Pinto, os índios de Águas
Belas, apesar de “altamente mestiçados, a ponto de não poderem ser
distinguidos, pelo tipo físico da população sertaneja”, viviam separados e
conservavam sua língua originária. Além desses aspectos, para Darcy eram
nas práticas cerimoniais longe dos não-índios circunvizinhos, quando os
“Fulniô” podiam “reviver as tradições tribais e aprofundar o sentimento
de sua especificidade étnica e religiosa”. (1982, p. 54-55). Ou seja, eles
afirmavam assim, diferentemente dos “Xukuru”, uma autenticidade
indígena.
Observemos que Darcy Ribeiro classificou os índios utilizando os
mesmos critérios da permanência ou não de aspectos de uma suposta
cultura originária, em função da maior ou menor convivência e relações
com as populações não indígenas locais, e também da continuidade
do falar uma língua e a prática de rituais indígenas próprios. Assim
como fizeram os outros pesquisadores do período que já analisamos. A
concepção do antropólogo fica mais clara no texto em que ele analisou
o processo histórico de esbulhos das terras indígenas no Sertão do
Nordeste. Ele afirmou que, em função da expulsão dos seus territórios,
os índios se dispersaram, vivendo, no início do século XX, “aos bandos
que perambulavam pelas fazendas, à procura de comida” e de forma
pejorativa e talvez sarcástica, completou afirmando que “vários magotes
desses índios desajustados eram vistos nas margens do São Francisco”
(1982, p.56).
Na continuidade do seu texto, quando tratou das relações dos
grupos indígenas com os núcleos urbanos próximos aos seus lugares de
moradia, citando, dentre outros exemplos, os Fulni-ô com Águas Belas, e
os Xukuru em Cimbres, Darcy Ribeiro afirmou:
Assim viviam os seus últimos dias os remanescentes dos ín-
dios não litorâneos do Nordeste que alcançaram o século XX.
Estavam quase todos assimilados linguisticamente, mas con-
servavam alguns costumes tribais. Viviam ao lado de cidades
que crescera em seus aldeamentos, sem fundir-se com eles.
(1982, p.56). (Grifamos).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 93


Esse trecho se assemelha em muito ao que escreveu Estevão
Pinto, no anteriormente comentado conto “O caboclo”.
Discutindo as chamadas “etapas da integração”, Darcy Ribeiro
inseriu os “Xukuru”, assim como outros grupos indígenas no Nordeste,
na categoria “integrados” no quadro “Situação dos grupos indígenas
brasileiros em 1957. Quanto ao grau de integração na sociedade nacional”
(1982, p.236). Definindo o que seriam os grupos “integrados”, Ribeiro
explicou tratar-se de grupos que se encontravam no século XX “ilhados
em meio à população nacional”, vivendo como reserva de mão-de-obra,
habitando pequenas parcelas de terras ou perambulando, dispersos na
dependência e miséria. Acrescentou ainda o antropólogo:
Pela simples observação direta, ou com apelo à memória,
seria impossível reconstruir, ainda que palidamente a antiga
cultura. Muitos grupos nessa etapa haviam perdido a língua
original, nesses casos, aparentemente, nada os distinguia da
população rural com que conviviam. Igualmente mestiçados,
vestindo os mesmo trajes, talvez apenas um pouco mais
maltrapilhos, comendo os mesmo alimentos, poderiam pas-
sar despercebidos se eles próprios não estivessem certos de
que constituíam um povo e não guardassem uma espécie
de lealdade étnica e se não fossem vistos pelos seus vizi-
nhos como ‘índios’. Aparentemente, haviam percorrido todo
o caminho da aculturação, mas para se assimilarem faltava
alguma coisa imponderável – um passo apenas que não po-
diam dar. (RIBEIRO, 1982, p.235) (Grifamos).

Em suas análises, o antropólogo por vezes expressou certa


ambigüidade sobre os povos por ele classificados como “integrados”.
Discorrendo sobre A “destribalização e marginalidade”, Ribeiro retomou o
caso Xukuru em suas manifestações religiosas, embora tenha confundido
o culto deles com o dos Fulni-ô; ele enfatizou o caráter secreto dos rituais
indígenas, apesar de se tratarem,
Nos dois casos, de tribos profundamente aculturadas, cujos
membros são quase indistinguíveis, por seu modo de vida,
dos sertanejos da região, principalmente os Xukuru que per-
deram completamente o domínio da língua tribal. seus cultos

94 Edson Silva
têm de revelador, primeiro, a importância que os índios lhes
atribuem e sua função explícita de mecanismo de intensifi-
cação da solidariedade grupal e de afirmação da identidade
étnica. Segundo, o fato de que não guardam, provavelmente,
quase nada da antiga tradição, tendo sido “elaborados” no
processo de aculturação, apesar dos índios concebê-los
como expressões de suas tradições ancestrais. (RIBEIRO,
1982, p.407) (Grifamos).

Faltou ao antropólogo investigar e problematizar exatamente


como os Xukuru “aculturados” se afirmavam enquanto grupo étnico, em
suas cerimônias religiosas, a exemplo da participação nas festas religiosas
e com a dança do Toré, em Cimbres, e ainda como eles (re)elaboravam
suas expressões culturais a partir e no universo do ambiente social onde
estavam inseridos.
A ambigüidade a que nos referimos pode ser constatada no texto
do antropólogo, quando ele afirmou conclusivamente:
Conforme demonstramos exaustivamente, mesmo os grupos
mais aculturados não parecem predispostos para essa dis-
solução e fusão; ao contrário, pendem para uma conciliação
da identidade étnica tribal com certos modos de integração
na vida nacional, ou ao menos na sociedade regional em que
se encontram inseridos. (RIBEIRO, 1982, p.423).

Em seguida, o autor questionou as interpretações sobre a


assimilação dos índios enquanto entidades étnicas, pois para ele o que
poderia ocorrer era a “absorção de indivíduos desgarrados, ao passo que
aquelas entidades étnicas desapareceriam, ou se transfiguravam para
sobreviver” (RIBEIRO, 1982, p.424). O antropólogo escreveu ainda que,
com a aculturação e integração, ocorria uma progressiva diminuição
do contingente populacional indígena, mas reafirmou os casamentos
interétnicos das mulheres indígenas “formar uma população nova com
fenótipo indígena. O núcleo tribal, cada vez mais reduzido, subsiste,
porém, como tal ou desaparece por extinção, sem se fundir jamais no
neobrasileiro”. (RIBEIRO, 1982, p.425).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 95


A perspectiva de Darcy Ribeiro não mudou, como se pode verificar
no texto “Os índios e nós”, republicado uma década e meia depois, na
coletânea Sobre o óbvio organizada pelo autor, em 1986. No referido
texto, originalmente apresentado no Simpósio sobre Política Indigenista
e Colonialismo, durante o XLII Congresso Internacional de Americanistas,
e publicado inicialmente em 1977, o antropólogo afirmou realizar uma
avaliação baseada em dados de 1956. Sobre a “integração” dos grupos
indígenas ele afirmou que:
Em lugar de assimilação o que ocorre é o é o seu desapareci-
mento por desgaste etnocida ou por extermínio genocida, ou
sua sobrevivência como grupos ‘integrados’ a vida regional,
na qualidade de contingentes cada vez menos diferencia-
dos da gente do seu contexto mas que continuam, apesar
disso, se identificando e sendo identificados como indígenas
(RIBEIRO,1986, p.248).

Para Darcy Ribeiro (1986) a integração era uma condição de


sobrevivência das populações indígenas que, como “microetnias”, se
integravam enquanto “contingentes residuais”, após o decréscimo
populacional, a exemplo dos casos de grupos com séculos de contato,
vivendo em condições sociais precárias:
Alguns deles conseguem conservar um pouco de sua cultura
indígena original nos seus modos de prover a sua experiên-
cia do mundo. Mas os mais aculturados raramente conser-
vam traços distintivos que não sejam os que lhes dão um
mínimo de sustentação moral para suportarem ser diferentes
num mundo majoritariamente formado pro brancos, negros e
mestiços, todos esquecidos de suas raízes e metidos na pele
étnica e na cultura da sociedade nacional (RIBEIRO, 1986,
p. 254).

A idéia de um Brasil moderno formado por uma macroetnia,


foi retomada e defendida pelo antropólogo em estudos posteriores, a
exemplo do livro O povo brasileiro, segundo ele próprio, a síntese de
sua “teoria de Brasil”. O livro foi publicado em 1995, quando o autor
se encontrava gravemente enfermo, de uma doença terminal. Na sua

96 Edson Silva
perspectiva, os grupos indígenas, mesmo aqueles considerados “isolados”,
enquanto microetnias em nada influenciariam a configuração do país, muito
menos os “integrados”!
Os méritos de Darcy Ribeiro decorrem de ter sido o primeiro autor
que discutiu o “problema indígena” de uma forma ampla e por sua explícita
posição política diante do tema; malgrado suas concepções, tornou as idéias
do antropólogo bastante conhecidas. Os índios e a civilização, livro com
várias edições, por sua quantidade de informações e sistematização de
dados “continua a ser uma peça insubstituível, referência obrigatória para
qualquer apreciação global da população indígena brasileira” (OLIVEIRA,
2001, p.421). Além de ter sido traduzido para outras línguas, adotado nos
cursos de Ciências Sociais no Brasil, formando uma geração de estudantes,
foi também lido por profissionais de outras áreas e pelo público em geral. As
idéias desse livro sobre os índios no Nordeste, no caso aqui sobre os Xukuru,
influenciaram a visão de outros estudiosos na Região, como demonstraremos
a seguir.
Analisando, em 1962, o “dialeto Xucuru”, Geraldo Lapenda
professor e lingüista da UFPE, retomou as informações do sertanista Cícero
Cavalcanti e afirmou que também pesquisara junto aos índios Luis Romão de
Siqueira (Peteregwe) e Jardelino Pereira de Araújo (Mãnojé). Após repetir as
informações colhidas por Cavalcanti sobre os lugares onde os Xukuru viviam,
“em malocas, espalhados pela Serra do Ororubá”, o lingüista escreveu: “A
população é hoje misturada com brancos e negros. Incluindo os mestiços, são
aproximadamente 2.200 caboclos. Em 1749, havia somente 642 indivíduos
puros; em 1951, cerca de 1.500 puros e mestiços.” (LAPENDA, 1962, p.11).
Assim, as idéias de Darcy Ribeiro, que resultaram de suas pesquisas
na década de 1950, influenciaram e, até certo ponto, cristalizaram as
representações sobre os índios para muitos leitores. Quando Ribeiro afirmou
que os grupos indígenas no Nordeste somente tinham “significado como
acontecimentos locais, imponderáveis”, ou seja, sem grande importância, o
antropólogo estava contribuindo para, no mínimo, apagar dos índios dessa
Região da História. O que de fato ocorreu, como é facilmente constatável ao
verificarmos a produção acadêmica sobre o assunto, até o início da década
de 1980.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 97


A influência das concepções de Darcy Ribeiro se faz notar ainda
em publicações recentes, a exemplo do livro Pré-História do Nordeste do
Brasil, em sua 3ª edição atualizada, publicada em 1999. Trata-se de um
livro destinado aos estudantes de Arqueologia, malgrado a perspectiva de
relacionar os índios atuais aos chamados “grupos pré-históricos”, onde a
autora, em suas conclusões, reproduziu as idéias comuns entre aqueles
estudiosos que escreveram sobre “os índios” na Região. A autora afirmou
que o texto “O que sobrou dos índios pré-históricos do Rio Grande do
Sul”, publicado em uma coletânea de estudos arqueológicos sobre aquele
Estado a fez refletir,
Sobre o que sobrou dos índios pré-históricos do Nordeste e
dos índios da colonização, contatados em 1500. O panorama
é deprimente, pois, expressões como ‘já muito aculturados’,
ou ‘mestiços de negros e brancos’, ‘católicos sincretizados’,
etc., encerram eufemismos que, na realidade, significam a
perda da cultura indígena com analfabetismo e ignorân-
cia da cultura brasileira; perda de recursos criativos para a
sobrevivência, sem a obtenção de outros melhores e mais
efetivos, abandono da medicina indígena sem acesso à me-
dicina moderna e assim por diante. Não poderia ser de outro
modo, na medida em que são habitantes de uma região
extremamente pobre, com vizinhos caboclos e brancos tão
miseráveis e esquecidos quanto eles. (MARTIN, 1999, p.335).
(Grifamos).

É, no mínimo, por demais questionável tomar por base um texto


com reflexões sobre outra situação social e em um diferente espaço
geográfico, para associá-lo de forma acrítica as populações indígenas no
Nordeste.
Depois de lembrar que, o Nordeste, com a colonização portuguesa
a miscigenação começou cedo, a autora afirmou:
Quando no século XX, desperta-se a consciência antropológi-
ca pela salvação do índio, já o indígena nordestino era
menos ‘índio’ que o amazônico e sua preservação em reser-
vas teve menos ressonância internacional e nacional que a

98 Edson Silva
dos índios da grande floresta. ‘Índio sem penas não é índio’
e os Pankararu, Atikum e Xukuru, por citar alguns exemplos,
cada vez menos índios porque cada vez mais abandonados,
têm seus dias contados como nação. (MARTIN, 1999, p.335).
(Grifamos).

Para a arqueóloga, dos índios “pré-históricos” dos sertões


nordestinos restaram “algumas centenas teimosamente aferrados a sua
categoria indígena”. Ela apoiou sua afirmação citando o Handbook
of South American Indians, que classificou esses grupos como tribos
marginais. A pesquisadora citou uma situação bastante ilustrativa de sua
visão sobre os índios. A situação aludida ocorreu após uma conversa
com uma Pankararé que encontrou na “Ilha da Viúva, município de
Itacuruba” (PE), (cabe esclarecer que a autora cometeu um equívoco,
pois na referida localidade habitavam os Tuxá), quando a índia relatava
sua indignação diante dos questionamentos da sua identidade étnica por
parte dos funcionários da Chesf, que construía uma hidrelétrica no local,
inundando as terras indígenas. Na ocasião, os índios colocaram suas
roupas cerimoniais e foram até os representantes da estatal reivindicar
seus direitos. Sobre o episódio a arqueóloga concluiu: “Indígena que
precisa ‘trajar-se de índio’ para convencer dos seus direitos, deixou,
infelizmente, de ser respeitado como índio há muito tempo”. (MARTIN,
1999, p.335).
Ou seja, passados tantos anos da publicação do livro de Darcy
Ribeiro, podemos perceber o significado da recepção e influência de suas
idéias a respeito dos índios no Nordeste. Mesmo com a realização de vários
estudos recentes, a partir de novas abordagens e perspectivas teóricas
que procuram compreender as dinâmicas históricas, sociais e políticas
em que estão inseridos os índios na Região, a citada arqueóloga ainda
acredita que as expressões de uma suposta cultura originária, o fenótipo,
seriam as marcas distintivas étnicas desses povos. Para a arqueóloga, na
ausência dessas marcas, eles são chamados de “remanescentes”. Não são
mais índios. São ou estão mais para a massa de ignorantes, pobres ou
miseráveis caboclos que habitam o interior do Nordeste.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 99


Questionando tais concepções, um estudioso contemporâneo
afirmou que:
O destino dos povos e culturas indígenas, tal como o de
qualquer grupo étnico ou mesmo nação, não está escrito pre-
viamente em algum lugar. A sua tendência à extinção não
foi jamais um processo natural, mas apenas o resultado da
compulsão das elites coloniais em instituir a homogeneidade
apagando ou abolindo as diferenças. Buscando excluir a fer-
ro e a fogo toda e qualquer outra alternativa, a integração era
descrita como se fosse uma fatalidade, ou até mesmo a única
salvação possível, para a qual os próprios índios deveriam
canalizar suas forças e esperanças. (OLIVEIRA, 1995, p.80).

São muitas as imagens e concepções expressas tanto nos


documentos oficiais, como em obras sejam de literatos, memorialistas,
cronistas e ainda por pesquisadores, estudiosos, especialistas que elaboram
reflexões sobre as populações no Agreste e Sertão pernambucano. E
também a respeito dos moradores na Serra do Ororubá, ao longo dos
anos, desde fins do século XIX até a década de 1960 e mesmo após o
reconhecimento étnico estatal, são bastante reveladoras. Estão baseadas
nas idéias da ausência, além do fenótipo, de uma pureza originária da
cultura indígena representada pela língua e vestígios da cultura material.
A partir dessas concepções foi negada a identidade dos indígenas,
considerados misturados, aculturados, em desaparecimento. Imagens
de que, na Serra do Ororubá e na região em seu entorno só existiam
remanescentes, descendentes de índios. Enfim, apenas caboclos.

Os caboclos que são índios: a reflexão contemporânea


sobre o Nordeste indígena

Ao contrário do considerável volume de estudos, alguns deles


publicados, realizados nos últimos anos, na área da Antropologia, sobre
os povos indígenas no Nordeste, é facilmente constatável que pesquisas
tendo os índios como objetos de reflexões na História são ainda em
número muito reduzido. Por outro lado, também não localizamos

100 Edson Silva


nenhum estudo, nessa área do conhecimento, fazendo uma abordagem
de um grupo indígena contemporâneo na Região. Os estudos, em uma
perspectiva especificamente histórica, se limitam ao período colonial e
ao século XIX. Como foi afirmado anteriormente, a crença, expressa por
intelectuais regionais de que a extinção dos aldeamentos, pelo Governo
Imperial provocou o desaparecimento das populações indígenas,
que foram misturadas e incorporadas aos contingentes de moradores
vizinhos, originando o caboclo, no máximo um remanescente, influenciou
os estudos posteriores sobre a História no Nordeste.
Os então chamados caboclos ou remanescentes de índios no
Nordeste foram vistos em uma perspectiva de análise das perdas culturais.
E, por essa razão, durante muito tempo esquecidos, até mesmo pelas
abordagens antropológicas, pois se tratava de populações marginais,
espoliadas, pensadas como totalmente aculturadas, quando situadas em
uma escala evolucionista, comparadas com os grupos indígenas do Norte
do Brasil, portadores de uma legítima e suposta pureza cultural originária.
Foram, portanto, desprezados os processos históricos vivenciados
por essas populações. Processos que precisam ser conhecidos, para
se compreender as especificidades das situações nas quais os grupos
afirmam uma identidade indígena, exigindo o reconhecimento oficial e
reivindicando seus direitos, principalmente os relativos às terras invadidas
por terceiros.
Assim, em novas abordagens, pensar os “índios misturados”
no Nordeste é antes de tudo, conhecer os processos históricos e os
fluxos culturais, expressos nas relações com diferentes atores sociais
nas situações de cada grupo indígena. A cultura não é mais vista na
perspectiva das perdas, mas, sim, como expressão das relações sócio-
históricas de diferentes atores interagindo, local e globalmente, desde
as disputas pelas terras às várias influências políticas, no âmbito público
ou mais próximo, nas articulações, alianças e nas organizações sociais.
Uma análise dos fatos e acontecimentos históricos deve então levar em
conta as diferentes temporalidades e leituras que deles foram realizadas,
a partir de interesses explícitos ou não, quando expressos publicamente
quase nem sempre pelos índios ou a eles favoráveis.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 101


Contabilizados em 12 grupos nas pesquisas realizadas nos anos
1950 (RIBEIRO, 1982, p.462), no início da década de 1980, totalizavam 20
grupos, excetuando o Maranhão onde os povos indígenas são classificados
em outra área cultural, (CEDI, 1983:61; 69); vinte anos depois foram
relacionados em 41 povos, habitantes entre o Ceará e a Bahia (CIMI,
2001:164). O (re)surgimento dos povos indígenas no Nordeste constitui
um fenômeno que questiona as explicações sobre o fim dos índios na
Região.
As abordagens recentes é a partir dos processos de
territorialização, em que indivíduos constroem uma identidade com
base na reorganização de afinidades culturais e vínculos afetivos e
históricos, que “serão retrabalhados pelos próprios sujeitos em contexto
histórico determinado e contrastados com características atribuídas aos
membros de outras unidades, deflagrando um processo de reorganização
sociocultural de amplas proporções” (OLIVEIRA, 2004, p.24). É portanto
nessa perspectiva que devem ser compreendidos os Xukuru do Ororubá.
Os povos indígenas no Nordeste contemporâneo vivenciaram
dois processos de territorialização em situações muito diversas. Na
primeira, com as missões religiosas, desde o século XVII até o início do
século XVIII, quando contingentes de diferentes grupos nativos foram
aldeados e catequizados, de que resultaram os atuais etnônimos dos
povos indígenas no Nordeste. Nos aldeamentos, como parte da política
assimilacionista e homogeneizadora, ocorreu uma primeira mistura. Para
atender os interesses expansionistas coloniais, foi incorporada a mão-de-
obra indígena e posteriormente incentivados legalmente os casamentos
mistos e o estabelecimento de portugueses em terras dos aldeamentos,
provocando uma segunda mistura. As missões foram elevadas à
categoria de vilas de índios. Com a Lei de Terras de 1850, regulatória de
propriedades rurais, foram legitimadas as invasões em terras de antigos
aldeamentos, declarados extintos em fins do século XIX. Suas terras,
quando não passaram para as mãos de terceiros, foram incorporadas aos
patrimônios das câmaras municipais. No ato da medição e demarcação, a
umas poucas famílias indígenas foram destinados pequenos lotes, outras
famílias se dispersaram, ocorrendo uma terceira mistura, relembrada nos

102 Edson Silva


relatos das memórias orais indígenas.
Em um segundo momento, um processo de territorialização se
iniciou a partir dos anos 1920, quando um posto do SPI foi instalado
entre os Fulni-ô, em Águas Belas, depois da mediação de Pe. Alfredo
Dâmaso junto às autoridades federais, no Rio de Janeiro. A partir do
reconhecimento oficial desse grupo indígena no Nordeste, foi provocada
uma articulação e mobilização dos índios, para a instalação, ao longo das
décadas seguintes, de postos do SPI entre outros grupos indígenas, sendo
o último instalado em 1954, entre os Xukuru, na Serra do Ororubá. A
instalação dos postos criou vínculos de uma tutela paternalista, chegando
a estabelecer os critérios que determinavam a identidade indígena, bem
como os papéis do cacique, pajé e conselheiro da organização política.
(OLIVEIRA, 2004, p.25-27).

Mapa das aldeias Xukuru do Ororubá.


Fonte: Projeto de Capacitação e Assessoria Técnica/PCAT-Xukuru, 2007.

Os povos indígenas no Nordeste, portanto, vivenciaram esse


processo de territorialização, mas que não deve ser entendido como

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 103


homogeneizador e que tinha ocorrido com a passividade indígena, pois
“Cada grupo étnico repensa a ‘mistura’ e afirma-se como uma coletividade
precisamente quando dela se apropria segundo os interesses e crenças
priorizados” (OLIVEIRA, 2004, p.28).
Atualmente, a população Xukuru foi contabilizada em 7.857
indivíduos (Funasa, 2005) que habitam 24 aldeias espalhadas pela Serra
do Ororubá e com cerca de 200 famílias indígenas concentradas em três
bairros, na periferia da Cidade de Pesqueira, além de outras famílias que
moram nas demais áreas urbanas da mesma cidade44. É então a partir
das considerações elencadas anteriormente, que procuraremos estudar
os Xukuru e evidenciar, com base nos relatos de suas memórias orais e
em documentos escritos, os percursos e experiências históricas por eles
vivenciados em um processo de territorialização contemporâneo, para a
afirmação de sua identidade e na reivindicação de seus direitos.

44
Esses dados são questionados pelos Xukuru do Ororubá que afirmaram existir, em
2007, uma população indígena com cerca de 10.000 indivíduos.

104 Edson Silva


Capítulo II

HISTÓRIA E MEMÓRIAS DE
MEDIAÇÕES E GUERRAS

Conflitos, alianças e milícias armadas na Serra do


Ororubá

Na documentação da Diretoria dos Índios da Província de


Pernambuco existem diversos ofícios que se referem ao processo
de recrutamento de índios para a Guerra do Paraguai. É clara, em
muitos momentos, a truculência empregada pelos diretores das aldeias
no alistamento forçado dos índios como Voluntários da Pátria. As
justificativas foram sempre a manutenção da ordem e da paz nas aldeias.
Por exemplo, o recrutamento serviu para punir os acusados ou envolvidos
em assassinatos, como ocorreu em 1865 quando o Diretor Parcial da
Aldeia de Barreiros informava ao Presidente da Província estar enviando
10 e não 15 recrutas, e que, diante da recusa dos índios de servir como
“voluntários”, afirmava: “Se V. Exª. o determinar, mandarei recrutá-los”.45
O recrutamento indígena e a militarização das aldeias foi uma
prática recorrente na História do Brasil. As aldeias indígenas, além de
uma reserva de mão-de-obra, foram tidas também pelo poder oficial
como local para formação de tropas legais ou privadas nas guerras contra
outros povos indígenas considerados hostis à Coroa e nos combates a
quilombolas (MONTEIRO, 1994). Foram mobilizados também para
combates a movimentos contrários à ordem estabelecida pelo Estado, a
exemplo de índios habitantes nas diversas vilas do Ceará, Pernambuco

45
Ofício do Diretor da Aldeia de Barreiros, em 9/4/1865, ao Presidente da Província de
Pernambuco. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano/APE, Códice DII-19, folha
86.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 105


e Paraíba, que “receberam da Coroa Portuguesa isenção de pagamento
de impostos aos Diretores das Aldeias, por terem participado das forças
legais contra os revoltosos no Recife, durante a Revolução Pernambucana
de 1817” (CUNHA, 1992, p.94-95).
Como evidenciam as fontes históricas, os indígenas não foram
passivos na condição de tropas aliadas ao poder legal. Não aceitaram
o recrutamento simplesmente como uma atitude colaboracionista,
uma aliança ao poder vigente. Faz-se necessário perceber como esse
recrutamento foi lido a partir da ótica dos indígenas. Em qual situação
política ocorreu o recrutamento? Como essa participação em milícias
armadas a serviço do Estado ou de um chefe político local serviu de
barganha para os interesses indígenas?
É necessário desconstruir imagens ainda predominantes sobre
esses povos na historiografia. Os novos estudos são pautados por outras
preocupações,
Importa recuperar o sujeito histórico que agia [age] de acordo
com a sua leitura do mundo ao seu redor, leitura esta infor-
mada tanto pelos códigos culturais da sua sociedade como
pela percepção e interpretação dos eventos que se desen-
rolavam. (MONTEIRO, 1999, p.248).

Tropas indígenas foram também uma fonte de poder nas


disputas locais. Os índios de Cimbres (atualmente Pesqueira) estiveram
envolvidos nos conflitos das facções que disputavam o poder local,
durante as agitações políticas entre 1817 e 1824. Domingos de Souza
Leão, um liberal, afirmava que os índios “eram violentos, viviam em
estado de embriagues e roubavam gado”, acusando-os ainda de “terem
se insurgido em 1822, opondo-se à eleição de deputados e contrários à
Independência do Brasil” (CARVALHO, 1997, p.335). Os índios foram
também chamados de “realistas” e “absolutistas”, por estarem aliados
a um fazendeiro e chefe político local conservador, que disputava com
outro fazendeiro, tido como liberal, o cargo de Capitão-Mor da Vila de
Cimbres.
A aliança indígena só pode ser entendida a partir da compreensão
das relações e disputas políticas locais: os fazendeiros liberais que

106 Edson Silva


aderiram ao movimento da Independência eram vereadores na Câmara
de Cimbres e que votaram pela extinção do aldeamento. Assim, a visão
do absolutismo indígena era, portanto, “uma metáfora para sua oposição
a um grupo de senhores de terra, aliados daz facções constitucionalistas
urbanas, ditos ‘patriotas’, que aproveitaram o momento da queda do
aparato jurídico-burocrático colonial para esbulhar a aldeia”. (CARVALHO,
1997, p.338).
Após à Independência, vitória política para os liberais locais,
que coincidiu com a morte natural do fazendeiro aliado dos indígenas,
seguiram-se as perseguições aos índios, com mortos e fugas de muitos
para um aldeamento em Palmeira dos Índios/Alagoas. Os fazendeiros-
vereadores, há muito invasores das terras do Aldeamento, aproveitaram
a ocasião para consolidar seus domínios sobre as terras indígenas. A
Câmara de Cimbres, “alegando que 200 famílias da aldeia, em 1824, eram
apenas 30 a 40, em 1829, requeriam que as terras dos índios fossem
incorporadas ao patrimônio da Câmara.” (CARVALHO, 1997, p.338).
Os índios retornaram a Cimbres, em 1830, e as disputas com a
Câmara Municipal e os fazendeiros continuaram pelos anos seguintes,
como comprova a documentação. A desmilitarização dos índios, diante
dos conflitos das terras, era uma grande preocupação das autoridades,
como expressava o Presidente da Província ao Diretor Geral dos
Índios, em 1852, quando expressava a sua tranqüilidade e “satisfação”,
afirmando que nenhuma ocorrência desagradável ocorrera em Cimbres,
desde a nomeação do Diretor-parcial, enviado para normalizar a situação
e restabelecer os índios “na vida pacífica da lavoura de onde devem tirar
a subsistência libertando-se do jugo em que viviam dados à vida militar, e
em sua simpleza persuadidos de que assim era preciso para defenderem
seus direitos e a propriedade de suas terras”46
Cabia então ao Diretor persuadir os índios a amar o trabalho e
abandonar o estado de guerra em que viviam armados e sujeitos a um
recrutamento militar, pois o Governo Provincial enfaticamente rejeitava

46
Ofício do Presidente. da Província de PE, Francisco Antônio Ribeiro, em 2/10/1852,
para o Diretor Geral dos Índios da Província, José Pedro Velloso da Silveira. APE, Cód.
RO, fl. 35.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 107


a participação indígena em milícias a serviço de facções políticas em
disputas pelo poder local, como ocorrera no passado recente. Nessa
perspectiva, o Presidente da Província afirmava que o Governo não queria
os índios armados e nem como soldados de uma milícia em Cimbres.
Resguardando-se dos acontecimentos passados, a autoridade provincial
afirmava que se necessário fosse policiamento para aquele Distrito, nem
o Diretor dos Índios, nem tampouco o Delegado local, “mas somente o
Governo Provincial tinha competência para constituir uma força armada
em Cimbres”, e que “já mais encarregaria os índios de fazer a polícia do
município”.47
A memória dos acontecimentos políticos alimentava o medo que
se tinha dos índios, como revelava, em 1853, o Diretor Geral dos Índios,
quando recebeu correspondência do Diretor Parcial em Cimbres, pedindo
ferramentas agrícolas para distribuição naquela Aldeia. A preocupação se
expressava no apaziguamento dos indígenas, “todos amestrados na guerra,
e com quanto acabaram de dar provas de sua lealdade ao Governo, tem
alguns descontentes exaltando suas paixõens”48. A autoridade provincial
preocupava-se ainda em garantir a ordem no aldeamento, com um novo
Diretor-parcial, um oficial reformado que estimularia os índios “a lavoira,
e os salvará das seduções deturbulentas”.49
O “Maioral de Cimbres” reclamou, pouco tempo depois, sobre a
falta das ditas ferramentas, prometidas pelo Diretor-parcial, e também
que as lavouras na “Serra do Urubá” estavam sendo invadidas, “os gados
no verão sobem a serra, e estragão as lavoiras, e os criadores recuzão
fazer travessõens de serca, para evitar a subida dos gados”. Diante das
reclamações, a Presidência da Província não só reconheceu os direitos,
como acentuou a importância da grande produção dos indígenas para
o abastecimento daquela região, e ordenou ao Delegado de Polícia de
Cimbres que obrigasse os criadores a fazer as cercas, ou retirar o gado

47
Idem, fl. 36-36v.
48
Of. do Diretor Geral dos Índios de Pernambuco, em 04/01/1853, ao Diretor Parcial de
Cimbres. APE, Cód. DII-10, fl. 15.
49
Of. do Diretor Geral dos Índios, em 07/05/1853, ao Presidente da Província de Pernam-
buco. APE, Cód. DII-10, fl. 20.

108 Edson Silva


dos lugares cultiváveis “terreno que sempre foi destinado a plantaçõens, e
que por sua extraordinária produção pode fazer a abundancia de viveres
naquele Certão”50.
No Relatório do Estado das Aldeias da Província, em 1861, o
Barão dos Guararapes, então Diretor Geral dos Índios da Província de
Pernambuco, informava que a Aldeia de Cimbres, localizada na Serra do
Urubá ou Ararobá, tinha uma população de 789 índios, perfazendo 238
famílias. Informava também aquela autoridade que era de “três léguas
sobre duas” a extensão das terras do aldeamento, indo até as margens
do Rio Ipojuca.51
Dizia ainda o Diretor, sobre a situação dos índios e os conflitos
em Cimbres, por causa dos limites das terras: “os índios desta aldeia não
podem cuidar seriamente de seus interesses sem que sejão descriminados
os respectivos limites para seu socego e augmento de seus recursos
ainda nullos”52 Para solucionar os conflitos, o Governo Provincial fez
claramente uma opção pelos fazendeiros, quando nomeou, como Juiz
Comissário de Medições de Terra em Pesqueira, um grande fazendeiro
na região, Pantaleão de Serqueira Cavalcanti, membro da oligarquia
política local, vereador e dono do Engenho Pedra d’ Água, situado nas
terras do aldeamento53. As terras do antigo aldeamento sempre foram
cobiçadas e disputadas pelos fazendeiros e pela Câmara Municipal. Os
limites das terras do aldeamento foram objeto de uma longa discussão
até que em 1862, a Câmara de Cimbres e a Diretoria Geral dos Índios
chegaram a um acordo; todavia, o conflito permaneceu. Aumentaram as
pressões sobre o aldeamento de Cimbres. Um Aviso de 1863, enviado
pelo Ministério da Agricultura, autorizou à Presidência da Província o
aforamento das terras indígenas54.
50
Of. do Diretor Geral dos Índios, em 07/07/1853, ao Presidente da Província de Pernam-
buco. APE, Cód. DII-10, fl. 25.
51
Relatório do Estado das Aldeias da Província de Pernambuco, 13/2/1861. APE, Cód.
DII-19, fl. 53.
52
Idem, fl. 54.
53
Ofício do Dir. Geral dos Índios em 10/5/1863, ao Presidente da Província de Pernam-
buco. APE, Códice DII-10, fls. 20-21.
54
Aviso do Ministério da Agricultura, em 05/10/1863, ao Presidente da Província de

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 109


No Relatório sobre os aldeamentos de índios na Província de
Pernambuco (MELLO, 1975, p.339-351), apresentado em 1873, uma
comissão, nomeada pelo Presidente da Província, afirmou enfaticamente
o descaso público oficial com os índios. Para a citada comissão, o precário
funcionamento da administração pública provocava “a decadência das
aldeias, o roubo das suas terras, a degradação dos índios”. Ora, essa
visão pessimista, fatalista e determinista, além de omitir os nomes dos
responsáveis diretos pelas reconhecidas mazelas do serviço público,
tratava apenas de uma face da moeda. Pois, os diretores gerais de índios
na Província, assim como os diretores-parciais nas aldeias, eram cargos
de indicação política. Os nomeados, na grande maioria das vezes, foram
oficiais da Guarda Nacional, chefes políticos locais e posseiros, antigos
invasores das terras dos aldeamentos, que demonstravam pouco ou
nenhum interesse na defesa dos indígenas.
O citado Relatório oficial de 1873, como foi dito, apresentou uma
radiografia fatalista da situação das aldeias indígenas em Pernambuco.
Os redatores, em suas conclusões, propuseram a extinção de cinco dos
sete aldeamentos existentes na Província e, entre outras recomendações,
sugeriram que “Os índios das aldeias extintas, a que não tiver o governo
distribuído lotes de terras, serão removidos para as novas aldeias de
Cimbres e Assunção”. (MELLO, 1975, p.351). (Grifamos). Na época da
finalização do Relatório, a Aldeia de Escada foi tida como “suprimida”,
tendo seus ex-moradores sido transferidos para o lugar chamado Riacho
do Mato (hoje situado entre as cidades de Maraial e Jaqueira). E a
Aldeia da Baixa Verde (atualmente Município de Flores) foi considerada
“abandonada” por seus antigos habitantes. Todavia, é necessário ter
presente que embates explícitos ou sutis, conflitos e violências, como
estão demonstrados na própria documentação oficial, eram vivenciados
em cada uma das localidades onde estavam os índios.
O Governo Imperial corroborou com a proposta da Comissão
quando por meio do Decreto nº. 273, de 08/07/1875, destinado à
Província de Pernambuco, nomeou um engenheiro para demarcar as
terras dos aldeamentos que foram declarados extintos, à exceção de

Pernambuco. APE, Cód. MA-3, fl. 120.

110 Edson Silva


Cimbres e Assunção. Além de designar os diferentes tamanhos dos lotes
destinados aos índios casados e solteiros, o referido Decreto determinava
que o encarregado procurasse “por meios brandos e suasorios transferir
para os dous aldeamentos os índios ou seus sucessores estabelecidos
naquelles cuja extinção se acha determinada” (apud CUNHA, 1992,
p.289). (Grifamos). No ato de medir, demarcar e lotear as terras dos
extintos aldeamentos, foram juridicamente reconhecidos os posseiros.
A fragmentação das terras em pequenas glebas, destinadas aos
considerados, a partir daquela data como ex-aldeados, favoreceu para
os posseiros invasores aumentarem a pressão, provocar expulsões e
dispersão dos índios, a exemplo do que ocorreu nos aldeamentos de
Escada e Riacho do Mato (SILVA, 1995). A mudança de índios de uma
aldeia para o outro grupo foi intensificada, em conseqüência da extinção
oficial dos aldeamentos, em fins do século XIX. A política indigenista
oficial favorecia claramente os tradicionais invasores das terras indígenas.
É a partir desse quadro de referências que podemos compreender
o recrutamento dos indígenas para a Guerra do Paraguai e seu retorno
a Cimbres, após o fim da Guerra, bem como as leituras que os Xukuru
fizeram daquele conflito.

Os Xukuru e a Guerra do Paraguai

O acirramento dos conflitos envolvendo os índios, então chamados


de “Xucurus”, os fazendeiros e os posseiros nas terras então reivindicadas
pelos indígenas, no Município de Pesqueira/PE, entre os fins dos anos
1980 e meados dos anos 1990, foi motivo de extensas reportagens
publicadas no Diário de Pernambuco, no Jornal do Commercio ambos
do Recife, e no jornal Folha de São Paulo.
Enquanto os fazendeiros negavam a presença de índios “puros”
ou a ocorrência dos conflitos, os Xukuru55 denunciavam as violências,
55
Utilizamos aqui a grafia Xukuru de acordo com a norma culta da “Convenção para
grafia dos nomes tribais”, estabelecida pela Associação Brasileira de Antropologia/ABA,
em 14/11/1953. Porém, ao longo do texto iremos reproduzir, entre aspas, como em cada

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 111


a miséria e a fome, em razão de suas terras terem sido invadidas por
grandes criadores de gado.

Índios Xukuru no corredor do


Congresso Nacional em Brasília/
DF, no período da Constituinte.
Da esquerda para direita o 2º é
“Xicão” e, o seguinte, o Cacique Zé
Pereira.
Arquivo Pessoal de “Zé Pereira”.

Esse período correspondeu à elaboração e promulgação da


Constituição Federal, quando os índios Xukuru do Ororubá45, liderados
pelo Cacique “Xicão”, juntamente com delegações de outros povos
indígenas no Nordeste e demais regiões do Brasil, participaram nas
mobilizações, embates e discussões do processo da Constituinte, o que
garantiu a fixação dos direitos indígenas na Carta Magna, em 198856
Um tema recorrente apareceu nas reportagens: os xukurus
afirmavam o direito às terras reivindicadas, por terem sido recebidas
como recompensa pela participação dos seus antepassados na Guerra
do Paraguai, “No final do século passado, a terra voltou a pertencer
aos índios, doada pelo Imperador D. Pedro II como pagamento pela
participação dos Xucurus na Guerra do Paraguai” 57.

autor/a ou fontes aparece grafado o nome desse povo indígena.


56
Uma leitura diferente da que enfatiza a participação dos índios no Nordeste no pro-
cesso da Assembléia Constituinte, sob a expressiva liderança do Cacique Xicão Xukuru
corriqueiramente relatada por lideranças indígenas na Região, encontra-se em Santilli
(1998, p.11-14): “Os direitos indígenas na Constituição brasileira”. Nesse texto, o autor
evidenciou a dimensão da participação e a “mobilização dos índios, tendo à frente o povo
Kaiapó” (p.12). Como comprovaram as investigações policiais, em razão do agravamento
dos conflitos entre os Xukuru do Ororubá e os fazendeiros no período posterior à pro-
mulgação da Constituição, o Cacique “Xicão” foi assassinado por um pistoleiro, na cidade
de Pesqueira em 20/05/1998.
57
O pau vai comer em Pesqueira. Folha de Pernambuco, Recife, 22/10/88, p.7.

112 Edson Silva


Ou ainda,
O índio, elemento a ser colonizado, nunca teve sua opinião
respeitada diante da definição do “Seu” futuro. Mesmo as-
sim, participaram, em 1865, de uma guerra de brancos, a do
Paraguai, envolvidos num sentimento de proteção as terras
brasileiras. Os poucos que retornaram da batalha receberam
como recompensa da Princesa Isabel, documento garantindo
a posse de suas terras. 58.

Em outro jornal lê-se que, “Em 1865, catequizados, cerca de 82


xucurus participaram como voluntários da Guerra do Paraguai. Por isso,
teriam recebido garantia da posse de suas terras da Princesa Isabel”. 59
Essa constante referência à participação indígena no conflito
que envolveu o Brasil e outros países em uma guerra no Cone Sul
entre 1865-1870, revela as leituras feitas por grupos sociais acerca de
acontecimentos históricos, a partir de seus interesses. Para fundamentar
a legitimação de seus direitos no presente, os Xukuru recorrem a uma
memória de acontecimentos pretéritos. A afirmação do direito à terra,
por terem os seus antepassados participado da Guerra do Paraguai,
como observarmos em pesquisas anteriormente realizadas (SILVA, 2005;
2006), foi encontrada também em relatos de outros povos indígenas no
Nordeste, a exemplo dos Fulni-ô/PE. Também os Wassú e os Xukuru-
Kariri, em Alagoas, têm narrativas sobre as famosas “cartas da Princesa
Isabel”, que confirmariam o direito às terras, como recompensa pela
participação de índios na Guerra do Paraguai.
No caso dos Xukuru, além dos relatos orais, o que nos informam
os registros documentais sobre os indígenas e a Guerra do Paraguai?
A que antepassados se referem os Xukuru do Ororubá? A que fontes
recorrem os Xukuru para elaborar suas memórias? Que leituras, em suas
memórias, os indígenas fizeram/fazem da Guerra? Quais os significados

58
Xucurus dominam a Serra de Ororubá. Diário de Pernambuco, Recife, 20/04/92,
p.b3.
59
Caboclo, xucuru pode virar sem-terra. Folha de São Paulo, São Paulo, 07/04/1996,
p.11.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 113


dessas memórias para a afirmação e o reconhecimento oficial do direito
às suas terras? Enfim, a partir de que os Xukuru (re)leram, (re)constroem
o passado? Cremos que a busca de respostas para essas questões pode
contribuir para a compreensão de como os chamados “índios misturados”,
os “caboclos”, vivenciaram e elaboraram diferentes estratégias diante
do discurso oficial do “desaparecimento” indígena, com a extinção dos
aldeamentos a partir de meados do século XIX, contribuindo para um
maior conhecimento da história indígena no Nordeste contemporâneo.
As memórias e relatos da participação dos Xukuru na Guerra
do Paraguai foram retomados pelos indígenas em diferentes momentos
históricos. Um desses momentos foi em meados dos anos 1950, quando
os Xukuru pleiteavam o reconhecimento oficial e a instalação de um
Posto do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) na Serra do Ororubá.
As lembranças da participação de seus antepassados naquele conflito,
justificavam naquele momento a afirmação de uma continuidade e
identidade Xukuru, para o direito à assistência e proteção estatal das
famílias indígenas sobre as pequenas glebas de terras que ocupavam,
pois viviam permanentemente perseguidos e ameaçados de expulsão por
fazendeiros invasores.
Tentaremos relacionar os diferentes momentos em que, na
própria história Xukuru, as narrativas sobre a Guerra do Paraguai
foram retomadas, a partir de uma busca da compreensão do quadro
de referências do período contemporâneo à Guerra, e do processo de
extinção dos aldeamentos em fins do século XIX. Bem como a negação
da identidade dos ex-aldeados, com a construção da idéia do caboclo, em
contraposição às mobilizações Xukuru para o reconhecimento oficial, em
meados da década de 1950.

Os “bravos Voluntários da Pátria” do Ororubá

Em um quadro datado de 1865 constam 82 nomes de


“Voluntários da Pátria” da Aldeia de Cimbres, onde habitam atualmente
os Xukuru do Ororubá, juntamente com um ofício anexado informando a
relação dos alistados que estavam deixando seus soldos em consignação

114 Edson Silva


para suas famílias.60 Pelo que lemos no documento oficial, percebemos
que possivelmente afora o recrutamento forçado, as condições de vida e o
sustento das famílias, constituíam uma grande motivação, senão a mais
importante, para uma possível adesão, naquele momento, dos voluntários
à Guerra do Paraguai.
A passagem dos recrutados pelo Recife, em 1865, foi registrada
em um dos principais jornais da capital da Província. Um certo Dr. Inácio
Firmo Xavier, entusiasmado, publicou um longo poema61 Aos bravos
Voluntários da Pátria, de Urubá. Selecionamos alguns trechos do poema
para comentários.
A euforia diante do desfile pelas ruas da Capital da Província
dos recrutados em Cimbres, a caminho do front da Guerra, transformou
os antes considerados indolentes e perturbadores da ordem pública em
“bravos de Urubá”, aclamados antecipadamente como heróis da Pátria,
Eia, bravos de Urubá
Altaneira e ingente serra,
Ao Paraguai ide à guerra
Destruir Humaitá
N’Assunção vós todos lá
Esforçai-vos na vitória.
Ganhando palma a glória
Onde a esposa estremecida
Vos contempla na memória.

Os “Urubá valentes” foram considerados da mesma linhagem dos


participantes da rememorada Restauração Pernambucana, na qual os
índios, liderados por Felipe Camarão, combateram nas guerras para a
expulsão os holandeses:
Parti, Urubá valentes,
Que em vossos corações fortes
Sois bravos Leões do Norte,

60
Quadro com a relação dos Índios do Urubá /Voluntários da Pátria, em 2/4/1865. APE,
Códice DII, v.19, fl. 83.
61
Jornal do Recife. Recife, 22/06/1865. In, BARBALHO, 1977, p. 69-70. (Foi mantida a
grafia da época).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 115


De Camarão descendentes
A esses vis insolentes
Paraguaios d’Assunção

Em outro trecho, o poema, além de louvar o valor dos combatentes


por tão gloriosa causa, exaltava a guerra, dizendo que a recompensa seria
a também gloriosa eterna lembranças da Pátria!
Eia, Urubá valentes,
Nossa pátria opressa chora,
Daí-lhe na guerra uma aurora,
Que nos torne gloriosos
Nossos astros luminosos
Alumiai a vitória.
Nos vastos campos da glória, combatei, tendes valor,
Que da pátria a santo amor
Vos dará eterna glória!

Estudos apontaram a importância da imprensa durante a Guerra


do Paraguai, principalmente nos primeiros anos do conflito (SILVEIRA,
1996; TORAL, 2001). A imprensa pernambucana, com a louvação
do patriotismo, promoveu o voluntariado para a Guerra. Por meio da
manipulação dos fatos, da fabulação, das distorções ou omissões de
notícias, os jornais do Recife construíram um discurso sobre a Guerra do
Paraguai, influenciando no cotidiano da cidade, mobilizando as pessoas
que, por meio de poemas e textos assinados, produziram e exaltaram o
soldado recrutado como cidadão-patriota (LUCENA FILHO, 2000, p.79-
94).
Porém, o recrutamento, que aparece como uma ação tranqüila e
louvada, é desmascarado por meio da leitura de um ofício do ano seguinte,
enviado ao Presidente da Província pelo Diretor Geral dos Índios, com a
queixa de um índio de numerosa família, pedindo dispensa de dois filhos
seus, que “forão forçados a se alistar como Voluntários da Pátria”.62
Os aldeados em Cimbres por diversos meios procuraram se
livrar do recrutamento obrigatório. A exemplo do índio José Carneiro
62
Ofício do Diretor Geral dos Índios, 21/1/1866. APE, Cód. DII-19, fl. 96.

116 Edson Silva


da Cunha que, em 1865, solicitou e conseguiu de seis moradores de
Olho d’Água, atestados reconhecidos em cartório, confirmando ser o seu
filho Laurentino José Carneiro portador de gôta, doença que o
impedia de ser recrutado63. Posteriormente, Laurentino, por meio de um
requerimento, pediu e recebeu do Tenente Joaquim Almeida de Carvalho,
Diretor do Aldeamento de Cimbres, um “Atestado”, também reconhecido
em cartório, confirmando a condição de índio do solicitante, informando
ainda o documento que os índios não eram “sujeitos a recrutamento.”64
O índio Laurentino afirmava ter sido preso na Vila de São
Bento e, solicitando dispensa do serviço militar, dirigiu outra vez um
requerimento ao Diretor de Cimbres, justificando que, por ser índio não
era qualificado para ir à Guerra do Paraguai. Atendendo ao pedido, o
Diretor, por meio de um “Atestado”, confirmou a residência de Laurentino,
na Aldeia de Cimbres, afirmando ainda que ele não tinha condições para
compor as tropas da Província a serem enviadas à Guerra do Paraguai65.
Anexo à documentação remetida às autoridades, o pai de Laurentino
enviou um requerimento ao Presidente da Província, no qual afirmava
ser um agricultor sexagenário, com dificuldades para trabalhar, pedindo
a liberdade de seu filho, que era o responsável pelo sustento da família,
pois, com o seu recrutamento, ficaria difícil para seus familiares, aldeados
em Cimbres, sobreviver sem a sua ajuda66. O caso do índio Laurentino
evidencia o processo do recrutamento e as condições em que viviam os
aldeados em Cimbres.
Para além do patriotismo ufanista expresso na exaltação aos
“bravos do Orubá” recrutados para a Guerra do Paraguai, os habitantes
do antigo aldeamento se defrontavam com disputas, em uma guerra
contínua por suas terras, invadidas por fazendeiros e pelo município, com
63
Requerimento de José Carneiro da Cunha, em Cimbres 08/10/1865, acompanhado de
6 Atestados com firmas reconhecidas. APE, Cód. Petições: Índios, fls.73 e 73v.
64
Requerimento do índio Laurentino José Carneiro, Cimbres, 13/11/1865; Atestado de
Joaquim de Almeida Carvalho para Laurentino José Carneiro, Cimbres, 14/12/1865. APE,
Cód. Petições: Índios, fl.15.
65
Requerimento do índio José Carneiro da Cunha, Cimbres, 14/12/1865, ao Presidente
da Província de Pernambuco. APE, Cód. Petições: Índios, fl.17.
66
Idem, fl.18.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 117


a anuência do Governo Provincial e Imperial. Quanto ao recrutamento de
forma voluntária, podia significar uma saída para garantir a sobrevivência
dos dependentes do recrutado, mas compulsoriamente desrespeitava os
isentos, desagregava famílias e simbolizava a imposição, o controle do
Estado sobre o índio. Importa, porém, perceber como, nos dois casos
referidos, os aldeados em Cimbres elaboraram estratégias que lhes
garantissem a sobrevivência. E, ainda mais, quais as leituras posteriores
que os Xukuru, que também se autodenominam “Guerreiros do Urubá”,
fizeram da participação de seus antepassados na Guerra do Paraguai.

Guerras, história e memórias

O conflito, que se convencionou chamar “a Guerra do Paraguai”,


nos últimos anos, vem sendo objeto de vários estudos, baseados em
amplas pesquisas documentais, que possibilitaram novas abordagens
sobre o confronto armado que sacudiu o Cone Sul no terceiro quartel
do século XIX. Nessa perspectiva, foram superados os trabalhos que
enfatizavam aspectos militares, bem como as biografias de heróis oficiais
da Guerra do Paraguai. Foi deixado de lado, também, o enfoque positivista
republicano, que acusava o Brasil monárquico pelo genocídio imposto ao
Paraguai. Assim como foi abandonado o enfoque marxista de fins da
década de 1960, que enfatizava um suposto nacionalismo progressista
paraguaio e apontava o expansionismo do imperialismo britânico como
responsável pela Guerra. O conflito passou a ser visto como uma disputa
regional entre os países envolvidos pela hegemonia na região do Prata
(DORATIOTO, 2002, p. 19).
Com os estudos mais recentes foram evidenciados outros
aspectos da Guerra e, por meio dos novos enfoques, discutidas as formas
do recrutamento, a participação negra de escravos e libertos, de mulheres,
as imagens (fotografias, pinturas e caricaturas) da guerra, etc. Todavia,
ainda foi pouco estudada a dimensão da participação indígena naquele
conflito, bem como as narrativas e as memórias daí resultantes.67
67
No XXIII Simpósio Nacional de História, realizado em Londrina/PR, entre 17 e
22/06/2005, durante o Simpósio Temático Guerras e alianças na história dos índios:

118 Edson Silva


Nos novos estudos sobre a Guerra do Paraguai, as análises sobre
o recrutamento são unânimes em apontar que, no início do conflito, a
perspectiva de sua curta duração, somando-se à imagem construída de
uma guerra da civilização moderna contra a “barbárie” paraguaia indígena
guarani, que deveria ser derrotada, motivou o alistamento de muitos para
participar no front de combates. Com o prolongamento da Guerra, além
de manifestações de protestos em todas as províncias do Brasil, tornou-se
difícil o recrutamento de novos soldados, inclusive com a resistência da
Guarda Nacional.
Mesmo tendo a libertação de escravos como uma primeira
solução para suprir as necessidades de combatentes, com a continuidade
do conflito o Governo Imperial, por meio de um decreto, criou e incentivou
os corpos de Voluntários da Pátria. Ainda assim, em uma fase crucial
da Guerra, depois de seguidas derrotas, quando os aliados partiam para
batalhas ofensivas decisivas, os entusiasmos patrióticos minguaram e os
alistamentos diminuíram (LUCENA FILHO, 2000, p.14). Nesse momento,
foi usado o velho e conhecido método do recrutamento forçado sobre os
membros do partido opositor ao que estava no poder em cada província,
os contrários à ordem política e social vigente, os considerados desordeiros
e perigosos, os presos e condenados por crimes e, principalmente, a
população pobre, os habitantes das cidades do interior, das zonas rurais,
a exemplo dos índios, no Nordeste.
O recrutamento forçado foi utilizado durante todo o Período
Monárquico como forma de controle social sobre as populações
marginalizadas, pois de longa data “os vadios, os pobres, os desocupados,
os que não tinham sequer condições de ser votantes, eram recrutados
para o exército de linha” (DIAS, 1998, p.68). As denúncias, as reações e
o medo do recrutamento forçado em diferentes períodos foram sempre
comuns em todas as províncias, como testemunharam dois naturalistas

perspectivas interdisciplinares, organizado pelos professores John Monteiro (UNICAMP),


João Pacheco de Oliveira (MN/UFRJ) e pela Profª. Maria Regina Celestino de Almeida
(UFF), foram apresentados apenas quatro trabalhos sobre os povos indígenas e a Guerra
do Paraguai. Na ocasião foi comentada a carência de estudos relacionando os índios e a
Guerra do Paraguai.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 119


quando visitaram um aldeamento em Minas Gerais e registraram que,
apesar de aceitarem a cachaça oferecida pelos visitantes, os índios eram
todos desconfiados e de mau humor, pois provavelmente “receavam que
nós os quiséssemos aliciar para o serviço militar. Nem com presentes,
amabilidades, nem com música, eles se alegravam; só cuidavam de
escapulir, nas primeiras oportunidades, para os matos.” (SPIX e MARTIUS
1972, p.54-55). A desconfiança de que os visitantes eram recrutadores da
Armada Imperial provocou a fuga dos índios para esconder-se nas matas.
As reações ao recrutamento por parte dos índios ocorreram de
variadas formas. Em 1826, a cidade de Vila Nova (atual Neopolis), em
Sergipe, foi cercada e todas as entradas e saídas guarnecidas por cerca
de 200 índios da Aldeia Pacatuba, “todos armados de várias armas, como
arcos, flechas, bacamartes, facas e cacetes, outros foram às cadeias onde
se achavam o Sargento Mor dos Índios de Pacatuba Serafim José Vieira,
e mais três da mesma Nação“.68 Enfatizava a autoridade da época que
os índios “raivosos despedaçaram o cadeado e ferros que trancavam as
cadeias”, e que uma vez libertados o Sargento Mór e os três índios presos
como criminosos e destinados ao recrutamento, “Saíram por esta Vila
em marcha, de retiradas com vivas e ditos ousados”.69 A ousadia dos
aldeados em Pacatuba no resgate de seu líder e demais companheiros
de aldeamento presos e que seriam enviados ao Rio de Janeiro para o
serviço militar demonstra as diferentes estratégias utilizadas pelos índios
contra o recrutamento forçado.
Os aldeados em Pacatuba tinham razão para seus temores, uma
vez que, mesmo aqueles isentos eram levados à força para os quartéis,
como no caso relatado em 1830 pelo Diretor da Aldeia sobre Antonio
Luiz, índio da Missão de São Félix da Pacatuba, “filho único e aprendiz
do officio de ferreiro, que de livre vontade o procurou, indo a negocio a
feira da Villa de Propriá aportando a essa villa no dia 5 do corrente foi
prezo para recruta de primeira linha”70. O Diretor lembrava, em seu ofício,
68
Of. do Diretor da Missão Pacatuba, 1823, ao Presidente da Província de Sergipe. Trans-
crito in: SOUZA, 2002, p.61.
69
Idem
70
Of. de José Guilherme da Silva Martins, Diretor da Missão de Pacatuba, 28/02/1830,

120 Edson Silva


que, atendendo solicitação do Ministério da Guerra, dois anos antes, a
Missão de Pacatuba enviara mais de “setenta recrutas” para a Marinha
Nacional e pedia a liberdade do índio preso forçadamente.
Para a população pobre, o recrutamento era visto como castigo
e por isso era motivo de fugas e deserções, como afirmava, em 1846, o
Diretor dos Índios da Aldeia de Pacatuba, que os índios daquela Missão
estavam amedrontados, tinham fugido para os matos, escondendo-se do
recrutamento. Eles abandonaram os trabalhos de que viviam “e sustentão
suas famílias e outro sim que nam ha uma instrução regular por onde eles
se vejam no serviço publico que possam prestar”; pedia ainda o Diretor
ao Presidente da Província esclarecimentos sobre a existência de ordens
para serem recrutados os índios. 71
Eram legalmente isentos do recrutamento, além de menores,
filhos únicos e arrimos de família, idosos e todos aqueles exercendo uma
ocupação reconhecida, mas,
O recrutamento chegava ao cúmulo de recrutar pessoas com
falta de dentes, um dedo na mão direita ou olho esquerdo.
Estes não estavam isentos. Os relacionados na lista de isen-
ção do recrutamento objetivavam evitar as perturbações à
vida econômica (SOUZA, 2002, p.34).

O que evitava em princípio a possibilidade da universalização do


serviço militar obrigatório. Podemos constatar, no exemplo acima que a
legislação não era respeitada, principalmente em localidades no interior
do país.
A resistência ao recrutamento no período da Guerra do Paraguai
provocou uma guerra na Guerra. Em 1867, o comandante de um dos
batalhões da Guarda Nacional, no Recife, reconhecia a gravidade da
situação, quando afirmou ser muito difícil e quase impossível serem
reunidos os recrutados por meio de notificações, “pelo terror de que se
achão os povos possuídos com o quadro exagerado de sofrimentos que

para Capitão do Quartel de Engenho das Anhumas. Transcrito in, SOUZA, 2002 (Anexos).
71
Of. do Diretor dos Índios da Missão Pacatuba, 18/03/1846, ao Presidente da Província
de Sergipe. Transcrito in, SOUZA, 2002 (Anexos).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 121


disem os que teem marchado para a campanha, aponto de andarem a
maior parte d’elles, especialmente os que se achão no caso de marcharem,
occultos em lugares disertos”72.
Os próprios comandantes da Guarda Nacional, em muitos casos,
quando era de seu interesse, também não agiram energicamente para o
recrutamento. Em Cimbres, por exemplo, o Ten. Cel. Antonio Siqueira
Barbosa, procurado pelo recrutador em 1867, reagiu com ameaças
quando o agente do governo expressou a intenção de cercar uma
localidade onde ocorria uma novena organizada pelo Capitão da Guarda
Nacional e também pelo irmão de Siqueira Barbosa, freqüentada por
muitos rapazes em idade de recrutamento. Diante das possibilidades de
um conflito, a patrulha recrutadora deixou a localidade (LUCENA FILHO,
2000, p.108-109).
Em Águas Belas, onde habitavam os Carnijós, mais tarde
chamados de Fulni-ô, no Aldeamento de Panema, informava em 1866
o Presidente da Província de Pernambuco que uma patrulha levando
recrutas para o Recife foi atacada, resultando em mortos e feridos nos
dois lados em confronto. Poucos dias depois, em outra localidade daquela
freguesia, houve outro ataque. O confronto ocorreu com tiros, e após
uma luta que deixou mortos e feridos a patrulha foi assaltada. 73
O índio fulni-ô Elpídio de Matos, 88 anos, relatou o que ouviu
dos seus antepassados, “A Guerra do Paraguai eu ouvia dizer que foi
uma guerra que era para se acabar mesmo. Foi 50 e tantos índios...
tudo foi morto lá. Meu avô foi para a Guerra do Paraguai. A história
era contada pelos que voltaram. Meu avô não voltou, morreu”. Sobre o
recrutamento, Elpídio confirmou em seu relato, o que está registrado em
muitos documentos escritos: “Os índios daqui, eles foram a pulso! Eles
foram a pulso para essa tal da Guerra do Paraguai. Quem não queria ir,
foi um puxão, eles foram na marra. Pegaram a pulso. E foi uma porção
de gente dessa cidade também, foi pobre e rico”. (Elpídio de Matos, Aldeia
Fulni-ô, Águas Belas/PE).

72
Of. do Comandante da Guarda Nacional de Boa Vista, 15/7/1867, para o Presidente da
Província de PE. APE, Cód. GN-59, p.353-354.
73
Relatório do Pres. da Prov. de Pernambuco à Assembléia Provincial em 1866, p.2-3. APE.

122 Edson Silva


Um cronista escreveu o que ouviu de seu pai, que testemunhara
o recrutamento forçado dos índios “Carnijós”, em Águas Belas,
Estava em Águas Belas... quando apareceu o coronel Tomás
de Aquino Cavalcante – em 1866. Não lembro se ele havia
sido nomeado diretor dos índios Carnijós; mas o certo é que
convocou todos eles à sua presença, num determinado dia,
indo recebê-los em frente à Cadeia Pública. Nessa ocasião,
mandou que os mais moços entrassem para o salão, depois
do que anunciou que teriam de seguir para a guerra. E, dias
depois, lá seguiam eles, algemados, para o Recife. O mulherio
da tribo, em pranto, acompanhou-os até uma certa distância,
e era tal o bramido dos caboclos a chorar, que o gado acom-
panhou o cortejo urrando!. (ALBUQUERQUE, 1989, p.92).

O índio Elpídio relatou ainda outras lembranças das resistências


ao recrutamento forçado:
Disse que tinha deles menino com 12 anos que já era uma
rapaizote, vestia roupa de mulher para não ir. Porque não
podiam levar mulher para a guerra! Então não era só índio,
era qualquer pessoa! Disse que vestia roupa de mulher para
ficar como mulher para não ir para a Guerra, para a policia
não pegar. Foi índios de outras aldeias também. Quem foi
vivo nessa época foi. Aquilo ali foi para muitos pobres e só
não ia o rico! Mas os pobres iam na marra! Quem correu
se escondeu no mato! Quando eles pegavam era só índios.
Pegava e amarrava, foram amarrados encangados. Foi 20 e
tantos índios daqui, encangados. ((Elpídio de Matos, Aldeia
Fulni-ô, Águas Belas/PE).

Para fugir das perseguições das forças legais, os considerados


como potenciais “soldados-voluntários” elaboraram diversas estratégias
contra o recrutamento forçado. A análise de fontes documentais, bem
como de relatos de memórias indígenas sobre a Guerra do Paraguai, a
respeito do recrutamento, da participação e do retorno dos sobreviventes
do conflito, nos possibilitam evidenciar os significados das elaborações
dessas narrativas para a história dos povos indígenas no Nordeste.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 123


Memórias Xukuru sobre a Guerra do Paraguai
Durante os anos 1980/1990 foi vivenciada uma situação extrema
de conflitos com os fazendeiros invasores das terras indígenas, resultando
nos assassinatos de significativas lideranças Xukuru, a exemplo do
Cacique Xicão. O povo Xukuru, segundo afirmam suas lideranças, está de
posse de cerca de 80 a 85% dos 27.555ha. do território demarcado por
medida do Governo Federal, em 2001.
A demarcação do território Xukuru ocorreu após um intenso
processo de organização e mobilização interna, com a retomada, pelos
índios, de parcelas das terras reivindicadas e uma considerável articulação
do grupo com a sociedade civil, para pressionar os poderes públicos a
atender e garantir os direitos indígenas. Nesse processo, por diversas vezes
foi questionada e negada a existência dos Xukuru, pelos fazendeiros,
posseiros nas terras da Serra do Ororubá. Os Xukuru recorreram então
às narrativas das suas memórias orais para afirmarem sua identidade, sua
história e seus direitos ao território reivindicado.
As discussões sobre os significados da memória para os grupos
sociais, a exemplo dos Xukuru, se constitui, para além dos fatores
psicológicos, em um rico debate que vem sendo realizado por cientistas
sociais, nos últimos anos. Nessa perspectiva é que se pode afirmar:
A memória está presente em tudo e em todos. Nós somos
tudo aquilo que lembramos; nós somos a memória que te-
mos. A memória não é só pensamento, imaginação e cons-
trução social; ela é também uma determinada experiência
de vida capaz de transformar outras experiências, a partir
de resíduos deixados anteriormente. (SANTOS, 2003, p.25-26).
Um dos pioneiros nos estudos a respeito da memória foi o
sociólogo Maurice Halbwachs. A partir de suas pesquisas sobre a vida
dos trabalhadores em Paris no início da segunda década do século XX,
ele elaborou suas concepções de memória coletiva e memória social. Sua
preocupação fundamental foi desenvolver uma teoria para ser aplicada
no estudo da sociedade. Ao desenvolver a idéia dos quadros sociais da
memória, Halbwachs afirmou que, recordando, os indivíduos utilizam

124 Edson Silva


imagens do passado, mas, como membros de grupos sociais eles não
recordam sozinhos, ou seja, eles necessitam das lembranças de outros
indivíduos para reafirmar e fortalecer suas próprias memórias. Nesse
sentido, ele escreveu: “No mais, se a memória coletiva tira sua força e sua
duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante
eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo”.
(2004, p.55). Segundo ainda Halbwachs, “Não é na história aprendida, é
na história vivida que se apóia nossa memória” (2004, p.64). Portanto, o
passado é continuadamente reconstruído no presente.
Ao tratar da memória coletiva, Halbwachs afirmou ainda que
a lembrança é em larga medida uma reconstrução do pas-
sado com ajuda de dados emprestados do presente, e, além
disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas
anteriores e de onde a imagem de outrora se manifestou já
bem alterada. (2004, p.75-76).

Um outro autor que também refletiu sobre a memória foi o


filósofo alemão Walter Benjamin, preocupado com o lugar do passado
em uma sociedade moderna industrializada que provocava a exacerbação
do individualismo e o fim dos laços de solidariedade. Para Benjamin,
o conhecimento do passado demanda um trabalho arqueológico da
memória, “escavando e recordando”, pois “Quem pretende se aproximar
do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava.
Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo
como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo” (BENJAMIN,
1994, p.239).
Para esse autor, a memória era, antes de tudo, o meio para
se chegar ao passado. As lembranças estão em diferentes camadas da
memória escavada. Logo a memória é descoberta, é retomada no ato da
escavação no presente. E nesse presente, então, podem se expressar as
experiências inertes ou propositalmente silenciadas em tempos pretéritos.
Torna-se, portanto, possível conhecer as experiências históricas de um
grupo social pesquisando as suas memórias.
O pesquisador Michael Pollak, vinculado ao Centro Nacional
de Pesquisas Científicas na França, desenvolveu estudos sobre as

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 125


memórias de grupos socialmente marginalizados, que, no seu entender, têm
nos depoimentos orais uma fonte primordial para compreendê-las. Pollak
afirmou a existência de “memórias subterrâneas que, como parte integrante
das culturas minoritárias e dominadas, se opõem, à ‘memória oficial’, no caso
a memória nacional” (1989, p.2). E ainda, que essas memórias subterrâneas
“prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase
imperceptível afloram em momentos de crise” (1989). A memória é, então,
uma construção coletiva, que serve para afirmar e fortalecer uma identidade
comum, em um trabalho de “enquadramento da memória” que se nutre de
referências e acontecimentos históricos, reinterpretando constantemente o
passado em razão das disputas atuais e futuras.
No campo da História a memória está associada à utilização da
história oral para estudar grupos socialmente excluídos, ou seja, as memórias
dos diferentes grupos de marginalizados como fontes de pesquisas que
possibilitam conhecer as experiências vividas e reconstruídas pelos seus
narradores só recentemente teve uma aceitação comum entre os historiadores.
Inicialmente, entre aqueles de inspiração marxista e, depois, pelos adeptos
dos Annales, que deram à abordagem um caráter multidisciplinar, ancorado
principalmente em conceitos da Antropologia e da Sociologia. A possibilidade
da memória ser utilizada como fonte histórica provocou debates, entre
os historiadores, sobre as relações entre a História e a memória, sobre as
potencialidades das memórias para estudos que questionavam categorias,
conceitos e narrativas homogêneas, a história oficial e a história nacional
(THOMSON et alli,1996).
O historiador inglês E. P. Thompson publicou, em 1985, o artigo “A
história vista de baixo” em uma coletânea com o mesmo título; a partir daí,
esse conceito ganhou a adesão de muitos outros historiadores (SHARPE,
1992, p.41). As perspectivas da escrever uma “história vista de baixo” levou
os historiadores a utilizar fontes orais e abriu caminhos para pesquisas das
memórias de grupos socialmente excluídos, o que possibilita conhecer suas
experiências, sua história. Foi, portanto, a partir dessas perspectivas que
procuramos estudar os Xukuru.
Os Xukuru, que se auto-proclamam “Guerreiros do Ororubá”,
recorreram às suas memórias sobre a Guerra do Paraguai, em diferentes

126 Edson Silva


momentos históricos, para afirmar os direitos às terras por eles reivindicadas.
Essas lembranças foram retomadas nos anos logo após o término da Guerra,
como também em momentos históricos posteriores, nos anos 1940/50 e
nos anos 1980/1990, quando os índios enfrentavam a continuidade dos
conflitos, das guerras contra os invasores de suas terras.
Nas narrativas dos Xukuru foram e são lembrados enfaticamente
“os 30 do Ororubá”, combatentes que se destacaram em uma das batalhas
na Guerra do Paraguai:
Eu ouvi falar assim, é uma história nossa que nós temos
dizendo que os Xukuru foram para a Guerra do Paraguai
brigarem. Foram 30, morreram 12, voltaram 18. Então eu ouvi
falar, então foi os índios do Brejinho, não lembro nem aonde
mora, nem o nome deles. Eles são da família dos Nascimento,
lá na Aldeia Brejinho. E foi mais uns outros de outras al-
deias Xukuru, e foi uma índia chamada Maria Coragem tam-
bém. E lá eles brigaram na Guerra... aí levaram a bandeira...
e pediram para eles irem buscar. Então, eles foram. Eles já
tinham passado, e eles chegaram na beira do rio, e eles já
tinham atravessado o rio, eles entraram no mato, cortaram
madeira, cortaram cipó, fizeram um barco, foram lá, cortaram
tudo de facão e trouxeram a bandeira para a Princesa Isabel.
(João Jorge de Melo, Aldeia Sucupira).

À semelhança do relatado acima, José de Almeida Maciel


descreveu um fato ocorrido durante a Batalha de Tuiuti, um dos maiores
embates da Guerra do Paraguai quando:
O inimigo arrebatou a bandeira do “30 de Voluntários”, bata-
lhão integrado pelos nossos índios xucurus. O Comandante,
Ten. Cel. Apolônio Peres Cavalcanti Jácome da Gama, em as-
somo de desapontamento, bradou para os seus soldados (os
nossos índios) que retomassem a bandeira e pouco depois a
companhia de guerra que partira no cumprimento da ordem,
regressava reduzida a 10 ou 12 homens trazendo o nosso
pavilhão a despeito de quase transformado em farrapos (MA-
CIEL, 1980, p.116).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 127


Existem registros que diversas mulheres, prostitutas, esposas e
seus filhos menores acompanhavam seus maridos-soldados na Guerra do
Paraguai. Mulheres que seguiam as tropas e “não tinham medo de coisa
alguma”, e nas frentes de batalha ora socorriam os feridos, improvisando
ataduras com suas próprias vestes, ora combatiam ao lado dos homens
(CERQUEIRA, 1980, p.300). O povo Xukuru, dentre os vários relatos
acerca da Guerra, falam sobre “Maria Coragem”, uma índia que se
destacou nos campos de batalha, “foi Coragem, uma mulher chamada
Coragem, porque o nome dela não era coragem, chamaram depois que
ela foi para a Guerra, pela coragem dela”. (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu”
Zequinha, Pajé Xukuru).
Outros relatos também fazem referências à ida de mulheres
Xukuru para a Guerra do Paraguai: “Ouvi que a Guerra do Paraguai foi
daqui o xenupre74* véio daqui, foi quem foram acabar com a guerra de
lá. Essa data daqui desse município foi xenupre véio que foram daqui
e acabaram com a Guerra de lá do Paraguai. Agora, que a Guerra do
Paraguai foi, eu sei que a mulher, foi uma mulher”. (Floriano Marcolino
da Silva, Aldeia Cana Brava).
Outros povos indígenas que também participaram da Guerra do
Paraguai recorreram às memórias da participação dos seus antepassados
naquele conflito, como forma de afirmação de seu direito às terras, a
exemplo dos Terena (MS) que, assim como outros povos da região de
Dourados, voluntariamente se incorporaram na Guarda Nacional, como
forma de se livrarem das ameaças de fazendeiros. Esses índios, inclusive,
reivindicaram das autoridades militares o direito de terem armas, assim
como os demais soldados, e diante da negativa recebida, invadiram e se
apropriaram das armas do arsenal da Vila de Miranda (VARGAS, 2003,
p.53-54).
Finda a Guerra, além da depopulação indígena, em decorrência
dos combates e de doenças, os índios que retornaram encontraram suas

A expressão “xenupre” é uma palavra do vocábulo Xukuru corriqueiramente usada,


74 *

principalmente pelos/as anciãos/ãs, para se referir aos seus antepassados. A palavra “xe-
nupre” foi registrada entre aqueles vocábulos coletados por Curt Nimuendajú quando
esteve na Serra do Ororubá, em 1934.

128 Edson Silva


terras invadidas por fazendeiros, o que provocou a desterritorialização
Terena. Muitos ex-combatentes receberam do Governo Imperial
patentes militares. Caciques passaram oficialmente a Capitão, título que
ostentavam com orgulho, juntamente com a fotografia do Imperador, a
quem chamavam de amigo. Mas, se a transformação do antigo chefe
indígena em capitão foi uma tentativa governamental de desestruturar
a organização tradicional indígena, quando os índios chamavam o
Imperador de amigo se consideravam em situação de igualdade com
todos os demais súditos brasileiros e, portanto, com os mesmos plenos
direitos, inclusive às terras em que habitavam (VARGAS, 2003, p.55).
Os Terena passaram a reivindicar do Governo a demarcação dos
seus territórios e ressignificaram as patentes militares e principalmente
os títulos de Capitão foram utilizados para as exigências, junto ao poder
oficial, à posse de suas terras (VARGAS, 2003, p.58). Os índios pediram e
receberam, como forma de agrado das autoridades provinciais, além de
ferramentas, fardamentos como brindes, durante a Guerra do Paraguai.
Para os Terena, as fardas e as patentes militares, além de diferenciá-
los das outras etnias, colocavam-nos em igualdade com os brancos. Nos
encontros com as autoridades os índios iam vestidos com os fardamentos
e enfatizavam seus títulos, lembravam os serviços prestados ao Estado,
como troca pelos seus direitos reivindicados (VARGAS, 2003, p.73). Os
Terena vivenciaram uma outra guerra com os fazendeiros e com as
autoridades para a reconquista de seus antigos domínios territoriais.
Na história contada pelos Kadiwéu de Porto Murtinho (MS), a
Guerra do Paraguai também é rememorada. Os mais velhos falam que as
terras em que hoje habitam foram conquistadas em virtude da aliança e
tenaz participação de seus antepassados ao lado das forças brasileiras,
naquele conflito. Os Kadiwéu dividem as memórias sobre a Guerra do
Paraguai em “histórias de admirar” (mitos?) e “histórias que aconteceram
mesmo” (relatos verídicos). (SILVA, 2005, p.1). Em um trecho de uma
longa entrevista relatando o diálogo dos seus antepassados com o
Coronel Barros um dos comandantes das tropas brasileiras, o Kadiwéu
Antônio Mendes disse:

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 129


Eu quero saber o que você queria ganhar. Espera, eu te dou
dinheiro. Está lá a sacola de dinheiro. Está lá a sacola de
dinheiro. Eu vou te dar esse daqui agora, sacola de dinheiro,
olha lá. O capitão falou: ‘Senhor, índios não sabe pegar di-
nheiro. Não vamos pegar a sacola. O que vamos fazer com
este dinheiro? Então nós queremos, se fossemos ganhar al-
gum, ganhar nosso lugar. Nós não vamos querer o dinheiro,
nós vamos querer a área para criar os nossos filhos’. Como
até hoje é nosso lugar aqui. É sagrado... Mas ainda temos a
segurança que ajudamos a segurar a Bandeira do Brasil. Por
isso mesmo que ganhamos esta terra. aqui é sagrado. Já veio
esse sabido que iludiu os índios..mas aqui ninguém toma,
ninguém toma.75

São afirmações semelhantes às encontradas entre os Xukuru.


Como também o trecho do relato da anciã Kadiwéu Durila Bernaldino:
Foi uma autoridade superior de quem o capitão ganhou esta
terra, como recompensa no término da guerra contra os para-
guaios. Dizia para ele: — Toma esta terra capitão, esta será
sua, se eu pagasse em dinheiro não daria, mas essa terra
durará para sempre, cuide sempre desta terra, não deixe que
ninguém a tome.76

Assim como os Xukuru, os Terena e os Kadiwéu, a partir de suas


memórias, também relêem a participação de seus antepassados na Guerra
do Paraguai como uma ação que lhes garantiu a posse das suas terras,
em reconhecimento pelos serviços prestados ao governo, ao lado das
tropas brasileiras, naquele conflito. Os Xukuru relatam também que os
seus antepassados voltaram com condecorações da Guerra do Paraguai:
“O Irmão da Hora trouxe um terno, de reis. Digo, porque o terno eu vi. De
coroa, galão e todo, porque ganhou esse prêmio Irmão da Hora, Antonio
Molecão e Antonio Tavarinho”. (Malaquias Figueira Ramos, Aldeia Caípe).
E ainda,

75
Transcrito in: SILVA, 2005, p.4.
76
Idem, ibidem.

130 Edson Silva


Que o velho Romão da Hora aqui, tinha o terno todinho de
reis! Coroa, galão, vestuário, anelão e a espada. De reis! Eu
digo porque eu vi! Foi doze daqui de dentro, foi doze para a
Guerra do Paraguai. Cabral de Cana Brava, Antônio Melecão.
De doze, duas mulheres foi nessa briga, foi duas. Eu sei de
Antonio Melecão e Romão da Hora, doze. Foi catorze, voltou
doze. Têm parentes aqui no Brejinho, de Romão da Hora, tem
muita gente. Tem Raimundo aqui, tem Mané Nascimento, já
tá caducando. Romão da Hora era um esperto! Esse velho
que morreu. Eu cortei muito cabelo dele! A barba dele só
quem fazia era eu. Ele vinha pra aqui, fazia a barba dele...
(Malaquias Figueira Ramos, Aldeia Brejinho).

Em seus relatos, os indígenas falam ainda de quépes, medalhas,


espadas, “diplomas da Guerra”, roupas e outros adereços militares,
trazidos pelos que retornaram da Guerra do Paraguai. Como afirmou
ainda um outro entrevistado,
Da Guerra do Paraguai o que eles trouxeram espada, troux-
eram coturno, trouxeram estrela e um major Candinho eles
foi Chefe de Posto aqui dentro e levou essas coisas, essas
coisas ninguém sabe onde elas estão, se estão em Museu, se
estão no Exército. É uma história que estou contando porque
a gente ouviu falar, mas não sentou aquela pessoa para me
dizer à verdade sobre a Guerra do Paraguai. (João Jorge de
Melo, Aldeia Sucupira).

Memórias sobre a Guerra do Paraguai são encontradas também


em outras comunidades rurais no Nordeste, a exemplo da Comunidade
Rural dos Negros do Riacho, localizada em Currais Novos, no Sertão
do Seridó, Rio Grande do Norte. Essa comunidade foi formada por
negros fugidos de Pernambuco, possivelmente entre meados da década
de 1860 e fins dos anos 1880, período contemporâneo à Guerra do
Paraguai, à Abolição e à Proclamação da Republica. Em suas narrativas,
os atuais habitantes do Riacho dos Angicos falam sobre o escravo
Trajano Passarinho, personagem fundador da comunidade, que fugira
com a mulher, três filhas e um filho de terras pernambucanas, por causa

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 131


do recrutamento para a Guerra do Paraguai. Em suas narrativas das
memórias do século XIX, os Negros do Riacho afirmam que a posse da
terra para a comunidade foi concedida por D. Pedro II, mas por intermédio
de uma negociação realizada por Trajano, reconhecendo o Imperador os
direitos dos negros (SILVA, 2006).
Nas memórias Xukuru sobre a Guerra do Paraguai encontramos
diversos relatos sobre o recebimento de terras como recompensa pela
participação naquele conflito. Esses relatos remontam às lembranças
de um decreto imperial que determinava a concessão de lotes de terras
aos ex-Voluntários da Pátria77. Em 1870, o engenheiro de medição de
terras da Província de Pernambuco informava a Presidência da Província,
respondendo uma consulta que esta recebera do Ministério da Agricultura
sobre a relação de ex-voluntários que receberam terras, que apenas a
um ex-combatente da Guerra do Paraguai teria sido recomendada à
concessão de terra, todavia, até aquela presente data o indivíduo não tinha
se apresentado nem requerido o seu direito à autoridade provincial.78
No ano seguinte, o Presidente da Província pedia ao engenheiro
informações sobre a petição do 2º Cadete do 42º Corpo de Voluntários
da Pátria Joaquim Ernesto de Freitas Castro Leitão, que dizia estar
impossibilitado de receber terras na ex-Colônia Militar Pimenteiras
porque esta fora transferida para o Ministério da Agricultura, destinada à
fundação de uma colônia agrícola. A solução apontada pela autoridade
provincial era conceder ao reclamante um lote em “terras do Estado”,
vizinhas a Pimenteiras.79 Naquele mesmo ano, poucos meses depois, o
engenheiro remetia ao Presidente da Província o tombo de medição de
um lote de terras concedido, conforme determinações legais, destinado
ao peticionário.80
Acompanhando o desenrolar desse caso, evidenciam-se os
77
Decreto nº 3371, de 7/01/1865.
78
Of. de Luiz José da Silva, 10/11/1874, para Henrique Pereira de Lucena, Presidente da
Província de Pernambuco. APE, Cód.DII-29, fl.380-380v.
79
Of. do Presidente da Província, 30/08/1875, ao engenheiro Luiz José da Silva. APE
Cód. DII-29, fl.485.
80
Ofícios de Luiz José da Silva, em 13 e 17/11/1875, para o Presidente da Província de
Pernambuco. APE, Cód.DII-29, fl.525; 526-29.

132 Edson Silva


diversos impedimentos políticos na concessão dos lotes de terras para
os ex-Voluntários da Guerra do Paraguai. Pelo que está registrado nos
documentos pesquisados, além da concessão de lotes, como previa
o referido decreto, ser apenas em terras consideradas devolutas,
possivelmente interesses outros dificultavam que as determinações legais
fossem cumpridas e muitos requerentes deixaram de ser atendidos.
Questionado sobre qual foi a importância da participação dos
seus antepassados na Guerra do Paraguai, o Pajé “Seu” Zequinha,
uma das figuras centrais no processo de reconhecimento dos marcos
topográficos no processo da demarcação das terras Xukuru nos anos
1990, afirmou,
Foi importante porque na época aqui existia uns coronéis,
uns capitães, uns tenentes. Só bastava, era o pessoal que
podia comprava aquelas patentes de tenente, de capitão e
aí massacrando os índios. Depois que eles vieram, melhorou.
Trouxeram os títulos, aí eles não puderam... eles tomavam a
terra, eles tomavam, “aqui é meu, é meu e pronto, acabou-se.
(Pedro Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha, Pajé Xukuru).

A fala do Pajé Xukuru remete a fins do século XIX quando, em


Pesqueira, a oligarquia política, formada por fazendeiros invasores das
terras indígenas, ocupava também os cargos da Guarda Nacional. O Pajé
lembrou também que os índios “trouxeram os títulos”, em uma referência
aos títulos de terras recebidos pelos ex-combatentes da Guerra do
Paraguai, mas que, frente aos desmandos praticados pelos fazendeiros,
não valiam de nada na época, nem tampouco nos anos seguintes.
Mas os Xukuru contam sua história. “Seu” Malaquias nos relatou
como seus avós lhe contavam que seus antepassados “venceram a Guerra
do Paraguai” e. como recompensa, receberam os documentos de suas
terras,
Quando eles chegaram que venceram a Guerra do Paraguai,
eu não vi, mas meus avôs e meus pais contavam. Eu fui
um menino porque mais tudo eu gravo, desde pequenino,
o que eu vejo...aí disse, ‘E vocês querem o quê?’. Da Serra
os índios que sobrou. ‘Quer que vocês querem da Serra do

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 133


Ororubá?”. “Nós quer nosso documento, da aldeia na mão’
‘Vocês querem na mão de vocês o documento ou na mão
da Princesa Isabel’. ‘Nós quer nas mãos da Princesa Isabel,
para as ordens vir para gente’. (Malaquias Figueira Ramos,
Aldeia Caípe).

Para outro narrador, as terras Xukuru são garantidas por terem


sido recebidas diretamente da Princesa Isabel:
Porque no Palácio da Princesa Isabel ta garantido, na mão da
gente é hoje e não é amanhã. Porque sabe, aí pega, mata e
carrega’. Aí Romão da Hora foi. Fizeram. Eles fizeram aí uma
folha para o Palácio da Princesa Isabel. Toda aqui que nós
estamos, as terrinhas tem o documento. Mas é papel. Essa
aldeia aqui, o número dela é letra de bronze! Passado pela
Princesa. Aí eles disseram ‘Nós quer na mão do Palácio da
Princesa, é letra de bronze’. Aí os fazendeiros outro dia ent-
raram. Acharam o direito. Mas chegou lá, aqui é de caneta e
lá letra de bronze. Romão da Hora. Letra de bronze. Feita pelo
palácio da Princesa. Por que quando venceu a Guerra do
Paraguai, eles deixaram os documentos lá. Letra de bronze,
Romão da Hora, dentro da Serra do Ororubá. (Pedro Rodri-
gues Bispo, “Seu” Zequinha, Pajé Xukuru).

Vivendo em uma guerra contínua por suas terras, os Xukuru


do Ororubá reconstroem suas memórias a partir das experiências.
Ressignificam, elaboram, deram e dão um sentido às narrativas orais
sobre a participação de seus antepassados na Guerra do Paraguai.
A mobilização contemporânea Xukuru se insere em um quadro
mais amplo, no qual desde o início da segunda década do século XX
ocorreu uma movimentação de grupos indígenas no Nordeste para serem
reconhecidos pelo Estado brasileiro (ARRUTI, 1996). As poucas famílias
indígenas que receberam pequenos lotes com a medição e demarcação
das terras dos aldeamentos oficialmente declarados extintos no último
quartel do século anterior eram pressionadas e perseguidas violentamente
pelos grandes proprietários, antigos invasores das terras indígenas, que
tiveram suas posses legitimadas por ocasião do fim dos aldeamentos.
Observando-se a história e as memórias orais Xukuru, percebe-
se que os indígenas não foram e não são passivos no curso da História,
mas selecionaram, fizeram e fazem suas leituras, no presente, dos
acontecimentos pretéritos. As memórias orais Xukuru são, portanto, fontes
históricas que possibilitam compreender as relações sociais e políticas
em que estiveram envolvidos, e como eles próprios compreenderam e
agiram na história, em diferentes momentos e espaços.
Capítulo III

VIVÊNCIAS, LUGARES E MEMÓRIAS

“Meu pai falava que aqui não tinha branco”

Nos relatos das memórias orais dos Xukuru encontramos


também lembranças de um tempo em que as pressões dos fazendeiros
não eram tão intensas. Nascida em Brejinho e atualmente moradora na
vizinha Aldeia Cana Brava, D. Lica recordou que sua mãe dizia ter ouvido
dos antepassados que não existia documento de propriedade da terra:
Não tinha papel nessa área. O índio fazia sua casinha, tinha
aquela mata, ele ia botando seu roçadinho... minha mãe con-
tava que no outro século, minha mãe tinha 90 anos, mas
ela contava todo o detalhe da história, já que os bisavós e
os tataravós dela passaram para ela. (Maria Alves Feitosa de
Araújo, D. Lica, Aldeia Cana Brava).

A entrevistada lembrou também ter ouvido sua mãe falar que


o local onde nasceu, sem a presença ostensiva de fazendeiros, possuía
muita água e matas, proporcionando fartura de fruteiras. Ela e mais ainda
seus antepassados viviam do que coletavam da Natureza:
Quando eu tinha oito anos eu ouvia minha mãe falar, que
há 50 anos atrás era um tempo bom. Não era um tempo
difícil. Tinha muita mangueira, muita bananeira, tinha muita
caça, tinha muita água, tinha muitas matas. Não tinha essa
história de capim. Não tinha essa história de fazendeiro. Que
os índios no tempo dos meus bisavôs, dos meus avós, não
tinha fazendeiro dentro da área de jeito nenhum. Aqueles
índios, a comida era rolinha, calango, o café era guandu. A
comida era fava, xerém. Andava descalço. No passado an-
dava descalço. Eu mesma andei descalça. Já lavei roupa com

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 137


tambor, com mamão. Nesse tempo era panela de barro, pra-
tos de barro. (Maria Alves Feitosa de Araújo, D. Lica, Aldeia
Cana Brava).
Outro entrevistado morador também em Cana Brava, lembrou o
que ouviu da sua avó, como os fazendeiros foram se apossando das terras
e expulsando seus antigos moradores:
Aqui não tinha branco não! Quer dizer, no tempo da minha
avó. No tempo da minha avó, ela dizia que aqui, mode os
brancos mesmos, porque os brancos foram entrando, foram
entrando aí tomou, foram tomando, foram tomando, hoje os
terrenos aqui era todos dos brancos. Eu mesmo não tinha
onde morar! Eu não tinha onde morar de jeito nenhum! (Ju-
vêncio Balbino da Silva, Aldeia Cana Brava).

Um outro morador, também nascido e sempre morador no


mesmo local, lembrou as precariedades das condições de habitação no
lugar:
Na casa que fui criado, era coberta de telha. Mas era de ma-
deira, uns esteios fracos. Agora dali para trás, era um quarto
e uma cozinha, era tapado de barro. E a sala como nós es-
tamos aqui na salinha, era só os esteios, coberto por cima
e aberto. Alcancei muitas, muitas casas de palha. Meu avô
mesmo fez uma cinco ou seis casas aí. Levantava uma, daqui
um pouco derrubava. Ele mesmo derrubava, porque a chuva
derrubava... Não podia fazer de outro material porque não
tinha com que. (Cassiano Dias de Souza, Aldeia Cana Brava).

O Pajé Xukuru “Seu” Zequinha, que também nasceu e morou


muitos anos em Cana Brava, recordou que os moradores daquele lugar
viviam da agricultura e da coleta de espécies nativas:
Cana Braba (risos) era Deus acuda! Não tinha nada. Só ex-
istia o que plantasse. Uma mandioquinha, uma macaxeira,
uma batata, um guandu, um pé de fava, um pé de cabun-
cuço, que era a comida dos índios era isso. Eu pequeno, não
tinha outra coisa não. Um pé de banana, para botar o cacho
de banana para comer dentro da fava cozinhada. E tinha o

138 Edson Silva


quê? Ou se não beiju! Pai arrancava a mandioca, ralava,
espremia e fazia o beiju, para comer com... É o que sei contar
é isso. (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha, Bairro Portal,
Pesqueira).
As memórias relatadas são de um passado vivido, desde a infância,
portanto, unindo gerações, e em que se fundamentam as lembranças.
“É esse passado vivido, bem mais do que o passado apreendido pela
história escrita”, sobre o qual se apoiará a memória. “É nesse sentido
que a história vivida se distingue da história escrita: ela tem tudo o que é
preciso para construir um quadro vivo e natural em que um pensamento
pode se apoiar, para conservar e reencontrar a imagem e seu passado”.
(HALBWACHS, 2004, p.75).
A partir de meados do século XVII, ocorreu uma grande pressão
demográfica na região litorânea pernambucana que impulsionou a
colonização portuguesa para o interior. As terras da região costeira
estavam ocupadas com a lavoura da cana-de-açúcar e multiplicaram-se os
pedidos à Coroa Portuguesa de terras no “sertão”: senhores de engenho
alegavam possuir gados sem terras onde pudessem criá-los (MEDEIROS,
1993, p.23-26). Foram concedidas sesmarias, pelo governo português,
legitimando-se o expansionismo colonial, com a invasão das terras
indígenas. Em 1654, João Fernandes Vieira é citado como proprietário
de dez léguas de terras no “sertão do Ararobá”. Mais tarde, em 1671,
Bernardo Vieira de Melo recebeu, da Coroa, vinte léguas no Ararobá.
Os colonizadores, além de conflitos com os indígenas, enfrentavam os
quilombolas de Palmares, que haviam ampliado o domínio de territórios
desde a Zona da Mata até os “sertões” (Agreste), durante o período em
que as forças portuguesas empenhavam-se em libertar a Capitania do
domínio holandês.
Os conflitos que resultaram das invasões coloniais nos territórios
indígenas ficaram conhecidos genericamente, na historiografia, como a
“Guerra dos Bárbaros”, e se estenderam por todo o interior nordestino, nas
regiões correspondentes, hoje, do sertão da Bahia ao Maranhão, durando
desde o último quartel do século XVII até a segunda década do século
seguinte (PUNTONI, 2002). Muitos indígenas morreram nos combates ou

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 139


foram reunidos nas missões. Os “Sucuru” são citados nos conflitos de que
participaram outros povos indígenas habitantes do interior da Capitania
até os sertões do São Francisco.

Fonte: Área Indígena Xukuru. Ser-


viço de Saneamento. FUNAI/Reci-
fe, s/d, p.2. (No documento onde
este mapa se encontra, são citadas
construções realizadas em 1985)

Os conflitos que resultaram das invasões coloniais nos territórios


indígenas ficaram conhecidos genericamente, na historiografia, como a
“Guerra dos Bárbaros”, e se estenderam por todo o interior nordestino,
nas regiões correspondentes, hoje, do sertão da Bahia ao Maranhão,
durando desde o último quartel do século XVII até a segunda década
do século seguinte (PUNTONI, 2002). Muitos indígenas morreram nos
combates ou foram reunidos nas missões. Os “Sucuru” são citados nos
conflitos de que participaram outros povos indígenas habitantes do
interior da Capitania até os sertões do São Francisco.
Para a instalação das fazendas de gado no Agreste e Sertão
pernambucano era necessário amansar os índios “hostis”. Em 1661, o
Governador Francisco de Brito Freire informava o aldeamento de muitos
“tapuias”, até aquele momento considerados “indomáveis”, tendo sido
constituídas duas novas povoações, com igrejas, sob a responsabilidade
do Pe. João Duarte do Sacramento, fundador da Congregação do Oratório
no Brasil (MEDEIROS, 1993, p. 35). Uma das missões dos Oratorianos
estava localizada em Limoeiro, de onde partiram missionários para aldear
outros indígenas na região mais próxima. Essa foi uma primeira tentativa
mal sucedida de concentrar os antepassados dos Xukuru, que chegou
ao final quando os habitantes da aldeia foram vitimados por bexiga. Os
sobreviventes foram aldeados em Limoeiro.

140 Edson Silva


Dez anos mais tarde, por volta de 1671, o Pe. Sacramento
fundava, no “Ararobá” (Serra do Ararobá), uma aldeia de índios Xukuru
(MEDEIROS, p. 51-53). Ao lado das referências mais antigas aos Xukuru,
são citados os Paratió (Paraquioz). Em 1749, por exemplo, além de
642 xukurus na Aldeia do Ararobá, assistidos pelos Oratorianos, foi
citada uma Aldeia Macaco, onde anteriormente estivera um religioso
franciscano, habitada por 182 indígenas “Tapuyos Paraquioz”. A Aldeia
Macaco é citada também em 1671 e, posteriormente, em meados do
século XVIII, localizada, ao que tudo indica, nas cercanias das nascentes
do Rio Ipanema, nas proximidades de Cimbres (apud SOUZA, 1989, p.11-
12).
Para manutenção da missão religiosa os Oratorianos implantaram
currais de gado nas terras indígenas, explorando a mão-de-obra nativa.
Em perfeita sintonia econômica com os sesmeiros invasores, os religiosos
ampliaram suas propriedades, a exemplo dos Sítios Sapoti e Couro
d’Anta, recebidos por doação de João Fernandes Vieira. Os missionários
se dedicavam ao comércio de gado, tornando produtivas as terras sob o
domínio da Congregação, permitindo com isso a compra de mais terras,
até então ocupadas por sesmeiros, nas localidades próximas a missão
(MEDEIROS, 1993, p. 63-64). O local era considerado como “a chave
de todo aquele sertão”; esta foi a razão de ter sido mantida, por muito
tempo, a Missão do Ararobá, como ponto de apoio para a expansão das
invasões e ocupações portuguesas no Agreste e Sertão.
Em consonância com a legislação pombalina, o Governo da
Capitania de Pernambuco, em carta de 1761, determinou ao Ouvidor da
Comarca de Alagoas que “A todas as vilas e lugares que erigir, denominará
Vossa Mercê com nomes de Portugal” (Fiam/CEHM, 1985, p. 81). Assim,
no local do antigo aldeamento do Ararobá, chamado de Nossa Senhora
das Montanhas, e conhecido também como Monte Alegre, foi fundada, em
1762, na Serra do Ororubá, a Vila de Cimbres, nome de uma povoação
portuguesa no Distrito de Viseu. A partir desta data e por todo o século
XVIII na documentação da Câmara de Cimbres encontram-se freqüentes
registros sobre os indígenas do antigo aldeamento do Ararobá.
A confirmação do índio Francisco Alves de Mendonça, há muitos

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 141


anos vereador, para o posto que ele já vinha exercendo de Capitão-
mor da Vila de Cimbres, em 1769, pelo Governador da Capitania de
Pernambuco, contrariando decisão da Câmara de Cimbres que, no ano
anterior, nomeara para o cargo o Sargento-mor João Mendes Branco,
revela uma luta dos fazendeiros pelo exercício de atribuições que, de
acordo com a legislação pombalina em vigor, eram de exclusividade
indígena. Porém, os invasores nas terras indígenas não desistiram da
pretensão de ocupar o cargo. Em 1770, o posto foi ocupado por Manuel
Leite da Silva, proprietário de uma fazenda localizada na atual Cidade
de Pedra, localidade que, na época, estava sob a jurisdição de Cimbres
(Fiam/CEHM, 1985, p. 137-138).
Em 1777, a “Lista e translado do caderno das avaliações dos
dízimos desta vila de Cimbres”, além de citar a presença de indígenas em
diversas localidades das terras que compreendem o aldeamento, apresenta
um esboço da produção econômica dos aldeados. São relacionados
nomes de índios do sexo masculino, possivelmente correspondendo a
chefes de famílias, que cultivavam milho, produziam farinha e criavam
gado em apenas uma das localidades relacionadas. (Fiam/CEHM, 1985,
p.146-149).
No “Sítio Caípe” são citados 15 indígenas: 3 no “Sítio do Meio”;
7 no “Sítio de Santa Catarina”; 7 no “Sítio da Pedra D’água”; 4 no “Sítio
das Almas”; 1 no “Sítio das Menas”; 11 no “Sítio da Boa Vista”; 11 no
“Sítio da Serra”. No “Sítio do Jenipapo” são relacionadas 4 pessoas, sendo
que, destas, 3 entregando dois bezerros, e uma, apenas um bezerro como
dízimo. Toda produção é contabilizada, em um total geral de 140 mãos
de milho, quatro alqueires e meio de farinha. (Fiam/CEHM, 1985, p.146-
149). Esses dados possibilitam o esboço de um retrato mais próximo
da situação dos índios no aldeamento de Cimbres, em fins do período
colonial.
No censo de 1777-1782, a população de Cimbres era de 1.186
habitantes, um aldeamento com uma população média em relação a
outras localidades relacionadas com um maior contingente populacional,
no quadro geral que incluiu o Ceará, o Rio Grande do Norte e Pernambuco
(PORTO ALEGRE, 1993, p. 201-209). Na documentação da Câmara de

142 Edson Silva


Cimbres, no ano de 1777 são citados, pela última vez nominalmente, “os
ditos Parachios (Paratiós) com boa harmonia com os Jucurius (Xukurus),
moradores desta mesma vila”. (Fiam/CEHM, 1985, p. 144). Nos registros
posteriores, os habitantes do aldeamento são tratados genericamente
como “índios” ou “índios da Vila de Cimbres”.
O processo de exclusão dos indígenas dos cargos administrativos
da Vila aparece registrado na documentação do ano de 1781. Em uma
carta resposta enviada à Câmara de Cimbres, o Ouvidor da mesma
Comarca determinou nova eleição para Juiz, uma vez que a Câmara
informara que um Juiz índio eleito não era capaz e estava ausente da
Vila para tomar posse no cargo (Fiam/CEHM, 1985, p.141). Em fins de
1809 ocorreu uma nova polêmica motivada pela mobilização contra a
participação indígena no Senado da Câmara de Cimbres. O Corregedor
da Câmara não aceitou a eleição e nomeação do índio Antônio de
Mendonça Rodrigues, determinando que fosse realizada para o cargo, “a
eleição de outro que tenha as qualidades para bem o desempenhar”. Ao
ser questionado pela Câmara sobre quais os critérios a serem adotados
para uma nova eleição, o Corregedor é explícito, ao afirmar: “as pessoas
que hão de ser votadas para este emprego hão de ser brancas e com
as qualidades da lei”, dependendo ainda da aprovação meritória do
Corregedor (Fiam/CEHM, 1985, p.183-184).
Amparados pela legislação e utilizando regras estabelecidas por
eles próprios, os grandes fazendeiros, pouco a pouco, com a ocupação
de cargos, foram impondo o controle político hegemônico em Cimbres
e adjacências, situação que se consolidou no século XIX. Um exemplo
explícito foi o português Antônio dos Santos Coelho da Silva, ocupante do
posto de Capitão-mor dos índios do Ararobá. Ele era um grande criador
de gado e plantador de algodão, considerado detentor da maior riqueza
do interior de Pernambuco, na época. Era dono da Fazenda Jenipapo,
considerada a mais próspera da região do “Ararobá”, onde trabalhavam
cerca de 500 negros escravizados; pode-se supor que lá também havia
exploração de mão-de-obra indígena.
A expansão colonial portuguesa na região do Agreste
pernambucano inicialmente ocorreu pelos caminhos que acompanhavam

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 143


dois rios que desaguavam no litoral, o Capibaribe e o Ipojuca. Este último
nasce em terras da Serra do Ororubá. Seguindo da costa pelo “Caminho
do Ipojuca”, passava-se “pello arubá” daí se podia ir para o Sertão de
Pernambuco, pelo vale do Rio Moxotó, ou à direita, até o sertão da
Paraíba. A Estrada Real, que se iniciava no Recife e percorria o Vale do
Ipojuca até o São Francisco, era caminho de boiadas desde 1799, como
afirmava, em 1802, o Bispo de Pernambuco, Dom Azeredo Coutinho
(MELLO, 2004, p.96-97).
A Serra do Ororubá, onde foi fundada a Vila de Cimbres, faz
parte do complexo da conhecida Serra da Borborema, que se estende
pela região do Agreste, desde o Ceará até Pernambuco. Estudos apontam
que uma derivação da Borborema se inicia exatamente em Pesqueira,
espalhando-se por regiões vizinhas, alcançando ainda Águas Belas, onde
habitam os Fulni-ô. (SOBRINHO, 2005, p.163-164). O Agreste é uma
região intermediária entre o litoral úmido e o sertão seco. A sobrevivência
humana nessa região está intimamente relacionada a alguns poucos
rios perenes que nascem nas serras e correm em direção ao litoral, e
aos chamados “brejos de altitudes”, espaços de clima ameno, onde uma
elevada densidade populacional coexiste com as atividades agrícolas e a
pecuária. A região montanhosa favoreceu a formação desses brejos que
se constituem em espaços sub-úmidos, como manchas ou bolsões diante
da aridez acentuada do clima predominante.
Historicamente, o Agreste vem desempenhando as funções de
fornecedor de gêneros alimentícios e de mão-de-obra para a Zona da Mata
canavieira e o litoral, por meio das migrações sazonais. O Agreste recebe
pequena quantidade de chuvas, é caracterizado pelas “formas ásperas,
os solos rasos e não raro pedregosos, a flora dominante da caatinga e a
hidrografia intermitente”, onde ocorrem secas periódicas, muitas vezes
calamitosas, agravando a qualidade dos solos e o aproveitamento dos
recursos naturais disponíveis (MELO, 1980, p.173-175). Nas cercanias do
Vale do Ipojuca estão localizados os brejos de São José e Ororubá, ambos
situados na Serra do Ororubá.
Os brejos representam pequenas faixas isoladas de transição
entre a Zona da Mata úmida canavieira, possuem solos profundos,

144 Edson Silva


matas de serras e cursos d’água permanentes, favorecendo a policultura
tradicional, como a lavoura do feijão, mandioca, café, cana-de-açúcar, a
horticultura e a fruticultura, com cultivo de banana, pinha, goiaba, caju,
laranja, dentre outras (MELO, 1980, p.176).
Notemos, além disso, que, nesses interflúvios e em outros
de menor amplitude aparecem manchas numerosas, que,
não chegando a constituir verdadeiros brejos, representam
áreas onde se atenuam às condições de semi-aridez, com
seus efeitos benéficos nas atividades pastoris. Atenuação dos
efeitos da semi-aridez é também a existente nas áreas dos
chamados pés de serra, preferidas pela lavoura nos espaços
de baixa pluviosidade. (MELO, 1980, p.181).

Durante muito tempo, a produção de frutas e hortaliças dos


brejos abasteceu não somente as feiras das cidades próximas, como
também as situadas em bairros do Recife.
No verbete “Cimbres”, encontrado no Dicionário Topográfico,
Estatístico e Histórico da Província de Pernambuco, publicado em 1863,
Manoel da Costa Honorato, além de ter reconhecido a existência de
índios na Serra do Ororubá, ressaltou a riqueza natural do lugar, quando
escreveu:
Esta vila é propriamente uma aldeia, habitada por indígenas,
que muito se gloriam de ser descendentes dos Xucurus e
Paratiós, porém muito preguiçosos. Não obstante a pobreza
da aldeia, o termo é um dos mais ricos e de maior importân-
cia no Sertão pela riqueza natural e produtiva, pelos edifícios
que ultimamente se tem edificado e pela instrução a que se
tem chegado. (HONORATO, 1976, p.38)

Em outro trecho, depois de enfatizar a importância da agricultura


daquele lugar, apesar de insistir no trabalho agrícola indígena como menor,
o autor se referiu ao modo de vida indígena: “Os índios vivem da caça
e cultivam muito pouco; as mulheres fazem lança, fiam algodão, fazem
panos para se vestir, e lamentam-se excessivamente quando os maridos
não são bem sucedidos nas caçadas”. (HONORATO, 1976, p.38). Apesar
das invasões de fazendeiros, existiam matas na região, possibilitando aos
índios o acesso aos recursos naturais.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 145


Mapa das sub-regiões climáticas da Área Indígena Xukuru do Ororubá.
Fonte: Projeto de Capacitação e Assessoria Técnica/PCAT-Xukuru, 2007.

Dez anos mais tarde, em 1874, na sua crônica diária, um jornal


do Recife tratava da Comarca de Cimbres e ressaltava as perspectivas
promissoras da “vila Pesqueira”. Mas, para o cronista, esse futuro estava
ameaçado pelo “atraso” que representava o aldeamento dos índios. Por
essa razão era necessário extingui-lo. Apesar da sua crítica preconceituosa,
o texto informava o valor das terras e o que os índios cultivavam: “os
melhores terrenos para a agricultura estão em poder dos intitulados
aldeados, gente indolente que se limita a ter um bananeiral e alguma
mandioca” (MELLO, 1975, p.797).
A defesa explícita dos interesses de terceiros sobre as terras
do antigo aldeamento, continuadamente demonstrada na documentação
da Diretoria dos Índios em Pernambuco, aparece claramente no texto,
quando tratou da existência dos índios: “Existem no aldeamento muitos
indivíduos que, pelo fato de casarem com índia, seguem a condição
da mulher e tornam-se aldeados”. (MELLO, 1975, p.797). A ênfase na

146 Edson Silva


afirmação da mistura dos seus habitantes, um discurso sempre repetido,
servia como fundamentação para o pedido de extinção do aldeamento,
como “uma necessidade do bem-estar dos habitantes” e do futuro daquela
comarca e das regiões vizinhas.
A fertilidade das terras na Serra do Ororubá foi sempre
evidenciada. Em seu Diccionario Chorographico, Histórico e Estatístico
de Pernambuco, publicado em 1908, Sebastião Vasconcellos Galvão
ressaltou a produção agrícola de Cimbres, com milho, feijão, mandioca,
algodão, fumo, cana-de-açúcar e batatas. Além de frutas, como ananases,
laranjas, cajus, goiabas, bananas e pinha. O autor frisou, porém, que
essa produção advinha da Serra, pois: “Geralmente fraca no município,
a agricultura, é futurosa na Serra do Ororubá pela uberdade de que
oferece”. (GALVÃO, 1908, p.181).
Em outro trecho, Galvão afirmou que, além da abundância da
criação de gado, cavalos, ovelhas e cabras, existiam animais silvestres
na região, como veados, caititus, onças de diversas espécies, raposas,
gatos maracajás, tatus, tamanduás, coelhos, mocós, preás, guarás, furões,
maritacas, tejus, juntamente com “aves de diversas espécies e portes”.
Afora o cedro, o autor citou outras árvores nativas e seus usos medicinais:
A aroeira (muito usada no cozimento do entre casca para
dores de garganta), o bom nome (com o uso específico das
moléstias das vias respiratórias), o jucá ou pau-ferro, o assa-
fraz, guáiaco, cabeça de negro, gitó, parreira brava, japecan-
ga (succedaneo da salsaparrilha), o ingazeiro, jaboticabeira,
o imbuzeiro, a catinga de porco (de cujas folhas se faz traves-
seiros sobre os quais se deitando os doentes de dores de
cabeça e tonteiras, dizem cessar o incômodo), o mulungu, o
cardeiro (mandacaru), o marmeleiro, o velame o barbatenão,
etc. (GALVÃO, 1908, p.181).

O conhecimento do uso dessas plantas medicinais pode


evidenciar a sua tradicional utilização pelos indígenas.
O autor também destacou a considerável produção agrícola
de Cimbres, onde se colhiam cereais para abastecer as feiras da região.
Plantava-se a cana-de-açúcar e existiam os engenhos São Francisco,

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 147


São José, Pedra D’Água, Minas, Zumbi, São Braz, Conceição, Santa Rita,
Santa Catarina, São Marcos, Afetos, Trincheira, Bem-te-vi, Couro d’Anta
e Gerimum e “algumas engenhocas de rapadura”. Galvão enfatizou a
fertilidade das terras do antigo aldeamento, quando afirmou: “O terreno
é muito produtivo, principalmente na Serra de Ororubá”. Citou ainda
artigos produzidos pelos índios, quando escreveu: “A indústria local é a
criação, a fabricação de redes e sacos de algodão, de esteiras, chapéus de
palha e vassouras, de cachimbos de barro, feitos pelos índios habitantes
da serra de Ororubá”. (GALVÃO, 1908, p.182) (Grifamos).
No Agreste, um ambiente de clima predominante seco e com
falta de chuvas, as disputas pelas regiões úmidas e pelas fontes de água
eram intensas. Daí os conflitos envolvendo os fazendeiros invasores nas
terras do antigo aldeamento de Cimbres e seus primeiros moradores, os
índios, uma vez que
Todos esses extensos espaços variavelmente semi-áridos
condicionam, como forma de uso da terra, a existência
de uma pecuária dominante leiteira e, ao lado da mesma,
a existência de atividades de lavoura dominantemente de
curto ciclo vegetativo, bem adaptadas, portanto, a um regime
pluviométrico de chuvas concentradas e longo período seco
(MELO, 1980, p.182).

A expansão pastoril foi cada vez mais acentuada, restringindo


assim as lavouras de subsistência. E os brejos das serras foram sendo
usados como refrigério para o gado, em períodos de longas estiagens:
As serras, muito úmidas no inverno, não se prestam à
pecuária e são aproveitadas por agricultores que cultivam
cereais, plantas do ciclo vegetativo curto. Na estação seca,
após a colheita do feijão, do milho e do algodão, o gado
é levado para a serra, para o brejo, onde se mantém com
este alimento suplementar à espera de que, com as primei-
ras chuvas, a caatinga reverdeça. São famosas por servirem
de refrigério ao gado certas serras, como as de Jacarará, da
Moça e de Ororobá, em Pernambuco...” (ANDRADE, 1980,
p.157).

148 Edson Silva


Por outro lado, o plantio do capim para a pecuária, em áreas de
caatinga ou nas cercanias das matas de serra, provoca a erosão do solo já
tão pobre. A apropriação das terras, pelos fazendeiros criadores de gado,
e o cultivo de pastagens representaram um novo ciclo de relações sociais
na região. Ao índio pequeno agricultor cabia utilizar as terras agora
consideradas alheias, porque em mãos dos fazendeiros, em regime de
cessão de glebas para cultivo e moradia. Em troca, o agricultor plantava
o capim destinado ao gado, que era alimentado também de restolhos da
lavoura do morador.
Com a lucrativa expansão da pecuária, mesmo as fazendas de
algodão e os cafezais erradicaram seus plantios: ”Para o proprietário, a
partir de quando se tornou desinteressante ceder terras em parceria ou
em arrendamento para pequenas lavouras, o que passou a interessar foi,
sobretudo, o retorno das glebas cedidas cobertas com restos de culturas,
para seus animais, ou com pastos plantados”. (ANDRADE, 1998, p.214).
Restava ao pequeno agricultor na Serra do Ororubá pequenas parcelas
de terras, os chamados “sítios”, insuficientes para a sua subsistência e da
sua família.

“Morador tinha em todo canto aqui em cima da Serra”

Um abaixo-assinado de “índios da extinta Aldeia de Cimbres”,


contendo 192 assinaturas foi enviado, em 1885, ao Presidente da
Província de Pernambuco. No longo texto que antecede os nomes dos
signatários, eles apelam para o senso de justiça da autoridade provincial,
pedindo providências para “fazer cessar as perseguições de que são
vítimas”.81. Informavam os índios que as terras públicas, onde eles se
encontravam, estavam sendo invadidas por “verdadeiros intrusos”. Os
índios se ocupavam “exclusivamente do trabalho da agricultura” para se
manter e denunciavam as invasões das terras, por fazendeiros. A exemplo
de um fazendeiro que fugindo da seca na Paraíba, ocupara uma das áreas

81
Abaixo-assinado de índios da extinta Aldeia de Cimbres, em Pesqueira 25 de fevereiro
de 1885, para o Presidente da Província. APE, Cód. Petições, fls.18-23v.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 149


mais férteis na Serra do Ororubá, com seu gado destruindo as roças dos
indígenas que, por serem pobres, estavam sendo explorados e não eram
ouvidos em suas queixas, pelas autoridades policiais,
indivíduos sem título algum, entre eles, José Alexandre
Correa de Mello, que vindo dos lados do cariri pela seca,
apossou-se de um dos melhores sítios do extinto aldeamento,
e ali tem fundado, por assim dizer, uma fazenda de gado,
que contidianamente destroi as lavouras dos suplicantes,
que recorrendo à proteção legal, recorrendo às autoridade
policiais não são atendidos, porque são desvalidos, são
índios miseráveis, e como tais sujeitos a trabalharem como
escravos para os ricos e poderosos!!82

Além da “linguagem” da exploração do trabalho indígena, os


fazendeiros perseguiam os queixosos, que eram presos e processados.
Como acontecera com Manoel Felix Santiago, o índio que encabeçava
o abaixo-assinado: “por não ter cedido do seu direito” fora preso, mas
absolvido:
Essa é a linguagem dos tais criadores da serra, que enten-
dem levar os suplicantes a ferro e fogo, sendo que o primeiro
dos abaixo assinados, por não ter cedido do seu direito, recla-
mando-o constantemente, foi preso, processado, e pronunci-
ado como estelionatário, mas, felizmente absolvido pelo Juiz,
que dá prova mais significativa da indignação da opinião
pública, manifestada em seu favor.83

Os índios afirmavam que, com a extinção do aldeamento, o


Governo Imperial determinara “a demarcação dos terrenos que lhe eram
pertencentes”. Mas, embora tendo sido publicados os editais, pela Tesouraria
da Fazenda, para propostas de agrimensores executores da medição,
até aquela data ela não fora reconhecida, sendo as terras invadidas por
“intrusos”, fazendeiros criadores de gado, destruidores das lavouras dos
índios, “para que assim os suplicantes perseguidos abandonem as suas
antigas e legítimas posses!!”84
82
Idem, fl.18.
83
Id., fl.18v.
84
Idem, fl.19.

150 Edson Silva


No documento, lembravam ainda os índios que Manoel Felix
Santiago, superando “sérias dificuldades”, fora “pessoalmente” procurar o
Imperador, tendo sido orientado para se dirigir ao Ministro da Fazenda e este
recomendara ao Presidente da Província tomar as providências necessárias
para retirar os “intrusos” que invadiram as terras do antigo aldeamento.
Afirmavam os signatários que cabia à autoridade provincial determinar
ao Juiz Comissário da Comarca cumprir a “bem clara e terminante a
disposição do Artigo 2o da Lei número 601 de 18 de setembro de 50,
que manda retirar os intrusos perdendo as benfeitorias etc.”. A referência
se relacionava ao que previa o citado artigo da Lei de Terras de 1850,
para ocupações posteriores em terras demarcadas oficialmente. Embora
esse não fosse, como afirmaram os índios no seu documento, o caso das
terras do ex-aldeamento de Cimbres. Eles encerravam o abaixo-assinado
afirmando sua condição de “sempre prudentes, e respeitadores da lei”;85
demonstravam, assim, além do conhecimento da legislação em vigor, uma
interpretação a favor deles, que garantisse a reivindicação de seus direitos.
A pesquisa documental demonstrou que a extinção oficial, em
1879, do antigo Aldeamento de Cimbres, consolidou o domínio dos
fazendeiros, de longa data invasores nas terras da Serra do Ororubá. Uma
ou outra família indígena ficou com a propriedade de pequenos pedaços de
terras, insuficientes para a sobrevivência. Vários depoimentos comprovam
essa situação. A exemplo do contado pela índia Laurinda Barbosa dos
Santos, conhecida por “D. Santa”, moradora na atual Aldeia Caípe. Seus
pais nasceram na “Serra”, o pai em Pendurado e a mãe em Caípe, local
onde, depois de casados, moraram e viveram. “D. Santa” disse ainda
que trabalhou na roça desde oito anos. Questionada se os moradores e
parentes vizinhos tinham terras para plantar, ela afirmou: “Tinham bem
pouquinha! Porque não podia comprar. Naquele tempo tudo era comprado
e ninguém podia, os pais de nós não podia que era tudo pobrezinhos. Só
vivia trabalhando no alugado que era para dar de comer aos filhos. Era
terras dos fazendeiros” (Laurinda Barbosa dos Santos, Aldeia Caípe)
Outros entrevistados, em diferentes localidades na Serra

85
Id., ibidem.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 151


do Ororubá, também confirmaram a falta de terras para trabalho e
sobrevivência. Como “Seu” Cassiano, nascido e vivendo na Aldeia Cana
Brava, quando afirmou que o seu pai só “Tinha 4 quadros de terras.
Não dava para viver. Não dava porque ele trabalhava alugado. Ele só no
alugado coitado, se entertia naquilo”. Isso porque, segundo ele: “Aqui todo
mundo era dono de pequenos pedaços de terras, cercado de fazendeiros,
Zé Zacarias, Arlindo Sabino, Bernardo, Zé Marques, Antônio de Zumba.
Tinha gado e sítio. No Sítio do Meio era terra de gado, por todo o canto
era gado!” (Cassiano Dias de Souza, Aldeia Cana Brava).
Ainda em Cana Brava, outro entrevistado, cujos pais nasceram
e viveram naquela localidade, falou da falta e das dificuldades do acesso
à terra para o trabalho, devido à exploração e pressão dos fazendeiros:
A dificuldade era grande. Desde o meu tempo, eu caí no
trabalho da agricultura com dez anos de idade! Porque o
ramo dos meus pais, dos meus avós, tudo era trabalhar na
agricultura. Mas não existia terra para trabalhar! Não existia
terra para trabalho. Nós trabalhava arrendado com fazendei-
ro. Você botava meio hectare de terra ou um hectare. Fazia a
broca, fazia a terra, plantava, quando a lavoura, quando nós
plantava que nascia, o fazendeiro já danava capim dentro!
Nós trabalhava arrendado! Porque ali não desfrutava nada!
Quando tava começando a desfrutar, ele já botava o gado
dentro! Pronto, acabava com tudo, nós ficava sem nada. (Ju-
vêncio Balbino da Silva, Aldeia Cana Brava).

Em Brejinho, a situação era semelhante. Ao ser perguntado


se seus pais tinham terras para trabalho, “Seu” Malaquias afirmou que
trabalhavam somente em terras nas mãos dos fazendeiros:
Terra tinha na fazenda. Própria não. Tinha a moradia. Plan-
tavam um ano ali num lugar cercado, plantava milho, feijão,
plantava o que quisesse esse ano, e outro ano, mudava lá
outro cercado. Agora nesse ano trabalhava aqui plantava
capim e aqui não trabalhava mais, aí mudava para outro,
botava os roçados, botava o capim, mudava para outro.
(Malaquias Figueira dos Ramos, Aldeia Brejinho).

152 Edson Silva


A opção para os índios sem terras era o chamado trabalho
alugado. E também aumentava a pressão dos fazendeiros sobre aqueles
que possuíam pequenos pedaços de terras, arrendando-as, comprando-
as, tomando-as a força. O que provocou a dispersão de famílias indígenas:
E pagava a renda com a planta do capim ou da palma. Era. E
o índio tinha que fazer aquilo mesmo. E eles aqueles, os ín-
dios que tinham um pedacinho de terra, ai foram apertando,
os fazendeiros foram apertando, foram apertando e eles tudo
de boca aberta, nem davam o roçado, nem arrendava e nem
nada. Eu compro seu pedacinho de terra e eles besta com-
prava, vendia ou vendia. Vou sair daqui que doutor fulano
vai tomar conta disso aqui e depois pode dele não querer
pagar e nós perde, vendiam. Vendiam e iam pra rua e outros
ia s’imbora pelo mundo, por aí afora, vivia por esses cantos.
(Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra D’Água)

Em outras localidades, algumas famílias herdaram dos seus


antepassados pequenos pedaços de terra: “Meu pai tinha um pouquinho
de terra, pouquinho. É três hectares e meio, a terra do meu pai. Foi
herança da minha mãe. Ainda hoje eu tenho essa terra, ainda eu possuo
essa terra. Têm umas terras pequenininhas, todos eles moram numa terra
bem pequenininha mesmo”. (Milton Rodrigues Cordeiro, Aldeia Gitó).
Assim também relatou “Seu” Dedé, nascido em Sanharó, cidade
próxima a Pesqueira, porque seus pais tinham migrado em razão da falta
de terras para trabalho; voltou à Serra do Ororubá para morar em um
pedaço de terra que fora da avó da sua esposa. Ele falou ainda sobre as
pressões dos fazendeiros vizinhos para tomar-lhe as terras:
A terra que a gente tinha aqui era dez conta de terra. Era
quinze braça por oitenta de altura. Quer dizer que nos papéis
da escritura tinha dez conta de terra. A gente não tinha es-
paço pra nada, porque de um lado o fazendeiro, do outro o
fazendeiro. A gente tava como um pão que a gente pega ele
e abre no meio e coloca um pedaço de doce e faz sanduíche,
a gente tava ali naquela tirinha imprensado e ele impren-
sando mais pra gente correr, conseguir correr dali e ele tomar
conta. (José Antonio Luiz da Paz, Aldeia Santana).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 153


O Pajé Xukuru, “Seu” Zequinha, recordou que a falta de terras
obrigava a trabalhar para os fazendeiros. Ele próprio trabalhou nessas
condições. Quando era de seu interesse, os fazendeiros cediam terras
para trabalho em regime de pagamento com a maior parte da produção,
colhida às pressas. Uma pressão crescente até a expulsão dos pequenos
proprietários:
Quem ficou com uns pedacinhos, ainda trabalhava naqueles
pedacinhos deles e quem não tinha, tinha que trabalhar a
roubo. O pessoal, o fazendeiro abria campina, andava aquele
roçado. Eu mesmo trabalhei muito nas propriedades do povo,
dos fazendeiros. Eu pagava um saco de milho por quadra,
pagava. O pagamento era um saco de milho e a prestação
ficava. Fechava pra estação e a fava que a gente ficava, ele
não deixava nem amadurecer direito, o camarada apanhava
verde mesmo, ai que nós vivia assim, mas teve uma época,
que não teve nada. Os fazendeiros tomaram conta. (Pedro
Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha, Bairro Portal, Pesqueira)

Ele ressaltou que os despossuídos de terras eram os mais


oprimidos pelos fazendeiros, que soltavam o gado no plantio, antes do
término da colheita:
Esses é que sofriam demais! Onde trabalhar? Só era do fa-
zendeiro fazer deles o que queria. Dava um pedacinho de
terra deste tamanho assim para trabalhar, não deixava a fava
criar nem caroço, nem secar, apanhava verde, o milho que-
brava verde, ainda o leite correndo pro gado não comer. “Vou
botar o gado!”. Muitos já quebrava com o gado dentro! O fa-
zendeiro botava, cada vez mais apertava a dobradiça. (Idem).

As lembranças das relações de trabalho na condição de


moradores nas terras por anos em mãos dos fazendeiros também foram
relatadas ainda por “Seu” Juvêncio:
Quem não tinha terra, morava de favor, morava com os
brancos, eles botava lá. Eles botava eles para morar, dava

154 Edson Silva


uma moradia a eles, botava eles para morar e prá traba-
lhar eles direto! Trabalhar eles direto! Nunca teve futuro. Eu
mesmo trabalhei muito para outros. Trabalhei muito alugado.
Eu trabalhei de 1952 para cá, eu morei com o fazendeiro
aqui Antônio Zumba, era o homem mais rico dessa região! O
nome dele era Antônio Zumba. Agora que ele era muito bom.
Ele era muito bom. O nome dele era Antônio Zumba. Só com
ele eu trabalhei 32 anos. (Juvêncio Balbino da Silva, Aldeia
Cana Brava).

Existiam relações ora clientelistas, ora também de perseguições e


opressões, nas quais os direitos trabalhistas não eram respeitados, nem
mesmo na Justiça, que por muitas vezes ignorava o trabalhador-morador:
Eu já velho, eu já com idade de 54 anos, para 60, eu tra-
balhava com ele, mas ele era muito bom para mim. Agora
ele criava um neto, mas quando eu saí de lá, eu sofri mui-
to porque trabalhava ele, ele era muito bom pra mim, mas
o neto era muito ruim. Depois o terreno que tinha que eu
morava, ele passou pro neto. O neto foi e me botou para fora.
Eu saí sem direito, ainda botei na Junta, mas a junta não me
deu direito. Me deu direito sim, deu arrumar uma casa. E no
fim, nem casa de nada, eu perdi. (Juvêncio Balbino da Silva,
Aldeia Cana Brava)

Como falou “Seu” Gercino com a apropriação das terras pelos


fazendeiros, passou a existir o morador-trabalhador por toda a Serra do
Ororubá; “Morador tinha em todo canto aqui em cima da Serra, em todo
canto dos fazendeiros”. (Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra D’Água)
Para alguns entrevistados, a exemplo de “Dona Lica”, os índios
eram “bestas”, não conheciam o real valor das terras que foram vendidas a
baixo custo para os fazendeiros, tornando-se trabalhadores nas fazendas:
Chegava o fazendeiro de fora, aqueles índios vendia por
pouco mais ou menos. Se um terreno valia, por exemplo, um
conto, nesse tempo era réis, não existia dinheiro de papel,
era moeda, quase ouro. Muitos compraram. Aqueles de fora,

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 155


aqueles índios besta que chegavam com aqueles dinheiro,
com aquelas coisas para enganar. Aí comprava aqueles ter-
ritórios com pouco mais ou menos. Aí foram criando e os
índios há cem anos atrás já ficou sendo empregados do fa-
zendeiro. Muitos foi adquiridos assim: chegou, tratava do ter-
reno, ali ficava. Já era daquele. Já era dono! Passava a mão.
Arrendava, passava a mão. Aqueles que arrendava e passava
a mão, já vendia aqueles fazendeiros la fora. Não tinha papel
nessa área. (Maria Alves Feitosa de Araújo, “D. Lica”, Aldeia
Cana Brava).

Todavia, é possível compreender partir dos vários depoimentos


que, em face às pressões, ameaças e perseguições, muitas vezes a
venda das terras para o fazendeiro, mesmo que por um valor inferior,
representava a única saída para os índios não deixarem seus antigos
locais de moradias, ainda que passassem a viver em um novo quadro de
diferentes relações sociais e de trabalho.
Em outros relatos orais há descrições dos meios empregados
pelos fazendeiros para se apossarem das terras indígenas. D. Josefa,
57 anos, moradora na Aldeia Gitó, recordou que os seus antepassados
contavam como foram enganados, com a utilização de bebida, as
perseguições ocorridas e a dispersão da sua família:
Meu pai também contava, meu avô também contava.
Naquele tempo todo mundo tinha suas terras. E o brancos
fazia o quê? Os brancos pegava, dava uma garrafinha de
cachaça para os índios, os índios inocente, não é? Dava uma
garrafa de cachaça para os índios, os índios ficava bêbado,
depois jurava de morte, os bichinhos fugia tudo, eles tomava
conta das terras toda. Foi assim que aconteceu. Por isso que
está tudo pelo meio do mundo, uns na cidade, outros longe,
outros em São Paulo, meus irmãos mesmo estão tudo em São
Paulo. (Josefa Rodrigues da Silva, Aldeia Gitó)

Uma outra situação em Brejinho, durante um período de seca, foi


recordada por “Seu” Gercino:
Eu conheço um terreno que foi tomado, grande não é peque-

156 Edson Silva


no não, ali em Brejinho. Lá em baixo em Brejinho, foi tomado
eu era menino, menino pequeno. Tinha os proprietários lá
eram família de Floriano, era um negócio de avô essas coi-
sas. Eles tinham esse terreno lá, ainda hoje tá lá ou tá aqui
agora. Os que eram dono, fazendeiros para se apossarem das
terras. Houve uma seca de apertar que eu não me lembro
que ano foi. Os pobres não tinham nada, só tinha uma ca-
sinha, em uma propriedade tinha três casinhas. Queriam ir
pro Sul, mas não tinham o dinheiro pra ir, de pé não dava
pra ir pro mode a família e agora ai foram ao finado Tito
Wanderlei. (Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra D’Água).

A família foi ao escritório do fazendeiro, de quem tomou dinheiro


emprestado para viagem:
“O senhor fica com o terreno, quando nós voltar a gente paga
ao senhor e o senhor entrega os nossos terrenos”. “Tá certo,
tá certo, tá bom”. Quanto que quer cada um? Ai o mais velho
que era Manoel, num era não, Manoel de não sei que. “O
senhor empresta a cada um de nós”, eram três, “o senhor
empresta”, era coisinha pouca nesse tempo, valia alguma
coisa e mais se sobrar de risco, não valia nada. Coisinha
pouca cada um, bateu o dinheiro a eles, na quinta-feira eles
desceram. Ele ficou por conta dos terrenos, quando bateu a
época que eles vieram s’imbora. (Gercino Balbino da Silva,
Aldeia Pedra D’Água).

Deixaram as terras com o fazendeiro, como garantia pelo


empréstimo. Mas, quando retornaram o fazendeiro tinha se apossado
delas, como relatou “Seu” Gercino:
Ele ficou por conta dos terrenos. Quando bateu a época que
eles vieram s’imbora. “Tomar conta dos nossos terrenos pra
nós trabalhar e se manter, vamos’”. Vieram s’imbora num dia
de quarta-feira, na quinta desceram pra onde tava ele. Che-
garam lá, falaram os terrenos. Ele disse: “-que terreno, vocês
não me venderam os terrenos de vocês. Tão querendo me
roubar é?! Venderam o terreno, gastaram o dinheiro e agora

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 157


querem tomar o terreno de volta de novo. ‘Vocês fiquem ca-
lado com isso”. E agora eu tô dizendo aqui, porque eu vi. Eu
era menino, mas vi. “Cês pensa que eu sô idiota. Eu comprei
o terreno de vocês, paguei, não devo e agora vocês querem
roubar o terreno. Eu boto todos três na cadeia já!” (Gercino
Balbino da Silva, Aldeia Pedra D’Água).

“Seu” Zequinha relatou outro caso, ainda na época da escravidão


negra, em que um fazendeiro pediu as terras em arrendamento e depois
ele e seus familiares apropriaram-se de grande extensão, posteriormente
vendida a terceiros:
Tinha um fazendeiro, um fazendeiro não, um capitão. Chama-
va-se Capitão Américo, que veio pedir uma queimadinha
para plantar cabaço para fazer cuias para os escravos, que
ele tinha uma senzala de negro. Para fazer cuia para os ne-
gros comerem dentro das cuias, dentro dos batedor. Ele disse,
“olha caboclo, aonde eu queimar é meu, não é?”. Aí o cabo-
clo pensou que era. Chamava caboclo, para diminuir já, não
chamava mais índio. Ele disse “é tá certo, onde queimar”.
Danou fogo, sem fazer acerto, sem fazer nada, o fogo veio
sair perto de Cana Brava. Aí ele disse “aqui tudo é meu”.
Sabedoria! Ele ameaçou os índios, aí tomou tudo, tomou. Isso
não dá nada, não dá nada, parece que dá uns cinco mil hec-
tares por aí. Oxente! Dá muito mais! Dá uns 10 mil hectares!
Aí ele passou a mão até tomar. Américo, Capitão Américo
na época. Aí disse que hoje os familiares dele tomaram até
Capim de Planta que chamavam... A Serra toda, para chegar
em Cana Brava, tudo era dele! Agora eles venderam a outros
proprietários, os tempos passaram eles venderam para out-
ras pessoas. (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha, Bairro
Portal, Pesqueira).

O Pajé Xukuru ressaltou as muitas invasões das terras do antigo


aldeamento pelos fazendeiros e falou de uma outra situação ocorrida em
Sítio do Meio, onde a terras também foram tomadas após o proprietário
arrendá-las,

158 Edson Silva


Muitos comprou. Muitos invadiram. Zé Américo invadiu. Sítio
do Meio que era o dono daqui da (fábrica) Peixe na época,
invadiram tudo. O cabra arrendou para botar uns bichos e foi
pro Sul trabalhar e quando chegou cá tava o papel passado,
como ele tinha comprado, mas ele arrendou não vendeu! Aí
ele disse “Eu vim agora tomar lá conta do meu terreno” Aí
disse, “Não! Aqui é meu, eu comprei!”. “Não, eu não lhe vendi,
eu lhe arrendei”. “Não, eu comprei”. (Idem)

Encontramos, nas memórias orais dos Xukuru, diversos relatos


do processo de esbulhos de suas terras. “Seu” Pirrila, nascido na Aldeia
Gitó, lembrou de uma situação em que o fazendeiro também expropriou
as terras, após um arrendamento. Ele falou ainda que os índios foram
enganados com bebidas:
Nasci aqui. Meu pai nasceu na Aldeia Gitó e minha mãe
aqui. Não tinha terra. Eles tinha somente o chãozinho de
casa. Porque tinha terra, o homem branco arrendava aquelas
terras, para botar o gado. Quando eles iam atrás, eles dizia
“Não eu te comprei essa terra”. Aqueles índios mais velhos,
às vezes vendiam a terra por uma garrafa de “cana” e se
falasse morria. (Antonio Ferreira, “Seu” Pirrila, Aldeia Caípe).

“Seu” Juvêncio contou como o esbulho de terras ocorria após o


arrendamento, com apoio do cartório:
O fazendeiro chegava aqui arrendava um pedacinho assim
para botar dez ou doze bichos, ia na casa do tabelião, onde
estava os escrivão, passava o documento fácil. Quando o
pobre queria tomar conta não tomava mais. Eles já tinha,
eles cercava um pedacinho assim, quando dava fé ele tinha
tomado meio mundo! Aconteceu muito isso aqui. (Juvêncio
Balbino da Silva, Aldeia Cana Brava).

Ao ser perguntado se possuíam terras no passado, “Seu” Zé


Grande, morador na Aldeia Cana Brava, lembrou como conhecidos
fazendeiros, após os arrendamentos se apossaram das terras que não
tinham documentos:

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 159


A terra da gente era muita terra. Mais os antigos, mais velhos,
era muito besta. Aí foram enganando, arrendando, naquele
tempo meio tomavam e diziam que tinha comprado. Um bo-
cado aqui, desse trecho aqui, não tinha o papel da terra.
Esses proprietários, Antônio Zumba, o Adolfo Leôncio. São
Marcos era Manuel Alexandre que chamavam Manoelzinho.
Aqui em Serrinha era Zé Paulino, era “o dono” dessa pro-
priedade. E essas propriedades era da minha raça antiga,
tudinho. (Brivaldo Pereira de Araújo, “Zé Grande”, Aldeia
Cana Brava).

Moradora na Aldeia Caípe D. Santa falou de situações


semelhantes. Os fazendeiros arrendavam as terras, posteriormente
negavam-se a devolvê-las e ameaçavam os seus proprietários queixosos,
chamando-os, pejorativamente, de “cabôcos”. Os índios eram perseguidos
e fugiam:
Eles (os fazendeiros) pediam um roçadinho. Eles (os índios)
davam aquele roçado a primeira vez. Quando chegava agora
o tempo da colheita, quando tirava a colheita eles pediam,
“Agora o senhor dá o mesmo roçadinho para eu trabalhar?”.
“Se quiser trabalhar pode pegar terreno na laje e plante!”.
Em riba da laje. Em cima da laje não dá nada! Muita gente
foi expulsa. Os fazendeiros fazia assim, quando fazia queixa,
por que tinha cabra também meio ruim mesmo, porque tem
no mundo de tudo tem, fazia queixa ele, é dizia, “Pra que é
cabôco?! Cabôco é para se matar e disertar!”. O que é que
os pobres faziam?! Não tinham nem uma peteca para dar
uma balada! E eles de tudo tinham... Uns que não se mudara
brabo, saía s’imbora pelo mundo, caçar um lugarzinho para
morar e outros que se botava eles passavam o dedo, matava.
(Laurinda Barbosa dos Santos, “D. Santa”. Aldeia Caípe).

“Seu” Zé Grande lembrou o que ouviu de seus parentes sobre


conflitos com invasores que instalaram um engenho de açúcar nas terras
dos indígenas, oprimindo esses antigos moradores:
De São Marcos para lá, era tudo fazendeiros. Essas terras

160 Edson Silva


arrendaram, pouco ou mais nada. Ouvi falar que nem papel
das terras eles não tinham. Teve uma questão dos Leôncios,
Alexandre queria tomar o terreno deles. E ele não aceitava
e era aquela danação. Minha sogra já morreu. Hoje só tem
os filhos. Morreu ele, morreu o sogro, o Zé Pequeno. Era Zé
Feitosa, mas chamavam ele Zé Pequeno. Eles tudo contava,
muitas vezes eu conversando com ela, ela dizia “Aqui chegou
um ricão, botaram um engenho aí para moer cana. Planta-
ram cana à vontade”. Passaram muitos anos e os pobres dos
índios comiam fogo nas mãos deles. Eu só alcancei as casas,
as casonas grande do engenho. (Brivaldo Pereira de Araújo,
“Zé Grande”. Aldeia Cana Brava).

Além do trabalho na agricultura e nas fazendas de gado, os


índios trabalhavam também nas engenhocas de fabrico de rapadura e
aguardente, como lembrou “Seu” Juvêncio,
Trabalhei no engenho também! Engenho Sítio do Meio, dos
Britos, dono da (Fábrica) Peixe. Lá, só quem trabalhava era
minha família. Trabalhava um primo, que ele era o mestre da
rapadura. Era o mestre que fazia rapadura! E eu trabalhava
de aguaceiro, botando água para os tanques para lavar as
formas da rapadura e ajudava ele trabalhar nos tachos do
mel, mexendo mel. Tinha aquela carreira de tachos, cheios de
mel e a gente mexia aquele mel, para ele apurar para botar
nas fôrmas para fazer rapadura. (Juvêncio Balbino da Silva.
Aldeia Cana Brava).

No Engenho Caípe, movido a bois, ocorreu a exploração de mão-


de-obra indígena, como lembrou “Dona Santa”:
Chamavam Engenho do Caípe. Fabricava rapadura e mel,
muito! Quem chegasse assim lá. Eu conheci até os que
faziam mel e rapadura. Eu conheci. Era o finado Roque e
Simplício. Eram índios, cabôcos velhos. Do cabelo de porco!
Batido assim, aqueles espetos que não assentava na cara!
Morreram de trabalhar nesse engenho. Inchados de calor de
fogo e de tudo. Chegava no engenho era uma fartura es-

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 161


quisita. O pátio grande ficava cheio, de gado, do rico e os de
moer. Era uma coisa tão medonha. Assim uns paus assim
(fez gesto largo com as mãos), trançados. Era movido a boi.
Os bois tinham um negócio no pescoço, e assim um pau bem
alto, porque a casa é alta lá, ainda está lá! Uma roda assim,
uma mesinha assim, que era para o que estava tangendo os
bois está trepado! (Laurinda Barbosa dos Santos, “D. Santa”.
Aldeia Caípe).

Em Cana Brava e nas proximidades também existiram engenhos,


lembrou “Seu” Zequinha,
São Marcos, mas não era de índios, era de um fulano de tal,
a mulher chamava-se Quina e o marido dela era. Não lembro.
Era o Engenho São Marcos. Do lado de cá tinha outro que
era dos Alexandre, o pai de Manuel Alexandre, o nome era
São Marcos também. Do lado de cá em Catirina, tinha outro
engenho, era para lá de Santa Catarina, lá em cima. Mas
na mesma direção Pedra D’Água tinha outro engenho, era
de um tal Mingo. Chamava-se o engenho de Pedra D’Água,
eu conheci assim, não sei o nome. Era de Domingos que
chamavam Mingo. Era o engenho de Pedra D’Água. (Pedro
Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha. Bairro Portal, Pesqueira).

Eram engenhos movidos a bois, instalados em terras que foram


apropriadas dos índios por conhecidos industriais em Pesqueira. Os
produtos dos engenhos eram comercializados nas feiras de cidades
vizinhas:
Tudo a bois. Teve um em Isabel Dias, também movido a bois.
Era dentro da área, era uma área só que os fazendeiros in-
vadiram. Faziam rapadura e mel. Não lembro se cachaça. Era
rapadura para vender, negociava pelas feiras a rapadura, o
mel. Eu mesmo vi lá em Sítio do Meio teve um engenho tam-
bém que era de Jurandir de Brito, Dr. Jurandir de Brito. Eu fui
comprar muito melaço para comer. Ele era dono da Fábrica
Peixe. (Idem).

Outro entrevistado, morador em Cana Brava, um local de

162 Edson Silva


várzeas, lembrou que existiam muitas plantações de cana destinadas aos
engenhos espalhados por toda a Serra do Ororubá:
Teve um engenho aqui em Sítio do Meio. Teve um engenho
aqui em Sitio do Meio, teve outro em Pedra D’Água, tinha
três nessa região Santa Catirina, tinha um mais em baixo e
tinha outro aqui embaixo. Esse era produtor de cana. Esse
baixio tudinho era cana. Tudo era cana. Tinha esse engenho
também lá em São José. Isso era tudo cheio de engenho até
na Vila de Cimbres. Prá fazer rapadura e vender o mel. (José
Pereira de Araújo, Zé Pereira ou “Zé de Ismaé”. Aldeia Cana
Brava).

Somente por ocasião do inverno, com a superprodução de


rapadura e na falta de compradores, lembrou “Dona Santa”, é que o
dono do engenho no Sítio do Meio distribuía o produto. Essa distribuição
era interpretada como generosidade, em um universo de relações de
exploração por parte do senhor de engenho:
Vendia tudinho em Pesqueira. Quem queria comprar ele ven-
dia. Outras vezes ele fazia muito, quando o inverno pega-
va ele tinha um quarto assim que escorria...Eu me lembro
de tudinho! Quando o inverno começava muito, demais, o
quarto era assim cheio de rapadura até na telha. Quando o
inverno começava, o melzão corria porta afora, que ele não
achava quem comprasse. Era um tempo de fartura grande.
Era bom para gente, ele dava. Não vendia não. “O amigo
quer tomar um caldinho? Cada um não trouxe uma vasilha
para levar um melzinho?”. Era um homem muito bom! Bom
mesmo, bom sem falta! Tão bom que morreu! A casa do en-
genho ainda está em pé. A casa que era dele ainda está
em pé, lá em Cana Brava. (Laurinda Barbosa dos Santos, D.
Santa. Aldeia Caípe)
Os depoimentos revelam como as terras do antigo aldeamento
de Cimbres foram sendo usurpadas, tendo a maioria dos seus habitantes
passado da condição de pequenos proprietários para a de moradores
ou trabalhadores-alugados nas fazendas ou engenhos. A uns poucos

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 163


restaram pequenas glebas de terras, os sítios, insuficientes para a lavoura
de subsistência. O sítio era espaço de sociabilidade, de convivência, por
meio das relações do trabalho comunitário, das novenas religiosas, das
festas.

O sítio como espaço de sociabilidades


Os espaços se diferenciam dos lugares. Enquanto nestes se
distribuem elementos de coexistência em uma indicação de estabilidade,
aqueles se caracterizam pela dinâmica, mobilidade dos atores que neles
atuam (CERTEAU, 2005, p. 201-202). É nessa perspectiva que pensamos
os sítios xukurus, não como lugares, mas como espaços em suas
expressões e dinâmicas de uma rede de solidariedades. Espremidos em
seus pequenos sítios, como moradores, ou trabalhando nas fazendas e
nos engenhos, por meio dos mutirões, das festas e das novenas realizadas
em vários locais, na Serra do Ororubá, os xukurus teceram e vivenciaram
laços de solidariedade:
Naquela época se chamava sítio, viu? Sítio Cana Brava, Sí-
tio Pé-de-Serra, Sítio Oiti, Sítio da Vila, era assim por diante.
Agora, hoje, não, hoje já tá batizado por aldeia, é conhecida
mesmo no livro, escrevida como aldeia. Naquela época tinha
duas Cana Brava: Cana Brava de Dentro, Cana Brava de Fora.
Tinha Sítio Canivete, tinha Sítio Sabiá, tinha Sítio Lagoa, tinha
Sítio Caíque, tinha Sítio Gitó, tinha Sítio Pedra D’Água, tinha
Sítio Santana. Tinha Sítio Brejinho, tinha Sítio Caípe, tudo
era sítio. (Cícero Pereira de Araújo, “Seu” Ciço Pereira, Bairro
Xukurus, Pesqueira).
Em um estudo sobre os camponeses em municípios do Agreste
e Sertão de Sergipe constatamos que o sítio é pensado em oposição à
grande propriedade, sendo esta coercitiva sobre o primeiro. “O termo sítio
designa, porém, mais que apenas a parcela camponesa. Em seu sentido
mais amplo pode designar todo um bairro rural de origem camponesa,
como no caso de antigas sesmarias doadas a lavradores”. (WOORTMAN,
1983, p.175). As parcelas de terras adquiridas pelos sitiantes podem ser

164 Edson Silva


por herança ou adquiridas por compra a parentes ou estranhos. O sítio
é visto como um espaço amplo no universo de trabalho e cultural do
seu proprietário: “O termo sítio designará, então, aquela parcela onde
se localiza a casa, parcela essa que geralmente foi o ponto de partida,
por herança, das terras de um camponês”. (WOORTMAN, 1983, p.175).
O sítio compreende ainda o “terreno” onde está o pequeno pasto para
criação doméstica e terras agricultáveis. A idéia de sítio remete também
à relação casa-família que o ocupa. E também relaciona sua propriedade
a uma descendência.
Entre os Xukuru, o “sítio” significa também o espaço de moradia
de um grupo de famílias em pequenos lotes conjugados, herdados dos
antepassados, cujos limites chegam a ser confundidos em razão das
relações de parentesco, pois, no geral no sítio reside a parentela, constituída
de irmãos/as, cunhados/as, tios/as e primos/as. Essa configuração foi
confirmada por “Dona Santa” moradora em Caípe, quando afirmou:
Conheci meu marido aqui mesmo. O meu marido é primo
meu. Eu me casei com um primo. Conheci na casa dele. Na
casa da gente assim, a minha casa era mesmo acolá. A casa
do meu pai, ainda hoje está a casa dentro daquela bananei-
ra. Ainda hoje está aí hoje lá em pé, onde eu fui nascida e me
criei. (Laurinda Barbosa dos Santos, D. Santa, Aldeia Caípe).
Uma das formas em que o sítio também se expressava enquanto
um espaço de relações sociais, ocorreu durante os “ajuntados”, “juntada”
ou ainda “adjunto”, como os Xukuru chamam o trabalho em mutirão,
na roça. Nascido e morador por muitos anos em Cana Brava, “Seu” Ciço
Pereira lembrou que a festa, após o trabalho, solidificava a proximidade
entre todos:
Meu pai fazia, chamava pra trabalhar quando chegava
chamava dez, doze, quarenta, cinqüenta. Tinha que ma-
tar um porco pra fazer um ajuntado, pra fazer uma festa,
naquele dia muita vez quando terminava aqueles trabalho o
povo vamos fazer uma festa, mandava buscar um sanfoneiro
ali do sitio mesmo, tocava ronco, naquele tempo era ronco,
num era sanfona não. Tocava ronco, viola, violão e o povo

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 165


dançava ali naquelas festas de noite. É mesmo assim. (Cícero
Pereira de Araújo, “Seu” Ciço Pereira, Aldeia Cana Brava).

Para esse trabalho em mutirão, o dono do roçado fornecia a


alimentação aos participantes:
Na seca dessa época, os índios aqui em cima dessa Serra
aqui. Eles trabalhavam. Se chamava juntada. O índio tinha
um roçado muito grande, dizia tal dia, eu vou botar uma jun-
tada. Aqueles mais interessados perguntava: - quantos você
vai querer? – Vou querer dez ou doze, quinze ou vinte ho-
mens. Os que puder ir. Eles iam, juntava aquela turmona. Se
fosse de enxada era de enxada, se foice era de foice, se fosse
de enxadeco era de enxadeco. “Pronto, vou fazer esse serviço
aqui”. “Vamo fazer”. Balançavam o enxadeco pra cima. Ele
dava o café bem cedo, dava a hurinca (bebida), dava o al-
moço e dava o jantar pra aquele povo todo, podia ser o que
fosse. Metia a enxada pra cima, até num dia virava tudo. Eita
acabou! Era aquela farra e tal e vira e mexe. (Idem)

O exercício do trabalho em mutirão significava a reciprocidade.


Aquele que convidava deveria participar dos demais mutirões e assim
todos se ajudavam, como recordou “Seu” Gercino:
Tal dia nós vamos pra fulano de tal, tal dia nós vamos pra
mim. Então, assim nós vivia. Cansei de trabalhar em juntada.
Caboclo se ajudava aos outros assim, botava um adjunto.
Assis Pereira mesmo botou adjunto que ele era mais forte,
uma coisinha podia botar. Finada Joana Batista nessa jun-
tada dela, tinha duzentos e sessenta e dois. (Gercino Balbino
da Silva, “Seu” Gercino, Aldeia Pedra d’Água).

As festas eram outros momentos de intensas relações sociais,


fossem de casamento ou após as novenas, pois reuniam muitas pessoas.
O Toré era dançado em várias localidades na Serra do Orubá, como
lembrou “Zé Cioba”:
As festas na Serra eram boas. O sanfoneiro às vezes tocava a
noite todinha. Os cabras brincava, dançava, novidade muito

166 Edson Silva


difícil. O sanfoneiro era aí da Serra mesmo. Eram festas de
casamento, novenas. Dançavam forró, samba de coco tam-
bém e Toré muito! Dancei muito Toré. Em Caldeirão, Cana
Brava, Jitó, Trincheira. Na aldeia festa só nos casamentos,
novenas, festas de santo, era muito animado. Onde eu morei
era só a novena mesmo, reza, foguetão, fogos a noite toda.
Agora nas festas de casamento tinha danças (risos). (José
Gonçalves da Silva, “Zé Cioba”, Bairro Portal, Pesqueira).

Nas festas animadas pelos sanfoneiros, dançava-se e cantava-se


muito, recordou com alegria o entrevistado:
A sanfona zoava a noite todinha. Os cabras faziam um es-
trupé medonho. Uma mazurca, “Ô mamãe deu carneiro dele,
ô mamãe carneiro dá, quem quiser carneiro manso mande
o vaqueiro amansar” (batendo palmas com entusiasmo). “Em
riba daquela serra passa boi, passa boiada, também, passa
moreninha do cabelo cacheado. Mamãe carneiro deu, mamãe
carneiro dá, quem quiser carneiro manso, mande o vaqueiro
amansar”. Tinha um cabôco que cantava lá, “Candieiro de
dois bicos, que alumia em dois salão, ô mamãe você me leva
na barra de seu balão. É Mané Lopes, Lopes, Lopes”. (Idem)

Existiram reconhecidos e diferentes artistas, compadres, parentes,


que faziam as festas, como recordou um morador em Caípe:
Então aqui tinha Pedro Carmo que era meu tio, que era co-
quista... Aqui tinha umas casas mais longe de outras. Eles
quando era época de São João, faziam o convite. Compadre,
primo, fazia uma fogueira bem grande, no meio do terreiro
e ali a dança que existia era o coco. Aquelas moças trocan-
do versos uma para outra. Tinha gente que cantava música
de viola, já tinham outros que eram coquista. Esse pessoal
morreram faz 50, 60 anos. (Antonio Ferreira, “Pirrila”, Aldeia
Caípe).

O entrevistado falou dos repentes de viola que animavam as


festas, em que os desafiantes falavam de valores e desejos apreendidos
em andanças ou notícias de outros lugares:

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 167


As modas de viola era aquele repente. Tinha duas pessoas.
Uma se sentava lá e outro aqui, a viola assim no colo, e
um prato entre eles dois ali, ele começava a fazer verso, de
um para outro. O cara dizia para o outro, a viola começava
tum, tum, tum...Ele dizia, “Vá compadre comece”. O outro dizia
“Não, é agora!” “Canta um galo de campina e alegre porque
choveu, canta um sapo na lagoa e alegre porque encheu.
Você chora de tristeza porque seu amor morreu”. O outro
dizia, “Mais compadre...” “Não compadre, agora você me res-
posta”. Ai ele dizia, “A saudade é companheira de quem não
tem companhia, você chora de tristeza, eu canto de alegria.
Nunca vi minha rosa, nem minha sogra Maria”. O outro dizia,
“Vou m’imbora para Bahia, vou ser baiano também, que na
Bahia tem coisa que Pernambuco não tem, cachaça e mulher
bonita é que eu amo e quero bem”. Aí começava aqueles
versos e aí eles amanhecia o dia. . (Antonio Ferreira, “Pirrila”,
Aldeia Caípe).

A sogra do entrevistado também lembrou de outras expressões


culturais nas festas, diversas danças “folguedo de velhos”, como “O Coco,
folguedo de Roda. Faz aquela rodona assim, vai cantando assim pegando
na mão do outro dançando. A mazurca. Dançava mazurca que a poeira
cobria! Por aqui todo mundo dança, isso é folguedo de velho”. Ela falou
ainda que as festas de casamento eram animadas pelos “cabôcos” locais
tocadores de viola e aconteciam muitas danças:
Tinha muitas festas. Casamento aqui, a moça quando casava
não tinha toque, o toque era viola! Cantando, dançando na
viola. De todo jeito! Os da viola eram daqui mesmo, já se aca-
bou tudo. Eram daqui mesmo, não eram de fora não. Eram
cabôcos velhos. Eram os cabôcos velhos tudo violeiro e can-
tador! De coco de roda, de tudo no mundo eles dançavam,
mazurca. Os folguedos de velhos. Era muito lindo. (Laurinda
Barbosa dos Santos, “Dona Santa”, Aldeia Caípe).

168 Edson Silva


Aldeia Cana Brava. Local onde se concentrava maior
número de famílias indígenas com pequena glebas de
terras. De onde se origina também o cacicado Xukuru, os
Pereira Araújo.
Foto: Carol Nascimento, 2007.

As lembranças de uma entrevistada, nascida em Brejinho e hoje


moradora na vizinha Cana Brava, são de festas animadas de casamento,
mesmo de casamento com não - índios. Ela ouviu que seus antepassados
construíam os instrumentos para celebrar os enlaces, também com
muita festa. As festas religiosas eram acompanhadas com instrumentos
tradicionais indígenas:
Quando eu era moça, os índios faziam festas. No meu tempo,
ia casar a índia, casava índio com branco e ainda hoje casa...
No meu tempo essa festa era sanfona e no tempo da minha
mãe era berimbau. “Berimbau, berimbau” a noite toda! Era
o berimbau. Os índios ia no mato, fazia aqueles berimbau,
ainda uma prima que tocava berimbau, fazia uma festa no
berimbau. No tempo da minha mãe, no tempo dos bisavós
da minha mãe, as festas eram o berimbau. Quem sabia tocar
o berimbau, era a mesma sanfona, uma dança bonita. Os
festejos do santo era a zabumba e o pife. Dançava “Deus no
céu, índio na terra. Vamos ver quem pode mais”. (Maria Alves
Feitosa de Araújo, “D.Lica”, Aldeia Cana Brava)

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 169


Uma disputa entre um dançarino local e um visitante, fato que
mudou a rotina das festas realizadas em São José, foi uma situação
marcante nas lembranças de uma moradora do local:
Só os índios participavam. Tinha gente de fora não. Quando
foi um dia chegou um, chamava-se até Pedro Zabumba, esse
homem. Ele disse: — Eu vim hoje aqui pra botar esse dança-
dor pra trás, pois me disseram que ele dança muito e vim pra
botar ele pra trás. Ele disse: — Vamo, vamo ver qual dos dois
que vence a tarefa. Ai eles soltaram o pé, a casa não era en-
cimentada, era de barro, a poeira comeu, o senhor via a poei-
ra sair de cima e esses dois agaufinharam o pé. Meu Deus
do céu! Agora o Pedro Zabumba trazia um companheiro, né,
quando ele viu que o Pedro tava cansado, bem suado, ai ele
gritou. Ai eles pararam. Ai o caboclo olhou pra ele assim e
disse: — Eu ainda te pego, visse! Antonio disse: — A hora que
quiser, to aqui pra você me pegar. Foi a derradeira vez nunca
mais ele veio. (Isaura Bezerra Simplício, Aldeia São José).

A influência da catequese no antigo aldeamento se faz notar


pelas festas e novenas religiosas em diversos locais na Serra do Ororubá,
festas reelaboradas pelos índios que introduziram instrumentos musicais
alheios aos festejos católicos romanos: “As festas aqui, festa de novena,
era reza, os mesmo que os cabôcos rezava, e então fazia a festa tocando
pife, tocando zabumba, tocando caixa...era a noite inteira nas novenas de
São Sebastião, Santo Antônio, Santa Quitéria...(risos)”. (Juvêncio Balbino
da Silva, Aldeia Cana Brava).
Em Cana Brava ocorriam muitas novenas. Era o culto doméstico
aos santos, como lembrou “Seu” Zequinha:
Tinha muita novena em Cana Brava, aqui na região por todo
canto. Tinha Novena de São José, Novena de São Sebastião,
de Santa Quitéria, de São Pedro. Novena de Santa Luzia, No-
vena de Nossa Senhora das Dores, em todo canto. Tinha uma
novena em uma casa de São Sebastião, depois lá na casa de
outro fulano tinha outra do mesmo santo, era assim cheio

170 Edson Silva


de novenas. Mané Caboclo em Cana Brava festejou muito!
Ele tinha a Festa de São Mané. Rezava São Sebastião, rezava
São João, São Pedro. Ele tinha um bocado de novenário que
ele rezava. Ele tinha cinco novenários na casa dele. (Pedro
Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha, Bairro Portal, Pesqueira).

A novena nos finais de semana na casa de Mané Caboclo era


antecedida e precedida por um tocador de pífanos. O promotor da novena
devia prover a alimentação do artista. O momento de festa era o ponto
de encontro de muitas pessoas e, para muitos, de “ajeitar” os namoros:
Na novena, ele chamava o tocador, que era meu padrinho,
tocador de pife, zabumba. Ele chamava ele para ir tocar na
casa dele, aí ele matava um puiu, um porco, aí dava de al-
moçar a ele, a janta. E ele tocava a noite todinha na Novena.
Quando era assim de oito para nove horas era a novena,
terminava umas dez horas. Pronto, ficava o homem até ama-
nhecer o dia tocando. Era sempre no sábado para o domingo.
Se encontrava muita gente. Da comunidade mesmo, ajeitava
os namoros. Aparecia e ajeitava. (Pedro Rodrigues Bispo,
“Seu” Zequinha, Bairro Portal, Pesqueira).

Um outro morador em Cana Brava lembrou também a existência


do culto doméstico aos santos católicos romanos. As novenas eram
celebradas com a presença de tocadores bem recepcionados pelos
promotores do ato religioso, transformando a cerimônia em grandes
festas participativas. O culto a Santo Antônio é herança da família do
entrevistado:
As festas aqui de Santo tinha muitas! Quase todo cabôco
rezava uma novena aí na casa deles. Tinha tocador que fa-
zia gosto. Aqui em Cana Braba mesmo, tinha mais de oito
tocadores de pife, de zabumba e caixa. Hoje não tem um. Os
tocadores ia para casa do cabra que rezava a novena. Lá eles
comia, tocava o dia todinho de graça. Não era por dinheiro.
Tinha dele que saía no outro dia bem cedo. Era uma festa e
o povo vinha! Novena de São José, Santo Antônio. Eu tenho
um santo aí que está com 300 anos! (abriu o oratório na sala

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 171


e mostrou a imagem). Santo Antônio! Era de Vieira, depois
ficou para o Juvenal, depois do Juvenal ficou para os filhos,
depois dos filhos ficou para mãe. De mãe, me entregou, estou
com ele. 300 anos! Faço todo ano novena para ele. Só eu vou
com mais de 30. Todo o ano fazia, tinha uma festa, vinha os
tocadores, tocava, bebia, comia... (Cassiano Dias de Souza,
Aldeia Cana Brava).

O entrevistado lembrou ainda a fama de Santo Antônio como


casamenteiro, daí a vinda das pessoas durante a sua novena, que era
acompanhada da festa. Era época de “arrumar” namoros e casamentos,
demonstrando mais uma vez o caráter de sociabilidade das festas.
(Risos) toda vida ele arrumou! Era nas novenas, nas festas
que ajeitavam (mostrando a imagem do Santo). Olhe veja, é
um bolinho de barro. É de barro! Já casou muita gente! Os
tocadores vinham, tocava de graça! Não era por dinheiro! Só
pelo comer e beber. Tocava no pife, na zabumba e na caixa
e o povo só ouvindo. As novenas de santo eram certinhas.
Quando terminava era bem cedo. (Cassiano Dias de Souza,
Aldeia Cana Brava).

Em São José, um dos locais na Serra do Ororubá mais próximo e


com acesso mais fácil a Pesqueira, existe há muitos anos uma capela em
devoção ao Santo. Segundo uma entrevistada, ao contrário dos outros
lugares, as festas religiosas organizadas pelos próprios índios aconteciam
separadas de manifestações consideradas não religiosas, como a dança
do forró:
Tinha festa assim pro São João, e a Festa de São José. Era
boa. A festa de São José, Dia de São José ninguém trabalhava.
Só era só tomarem banho, trocar uma roupa engomada pra
fazer a Festa de São José. Agora não tinha zabumba, mas ti-
nha giranda, tinha balão, tinha tudo isso. Forró não! A Festa
de São José, mas nessa época era uma festa muito boa. Vinha
muita gente de fora pra cá pra festa, mas a festa quem fazia
era os índios mesmo. Não tinha ajudante de fora não, só era
os índios mesmo, daqui mesmo. Era época que as moça arru-
mava namorado. (Isaura Bezerra Simplício, Aldeia São José).

172 Edson Silva


O Toré é uma dança realizada por vários povos indígenas no
Nordeste. É dançado em grupos de pessoas e é definido como uma
“tradição” dos antepassados. Quando definido pelos grupos indígenas
como uma “tradição”, significando uma expressão de permanência da
identidade indígena autêntica. Por essa razão, é tido como um sinal
diacrítico, distintivo de um grupo indígena e as populações vizinhas
não – índias. Foi e é considerada, por estas, “uma dança de caboclos”.
Aparece também, como diversas manifestações dançantes, também
nos cultos afro-brasileiros, lembrada suas origens indígenas. O Toré foi
sempre dançado em Cimbres, por ocasião da Festa de São João e na de
Nossa Senhora das Montanhas, chamado respectivamente “Caô” e “Mãe
Tamain”, pelos Xukuru.
Os entrevistados afirmavam que o Toré era dançado também em
outros locais na Serra do Ororubá. O Toré acontecia nos “terreiros” ou
nas casas dos índios. Os “terreiros” correspondiam a partes das pequenas
glebas indígenas, talvez o quintal das casas. Atualmente, os “terreiros” são
clareiras localizadas nas poucas áreas de matas nativas que restam das
terras demarcadas. “Dona Santa” afirmou que, na época da sua infância,
o Toré que reunia a parentela e era dançado,
Nos terreiros. Quando não era no terreiro, era dentro de casa.
Dançava muita gente, o pessoal conhecido do velho (o pai) e
amigo da gente. Chegavam “Dá licença...”. E já iam entrando
dançando! Já morreram todo esse pessoal, eram quem gos-
tava muito do Toré, de dançar. E era muito amigo do povo
daqui tudo! Tem uma parentela da gente para o lado de Cana
Brava, já morreram tudo. Homem, mulher, menino. Não sei se
tem alguém mais família nova para lá. Mas eu não conheço.
(Laurinda Barbosa dos Santos, D. Santa, Aldeia Caípe).

O Toré era também dançado em Brejinho, animado por Antonio


Nascimento. O que era significativo, como será discutido adiante, por
ter sido ele um dos xukuru que foi ao Rio de Janeiro, em fins de 1950,
procurar a assistência do SPI. Os moradores de Cana Brava iam às
festas e novenas em Brejinho e vice-versa. Eram momentos de iniciar os
namoros e possíveis casamentos futuros:

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 173


Às vezes dançava o Toré. Sempre quem fazia isso era Antônio
Nascimento mais outros parentes dele por lá, ia alguns daqui
para lá também. Ia compadre Antero, ia Manoel Pereira dos
Santos. As fastas tinha muitas quando era já rapaz. As festas
de tocador de pife, que tinha uns tocador aqui, uns parentes
meus que tocava muito. Hoje não tem isso não. As novenas
era de São Sebastião em janeiro, Santo Antônio em junho...
Essas festas assim eles tocava. As vezes fazia 9 noite de
novenas. Era gente para lá e para cá. (risos). Era época de
arrumar casamentos (risos). (Brivaldo Pereira de Araújo “Seu”
Zé Grande, Aldeia Cana Brava).

Outro entrevistado lembrou também o Toré dançado em Cana


Brava onde ele morava, nas casas, após as novenas, em festas a noite toda,
com bebidas, cantos e zabumba, momentos para arrumar casamentos:
O terreiro de Toré era em qualquer canto. Quem dizia vamos
dançar o Toré na casa de fulano? Vamos! Ajuntava aquele re-
banhão e ia dançar. Dançava a noite, bebendo, cantando...Era
de zabumba, de tocar pife. Era de novena. Era gente demais.
Era época de arrumar os casamentos (risos). Eu era perigoso.
(risos). (Floriano Marcolino da Silva, Aldeia Cana Brava).

Dançava-se Toré em Cana Brava, em Cimbres e até no Recife,


pelos índios velhos e pelos mais novos, a exemplo do que disse o
entrevistado. Dançar o Toré era “brincar”, como ele afirmou. O Toré
então tinha um caráter de brincadeira, de encontro festivo:
Se dançava Toré aqui. Não tem essa casinha no caminho, aqui
na beira do caminho? Ali era do finado Salú. Ele fazia Toré ali.
Nessa época eu podia ta com uns 20 anos. Eu dançava Toré lá.
Dançava tudo. Esses índios velhos dançava tudinho. Dançava
Xico Piranha, Pedro Piranha, dançava tudo! Dançava tudinho
aqui, dançava Toré. Muitos! Já morreram tudo quase. Dancei
aqui, dancei no Gitó ainda. Dancei na Vila de Cimbres, e no
Recife também. Eu tinha uns 20 nos quando peguei brincar.
Eles tinham a gaita, eles tocavam, “Vamos?!” “Vamos!”. (Manoel
Balbino Silva, “Mané Preto”, Aldeia Cana Brava)

174 Edson Silva


Em Cana Brava, apesar das pressões e perseguições dos
fazendeiros, dançava-se o Toré. O Toré foi tido ainda como uma
representação da identidade, foi dançado também em aldeias de outros
povos indígenas vizinhos. Dançar o Toré era impedido pelos fazendeiros:
Os fazendeiros proibia mais não tinham que jeito dar! Proibia
porque não queria. Nós não tinha valor e eles prendia prá
ninguém dançar. E daqui eu já dancei, eu fui pra Kapinawá,
quando foi para ajeitar aquele Posto de Kapinawá, eu fui.
Fui para Águas Belas, fui para Palmeira dos Índios. O cabra
vinha atrás d’eu aqui onde eu tava e dizia, chegava e dizia
“Vai?!”. Eu dizia “Vou! Eu vou. Se morrer, morreu. Se voltar,
voltou”. (Idem).

Dançar o Toré, além de possibilitar a reunião, o encontro festivo,


significava também a continuidade de rituais e assim a afirmação de uma
identidade indígena e seus direitos às terras do extinto aldeamento onde
moravam:
O Toré toda a vida foi essa. O Toré a vida foi o Toré. O Toré
deles aqui, toda a vida foi! Tanto lá na Vila, com aqui no
terço da gente, toda a vida o Toré é o mesmo. Dançavam
aqui por todo canto. Quando fazia uma repartição aqui, uma
novena, uma coisa, às vezes tinha um terreiro aqui. Às vezes
na época da fogueira de São João vinha um bocado de gente
dançar Toré aqui, aqui em muitos cantos dançava Toré aqui.
Alcancei, e toda vida existiu esse Toré, desde que sou nascido
que existe esse Toré. (Manoel Balbino Silva, “Mané Preto”,
Aldeia Cana Brava)

Por ocorrer com a reunião dos índios e significar uma expressão


da identidade indígena, o Toré foi perseguido e proibido pelos fazendeiros
que haviam se apropriado das terras do antigo aldeamento.

Cimbres, um espaço de identidade e memórias


Considerado um espaço sagrado pelos Xukuru, marco inicial da
colonização portuguesa na região, sede do antigo aldeamento missionário

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 175


fundado pelos Oratorianos em 1671, a Vila Cimbres foi apropriada pelos
índios que a transformaram em um espaço de memória, de referências, de
encontros anuais para as festas religiosas do calendário católico romano,
mas relidas a partir dos horizontes Xukuru. Seguindo o calendário festivo
religioso em Cimbres, São João chamado Caô pelos Xukuru, é festejado
em junho. Nossa Senhora das Montanhas, denominada pelos índios Mãe
Tamain, no início de julho, além de São Miguel, em setembro.

Toré na Vila de Cimbres


em 23/05/2005.
Foto: Edson Silva.

Além de outras práticas religiosas, como rezar o Terço, promover


novenas, viajar em romarias a Juazeiro do Norte/CE, para as celebrações
que lembram o Pe. Cícero, os Xukuru participam mais intensamente nos
festejos dedicados a Caô e a Tamain. O São João festejado por eles difere
da imagem tradicional simbolizada por uma criança com um cordeiro,
pois o santo é visto pelos Xukuru como um guerreiro. Assim também
é visto São Miguel. Tamain é considerada a protetora dos Xukuru e de
Cimbres, tido como um espaço sagrado, de propriedade indígena.
Nas festas dedicadas a Caô e Tamain, os Xukuru participam
ativamente. Na festa para Tamain, a participação, porém, é bem maior:
Desde a Procissão da Bandeira, dançando o Toré, devidamente “fardados”
com o Tacó (vestimenta de palha tradicional Xukuru), na frente do templo
católico em Cimbres, ao transporte do andor. Só os Xukuru têm o direito
de carregar o andor, e tocar a imagem da santa. Esse “monopólio” sempre
foi motivo de questionamentos e conflitos com as autoridades religiosas

176 Edson Silva


que dirigem os festejos. Nos últimos anos, depois da procissão os Xukuru
entram carregando o andor no templo católico romano, gritando “Viva
Tamain, Pai Tupã e o Cacique Xicão”. No interior do recinto as lideranças
postam-se em pé, próximas ao altar central, enquanto outros indígenas
ocupam o corredor principal e as laterais. Ao final da missa os não-
índios retiram-se, em reconhecimento e respeito aos indígenas, cedendo
espaço para os Xukuru dançarem o Toré ao redor dos bancos, entoando
repetidas vezes seus cantos rituais tradicionais.
Os Xukuru, além de afirmarem ser Cimbres um espaço sagrado
e daí a busca do domínio sobre ele, dizem também que N. Sra. das
Montanhas/Tamain pertence a eles. Como aparece expressado nos relatos
das muitas versões sobre o “achado” da Santa, encontrada por uma índia
criança, “um caboclo velho”, ou ainda por um índio enquanto caçava na
mata. Dizem ainda que foram os índios que fizeram “uma cabana de
palha para ela, em cima do tronco onde ela foi encontrada”. Também
descrevem seus traços físicos do rosto como os de uma “cabocla”.
A festa dedicada a São João, chamado “Seu João” pelos Xukuru,
começa pela manhã, com fogos de artifício e a banda de pífanos. Índios
xukurus vindos das aldeias espalhadas na Serra do Ororubá vão chegando
e se dirigindo ao Centro Social São Miguel. Eles vêm de caminhão, a pé
ou a cavalo. Muitos trazem o “fardamento”: o saiote de fibras de caroá ou
palha de côco que eles chamam “Tacó”. Além da barretina, na cabeça,
das braçadeiras, goleiras e tornozeleiras, para dançarem o Toré, a dança
coletiva que é iniciada ainda pela manhã, no salão do Centro Social.
Por volta das três horas da tarde o sino da Igreja anuncia a hora
da “busca da lenha”, da qual participam índios e não-índios. Mulheres,
crianças, jovens e homens xukurus, além de muitas pessoas curiosas,
se concentram defronte ao templo católico romano. No ritual realizado
anualmente, os Xukuru caminham cerca de dois quilômetros, na caatinga,
e retornam com pedaços de paus e galhos secos, que serão colocados na
grande fogueira a ser acesa no início da noite, defronte à Igreja de Nossa
Senhora das Montanhas (para os Xukuru, “Nossa Mãe Tamain”).
A procissão para recolher a lenha parte da frente da Igreja
seguindo a bandeira de São João, que é segurada pelo Cacique e

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 177


lideranças indígenas, tendo ao lado ainda a banda de pífanos. Para os
Xukuru, esse ritual possui um sentido religioso profundo. Faz parte de um
compromisso que deve ser renovado a cada ano. Retornando ao centro
da Vila de Cimbres, depois de dar uma volta no templo católico romano,
as madeiras são depositadas defronte dele, para fazer a grande fogueira.

Festa de N. Sra. das


Montanhas/Tamain
na Vila de Cimbres
em 02/07/2005.
Foto: Edson Silva.

No início da noite são acesas as fogueiras menores em frente


às casas da Vila, e também a grande fogueira comunitária organizada
à tarde, defronte da Igreja. Por volta das 19 horas começa a missa. Os
Xukuru concentrados no Centro Social São Miguel seguem em fila
indiana, juntamente com a banda de pífanos, em direção ao interior
da Igreja, ocupando os bancos, as laterais e todos os cantos do templo.
Finda a missa, os Xukuru, também em fila indiana, seguindo o tocador do
“Mibi” (gaita), dão três voltas em torno da Igreja. Param defronte ao pátio
do templo e dançam o Toré, com várias voltas ziguezagueadas, em forma
de “S”. Dão muitos vivas a “Seu” João”, a “Mãe Tamain” e ao Pai Tupã.
Voltam para o salão do Centro Social, onde continuam
dançando o Toré até perto de meia-noite, quando vão para um local,
nas proximidades da Vila onde, está uma pedra plana, chamada Laje
do Conselho. Naquele local, em silêncio, ficam esperando os conselhos
dos Encantados, dos antepassados falecidos. Ocorrem incorporações de

178 Edson Silva


espíritos dos Encantados, que se manifestam por meio dos incorporados,
falando aos presentes, que escutam atentamente. Dançam o Toré em
cima da Laje. Aquele que escorregar na laje morrerá durante o ano.
Assim dizem e acreditam os Xukuru.
Depois desse ritual, retornam ao Centro São Miguel, onde
dançam até as quatro horas da manhã. Já próximo ao amanhecer, vão
outra vez para a frente da Igreja, dançam e dão voltas em torno do
templo, encerrando suas obrigações. Dizem que, no passado, os índios
mais idosos caminhavam descalços nas brasas da fogueira. A despedida
é saudada com fogos. É dia quando os Xukuru começam a retornar para
suas aldeias. Voltarão à Vila de Cimbres no dia dois de julho, para a Festa
de “Nossa Mãe Tamain”.
Os festejos anuais realizados em Cimbres foram lembrados
por entrevistados que começaram a participar deles ainda crianças,
acompanhando os pais. Eram momentos em que se encontravam índios
vindos a pé de todas as localidades espalhadas na Serra do Ororubá. O
Toré, dançado durante os festejos, era ridicularizado pelos fazendeiros,
que distribuíam bebidas aos índios:
No São João. O São João tinha dois festejos que se encontra-
va todo mundo, todos os índios ia pra lá, de todas as aldeias,
que pudesse ir. Que antigamente ia de pés. Não tinha carros,
não, não tinha transporte, ia de pés. Eu mesmo com 12 anos
de idade de pé! Acompanhava meus antepassados de pés. Ia,
dançava lá o Toré à noite, quando era certas horas dormia
um sono, que eu não agüentava passar a noite toda, para vir
de manhã, na pata de novo para Cana Brava, 5 léguas era
muita coisa. Ia só no São João. Os festejos era no dia 23 para
dia 24 São João e no dia 2 de julho. E tinha outro festejo que
agora não tão festejando mais não, mas que só faz rezar a
novena, era em Setembro, que era de São Miguel, ia nova-
mente. Mas dia de São Miguel nunca fui não. Só ia Dia de
Nossa Senhora e pelo São João. Aí os cabras chegava lá, tava
dançando, os índios tava dançando, cada cá, os fazendeiros,
cada cá que chegava com uma bunda de saco de garrafa
para embebedar os índios para eles mesmo dizer, “Olha, ta

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 179


vendo como eles são, são assim, são tudo uns bebãos, isso
aí não tem valor não”. Eles falavam isso. (Pedro Rodrigues
Bispo, “Seu” Zequinha, Bairro Portal, Pesqueira).

Romão José Barbosa e o


Cacique Antero Pereira, na
Festa de São João/Caô em
23/06/1963, na frente do
altar da Igreja de N. Sra. das
Montanhas em Cimbres.
Arquivo pessoal de Maria José
de Brito, “Maria de Romão”, Vila
de Cimbres.

Como foi visto anteriormente, o Toré tinha uma dimensão


política, significava a afirmação do sentimento de identidade indígena:
O Toré toda a vida foi essa. O Toré a vida foi o Toré. O Toré
deles aqui, toda a vida foi! Tanto lá na Vila, com aqui no
terço da gente, toda a vida o Toré é o mesmo. Dançavam
aqui por todo canto. Quando fazia uma repartição aqui, uma
novena, uma coisa, às vezes tinha um terreiro aqui. Às vezes
na época da fogueira de São João vinha um bocado de gente
dançar Toré aqui, aqui em muitos cantos dançava Toré aqui.
Alcancei, e toda vida existiu esse Toré, desde que sou nascido
que existe esse Toré. (Juvêncio Balbino da Silva, “Seu” Juvên-
cio, Aldeia Cana Brava).

Questionado sobre a atitude dos fazendeiros diante do Toré, o


entrevistado relatou o temor que o ritual representava:
Os fazendeiros eles sempre temiam. Eles sempre temiam os
índios. E por isso que o fazendeiro nunca gostou de índio e
hoje não gosta de índio ainda. Porque nunca tiveram medo.

180 Edson Silva


O índio era, eles nunca brigaram com ninguém, era ou povo
todo calmo, nunca buliram com ninguém, mas também não
tinham medo de ninguém! E o branco não podia proibir não.
(Juvêncio Balbino da Silva, “Seu” Juvêncio, Aldeia Cana Bra-
va).

Dançar o Toré colocava em questão os proclamados direitos


dos fazendeiros invasores sobre as terras do antigo aldeamento. As
perseguições ao ritual restringiram a sua realização em Cimbres:
Uma época, porque arroxou muito. Arroxou, arroxou, que na
Vila de Cimbres, só ia aqueles que era peitudo mesmo. Eu
cheguei a ver dançando em Cimbres 8 pessoas, 10. Somente
uma coisinha, quase se acaba o Toré. Faltou nada. Por causa
da pressão. (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha, Bairro
Portal, Pesqueira).

Ainda assim o Toré dançado na “Vila” de Cimbres é lembrado


como um momento de encontro festivo: “Muitos e muitos vezes ia para a
Vila. Minha mãe ia. Se ajuntavam tudo e ia para lá. Chegavam lá dançavam
a vontade, quando era no outro dia é que eles vinham. E tudo a pé! Na
época de São João, na Festa de Nossa Senhora mesmo”. (Brivaldo Pereira
de Araújo, “Seu” Zé Grande. Aldeia Cana Brava)
Outro entrevistado falou com euforia sobre o encontro dos
participantes da “pisada” do Toré na “Vila”, vindos de várias localidades
da Serra do Ororubá. Todos “paramentados” com o tacó, o saiote e a
barretina para a cabeça, os adereços Xukuru para a ocasião, e ainda cada
um trazendo uma cana para ofertar durante a missa,
Vila de Cimbres, eu pisei muito Toré! Pisei! Ia para a Vila no
mês de São João. Eu e uma turma. Essa turma era daqui da
Serra. Vinha de muitos cantos. Nós formava o Toré na Vila. Era
uma pisada bonita! Todo mundo paramentado. Quem não ia
brincar, ia olhar. Eu fui muitas vezes, eu fui demais. Nós brin-
quemos muito! Saía todo mundo com uma cana nas costas,
batendo o Toré a noite todinha...a cana nas costas pisando o

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 181


Toré. No outro dia voltava, com sono, meio enfadado. (risos).
(José Gonçalves da Silva, “Zé Cioba”. Bairro Portal, Pesqueira).

Moradora na atual Aldeia São José, “Dona Nina” também


recordou que, quando criança viu, os trajes dos índios que se dirigiam a
Cimbres. Seu pai ia com os conhecidos e suas mulheres que passavam
para a “Vila”:
Levavam a cana nas costas, ia tudo de barretina, iam de
pé nesse tempo não tinha carro. Ia todo mundo, vinha um
pessoal dali de Brejinho, de Jitó, pessoal de Nascimento, pes-
soal de Jitó que vinha tudo. E daqui ia tudo pra Vila. Ia com-
padre Alcebíades. Eu não lembro bem que nesse tempo eu
era pequena. Pai foi algumas vezes. Não era sempre, mas
algumas vezes ele foi. Não era toda vez que ele ia não. “Seu”
Zezinho, ele ia todo ano. Ia pra festa do São João e pra festa
de Nossa Senhora.Todo ano. Quando eu era criança não ia
não. Porque era de pé e era muito longe e as criança não
agüentava a ir. Mas as mulher deles ia também. Eu me lem-
bro bem que eram de Brejinho e Jitó. Passava tudo de bar-
retina, pintado com as caninhas nas costas e eles passavam
tudinho pra Cimbres. Eu era pequenininha. Eu acho que uns
seis anos por aí. (Maria das Graças Simplício Freire, “Dona
Nina”. Aldeia São José)
Outra moradora da mesma localidade lembrou que, anualmente,
vindos de diferentes lugares na Serra do Ororubá, muitos iam a pé para
a Festa de Nossa Senhora das Montanhas e de São João, na Vila de
Cimbres. A entrevistada lembrou que, em Cimbres, eles participavam do
ritual da “busca da lenha” para fazer a fogueira:
Na festa de Nossa Senhora das Montanhas. Todo ano. Não
ficava ninguém e não tinha esse negócio de carro e nem, não
tinha nada, ia tudo de pé. Agora eles iam de pé, mas eles já
dançavam o toré, diziam que iam pra festa e saía de casa de
madrugada. Aqui, acolá quando tava..., bebia cana e dançava
o toré. Dançava quando tavam suados e ai iam s’imbora. De
outros lugares, ali de Cana Brava, Sítio do meio, Brejinho,
esse lugar ai, ia tudinho, esse povo ia tudinho pra festa de

182 Edson Silva


Nossa Senhora das Montanhas. Iam pra festa de São João
pra carregar a fogueira. Eles tinham que carregar a fogueira.
Ia todo mundo carregar fogueira de São João. (Isaura Bezerra
Simplício, “Dona Isaura”. Aldeia São José)

Uma entrevistada afirmou também que, ainda criança, foi a


Cimbres por diversas vezes. As condições de pobreza e a distância a
impediram de ir mais vezes. Eram significativos momentos religiosos
anuais para os pais levavam suas crianças, para visitar a “mãe Tumain”:
Fui muitas vezes. Não fui mais porque não tinha como ir!
Não tinha roupa para ir e nem tinha calçado. Como é que
as criancinhas iam de pés? Muitas crianças que iam acom-
panhavam os mais velhos. A tradição era S. João, no dia 2
(de julho) de N. Sra. das Montanhas que meu pai festejou
muito! E dia de S. Miguel, era festejo na Vila. Que quando
eles começaram a ficar mais sabidinhos, ia visitar a Mãe.
Eles chamavam “a minha mãe!”. Que eles passavam lá onde
nós morava e diziam, “Vamos visitar a mãe da gente, Mãe
Tumain e S. Miguel. (Maria Alves Feitosa de Araújo, “Dona
Lica”. Aldeia Cana Brava).

Com entusiasmo também “Dona Santa” recordou que seus pais,


avós e um “bocadão” de gente “trajados” se dirigiam para os festejos
religiosos em Cimbres, juntamente com as crianças, inclusive ela própria:
Os que dançavam Toré iam para Festa de N. Sra. das Mon-
tanhas, para Vila dançar lá. Iam meu pai, minha mãe, meu
avô, minha avó, um bocadão. Juntava muita gente! Menino
pequeno, eu mesma fui muito! Ia no dia de N. Sra. das Mon-
tanhas, tem o dia. Podia ser dia da semana, podia ser dia
que fosse! Passava o dia lá, passava a noite e no outro dia
só saía depois da Missa. Iam daqui tudo formado (paramen-
tado). Os homens levavam uma cana nas costas, as mulheres
não. As mulheres iam com os bruguelos nos braços, outros
caminhando. Era muito bonito. Era outro tempo! As barreti-
nas na cabeça. Aqui nos braços e aqui a saiona, batendo
aqui embaixo (apontando o próprio corpo). Agora que ver
como era os trajes, descalços, tudo descalços! Chegava lá na

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 183


Vila iam dançar. Entrava, estava aquele cabocão cantando e
maracá e balançando no ganzá. Era aqueles velhos, era uma
coisa muito bonita! Arrudiando a Igreja assim (faz o gesto).
Quando chegava aqui fazia às vezes de N. Sra. das Monta-
nhas. Entrava tudinho, aqueles cabôcos tudo de zabumba, de
pife tocando, era muito lindo! Eu ia, mas era moleca pequena
assim. Só saia caminhando, não sabia dançar, mais ia cami-
nhando. Andei muito! Ia muito índio! Muito bonito. (Laurinda
Barbosa dos Santos, “Dona Santa”, Aldeia Caípe).

Morador em Cana Brava, “Seu” Juvêncio lembrou os “índios mais


velhos” que iam para os festejos em junho, na “Vila”. Mesmo um deficiente
era levado pelos companheiros:
E em junho iam para Vila. Os índios mais velhos, todos eles
iam. Muitos daqui ia. Quando na época da fogueira de São
João lá na Vila, aqui não ficava ninguém. Ia tudo, só ficava
quem não queria ir mesmo, quem não podia, mas os outros
tudo ia, ia de pés. Se juntava aquela caminhada e ia tudinho.
O finado Candinho um índio veio acolá, Mane Piranha, avô
do Pajé, chamavam Piranha o apelido, mas é Rodrigues. Os
antigos daqui iam tudo! Aqui faleceu um índio, pegavam ele
nas costas, daqui para Vila de Cimbres. Juntava os cabôcos
tudinho e levava que nem um comboio de formigas, e leva-
vam ela para Vila. (risos). (Juvêncio Balbino da Silva, “Seu”
Juvêncio, Aldeia Cana Brava).

Um outro entrevistado narrou com detalhes sua participação nas


festas em Cimbres, onde o Toré era dançado durante o dia e a noite, por
seus pais e muitos outros vindos de várias localidades, que traziam seu
“vestuário”. É significativa a citação ao Cacique Jardelino, que vinha do
Recife para participar dos festejos,
Dancei muito na Vila de Cimbres. Desde18 anos, que eu
peguei a dança do toré. Às vezes ia a pé lá por dentro
daquele meio de mundo, aquela caatinga, saía em trincheira,
aquele meio de mundo, chegava lá. Ia a tropa todinha, né?
8 a 10 pessoas, nós subia. Chegando, já tava entupido de

184 Edson Silva


índios dançando o Toré, né? E nós continuava! De todo canto,
de Pé-de-Serra, Cana Brava de Dentro, Brejinho, Caípe. No
São João e no dia de Nossa Senhora das Montanhas. Levava
o jupago e o vestuário de palha ou de coqueiro, qualquer
coisa, né? Ia dançar. Uma cana em pé aqui, viu? A barretina
aqui e o jupago aqui. Todo mundo! Nós brincava até... o dia
todo e entrava pela noite. Meu pai e minha mãe também.
Me lembro! O finado Tunga, Antero, o finado Jardelino, que
era o Cacique que veio do Recife, né? Pra lá, pra festa de São
João e de Nossa Senhora das Montanhas. (Antônio Feliciano
da Silva, “Seu” Brainha, Bairro José Jerônimo, Pesqueira/PE).

O Toré dançado em Cimbres tem à frente um guia, o “Bacurau”.


Acompanhando os mais velhos para a Vila, “fardadinho”, desde criança,
“Seu” Gercino” contou como foi escolhido para suceder o índio que
exercia essa função:
Eu tava com idade de onze ano. Isso ai. O seguinte foi esse,
o bacurau mais velho da vila era Chico Rodrigues, era um
índio, um homão, e todo ano minha mãe e minha avó, nunca
perdeu um ano, ia na Vila. Dia de Nossa Senhora e pelo São
João e São Pedro. Ela nunca perdeu. Quando ela ia, ela me
levava Inté quando eu cheguei a onze ano. Eu já acompa-
nhava os índio dançando. Eu também fardadinho, acompan-
hava nos índio. E o finado Chico Romão gostava muito de
mim, porque diz que eu era esperto. Era um menino esperto,
eu acompanhei, acompanhei, acompanhei. Quando eu tava
com onze ano, ele era doente, o finado Chico Rodrigues...
Ai, nós... eu, menino, esperto, quando chegava lá, que nós ia
brincar, ele me chamava, botava eu encostado a ele. (Gercino
Balbino da Silva, “Seu” Gercino, Aldeia Pedra d’Água).

A escolha ocorreu após um processo de aprendizado:


Ai, nós brincava... e ele, “esse menino ninguém pode deixar
ele atrás não, ele tem que ir na frente! Que ele vai vendo
o que eu vou fazendo, e ele vai aprendendo, ele e outros
qualquer!” Mas, os outros não tinha, não sei... Não tinha ca-

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 185


beça, e eu interessado que era um pai dégua mermo! Digo:
eu vou ficar nesse lugar desse homem. Quando ele morrer
eu tomo conta. Mas nada, ele entregou antes de morrer. En-
tregou a mim! Eu tinha onze ano! (Gercino Balbino da Silva,
“Seu” Gercino, Aldeia Pedra d’Água).

A escolha foi anunciada na presença dos mais velhos. Apesar da


ausência do então Jardelino, o Cacique, na época. O anúncio aconteceu
em uma noite de São João, momento significativo da presença Xukuru
em Cimbres:
Antes de morrer. Uma, derradeira noite de São João nós fumo,
chegamos lá, ele doente, doente, doente, doente. Ai foi cha-
mou os índio. Nesse tempo, só quem ia era os índio velho. Só
quem ia era aqueles índio velho. O finado Chico Rodrigues,
Zé Rodrigues, Firmino Rodrigues, Mané Bilinga, esse homem
velho finado Mané Neto, lá de Cabo do Campo, esse índio
velho ia...Jardilino, não ia não. Ai ele fez a reunião. E chamou
aqueles cabra. Tudo espiando, tudo olhando. Tudo ao redor
ali. Falou, falou, falou, ai foi e disse: “Vou deixar em meu lugar
esse menino! Esse menino pode tomar conta do meu lugar,
e eu entrego de bom coração, de boa vontade, entrego a ele,
ele é quem vai ficar assumindo o meu lugar!”. (Gercino Bal-
bino da Silva, “Seu” Gercino, Aldeia Pedra d’Água).

O antigo “Bacurau” previa sua morte e anunciou seu sucessor.


Mesmo com divergências em relação às condições físicas do escolhido,
ele foi aceito e, naquela noite, assumiu suas funções:
Ai, eles tudo ficaram espiando, será que Chico tá adivi-nhan-
do?! Ai, o finado Chico me disse: “Chico não vai durar muito
não!” Eu fiquei por ali, desconfiado. Teve muitos deles que
disse: “Você num deixe Chico esse menino, esse menino não
vai assumir seu lugar! Esse menino não agüenta, ele é muito
novo, mas, você é quem sabe”. Ele disse: “É ele, e é ele mesmo!”
Pronto. Ai aplaudiram, bateram palma, aplaudiram e tudo. Eu
fiquei... Nessa noite de São João, de meia-noite em diante já
quem terminou foi eu, que ele não agüentou, foi eu. (Gercino
Balbino da Silva, “Seu” Gercino, Aldeia Pedra d’Água).

186 Edson Silva


A função do “Bacurau” é exercida anualmente com bastante
seriedade, comparada até a uma “profissão”. Como o “serviço” tem uma
dimensão religiosa, é necessária “uma preparação” anterior:
Todo ano. Todo ano. Não perdi ano, porque era minha profis-
são. Quando chegava o tempo de eu ir, mês de São João, eu
podia tá onde tivesse, vinha embora. O Bacurau é quem puxa
a linha do toré, o Bacurau. Se não tiver o Bacurau, tem alguns
que entra pra fazer aquele serviço mas, aquele serviço não é
só a gente saber, só a gente chegar e fazer não. O serviço de
Bacurau tanto na maracá, que nem é hoje, como no tempo
que era na mibi (gaita). Nós ia fazer aquele serviço, mas nós
tinha que saber o que ia fazer, tinha que saber. Não era só
chegar e fazer não. Ainda hoje é do mesmo jeito. Quando
nós ia, fazer esse serviço, nós já ia preparado, nós saia de
casa preparado sobre aquele serviço que nós ia fazer. Fazia
a preparação em casa, e ia, já ia preparado. Quando chagava
lá, acabava de se preparar. Pronto. Ai, era preciso saber o que
ia fazer, não era só chegar enfiar o peito e fazer não. (Gercino
Balbino da Silva, “Seu” Gercino, Aldeia Pedra d’Água).

No relato, “Seu” Gercino lembrou que o gaiteiro subia no morro


e anunciava as localidades mais próximas de Cana Brava o momento da
partida para os festejos na Vila de Cimbres. O contingente dos que se
dirigiam à Vila aumentava à medida que passava pelas aldeias,
Dançava São João. Dançava noite de São Pedro. Dançava
dia de Nossa Senhora. Dançava a festa de São Miguel em
setembro. Ia e voltava. Ia e voltava. Ia a pé. Tinha o gaiteiro, ai
de Cana Braba (Cana Brava), finado Antonio Nego. Quando
ele ia, no dia da gente ir, todo mundo sabia. Ele saia de
casa, quando chegava em cima, onde é o grupo (escola) hoje
em Cana Braba, ele dava uma chamada na gaita que, ali
por Cana Braba (Cana Brava) todo mundo ouvia. Marchando
por ali a fora. Tionante, tudo ouvia. E ele saia. Ia ajuntando,
ajuntando, ajuntando, ajuntando. Muitas vezes quando ele
passou ali em Sitio do Meio, tinha de trinta pra lá. Entre
homem e mulher. Nessa época, sei muito bem. Cana Braba

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 187


de Fora, ia índio. Cana Braba de Dentro, ia índio, Cana Braba
de Fora. Adiante, pegava Tionante. Ia, Brejinho, Afeto, Jitó.
Daqui até Currau de Boi todas as aldeias ia. Caetano, Oiti,
aquele Pé de Serra, lá Cardeirão, ia tudo. Ficava os índio veio,
os que gostava. (Gercino Balbino da Silva, “Seu” Gercino, Al-
deia Pedra d’Água).

“Seu” Gercino atuando como


“Bacurau” durante o Toré,
na Vila de Cimbres, em
23/06/2005.
Foto: Edson Silva.

O entrevistado lembrou as canas-de-açúcar que eram levadas e


utilizadas durante os festejos religiosos na Vila de Cimbres. Como fazem
atualmente, os índios dançavam o Toré na frente da Igreja, e entravam no
templo católico romano carregando as canas, deixadas lá após o ritual:
No tempo que nós usava cana, cada qual levava uma, duas.
Quem era mais forte levava duas. Levava nas costa pra Vila.
Quando chegava lá, que ia pra frente da Igreja deixava tudo
encostado na parede, entrava pra dentro.Fazia as nossa
obrigação dentro da igreja e ai saia. Ai ficava um do lado e

188 Edson Silva


outro do outro e as canas faziam assim, que nem um arco. Ai
nós saia, que sempre não existia aquele salão que tem hoje,
não existia. Tinha as casas pra gente ir se arranjar, naquelas
casas levava tudo. Hoje tem o salão.
As canas quando era se fosse noite de São João, quando era
na hora da missa, entrava. Porque os índios entrava, chegava
lá na frente e cruzava assim, fazia o arco. A missa tinha
uma novena. A missa. Tudo ali e a gente tudo em pé com
a cana cruzada que nem um arco, porque entrasse e saia
passava ali por debaixo. Quando nós saia que vinha pra fora
fazer a venda de São João. A gente fazia a venda, cruzava
as canas tudo, ali e fazia o Toré, quando terminava o toré,
guardava as canas, que era pra no outro dia, fazer o mesmo
serviço. No dia de São João, cruzava as canas, fazia a nossa
obrigação nossa na frente da Igreja. Brincava e pegava as
cana e deixava pros outros. Prá quem quisesse e deixava
pra lá. Mas depois de nossas obrigação. (Gercino Balbino da
Silva, “Seu” Gercino, Aldeia Pedra d’Água).

As lembranças das reuniões dos que se dirigiam a Cimbres para


as festas foram também evocadas por outro entrevistado. Segundo ele,
ao sair de casa levavam um pouco de comida. Todos iam, como uma
“irmandade” participar do “Brinquedão”, o Toré no encontro festivo na
Vila:
Dançavam, na Vila de Cimbres. Só na Vila, aqui não dança-
vam não. Dançavam véspera de São João, véspera de São
Pedro. Dia de N. Sra. das Montanhas e de São Miguel tam-
bém, não era mas muitos, mais ia. Era 4 festas por ano que o
índios ia. Meu pai mesmo ia. Se reuniam, saía daqui 5,6,8,10
e ia ajuntando. Iam atrás do brinquedo mesmo. Quando saía
de casa levava um bocadinho de feijão, um bocadinho de
farinha, ia de pé para lá! No outro dia, a uma hora dessa
é que estavam chegando. Iam 10,12. Chegando em Cana
Brava já tinha outro bocado e assim quando chegava lá, che-
gavam cento e tantos homens. Só dessa linha, fora as outras!
Era brinquedão grande! Os que ia se encontrava na Vila. Era
que nem uma irmandade. Mas os cabôcos aqui e acolá gos-

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 189


tavam de tomar uma pinga, também urincajó e ficavam meio
doidão. (risos). (Cassiano Dias de Souza, Aldeia Cana Brava).

O entrevistado seguinte dançou o Toré nos festejos em Cimbres


desde criança, deixou em razão da idade avançada. Ele lembrou também
que participavam muita gente, levavam a cana-de-açúcar e o “vestuário”
usado para a ocasião:
Parei agora porque não agüento mais. Eu ia para a Vila dan-
çar Toré. Era o serviço da gente aqui, ir para a Vila dançar
Toré mesmo. Todo ano. Era dança de N. Sra. das Monta-
nhas, S. João, S. Miguel. Ia muita gente. Saia por aqui afora
um bocadão, e arranjava muita gente e ficava lá. Passava a
noite dançando e no outro dia vinha s’imbora, a pé! Ia tra-
jado, vestuário de palha, barretina na cabeça com a cana na
mão. Dancei muito! Desde criança, ia com muita gente, aqui
ia muita gente Muita gente junta. E nunca parou. E nunca
parou de ir para a Vila. (Floriano Marcolino da Silva, Aldeia
Cana Brava).

O antigo Cacique Xukuru “Zé Pereira”, sobrinho dos caciques


Jardelino Pereira e Antero Pereira, já falecidos, morador em Cana Brava,
lembrou que vários antepassados seus iam a Cimbres para as festas
religiosas:
Meu pai. Meu pai, meu tio Manoel Pereira mais o meu pai.
Antero Pereira, meu tio e o velho Jaderlino Pereira de Araújo,
que era geral dessas aldeias. Quem era Cacique daqui era
Ikanbiuar de Sé Romã, que hoje já é outro nome já diferente.
É quatro aldeia subia, subia no primeiro dia de São João,
descia no derradeiro dia de São João, que era o dia da foguei-
ra. Ai a gente passava a fogueira na vila, esperava pelo dia
de Nossa Senhora. Dia dois terminava, dia três, ele descia pra
Recife. Ele era o Cacique geral ele trabalhava nesse tempo na
FUNAI. (José Pereira de Araújo, “Zé Pereira” ou “Zé de Ismaé”.
Aldeia Cana Brava )

Todos iam para a Vila vestidos para a ocasião e levando as canas-


de-açúcar. O gaiteiro anunciava o momento da partida para Cimbres,

190 Edson Silva


onde muitos dançavam por toda a noite, apesar do frio. Aos dez anos o
entrevistado já dançava o Toré, em Cana Brava e na Vila:
Ós cabloco daqui saia na paia (palha), na barretina e com
a cana nas costa. Era o tempo dos cabloco dançar aqui era
esse. Iam dançar na Vila. Nessa época, quem ia era o velho
Candin. O velho Candi era Major. Era Major. Era Zé Migué lá
de Cana Braba (Cana Brava) de Dentro e tinha um chamado
Zé Negro, que era o gaiteiro. Era o trocador de gaita ia. Ai
quando chegava lá ali em Afeto, ai apitava na gaita. Ai ajun-
tava os outros e subia pra Vila de Cimbres. Chegava na Vila
de Cimbres, ai ajuntava com os de lá e dançava a noite todi-
nha. Agora eu não dançava na Vila a noite todinha porque eu
não agüentava o frio. Eu dancei Toré com dez anos. Dançava
aqui e nós ia pra Vila. Aqui nós dançava. Quando nós tinha
quatorze, quinze anos. Ai nós dançava o Toré. Ia todo mundo,
ia dia de Nossa Senhora. e dia de São João, ia todo ano. Nós
ia daqui pra vila. (José Pereira de Araújo, “Zé Pereira” ou “Zé
de Ismaé”. Aldeia Cana Brava)

O antigo Cacique detalhou as vestimentas usadas para os rituais


na Vila, onde participavam da coleta de madeiras para a fogueira em
frente à Igreja. A fé religiosa era testemunhada no andar nas brasas
da fogueira. Levavam as canas-de-açúcar e o “jupago”, uma espécie de
“cacete” nas mãos:
Todo mundo ia e eu. Olhe como eu to dizendo a você. Na
barretina, na palha e com a cana. É a barretina é de palha
de cocô. Agora o tacó que é de palha de milho. O tacó não
ta ali não. O tacó tá em riba. O taco é a roupa. Nós ia bus-
car, a fogueira dava mais de dez metro. E de noite passava
mais dentro da brasa descalço. Passei, apaguei uma vez dez
fogueiras na frente das casa. Descalço, sem nada nos pés.
Os pés limpos. É preciso ter muita fé! E a minha é pouca, eu
não dou pra isso não! Minha fé é pouca não dá pra isso não,
é como subir aquelas escadas pra ir lá pra subir no Sítio do
Adar, eu nunca subo. Minha fé muito pouca pra subir isso
ai, eu não subo não. Iam pra Vila, os índios botavam a cana

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 191


nas costas e o cacete na mão. E cacete na mão. (Gargalhada).
(José Pereira de Araújo, “Zé Pereira” ou “Zé de Ismaé”. Aldeia
Cana Brava).

O entrevistado “Zé Pereira” recordou as condições para o


deslocamento e a recepção em Cimbres. Lembrou também a partida para
a Vila, anunciada por meio do som produzido pelo gaiteiro:
Botava nas costas a cana e o saquinho nas costas com
pedacinho de carne. Um biju, um pouquinho de fava pra
cozinhar lá. Nesse tempo não tinha ninguém que desse de
comer a ninguém não, a gente levava de casa. Ai chegava lá
mandava uma velha chamada Maria Chapeuzeira, que ela
fazia chapéu. Ai cozinhava comia e dançava a noite todinha.
Quando era no outro dia, oito horas, viajava prá trás. A pé.
Passava uma noite isso lá. Prá chegar lá nós saiamos bem
cedo, quando era meio-dia tava chegando na Vila. Na viagem
ia juntando, a gaita chamava. De lá de cima da Serra, apitava
os de Brejinho escutava. Apitava em Brejinho os de Afeto lá
em Jitó escutava, ai se ajuntava tudinho na estrada ai íamos.
Juntava muitos caboclos. (José Pereira de Araújo, “Zé Pereira”
ou “Zé de Ismaé”. Aldeia Cana Brava)

Mesmo os índios moradores em cidades distantes, como


Monteiro, na Paraíba, vinham participar das festas religiosas na Vila de
Cimbres, trazendo as vestimentas usadas para a ocasião:
Eu lembro quando tava em Monteiro na época, o finado meu
pai todo São João ele vinha pra Cimbres, sabe? Dançar o Toré,
aí junto com os índios, em Cimbres. Na festa de Nossa Se-
nhora era mais difícil ele vim, mas pelo São João ele sempre
vinha. Saía do Monteiro e vinha. Ele fazia o traje, que era o
tacó, e era de palha de milho, né? Então fazia a barretina, que
a tradição Xucuru é a barretina, que era a palha de milho.
Ele vinha de trem. Aí saltava em Pesqueira, aí pegava trans-
porte pra Cimbres e vinha brincar o Toré. (Milton Rodrigues
Cordeiro, Aldeia Gitó)

Os entrevistados expressaram que as apropriações, reinterpretação


dos espaços e símbolos religiosos coloniais, pelos Xukuru, constituíram

192 Edson Silva


uma forma de afirmação étnica, de fortalecimento nas reivindicações
dos direitos indígenas. Como expressam depoimentos sobre as festas
religiosas em Cimbres: “Mãe Tamain é aquela que leva a gente pra luta.
Com a força de Mãe Tamain, ninguém pára a gente não. Mesmo quando
nós era mais perseguido, nossa Mãe sempre protegeu nosso ritual aqui
na Vila”. “Tamain nasceu em Cimbres, ela era uma cabocla” (NEVES,
1999, p. 77; 118).
Se, por um lado, a introdução de um culto mariano fez parte da
pedagogia evangelizadora missionária inicial junto aos Xukuru, em que
o estímulo às devoções à imagem de Nossa Senhora das Montanhas
comunicava bem mais que a pregação com palavras ou textos escritos
estranhos à cultura indígena, por outro lado, os índios apropriaram-se,
reelaboraram e releram a cultura colonial, a partir de seus horizontes
e interesses. Pode-se pensar em uma situação semelhante ao caso da
colonização espanhola no México: “O êxito da imagem cristã entre os
índios é indissociável, portanto, de uma conjuntura inicial que em muitos
aspectos resulta excepcional, pois une uma receptividade imediata e uma
habilidade precoce às notáveis capacidades de assimilação, interpretação
e criação”. (GRUZINSKI, 1994, p.182).
As imagens cristãs tornaram-se símbolos para os Xukuru, que em
torno delas reconstruíram nexos sociais e culturais, demonstrando que os
indígenas nunca foram apenas consumidores passivos da evangelização.
Quando os Xukuru apropriaram-se das imagens cristãs católicas
romanas, ocorreram relações em um movimento dinâmico que superou
a hegemonia cultural cristã. Movimento este bem mais complexo do que
uma suposta cristianização dos indígenas. Ouvindo os depoimentos e
observando as práticas Xukuru, é possível perceber as muitas e diferentes
estratégias que foram elaboradas frente à colonização: simulações,
embates, associações, inversões.
Um exemplo disso ocorreu na Festa de Nossa Senhora das
Montanhas em 1998, quando, na frente da procissão religiosa que se
dirigia para o interior da igreja, os Xukuru levavam uma faixa, onde se
lia: “Chicão com teus familiares e amigos deixaste como recordação um
pouco do seu sorriso”, lembrando o Cacique assassinado por fazendeiros,

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 193


considerado a mais expressiva liderança na articulação, organização e
mobilização contemporânea Xukuru para a retomada de suas terras. Os
Xukuru apropriaram-se dos símbolos religiosos coloniais, dando-lhes
um significado para sua organização e mobilização expressado naquele
momento de culto público na Vila de Cimbres, um espaço também
apropriado por eles.

194 Edson Silva


Capítulo IV

VIAGENS DE IDAS E VOLTAS:


A CIDADE, “O SUL” E “O SERTÃO”

Sua majestade, o boi

Na crônica “Serra do Ororubá”86, publicada em 1953, o Pe. Olímpio


Torres expressava sua alegria pelas chuvas do inverno que, regando a
terra, enfeitava a Serra de folhas e flores, deixando-a semelhante a uma
“rainha” e “mãe” que sempre fora. Mas o religioso, ao longo do seu texto,
retomou saudosamente o passado da produção, das relações sociais e
condições de vida na Serra. Para ele, não fazia muito anos, “a Serra do
Ororubá era ainda um celeiro” com muitos plantios de café. A Serra era
um pomar: produzia café, mandioca, frutas e tanta cana, motivando até a
inveja dos engenhos do litoral!
Porém, tudo isso mudara no transcorrer de poucos anos.
Caminhava-se “léguas para se ver alguns pés de café ou uma tarefa de
roça. Em vez dos engenhos, taperas. Em vez do canavial, vazantes de
capim. Em vez de milhares de habitantes de barriga cheia, milhares
de bois, de barriga cheia”. Com as invasões violentas, qual “vândalos”,
dos bois, foram destruídos os sítios e pomares, colocando em fuga seus
habitantes. Segundo o Pe. Olímpio a era humana foi substituída pela
bovina: tudo se tornara um imenso curral no final imperava o “invencível,
senhor absoluto, Sua Majestade – o Boi”.
Diante da conhecida situação, o religioso comparava Pesqueira
ao município de Triunfo, que, diferentemente, era “um oásis de fartura
no Sertão”. Também situado em uma região montanhosa, Triunfo, bem
menor que Pesqueira, era um município rico, isso porque cada família

86
A voz de Pesqueira, Pesqueira, 14/06/1953, p.1.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 195


tinha um pedaço de terra, com centenas de engenhos, casas de farinha
e considerável produção agrícola, significando fartura. Em Pesqueira,
existia uma lógica inversa, a da era do boi, que provocaria, em breve, a
falta de alimentos, “Os agricultores são empurrados para a ribeira estéril,
se não querem ser operários na cidade. E o município, que outrora se
bastava a si mesmo e ainda abastecia outros mercados, hoje é quase
faminto e dentro pouco tempo estará importando até maxixe”.
A “ribeira” referida pelo Pe. Olímpio situava-se ao longo das
margens do Rio Ipojuca que, em épocas de secas, tornava-se um filete
de água, sem garantia para a sobrevivência dos moradores próximos.
Aos expulsos de suas terras restava então serem operários nas fábricas
de doces em Pesqueira. As terras férteis da Serra do Ororubá foram
ocupadas pelas fazendas de gado ou pelo plantio de frutas destinadas à
indústria doceira municipal.
Na semana seguinte, o sacerdote católico romano publicou, no
mesmo jornal local, mais um artigo sobre a Serra do Ororubá. Depois
de discorrer sobre o texto bíblico que trata das origens humanas, ele
invocou a necessidade da solidariedade humana frente a uma situação
de crescente miséria para muitos e riqueza de poucos, escrevendo: “O
problema da Serra do Ororubá entregue aos bois, para riqueza de meia
dúzia, enquanto os seus antigos agricultores definham numa miséria
sempre crescente – é uma pedra de toque por onde se pode auferir do
bom senso e do espírito de humanidade daqueles que falam do assunto”.87
O religioso, citando o município de Floresta, onde na Serra do Uma era
proibida a criação de gado, para não prejudicar a agricultura, cobrou do
poder legislativo de Pesqueira uma medida igual para a Serra do Ororubá.
Os artigos de Pe. Olímpio provocaram um inquietante debate
em Pesqueira, como se observa na crônica publicada por Aloísio Falcão.
Jornalista no Recife, ele mantinha uma coluna no Diário de Pernambuco,
o maior jornal da capital. Escreveu88 Falcão que visitara Pesqueira dias
passados e testemunhara uma “agitação” provocada pelas discussões
87
“Ainda a Serra”. A voz de Pesqueira, Pesqueira, 21/06/1953, p.1.
88
“Agricultura versus pecuária”. A voz de Pesqueira, Pesqueira, 5/7/1953.

196 Edson Silva


a respeito do “problema” da agricultura na Serra do Ororubá, estando
próxima à vitória daqueles que advogavam “uma fixação de limites” entre
as áreas destinadas às lavouras e às atividades pastoris. Reconhecendo a
importância econômica municipal da pecuária, defendia o jornalista uma
firme campanha nos jornais e rádios locais, para esclarecer a opinião
pública sobre os prejuízos aos interesses coletivos pela falta dos tais
limites.
Para Falcão, a ausência de demarcação de áreas reservadas e a
apropriação e emprego “abusivo” das terras agricultáveis, para criação
de gado, provocava a elevação do custo de vida, em razão da diminuição
da produção de alimentos. Para o jornalista, possuíam uma atitude
“reacionária” os criadores que resistiam a uma razoável demarcação
dos limites. Lembrava ele ainda que os responsáveis por determinar tais
limites estavam sujeitos a uma “quarentena”, pelo julgamento popular,
devido à inércia para tomar a necessária decisão.
Ora, tal decisão acerca dos limites não interessava aos políticos
e administradores de Pesqueira, pois os cargos públicos municipais, em
sua grande maioria, eram ocupados por fazendeiros criadores de gado na
Serra do Ororubá. A elite econômica e a oligarquia local eram formadas
por indivíduos pertencentes a famílias que secularmente tinham se
apropriado das terras do extinto aldeamento de Cimbres, expulsando
seus antigos moradores.
Os artigos do Pe. Olímpio e do jornalista católico, em defesa dos
expulsos da Serra do Ororubá pelos fazendeiros, podem ser compreendidos
a partir dos discursos e atuação da Igreja Católica Romana no Brasil,
nos anos 1950. No pontificado de Pio XII, ainda que a Igreja Romana
mantivesse os ataques anteriores ao comunismo, eleito como o grande
inimigo, as encíclicas papais passaram a citar os males do capitalismo.
Criticavam as desigualdades sociais que comprometiam o bem-estar da
humanidade; a pobreza obrigava a Igreja Romana a fazer uma revisão da
ordem socioeconômica, questionando a busca desenfreada do lucro, da
riqueza sem limites.
Portanto, a partir dos anos 1950 as desigualdades econômicas e
suas mazelas sociais passaram a inquietar tanto as autoridades religiosas

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 197


católicas romanas que elas elegeram o capitalismo como o novo inimigo
do futuro da humanidade, obra da criação divina. Em suas críticas, a
Igreja retomou sistematicamente as chamadas encíclicas socais e
documentos de papas anteriores sobre a justiça social, para condenar a
desumanidade da avidez capitalista sobre a massa de trabalhadores do
campo e da cidade.
Existia uma estreita relação entre o episcopado brasileiro e o
Vaticano, que apoiava os discursos e as ações sociais da Igreja no Brasil, em
favor dos explorados pelo exacerbada desumanização capitalista. Temia-
se que, com essa situação, ocorresse a ascensão do comunismo entre
os trabalhadores, cabendo, portanto, à Igreja combater os desmandos
capitalistas que favorecessem a cooptação comunista. Os problemas
sociais passaram a fazer parte das preocupações mais importantes
da Igreja, provocando assim uma atuação social e política do clero
brasileiro, cujo símbolo de maior expressão foi a fundação, em 1952, da
Conferência dos Bispos do Brasil/CNBB, capitaneada pela figura de Dom
Helder Câmara. (MARCHI, 2001, p.82-94). A CNBB elaborou um plano
de ação conjunta para os bispos, chamado de Pastoral Coletiva, onde
eram apontadas as diretrizes de atuação do clero nas questões sociais.
A postura do Pe. Olímpio Torres é compreendida nesse quadro
social. seus artigos publicados no jornal A voz de Pesqueira estavam em
consonância com o pensamento da Igreja Católica Romana na época.
Nesse sentido, apesar de enfatizar ter bons amigos e até parentes entre
os fazendeiros, ele afirmava: “Eu cumpro o meu dever, dever de sacerdote,
lembrando ao Município um problema que não é apenas de governo
– é de consciência”.89 Apelava, portanto, o sacerdote, como sendo um
exercício da sua própria condição, para a motivação da conduta cristã
individual frente às injustiças sociais. E, reafirmando sua sintonia com as
diretrizes da Igreja, foi explicito quando escreveu: “Não faz muito tempo,
declarava a Rádio Vaticano: o sacerdote deve ter olhos e ouvidos para
as necessidades sociais.” Lembrando ainda que os bispos do Brasil, na
sua mais recente Pastoral Coletiva, tinham dito que “A Igreja não tem

89
“Ainda a Serra”. A voz de Pesqueira, Pesqueira, 21/06/1953, p.1.

198 Edson Silva


o direito de ser indiferente à reforma agrária”90 O religioso explicitava
claramente a posição da Igreja na defesa da justiça social, por meio do
direito ao acesso à terra para os expropriados dela na Serra do Ororubá.
Os dados sobre óbitos na década de 1940 encontrados nos
arquivos da Prefeitura Municipal de Pesqueira, revelam uma elevada taxa
de mortalidade infantil. Foram registradas muitas mortes de crianças com
apenas meses, ou ainda nos dois primeiros anos de vida nos “sítios” Cana
Brava, São José, Santana, São Braz, Tionante e Lagoa, todos localizados
na Serra do Ororubá.91. Estão registradas também as mortes de pessoas
adultas, em sua maioria com idade avançada, que, assim como as
crianças, trazem sobrenomes de conhecidas famílias habitantes nessas
localidades, a exemplo de Bispo, Romão e Nascimento, em Cana Brava;
Simplício, em São José
Após ouvir o comentário sobre os dados dos óbitos infantis,
“Dona Zenilda” lembrou que as mortes eram por desnutrição, em razão
da falta de terras e melhores condições de vida:
A morte de crianças era por desnutrição. Os pais não tinham
leite para as crianças. A desnutrição era grande. Os pais não
tinham dinheiro para comprar leite ao fazendeiro. Muitas cri-
anças morriam por desnutrição. Nos meses de maio e junho
por causa da frieza. Muitas nasciam já desnutridas por falta
de alimentação das mães grávidas. (Dona Zenilda, Aldeia
Santana)

A entrevistada recordou também as difíceis condições de saúde e


que as próprias famílias providenciavam os sepultamentos das crianças.
Os caixões eram feitos com tábuas disponíveis nas “bodegas” locais. Em
Cana Brava, existia um especialista em fazer caixões:
Os pais faziam os caixãozinhos de tábuas de caixas de sa-
bão que vendiam nas vendas. “Seu” Tibúrcio em Cana Brava
era o fazedor de caixões dos “anjinhos!”. Não havia estradas
dos sítios para Pesqueira, o acesso a médicos era difícil. As
90
Idem.
91
Livro de Registro de Enterramentos 1943-1946, Livro 46ª; Livro de 1954. Arquivo da
Prefeitura Municipal de Pesqueira.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 199


parteiras faziam o que podiam. Muitas crianças nasciam e
morriam em seguida. (Idem)

Em suas memórias, outros entrevistados falaram em períodos


difíceis. Em razão das precárias condições de assistência médica,
as mulheres morriam de parto e, devido à fome, ocorria também a
mortandade de crianças, como lembrou “Dona Lica”:
Minha avó morreu de parto, que não tinha a saúde pública,
não tinha uma enfermeira para pegar. Não tinha um mé-
dico suficiente, não tinha hospital. Morria muitas crianças.
Filhos do meu marido (do 1º casamento dele) morreram
sete. Não tinha assistência médica. Morria muita criança de
fome. Morria as crianças porque dava farinha para as crian-
ças comer, com papa d’água. A mãe dele (o marido) contava
que ele foi criado com batata. Nascia muitos gêmeos. Cri-
ava com pano, minha sogra, a mãe dele, contou que criou
dois com a saia dela. Não tinha o que comer, ela ia arrancar
batata e fazia o mingau. Ela disse que ia nas matas, a mãe
de Brivaldo, muitas vezes ia na mata, tirava munucunã92 la-
vava em nove águas, se errasse morria tudinho. Isso foi se
acabando. As mulheres ficavam doentes há 100 anos atrás
e morria. Morreu a mãe do meu pai, de parto, que não tinha
assistência médica. Morreu a mãe da minha mãe, de parto.
Morreu a irmã da minha mãe de parto. As índias tinham todo
ano um filho. Elas começavam a ter filhos com 12 anos. Não
tinha médico. Ali adoecia para ter, não tinha, morria a índia
e o indiozinho novinho. Poucos escapavam. De 100 crianças
que nasciam dentro de um ano, se escapasse 10, era muito.
(Dona Lica, Aldeia Cana Brava)

Outro entrevistado, nascido e sempre morador em Cana Brava,


lembrou também da falta de assistência médica e da fome, que provocava
os óbitos de crianças:

Aqui passava muita fome, nessas épocas! Que não tinha aju-
92
Raiz tóxica, mas comestível se devidamente preparada.

200 Edson Silva


da, não tinha ajuda de nada! Não tinha ajuda de nada, de jei-
to nenhum! Não tinha terra de jeito nenhum, não tinha nada.
Muitas crianças morriam na minha época. Hoje melhorou
muito. Morria de doenças. Hoje melhorou muito! Porque an-
tigamente aqui não tinha médico. Não existia médico. Morria
de fome também. Morria desnutrido, de fome, porque não
tinha de quê. (“Seu” Juvêncio, Aldeia Cana Brava).

As difíceis condições de vida na Serra do Ororubá não eram


diferentes para a população pobre na cidade. Possivelmente, o fato de
muitos índios moradores na Serra, migraram para a área urbana de
Pesqueira, enxotados pelos fazendeiros, tornara a situação social muito
grave na cidade. No semanário local, um colunista bradava providências
policiais contra a “prática nociva da mendicância”, com pedintes de
esmolas que perturbavam as portas das casas, desde bem cedo até
próximo à hora do recolhimento das famílias. Acusava o colunista que,
mesmo com as chuvas, que possibilitariam trabalho para todos, os
“mendigos profissionais” atuavam. Eram muitas crianças, algumas bem
pequenas, incentivadas pelos seus pais a esmolarem. Para o cronista, a
solução enérgica seria a prisão daquela gente vadia.93 Tratava-se de uma
visão, no mínimo, equivocada, pois os depoimentos revelaram que não
existia disponibilidade de terras para o trabalho, vez que estas estavam
sob o domínio dos fazendeiros.
Mas, um outro olhar sobre o que se passava é encontrado em
um artigo do Pe. Olímpio Torres, publicado dias depois, no mesmo jornal.
Discutia o sacerdote a diminuição da produção de alimentos e o elevado
custo de vida que se refletiam na feira de Pesqueira. Os preços eram
temas de conversas públicas que causavam revolta e se questionava quem
eram os responsáveis. Os agricultores eram acusados pelo alto preço
da farinha. Porém, escrevia o religioso: “Eles não plantaram mandioca
dentro das plantações de tomate e por isso a farinha subiu. Eles não
fizeram nenhuma roça de milho e feijão no lombo de cada boi que pasta

93
“Notas soltas”. A voz de Pesqueira, Pesqueira, 21/06/1953, p.1.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 201


na Serra – e por isso o povo passa fome”.94A mendicância, que tanto
incomodava o colunista, resultava da falta de fornecimento de gêneros
alimentícios, outrora produzidos pelos agricultores índios, na Serra do
Ororubá, invadida pelas fazendas de gado e pelo plantio de tomate, que
resultou na expulsão de seus moradores, produzindo mendigos para as
ruas de Pesqueira.
Diante da situação de miséria generalizada o poder municipal
determinou o recolhimento, à Delegacia de Pesqueira, e posterior
devolução aos pais, de “vários meninos de 5 a 12 anos de idade, que
andavam a perambular pelas ruas, mendigando de porta em porta”.95
A iniciativa, tida pelo jornal como uma “medida acertada”, cumprira
ordens do juiz municipal que determinara enérgicas advertências aos
pais, embora tivessem ocorrido algumas reações sociais, por se tratar de
crianças menores mantidas na delegacia.
Enquanto o poder público coibia a mendicância que importunava
a tranqüilidade das famílias abastadas e a ordem social em Pesqueira,
a grande safra de tomates, favorecida pelas chuvas, foi saudada pelo
semanário local. Segundo o jornal, a cidade revivia momentos de alegria,
com a enorme safra daquele ano. Motivo para o industrial Manoel Caetano
de Brito reunir “figuras de destaque social e econômico de Pernambuco”,
banqueiros, industriais, militares, dentre outros para visitarem o plantio
de tomate da Fábrica “Peixe”, considerado o maior do mundo. Informava
a notícia ainda que cinegrafistas e fotógrafos registraram aquele
momento festivo, quando foi servido aos visitantes milho verde assado,
acompanhado de suco de tomate gelado.
Fome e mendicância para muitos, fartura e alegria para uns poucos.
Situação explicitada a partir da leitura de outro trecho da reportagem:
“Os campos tomateiros da firma Carlos de Brito S.A. cobrem uma área
de quase cinco mil hectares, devendo registrar este ano uma produção
‘record’ de sessenta milhões de quilos do precioso fruto”.96 O noticiário
94
“Feira”. A voz de Pesqueira, Pesqueira, 28/06/1953, p.1.
95
“Medida acertada”. A voz de Pesqueira, Pesqueira, 5/07/1953, p.1.
96
“Grande safra de tomate”. A voz de Pesqueira, Pesqueira, 26/07/1953, p.1.

202 Edson Silva


prossegue exaltando as qualidades do “Comendador” Manoel de Brito e
da “notável organização Peixe”, que, com um trabalho intensivo, a cada
ano desenvolvia o parque industrial, expressando o dinamismo da família
Brito e equipe, comprometidos com o progresso e o engrandecimento
daquela “poderosa” empresa.
Os custos sociais desse progresso eram questionáveis. O Padre
Olímpio Torres continuava denunciando a situação dos expropriados
na Serra do Ororubá, apelando para uma solução baseada no espírito
religioso cristão, como pregava a Igreja em sua doutrina social.
Discordando daqueles que diziam tratar-se de um problema do Governo
Federal, o sacerdote ironizava a incapacidade municipal para uma
solução e a atitude cristã dos responsáveis, quando afirmou a existência
de um “farisaísmo cristão a todos os fazendeiros e homens que governam
o nosso Município”.97
A crítica à expropriação provocada pela criação de gado na Serra
do Ororubá provocou a reação de pessoas que, usando pseudônimos
escreviam ao jornal “A voz de Pesqueira”, fazendo acusações ao Pe.
Olímpio Torres. É o que se conclui da leitura de outro artigo publicado
pelo sacerdote, explicando aos seus leitores que se recusava a continuar
a responder as acusações. Que mantinha sua posição, pois “o problema
da serra continua a ser o nosso grande problema”. Diante da acusação
de “demagogia do púlpito”, Pe. Olímpio reafirmava a situação de miséria
generalizada frente à riqueza de poucos, “O povo está sentindo na
sua carne as consequências do problema da Serra – a carestia, a fome
generalizada, a pobreza cada vez maior – o povo e não meia dúzia de
felizes possuidores de latifúndios – sabe se eu tenho ou não tenho razão”.98
As acusações continuaram. O envio de uma carta anônima ao jornal “A
voz de Pesqueira”, criticando o Pe. Olímpio, provocou a publicação de
uma indignada nota de solidariedade99 ao religioso, assinada por vários
de seus colegas sacerdotes da Diocese de Pesqueira.
O debate sobre as fazendas de gado que invadiram a Serra do
97
“Aos meus leitores”. A voz de Pesqueira, Pesqueira, 2/08/1953, p.1.
98
Idem.
99
“Não é possível calar”. A voz de Pesqueira, Pesqueira, 9/8/1953, p.1

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 203


Ororubá, expulsando seus antigos moradores, os índios agricultores que
abasteciam, com sua produção, a cidade de Pesqueira, ocasionando
assim a falta de alimentos, a elevação do custo de vida e, sobretudo, a
mendicância nas ruas da cidade, era uma discussão sobre a nova ordem
socioeconômica, na qual o gado ocupava o lugar central. O boi foi eleito
majestade. Não se tratava simplesmente de uma discussão do confronto
lavoura versus pecuária como afirmavam alguns. Era um debate sobre
uma situação bem mais grave, que envolvia os motivos dos conflitos e a
expropriação secular dos índios de suas terras.
Uma situação em que o poder público, em todos os níveis,
em nome do progresso, se posicionava ao lado dos fazendeiros e dos
plantadores para a agroindústria em Pesqueira, como se pode perceber
em uma reportagem sobre uma reunião ocorrida na cidade, com a
presença do Secretário Estadual da Agricultura, em 1954. Na ocasião,
foram feitas várias considerações sobre a situação agrícola e pecuária
em Pernambuco, como também se debateu sobre as verbas disponíveis
para a agricultura. Um dos presentes comentava que as melhores terras
de Pesqueira estavam sendo adquiridas pelas fábricas, prejudicando a
lavoura do município.
O representante do Bispo de Pesqueira na reunião questionou
Moacir de Brito, então agrônomo da Secretaria da Agricultura e membro
da família proprietária da maior fábrica de doces, sucos e polpa de tomates
na cidade, sobre “o problema da Serra do Ororubá e suas possibilidades
agrícolas”. O agrônomo respondeu que “a Serra do Ororubá tinha suas
terras esgotadas para a agricultura economicamente considerada”. A
reportagem informava ainda: “em síntese, adiantou o Dr. Moacir que não
acreditava na agricultura em bases comerciais no Agreste e no Sertão” e
concluía: “Notamos o grande retraimento dos agricultores e criadores em
ferirem assuntos de interesse da classe que precisavam ser ventilados”.100
Obviamente, “os agricultores” que participaram daquela reunião
não foram os índios. O que pedira a palavra fora Walter Didier, membro

100
“Mesa-redonda do Secretário da Agricultura com criadores e agricultores deste muni-
cípio”. A voz de Pesqueira, Pesqueira, 17/01/1954, p.1.

204 Edson Silva


de uma família com fazendas na Serra do Ororubá, onde em algumas
delas eram plantadas lavouras. Mas, na lógica econômica em vigor, como
já foi visto, não havia lugar para a produção de alimentos, ainda que
em escala comercial, nem mesmo por fazendeiros. O agrônomo Moacir
estava convicto disso. Apesar do questionamento do representante do
Bispo, a reunião foi encerrada com o veredicto do agrônomo, aceito
pelos fazendeiros “agricultores”, a quem não interessavam conflitos com
os fazendeiros criadores de gado ou os produtores agroindustriais em
Pesqueira, pois todos eram da mesma classe social e invasores nas terras
da Serra do Ororubá.
O estudo de um geógrafo em 1956, ainda que não faça nenhuma
referência aos índios habitantes na Serra do Ororubá, descrevia a
localidade como uma região de solo arenoso e pedras com clima semi-
árido e também semi-úmido, onde, durante boa parte do ano, predominava
a seca. O gado dividia o espaço com lavouras e plantações de tomate:
O pardo triste da vegetação então despida de folhas e o
aspecto agoniado das cetáceas põem em destaque o viço
lustroso das cercas vivas dos aveloses que cumprem, entre
outras utilidades, a função de separar as áreas do criatório
extensivo, em campo aberto, dos tratos de terras culturáveis,
enquanto que apenas aqui e ali, em locais aparentemente
escolhidos a dedo, algumas raras unidades arbóreas, tam-
bém sempre verdes, espalmam suas frondes proporcionando
o bem-estar de uma sombra. Paisagem esta ainda mais des-
oladora posta em comparação com a outra, a da época das
chuvas miúdas, quando as caatingas reverdecem e florescem
em todo “Seu” esplendor, permitindo a colheita de frutos sil-
vestres, a engorda do gado e o trabalho agrícola nos roçados
e nas plantações de tomate (SETTE, 1956, p.8)

Os roçados citados possivelmente eram os sítios, pequenas


glebas de terras espremidas entre as áreas de criação das fazendas, que
permaneciam nas mãos de umas poucas famílias indígenas.
O mesmo estudo apontava o desmatamento recente das
matas existentes nos brejos úmidos característicos da Serra. Restavam

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 205


insignificantes “retalhos de matas testemunhos”, pois as matas de outrora
continuavam a ser substituídas por cafezais, plantações de goiabeiras,
bananeiras e outras frutas. (SETTE, 1956, p.12). Produção essa destinada
às fábricas de doces em Pesqueira. As matas eram derrubadas também
para abastecer de lenha as locomotivas do trem que ligava Pesqueira
ao Recife, “as fornalhas das fábricas de doces, os fornos de padaria e
fogões domésticos” (SETTE, 1956, p.8). Ocorria, portanto, a destruição
do patrimônio natural da Serra, para atender as exigências da lógica
econômica em vigor.
A partir dessa lógica, a Serra estava sendo toda ocupada. Nas
localidades mais úmidas predominava a criação do gado de corte e o
destinado à produção de leite. Nos sopés da Serra, mais próximos da
cidade, constatava-se a “plantation” do tomate destinado à indústria,
“enxotando cada vez mais para longe os roçados de subsistência ou
mesmo reduzindo as áreas de criação” (SETTE, 1956, p.14).
A Serra do Ororubá foi, e continua sendo a fornecedora de
gêneros alimentícios para Pesqueira. Na lógica econômica em vigor
nos anos de 1950 eram trazidos do Ororubá a matéria-prima para as
indústrias de doces existentes na cidade, como registrou o estudioso sobre
uma possível primeira impressão do visitante recém chegado, “Durante os
meses de safra, os caminhões abarrotados de caixotes de frutas e tomates
fazem filas diante dos portões dos estabelecimentos fabris enquanto paira
no ar cheiro de goiaba em processo de cosinhamento ou o odor acre
dos tomates fermentados atraindo enxames de impertinentes moscas”
(SETTE, 1956, p.78).
O combustível para as fábricas era trazido da Serra. A madeira
utilizada na indústria provocava a destruição das matas: “Essa dependência
ao combustível lenha tem custado a destruição do revestimento vegetal
primitivo. As matas do Ororubá e as caatingas altas dentro de uma área
de enorme raio acham-se praticamente desaparecidas” (SETTE, 1956,
p.89). O desmatamento acelerado, além de influir nas condições do solo
na região, prejudicar desde os pequenos agricultores aos fazendeiros,
comprometia a própria indústria:

206 Edson Silva


Também a devastação das matas para exploração da lenha,
como já ficou assinalado, não só modifica a paisagem física,
mas igualmente altera e dificulta as possibilidades agro-
pecuárias dos fazendeiros e pequenos plantadores, devido
ao aceleramento dos processos de erosão dos solos no alto
da Serra e ao rápido escoamento e evaporação das águas no
pediplano (SETTE, 1956, p.92)

Para Hilton Sette, a criação de gado também era a grande


responsável pela degradação na Serra, pois existia “o costume, aliás, já
antigo de alguns criadores em soltar os seus gados dentro das ‘mangas’
de ‘refrigérios’ nos brejos úmidos da Ororubá” (SETTE, 1956, p.93).
Esses espaços citados pelo estudioso eram locais de clima ameno e
irrigados por riachos e fontes de água, onde se concentravam as roças
dos pequenos agricultores, os índios cujas terras eram invadidas pelo
gado, principalmente nas épocas de longas estiagens.
Também a água para as fábricas e para o consumo dos
moradores em Pesqueira provinha da Serra. A fábrica “Peixe” possuía
açudes que abasteciam suas unidades fabris. Todavia, já era vivenciado
o “cruciante problema da água”, agravado principalmente na época das
secas: “A Prefeitura possui dois acides no alto da Serra que abastecem
mal a cidade sob o regime de racionamento, principalmente durante os
meses de estiagem e pior ainda por ocasião das secas” (SETTE, 1956,
p.94).
Nas conclusões de seu estudo Sette (1956) constatava a
decadência das atividades comerciais em Pesqueira, que foi perdendo sua
posição de centro produtor e distribuidor regional agrícola, semelhante
ao que assinalara Pe. Olímpio Torres, em sua crônica “Serra do Ororubá”.
Para o geógrafo, a criação de gado e o fornecimento de matéria-prima
destinada à indústria provocavam a destruição ambiental e findaram as
caravanas de animais de outrora, que partiam de Pesqueira, em direção
aos municípios vizinhos, com grandes carregamentos de frutas e cereais,
farinha de mandioca, raízes, queijos e rapaduras.
Como escrevera o religioso e aparece registrado em artigos no
jornal local, ocorria a alta do custo de vida, a fome e a miséria generalizada

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 207


em Pesqueira. Uma lógica econômica baseada na criação de gado ou na
agroindústria substituira a produção de alimentos, expulsara a maioria e
confinara alguns de seus produtores, os pequenos agricultores, os índios
moradores na Serra do Ororubá. Um número considerável deles foi
forçado a abandonar seus antigos locais de moradia e se concentrar na
periferia da cidade. Outros, passaram à condição de mão-de-obra para as
fábricas, como fornecedores de matéria prima, ou como operários.

De agricultores a operários nas fábricas

O citado estudo de Hilton Sette, de 1956, traçou um panorama


de Pesqueira, como cidade industrial:
Os enormes boeiros fumegantes e os casarões que abriga-
vam as instalações fabris, o movimento intenso de camin-
hões nas ruas estreitas da cidade, a grande porcentagem de
casas operárias agrupadas em ‘vilas’ ou formando ruas in-
teiras de bairros periféricos e a sensível concentração urbana
comparada com a rural, falam da importância industrial de
Pesqueira (SETTE, 1956, p.4).

O núcleo urbano que mais tarde seria a cidade de Pesqueira


ganhara importância por estar localizado às margens da estrada, caminho
de gentes e das boiadas que trafegavam entre o litoral e o Sertão do São
Francisco. A pequena povoação no sopé da Serra do Ororubá superaria
a antiga Vila de Cimbres, situada no distante alto da mesma Serra.
Em 1836, por lei provincial, a sede político-administrativa municipal
foi transferida para Pesqueira, elevada à categoria de cidade em 1880,
relegando Cimbres à categoria de distrito.
A cidade cresceu, impulsionada pelo comércio, beneficiado pela
sua localização estratégica. As transações envolviam mercadorias do
Sertão, de vários lugares vizinhos no Agreste, de municípios da Paraíba
e até de Alagoas. Compras e vendas de algodão, mamona, couros, peles
de cabra e produtos agrícolas da Serra do Ororubá, em um intercâmbio
constante com o litoral, tendo como destino mais preciso o Recife. O

208 Edson Silva


anuário comercial de 1902/3, publicado no Recife, registrava 23 casas
comerciais em Pesqueira, que vendiam secos e molhados em grosso e a
varejo (SETTE, 1956, p.53).
Com a estrada de ferro que chegou até o município em 1907, a
cidade consolidava-se como entreposto comercial e ocorreu também um
grande impulso no crescimento urbano. O transporte rápido e barato
possibilitou à fábrica de doces “Peixe”, fundada pela família Brito, em
1902, ampliar sua produção para novos mercados. Permitiu com isso
a adoção de inovações tecnológicas, como a substituição dos tachos
aquecidos à lenha pelos a vapor e o surgimento de uma outra indústria
doceira, a fábrica “Rosa”, de propriedade da família Didier.
As frutas destinadas à indústria de doces provinham
principalmente das terras férteis da Serra do Ororubá. Multiplicou-se por
toda a Serra os plantios de goiabas e bananas. As fazendas de gado
estimularam o surgimento de fábricas de laticínios. Por volta de 1914, foi
iniciado o beneficiamento do tomate, pela fábrica “Peixe”, necessitando
de áreas para o plantio do produto. Ampliava-se o parque industrial, com
a instalação de mais unidades da “Peixe” e novas fábricas, como a Tigre,
Paulo de Brito, Peixinho, Recreio (SETTE, 1956, p.64-65). Com o capital
acumulado o grupo Carlos de Brito, proprietário da “Peixe”, investiu em
usinas de açúcar fora da região, comprando em 1939, a Usina Central
Barreiros e, na década de 1940, a Usina Santana; ainda na mesma década
ampliou suas indústrias localizadas no Sul do país (CAVALCANTI, 1979,
p.62).
O crescimento industrial favoreceu as instalações de novas firmas
comerciais, bancos, prédios públicos, colégios, a abertura de novas ruas,
avenidas, praças e ainda o fornecimento da energia elétrica à cidade. A
concentração de renda se expressava no casario de famílias abastadas.
Como também ocorria o surgimento de aglomerações na periferia urbana,
formadas, em sua maioria, pelas habitações do operariado. Dentre estes,
muitos eram índios da Serra do Ororubá, que se concentravam no Bairro
“Mandioca”, assim descrito por um pesquisador,
Acomodando-se a um desvão oferecido pela escarpa infe-
rior da Ororubá, o bairro Mandioca, tendo a sua localização

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 209


determinada pela proximidade da água e do centro urbano,
atravessa com suas ruas mal cuidadas e suas casas de gente
muito pobre o vale do Baixa Grande, começa a subir, do outro
lado, a contra-encosta e um de seus arruados de casebres,
quase trepados uns sobre outros (SETTE, 1956, p. 76-77).

Rua da Mandioca, área urbana de Pesqueira. Moradia de muitas famílias


xukurus e trabalhadores indígenas em fábricas como a “Peixe”, vindos da Serra
do Ororubá (In: SETTE, 1956, p.68).

Eram moradias muito pobres, como se percebe na fotografia


acima, comparadas pelo pesquisador às “favelas” das grandes cidades.
Atualmente, o local é chamado “Bairro Xucurus”, e reúne a grande
maioria das famílias indígenas na área urbana de Pesqueira. Em
conversas informais, moradores locais mais velhos afirmam que muitas
dessas famílias foram expulsas de seus sítios na Serra, por fazendeiros
invasores.
O Pajé Xukuru, “Seu” Zequinha, comentou a razão e as
dificuldades dos que tinham vindo morar naquele local. Por volta de
1945, uma família da Serra não encontrando emprego na cidade, se
dedicou ao fabrico de balaios para sobreviver:
Precisava ter terra. Muitos não tinham, ai vinham trabalhar

210 Edson Silva


na rua atrás de um empreguinho, chegando nas fabricas, na
Prefeitura ai. Muita gente trabalha ai na Prefeitura. Que é de
lá tá na Prefeitura. Eu tenho Mané Caiçara. Conhece Mané
Caiçara? O pai dele saiu de lá, veio aqui pra rua, parece que
em quarenta e quarenta e cinco, assim nessa base. Aí ele
veio morar ali com a família todinha. Ele atrás de um em-
prego, não arrumou emprego. O cabra chegou ai e foi, dis-
seram que iam dar emprego a ele e não deu. O que ele foi
fazer ficou lá veio de cá, que ele não tinha onde morar, que
ele morava lá na terra do fogo. Ai veio praí, o que é que veio
se valer? Foi desses matos aí, dessas matas, tá pegando cipó
pra fazer balaio, pra fazer caçuá, fazer isso tudo pra viver, tá
vendo! (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha, Bairro Portal,
Pesqueira).

A família “Caiçara”, ou “os Caiçara”, ficaram muito conhecidos pela


sua arte de fazer balaios, cestos e caçuás para transportar mercadorias
em cavalos: tornaram-se uma referência no ramo, na cidade de Pesqueira.
Como eles, o número de moradores multiplicou-se naquela localidade,
de forma semelhante à quantidade de casas, ocupando todos os espaços
e avançando cada vez mais em direção à escarpa da Serra do Ororubá,
como é visualizável na fotografia a seguir.
Em suas memórias, os índios Xukuru do Ororubá falaram dos
plantios existentes na Serra do Ororubá destinados à indústria de doces,
e ainda da época em que trabalharam nas fábricas em Pesqueira. O
Pajé Xukuru falou da grande dimensão de terras ocupadas pela Família
Brito, com plantios de tomate: “tinham terra que nem o diabo! Aqui logo,
começa logo aqui do Papa, vai a Alagoas tudo ali em Santana, por ali a
fora tudo era deles, né. Sítio do Meio, eles tinham o que. Umas quinhentas
quadras. Dava uns quinhentos quadra lá em Sitio do Meio. Esse Sítio do
Meio foi grilado. Foi tomado”. (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha,
Bairro Portal, Pesqueira). Ao ser perguntado se tinha trabalhado nas
fábricas em Pesqueira, ele respondeu: “Trabalhei na Peixe, eu era menino
novo com dezessete anos. Trabalhei na Peixe. Trabalhei na Cica, na Cica
Norte. A Peixe era dos Brito, a Cica Norte era daquele Severino Paixão e

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 211


a Peixinho era dos Brito, também.” O Pajé falou ainda que muitos índios
trabalhavam nas fábricas: “Trabalhava, trabalhava muito”.

Atual Bairro Xucurus. Ainda hoje


local de maior concentração de
famílias Xukuru na área urbana
de Pesqueira.
Foto: Carol Nascimento, 2007.

A conhecida família latifundiária ocupava terras em vários


lugares na Serra do Ororubá e também em áreas de municípios vizinhos,
“aqui eles tinha plantação pra todo canto, né! Eles tinha aqui em Lagoa
do Meio. Eles tinha aqui em Capim Planta. Tinha em Batalha. Tinha
em Roçadinho. Tinha em Caberão. Tinha em muitos cantos por aqui.
Tinha aqui em, aqui num lugarzinho que tem aqui. Tem um lugarzinho
que chama-se Xukurus”. (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha, Bairro
Portal, Pesqueira). O povoado “Xukurus” está situado na zona rural do
vizinho município de Belo Jardim e consta existir no local várias famílias
indígenas. O povoado ficou fora da demarcação da terra indígena Xukuru
do Ororubá, homologada em 2001.
Os plantios de goiaba se espalhavam por toda a Serra, em terras
ocupadas por outros fazendeiros. A colheita era grande, nas safras da
fruta:

212 Edson Silva


Era muita goiaba. Tinha muita goiaba. Saía dez, doze cami-
nhões de goiabas daqui de cima dessa Serra. Da terra da
gente, mas nas mãos dos fazendeiros: São José, Cana Brava
ela toda, ali em Caetano, por ali afora, por essa região quase
toda. Em Vila de Cimbres, também tinha muita goiaba. Quan-
do era a goiaba, era goiaba em todo o canto. Porque tinha
muita goiabeira. (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha,
Bairro Portal, Pesqueira).

Era grande também a produção de tomate colhida nas margens


do Rio Ipojuca e povoados adjacentes, inicialmente sem o uso de
agrotóxicos, pois, só mais tarde apareceram as pragas:
Plantava aqui nessa ribeira: Pão de Açúcar e nessa região
para sair para Arcoverde, Alagoinha, Papagaio, Mutuca, em
todo o canto eles plantavam. Era muito tomate também! Não
existia essa doença de tomate. Não existia não. Plantavam a
granel. Ela dava a torto e a direito. Não usava veneno. Não sei
que praga foi que deu...dava a granel. (Idem)

Durante a colheita das grandes safras, nas fábricas em Pesqueira


trabalhavam muitos índios, mas sem vínculo empregatício. Trabalho
duro e considerado sujo, no período noturno, para fugir à fiscalização
trabalhista:
Muitos sem carteira assinada. A noite tinha uma história de
uma “virada”, chamava-se “a virada”, os “porcos” porque tra-
balhava no leite, de noite, na tomate. Serviço sujo, aí chama-
vam assim. Quando a safra era grande, quando a fábrica
não vencia para trabalhar só o dia. Aí tinha que trabalhar à
noite porque era muita polpa. (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu”
Zequinha, Bairro Portal, Pesqueira).

As “viradas”, como se chamava o trabalho noturno era um


serviço pesado, sem os devidos direitos trabalhistas, como recordou
outro entrevistado: “Trabalhei nas viradas. As ‘viradas’ parece que era
três mil reis ou era quatro mil reis. Era de noite. A gente ia trabalhar de
noite. Serviço pesado, carregar caixas nas costas, descarregar caminhão,

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 213


todo molhado. Sem registro. Tempo difícil”. (Floriano Marcolino da Silva,
Aldeia Cana Brava).
Grande parte dos trabalhadores da fábrica Peixe era composta
de índios vindos da Serra do Ororubá. Um entrevistado lembrou dos
índios no serviço noturno de carga e descarga nos muitos caminhões
com tomate, sem vínculo empregatício, alimentados apenas com café e
pão:
Era muita gente que trabalhava na fábrica Peixe, mas era
índio, tudo índio daqui da Serra. Era de vinte, trinta, vinte.
Era de vinte, de quinze pra lá que ia. Toda viagem que ia
pra fábrica Peixe toda noite. Mas eles iam fazer sabe o que?
Iam trabalhar a noite. Num era trabalhador fichado não. Iam
carregar coisas nas costas, tomate. Descarregar caminhão
todo, que era a fábrica Peixe lutava com cento e tanto cami-
nhão, viu! Carregando tomate. Era aquela fila de caminhão
como daqui lá na Igreja. Pegava do Prado (bairro) a fábrica
Peixe. Pegava lá debaixo da Igreja prá cima um pouco. Da
Igreja da Catedral. Ali tudo era cheio de carro, caminhão pra
descarregar. Cada um junto assim. Ia trabalhar, chegavam
todo melado. Trabalhava a noite. Só que eles davam café,
né, davam pão da noite. Mas toda noite que viesse, marca-
vam tudo nisso. (Cícero Pereira de Araújo, “Seu” Ciço Pereira,
Bairro “Xucurus”).

Um ex-operário “Seu” Mané Preto, falou do trabalho noturno


carregando caixas de tomates durante o período da colheita. Finda a
safra, eram dispensados e procuravam trabalhar em outros lugares, no
“Sul” (Zona da Mata Sul de Pernambuco). Não eram respeitados os
direitos trabalhistas, eram pagos diariamente pelo serviço executado:
Eu trabalhava na Fábrica Peixe, que trabalhava à noite. Os
operários trabalhavam de dia e nós trabalhava a noite! Aí
nós trabalhava à noite. Quando findava eu ia embora para o
Sul trabalhar. Trabalhei muito aqui. Nós botava caixa, nós co-
lhia tomate, caixa de tomate despejando nas esteiras. Serviço
pesado! Ninguém falava em registro! Todo dia eles pagavam

214 Edson Silva


a gente aquele pouquinho. (Manoel Balbino Silva, “Mané
Preto”, Aldeia Cana Brava).

Um outro entrevistado falou do período em que trabalhou na


Fábrica Peixe. As atividades exercidas por ele durante um tempo foram
também noturnas. Direitos trabalhistas só para os empregados diurnos.
Os índios vindos da Serra trabalhavam à noite, muitos nos serviços
pesados:
Eu mesmo trabalhei na Fábrica Peixe um bocado de tem-
po. Eu trabalhava de fogareiro, botando fogo na caldeira,
botando lenha na caldeira. Quer dizer, nós só trabalhava à
noite! Porque só trabalhava à noite, porque lá já tinha os
trabalhadores de trabalhar no dia, nós só trabalhava à noite.
Eles aqui chamavam até de “virada”. A gente só trabalhava à
noite. Trabalhei um bocado de tempo. Depois passei uns três
ou quatro meses trabalhando lá, os empregados gostavam
muito de mim, e me botaram para trabalhar de dia e eu tra-
balhei uns quatro meses. Nesse tempo só tinha direito quem
fosse fixado lá mesmo, de dia. Era muito daqui que ia. Tra-
balhava catando talo de tomate, botando fogo em caldeira,
carregando saco, descarregando caminhão de caixas, tudo
de noite! (Juvêncio Balbino da Silva, “Seu” Juvêncio, Aldeia
Cana Brava).

Eram muitas as dificuldades lembradas por “Seu” Juvêncio, desde


o deslocamento da Serra para a fábrica, na cidade em Pesqueira. Além do
trabalho noturno, sem amparo legal, durante o dia devia cuidar da roça:
As dificuldades era muito grande! Porque nós ia de pé. Para
trabalhar a noite. Nós ia de pé pra lá. Trabalhava á noite,
bem cedo recebia aquele trocado, fazia de bóia para comer e
vinha s’imbora. De noite ia de novo! Era toda noite. Nada de
direitos. Não existia essa história de fiscalização para gente.
Trabalhou, recebeu. Trabalhava de noite, bem cedo recebia,
fazia a “boinha” vinha s’imbora, comia. A noite de novo! Du-
rante o dia na roça. Muitos dormia um soninho só na hora

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 215


de meio-dia, quando chegava ia para a roça. Era, chegava
ia para roça, meio-dia dormia um soninho. De tarde já vol-
tava de novo. Já para quatro para cinco horas, já voltava de
novo. (Juvêncio Balbino da Silva, “Seu” Juvêncio, Aldeia Cana
Brava).

A sindicalização não era permitida pelo “Dr. Moacir”, um dos


proprietários da fábrica Peixe, lembrou outro entrevistado, que expressou
também as relações clientelistas existentes em benefício de alguns
trabalhadores, a exemplo “Zé de Alexandre”:
Na fábrica trabalhou um bocado! Trabalho pesado. Direito
nada! Porque o Dr. Moacir falou “Quem pagar Sindicato, não
pode pagar INPS. E se for para aposentar eu não vou dar
os direitos, eu não vou dar os direitos de se aposentar pelo
Sindicato. Ou uma coisa, ou outra!”. Ele está certo! Agora eu
não falo, não sabe por quê. Não posso falar deles, porque
o que estava assinado em meu documento, ainda está. O
meu está assinado! (Exibe os documentos de pensionista do
INSS). (José Alexandre dos Santos, “Zé de Alexandre”, Bairro
Serrinha/Pesqueira)

Trabalhando na “Peixe” durante 23 anos, “Seu” Zé Cioba exerceu


diferentes atividades. Foi o único entrevistado que afirmou ter a carteira
assinada no serviço noturno. Fazia o trabalho pesado por não ser letrado,
o que prejudicou sua saúde:
Da Serra eu vim aqui para a fábrica. Trabalhei na Peixe 23
anos! Na Peixe eu trabalhei de zelador e trabalhei em serviço
de armazém. Serviço pesado. Leiturinha pouca, não dava
para tomar conta do escritório, peguei no pesado. Serviço
de armazém. Trabalhei 23 anos! Eu trabalhava fichado. Eu
trabalhei muito na parte da noite, fichado. Eu tenho minha
pressão muito alta porque eu trabalhei muito na parte da
noite e não dormia de dia... Eu trabalhei 23 anos de Carteira
assinada. E já de idade e eu sofri muito porque trabalhava
na parte da noite e não dormia de dia. E a pressão subia.

216 Edson Silva


Minha pressão é muito alta. Chega a 24, 26,19. é muito alta.
Eu pegava firme. Até 120 kg eu peguei. Chamavam a gente
dos cabôcos. Os cabôcos da Serra. O cabra que precisava,
eu nunca tive vontade de pegar no alheio. Eu nunca peguei
num palito de nada. Enfrentava, pegava 79, 80, 90, 100, 120
kg. Trabalhei direto mesmo, com fome! (José Gonçalves da
Silva, “Zé Cioba”, Bairro Portal, Pesqueira/PE).

Ele falou também que a “Peixe” empregava muitos índios. seu


chefe era da atual Aldeia Afetos. Os que descarregavam os caminhões
eram trabalhadores clandestinos:
Trabalhava um bocado de gente daqui da Serra. Trabalhava
um bocado de gente. Eram clandestinos os que descarrega-
vam caminhões. Eles eram da Serra. Muitos da Serra. O meu
chefe que era Zé Jorge, ele nasceu em Afetos. Ele era da
Serra também. Mas o pai era paraibano. Ela era da Serra, ele
nasceu na Serra, era meu chefe. Quando era tempo de safra,
ele não deixava sobrar, porque há muito serviço, serviço de
armazém. (Idem)

O trabalho era temporário. A fábrica Peixe demitia antes de


completar um ano por questões dos direitos trabalhistas, “Depois que
trabalhava um ano, nós saía. A derradeira vez que eu entrei, passei 7
anos sem sair. Passei por lá direto. “Quando for tempo vocês voltam pro
trabalho”. Se fosse procurar o sindicato eram demitidos sumariamente:
Nós pagava Sindicato. O Sindicato não servia para nada. Só
servia o INPS. A gente pagava o Sindicato e não valeu de
nada. Quando o Sindicato ia botava nós para fora. Por isso
eu acredito que não valia nada. Bateu no Sindicato, o Sindi-
cato chegou, rua! Para mim não valeu a pena! Para mim foi
perdido, nós pagava perdido. (Idem)

O entrevistado lembrou ainda que a fábrica Peixe possuía


muitos plantios de tomates em várias localidades próximas de Pesqueira
e a colheita de frutas se concentrava na Serra do Ororubá, em terras

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 217


invadidas pelos fazendeiros e nas pequenas glebas indígenas:
Tinha mais de 200 plantios. Daqui, Lagoa Grande, Tiogó, Pau
Ferro, Lagoa do Félix, Pintada, Milho Grande, Mirassol, Ca-
choeira Grande. Era fora da Serra. Porque a Serra era fria, o
tomate não. As frutas era da Serra. Bananas, abacate, jaca,
manga, era de Trincheira, Jitó, Sítio do Meio, Santana, Cana
Brava, Mascarenhas. Era terra dos fazendeiros e dos índios
também. (José Gonçalves da Silva, “Zé Cioba”, Bairro Portal,
Pesqueira/PE)

Viagens para “o Sul” e para “o Sertão”

Toré
I II
Os dois maracás, — É o Caracará
um fino outro grosso, que está na floresta,
fazem alvoroço, vai ver minha besta
nas mãos do Pajé: de pau cotolé...
— Toré! — Toré!
— Toré! — Toré!
Bambus enfeitados, Cabocla bonita,
compridos e ocos, do passo quebrado,
produzem sons roucos teu beiço encarnado
de querequexé! parece um café!
— Toré! — Toré!
Lá vem a asa-branca, Pra te ver, cabocla,
no espaço voando, na minha maloca,
vem alto, gritando... fiando na roca,
— Meu Deus, o que é? torrando pipoca,
— Toré! eu entro na toca
— Toré! e mato onça a quicé!
— Toré!
— Toré!

218 Edson Silva


Ascenso Ferreira, 1939.

O poeta Ascenso Ferreira nasceu no ano de 1895, em Palmares.


Cidade localizada na Zona da Mata Sul de Pernambuco, numa região
com grandes plantios de lavoura canavieira, muitos engenhos e usinas de
açúcar. Órfão de pai ainda criança, foi adotado aos treze anos, por um
padrinho, dono de uma espécie de armazém geral, no qual o adolescente
Ascenso começou trabalhar. Foi balconista até 1919, quando veio morar
no Recife.
Boêmio, nas suas caminhadas pelas ruas e em bares do Recife
antigo, o bairro portuário, era ouvido o recitar seus versos, reunidos
posteriormente em livros. Considerado um dos adeptos do Modernismo
no Recife, seus poemas foram saudados por críticos como Sérgio Milliet,
Manuel Bandeira e Mário de Andrade. Os poemas de Ascenso Ferreira
citam tipos humanos, momentos festivos, diferentes expressões culturais
e memórias de situações do cotidiano de quando o poeta viveu em
Palmares e depois no Recife.
Em que se inspirou para escrever o poema “Toré”, uma dança
de grupos indígenas, a exemplo dos Xukuru do Ororubá, habitantes nas
regiões Agreste e Sertão pernambucano?! Os Xukuru do Ororubá utilizam
maracás de cabaça ao dançarem o Toré. Os Fulni-ô, de Águas Belas, além
de maracás, usam grandes flautas de bambu, de onde sai um som rouco,
em suas danças. Como Ascenso Ferreira teve conhecimento disso para
citar no poema “Toré”? Havia a presença de “caboclos” no ambiente onde
Ascenso vivera a primeira parte da sua vida?
O estabelecimento comercial do padrinho de Ascenso
emblematicamente se chamava “A Fronteira” e estava localizado nos
limites urbanos com a área rural da cidade de Palmares. Era um local de
compras, caminho, passagem, pouso de ida e volta dos que se dirigiam à
estação ferroviária. Foi desse ambiente que Ascenso Ferreira se inspirou
para seus versos. Palmares está localizada nas margens de uma antiga
estrada que ligava Pernambuco a Alagoas, e a colheita sazonal da cana-
de-açúcar sempre atraiu contingentes de trabalhadores, os chamados

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 219


corumbas, do Agreste.
Nas memórias dos Xukuru, assim como em registros históricos,
é citada a migração dos índios para a Zona da Mata Sul, “o Sul”, em
períodos de seca ou na busca de trabalho. Um ofício da Câmara da Vila
de Cimbres, dirigido à Presidência da Província de Pernambuco, em
1827101, respondendo sobre a situação do aldeamento, acusava os índios
de indolentes, ladrões e preguiçosos. O empenho civilizatório do novo
capitão-mor, além de enfrentar a resistência dos índios, fora interrompido
por uma seca que devastou aqueles “sertões”, provocando mortes de
índios e “expratiando-se outros para procurarem a vida das matas do
sul”, onde, informava o documento, muitos morreram, vitimados por
epidemias. Portanto, desde longa data ocorreu a migração de índios
Xukuru para a Zona da Mata Sul de Pernambuco, em razão da seca, em
busca de sobrevivência, como registrou o citado documento.
A seca que nos anos 1950 atingiu o Agreste, também provocou
a migração de índios para o “Eldorado”, uma referência aos Estados do
Sudeste e Sul, como registrava um documento oficial. Os agentes do SPI
ressentiam-se da falta de recursos para socorrer os flagelados das secas
periódicas e sucessivas na região102. Índios com suas famílias, a exemplo
dos Xukuru, procuravam os postos nas aldeias ou a Diretoria da IR4,
no Recife, e como às vezes eram parcialmente atendidos, migravam em
busca de condições de sobrevivência.
No conhecido livro A terra e o homem no Nordeste, publicado
em 1963 e reeditado várias vezes, seu autor, Manuel Correia de Andrade,
classificou dentre os trabalhadores assalariados na lavoura canavieira “os
corumbas” ou “catingueiros”, como residentes “no Agreste e Sertão, mas
se deslocam todos os anos para a zona canavieira durante a safra, a fim
de participar da colheita. Fazem, assim, uma migração sazonal, uma vez
que com as primeiras chuvas voltam para sua terra”. (ANDRADE, 1980,
p.106).
Nascido e morador na atual Aldeia São José, onde foi instalado,
101
CALADO, 1979. ANEXO V, p.155.
102
Ofício da IR4, 30/05/1956, para a Diretoria do SPI/RJ. Museu do Índio/Sedoc, mic.182,
fot.073.

220 Edson Silva


em 1944, o Posto do SPI, “Seu” Zé Pedro falou que “quando faltava
serviço”, foi trabalhar na construção das barragens de Paulo Afonso e
Sobradinho, na Bahia. Também viajou, com o mesmo objetivo, para
São Paulo e Campina Grande, na Paraíba. Membro da antiga Família
Simplício, habitantes em São José, ele gostava de ir mesmo era para
“o sul”, lugar “animado”, na época da colheita, onde ficou durante anos
seguidos: “Eu gostava muito do sul. Cortar cana. Brincar por lá... o ‘sul’
é muito animado demais. No tempo da moagem é mesmo que festa! Eu
terminei no Sul de Alagoas. E já vim faz pouco tempo, que vim de lá. Eu
vim me aposentar! Fui plantar verdura mais um doutor lá”. (José Pedro
Simplício, “Zé Pedro”, Aldeia São José).
Outro entrevistado morador na Aldeia Cana Brava foi trabalhar
no carregamento de cana no “sul”, próximo a Alagoas, durante alguns
anos: “Fui trabalhar em Alagoas no caminhão de cana. Porque aqui não
tinha o que nós ganhar. Quem pagava aqui um serviço era os que podia.
Fui trabalhar no sul, em Alagoas. Trabalhei no caminhão de cana. Fui uns
5 ou 6 anos”. (Manoel Balbino Silva, “Mané Preto”, Aldeia Cana Brava).
“Seu” Zequinha, o Pajé Xukuru, em períodos de estiagem ou
quando a lavoura não tinha sido produtiva, também viajou para o “sul”,
onde trabalhou nas usinas de cana-de-açúcar: “As vezes nessa época aqui
dava seca, não tinha onde trabalhar. Aí ía para o sul. Para a área da
cana. Eu trabalhei na Usina Pedrosa, trabalhei na Usina Catende. Ia e
voltava. Ia na época da safra. Somente, quando tava seco aqui. As vezes
dava pouco dinheiro, eu ia lá dava um dinheirinho mais melhor”. (Pedro
Rodrigues Bispo, Bairro Baixa Grande, Pesqueira/PE).
Quando os fazendeiros soltavam o gado nas roças indígenas,
antes da colheita, a saída era buscar trabalho fora da Serra do Ororubá.
Além do “sul”, alguns índios viajavam para trabalhar na colheita do
algodão no sertão da Paraíba. O Pajé foi trabalhar apenas na lavoura
da cana: “’Vou botar o gado!’ . Muitos já quebrava com o gado dentro! O
fazendeiro botava, cada vez mais apertava a dobradiça. Pro isso muita
gente ia pro sul, muita gente foi para o algodão. Eu nunca fui não. Só fui
pro sul. Pro sul fui, fui de solteiro, fui umas quatro vezes. De casado eu
só fui uma vez”.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 221


Ele contou como fazia o percurso até “o sul”. Ia a pé, pelas matas,
às vezes em grupos, outras vezes sozinho:
Ia de pé até Bezerros. Bezerros deixava o trem e entrava de
pés na linha de Camocim. De Camocim não, de Bezerros nós
tirava de pés para lá. Nós ficava um dia um dia, e pouco. Nós
ia muito devagar. Ia pelas matas, sentando. Aí gastava mais
de um dia. Cansei de ir eu e um colega meu, somente nós
dois. Nunca gostei de andar de tuia. Uma vez foi 20 num
grupo. De outra vez foi 25. Mas eu não gostava de andar de
grupo não. (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha, Bairro
Baixa Grande, Pesqueira/PE)

No “sul” os índios exerciam diferentes atividades na usina ou


no corte da cana-de-açúcar. O trabalho era dia e noite. “Seu” Zequinha
trabalhou nos armazéns da usina e também diretamente no fabrico do
açúcar:
Lá trabalhava a noite na usina. Durante o dia, quem ia para
o corte de cana, era para corte da cana. Quem trabalhava na
usina era na usina. Porque tinha duas turmas. Uma pegava
de meio-dia para meia-noite, outra pegava de meia-noite
para meio-dia. Agora o meu serviço, eu trabalhava mais de
dia. Trabalhei no armazém de açúcar. Trabalhei na esteira
também, mas foi pouco tempo. Aí eu fui para o armazém.
Trabalhei no armazém, eu trabalhei nas turbinas, turbinan-
do o açúcar. Eu trabalhei no adubo, traçando adubo para
cana. (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha, Bairro Portal,
Pesqueira)

O dinheiro recebido não era muito, mas compensava, diante da


falta de maiores perspectivas na Serra do Ororubá. No “sul”, o trabalho
era clandestino: “Prá gente que naquela época que a gente ganhava
aqui nada, ia pra lá dava pra ganhar mais um trôco. Não tinha carteira
assinada. Eu não trabalhei de carteira assinada. Era clandestino”. (Pedro
Rodrigues Bispo, Bairro Baixa Grande, Pesqueira/PE)
Outro entrevistado foi trabalhar em diversos outros lugares. E
também em terras invadidas por fazendeiros, na Serra do Ororubá, pois

222 Edson Silva


sua família era extensa, tinha pouca terra, seu pai trabalhava também de
alugado para os fazendeiros e ele herdou apenas uma pequena gleba de
terra:
Trabalhei fora. Eu saí daqui fui botar roçado em Caiananinha,
perto de Sanharó, porque aqui não tinha quem desse terra.
Então saí daqui, fui trabalhar em Goiabeira, próxima a Aldeia
Velha, daqui a duas léguas, Pão de Açúcar abaixo. Trabalhei
na beira do rio. Trabalhei aqui em Zé Marques, botei roçado
lá. Trabalhei em Arlindo Sabino também. Trabalhei em todas
as terras por aí, porque a de mãe aqui era pouquinha. A de
mãe aqui era 4 quadros, a que ele herdou. Bom, mas mãe
tinha nove filhos, mas como eu era o que ela mais gostava,
ele deu um quadro103, que eu estou com a escritura dele aí,
o quadro que ela me deu. Meus pais tinham quatro quadros.
Não dava porque ele trabalhava alugado. Ele só no alugado
coitado, se entertia naquilo... (Cassiano Dias de Souza, Aldeia
Cana Brava).

O entrevistado também foi trabalhar nas usinas do “sul”. O


dinheiro ganho jogando quando voltou para a Serra do Ororubá investiu
nas terras da família, recebendo uma parte como herança:
Saí, fui trabalhar na Usina Pedrosa, no Sul. Trabalhei lá 6
meses. Só fui uma vez. Ganhei nesse tempo lá, um conto
e duzentos, que ainda peguei umas duas paradas de jogo.
Jogava tirava um dinheirinho, enteirava e não gastava. Quan-
do vim embora, fui tocar isso aqui. Toquei a terra de mãe
toda! Depois dela feita, foi que ela disse “Meu filho, eu vou
lhe dar esse quadro de café que você assituou. Esse quadro
de terra que você assituou, eu vou lhe dar, essa outra fica
para os meninos”. Eu tinha nove irmãos com eu. (idem)

Um outro entrevistado lembrou que os índios mais idosos tinham


falado que, em razão da seca, foram em busca de melhores condições de
vida no Sertão da Paraíba, ou no “sul”, próximo a Alagoas, ou ainda em
localidades mais próximas de Pesqueira. Alguns constituíram famílias por
103
Medida agrária, equivalente a 12.100 m2 .

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 223


onde andaram. Outros retornavam para reencontrar seus familiares na
Serra do Ororubá,
Os mais velhos falavam em seca. Na época da seca não
faziam nada. Muitos ganhava o mundo atrás de refrigério,
atrás de ganho. Um bocado ia para o Sertão, ou ia para o sul
de Alagoas. No sul eu ia trabalhar! Sertão tem Monteiro (Pa-
raíba). Monteiro morava um tio meu lá. Tinha ali chamavam
Lagoa de Baixo, hoje é Sertânia. Iam para aqueles lados... Vol-
tavam quando queria, muitos ficavam por lá. Às vezes ia com
a família, às vezes trazia também. Muitos poucos nasceram
lá. Quando eles iam assim, deixavam a família, às vezes só
iam os mais velhos atrás de trabalho. (Juvêncio Balbino da
Silva, Cana Brava)

A falta de chuvas e a fome motivaram “Seu” Floriano a deixar


a família na Serra do Ororubá e ir para “o sul”, juntamente com outros
índios, trabalhar temporariamente na colheita e moagem da cana:
Eu saí para trabalhar fora, para ganhar dinheiro. No sul, na
Usina Pedrosa. Fui trabalhar, sai daqui no tempo ruim, eu
deixei a mulher... Eu digo, “eu vou pro sul, se não eu me aca-
bo de fome!” É que fui pra lá. Trabalhei lá uns três meses ou
quatro. Adepois que voltei melhorou a situação, choveu...Prá
gente plantar. Foi muita gente. Daqui foi muita gente. Num
comboio eu acho que ia bem uns catorze para lá. Era tempo
de seca. Era para moer cana, da moagem de cana. (Floriano
Marcolino da Silva, Aldeia Cana Brava)

A viagem de ida era feita a pé, pois não tinham sequer recursos
para a passagem de trem, só na volta. Trabalhavam na colheita e na
moagem da cana:
Ia a pé até lá mesmo. Não pegava trem não. Com quê? Pas-
sava três dias ou quatro para chegar lá. A volta melhorou
uma coisinha, porque a gente ganhou um trocadinho, a gen-
te peguemos, viemos até Caruaru de pé. De lá nos peguemos
o trem e cheguemos até aqui. Uma vida dura. Lá era para
plantar cana, para cortar cana, era para moer cana. (Idem)

224 Edson Silva


Como lembrou também “Seu” Gercino sobre a viagem: “De pés
prá gente chegar aí no sul, ai em Batateira, Catende, Escada. Por ali era
dois dias de viagem, dois dias e pouco. Dormia na estrada, na beira da
estrada. Entrava no mato assim um pedaço e dormia”. (Gercino Balbino
da Silva, “Seu” Gercino, Aldeia Pedra D’Água).
Questionado se tinha registro de um outro entrevistado que
foi uma única vez para “o sul”, respondeu “Tinha nada! Tinha não”.
Ele lembrou que muitos foram para lá todos os anos. Deixaram de ir
após a demarcação das terras reivindicadas pelos Xukuru, “Fui uma vez.
Aqui muita gente ia, todo ano ia. Agora não tá tudo rico, graças a Deus!
(risos!)”. Ele lembrou ainda que viajavam para o Sertão da Paraíba, onde
trabalhavam na colheita do algodão e nos brejos paraibanos, na moagem
da cana-de-açúcar: “Tinha gente que ia apanhar algodão no Sertão. Moer
cana também no Sertão. Moagem de cana”. (Idem).
Sem terras, “Seu” Malaquias trabalhava para um fazendeiro.
Depois foi para o Recife e “o sul” e Alagoas. Aprendeu a trabalhar em
outras profissões na Capital pernambucana. Foi cortador de cana para
várias usinas que vinham buscar os índios em caminhões, na época de
seca na Serra do Ororubá e de moagem da cana no “sul”:
Eu mesmo passei três anos no Recife para Alagoas. Quando
eu deixei a fazenda, eu passei mais de três anos pelo mundo
trabalhando. No Recife, no sul, Alagoas. Eu tenho uma arte.
Eu trabalhava na agricultura aqui. Mas lá eu trabalhava em
arte: pintor de azulejo, de armador, de encanador. E no sul
era cortando cana e espalhando cana. O caminhão ia e le-
vava cheio! Para Caetés, Cucau, Palmares, Barreiros...Vinha
nessa época de setembro, quando começa a seca. Nós ia pra
lá. (Malaquias Figueira Ramos, Aldeia Caípe)

Viajavam para “o sul” pela falta de terras para trabalho, pois,


mesmo como alugado, eram negadas pelos fazendeiros. A saída era
procurar meios de vida em outras cidades e no “sul”: “quando entrou
aquele negócio que o fazendeiro perseguia aí... ‘Aqui não trabalha mais
ninguém! Ninguém bota roçado!’ Aí a gente que tinha que desenrolar. Ia

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 225


para o sul, Recife, Vitória de Santo Antão, Canhotinho. O sul”. (Idem)
A colheita insuficiente e a seca foram os motivos de alguns se
deslocarem para “o sul”, outros irem trabalhar na lavoura do algodão em
várias localidades na Paraíba, onde ficavam por meses, muitos casavam,
mas não perdiam as referências da Serra do Ororubá:
Às vezes os anos era meio fraco. Às vezes o cara tinha que
procurar refrigério melhor. Uns iam para o Sul. Outros para
trabalhar no algodão na Paraíba, Monteiro, Baixa do Siba,
Tamanduá, Zabelê, Serrote, Mulungu, Sítio do Meio, Lagoa
da Ia, Jatobá, Prata de Boi Veio, Matarina, Catarina, Serra do
Gabriel, Bom Jesus. Muitas vezes casavam, muitas vezes vol-
tavam sem nada! (risos). Alguns as vezes passavam tempo.
Tempo assim de dois anos, um ano. Quem se deu bem lá,
às vezes ficava morando uns tempos, mas não se esquecia
da tribo, da Serra não. (José Gonçalves da Silva, “Zé Cioba”,
Bairro Portal, Pesqueira/PE).

No Sertão da Paraíba trabalhavam na colheita de algodão ou


em regime de divisão da produção com os fazendeiros. Para o “sul” iam
a pé, por falta de dinheiro para pagar um transporte. O entrevistado não
foi, mas um seu irmão trabalhou em usinas e voltou para casa com um
pouco de dinheiro:
E lá trabalhava para fazendeiros, plantava algodão,
trabalhavam de meia com o patrão. Quando o tempo estava
meio ruim pegavam o campo lá para apanhar algodão dos
fazendeiros. Tempo de seca, porque às vezes botava roçado e
perdia. A seca braba, perdia, ia atrás do algodão na Paraíba,
no Sertão. No Sul ia cortar cana. Na Usina Pedrosa, Barreiros...
Ia a pé. Não tinham dinheiro para pegar um jegue. Saía da
Serra, trabalhava lá um mês, dois e quando acabava voltava.
Ia a pé até chegar na Usina. Ia no mês de outubro para
novembro, de setembro para outubro. Eu não fui, mais um
irmão meu ainda foi. Ele foi para a Usina Barreiros, voltou
com um troquinho pouco (risos). (Idem)

Viajar a trabalho era um risco. No “sul”, índios foram mortos

226 Edson Silva


para serem roubados. No sertão paraibano imperava a rigidez do
comportamento. O entrevistado trabalhou na colheita do algodão,
preparando a terras para lavoura e em outros serviços, na seca por não
ter onde trabalhar na Serra do Ororubá:
Às vezes matavam para roubar. Mataram um índio no sul.
Mataram Roberto Rosendo. Mataram Ciço Baixo. Mataram
o filho de Genésio. Matavam para roubar. Morreu Osvaldo
Preto, tudo índio, no sul. Na Paraíba, ‘escreveu não leu, o pau
comeu!’. Eu trabalhei na Paraíba, em Lagoa Grande pegando
algodão, tocando palma, serviço pesado! Eu trabalhei em
Baixa do Siba, Tamanduá, Zabelê, Lagoa da Lá, Prata de Boi
Veio, Matarina...apanhando algodão, limpa de mato. Tudo eu
fazia, enfrentava tudo! Quando não tinha trabalho eu me lar-
gava no mundo e ia trabalhar. (José Gonçalves da Silva, “Zé
Cioba”, Bairro Portal, Pesqueira/PE)

Em uma longa entrevista, “Seu” Gercino, o “Bacurau” puxador da


dança do Toré Xukuru, detalhou os motivos, as condições e os lugares das
viagens que ele e outros índios fizeram em busca de trabalho temporário.
A maior razão das partidas para “o sul” ou para a Paraíba, eram as difíceis
condições de vida:
Falta de ganho, porque nós nascemos e se criamos aqui e
ninguém nunca passou fome. A falta de coragem de traba-
lhar, não. Agora, se nós queria ganhar o nosso trocado pra
fazer a nossa despesa, não tinha, onde podia ter era no sul,
ou na Paraíba. Aí nós ia procurar qual era o mais perto pra
nós ir. As vezes nós ia pra Paraíba, as vezes ia pro sul atrás
de ganhar pra num ver a família passar privação, né na ci-
dade. Aí nós ia. Trabalhava no sul, sempre nós trabalhava
dois mês, três, vinha embora. E aqui na Paraíba, nós traba-
lhava as vezes três, quatro mês, ai vinha embora. (Gercino
Balbino da Silva, Aldeia Pedra D’Água).

Ele lembrou que, na falta de recursos financeiros ou para


economizar o dinheiro ganho, faziam o percurso caminhando, até boa
parte do trajeto:

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 227


Ia pro sul ia muitos a pés, porque não tinha o trocado pra
pagar passagem, as vezes nós pegava trem aqui até Caruaru,
de Caruaru ia de a pés, porque não tinha trocado, né? Pronto,
muitos e muitos, porque muitos que já foram já morreram
tudo. Que iam de pés e às vezes voltavam porque não que-
riam gastar o transporte. (Idem)

“Seu” Gercino” trabalhou no fabrico do açúcar em várias usinas


na Zona da Mata Sul de Pernambuco até a fronteira com Alagoas:
Na cana, eu mesmo só trabalhei na Usina. Oito dias, depois
de oito dias eu fui trabalhar dentro da usina. Aí aprendi a tur-
binar açúcar. Aí eu não acostumei, trabalhava nas turbinas.
Trabalhei em Ilha Pedrosa. Trabalhei em Caxangá. Trabalhei
em Ribeirão e por ali abaixo. Até na porta de Alagoas traba-
lhei tudo. Trabalhava turbinando. (Idem)

Um pesquisador que esteve na Zona da Mata Sul pernambucana


nos primeiros meses de 1972, perplexo, constatava as dificuldades para
entrevistar os trabalhadores na época de moagem das usinas, pois a
jornada de trabalho era enorme. A maioria das usinas funcionava 24
horas. O trabalho no fabrico do açúcar era e ainda é mais especializado,
todavia, mais cansativo. O pesquisador constatou também que os direitos
trabalhistas só eram respeitados para os trabalhadores nas oficinas
mecânicas das usinas. Os que exerciam atividades na moagem, nas
turbinas, frente ao “vapor do diabo”, como chamavam, além da longa
jornada de trabalho em duras condições ambientais e periculosidade,
não possuíam carteira de trabalho e ganhavam por diária (LOPES, 1978,
p.62-108).
Situação semelhante expressou “Seu” Gercino na continuidade
do seu depoimento. Ele falou também que, como ainda acontece
contemporaneamente, os trabalhadores envolvidos diretamente no corte
da cana-de-açúcar não eram registrados. O ganho semanal na época era
o suficiente para a compra de alimentos relativamente mais baratos e
fazer economias para trazer para a família, na Serra do Ororubá:
No sul a primeira vez que eu fui, eu trabalhava por semana.

228 Edson Silva


Semanal na usina. Era seis mil réis por semana. Tá vendo?
Seis mil réis de sábado a sábado. Era seis mil réis, quando eu
fui. Depois que eu passei a turbinar, ai subiu. Ai eu ganhava
doze mil réis por semana e nunca ficharam carteira. Eu não
sei agora, faz tempo que eu fui. Não sei, mas no tempo que
eu trabalhei não. Assinava carteira não. Em serviço nenhum.
Cortador de cana, cambiteiro, cocheiro, esse povo que lutava
com animal, não tinha nada fichado, não. Tudo era avulso.
Mas o que a gente ganhava dava. Porque tudo era mais...
não era caro. Sempre era mais barato. O charque era mais
barato, feijão mais barato, farinha mais barata e pronto. Dava
e a gente ainda trazia um trocado pra casa. (Gercino Balbino
da Silva, Aldeia Pedra D’Água).

O trabalho durava os últimos cinco meses do ano. Era realizado


sem os direitos legais:
Era assim, nós começava no mês de agosto. Nesse mês, nós
chegava lá as vezes a usina já tava trabalhando e as vezes
nós chegava se ela não tivesse trabalhando, ia trabalhar. Só
voltava no mês de dezembro, sempre era o mês de dezem-
bro, nós voltava. No sul não se assinava nada. Só assinava o
nome na folha pra receber. (Idem)

Com o dinheiro recebido o trabalhador pagava sua manutenção


e comprava o mínimo de alimentação:
Pagava barracão. Pagava às vezes uma lavagemzinha de
roupa. Às vezes um kilo de carne que a gente comprava as-
sim no meio da semana e pronto. Alimentação era por conta
da gente. A gente é que tinha que comprar, fazer a feirinha
da gente, comprar o feijão, a farinha. Nesse tempo, arroz era
meio difícil, aí nós comprava feijão, a farinha, uma carnez-
inha pra almoçar. A carne nossa do sul era charque, carne de
charque. Nós fazia aquela feira simples, um trocadinho que
sobrava, guardava. (Idem)

O máximo possível do que fora ganho era guardado e trazido para


família. O momento do retorno era quando iniciava o armazenamento do

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 229


açúcar e de preparação da terra para o plantio da cana:
Trazer pra família, guardava não era pra outra coisa. Pra
quando dissesse ‘vou m’imbora’, ter o dele. Pagava um trans-
porte se encontrasse, se não encontrasse era de pé mesmo
e vinha. Trazer uma remessa em casa. Ai era tempo que
começava o serviço de doca. As vezes de limpa de mato. Ai
nós não descia mais. (Idem)

No início da década de 1970, o recrutamento de trabalhadores


para os serviços mais especializados no fabrico do açúcar ocorria dentre
os chamados “corumbas”, trabalhadores originários, em sua maioria,
do Agreste, que sazonalmente se dirigiam para a Zona da Mata Sul de
Pernambuco. Na maior parte das usinas esses trabalhadores, a exemplo
de “Seu” Gercino, assumiam atividades na moagem, como nas turbinas
(LOPES, 1978, p.154).
Durante o período de trabalho as condições de alojamento eram
precárias, “os corumbas” ficavam em galpões coletivos:
Morava no barracamento da usina, que a usina tem uns
barracamentos pra o operariado todo. Nesse tempo eles não
chamava operários, era pião. Tinha pião, que tinha três, qua-
tro numa barraca, cinco, seis noutra, tinha o barracão, a bar-
raca grande, galpão. Era Corumbá. Tinha cinqüenta, sessenta
corumba tinha. Se tivesse lugar de amarrar rede. (Idem)

No clássico citado anteriormente, A terra e o homem no


Nordeste, discutindo o desenvolvimento das usinas e a proletarização
dos trabalhadores rurais, o autor mais uma vez citou os “corumbas”.
Os migrantes sazonais vindo do Agreste para a lavoura canavieira,
e que retornavam no inverno para as suas regiões de origem: “Como
proprietários de pequenos lotes ou como rendeiros, se não possuem
terra, cultivam lavouras de subsistência ao caírem as primeiras chuvas”
(ANDRADE, 1980, p.111). Mas permaneciam até a colheita das suas
lavouras,
Chegado, porém, o estio, nos meses de setembro e outubro,
quando as usinas começam a moer e a seca não permite

230 Edson Silva


a existência de trabalhos agrícolas no Agreste, eles descem
em grupos em direção à área canavieira, as vezes à pé, às
vezes em caminhões, e vêm oferecer seus trabalhos nas usi-
nas e engenhos. Aí permanecem até as primeiras chuvas
que são no Agreste em março ou abril, quando regressam
aos seus lares, a fim de instalar novos roçados. (ANDRADE,
1980, p.111).

O autor enfatizou a importância fundamental da mão-de-obra


desses trabalhadores para a produção do açúcar, informando ainda da
necessidade deles para algumas usinas, em virtude de suas localizações
geográficas:
As usinas mais distantes do litoral, como Roçadinho, Pedrosa,
Catende, Serra Grande, etc., por se localizarem próximas ao
Agreste, recebem os corumbas mais facilmente em maior
número. Aquelas localizadas distantes necessitam, às vezes,
enviar caminhões às cidades agrestinas em dias de feira
para agenciar trabalhadores. (ANDRADE, 1980, p.112).

Uma outra pesquisa também realizada no início da década


de 1970, na cidade de Ribeirão, Zona da Mata Sul pernambucana,
constatou que um expressivo percentual dos trabalhadores, “chefes
de famílias”, na lavoura canavieira eram originalmente agricultores de
subsistência no Agreste, de onde vieram. A migração era motivada pela
capacidade do processo produtivo do açúcar de absorver anualmente
grandes contingentes de mão-de-obra, aliada à insuficiência de terras
pelas pequenas dimensões das propriedades ou ainda pela sua baixa
produtividade para manutenção das famílias em seus lugares de origem.
(SUAREZ, 1977, p.85; 93-94).
No caso da Serra do Ororubá, além da falta de terras para os
índios trabalharem, somava-se também as secas sazonais, que coincidiam
com a época da moagem das usinas de açúcar. As viagens de “Seu”
Gercino e demais companheiros para “o sul” ocorreram porque “Não
tinha serviço” na Ororubá:
Eu fui umas vezes. Pro sul eu fui umas duas vezes ou três

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 231


vezes. Uma vez eu fui com um tio meu, Tio Antonio Brabinha,
depois no outro ano ele não quis ir, eu fui sozinho. Não so-
brava não. Quando eu sai daqui que eu fui só se daqui pra
sair a Pedrosa. Fui a pé inté. Fui a pé de São José das Lajes
pra Pedrosa. Três léguas de pé. E daqui pra São José das
Lajes eu fui de caminhão nesse tempo. (Gercino Balbino da
Silva, Aldeia Pedra D’Água).

No depoimento, “Seu” Gercino afirmou a existência de uma


rede de pessoas amigas, uma delas um Xukuru ocupante de um posto
na usina, que garantia trabalho para os migrantes, quando não havia
condições de trabalhar no Ororubá:
Trabalhei lá em Pedrosa. Não tinha serviço. O gerente de lá
era conhecido da gente daqui. Era um caboclo. Era Raimun-
do. Raimundo, irmão de Sebastião que mora aí, que é irmão
de Miguel. Ele era gerente lá, a gente descia daqui, chegasse
lá, só não trabalhava se não tivesse jeito mesmo. Mas ele
fazia tudo e botava nós pra trabalhar, que ele era caboclo
também. Gostava da gente, nós nunca sobremos.

Mas, quando as relações de amizade não foram suficientes para


a garantia de uma ocupação na lavoura, “Seu” Gercino continuou a
procura para arranjar trabalho em outras localidades de Alagoas, com
condições mais favoráveis:
Mas no ano que eu fui sozinho, eu sobrei, porque eu cheguei
lá não tinha casa, já tinha virado. Já tava completo. Ai Rai-
mundo disse “- tu quer esse? Se tu esperar oito dias tu es-
pera. Se você não puder esperar, você procura outra usina”.
“Tá certo”! Aí eu desci fui pra Caxangá. Caxangá trabalhei
uma semana, turbinando, mas não me agradei, porque eles
roubavam muito as horas da gente. Ai desci fui pra Ribeirão,
trabalhei oito dias também, não deu. Ai eu digo: “— Agora, eu
já sei”. Solteiro, não tinha em quem pensar. Peguei o saqui-
nho nas costas e fui ficar em Serro Azul, Alagoas, no centro
mesmo. Daqui agora ou língua ou beiço, daqui eu volto pra
casa ou fico aqui mesmo. Mas ganhei a linha de Alagoas,

232 Edson Silva


subindo, subindo, subindo, fui parar quase no fim do Sul de
Alagoas. (Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra D’Água)

Foi a proximidade da época e o compromisso em participar nas


festas na Vila de Cimbres que motivou o retorno de “Seu” Gercino, depois
de vários meses longe, sem dar notícias mesmo à família,
Trabalhei dez meses. Sem dar noticia a minha família, a nin-
guém, porque era difícil. Não aparecia conhecido e eu não
tinha por quem mandar, trabalhei dez meses. Foi no tempo,
chegou o tempo deu ir pra Vila. Eu digo, “eu vou me bora”. A
usina fechou que foi no mês de maio. Ai eu digo, “agora eu
vou”. Ai eu vim me bora. (Idem)

“Seu” Gercino lembrou ainda das condições pessoais para


a viagem ao “sul”. Questionado sobre os pertences levados, ele falou
que alguns transportavam roupas, rede, muitos iam descalços e assim
trabalhavam,
Uma rede, um lençol, uma roupinha. Às vezes tinha um par-
zinho de alpercatas e quem não tinha ia de pé descalço, era.
Passei isso muito. Eu nunca fui descalço não, porque toda
vida fui prevenido, gosto de possuir um parzinho de calçado,
de alpercata de eu viajar. Mas muitos que não ligava pra
isso. De certos tempos pra cá é que muitas gente não anda
de pé descalço, mas do meu entendimento de trabalho pra
trás tinha muitos que não usava calçado não. Brocava, lim-
pava mato, fazia tudo, mas com os pés descalços, calçava
não. (Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra D’Água)

A partir dos relatos dos xukurus, a exemplo de “Seu” Gercino,


sobre as viagens e a presença de indígenas no “sul”, onde iam trabalhar
na lavoura canavieira, é possível então pensar a fonte de inspiração para
Ascenso Ferreira escrever o poema “Toré”.
Muitos Xukuru também migraram para o Sertão da Paraíba,
onde foram trabalhar nas lavouras de algodão. A Serra do Ororubá
está situada na fronteira pernambucana com o Sertão paraibano. “Seu”
Gercino também colheu algodão em várias localidades paraibanas. O

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 233


trabalho era em condições diferenciadas do “sul”. Recebiam alimentação
e estadia:
Eu ia na época da safra de algodão, de agosto pra setem-
bro, as vezes chegava lá em setembro. Perto de Monteiro.
Paraguai, Contrapina. Era tudo perto de Monteiro, a gente
ia. Lá os patrão dava bóia: o almoço, a janta, a dormida, que
a gente ganhasse era livre. Não tinha história de fazer feira
não. O pouco que a gente ganhasse era livre. Só pra quem
fumava, ai comprava fumo pra fazer os cigarro, essas coisas,
mas eu não fumava.(Idem)

Apesar das condições diferenciadas, em caso de acidentes de


trabalho as condições para um socorro eram precárias em razão das
distâncias. Em comparação com a lavoura canavieira, colher algodão era
uma atividade mais leve:
Davam tudo. Davam dormida, dava comida, dava tudo. Ia
daqui trabalhar, quando trabalhava que vencia o tempo
vinha embora. Aleijado, ou manquejando, ou marcando,
tinha que se cuidar. Se fosse um negócio prá medico, era
longe três léguas pro cabra ir. Como é que o cabra ia de pé?
Não tinha transporte. Existia mas era carro de boi, pronto e
outra coisa, nada. Porque o trabalho da gente lá era, num
era complicado, era de algodão. As vezes fazia uma cerca,
era o mais complicado, mas não. Era somente catar algodão.
(Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra D’Água)

Na falta de recursos financeiros, se deslocavam também a pé


para as lavouras do algodão, na Paraíba, “Daqui nós ia de a pés prá
Paraíba. Ia daqui de Cana Braba mesmo, os conhecidos dali de Cana
Braba”. (Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra D’Água)

234 Edson Silva


Capítulo V

QUEM SÃO ESSES ÍNDIOS? O PERÍODO DO


SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS

Entre o selvagem, o pitoresco, o moderno e o oficial


“Quem são esses xucurus?
São índios mesmo? Como vivem?
Essas e outras perguntas poderiam ser feitas.
E quem as poderia responder com precisão?”
Augusto Duque104

Essas indagações de um cronista de Pesqueira estão no artigo


“Festa dos xukurus” publicado em 1949 num jornal do Recife, no qual ou
autor discorreu sobre uma apresentação dos Xukuru, dançando o Toré,
em frente à Catedral de Pesqueira, na recepção ao novo Bispo nomeado
para aquela Diocese. O conhecido cronista demonstrava perplexidade
com o “espetáculo”, incomum para uma cidade tão industrializada, onde
“mais de três centenas de remanescentes indígenas – xucurus – dançaram
o tradicional ‘toré’, defronte da Catedral”.
O evento ocorrera na recepção de Dom Adelmo Machado,
aclamado festivamente o novo bispo da Diocese de Pesqueira. Escreveu
Augusto Duque que “os nossos parentes xucurus” naquele dia trocaram
o seu “terreiro tradicional” pelo espaço civilizado da praça em Pesqueira,
trazendo uma “telúrica e selvagem mensagem” na recepção ao prelado.
Condecorados com medalhas e finda a apresentação, os índios retornaram
a Cimbres. Na visão do cronista, que opunha à civilização da cidade a
barbárie indígena, era estranha a disparidade cultural naquela região do
Agreste. Daí as suas indagações.
104
“Festa dos xukurus”. Folha da Manhã, Recife, 24/01/1949, p.4.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 235


No decorrer do artigo Duque expressava sua visão sobre os
índios moradores na Serra do Ororubá, ao escrever que os “xucurus”,
embora não mais vivendo com tangas e em malocas, como os “nossos
antepassados”, e, sim, em seus “roçados e taperas”, eram belicosos, pois
possuíam o “sangue quente” e se envolviam em “brigas terríveis”. E, além
disso, viviam no ócio e em bebedeiras. Para o cronista, o “verdadeiro
aldeamento”, com um reconhecido “Mayoral”, existira até o século XIX,
como informava a documentação da Diretoria de Índios em Pernambuco.
Em nenhum momento Duque se referiu às razões dos conflitos, às
invasões das terras do antigo aldeamento e às perseguições recentes aos
índios na Serra do Ororubá.
Após citar informações sobre o número de famílias e a situação
das terras “xucurus”, produzidas pela Diretoria de Índios e contidas em um
relatório de 1861, publicado por uma revista em 1946, o cronista escreveu:
“Hoje os índios são arrazados e pobres. Vestem roupas, casam, tocam
zabumbas e pífanos e morrem como o comum matuto de Pesqueira”. Para
Augusto Duque, os “xucurus”, em suas mínimas expressões cotidianas,
assimilaram hábitos alienígenas e estavam perdendo sua identidade
indígena própria e se assemelhando a qualquer habitante regional. Uma
perspectiva que, além de pensar a cultura de forma estática, a existência
de uma suposta pureza cultural, estabelecia uma hierarquia evolucionista
em relação aos moradores urbanos em Pesqueira, e degradante, quando
comparada com os habitantes na área rural do município.
Embora a situação dos índios apresentasse um quadro desolador,
segundo o cronista algumas características conferiam aos “remanescentes
xucurus um certo sentimento grupal”, “a persistência de certo caráter
tribal”, a exemplo de alguns “hábitos e tradições”, como a devoção a
N.Sra. das Montanhas, em Cimbres, uma tradição oral que remetia á
pretérita catequese missionária; o “toré”, descrito por Duque como uma
dança realizada em conjunto e com “trajes típicos”, nas festas devocionais
citada: e “a guarda de troféus que dizem ter sido da Guerra do Paraguai”,
conflito em que para o cronista, existiam dúvidas se os índios tinham ido
de forma voluntária ou compulsoriamente.
O cronista prometia, em um próximo artigo, discutir mais

236 Edson Silva


as características dos “xucurus”, a partir dos estudos sobre os tapuias
do Nordeste. Mas, naquele momento, “por enquanto”, para Duque
cabia registrar “a pitoresca e rara festa de Pesqueira”. Uma festa que
expressara situações díspares: em um espaço moderno, representado
pela grandiosidade das fábricas, da urbanização, um “Príncipe” da Igreja
fora recepcionado por “remanescentes” indígenas dançando o Toré
“ritmado e quente, como um grito telúrico de nossa esdrúxula e inimitável
civilização”. Para o autor, um considerável acontecimento “sociológico”
no Agreste, uma região de fronteiras.
A visão das expressões culturais indígenas como exóticas e
pitorescas aparece em um outro artigo publicado em 1953. Informava
o cronista semanal José de Almeida Maciel, considerado também o
historiador de Pesqueira, que “22 caboclos” da Serra do Ororubá tinham
se apresentado em um palanque na Praça da Independência, no centro
do Recife. Durante os três dias do Carnaval, eles “exibiram a dansa do
‘toré’, de movimentos coreográficos não fácil execução”. Segundo o
cronista, os índios se apresentaram com a “indumentária apropriada”,
para uma platéia repleta, que apreciava “pela 1ª vez, a diversão selvagem
dos aborígenes, primitivos habitantes do nosso país”. Na viagem ao Recife
os “descendentes dos antigos Xucurus” foram liderados por Antonio
Nascimento e a ida à Capital tinha sido patrocinada pelo SPI.105 Tanto
o que publicou Augusto Duque, como o escrito por Almeida Maciel
sobre os “xucurus” expressavam uma visão situada entre o exótico e
o pitoresco, entre o primitivo selvagem e o civilizado, o moderno e o
decadente e ultrapassado, revelando o que era pensado por uma parcela
dos formadores de opinião, intelectuais e a elite em Pesqueira, a respeito
dos índios moradores na Serra do Ororubá.
Mas, por outro lado, essas apresentações, vistas de forma
pejorativa ou não, significavam, além da afirmação da existência Xukuru,
uma visibilidade buscada pelos índios em um momento tido por eles
como muito importante: a instalação de um Posto do SPI na Serra

105
“Caboclos da Ororubá dansaram na capital do Estado”. A voz de Pesqueira, Pes-
queira, 29/3/1953, p.1.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 237


do Ororubá, e com isso a conquista do reconhecimento e o direito à
assistência oficial. O que poderia lhes garantir o fim ou a atenuação das
perseguições dos fazendeiros invasores nas terras do antigo aldeamento.
Em uma reunião do CNPI, em fins de 1944, José Maria de Paula
relatava que, em companhia do chefe da Inspetoria Regional do SPI,
sediada no Recife, percorrera a Serra do Ororubá e constatara as invasões
das terras dos “descendentes” dos índios “Urubu”. Desconsiderando o
processo, como registram documentos e as memórias orais indígenas, em
que ocorreram os esbulhos das terras do antigo aldeamento de Cimbres,
o funcionário da agência indigenista oficial afirmava que ao longo dos
anos, as terras tinham sido parceladas, vendidas ou transferidas para
terceiros pelos próprios índios106. Como foi visto, as terras indígenas foram
tomadas, diante das pressões dos fazendeiros, em muitas situações de
perseguições restava às famílias indígenas vendê-las, aceitando o baixo
preço oferecido pelo invasor.
As relações dos Xukuru com o SPI, como já foi visto (Capítulo I)
remontam a esse período, quando o sertanista Cícero Cavalcanti esteve
na Serra do Ororubá. O funcionário do SPI elaborou um relatório que
traz significativas informações sobre os Xukuru, pois, mesmo tratando
os índios como caboclos, além de listar as localidades com moradias
indígenas, descreveu brevemente os rituais e algumas expressões culturais
indígenas, como o Toré, dançado na festa anual em Cimbres:
O Toré é dançado quando fazem festa de Nossa Senhora da
Montanha. Eles reúnem-se e apresentam-se com uns anéis
de palha de milho amarrados aos outros, cintura, braços e
joelhos e canelas. Na cabeça usam o ‘kréagugo’ (canitara)
feito de palha de coqueiro, que rodeiam com flores. No toré,
um caboclo fica de parte tocando gaita, enquanto os outros
dançam dois a dois, cada um com um ‘ximbó’ (cacete) na
mão a bater no chão acompanhado com o sapateado que

fazem. Às vezes cantam e de vez em quando dão um assobio

106
Relatório Anual do CNPI, 1944. Ata da 14ª Sessão, p.1, em 16/11/1944. Museu do
Índio/Sedoc, documentos impressos.

238 Edson Silva


bastante forte, em sinal de alerta (ANTUNES, 1973, p.41).

O sertanista se referiu também à tradicional “busca da lenha” que


os Xukuru realizam anualmente, na tarde do dia dos festejos dedicados
a N. Sra. das Montanhas.
Na festa de Nossa Senhora da Montanha, cada um tem por
obrigação trazer uma acha, que depois vão amontoando
para fazer a fogueira em frente da igreja. Para no momento
em que estiverem dançando o toré passarem um por um de
pés nus em cima das brasas. (ANTUNES, 1973, p.41).

Em outro trecho do seu relatório, perguntava sertanista: “E por


qual razão se diz que na Serra do Urubá não existem índios?”. Afirmava
Cavalcanti que as terras habitadas pelos Xukuru eram mais férteis do que
a do vizinho aldeamento em Águas Belas, onde estavam os Fulni-ô, e ainda
Tacaratu, onde habitavam os Pankararu. Segundo ainda o sertanista, os
“xucurús” mais velhos não falavam mais “seu dialeto”, apenas alguns
vocábulos e frases, recorrendo também ao auxílio do português.
Uma outra informação importante relatada por Cavalcanti foi
sobre a situação e uso das terras. Como já foi visto e discutido, para
Cícero Cavalcanti a população na Serra do Ororubá era formada por
índios e mamelucos que plantavam, em “terras arrendadas”, o milho e
o feijão. O cultivo da mandioca não era permitido pelos invasores das
terras do antigo aldeamento. Pelas afirmações do sertanista e diante da
situação de acesso às terras, podemos concluir que o cultivo da lavoura da
mandioca não interessava aos fazendeiros, que arrendavam as terras por
eles invadidas em troca do plantio do capim ou do restolho da colheita
da roça para o gado. Muitas vezes os animais eram colocados dentro da
área plantada ainda sendo colhida pelos índios.
Lembrava o sertanista o recrutamento Xukuru para a Guerra do
Paraguai e do retorno de ex-combatentes com títulos e honrarias militares,
a exemplo do “bravo Manoel Felis”, que vendo as terras invadidas, tinha
solicitado providências às autoridades, mas não fora atendido. Afirmava
Cícero Cavalcanti que “os brancos” roubaram à carta patente de alferes
de Manoel que, “desgostoso”, foi embora para o Ceará, onde falecera.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 239


Antes da partida, Manoel deixara seu fardamento com “o índio Romão da
Hora Tatarame” que, mesmo guardando-a cuidadosamente, a roupa não
resistiu à ação do tempo, restando somente “partes da indumentária”.
Citou o sertanista “uma espada com bainha metálica, um
quepe, uma banda de duas dragonas”, que ele teria pedido para enviar
à Diretoria do SPI no Rio de Janeiro, destinado a um Museu. Segundo
Cavalcanti, “Romão não fez questão e cedeu de bom gosto”, apesar dele
já ter encontrado um bom preço pelos objetos e ter se recusado a vendê-
los. Como será visto a seguir, os Xukuru têm uma versão divergente para
esse episódio, que norteou o significado da presença de Cícero Cavalcanti
na Serra do Ororubá. Mesmo lida posteriormente como negativa, pelos
índios, a estada de Cícero Cavalcanti possivelmente favoreceu os contatos
dos moradores na Serra do Ororubá com a agência indigenista estatal.

A visita do sertanista Cícero Cavalcanti: memórias e


leituras indígenas

Em suas memórias, os Xukuru detalham e fazem outras leituras


da estada do sertanista Cícero Cavalcanti. Diversos depoimentos citaram
que o sertanista se hospedou na casa de “Mané Bilinga”, na atual Aldeia
Gitó. A exemplo de “Seu” Ciço Pereira, ao recordar que muitos índios
vindos de vários lugares na Serra do Ororubá, inclusive ele próprio, se
dirigiram até onde o sertanista se encontrava:
Minha lembrança, meu alcance, parece que 1944 prá 1945.
Apareceu aqui aquele Dr. Cícero Cavalcanti, no território...
Nesse tempo não se conhecia por aldeia, não sabe? Se con-
hecia por sítio, viu? No sítio Gitó. E esse homem chamou mui-
ta gente atenção em Cana Brava, em Pé de Serra, de Cana
Brava de Dentro, de todo canto que existia. Ele dizendo que
vinha entregar as terras dos índios; Cícero Cavalcanti. Olha?!
E aí, todo dia era gente diariamente em Gitó, era uma festa
para o povo, naquela época. E eu, naquela época, tinha um
roçado em cima de uma serra, eu trabalhava de bem cedo
até onze horas, onze horas eu vinha e almoçava, trocava de

240 Edson Silva


roupa e passava, ia pro Gitó, pra essa reunião que tinha lá
desse... (Cícero Pereira, Bairro Xucurus, Pesqueira)

Existia uma promessa de devolução das terras aos Xukuru.


O que mobilizou muita gente que se dirigiu por vários dias ao en-
contro de Cavalcanti, na casa de “Mané Bilinga”:
Ai foi correndo notícia prá todo canto, prá todo canto na casa
de Mané Bilinga, o pai de Milton. Ai o povo começaram a
andar prá lá. Começaram a entrar gente de todo mundo, de
todo canto. É de Pé-de-Serra, de Cana Brava, Cana Brava de
Dentro, é de Afetos. Era da região de Pão de Açúcar, o movi-
mento dessa beira todinha. Pertencia onde era da área indí-
gena todo mundo ia. E o povo foi aos trabalhos. Aparecendo
assim essas novidades e os índios sem saber de nada, né?
Aí chegou a se saber. Aí foram caminhando, né. Uns avisan-
do uns aos outros, convidando, espalhando a noticia. Esse
homem que se chamava-se Cícero Cavalcanti, ele era da Fu-
nai, de Recife. (Cícero Pereira, Bairro Xucurus, Pesqueira)

A notícia da devolução das terras era festejada ao som de


zabumbas:
Prá essa reunião desse homem que tava fazendo essa pes-
quisa ou é de retomada. Não! É entrega que ia fazer. Pegar as
terras dos índios e entregar. Agora, era gente de todo canto
que vinha. O povo que vinha, passava em Cana Brava prá
Gitó. Se ajuntava tudo na casa do finado Antônio Maria, que
era meu sogro e quando saía, saía aquele pessoal com mais
de duzentas pessoas, cada um com uma cana nas costas,
dois terno de zabumba tocando, era uma festa animada.
Quando chegava lá no Gitó, chegava logo aquele povo e iam
tudo dá entrevista com o Cícero Cavalcanti, né? Ele dizendo
que ia entregar as terras dos índios. E aí então continuou
nessa vida, parece que um bocado de dias, né? (Idem).

No local onde estava o sertanista o ambiente era também de festa,


com comidas, vendas de bebidas e danças. As pessoas que chegavam
se acomodavam para serem atendidos pelo sertanista, que perguntava e

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 241


fazia anotações:
E o povo chegava lá era um festão na casa de “Seu” Mané
Bilinga. Era tocador de pífano, era de zabumba, que eu digo.
Era de matar porco, matava porco, só sei que era um festão
medonho. Butiquin, tinha de tudo, lá tinha até boate, que o
povo... Era um encontro muito grande. O povo se, como é que
diz meu Deus? Se hospedando, né? Se hospedando. E então
lá dentro da casa de Mané Bilinga tinha duas mesas. Três
mesas grandes com aquele povo tomando nota e chegando
e ele fazendo, e ele falando com o povo, né, o que ia fazer
na aldeia. Aí tomando nota do povo. Pegando nome do povo,
aquele antigo e fazendo as perguntas. (Cícero Pereira, Bairro
Xucurus, Pesqueira)

Casa de Milton, filho de


“Mané Bilinga”, na Aldeia
Gitó, onde se hospedou Cíce-
ro Cavalcanti.
Foto: Kelly Oliveira, 2005.

Ao tomar conhecimento da mobilização, o Juiz de Pesqueira


enviou policiais para prender o sertanista, que, alegando a condição de
agente a serviço do Ministério da Agricultura, afirmou que compareceria
posteriormente à presença do reclamante. Cavalcanti foi à presença do
juiz, acompanhado de um grande contingente, todavia não retornou à
Serra:
Aí chegou ao conhecimento do juiz da Cidade de Pesqueira,
mandou prendê-lo, né? Mandou uma intimação prá ele, a
polícia foi buscar ele. Aí a polícia foi buscar ele. Chegou lá
ele disse: “Não, vocês vão embora, que eu vou atrás. Que
depois eu compareço lá. Que eu só me entrego ao Ministério

242 Edson Silva


da Agricultura, vão lá que eu vou falar com o juiz lá”. E, nesse
dia, ele desceu com mais de quase umas oitocentas pessoas,
por aí assim, mais ou menos, sabe? Com ele. Quando chegou
cá, ele... Eu não sei o que houve com ele, eu sei que esse
homem não voltou mais dessa vez. (Cícero Pereira, Bairro
Xucurus, Pesqueira)

O sertanista recebera dinheiro dos fazendeiros, “uma maleta de


dinheiro”, para ir embora: “Os homens, primeiramente, fizeram uma...
uma comissão. Não. Como é que diz meu Deus? Prá tirar dinheiro pra
ele, né? E os fazendeiros, ali cada um dava muito dinheiro a ele. Que ele
tinha uma maleta de dinheiro. Cheinha. E dessa vez ele foi embora, não
pisou mais cá, até hoje”. (Idem).
O Pajé Xukuru, “Seu” Zequinha, também falou da presença
do sertanista Cícero Cavalcanti na Serra do Ororubá. Ele lembrou do
encontro festivo em Gitó, para onde foram muitos índios por conta da
notícia da “desapropriação” dos fazendeiros:
Foi na época de Cícero Cavalcanti quando foi sertanista. Era
sertanista e aí veio para aldeia, para reunir todos os índios
aqui. Que ele disse que era uma potência. Ele era mandando
pela Funai na época, para já desapropriar os fazendeiros
daqui da região. Aí em Gitó, foi convidado todo mundo para
ir para Gitó. E em Gitó chegou muito índio. Ia índio, era que
nem uma procissão. Que nem uma festa Era pife, banda de
pife, zabumba e tarol. Era uma grande festa lá! (Pedro Rodri-
gues Bispo, Bairro Baixa Grande, Pesqueira/PE).

Sabedores da mobilização motivada pela presença do sertanista,


os fazendeiros se reuniram e juntaram dinheiro para dar a Cícero
Cavalcanti. Diferentemente do entrevistado anterior, “Seu” Zequinha
afirmou que o sertanista veio sozinho à cidade, atender a um chamado
do Delegado de Polícia. Na Delegacia, Cícero Cavalcanti fez um acordo
com os fazendeiros, recebendo muito dinheiro deles:
Aí teve uns fazendeiros, ele teve aí pouco que eu não sei o
quanto ele demorou. Aí os fazendeiros reuniram-se soube-
ram que ele tava aí. Se reuniram muitos fazendeiros naquela

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 243


época e foram fazer uma “vaquinha”. Fizeram uma “vaqui-
nha” e foram a ele, o Cavalcanti. Cícero Cavalcanti. Inclusive
que ficou muita gente lá em Gitó e chegou um chamado lá
da Delegacia para ele. Para ele comparecer lá na Delegacia.
Aí ele veio. Deixou o pessoal lá, lá em Gitó, dizendo ele “Eu
venho logo”. Aí ele veio para a Delegacia. Quando chegou aí
na Delegacia ninguém sabia. Mas depois nos sabemos, que
foi para fazerem um acordo com ele, com os fazendeiros que
estavam na Delegacia esperando ele, com muito dinheiro.
(Idem)
Os índios ficaram sabendo posteriormente que o sertanista
recebera o dinheiro dos fazendeiros, tendo sido essa a razão do seu
desaparecimento. Reencontrado anos depois pelos Xukuru, na sede da
Funai, no Recife, Cícero Cavalcanti foi pressionado e ficou amedrontado.
Depois disso, ele desapareceu, sem mais deixar notícias:
A gente soubemos depois. E daqui mesmo ele sumiu-se, sum-
iu-se até hoje! O Cavalcanti sumiu-se e cabou-se. Cavalcanti.
Cabou-se Cícero Cavalcanti. Eu sei que ao passar de muitos
tempos, muitos tempos, no tempo de Gilvan que já tava no
Posto, foi que foram encontrar com ele no Recife, os meninos,
né? Aí foram um bocado de índios para lá e encontraram
com ele em Recife. Aí foram conversar com ele. Deram uma
prensa nele e o homem quase chora. Ficou com muito medo.
E desde desse tempo para cá foi que ninguém soube mais.
(Pedro Rodrigues Bispo, Bairro Baixa Grande, Pesqueira/PE)
“Seu” Zequinha falou ainda que Cícero Cavalcanti levou objetos
índios, que eles haviam recebido pela participação na Guerra do Paraguai.
O sertanista levou também documentos recebidos da Princesa Isabel,
como recompensa pela participação indígena na Guerra:
Dos índios ele levou uma espada, uma túnica, um quepe que
foram dos índios que foram para a Guerra do Paraguai, na
época, ai a Princesa deu. E eu acho que dentre desse meio,
não só a túnica, mas eu acho que aqueles atestados que a
Princesa Isabel deu, eu acho que ele ficou com um bocado,
eu acho que ele levou, eu penso que ele levou! De Romão da

244 Edson Silva


Hora, que Romão da Hora tinha um documento por letra de
bronze, escrito por letra de bronze. E eu acho que ele levou
esse documento. Eu não tenho bem certeza não, desses do-
cumentos. Mas, a túnica, o quepe e a espada, ele levou. (Pe-
dro Rodrigues Bispo, Bairro Baixa Grande, Pesqueira/PE)

Possivelmente o citado documento com “letras de bronze”, estava


escrito com letras douradas que, envelhecidas com o passar dos anos,
adquiriram uma coloração semelhante ao bronze.
Ao ser perguntado sobre o sertanista, um outro entrevistado
afirmou que esteve em Gitó. Ele foi convidado para ir ao local e lembrou
da presença de muitas pessoas, inclusive vizinhas, e da animação com
zabumbas e a dança do Toré:
Eu tive com ele em Gitó, que ele foi fazer uma festa lá, o
senhor Cícero Cavalcanti; pronto! De lá pra cá nós fiquemos
dançando o toré. Que eu estava em casa, né? Aí mandaram
me chamar pra eu ir lá. Eu disse: Eu vou. Cada um com
zabumba, né? Muito índios presentes, tava tudo lá; e con-
tinuou a festa o dia todinho. E à tardezinha ele foi se embora
e nós paremos, cada um pra suas casas. Tinha muita gente,
era muita gente mesmo! Era daqui mesmo, de Cana Brava,
tava tudo lá. (Antônio Feliciano, “Seu” Brainha, Bairro São
Jerônimo, Pesqueira).
O entrevistado lembrou ainda que Cícero Cavalcanti prometeu
as terras de volta aos índios. Mas que a situação continuou como antes,
após a partida do sertanista:
Ele falou conversa bonita, viu? Ele disse: “Vocês podem dan-
çar toré aqui, que esse terreno vai ficar pra vocês aqui, e é de
vocês aqui”. A conversa do homem pra gente; nós: “Tá ven-
do fulano?! Tá vendo fulano?! O que ele tá dizendo?” Ficou
nada! Ficou cada qual nas suas coisinhas, né? Até hoje, né?
O homem foi se embora, foi se embora. (Antônio Feliciano,
“Seu” Brainha, Bairro São Jerônimo, Pesqueira)

Questionado se conheceu o sertanista, um dos entrevistados


mais velhos, “Seu” Gercino, falou do encontro com Cícero Cavalcanti, que

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 245


reuniu, por vários dias índios na casa de “Mané Bilinga”, em Gitó. Eram
momentos animados pela dança do Toré. Os índios vinham em casa e
depois retornavam a Gitó:
Conheci. Eu lembro dele, quando ele entrou aqui dentro, ele
era de Recife, né? Ele quando entrou aqui dentro, inventou
esse, um toré lá no Gitó, na casa do finado Mané Bilinga. É
o pai de Milton. Bem, nós acompanhava. Dissesse é do índio,
acompanhava, podia ser quem fosse. Ele vinha e passava
semanas e semanas, lá. Era todo dia. Todo dia, todo dia, não
tinha essa história de dizer dia sim, dia não. Era todo dia.
Nós ia e brincava o Toré lá. Quando tava com fome vinha
s’imbora passar prá casa. Dormia, comia, no outro dia ia pra
lá. E assim aturou um bocado de dias. (Gercino Balbino da
Silva, Aldeia Pedra d’Água)

“Seu” Gercino lembrou que o sertanista prometia o apoio oficial


aos índios, o que era ouvido com entusiasmo pelos presentes. O encontro
foi interrompido com a chegada da polícia, que levou Cavalcanti preso
para a cidade de Pesqueira:
Ele falava, ele só prometia que ia tomar conta da FunaI. E os
índios iam tomar conta do que era deles. Que prá isso ele
tinha força, e tinha conhecimento. E só prometia coisa boa,
né? E os índio é bicho besta, ficava tudo espiando. Eita! Batia
palma. Aplaudia e era aquela festa com ele. Lá vai, lá vai, lá
vai, quando foi um dia nós tava num Toré lá, era gente como
o diabo, tudo satisfeito, tudo alegre, quando deu fé a policia
bateu. Chegou é... “Quem é Cavalcante aqui?” Coisa e tal,
no meio de muitos né? Ai, um cabra disse: “É esse ali!” “Nós
vamos prá Pesqueira. Você vai prá Pesqueira. Vai ajeitar lá
suas coisas prá poder voltar”. Cara besta, com a cabeça... Ai
desceram... Foi, foi com ele. (Gercino Balbino da Silva, Aldeia
Pedra d’Água).

Diante da situação, os índios ficaram abatidos. Aguardaram três


dias para o retorno do sertanista, que não mais voltou: “O povo ficou tudo
desgostoso, sem culpa, tudo idiota. Ai ele desceu, foi pra lá, prá vir no

246 Edson Silva


outro dia. No mais era com três dias, até que ele resolvesse os problemas
dele. Um dia, resolveu por lá mesmo, abocou... Oxe, nunca mais veio cá!
Ninguém nunca mais viu ele!” (Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra
d’Água).
Ao ser perguntado sobre o motivo da prisão do sertanista, o
entrevistado se referiu à questão da disputa das terras com os fazendeiros.
O entrevistado falou ter visto Cavalcanti preso. Mas a prisão foi um faz
de conta. Uma vez solto, o sertanista não retornou à Serra do Ororubá:
Foi pro mode de ele ter uns terreno. Os fazendeiro não gos-
tavam, né? De jeito nenhum! Inté que levaram ele. A leis e
mandaram vê ele preso. Era preso. Porque eles não queria
dizer, ai levaram, penso que eu... Eu mermo passava na frente
do quartel, que era naquele quartel velho, passava e via ele
na grade. Lá. Ficou, mas ficou só pra embromar. Era embro-
mação. Passou parece que foi dois dia ou foi três. Foi solto,
nem cá não veio. (Idem)

O sertanista levou objetos que estava procurando. Objetos


que comprovavam a participação dos Xukuru na Guerra do Paraguai
e estavam com uma liderança indígena: “Oxe, ele fez foi levar o que ele
andava atrás. Era a bandeira dali de cima da Pedra dos Reis, a bandeira
aqui na... Pegou a espada, a coroa, a farda do finado Romão. Que era o
finado Romão era chefe dos índios aqui em cima. A farda, a espada, a
coroa, e a bandeira”. (Idem).
Um outro entrevistado recordou que, quando criança seu pai o
levou para o encontro com Cícero Cavalcanti, na casa de “Mané Bilinga”. O
entrevistado falou que testemunhou o momento, “bem cedinho”, quando
chegaram os policiais para prender o sertanista que ainda estava deitado.
Àquela hora da manhã já era grande o número de índios presentes e
muitos dançavam o Toré:
Eu era menino, faz uns 50 anos e pouco anos quando Ca-
valcanti veio e meu pai me levou para Gitó, que ele pa-
rou lá. Em uma casa de Mané Bilinga. Me lembro que um
dia que eu fui lá um delegado chegou lá, com seis homens,
seis soldados, bem cedinho. Ao amanhecer do dia chegou. O

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 247


homem ainda estava deitado mais o povão estava no terreiro
dançando o Toré, tomando café. O fogo aceso, um para aqui,
outro para acolá. Era gente! Muita gente! (Cassiano Dias de
Souza, Aldeia Cana Brava)

Diante da tão grande concentração dos índios, o entrevistado


comparou a mobilização provocada pelo sertanista como superior à
articulação realizada pelo Cacique “Xicão”. O sertanista entusiasmava
pelo seu discurso em apoio ao direito dos índios às terras. Na versão do
mesmo entrevistado, a polícia veio procurar Cícero Cavalcanti e depois
que ele foi embora, os índios continuaram a festança:
O trabalho dele foi mais forte do que o de Xicão! Ele indicava
como era, que a terra era da gente mesmo, era dos índios
mesmo. O trabalho muito bonito, mais de uma hora para
outra... ainda passou uns seis meses ou mais, depois... Chegou
o Delegado lá e disse que queria falar com ele. Ele estava lá
dentro. Foram dá o recado a ele, “Diga a ele que entre só. Não
entre com a polícia”. Ele entrou só. Entrou lá para dentro foi
conversar mais ele, não sei o quê porque ninguém ia. Ligeiro
o Delegado saiu foi s’imbora com a tropa e a gente fiquemos
na farra, lá na brincadeira. (Idem)

Nas memórias da infância, “Seu” Cassiano lembrou dos objetos


entregues a Cícero Cavalcanti, que exigiu também “documentos da terra”.
Depois da partida do sertanista, os índios, temerosos das perseguições
dos fazendeiros se desmobilizaram. A organização só foi retomada anos
mais tarde, com a liderança do Cacique Xicão:
Eu era pequeno, um menino. Me lembro de tudo! Eu ainda
vi a espada, vi farda, vi o quépe... Nesse tempo não era mais
Romão da Hora, já era Luis Romão o filho que estava com
ele. E ele entregou tudo a Cavalcanti que lhe exigiu. Ele exi-
giu os documentos da terra. Todos, ele levou! Tudo não ficou
nada! Quando foi s’imbora parou de vez. Os cabôcos gelaram
tudo, quem era doido falar, para entrar no couro?! Se falasse
era perseguido. Os cabôcos ficaram quietos... Depois que o
homem foi s’imbora o povo daqui gelaram. Não ia mais. Ver

248 Edson Silva


o quê lá? Se fosse era perseguido mesmo. Ficou todo mundo
quieto. Agora depois de Xicão foi que o povo se animaram
mais. Porque Xicão saiu domesticando, ajeitando e o povo
acompanhava bem. (Cassiano Dias de Souza, Aldeia Cana
Brava)

Ao ser indagado sobre a estada de Cícero Cavalcanti na Serra do


Ororubá, outro entrevistado relacionou o sertanista diretamente ao cargo
de Chefe de Posto do SPI. “Seu” Zé Cioba era uma criança, na época, mas
lembrou que Cavalcanti fugiu após reunir “os cabôcos” em Gitó, enganá-
los com promessas, recebidas entusiasticamente,
O primeiro chefe? Eu lembro. Ele chegou lá e começou a
organizar, mas errou, porque fugiu não deu satisfação a
nenhum índio. Ele fugiu. Eu tinha oito anos. Ele juntou os
cabôcos e fugiu. Ele juntou lá na casa de Milton. Juntou
para fazer uma sociedade, era um chefe, ia ajeitar a aldeia,
o negócio da aldeia. O povo aplaudia bem satisfeito,
contente. Ele metido a ser o chefe dos índios, bem satisfeito e
organizando a humanidade todinha. Acabar fugiu, enganou.
(José Gonçalves da Silva, Bairro Portal, Pesqueira/PE).

O filho do dono da casa que abrigou Cícero Cavalcanti e os


índios que iam ao seu encontro, na época ainda não era nascido, mas
escutou do seu pai sobre a estada do sertanista. “Seu” Milton ouviu que
Cavalcanti prometia a devolução das terras aos índios, que festejavam,
trazendo comida para partilha e dançando o Toré. Uma fotografia teria
registrado o encontro:
Na época que Cícero Cavalcanti esteve lá eu não era nascido,
porque ele veio pra lá no ano de 44, viu? E eu sou de 47, três
anos depois. Mas meu pai contava. Ele veio, e veio prá lá e
ele dizia aos índios que ia entregar as terras de volta aos
índios, né? Aí ficou lá na casa de meu pai. Lá tinha as festas
que ainda hoje aquele Zé de Ismael. Ele tem um retrato que
foi tirado lá da casa, quando esse retrato deveria ser meu,
nera? Aí, ele dizia que ia entregar as terras pra os índios. Ele

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 249


ficou lá junto com meu pai. E fazia festa. O pessoal era assim,
cada índio trazia uma coisa: uns trazia bode, outros traziam
galinhas, outros trazia farinha. Aí eles faziam festas, dançava
o toré, onde até tiraram esse retrato. (Milton Rodrigues
Cordeiro, Aldeia Gitó)

O pai de “Seu” Milton acompanhou o sertanista até a estação


ferroviária em Pesqueira e testemunhou que um dos fazendeiros entregou
a Cavalcanti uma maleta cheia de dinheiro, razão pela qual o sertanista
não mais voltou à Serra do Ororubá:
Pai disse que quando ele foi prá ir pra o Recife embora, aí
meu pai falou que ele ia. Meu pai acompanhou ele. Nesse
tempo não existia transporte, era só trem mesmo. Aí meu
pai foi com ele levá-lo na estação, e lá ele pegou o trem. Aí
meu pai disse quando viu, quando chegou um desse Bezerra,
parece que era Andrezinho Bezerra, sabe? Entregou a mal-
inha a ele, mesmo assim, sabe? Entregou a mala, entregou
a chave. Aí meu pai falou quando ele chegou abriu assim, e
só olhou, né? Aí meu pai disse que brechou. Aí viu que tava
cheia de dinheiro aquela malinha. E dessa época Cavalcanti
não apareceu mais. (Idem).

O sertanista escreveu a “Mané Bilinga”, convidando-o para ir


morar com ele, pois tinha dinheiro suficiente para viverem. A proposta
foi recusada, pois, para o pai de “Seu” Milton, o dinheiro ganho pelo
sertanista não fora de forma lícita:
Era o Cícero Cavalcanti. Aí mandou... Depois mandou uma
carta pra meu pai, que fosse morar com ele. Que o que ele
tinha arrumado dava pra eles viver. Aí meu pai não aceitou,
porque meu pai disse se ele tinha ficado rico, tinha esse din-
heiro mais não era... Não tinha sido ganho, sabe? Tinha sido
uma coisa assim que... quase um tipo de uma... um roubo por
exemplo, né? Porque ele não tinha ganhado esse dinheiro
com suor. Aí meu pai chegou e não foi não; aí desse tempo
não se encontrou mais ele não. (Milton Rodrigues Cordeiro,
Aldeia Gitó)

250 Edson Silva


Na casa de “Mané Bilinga” o sertanista prometera as terras aos
índios, que vinham de diferentes localidades na Serra do Ororubá. O
próprio pai de “Seu” Milton possuía um pequeno pedaço de terras:
E meu pai dizia que era pra entregar as terras pros índios.
Vinha índio de Cana Brava, vinha índio de Cimbres, vinha
índio dali de São José, Caípe, Brejinho, Tionante, todo esse
pessoal vinha pra lá. Meu pai tinha um pouquinho de terra,
pouquinho; é três hectares e meio, a terra do meu pai. (Idem)

Conforme a maioria dos depoimentos Xukuru, o sertanista Cícero


Cavalcanti, além de ter levado objetos e documentos comprobatórios da
participação dos indígenas na Guerra do Paraguai, aceitou ser subornado
por fazendeiros, que agiram em comum acordo com as autoridades de
Pesqueira, e assim encerraram a mobilização indígena provocada pela
presença do sertanista na Serra do Ororubá.
Atendendo a Nicácio Alves Feitosa e Vicente José Maceno, que
reclamaram a apropriação de documentos por Cícero Cavalcanti, no início
de 1950, a chefia da IR4 do SPI, sediada no Recife, solicitava ao auxiliar-
sertão, então trabalhando no Pará, a devolução dos documentos que
“injustificavelmente” estavam em seu poder. Tratava-se de um registro
de “baixa do ex-combatente” da Guerra do Paraguai do primeiro “índio”
reclamante, juntamente como o título de propriedade da Fazenda Pau-
Ferro, “do índio Xukuru” José Antônio, que era requerido por seu filho,
o segundo reclamante. Por meio da instauração de um processo, a IR4
apurou que os documentos foram levados pelo sertanista, na época em
que ele exercera “suas atividades na Serra de Cimbres em Pesqueira”. A
urgência na devolução se justificava pela demarcação de terras limítrofes à
citada Fazenda, e que o índio José Antonio e seus herdeiros necessitavam
comprovar judicialmente seus direitos107.
Os primeiros contatos com o SPI

107
Ofício nº 6 da IR4, em 23/01/1950, para a IR/SPI Belém-PA. Museu do Índio/Sedoc,
mic. 179, fotog. 0013.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 251


Na documentação do SPI disponível no Museu do Índio/RJ
encontram-se registros dos anos 1945-1954 sobre as relações entre os
índios na Serra do Ororubá e a IR4. São vários recibos de “auxílios”
e “gratificações”, a maioria em nome do “índio” Luis Romão e mais
alguns outros índios “Xucurus”. Os pagamentos se referem às passagens
ferroviárias de Recife a Pesqueira, a custos com alimentação: “jantares” e
“almoços”, “auxílio para casamento de duas filhas” de um índio Xukuru
e ainda “despesas miúdas” não especificadas, a exemplo do que foi
destinado em 1946 aos índios “Xukurus” Estanislau Caetano, Antonio
Caetano, Felix Caetano e João da Hora108. Esses índios serão personagens
importantes na mobilização Xukuru pelo reconhecimento oficial, no
início dos anos 1950, como será visto adiante.
Entre os fins de 1949 e os primeiros anos da década de 1950
se intensificaram as relações entre os Xukuru e o SPI. Do Recife, a IR4
despachou, em nome do índio Luiz Romão, caixas com enxadas para
serem destinadas aos índios “Xucurus”. Em uma relação elaborada
em 08/08/1949 aparecem os nomes completos de cada um dos que
receberam uma da ferramenta agrícola.
A distribuição das enxadas foi realizada por um funcionário
especial do SPI, o que podia caracterizar uma relação específica com um
grupo indígena ainda não reconhecido oficialmente. Identificamos, na
relação, vários sobrenomes de atuais famílias moradoras em diferentes
localidades na Serra do Ororubá, a exemplo dos Pereira de Araújo, família
da qual provém o cacicado Xukuru, habitantes na Aldeia Cana Brava.

“Relação de enxadas distribuídas com os índios Xucurus”


Leonel Carneiro de Morais – Inspetor Especial do SPI
Fabiano Paula Nascimento .................................................................... 1 enchada
Manoel Monteiro da Rocha ................................................................... "
Francisco Norato Soares ........................................................................... "
José Soares Norato ............................................................................................ "
Esmael Pereira de Araújo ........................................................................ "
Antero Pereira de Araújo .......................................................................... "

Relação de despesas miúdas nos meses de julho a dezembro de 1946. Museu do Índio/
108

Sedoc, mic. 179, fot. 0010.

252 Edson Silva


Manoel Pereira de Araújo ........................................................................ "
Irineu Pereira de Araújo ............................................................................. "
José Pereira de Araújo .................................................................................. "
José Elias Vasconcelos ................................................................................. "
João Candinho Deidei ................................................................................... "
Otaviano Neto ......................................................................................................... "
Isidoro Brito Jequitibá ................................................................................... 1 enchada
Miguel Saluz Rabário ..................................................................................... "
Joel Nilar ......................................................................................................................... "
José Alves Bizerra ............................................................................................... "
Cizernandi Romão Siqueira .................................................................. "
Francisco Rodrigues ........................................................................................ "
Joel Ignácio .................................................................................................................. "
Idalina Félix ................................................................................................................ "
Manoel Florêncio Brito ................................................................................ "
Luiz Romão Siqueira ..................................................................................... "
José Tambor .............................................................................................................. "
João Geronimo ....................................................................................................... "
Amaranto Romão Siqueira109

Em meados de 1951 um grupo de catorze índios teve a


alimentação custeada quando vieram ao Recife solicitar à IR4 sementes
para plantio na “aldeia na Vila de Cimbres”110. Na mesma época, o índio
Orestes Elói, “da tribo Xucuru”, que era doente mental, foi internado, a
pedido da IR4, no Hospital Pedro II111, também no Recife. Meses depois,
a Inspetoria Regional pagava o valor correspondente a 105 diárias do
internamento. 112 A presença de índios Xukuru, inclusive com suas
famílias na sede da IR4, no Recife, foi constante nos anos 1951 e 1952,
como comprovam vários recibos pagos pela compra de passagens de
trem. Dentre os citados, aparece o nome de Antero Pereira Araújo, que
viria a ser, mais tarde, Cacique Xukuru113.
109
Museu do Índio/Sedoc, microf. 181, fot. 304-306.
110
Recibo de CR$ 140,00, em 25/06/1951. Museu do Índio/Sedoc, mic. 182, fot.2028.
111
Ofício 55 da IR4, em 5/05/1951, para o Diretor do Hospital Pedro II. Museu do Índio/
Sedoc, mic. 182, fot.1997.
112
Recibo, em 31/12/1951. Museu do Índio/Sedoc, mic. 182, fot. 2066.
113
“Recibo de passagens Central-Recife/Pesqueira para índios Xukuru José Pereira, sua
mulher Minervina Pereira e um filho de 6 anos de idade, de regresso a sua aldeia na Vila

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 253


Para colaborar com a campanha de produção agrícola promovida
pela Secretaria Estadual de Agricultura e por ser época das chuvas,
o chefe da IR4 solicitou ao órgão estadual enxadas, foices, machados
e outras ferramentas agrícolas, além de sementes de milho, feijão e
algodão. O pedido seria entregue ao índio Luiz Romão de Siqueira, que,
em 1952, “chefia os remanescentes da tribo Xucuru que habitam na Vila
de Cimbres e adjacências”.114. O Inspetor Regional do SPI compreendia
os “remanescentes” Xucuru como trabalhadores a serem incorporados
no processo da produção agrícola rural.
A IR4 também prestou assistência em questões mais específicas,
a exemplo do pagamento das passagens de Luiz Romão de Siqueira,
que veio ao Recife apresentar ao Juiz de Direito a sua filha, que fora
deflorada.115 Não foram localizadas mais informações sobre esse caso.
Em 1953, a IR4 enviou um inspetor do SPI para acompanhar Jardelino
Pereira de Araújo, futuro cacique Xukuru, para levar gêneros alimentícios
destinados aos índios “flagelados“ da seca na Serra do Ororubá e na
Serra do Umã, onde habitavam os Aticum.116
A situação de fome provocada pela seca prolongada que assolava
o Agreste e o Sertão nordestino motivou, em 1953, a vinda de vinte índios
“Xucuru” à sede da IR4, no Recife, que distribuiu apenas ferramentas
agrícolas para os flagelados, isso porque a Inspetoria Regional não
dispunha de recursos financeiros e apelava para a Diretoria do SPI no
Rio de Janeiro.117 Podemos ver a iniciativa da IR4 naquele momento como
questionável, pois na falta de chuvas que garantissem o plantio e sem
comida de que adiantavam as ferramentas? Uma ação efetiva ocorreu
de Cimbres”. Em 09/06/1951. Museu do Índio, mic. 187, fot. 1923; “Recibo de uma pas-
sagem Recife/Pesqueira para o índio Antero Pereira de Araújo que viajou de regresso ao
seu aldeiamento”. Em 7/12/1951. Museu do Índio/Sedoc, mic. 187, fot. 1943.
114
Ofício de Raimundo Dantas Carneiro, Chefe da IR4, em 31/03/1952, para o Secretário
de Agricultura de Pernambuco. Museu do Índio/Sedoc, mic. 182, fot. 2198.
115
“Recibo de 02 passagens 1ª classe para o índio Luiz Romão de Siqueira e sua filha”.
Em 13/09/1952. Museu do Índio/SEOC, mic. 182, fot. 2091.
116
Telegramas da IR4, em 3/3/1953, para o SPI/RJ. Museu do Índio/Sedoc, mic. 182, fot.
114.
117
Telegrama da IR4, em 18/2/1953, para o SPI/RJ. Museu do Índio/Sedoc, mic. 182,
fot. 117.

254 Edson Silva


somente meses depois, possivelmente já na estação das chuvas, quando
foram enviados pela IR4, para a Serra do Ororubá, quinze sacos de
sementes de feijão, uma doação da Secretaria Estadual de Agricultura.118
Uma breve análise das relações entre o SPI e os índios Xukuru,
nesse período, demonstra que, apesar de intensas, em sua grande maioria
se destinavam ao atendimento de situações assistenciais individuais.
Quando foi necessária uma ação mais coletiva, a IR apelou para a ajuda
de terceiros, como a Secretaria Estadual de Agricultura, ou não conseguiu
responder à demanda indígena, a exemplo do socorro no período da seca,
por falta de recursos. As sucessivas solicitações de recursos a Diretoria
do SPI/RJ, para atender o Posto Indígena Xukuru, foram constantemente
registradas na documentação da Inspetoria Regional relacionada àquele
Posto.
Por outro lado, observam-se as contínuas iniciativas Xukuru
de procurar a IR4, no Recife, para solucionar desde questões pessoais,
algumas citadas anteriormente, como os pedidos de recursos para custear
casamentos, a internação de doentes, o apoio no caso de defloramento
de uma índia, até as necessidades coletivas, como ferramentas agrícolas
ou os pedidos de socorro devido à situação da seca. Em todos esses
casos, os Xukuru buscaram soluções para dificuldades e problemas que
não podiam resolver, devido à difícil situação em que viviam. O apoio
oficial e formal do SPI possibilitaria melhores condições de vida. Todavia,
isso não ocorreu, como está registrado na documentação e também nas
memórias orais indígenas.
A calamidade provocada pela seca possivelmente foi a motivação
mais emergente para o chefe da IR4 enviar, anexo a um ofício, em 1953,
à Diretoria do SPI/RJ, “um memorial sobre a fundação do Posto Xukuru”.
O representante regional da agência indigenista oficial conseguiu o
apoio do clero católico romano em Pesqueira, inclusive do Pe. Olímpio
Torres, citado como conhecedor privilegiado das necessidades dos
“pobres descendentes dos Xucuru da Serra do Ororubá”, e assinou o

118
Telegrama da IR4, em 16/7/1953, para o SPI/RJ. Museu do Índio/Sedoc, mic. 182,
fot. 116.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 255


documento para a criação do Posto. O teor do referido ofício expressa
uma visão vitimizadora sobre os índios, tidos como “espoliados e
famintos, sem proteção e já quase sem terra” e ainda chamados “infelizes
habitantes dos territórios encravados na histórica Vila de Cimbres e
nas circunvizinhanças de Pesqueira”119. Era solicitada, a exemplo do
ocorrido em Palmeira dos Índios (AL), a aprovação para a fundação de
um posto do SPI entre os Xukuru, com a transferência de um funcionário
então trabalhando no Posto Aticum, para o novo posto a ser instalado.
Inicialmente seria admitida uma professora paga com a verba “Auxílio
aos Índios” ou “Renda Indígena”, e depois um Auxiliar de Sertão e um
Aprendiz Índio.
Foi também anexado ao ofício, um documento com informações
retiradas de antigos livros do Arquivo Público de Pernambuco,
comprovando a existência dos “índios Xucuru” e a “imprescindível
necessidade da criação de um Posto”. Era proposta “Cana Braba” como
lugar para a sua instalação. Esse local foi escolhido por ser “estratégico”,
uma vez que nele ainda moravam índios em suas terras, cercadas por
“proprietários gananciosos, donos atuais das terras que já pertenceram por
todos os títulos aos índios Xucuru”.120 Assim, o Chefe da IR4 reconhecia
as pressões dos fazendeiros sobre os índios e que o SPI poderia favorecer
os Xukuru frente aos conflitos.
No ano seguinte, o Chefe da IR4, Raimundo Dantas Carneiro,
solicitava por telegrama à Diretoria do SPI/RJ, “dez mil cruzeiros” para as
despesas iniciais com o “Posto Xucuru”.121 Ao mesmo tempo, em outro
telegrama, Carneiro pedia autorização para viajar à Aldeia Canabrava,
onde providenciaria as instalações do referido Posto.122 Nos primeiros
meses de 1954, a criação do Posto Xukuru ainda era um assunto tratado
de forma sigilosa, pois ainda não existiam verbas disponíveis para a

119
Ofício de Raimundo Dantas Carneiro, Chefe da IR4/SPI, em 23/09/1953, para Direto-
ria do SPI/RJ. Museu do Índio/Sedoc, mic. 182, fot. 150.
120
Idem.
121
Telegrama de Raimundo Dantas Carneiro, Chefe da IR4, em 26/03/1954, para Direto-
ria do SPI/RJ. Museu do Índio/Sedoc, mic. 182, fot. 186.
122
Telegrama de Raimundo Dantas Carneiro, Chefe da IR4, em 26/03/1954, para Direto-
ria do SPI/RJ. Museu do Índio/Sedoc, mic. 182, fot. 187.

256 Edson Silva


instalação. Embora fosse informada a transferência do auxiliar de sertão
Vital de Oliveira da Silva Melo do posto indígena em Tacaratu-PE, entre
os Pankararu, para o novo posto, a ser criado na Serra do Ororubá. O
funcionário transferido receberia um aumento de salário e acumularia a
função de auxiliar de ensino. Informava ainda o Chefe da IR4 que o novo
posto seria instalado nas proximidades de Pesqueira123. Diferentemente
do que fora planejado e possivelmente comunicado aos Xukuru, a
definição da nova localização para o Posto, como será visto, foi motivo
para um contínuo conflito entre os índios.
Dias depois, ainda no mesmo mês, era tratada a indicação
de outro funcionário, o Agente José Brasileiro da Silva, um antigo e
experiente servidor do SPI, entre as providências preliminares para a
instalação do Posto Xukuru.124 Em agosto daquele mesmo ano, a chefia
da IR4 comunicava ao SPI/RJ que o orçamento destinado à Inspetoria
Regional foi insuficiente para a construção da sede e três casas do Posto
Xukuru. Por esse motivo, eram solicitados mais recursos para a execução
do planejado para aquele ano.125
O Pe. Olímpio Torres foi escolhido pela Chefia da IR4 para
acompanhar a instalação do Posto Xukuru, que estava sendo construído
no “aldeiamento São José”, região da Serra do Ororubá mais próxima da
área urbana de Pesqueira. O funcionário Vital Pereira deveria procurar
o religioso, no Seminário de Pesqueira para receber orientações sobre a
residência em uma das três casas construídas no Posto126Ao sacerdote
foi enviado posteriormente dinheiro destinado a Vital. Por caminhão foi
remetido um caixão com material escolar.127. Apenas um ano depois da
123
Memorando, de Raimundo Dantas Carneiro, Chefe da IR4, em 5/04/1954 para Corio-
lano Mendonça, Chefe de Posto em Tacaratu/PE. Museu do Índio/Sedoc, mic. 181, fot.
703/704.
124
Ofício de Raimundo Dantas Carneiro, Chefe da IR4, em 24/04/1954, para a Diretoria
do SPI/RJ. Museu do Índio/Sedoc, mic. 182, fot. 215.
125
Ofício de Raimundo Dantas Carneiro, Chefe da IR4, em 07/08/1954, para a Diretoria
do SPI/RJ. Museu do Índio/Sedoc, mic. 182, fot. 226.
126
Telegrama de Raimundo Dantas Carneiro, em 20/11/1954, para Coriolano Mendonça.
Museu do Índio/Sedoc, mic. 181, fot. 711.
127
Memorando de Raimundo Dantas Carneiro, em 27/01/1955, para o Auxiliar de Ensino

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 257


instalação do Posto Xukuru, Raimundo Carneiro determinava a Vital que
evitasse a ida de índios à sede da IR4, pois esta se encontrava totalmente
sem recursos.128
O Chefe da IR4 informava, em 1955, à Diretoria do SPI/RJ, a
existência de 800 hectares de terras em Pedra D’Água, cedidos pela
Prefeitura de Pesqueira ao Governo Federal, que mantinha um posto de
fomento agrícola no local. O Inspetor Regional do SPI, diante da falta de
terras, propunha a aquisição da área, para patrimônio do Posto recém-
fundado. Para Raimundo Carneiro, uma ação judicial objetivando a
devolução das terras, comprovadas documentalmente como originalmente
pertencentes aos Xukuru, além de dispendiosa, seria demorada e com
resultados duvidosos; caberia ao SPI um acordo com o outro órgão
federal, para “localizar os índios mais pobres que vivem espalhados, por
diversos lugares adjacentes e sem terras para trabalhar”129.
A IR4 evitava, portanto, um confronto com os fazendeiros,
tradicionais esbulhadores das terras do antigo aldeamento de Cimbres.
A cessão de terras em domínio federal para os índios, como ocorrera no
Posto Pe. Alfredo Dâmaso, em Porto Real do Colégio, onde moravam os
Kariri, era uma solução pacífica ainda que contemplasse as necessidades
do considerável contingente de Xukuru sem terras na Serra do Ororubá.
A partir dos anos 1940 e durante a década de 1950, o SPI ampliou
sua atuação no Nordeste, com a criação de novos postos, atendendo uma
demanda de vários grupos étnicos reivindicando o reconhecimento oficial
e terras. Os agentes da IR4, para justificar as instalações dos Postos do SPI,
realizavam pesquisas documentais em arquivos e bibliotecas, objetivando
comprovar que os grupos indígenas ocupavam historicamente terras de
antigos aldeamentos. Na lógica do SPI, o órgão, além de se apresentar
como redentor dos últimos remanescentes indígenas, estes eram vistos
como vitimizados e indefesos precisando ser protegidos e assistidos

do SPI Vital Pereira da Silva Melo. Museu do Índio/Sedoc, mic. 181, fot. 308.
128
Memorando de Raimundo Dantas Carneiro, em 16/02/1955, para o Auxiliar de Ensino
do SPI Vital Pereira da Silva Melo. Museu do Índio/Sedoc, mic. 181, fot. 309.
129
Ofício de Raimundo Dantas Carneiro, em 17/02/1955, para Diretoria SPI/RJ. Museu
do Índio/Sedoc, mic. 182, fot. 237.

258 Edson Silva


(PERES, 1992, p.108-109), para tornar possível uma convivência pacífica
com os civilizados.

A conquista do Posto: a viagem a pé ao Rio de Janeiro


para falar com o General Rondon
Em seus relatos das memórias orais, os Xukuru do Ororubá
falam que a instalação do Posto do SPI resultou da mobilização indígena.
Diversas narrativas contam a viagem dos irmãos Nascimento ao Rio de
Janeiro, para falar com o Marechal Rondon e com o Presidente Vargas. A
procura dessas autoridades foi motivada pela busca do direito às pensões
para familiares de ex-combatentes da Guerra do Paraguai. Portanto, os
Xukuru foram procurar Rondon e Vargas na condição de índios que
tiveram antepassados recrutados para aquele conflito na Região do Prata.
Moradora na Aldeia Brejinho, uma das localidades, na Serra do
Ororubá, de onde saíram combatentes para a Guerra do Paraguai, Dona
Lica relatou o ouvido de seus antepassados sobre a viagem que os irmãos
Nascimento fizeram a pé, ao Rio de Janeiro. A entrevistada confundiu o
Rio, então capital federal, onde estava sediado o SPI, com Brasília, onde
funciona a administração central da Funai, a atual agência indigenista
oficial:
Eu vou contar o que já os avós de Romão da Hora, Félix Nas-
cimento, que era tudo família da gente, Stende, Joãozinho...
Eles não foram para a Guerra. Foram os bisavôs deles que
foram para essa Guerra. Agora essa área que não tinha nada
de benefício para o índio, eles foram adquirir em Brasília. Eu
me lembro como hoje, foi Romão da Hora, Félix Nascimento,
Stendi e Antonio Nascimento. Eles foram, passaram muito
tempo. Foram de pés. Andaram de pés. (Maria Alves Feitosa
de Araújo, Aldeia Brejinho)
No relato do que ouviu, a entrevistada citou as matas da
Amazônia, embora se tratando de uma trajetória do Nordeste para o
Sudeste, no início da década de 1950, compreenda-se possivelmente se
tratar de trechos da Mata Atlântica. A viagem foi contada como uma

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 259


grande aventura, uma saga, na qual os viajantes, sem comida, recorreram
ao que encontraram para se alimentar: caça, répteis e frutas silvestres,
correndo risco de envenenamento. Durante seis meses, enfrentaram
muitos perigos. A viagem era contada para muitos ouvintes, em Brejinho.
Os irmãos Nascimento foram ao Rio de Janeiro para solicitar a instalação
do Posto, a construção de uma igreja e uma escola:
Dormiram muitas noites nas matas da Amazônia. Eles falan-
do, nós ouvindo. Dormiram muito com fome, o que eles comi-
am no caminho era, matava cobra, comeram cobra, comeram
calango, passaram, comiam fruta do mato, quase que morria!
Envenenado dos frutos que eles comiam que não deveria
comer. Porque não tem frutas que mata? Que cura e mata!
Para dormir de noite nas matas da Amazônia. Eu ouvi Mané
Gamela contando essas histórias muitas vezes em Brejinho.
Disse que de noite, as jibóias, as onças esturravam. Eles em
cima dos olhos do pau para conseguir descobrir, para vir
o Posto, para vir a igreja, para vir o grupo. E eles foram e
vieram. Não passaram seis meses, eu me lembro como hoje.
(Maria Alves Feitosa de Araújo, Aldeia Brejinho).

A entrevistada estudava na escola em funcionamento na casa do


líder de Brejinho e foi naquele ambiente que ela ouviu os relatos sobre
a viagem dos irmãos Nascimento ao Rio de Janeiro, contada como uma
grande saga, enfatizando as dificuldades e o fato dos viajantes terem ido
a pé, de navio, de carona:
Eu estudava, a escola era na casa de Romão da Hora. Eles
foram. Para eles chegar, eles foram de pé, com fome para
Brasília. A água que eles bebia, que eles chegou aquela
turmazinha de índios descalços, nus, só tinha grude! Quando
eles foram para Brasília, eles a água que eles bebiam no
caminho, era a água de macambira. No caminho não, nas
matas. Eles iam por dentro das matas! Enfrentaram navios,
enfrentaram de pé, enfrentaram de carro dando carona. Mas
eles sofreram mais de pés, nas matas. (Maria Alves Feitosa
de Araújo, Aldeia Brejinho)

260 Edson Silva


Ao ser reconstruída, a memória toma emprestado dados mais
recentes (Halbwachs, 2004, p.75-76); nesse sentido, lembrando e
relatando a viagem dos irmãos Nascimento, a entrevistada se referiu a
Brasília, ao invés do Rio de Janeiro, como a capital federal, onde, na
época, estava a sede do SPI. A entrevistada estabeleceu ainda relações
com o período da Guerra do Paraguai, ao dizer “no palácio da princesa”,
referindo-se à Princesa Isabel. Em outros relatos, os Xukuru afirmam que
os Nascimento estiveram no Palácio do Catete com o Presidente Getúlio
Vargas.
No encontro com as autoridades governamentais, os irmãos
Nascimento relataram a história ouvida dos seus antepassados sobre a
participação na Guerra do Paraguai, tendo assim o reconhecimento de
seus direitos às terras do antigo aldeamento. Foram mandados de volta
trazendo, como conquista, a instalação de uma igreja e de uma escola e o
Posto do SPI. Nessa época, Romão da Hora era o líder Xukuru:
Aí quando chegaram em Brasília, que chegaram no centro,
no palácio da princesa, eles contaram a história, contaram
todo o detalhe da história, dos avós, dos tataravós do outro
tempo que ele não conhecia mais. Aí quando chegaram lá
não faltaram nada para eles! Mandaram trazer eles de volta,
em casa. Aí eles trouxeram, que deram em Brasília a princesa.
Eles deram, a princesa deu o papel da terra, porque não foi
eles que venceram a Guerra do Paraguai, foi os bisavós e
avós deles. Que eles venceram, eles contaram os detalhes
da história todinha. Aí eles deram para eles, para o Romão
da Hora que era mais sabido, que sabia ler, deu a batina,
deram o cacete. Eles trouxeram, vieram trazer na casa de
Romão da Hora, deram o livro para celebrar Missa. Que eles
foram pedir! Que nada disso existia. As crianças estudava
nas casas. Então nisso o engenheiro, eles fizeram o 1º grupo,
fizeram em São José. Foi pedido de Romão da Hora, Stendi e
Félix e que eram meus tios, o pai daquele Zezinho. Aí vieram,
fizeram aquele Posto. (Maria Alves Feitosa de Araújo, Aldeia
Brejinho)

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 261


Um outro entrevistado ainda falou sobre a viagem de três índios
para o Rio de Janeiro. “Seu” Gercino também enfatizou que eles foram
de pés. A viagem ocorreu em razão das pressões dos fazendeiros, e o
percurso foi longo e por meses, quando os viajantes sem nenhum dinheiro
procuravam sobreviver arranjando trabalho por onde passavam. Chegando
ao Rio de Janeiro, foram recebidos pela autoridade oficial e, depois de
explicarem o motivo da viagem foram atendidos nas reivindicações para
a construção de uma escola e a instalação do Posto do SPI:
Antonio parece que José. Sei que foi três. Foram pro Rio de
Janeiro. Foram a pés. Foi quando começou aqui, foi os fa-
zendeiros apertar com nós aqui em cima, foi nessa época
que eles foram. Três, tomaram destino e foram. De a pés.
Ai é que eu digo que é rojão, e coragem! Foram andando,
sem dinheiro, sem nada, aonde achavam um servicinho tra-
baiava, ganhava aquele dinheirinho, fazia aquela coisinha
de ir comendo e furaram um... Eu até ouvi dizer de quantos
meses foi que eles gastaram daqui pra lá, porque eu não tô
lembrado... Ai, chegaram no Rio de Janeiro, se representaram
ai, o grandão de lá, o governador, passou a mão por cima.
Ai eles foram espricaram a que tinha ido, o que é que iam
atrás, e arrumar pra dentro da aldeia, não sei o que, coisa e
tal, aí deram cobertura. Quando eles vieram, eles trouxeram
a escritura desse grupo que tem hoje, na aldeia. Esses Posto,
o primeiro Posto que eles levantaram aqui foi aquele ali de
São José... (Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra d’ Água).

Entre os Xukuru encontramos outros relatos sobre essa viagem


ao Rio de Janeiro. Questionado sobre o que ouviu falar a respeito dos
irmãos Nascimento, o Pajé Xukuru afirmou,
Dos Nascimentos foi quando, no tempo de Getúlio Vargas, aí
eles foram para o Rio de Janeiro, pedir, pedir proteção nessa
época. Foi uns dez, não tenho bem lembranças, foram a pé.
Zé de Paulo conta, conta bem, quantos foram e quantos de-
moraram. Zé de Paulo é da família deles, mora em Pedra
D’Água. Ele morava em Brejinho, mas agora tá morando em
Pedra D’Água. Ele conta bem. (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu”

262 Edson Silva


Zequinha, Bairro Portal, Pesqueira/PE).

Além de lembrar os nomes dos índios xukurus que viajaram ao


Rio de Janeiro, um morador na Aldeia Caípe, “Seu” Malaquias, também
enfatizou que eles foram de pés. A razão da viagem foi a situação das
terras em que viviam os índios. A Bandeira do Brasil hasteada em
Brejinho, uma possível referência à escola, representava a conquista do
reconhecimento oficial:
Antonio Nascimento, Félix Nascimento, Stênio Nascimento.
Eu vou dizer uma coisa, foram mais de pés! Passaram três
anos lá rodando! Veio uma bandeira, botaram na Aldeia
e eles entrara, quatro: Stende, Félix e Antônio... Eles foram
de pés para o Rio de Janeiro, por essa questão da Serra
do Ororubá, quando botaram a bandeira ao no Brejinho.
(Malaquias Figueira Ramos, Aldeia Caípe).

A passagem pelo Rio São Francisco foi realizada de barca, para


continuarem a viagem novamente a pé. Mas a volta, providenciada pelo
Presidente, foi de navio até o Recife e de lá até Pesqueira o percurso foi
outra vez a pé:
Bem certo eu sei dos três. Quando chegaram no rio de Paulo
Afonso, atravessaram na barca e entraram de pé. Eles pas-
saram três anos rodando nesse meio de mundo de pé! Ti-
rando a barca do Rio de São Francisco eles não pegaram
outro transporte. Agora para vir, o Presidente botou eles no
navio, eles vieram de navio. Para vir! Mas para ir, foi de pé.
Vieram de navio até Recife e para Pesqueira de pé também.
(Malaquias Figueira Ramos, Aldeia Caípe)

Questionado se conhecia a história narrada sobre a viagem dos


irmãos Nascimento, um outro entrevistado lembrou que um deles recebia
uma pensão do Exército. O entrevistado também enfatizou o percurso
feito a pés pelos irmãos, até o Rio de Janeiro: “Os Nascimento tudo ali.
Brejinho é vizinho de Gitó. Eu conheço tudo lá. Antonio Nascimento
recebia um troquinho do Exército. Ouvi que os índios foram a pé para
o Rio de Janeiro. Foram! Foram a pés! Ouvi falar. Eu sei que viajou uns

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 263


índios para o Rio de Janeiro, foram a pés!”. (José Gonçalves da Silva, Zé
Cioba, Bairro Porta/Pesqueira)
O percurso dos índios Xukuru para o Rio de Janeiro possivelmente
foi o mesmo roteiro de muitos retirantes da seca no Nordeste que se
dirigiam ao Sudeste, como descreveu Jorge Amado no romance Seara
vermelha, publicado em 1946. Os viajantes iam de pés até Petrolina/
Juazeiro, na divisa entre Pernambuco e Bahia, seguindo nas grandes
barcaças que desciam pelo Rio São Francisco para Pirapora-MG. De lá,
os passageiros se deslocavam até São Paulo, ou, no caso dos xukurus
para a Capital Federal.
A presença dos irmãos Caetano Nascimento no Rio de Janeiro
foi registrada na documentação do SPI. Estiveram na Capital Federal
Estanislau Caetano, Antonio Caetano e Félix Caetano, no início de 1954.
E voltaram para o Recife com a recomendação de serem atendidos pela
IR4 em suas reivindicações de recursos. Respondendo a uma consulta da
Diretoria do SPI no Rio de Janeiro, o Diretor da IR4 confirmava a situação
de perseguições vivenciada pelos índios Xukuru e as pressões por parte
dos fazendeiros. Lembrava o Diretor da IR4 um documento enviado
no ano anterior, propondo a criação de um Posto do SPI na Serra do
Ororubá.130 Como será visto o Posto foi instalado em fins de 1954 e a sua
fundação ocorreu, em grande parte, em razão da mobilização dos índios.
Para os indígenas no Nordeste, o reconhecimento oficial implicava
na conquista da instalação de um Posto do SPI, significando a garantia
da presença, assistência e possibilidades de proteção governamental
frente à situação de permanente conflito e desmandos praticados
pelos fazendeiros e pelas oligarquias políticas locais contra os grupos
indígenas. Essa mobilização pelo reconhecimento contou com o apoio
de mediadores entre os indígenas e o Estado, a exemplo do Pe. Alfredo
Dâmaso que, no início dos anos 1920, intermediou a instalação de um
Posto do SPI em Águas Belas, onde habitavam os Carijós/Fulni-ô.
O religioso esteve por várias vezes no Rio de Janeiro, denunciando

130
Ofício de Raimundo Dantas Carneiro, Diretor da IR4, em 04/02/1954, para o Diretor
do SPI/RJ. Museu do Índio/Sedoc, mic. 182, fot. 209.

264 Edson Silva


a situação em que viviam os índios e buscando apoio para o grupo
indígena em Águas Belas. Em 02/04/1931 ele escreveu uma indignada
carta-resposta a um jornal carioca, em defesa do SPI. A longa carta,
escrita em Campos de Anadia (AL), onde então Pe. Alfredo era vigário,
foi publicada com o título “Pelos índios. O Serviço de Protecção aos
Índios e a Tribu dos Carijós no sertão de Pernambuco”, em O Jornal de
28/04/1931, e no Jornal do Commercio, de 30/04/1931, ambos do Rio
de Janeiro. O religioso reagia a um artigo acusatório, publicado em forma
de editorial, em 03/03/1931, no jornal A Noite, que afirmava ocorrerem
escravidão e maus tratos contra os índios nos Postos do SPI.
Em sua defesa do órgão indigenista oficial, Pe. Alfredo lembrou
que, em 1921, estivera no Rio de Janeiro, como “porta-voz das queixas
e dos gemidos de 500 infelizes patrícios – os Índios Carijós”, então
perseguidos, tendo suas “míseras choças cobertas de sapê e casca de
árvores” incendiadas e eram assassinados pelos invasores de suas
terras. O religioso afirmava que fora ao Rio procurar o órgão indigenista
oficial, onde contava ter sido bem recebido, resultando dessa viagem a
instalação de um Posto do SPI, funcionando desde 1924, no Aldeamento
do Ipanema, em Águas Belas. Segundo o sacerdote, com o Posto, “as
terras voltaram ao domínio da triba!”, cessaram as perseguições e, além
disso novas “casinhas bem acabadas” foram construídas bem como uma
escola e um hospital.
Os Dâmaso eram uma família tradicional na Zona da Mata de
Alagoas, proprietários de uma fazenda (engenho) de cana-de-açúcar
chamada “Cariri”, localizada em uma região para onde se deslocavam
contingentes de índios moradores nos municípios próximos de Palmeira
dos Índios (AL) e Águas Belas (PE), em busca do trabalho sazonal na
colheita da cana. O conhecimento dessa situação possivelmente levou
o Padre Alfredo a se portar como um defensor e protetor dos índios,
particularmente dos moradores em Águas Belas, frente aos desmandos
dos latifundiários da localidade. O sacerdote também foi muito próximo
dos índios moradores em Palmeira dos Índios. Durante muitos anos foi
pároco em Bom Conselho, cidade pernambucana situada na fronteira
entre o Agreste pernambucano e a Zona da Mata alagoana. A proximidade

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 265


geográfica do município favorecia sua constante presença em Águas
Belas, onde também foi pároco.
O significado da atuação de Pe. Alfredo em defesa dos Fulni-ô pode
ser compreendido, como registrou a cronista Guiomar Alcides de Castro,
com a presença dos “índios de Águas Belas, num grupo de 72 pessoas”
por ocasião do seu sepultamento, em Bom Conselho. Ao descrever as
cenas do sepultamento do Padre Alfredo Dâmaso, a cronista observou
que: “O Pajé, segundo o ritual da tribo, na língua tupi-guarani, diante do
esquife, acompanhado pelos irmãos de ocara, fez invocações, animadas
por gesticulações típicas. Quiseram até carregar o corpo do estimado
protetor, a fim de enterrá-lo na própria aldeia”131. O corpo foi sepultado
em Bom Conselho, contrariando o desejo do morto, que escrevera em
seu testamento, enquanto esteve hospitalizado no Recife: “se os índios
reclamarem seria na capelinha da aldeia”132, em uma referência à igreja
dedicada a Nossa Sra. da Conceição, construída com a ajuda dos índios,
no aldeamento Fulni-ô.
A mobilização dos Fulni-ô e do Padre Alfredo provocou, em um
primeiro momento, a partir de meados dos anos 1920, a articulação de
uma rede de emergências para o reconhecimento, pelo SPI, de vários
grupos indígenas, em Pernambuco e Alagoas. Num segundo momento,
“os próprios grupos recém reconhecidos passam a atuar entre o órgão
e os futuros grupos, em novas emergências” (ARRUTI, 1996, p.47) que
ocorrerão até meados dos anos 1950.
Com a presença de Pe. Alfredo entre os Fulni-ô, Águas Belas se
tornou um dos “pontos de circuitos de trocas rituais” entre vários indígenas.
A cidade de Bom Conselho, onde o religioso residia, ganhou também
importância, por ser o local procurado pelos grupos indígenas em busca
do apoio do sacerdote, se tornando assim um ponto de comunicação e
circulação na rede de relações e de rituais. (ARRUTI, 1996, p.51).
As relações entre os Xukuru e o Pe. Alfredo Dâmaso eram
de longa data. Um dos entrevistados lembrou da viagem que fez para
131
O Monitor. Garanhuns, 26/07/1964. p.1
132
A Carta Testamento do Padre Alfredo Pinto Dâmaso Pároco de Bom Conselho – Dio-
cese de Garanhuns. Recife, 30/05/1964, datilog.

266 Edson Silva


uma “representação”, em “Papacaça”, nome original de Bom Conselho.
Atendendo um convite do Padre Alfredo, o Cacique Jardelino Pereira
levou o entrevistado, juntamente com outros índios: “Nesse tempo, os
índios daqui o pai velho, ele tirava os principal, ai eles, escolheram,
escolheram, escolheram, quando foi na época nós fomos, por caminhão,
os sessenta índios”. O entrevistado lembrou ainda das vindas de Pe.
Alfredo à Serra do Ororubá, da sua amizade com os índios em Cana
Brava (“Cana Braba”), onde o Padre celebrava missas anualmente, no dia
19 de março, dedicado a São José: “Oxe! Me lembro, na casa do finado
Antonio Elói. Lá em Cana Braba. Na casa do finado Zé Paulino, em Cana
Braba. Todo ano ele vinha, vinha e celebrava missa lá no Antonio Eloi e
na casa do finado Zé Paulino”. (Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra
D’Água). Os Xukuru e os Fulni-ô também mantiveram relações bem
próximas, o que pode ser compreendido historicamente.
A partir desse quadro de referências, é possível compreender a
presença de índios fulni-ôs entre os Xukuru, as relações entre os dois
grupos e a importância delas para as mobilizações pelo reconhecimento
dos Xukuru pelo Estado, desde meados dos anos 1940. Embora as
relações entre esses dois grupos também tenham sido tensas, como
revelou anos mais tarde, em uma entrevista, o Cacique Xukuru Jardelino,
“Os chucurus brigavam muito com os carnijós (fulni-ôs) que queriam
subjulgar os chucurus” (grifamos). Essa afirmação encontra-se em uma
entrevista concedida no Recife, em 1962, ao antropólogo Clóvis Antunes,
publicada com o título “Testemunho de um Chucuru de Urorubá-
Cimbres”, (ANTUNES, 1973, p.39). Ainda na mesma entrevista, o Cacique
Jardelino afirmava: “Os chucurus da Serra de Urubá ou Urorubá de
Pesqueira se comunicavam muito com os índios de Palmeira e o mesmo
faziam os de Palmeira. É a mesma tribo com o mesmo toré, embora os
palmeirenses tenham o seu ‘particular’”.
São ilustrativos dois exemplos da presença de indivíduos fulni-
ôs entre os Xukuru. No primeiro, Elvira Rodrigues de Mendonça, apesar
de não possuir maiores informações, lembrou dos seus avós, vindos de
Águas Belas:

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 267


Era eles eram de lá. Mas vieram de lá, acho que casaram
aqui e aqui ficaram. Meu avô mesmo nunca deu notícia de
família dele. Um tempo minha mãe falou que apareceu uma
irmã dele a procura dele e ele num deu mais notícia. Num
sei nome de meu avô, dos pais dele, num sei. Meu avô, pai
Firmino esse nunca deu notícia de nada lá do mundo dele.
(Elvira Rodrigues de Mendonça, Aldeia Gitó)133.

No outro exemplo: em uma conversa informal, em 2006, “Seu”


Zequinha, o Pajé Xukuru, afirmou que os Romão da Hora também
eram originários de Águas Belas. Alguns deles são figuras destacadas na
história contemporânea Xukuru, a exemplo de José Romão e Luiz Romão
da Hora, citados no relatório elaborado pelo sertanista do SPI Cícero
Cavalcanti, em 1944, como “chefes de cultos”, reprimidos pela Polícia
de Pesqueira. Na época, o índio Romão da Hora Tatarame tinha em seu
poder “uma espada com bainha metálica, um quepe, uma banda de duas
dragonas”, artefatos que recebera de um ex-combatente da Guerra do
Paraguai e que foram levados pelo sertanista para a Diretoria do SPI,
no Rio de Janeiro134. A importância desse fato e desses objetos para a
história Xukuru foi discutida anteriormente.
Com uma Lei de 1948, o Presidente Vargas reconheceu a
ampliação do direito a pensões para filhas de militares e voluntários ex-
combatentes na Guerra do Paraguai. 135 Os Xukuru se mobilizaram então
para usufruir do benefício legal. O índio Durval, que mais tarde, como
funcionário do Posto do SPI na Aldeia São José, se tornaria enfermeiro e
professor muito querido e lembrado pelo povo Xukuru, relatou que esteve
em várias localidades na Serra do Ororubá, procurando as possíveis
beneficiárias, e foi ao Recife, para garantir, junto às autoridades militares,
133
Depoimento em fevereiro de 1997. In: CENTRO DE CULTURA LUIZ FREIRE. 1997,
p.61
134
O Relatório elaborado pelo sertanista do SPI Cícero Cavalcanti de Albuquerque, data-
do de 12/09/44 está transcrito in ANTUNES, 1973, p.40-43.
135
Lei 488 de 15 de novembro de 1948: “Dispõe sobre o pagamento de vencimento, re-
muneração ou salário do pessoal civil e militar da União”. Art. 30: “É assegurado o direito
a pensão, instituída pelo Decreto nº. 1544 de 29 de agosto de 1939, as filhas dos militares
que serviram na Guerra do Paraguai e cujas progenitoras faleceram ou virem a falecer”.

268 Edson Silva


o direito às pensões:
Em 1948 eu tive essa visita, aí falei com eles. Lá se chama Sí-
tio Teixeira, Serra do Acaí. Chama Caípe de Cima, ou Brejinho
abaixo. Eu tive a entrevista com esses homens. Aí fui embora.
Depois eu entrevistei com esses homens de novo a mesma
história. Aí fui no Recife. Cheguei lá, fui na 7ª Região Mili-
tar. Aí conversei lá com o General. Ele disse: “— É tem esse
direito de vocês. O índio tem direito”. Eu digo: “— Eu tenho
um Diário Oficial aqui que o Getúlio criou o direito das fil-
has dos voluntários da Guerra do Paraguai receber o soldo
do pai, que é o vencimento”. Chamava o soldo, do pai. Vai
tudo quem confirma recebe. Aí ele me deu, de acordo com
o Diário Oficial que criou essa Lei. Em 1948 foi criada essa
Lei. Aí eu vim aqui na serra do índio. Aí num lugar chamado
Lagoa, encontrei uma senhora, chamava Quitéria Biu. Qui-
téria Biu Marcionila. Ela disse: “— São quatro irmãs”. “— Eu
quero o nome para mim tirar o Batistério de vocês em Vila
de Cimbres”. Era batizada, num era registrada, mas era bati-
zada. Aí procurei outra num lugar chamado São Brás, tinha
duas lá. Vim no Caetano encontrei mais duas. Tudo filha dos
voluntários da Guerra do Paraguai. E vim ao lugar chamado
Canabrava que era os vinte que chamava o Sítio Canabrava,
era bravo os homens da história. Aí arranjei mais duas lá. Aí
fez dez mulheres pra receber. (Durval Ferreira Farias, Bairro
Xucurus, Pesqueira/PE)136

Como o pleito indígena não foi atendido no Recife, eles


resolveram procurar a Inspetoria do SPI, no Recife, e posteriormente
o General Rondon, no Rio de Janeiro. As memórias desse período são
contadas em várias versões. Uns relatos substituem o Rio de Janeiro por
Brasília, o SPI pela Funai, o que caracteriza uma das especificidades do
ato de rememorar: atualizar os acontecimentos passados, lidos a partir
do presente, ou seja, os anos mais recentes das mobilizações Xukuru
por suas terras, por seus direitos. O ato de confundir nomes e lugares
136
Depoimento em fevereiro de 1997. In: CENTRO DE CULTURA LUIZ FREIRE. 1997,
p.30.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 269


é compreensível, pois, como afirma Halbwachs sobre lembranças
reconstruídas: “À medida em que os acontecimentos se distanciam,
temos o hábito de lembrá-los sob a forma de conjuntos, sobre os quais se
destacam alguns dentre eles, mas que abrangem muitos outros elementos,
sem que possamos distinguir um do outro, nem jamais fazer deles uma
enumeração completa”. (HALBWACHS, 2004, p.77).
Uma crônica publicada no jornal semanário de Pesqueira, em
meados de dezembro de 1951, registrava a presença de Pe. Alfredo
Dâmaso na Serra do Ororubá. Qualificando o religioso de “etnógrafo”
pelo seu conhecimento, inclusive da língua dos “caboclos residentes
em Águas Belas”, o cronista se referia também às estreitas relações
do religioso com os índios Carnijós, hoje conhecidos como Fulni-ô.
O cronista escreveu que, em Pesqueira, o Pe. Alfredo conversara com
“alguns habitantes serranos”, dentre eles Romão da Hora. E, além de
anotações de “numerosos vocábulos xucurus”, o sacerdote católico
romano: “Tratou, igualmente, dos direitos, até agora postergados, dos
descendentes dos heróis que derramaram o sangue nos campos da luta
no Paraguai”. Para o cronista, as pensões para as viúvas “desses heróis”
da Guerra do Paraguai era um antigo direito reconhecido por lei federal,
mediante a apresentação de documentos comprobatórios de parentesco
com “Os nossos conterrâneos da serra de Ororubá, antigos componentes
do ’30 de Voluntários’”, numa referência ao batalhão formado por índios
enviados para a Guerra do Paraguai.137
Um entrevistado lembrou que o Padre Alfredo procurou Romão
da Hora, morador em Brejinho, para tratar dos direitos dos índios à
pensão, por seus antepassados terem participado da Guerra do Paraguai:

O Padre Alfredo, na época dele, ele procurou Romão da Hora


que morava ali em Brejinho. Eu era muito novo, mas toda
vida gostei de apreciar as conversas dos velhos, ele falou
pro padre Alfredo. Padre Alfredo disse: “Vocês, esses índios

O Padre Alfredo Dâmaso em visita a Ororubá: ato reparativo que urge providências. A
137

voz de Pesqueira. Recife, 16/12/1951, p.1.

270 Edson Silva


velho da época da Guerra do Paraguai, vocês vão ter o direito
dado pelo governo. O governo vai pagar um direito a vocês,
tanto dos familiar, dos que for da família dos que foram, que
morreram, não voltaram mais, como dos que foram e volta-
ram, todos tem direito a essa... a essa pensãozinha”. Bom, e
nos fiquemo, fiquemo, fiquemo, fiquemo, tinha deles que era
meio... “Ah! Esse padre só faz conversar!” “Esse padre só tem
conversar”. Era, muitos dizia. Mas, ninguém ligava pra isso
não.
Ai nós fomos, fomos, fomos... Quando estourou essa historia
do aposentado, o finado Romão da Hora disse: “Olha, meni-
nos, isso ai foi a historia que o Padre disse naquele tempo,
que ele andava aqui. Ele disse que nós ia ter direito a uma
pensão, faz... vai trabalhando, vai ficando velho, com pouco
não pode mais trabalhar, coisa e tal,. Eles vão, inventaram
essa historia de aposentar, eles aposentando o índio tem di-
reito, a aposentadoria, aquele total toda vida. Até morrer,
tá bem?” Será que foi isso? Foi! Foi! Justamente. Ai apare-
ceu essa historia, desse, dessa aposentadura e coisa e tal,
vai ficando velho e vai se aposentando e só quem não se
aposentou foi ele, o Romão da Hora! Porque, ele não era
desse tempo, era por idade nera? A idade dele não dava. Ai
ele ficou. (Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra d’ Água).
Outro entrevistado também lembrou que: “Padre Alfredo na
época fez muitos casamentos. Lá pela Serra fez muitos casamentos.
Inclusive, meu pai casou-se foi ele, ele fez o casamento. Meu pai, meu
avô é quem dizia. Contava eu ouvia e gravei até hoje”. (Pedro Rodrigues
Bispo, “Seu”. Zequinha, Pajé Xukuru). Foi Padre Alfredo quem comprou
o terreno e financiou a construção da Capela de São Pio X, na atual
Aldeia Brejinho. Coube ao índio Malaquias, residente naquele local,
a responsabilidade pelo acompanhamento da obra e o pagamento
dos trabalhadores. A construção da capela alcançava uma dimensão
simbólica política significativa, na medida em que representava, além do
estreitamento das relações entre o sacerdote e os índios, também o apoio
político da reconhecida atuação de Pe. Alfredo em defesa dos Carnijós

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 271


(Fulni-ô), em Águas Belas.
Esse apoio, ao menos no que dizia respeito ao direito às pensões
de veteranos da Guerra do Paraguai, foi reconhecido pelo anteriormente
citado cronista pesqueirense, quando escreveu:
Desde muitos anos, em virtude de lei federal, as viúvas desses
heróis têm direito a uma pensão mediante a apresentação de
documentos... Os nossos conterrâneos da serra de Ororubá,
antigos componentes do ’30 de Voluntários’, já desaparece-
ram todos, restando um ou outro filho. Lembramo-nos de al-
guns: brigada Zeferino Araújo, condecorado com a medalha
de campanha, residente em Afetos; cabo Aquilino Cardoso,
morador à rua hoje denominada 30 de Voluntários; José
Mendes Sobral, de Santana; os Rodrigues, os Piranhas, de
Cana Brava, além de outros que já me ocorrem a memória.”138

A mobilização pelo direito às pensões motivou os Xukuru às


reivindicações ao direito às suas terras, diante das perseguições dos
fazendeiros:
Aí então eu comecei a fazer o trabalho a bem das pensões
dessas mulheres... Aí aconteceu que todos os índios se mani-
festaram, fizeram o convite de eu procurar os direitos deles,
chorar por eles. Eu digo: — O que chorar? É defender os di-
reitos deles, arranjar... Isso é difícil! Os homens brancos de
Pesqueira, se eu manifestar esse programa diante de vocês
eu sou perseguido. (Durval Ferreira Farias, Bairro Xucurus,
Pesqueira).139

Nas memórias do índio Durval percebemos os meandros da


mobilização, para a escolha dos índios que viajariam ao Rio de Janeiro:
Aí passou-se, silenciou-se tudo por aí. Aí o povo me via, di-
zia: “— O que é que se faz, nós não temos direito a nada? Tá
perseguindo a gente? Aí eu digo: “— Mas tenha paciência
que vem. Tenha paciência que vem”. Aí de 51, 52, 53, 54,
aí chegou. “— Mande os homens; três índios que sofre mais

138
MACIEL, José de Almeida. O Padre Alfredo Dâmaso em visita..., op. cit.
139
In, CENTRO DE CULTURA LUIZ FREIRE. 1997, p.31

272 Edson Silva


aí na Serra de Ororubá aqui a minha presença. Aí fui saber
desses homens, que era parente desses homens. Aí disse:
“— Eu não vou não. Não tenho coragem, já tô velho. Aqui
tem Antonio Nascimento. Antonio Caetano Nascimento da
Hora; tem Félix e tem Stênio. Eles são disposto. Um tem 50
e poucos anos, outro quase 60, por assim. Eles tem coragem
de ir lá. (Durval Ferreira Farias, Bairro Xucurus, Pesqueira)140.

São citados detalhes que revelam como foram construídas as


articulações da mobilização indígena:
Eu digo: “— Querem ir? Eu vou onde tá o Inspetor Raimundo
Carneiro. Ele Inspetor na 4ª Inspetoria, Dr. Raimundo Car-
neiro. Aí disse: “— Vamos!”. Aí saí com ele lá. Aí fui lá onde
tava um advogado, era filho daquele que era muito amigo
meu, chamava Ricardo Ferreira Maciel Pinheiro, filho de um
voluntário da Guerra do Paraguai. Chamava ele Tomás Fer-
reira Maciel Pinheiro. Ele nasceu aqui em Pesqueira, mas
eles era de fora daqui. De uma cidade chama Ferreiros, aqui,
entre a Paraíba e Pernambuco...mas ele ganhou a Guerra
né? Venceu a Guerra, né? E deram um cartório a ele. E ele
ficou ali. Pesqueira precisava de um cartório. Ele veio prá’qui.
Casou a segunda vez, com uma família daqui, aí nasceu esse
cabra aqui. Ele morava lá no Recife, eu tinha contato com ele.
Contava muita história também. Aí fomos lá. Adquirir os di-
reitos desse homem, fui com ele, um advogado, né? “— Então
o Dr. Raimundo Carneiro, eu conheço ele. Vou falar com ele.
Aí sai com o velho, ele já velho, né? (Durval Ferreira Farias,
Bairro Xucurus, Pesqueira).

Como foi visto, existiam antigas relações entre os índios


moradores na Serra do Ororubá e a 4ª Inspetoria do SPI sediada no
Recife, onde os índios foram buscar apoio. Para os índios, a recusa para
a instalação de um Posto do SPI entre os Xukuru decorria das pressões e
do dinheiro pago ao órgão indigenista oficial pelos fazendeiros invasores
das terras indígenas, como aparece na continuidade do relato:
140
Idem.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 273


Quando chegou lá ele disse: “-Ah! Índio não tem jeito não.
É a aldeia toda. Taquim prá’qui, taquim prá’colá”. Eu disse:
“— O que é taquim?” Ele disse: “— É uma moradinha, não
tem patrimônio cercado. Lá é difícil fazer essa história do
índio lá. Criar um Posto”. Aí um dos caboclos também véio
muito zangado, muito adiantado, disse; “— É doutor...” Ele não
chamou doutor, ele disse: “— Ó meu pro, o senhor tá com
os bolsos cheio das vaca gorda”. “— Que negócio das vacas
gorda é isso?” Aí eu digo: “— E o que é vaca gorda caboclo?”
“— É dinheiro. Recebe dos fazendeiros pra não criar um Posto
lá. Nós não tem direito deste Posto? Nós tem tombamento
histórico”. Aí zangou-se com o índio porque ele disse isso.
Aí ele respondeu: “— Não dou permissão pra esse homem ir
pro Rio de Janeiro falar com Cândido Mariano Rondon”. Aí eu
digo: “— Vamos embora. Vamos embora”. Aí tirei os homens,
vim embora. (Idem).

Depois da tentativa frustrada junto ao SPI no Recife, os índios


decidiram ir ao Rio de Janeiro falar diretamente com Rondon:
Quando chegou aqui eu disse: “— Quer ir pro Rio de Janeiro?
Eu conheço essa zona de Alagoas, inté a cidade de Colégio
[em Alagoas, onde existia um Posto do SPI junto aos Xukuru-
Kariri]. Atravessa pra cidade inteira branca do outro lado. Eu
boto vocês do lado de lá. Vocês vão lá falando na língua, e
vão ganhando dinheiro, e vão. Eles disse: — É nós vamos”.
“—Eu faço um ofício. Eu não sei fazer, mas eu faço um assim,
organizo um programa, mando escrever direito e mando pra
ele. Vocês vão”. Falar com Rondon. Aí eles três. (Durval Fer-
reira Farias, Bairro Xucurus, Pesqueira).

Os índios iniciaram novas articulações e busca de apoios.


Inclusive foi procurado o Padre Alfredo Dâmaso, atuando junto aos
Fulni-ô, em Águas Belas, para ajudar na viagem ao Rio. O índio Durval
recorreu aos seus contatos, da época em que trabalhou no Sertão de
Alagoas, caminho dos viajantes para o Sul/Sudeste, quando conheceu
Dom Adelmo Machado, que se tornara Bispo de Pesqueira e Padre

274 Edson Silva


Alfredo Dâmaso, pároco em Bom Conselho. O encontro dos três xukurus
com Rondon seria facilitado pelas relações do religioso com o fundador
do SPI:
Aí tinha um Bispo aqui chamado Dão Adelmo Machado que
conhecia muito os índios Xukuru de Colégio a Palmeira dos
Índios, que fugiram daqui prá não morrer. Os brancos que
expulsaram prá lá. Aí eu conhecia porque eu, de 26 [1926]
inté 28 [1928] eu trabalhei de Quebrangulo até Palmeira dos
Índios numa linha de ferro, trabalhando. Aí eu disse: “— Vocês
vão lá. Chegar em Bom Conselho, tem um padre chamado
beneditinos [os Capuchinhos tem um convento em Bom
Conselho e sempre foram amigos de Padre Alfredo Dâmaso,
vigário na Cidade]. Ele protege o índio de Águas Belas, de
Palmeira dos Índios. Esse padre é muito bom. Chama ele
beneditino, Padre Alfredo Daria. Vocês se entende com ele
que ele dá mais uma proteção, conhece Cândido Rondon.
(Durval Ferreira Farias, Bairro Xucurus, Pesqueira)

O entrevistado lembrou com precisão a data e o tempo de


duração da viagem e os nomes dos que foram para o Rio de Janeiro:
“Esses homens saíram daqui no dia 1º de outubro de 1953 e chegaram
no Rio de Janeiro no dia 1º de janeiro de 1954. Três meses de viagem.
O Antonio Nascimento, o Félix e o Stênio, esses três irmão chegaram lá”.
(Durval Ferreira Farias, Bairro Xucurus, Pesqueira)
O encontro com Rondon e Getúlio Vargas foi contado como
cenas da alegre acolhida e comoção com o sacrifício físico dos viajantes
em sua longa jornada, a aflição dos familiares, o risco da volta com as
ameaças dos fazendeiros quando descobriram a viagem, mas de felicidade
pela conquista da instalação do Posto do SPI:
Quando foi a noite tavam eles em Jacarepaguá. O Cândido
Mariano Rondon morava lá. Aí ele entregou a ele. Ele chorou.
Eles me contaram tudo, os que foram. Aí chorou muito. “— Vou
levantar Getúlio Vargas. Vou telefonar pra Getúlio Vargas”.
Aí telefonou. Aí Getúlio Vargas disse: “— Mande eles aqui.
Mande eles aqui”. Quando foi com dois dias, mandaram ajei-
tar eles. Mandou ajeitar roupa pra eles, tudinho, e levaram

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 275


aqueles homens, com os pés todo feridento de andar de pés.
Foram de pés. Passaram 90 dias de viagem! Aí chegaram lá
eles receberam bem. Passaram 15 dias sendo entrevistado
lá. Nesse entremeio as mulheres deles: “— Sinhô, ei vinha
aqui. Passava aqui, “Meu marido mataram. “As notícias é que
mataram”.
Aí eu vi dizer aqui, um parente meu era escrivão aí, da polí-
cia, e disse: “— Vão matar os índios quando chegarem”. Aí
eu fui a Recife, falei com esse advogado, ele chegou e co-
municou direto pra Cândido Rondon. Disse: “Tragam uma
ordenança, garantindo os três caboclos, que não vão ma-
tar quando chegarem, porque foram enredar dos brancos”.
Quando deu fé, chegaram. Coronel Zé Guedes chegou com
esses índios. Foram lá no Recife... Vieram de navio do Rio de
Janeiro prá cá. (Idem).

Se o direito ao Posto do SPI na Serra do Ororubá foi uma


conquista da mobilização Xukuru, existem também relatos e registros
sobre a efetiva instalação e ainda a respeito do funcionamento e os
conflitos sobre os benefícios da assistência oficial.

A instalação e o funcionamento do Posto Xukuru:


insatisfação e conflitos indígenas pela assistência
oficial
Em seu relato, Petronilho Simplício de Freitas, 88 anos, mais
conhecido como “Seu” Petru, afirmou que, assim como seus avós e seus
pais, nasceu no Sítio São José. Formavam uma antiqüíssima família de
moradores, que possuíram, naquele local, um engenho para fabrico de
rapadura e cachaça. Foi lá onde “Seu” Petru também viveu grande parte da
sua vida. Ele falou em detalhes sobre a instalação e organização do Posto
Xukuru. “Seu” Petru, que trabalhou durante 24 anos como empregado
no Posto, sendo funcionário do SPI, recordou o primeiro contato e o
diálogo com o Chefe da IR4, que, por indicação do Pe. Olímpio Torres
veio propor a instalação do Posto, em terras da Família Simplício:

276 Edson Silva


Por volta das oito horas do dia chegou em minha casa Dr.
Raimundo, numa caminhoneta cheia de tudo. De roupas, co-
mida, ferramentas, aliás de tudo. Aí disse que tinha vindo
para minha casa para aldeia, para fazer um Posto mandado
do Presidente para os índios. Agora, Pe. Olímpio enviou ele
para minha casa. “Tem um caboclo aí na serra de São José,
que tem morada muito boa, três casas grandes, uma igreja
grande também, terra”. Perguntou se eu queria trocar as ca-
sas noutras casas novas. Eu digo, “Doutor eu vou pensar no
seu caso, que tenho uns irmãos eu preciso combinar com
eles, mas eu sendo o mandando. Ele disse, “É mais eu quero
notícia logo. Urgente!”. Eu digo, “É oito dias dá? Oito dias
dá?”. “Dá!”. “É tempo que eu pedir para meus irmãos, para
eles assinarem que eu podia fazer o negócio, Dr. Raimundo”.
(Petronilho Simplício, Centro/Pesqueira)

A filha de Petronilho era uma criança, mas recordou quando os


agentes do SPI chegaram, na época ao Sítio São José, para tratar com seu
pai sobre a instalação do Posto do SPI:
Eu lembro quando chegaram o pessoal lá do Recife prá pedir
a pai, o terreno pra fazer o posto. Ai ele disse: “— Vou pensar
com oito dias eu dou a resposta!” Ai, com oito dias ele deu
a resposta, ai vieram pegaram o terreno dele arrancaram as
plantações dele todas e construíram aquelas casinhas e dis-
seram que ele ia ficar empregado no posto. Eu lembro disso
ainda. (Josefa Simplício Correia, “Zefa”, Centro/Pesqueira)

O contato com o Chefe da IR4 continuou, por meio de cartas


enviadas pelo Pe. Olímpio. Após três meses da vinda de Raimundo
Carneiro, a ausência de recursos para investir no plantio motivou
Petronilho a recorrer à IR4:
Aí eu fiz uma carta e entreguei ao Pe. Olímpio, para mandar
para ele. Eu disse ele vai receber, essa semana ele recebe a
carta que eu mandar, Pe. Olímpio. Aí mandou a carta. Bom
foi se passando, foi se passando, foi se passando, passou
um, dois, três, com três meses chegou um inverno aqui. Eu

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 277


tava ruim de vida. Eu digo bom, eu vou falar para o doutor,
Dr. Raimundo. Fiz outra carta, dei ao Pe. Olímpio, pedindo a
ele, para ele me socorrer, que eu estava aperriado, liso, sem
dinheiro, vontade de trabalhar, o inverno bom eu não tinha
nada. Ele mandava qualquer coisa pra mim. (Petronilho Sim-
plício, Centro/Pesqueira)

Pela cessão do espaço para instalações, foi prometido a Petronilho


o emprego como funcionário do Posto. Um inspetor enviado pela IR4
veio a São José e pagou o correspondente, em salários, ao tempo desde o
primeiro encontro entre Petronilho e Raimundo Carneiro:
Sim ele disse mais. Que fazia o negócio comigo e eu ficava
empregado, ganhando pouco, 350 mil reis por mês. Pronto,
a carta foi eu pedindo a ele. Quando foi no sábado, chegou
um inspetor, Sampaio, (muito meu amigo!). Chegou aquele
galegão forte naquela caminhonete. “D. Maria, quem é Petro-
nilho Simplício aqui”. “Mora nessa casa aí”. “Chame ele aí”.
“Dr. Raimundo mandou pagar os três meses daquilo, do Re-
cife, do negócio que o senhor fez com ele, três meses. Vem
fazer minhas casas aqui. Ele mandou Dr. Raimundo, mandou
fazer as casas e fazer o seu pagamento”. Recebi um conto e
50 dos três meses! Era muito dinheiro!... (Idem)

Na construção das casas do Posto foram recrutados trabalhadores


da própria família de Petronilho: “Chamei minha família todinha para
trabalhar. Uns faziam tijolos, outros cavavam os alicerces de casa, pintar as
peças, carregar pedras, fazer de tudo!” (Idem). Petronilho chamou outros
trabalhadores mais especializados. Veio gente até da Vila de Cimbres.
Além de aproveitar a presença das pessoas para abrir um pequeno
comércio, Petronilho foi o responsável pelo pagamento dos trabalhadores
durante os seis meses em que duraram as obras: “Toquei o alto para
cima, chamando gente, chamando gente. Veio gente até da Vila. Pedreiros,
daqui da rua. Cinco pedreiros eu botei. E mandei brasa! O dinheiro que
eu recebi eu botei uma bodega para vender aos trabalhadores mesmo. Fiz
uma bela feira grande e ainda fiquei com dinheiro”. (Petronilho Simplício,
Centro/Pesqueira)

278 Edson Silva


Além do emprego, Petronilho recebeu casas novas em troca
de suas casas velhas: “Eu cedi as minhas casas para eles, que estavam
velhas e eles deram umas novas para mim”. Ele gozava de boas relações
e confiança com o Inspetor Vital, do SPI, pois, afora seu irmão, indicou
outros índios para funcionários no Posto:
Meu irmão Alcebíades foi quem botei. Botei Durval, enfer-
meiro. Ele era descendente de índio, era de Poção. Caçaram
um enfermeiro, nós conversando um professor que tinha lá,
Sr. Vital disse “Petru vamos arranjar uma pessoa para fazer o
serviço de enfermeiro” Aí eu digo, “Eu tenho um”. Era muito
sabido, trabalhador jeitoso para certas coisas. Eu coloquei
Durval também. Entrou outro também. Outro índio, cabôco da
Serra, Zé de Zezinho e Alcebíades. Zé de Zezinho trabalhava
no campo mais eu. Ele era de Afetos. (Petronilho Simplício,
Centro/Pesqueira).

“Seu” Petronilho estabeleceu boas relações com o primeiro e os


sucessivos chefes do posto. Foi compadre do primeiro chefe, de quem
falou com muito entusiasmo:
Foi cumpadre Cori (Coriolano), foi o primeiro. Era de Águas
Belas. O melhor Chefe que já vi! Foi o melhor Chefe que eu
já vi! Foi o melhor Chefe! Foi o primeiro, o cumpadre Cori.
Porque ele era bom todo! Bom todo! Sabe um homem sem
falta nenhuma, esse era ele. Os outros eram bom, mas como
o cumpadre Cori não era não! (Petronilho Simplício, Centro/
Pesqueira)

As terras para patrimônio do Posto foram adquiridas pelo


chefe Coriolano juntamente com Petronilho. A venda, quase desfeita,
foi concluída devido ao empenho dos compradores que, na pressa de
efetivar o negócio, pagaram além do valor pedido:
Foi esse terreno onde é o Posto plantado. Foi ali que eu
comprei mais o cumpadre Cori. Se não fosse eu não tinha
comprado não porque o velho ficou cheio de mais. Mas, eu

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 279


estava sabendo. Aí forcei o velho. A mulher dele queria des-
manchar o negócio. A mulher do velho que eu comprei o
terreno. Fui falar correndo com o cumpadre Cori: “Cumpadre
vamos porque o homem quer desmanchar o negócio. Vamos
falar hoje!” Compadre Cori ficou tão aperriado que no lu-
gar de pagar o tanto certo deu cinco contos a mais. Quando
chegou em casa foi contar o dinheiro, faltava dinheiro. Eu
comprei o terreno por 65 mil réis e deu 70. Ele devolveu.
(Petronilho Simplício, Centro/Pesqueira)

As terras compradas pertenciam a um não-índio que plantava no


local. Petronilho e o chefe do posto foram enganados pelo vendedor, em
relação ao tamanho do terreno:
O meu terreno era os das casas. Que troquei as minhas, para
ele fazer outras no meu terreno. Onde é o Posto, foi o terreno
que nós compremos. Era de Neco Bezerra, não era cabôco.
Não sei de onde era ele. Era de fora. E morava na rua. Ele
plantava lá milho, feijão, roça. Ele mentiu para nós, “Aqui
tem 14 ha. de terras” . Isso me deu dor de cabeça! Me deu
dor de cabeça! E nos compremos, paguemos a todos os 14.
Depois medimos o terreno. Sabe quantos ha. tinha? 7 há. 7 ¾!
Ele mentiu pra nós! Nós não mentimos! Se abestamos. Não
mentimos nem eu nem cumpadre Cori. (Petronilho Simplício,
Centro/Pesqueira)

A alegação de que os compradores foram enganados é bastante


duvidosa, em se tratando de homens experientes, principalmente
Petronilho, agricultor de muitas lidas. O imbróglio resultante da compra
de terras em tamanho menor ao do preço pago permaneceu durante
todo o período da existência do Posto, como aparece registrado em vários
documentos, solicitando a planta e a medição das terras adquiridas.
Questionado sobre quantas vezes o chefe da IR4 esteve no Posto
Xukuru, “Seu” Petru respondeu que foi apenas uma vez. Por ocasião
do primeiro contato, ele trouxe um carro com grande quantidade de
gêneros alimentícios e ferramentas. Além de muitas roupas, em boa parte

280 Edson Silva


apropriadas pela família de Petronilho:
Só veio essa vez. Fez o negócio mais eu. Despachou as mer-
cadorias. Não deu pra despachar tudo lá, veio despachar aí
no oitão da casa. Ferramenta muitas, muita roupa, muita fa-
zenda, camisas, de tudo veio muito. E eu enchi minha casa
de coisa! “Eu to meio fraco”. Pegaram um bucado de roupas,
de ferramentas. De tudo eu peguei! Prá mim e prá minha
família todinha. De tudo eu tirei mais com ordem dele. (Petro-
nilho Simplício, Centro/Pesqueira).

No relato de “Seu” Petru é possível entender os meandros, os


interesses em jogo, explícitos ou não, bem como o processo das relações
estabelecidas, em uma história que não aparece nos registros do SPI
sobre o Posto Xukuru.
Sobre o local onde foi construído o Posto e as terras adquiridas
posteriormente como patrimônio para o mesmo, Maria das Graças
Simplício Freire, conhecida por Dona Nina, moradora na atual Aldeia
São José, onde funciona o Posto da FunaI, confirmou que uma parte foi
doação da Família Simplício e a outra parte comprada:
É as terras, eu sei que depois de D. Didi pra lá até onde é a
Igreja. Foi até que Tia Juvina deu pra o Posto. E a terra do Posto
foi comprada, que é a terra de Neco Bezerra, que é depois
de D. Didi pra cá, que é até aqui com a divisa com a gente.
Essa terra foi comprada a Neco Bezerra. Eu conheci primeiro
que era João Bahia, o dono das terra. E eles compraram a
Neco Bezerra, que comprou a João Bahia e quando o Posto
veio comprar, comprou a Neco Bezerra. (Maria das Graças
Simplício Freire, Aldeia São José)

Além de reafirmar terem sido as terras pertencentes aos


Simplícios, seus antepassados, Dona Nina confirmou que parte delas foi
doada ao Posto, em troca de empregos para dois de seus parentes:
Eles falaram assim que a terra era deles. Tia Juvina, e de
Petru, e de Alcebíades, que ainda tinha Compadre Pedro. Pe-
dro Antonio e Olimpio. Mas eles deram a terra e quem pegou

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 281


o emprego foi Alcebíades e Petru. Foi! Foi em troca de um
emprego, que eu lembre, né? Naquela época eu era pequena.
Até agora eu sei que compraram foi a que Neco Bezerra ven-
deu prá o Posto. Agora a de Tia Juvina, que Petru trabalhou,
foi dada. (Maria das Graças Simplício Freire, Aldeia São José)

A entrevistada falou ainda que, atendendo o convite do Chefe de


Posto, vinham índios moradores nas várias aldeias espalhadas na Serra
do Ororubá, para o trabalho em mutirão nas terras do Posto, recebendo
ferramentas como recompensa:
Eu lembro que prá o Posto vinha muito assim, vinha enxada,
enxadeco, vinha facão, vinha foice e o Chefe do Posto con-
vidava os pessoal das outras aldeias pra vim dar um dia
de serviço aqui. E o pessoal se juntava tudinho, de todas
as aldeias, vinha gente trabalhar aqui o dia. Que a gente
escutava das casas era uma zoada, as enxadas trabalhando.
Que o pessoal todinho das outras aldeias vinha dar um dia
de serviço aqui no Posto. Limpava o Posto num dia. Então
o Chefe dava a todo mundo uma enxada, uma foice, um
facão. O pessoal dava um dia de serviço prá receber uma fer-
ramenta daquele. Era enxada, era foice, era facão, enxadeco,
essas coisas. (Idem).

O Pajé Xukuru também falou a respeito das dimensões das terras


pertencentes ao patrimônio do Posto e como elas foram apropriadas
pelos não-índios:
Inclusive que em São José, hoje ninguém vai mais atrás
porque lá tudo é índio, mas era 14 hectares e hoje se tem
três hectares já é muito! Porque tomaram conta, o cara mes-
mo abriu mão para os brancos. Os brancos tomaram conta,
mas hoje tá tudo nas mãos dos índios. Mas fizeram isso ia
apertando pouquinho, o Posto era muita terra e ficou desse
tamainho. (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu”. Zequinha, Bairro
Baixa Grande, Pesqueira/PE).

Nascida em Pão de Açúcar, localidade situada na região da


Ribeira, às margens do Rio Una, em um dos extremos do atual território

282 Edson Silva


Xukuru, nos limites com o município de Poção, D. Isaura casou-se com
um Simplício e veio morar em São José. Ela falou que os Simplício
“venderam” as terras para a construção do Posto:
O Posto foi o pai de Júnior mais a irmã dele que venderam
aquela terra ali que hoje é do Posto, onde tá o Posto. Ai
eles começaram, fizeram aquelas casas que tem hoje. Porque
tem umas que fizeram depois. Mas aquelas casas que tem
a porta assim meio redonda foi eles que fizeram. Fizeram as
casas. Fizeram o Posto ali e dali começaram. Os mais velhos
já se foram. E quem era o dono daquilo ali em cima era o
finado Simplício, era o avô do meu marido. O finado Simplício
fez isso. (Isaura Bezerra Simplício, Aldeia São José)

Dona Isaura falou também que o Posto distribuía, além de feijão


de baixa qualidade alimentícia, roupas e, posteriormente, remédios.
Ferramentas agrícolas sempre foram distribuídas:
Eles davam feijão, agora era um feijão furado, Meu Deus! Só
tinha bicho e bagulho! Dava o feijão, davam roupa, aqueles
paninhos prá o pessoal. Remédio, não davam não! Depois foi
que começaram a dar um remedinho. Enxada. Agora enxada
eles davam muito. Enxada, enxadeco, facão, foice, essas coi-
sas, todo ano vinha aquele bocado de coisa prá o pessoal
trabalhar. (Idem).

A entrevistada falou ainda dos sucessivos agentes do SPI que


estiveram no Posto. Alguns trataram os índios bem, outros maltrataram:
Tratava os índios bem e quando faltava o remédio, ele dava o
remédio aos índios. Ele era bom prá os índios. Depois saiu aí
começou a vir outro, começou vir outro, começou vir outro, os
outros era meio ruim. Teve um rapaz que veio não me lembro
do nome dele. Ele era tão bonzinho. Ele visitava os índios, ele
andava nas casa de todo mundo. Ele ia nas casa, saber se
tava precisando de alguma coisa e se tinha alguém doente.
Esse aí tiraram ele. Era... eu me esqueço o nome dele. Depois
veio outro, o outro era muito de fazer gosto. Só queria andar
de cavalo e maltratava muito os índios. Depois veio, como

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 283


era aquele que chamava. (Isaura Bezerra Simplício, Aldeia
São José)

Uma outra entrevistada, comentando sobre o funcionamento


do Posto, lembrando ter sido uma conquista dos irmãos Nascimento,
falou da distribuição anual de ferramentas agrícolas e carne seca, para os
índios de Brejinho e São José,
Mas nesse tempo quando a aldeia, quando descobriram os
direitos do índio, depois botaram a pedra em cima. Mas no
tempo que eles foram lá em Brasília, todo ano vinha enxada
para o índio, vinha foice para o índio. Vinha até a roupa para
o índio vinha. Eles traziam carrada de charque para Brejinho
e São José. Nesse tempo eu estudava e via quando vinha.
(Maria Alves Feitosa, “D. Lica”, Aldeia Brejinho).

A entrevistada falou ainda que os índios também íam ao Posto em


busca de gêneros alimentícios, ferramentas e pesticidas, além de roupas.
O leite distribuído pelo Posto provocou casos de cegueira em crianças.
O arroz era de aspecto ruim. São memórias da infância da entrevistada:
Iam buscar feijão, enxada, enxadeco, veneno para tomate.
Tudo isso vinha quando eles descobriram os direitos deles.
Vinha de caminhão de Brasília, que aqueles empregados,
Sr. Agenor, trazia. Que ele empregado trazia, caminhões
cheios de charque e trazia até roupas... Logo era um leite
que cegava! O leite cegou muita criança, o tal leite do Posto.
A merenda, o arroz era um arroz preto, preto cor de areia os
primeiros. Óleo vinha, vinha charque... Eu tinha uns oito anos,
eu tenho 52 anos, eu me lembro... (Idem)

Ao ser perguntado sobre o Posto, “Seu” Cassiano, a partir de


suas experiências de convivência com os fazendeiros na Serra do
Ororubá, comparou o Posto a uma casa-grande. O Posto era um local
de assistencialismo, diante das precárias condições de vida dos índios.
O entrevistado conheceu vários chefes do Posto e também “Seu” Durval,
Me lembro muito! Só não me lembro quando foi feito. Quan-
do eu me lembro já era feito. O posto era uma casa-grande

284 Edson Silva


para nós índios. Ali nós tinha enxadas, dava foice, machado,
dava remédio. Até gado ele matava dava a cada índio 1 kg,
2. Já me lembro do Sr. Geraldo para cá. Os outros para trás...
Eu ainda conheci Coriolano. Conheci era um cabrinha baixo,
grosso, branco. Todos eles era branco, Não o primeiro, o
primeiro era um moreno, era Durval. Eu alcancei “Seu” Durval.
(Cassiano Dias de Souza, Aldeia Cana Brava)

Ao considerar “Seu” Durval como o primeiro chefe do Posto,


o entrevistado reconhecia o papel desempenhado pelo conhecido
enfermeiro e professor, em benefício dos Xukuru.
Um dos trabalhadores na construção do Posto, “Zé Cioba”,
lembrou que em São José habitava a Família Simplício, “Eu mesmo,
eu trabalhei no Posto de servente na Construção. “Seu” Petru ainda
é parente da gente. Ele é parente da gente ainda. Tudo é família”. O
entrevistado comentou ainda sobre a distribuição de remédios no Posto
para os índios de toda a Serra do Ororubá: “Ele funcionava assim, porque
quando estava precisando de um remédio, ia lá e tomava uma injeção,
um frasquinho de remédio, era assim que ele funcionava. Atendia os
índios da Serra mesmo. Ia muitos índios da Serra. Tinha muito chefe que
prestava. “Seu” Gilvan era um chefe mais ou menos”. (José Gonçalves da
Silva, Zé Cioba, Bairro Portal/Pesqueira).
Dona Lica falou da criação de escolas, os “grupos” escolares. Os
primeiros professores vieram de Águas Belas. “Seu” Durval e familiares
também lecionaram,
1º foi o de São José, 2º foi o de Brejinho. Depois que fizeram
era uma coisa boa! Trouxeram professores de Águas Belas,
professores de Tacaratu. Eu me lembro como hoje Durval.
Durval era índio, a família era de Pesqueira, a família dos Gi-
nus, era índios mesmo. Que eles era quem ensinava a gente.
Já os filhos do finado Ginu. Isabel, que ela era uma profes-
sora muito especial, ensinava bem. Estudei com Sr. Durval,
estudei com Sr. Agenor... Sr. Durval era professor e enfermeiro
e muito bom! (Maria Alves Feitosa de Araújo, Aldeia Cana
Brava).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 285


Foram os irmãos Nascimento que viajaram ao Rio de Janeiro para
falar com Rondon sobre a criação do Posto em Brejinho, mas o Posto foi
instalado em São José, provocando insatisfação e um conflito permanente.
Sobrinha de Antonio Nascimento, Dona Lica confirmou a existência do
conflito. Com a instalação do Posto em São José, foram contratados, como
empregados do SPI, como já foi visto, os irmãos Petronilho e Alcebíades
Simplício, desagradando muito os irmãos Nascimento. Um deles, apesar
de bastante idoso, tentou casar e chegou a ser agressivo com a professora
funcionária do SPI que lecionava em Brejinho:
A questão dos Nascimentos é que eles queriam empregos.
Eles não podiam ser empregado porque eles não sabiam de
nada...Queriam ser empregados. Como tinha a professora
que ela pode chegar pro conta dela. Era a minha professora
que hoje em dia é a enfermeira aposentada, era Judite. Pro-
fessora boa. Sabia ensinar bem. Calma, não tinha intriga com
ninguém. Calminha... Aí os Nascimentos não gostava, porque
o Nascimento era viúvo e ela era solteira, queria casar com
ela! E se viu agredida com Nascimento caduco, de quase
100 anos a bem dizer. (Maria Alves Feitosa de Araújo, Aldeia
Cana Brava)
A entrevistada, apesar de reconhecer que a fundação do Posto
em São José foi devido às melhores condições de acesso, enfatizou ter
sido uma conquista dos irmãos Nascimento, reivindicado às autoridades
para Brejinho,
Não teve Posto em Brejinho. Aquele Posto de São José, eles
trouxeram para Brejinho. Não ficou porque não subia carro!
Nessa época que os de Brasília vieram, eram uma estradas,
mas... não subia. Subia caminhão naquela época de goiaba.
Ficou em São José. Mas aquele Posto de São José não foi
ninguém de São José. Foi Félix, Romão da Hora, Antonio Nas-
cimento e Stendi foram buscar em Brasília, foi para Brejinho!
Para terra deles! (Maria Alves Feitosa de Araújo, Aldeia Cana
Brava)

A insatisfação pela instalação em São José gerou um conflito,

286 Edson Silva


pois a conquista do Posto foi resultado de muitos sacrifícios para terem a
assistência oficial diante das difíceis e precárias condições de vida:
Essa briga toda foi por isso. Que aquele Posto de São José
não foi ninguém de São José, foi de Brejinho. Você chega lá,
você vê as casinhas velhas e pense! E eles foram passando
fome. Já eles foram buscar já em conversa já dos avós deles
e dos tataravós. Teve um dia que eles disseram “Embora?”.
“Vamos!”. E foram embora...Ficaram com raiva e morreram
com raiva! E aquele Antero, ele morreu com dor no coração,
porque ele lutou muito e morreu e não viu. E ele era muito
esses índios que adquiriram essas terras para aqui, eles mor-
reram. Meu pai mesmo. Muitos morreram, morreram, parti-
ram com uma dor no coração porque eles lutaram muito
sem ter quase assistência de nada na vida. Os avós, os pais
morreram tudo de parto. Os filhos morreram tudo de fome...
(Maria Alves Feitosa de Araújo, Aldeia Cana Brava)

Aldeia Brejinho. Local onde moravam os irmãos


Nascimento. Onde existe a Capela de São Pio X, construída
com recursos do Pe. Alfredo Dâmaso.
Foto: Carol Nascimento, 2007.

As insatisfações dos irmãos Caetano Nascimento permaneceram

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 287


durante muito tempo. Elas foram expressas em uma carta141 enviada de
Brejinho para o SPI por Estanislau, Félix e Antonio, no início de 1956.
Na referida missiva, os irmãos lembravam a busca de “binificio do nosso
aldeamento xucurus da Serra do Urubá”, que escreveram dois abaixo-
assinados ao Presidente Vargas e posteriormente foram eles próprios falar
com o “General Cândido Rondon”, pedir a instalação do Posto do SPI em
Brejinho. Na carta, os Nascimento descrevem a localidade em condições
para ter recebido o Posto, “um lugar plano que cabe quantidade de cazas
quanto queira”.
Os irmãos procuraram negar a existência das animosidades por
causa da instalação do Posto em São José, ao afirmarem que “não há
inquizição no lugar porque todos são di acordo e estamos esperando
por isso”. Mas enfatizaram o descontentamento e o sentimento de
injustiçados, quando escreveram “tem gente que nunca deu uma passada
em binificio d posto i esta ganhando e nos nada”. Por esse motivo e em
razão das condições em que viviam, solicitavam emprego, “um emprego
que somos pais de família sem recurço”. Pediam ainda ajuda para o tio
Romão da Hora, desamparado e em idade avançada: “Meu tio Romão
manda pedir um auxílio que esta muito velhinho muito doente com 83
anos”. Findavam a carta justificando os pedidos de ajuda para si, pelas
condições econômicas em que viviam, e para o tio, pela extensa família,
por ter servido ao Governo em uma possível referência à Guerra do
Paraguai. Pois lembrava que o idoso esperava uma recompensa, “i sobre
a espada delle manda saber qual o resultado elle espera algum prêmio”,
em referência ao objeto levado pelo sertanista Cícero Cavalcanti, quando
visitou a Serra do Ororubá, em 1994, como já foi visto.
À carta dos irmãos Nascimento, Coriolano Mendonça, encarregado
do Posto do SPI na Serra do Ororubá, anexou um longo ofício142, com
esclarecimentos dirigidos a Raimundo Dantas Carneiro, Diretor da

141
Carta de Antonio Caetano, Estanislau Caetano e Felix Caetano, em Brejinho,
18/01/1958, para o Senhor Coronel José Luiz Guedes. Museu do Índio/Sedoc, mic. 179,
fot. 160.
142
Ofício de Coriolano Mendonça, Encarregado do Posto Indígena Xucuru, em 10/02/1958,
ao Diretor da IR4 Raimundo Dantas Carneiro. Museu do Índio/Sedoc, mic. 179, fot. 163.

288 Edson Silva


IR4. Afirmava Coriolano que a instalação do Posto em São José fora
uma decisão acertada, em razão da abundância de água na localidade,
a existência de pequenas propriedades de terceiros que poderiam ser
adquiridas pelo SPI, a estrada de fácil acesso e a proximidade com a área
urbana de Pesqueira. Enfatizava ainda o agente do SPI como uma das
boas condições a colaboração dos índios de São José, ao cederem seus
terrenos e casas para o SPI construir a séde do Posto e uma escola.
Para Coriolano, “nenhum dos outros núcleos indígenas, reúne ao
mesmo tempo as vantagens acima expostas, inclusive Brejinho”. Mas ao se
conhecer a Aldeia Brejinho, pode-se afirmar que grande parte do escrito
pelo agente governamental não corresponde à realidade daquele local,
com exceção do acesso e a distância da área urbana da cidade. Ambas
as localidades, São José e Brejinho eram e são igualmente castigadas em
períodos de seca. Mas, como é nomeada a localidade, brejo é um lugar
pantanoso, portanto há muita água disponível na região, com a vantagem
adicional de que, juntamente com a vizinha Cana Brava, a Aldeia Brejinho
era um dos locais em que se concentrava a maior quantidade de famílias
indígenas proprietárias de terras, mesmo sendo em pequenas glebas
cercadas por fazendeiros. A presença de grandes fazendeiros, poderosos
membros da oligarquia política de Pesqueira, possivelmente tenha sido o
motivo pelo qual o SPI não instalou o Posto naquela localidade.
Justificava o agente do SPI que ainda assim os índios de Brejinho
não estavam abandonados e recebiam a mesma assistência dispensada
aos de São José. Afirmava Coriolano pretender instalar uma escola em cada
uma das localidades na Serra do Ororubá, estando em funcionamento,
em residências, escolas em Gitó e Brejinho, neste último local a professora
era paga com rendas provenientes do Posto. A afirmação do encarregado
confirmava o dito por D. Lica quando entrevistada, que estudara em uma
das casas dos irmãos Nascimento.
Afirmando preconceituosamente ser “coisas de índios já se
vê”, criticava o agente do SPI o pedido dos irmãos Nascimento, de
recompensa pela criação do Posto. Questionando também o pedido de
ajuda para Romão da Hora, que era amparado pelo Posto, com “víveres
e medicamentos”. Afirmava ainda Coriolano que Antonio Nascimento,

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 289


quando da criação do Posto, fora incluído no quadro de assalariados,
tendo sido desligado em razão da sua idade avançada, que o impedira
de comparecer ao trabalho, embora ele continuasse recebendo uma
gratificação mensal, reajustada em 100%, de CR$ 1.000,00, “retirada
das mensalidades dos assalariados”. Não localizamos, na documentação
pesquisada, nenhuma informação a esse respeito. Apenas um dos
entrevistados falou vagamente que Antonio Nascimento recebia “um
troquinho do Governo”, embora não tenha sabido precisar melhor o
porquê. Obviamente que a ausência de uma formalidade para a citada
“gratificação” favorecia sua irregularidade ou interrupção a qualquer
momento.
Mas, afirmava o agente oficial que os parcos recursos destinados
ao funcionamento do Posto em seus apenas quatro anos de existência
eram insuficientes para prestar auxílio a grande quantidade de idosos
doentes e inválidos, nas diversas localidades espalhadas na Serra do
Ororubá. Para Coriolano, a solução para suprir a escassez de recursos
era a aquisição de mais terras para patrimônio do Posto Xukuru. O
pequeno terreno em poder do Posto fora preparado e se aguardava a
estação chuvosa para o plantio de 10.000 pés de café. Assim, portanto,
para o agente do SPI, com a ampliação da área cultivável, seriam gerados
recursos para a assistência aos índios desvalidos.
Lê-se, nas margens do ofício enviado por Coriolano, que suas
assertivas, comentários e esclarecimentos foram plenamente aceitos
pelo Diretor da IR4. Já em seu despacho, o Diretor do SPI, José Luiz
Guedes, além de afirmar estar de acordo, escreveu: “aguardar melhor
oportunidade para adquirir nova área de terras”. Revelando, portanto,
a estratégia do SPI na Serra do Ororubá, a manutenção de um Posto
com um patrimônio gerando rendas para prestar o assistencialismo aos
índios. Existia uma política do SPI para tornar os postos em unidades
produtivas para alcançarem a auto-suficiência financeira; como também
era incentivado o emprego de índios, nos postos. (CORRÊA, 2002, p. 127)
Além da edificação de uma escola em Brejinho, possivelmente
para acalmar os ânimos e as reivindicações dos Nascimento, lhes foi
prometido a construção de novas moradias. Em um dos avisos mensais

290 Edson Silva


do Posto Indígena Xukuru do início de 1960, está registrado que eles
foram procurar o encarregado do Posto para cobrar o que lhes fora
prometido para aquele ano, a construção das casas, em razão das
precárias condições em que suas residências se encontravam, considerada
uma justa reivindicação pelo agente do SPI. Como já foi visto, os Xukuru
viviam em condições de extrema pobreza, explorados e trabalhando de
alugado para os fazendeiros invasores de suas terras. Nessa conjuntura,
é compreensível a situação de penúria dos idosos, como os irmãos
Nascimento, e daí o papel assistencialista do Posto.
As insatisfações dos irmãos Nascimento perduram. Em meados
de 1966 encontramos o conflito latente contra o SPI registrado em um
outro documento oficial.143 Segundo o agente do SPI, por repetidas vezes
ocorreram “desrespeitos” de Félix, Antonio Nascimento e família, que
eram proprietários do terreno onde funcionava a escola. Os Nascimento
impediam as professoras de trabalhar, pois “sempre detestaram a
presença” do SPI no local. Apesar dos esforços do agente do Posto, que
procurara a polícia por três vezes, a referida escola estava fechada há
cinco anos. Os irmãos demonstravam “verdadeiro ódio dos servidores”
alegando que estes estariam ganhando o dinheiro destinado a eles, os
Nascimento. Um dos irmãos, Estanislau, aceitara fazer uma limpeza do
páteo do Posto em São José, mas tinha parado seu trabalho, em virtude
de ameaças dos outros irmãos. No caso da escola, para o agente do SPI a
solução seria comprar o terreno onde funcionava a mesma ou desocupá-
la, destinando o prédio para residência de algum índio. As atitudes dos
irmãos Nascimento são compreendidas, como já foi visto, a partir das
insatisfações provocadas pela instalação do Posto do SPI em São José e
a falta de reconhecimento oficial pela iniciativa deles de terem procurado
o órgão indigenista.

Saberes e rotinas administrativas: retratos do Posto e


143
Memorando do Posto Indígena Xucuru, em 17/08/1960, para o Chefe da IR4. Museu
do Índio/Sedoc, mic. 179, fot. 718

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 291


dos Xukuru

A documentação microfilmada, composta de ofícios, memorandos


e avisos mensais atestam a rotina burocrática do “Posto Xucuru”.
Inúmeras listas de medicamentos remetidos ao Posto necessitariam de
um estudo especializado, que procurasse demonstrar as doenças e os
remédios destinados à cura. As dezenas de cadernetas escolares trazem
repetidas listas de nomes de alunos/as nas escolas mantidas pelo SPI,
nas aldeias São José e Brejinho. No relatório das atividades escolares
para o ano de 1959 constam os nomes de crianças e adolescentes, em
sua grande maioria do sexo feminino, totalizando 35 alunos matriculados
em São José e 45 em Brejinho. O currículo escolar era composto por
Noções de Linguagem, Aritmética, Gramática, História, Geografia,
Educação Cívico-Moral, Higiene e Agricultura. Aos estudantes católicos
era ensinado o Catecismo144. Eram estimuladas as dissertações sobre
datas comemorativas, como o Dia do Índio, e cívicas, como a lembrança
da morte de Tiradentes, quando os/as alunos/as deveriam cantar o Hino
Nacional e o da Bandeira, estando esta hasteada defronte da escola. A
escola era pensada como fator de civilização e integração regional de
uma população considerada oficialmente marginal e marginalizada.
Como parte deste contingente, as crianças recebiam atenção especial.
Em muitas correspondências administrativas trocadas entre
o encarregado do Posto e a chefia da IR4 há registros da destinação
de medicamentos, sementes e ferramentas agrícolas para os índios. De
acordo com os registros, ora essa distribuição ocorria atendendo uma
programação rotineira, ora em razão da procura dos índios no Posto.
Uma considerável parte da documentação também é refere-se ao censo
indígena. São sucessivas informações sobre o número de indivíduos,
divididos entre crianças, adolescentes e adultos. Ou, vez por outra,
classificados quanto ao gênero. Os dados são puramente estatísticos,
144
Relatório das Atividades da Escola Inspetor Francisco Sampaio, durante o ano de
1959. Sítio São José 31/12/1959. Vital Pereira da Silva Melo - professor; Brejinho – Pes-
queira, Relatório das Atividades da Escola Mal. Rondon do PI Xucuru, durante o ano de
1959. Rosa da Silva Lima - professora. Museu do Índio/Sedoc, mic. 179, fot. 270.

292 Edson Silva


números frios, sem outras informações que possibilitem inferir maiores
considerações. Do ponto de vista administrativo do SPI, esses dados eram
usados para contabilizar a atuação do órgão (CORRÊA, 2002, p.130) e
constituía uma atribuição obrigatória dos encarregados dos postos.
Muitos avisos mensais do “Posto Xucuru” listaram a produção
agrícola em grandes quantidades de farinha de mandioca, feijão e frutas:
caju, mangas, goiaba e bananas. Essas informações revelam a fertilidade
e a diversidade de culturas, no espaço tão pequeno de 6ha de terras,
correspondente ao patrimônio do Posto. Chama a atenção que, no início
de 1959, apenas a farinha e o feijão foram integralmente destinados ao
consumo. Dos 15.198 cajus colhidos, 10.000 foram vendidos. E ainda,
das 10.897 mangas, apenas 2.000 foram consumidas. Das 5.170 caixas de
goiabas, 5.000 foram vendidas, e as demais destinadas ao consumo. Todas
as 167 caixas de tomates e os 897 litros de mamona foram vendidos.145
Como foi visto, nesse período estavam em pleno funcionamento as
indústrias de doces e conservas em Pesqueira. Considerável parte da
produção agrícola do Posto foi destinada às indústrias na cidade, como
confirmaria posteriormente Ney Land, membro do CNPI, na sua descrição
sobre o Posto Xucuru.
No Aviso Mensal seguinte foi citado o plantio de uma grande
quantidade de árvores frutíferas e pés de café. Em 3ha estavam plantadas
210.255 árvores. Foram colhidas e vendidas 18.117 caixas de goiabas
e 414 de tomates. A população indígena era contabilizada em 1469
indivíduos, em sua maioria mulheres.146 Após meados do mesmo ano,
o Aviso Mensal, registrou um maior volume da produção e o cultivo de
outros produtos, como pitomba, macaxeira, milho, verduras e legumes,
bem como a venda de boa parte da produção colhida. Informava também
o aumento das vendas, inclusive de itens anteriormente destinados
exclusivamente ao consumo. Assim, foram vendidos 4.600 dos 10.600
litros de farinha, 9.000 dos 10.300 milhos colhidos, 5.000 kg dos 6.4000
kg de macaxeira, 10.000 das 15.000 bananas. Foram vendidas ainda
145
Aviso Mensal do Posto Xucuru em 28/02/1959 para a IR4. Museu do Índio/Sedoc,
mic. 179, fot.166.
146
Aviso Mensal do Posto Xucuru em 31/03/1959 para a IR4. Museu do Índio/Sedoc,
mic. 179, fot.168.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 293


1.200 caixas de pitomba, 4.500 caixas de tomates e 700 kg de verduras
e legumes. Foi adquirido material de construção para conclusão da
escola Marechal Rondon.147 A referida unidade escolar era localizada em
Brejinho.
Constata-se, pela leitura dos Avisos Mensais expedidos dos anos
seguintes, um significativo aumento da produção agrícola destinada
à venda, em oposição à diminuição da quantidade para consumo. Os
encarregados do Posto por diversas vezes solicitaram ou reclamaram
à IR4 a ausência e/ou atraso dos repasses de recursos, bem como a
falta de sementes e ferramentas para os índios, sempre citados como
desamparados. Tratava-se dos índios espalhados na Serra do Ororubá,
enquanto era vendida quase toda a produção do Posto.
Por outro lado, por várias vezes os agentes do SPI solicitaram
verbas para aquisição de mais terras para o Posto. Em 1955, o Chefe
da IR4 propunha a compra de 800 hectares de terras em Pedra d’Água,
uma propriedade da União cedida à Prefeitura de Pesqueira.148 Três
anos mais tarde, o encarregado do Posto Xucuru lamentava o pequeno
patrimônio do SPI na Serra do Ororubá, afirmando que os índios
estavam trabalhando em terras arrendadas e por isso se fazia necessária
a aquisição de mais terras para o plantio dos índios. 149 Em1960, o pedido
de verba suplementar para a IR4 era justificado como sendo para compra
de terras destinadas aos “Xucuru” que, espoliados, viviam “sem meios
de subsistência nos arredores da cidade”, recebendo míseros salários,
enquanto na Serra além dos “vexames e privações”, por que passavam,
não dispunham de condições para compra de ferramentas agrícolas para
trabalhar em suas plantações.150
Em uma longa descrição datada de 1957, o então Chefe da
147
Aviso Mensal do Posto Xucuru em 31/07/1959 para a IR4. Museu do Índio/Sedoc,
mic. 179, fot.174-175.
148
Ofício de Raimundo Dantas Carneiro, em 17/02/1958, para a Diretoria do SPI/RJ.
Museu do Índio/Sedoc, mic. 182, fot. 237.
149
Aviso Mensal do Posto Xucuru em 28/02/1959 para a IR4. Museu do Índio/Sedoc,
mic. 179, fot.166.
150
Pedido de Verba Suplementar para a IR4, em 23/05/1960. Museu do Índio/Sedoc,
mic. 182, fot. 743.

294 Edson Silva


IR4, Raimundo Dantas Carneiro, retomou os vários etnômios que
foram atribuídos aos índios habitantes na Serra do Ororubá, vivendo
nas proximidades de Pesqueira e na “Vila de Cimbres”. Para Carneiro,
“os descendentes” dos antigos moradores estavam espalhados na Serra
do Ororubá. O chefe do SPI regional, além de fazer um apanhado de
informações históricas sobre os Xukuru, baseadas na documentação
da Diretoria de Índios disponível no Arquivo Público de Pernambuco,
recorreu ao já citado relatório do sertanista Cícero Cavalcanti, que esteve
na Serra do Ororubá em 1944, como também ao relatório do antropólogo
norte-americano William Hohenthal.
Afirmava Dantas Carneiro que, em 1957, os Xukuru pagavam
aluguel de suas terras, espoliadas de seus pais. Canabrava era o lugar
mais habitado na Serra do Ororubá. Carneiro afirmava que Brejinho
era a área mais estéril. Essa afirmação possivelmente refletia a situação
de conflitos dos irmãos Nascimento com o SPI, ,após a instalação do
Posto Xucuru em São José. Dizia ainda o chefe da IR4 que, nos sábados
e quartas-feiras, os índios desciam da Serra para vende frutas, raízes,
flores, verduras, beijus e utensílios de palha na feira, na área urbana de
Pesqueira.
A população era contada em 2.200 “caboclos” que, como
informara Hohenthal reivindicavam suas terras espoliadas de volta, para
mudarem as condições de vida em que se encontravam. Para Carneiro,
a criação, em 1954, do Posto Xucuru como desejavam os índios, com a
construção de uma escola e ainda outra em Brejinho, e mais o auxílio
do SPI com ferramentas, medicamentos e tecidos para fardamentos
escolares e ainda a possibilidade de aquisição de mais uma área de
terras, garantiria a tranqüilidade para o trabalho dos Xukuru. 151
A descrição do Posto Indígena Xukuru elaborada pelo membro
do CNPI, Ney Land, em 1965, é por demais pessimista. A estrada do
Posto a Brejinho apresentava péssimas condições, com grandes buracos
e desfiladeiros, por onde escoavam as águas das chuvas. Para Land, não
151
As informações estão em um texto de três páginas datado de Recife, julho de 1957, de
autoria de Raimundo Dantas Carneiro, Chefe da 4ª IR do SPI.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 295


existiam comunicações entre as várias localidades, na Serra do Ororubá.
A seca era favorecida pelo clima quente, e a impermeabilidade do solo
provocava o rápido escoamento das chuvas, em uma região com duas
estações bem definidas: inverno e verão.
A geografia local era de terras altas, com secas, erosões e um
pequeno riacho. Ao enfatizar as “reduzidíssimas lavouras”, o plantio
dos cajueiros, mangueiras e o cafezal, Ney Land evidenciava uma outra
situação, muito diferente de anos passados recentes, em que os avisos
mensais do Posto traziam contínuas informações sobre a considerável
produção agrícola, principalmente de frutas. O membro do CNPI afirmou
a inexistência de fauna local, apenas de “pássaros para gaiolas” e declarou
que no riacho que não havia peixes. A região de Brejinho era a mais
habitada, onde o SPI mantinha uma escola que os irmãos Nascimento
impediam a visita pelos agentes do Posto. Informava ainda Land que,
além de um hectare cultivado com milho, o Posto tinha vinte pés de
abacate, trinta de bananeiras, quatro laranjeiras e trinta mangueiras. No
ano anterior, a produção de vinte caixas de goiabas fora vendida à fábrica
Peixe.
O Posto foi descrito como uma casa de oito cômodos, sem água
encanada, com fossa, luz de lampião de querosene e em boas condições.
Chama a atenção à idade e a extensa família do jovem encarregado
Agenor da Silva Guedes, com 26 anos, curso agrícola, casado e com
sete filhos. Ele fora auxiliar no Posto Pankararu e estava residindo em
casa própria, na área urbana de Pesqueira, para onde informara que ia
somente aos finais de semana. Porém Land não deu credibilidade a tal
informação porque a casa do Posto se encontrava vazia, sem móveis, e
com apenas uma rede.
Os dados descritos por Ney Land sobre os funcionários
permitem, além de cotejar informações colhidas nas entrevistas e nas
memórias orais Xukuru, visualizar o perfil dos agentes que atuavam junto
aos índios. Eram funcionários do Posto, afora Joana Correia Guedes, a
esposa do encarregado, atuando como professora primária e trabalhando
há doze anos no SPI; Alcebíades Simplício, trabalhador braçal, com 19
anos, casado e pai de três filhos, morando em casa do Posto; Petronilho

296 Edson Silva


Simplício, também trabalhador braçal, trabalhando há 12 anos no SPI,
casado, com três filhos e residindo em casa alugada fora do Posto; Durval
Ferreira Faria, atuava como auxiliar de enfermeiro, fora contratado há
três anos pelo SPI, casado, com sete filhos, morava em casa própria na
área urbana de Pesqueira. Um caso de funcionária fantasma era Marfiza
Rios de Carvalho, empregada como agente administrativa e casada com
um certo Cel. Dinalmod. Não se tinha informações sobre Marfiza, pois
ela estivera no Posto uma única vez e, alegando questões de saúde fora
embora para o Recife, de onde não mais voltara.152
Afirmando que “Não existem mais índios puros”, e enfatizando
a mestiçagem e a ausência de uma língua e religião própria, Ney Land
colocou em questão a identidade dos Xukuru, a quem ele chamou de
“remanescentes do grupo Xukuru”, de um grupo lingüístico desconhecido
e de um grupo já considerado integrado. Tal classificação estava em
consonância com os critérios e concepções do SPI, então vigentes, como
foi visto no Capítulo I. Quando afirmou que “Os índios são completamente
independentes e não querem ouvir falar do SPI”, o membro do CNPI
procurava justificar a falta de sentido em manter um posto do órgão
indigenista oficial na Serra do Ororubá. Todavia, como foi visto, a
afirmação de Ney Land carecia de fundamento, uma vez que existia até
uma insatisfação, por parte dos índios de Brejinho, para receberem maior
assistência oficial.
Na descrição dos usos e costumes Xukuru, Land utilizou
parâmetros comparativos com os índios da Região Norte. Dessa forma, só
viu pobreza na produção de objetos e utensílios Xukuru. Para ele, os índios
habitantes na Serra do Ororubá, “Limitam-se a produzir cestaria de um
modo geral”. E acrescentou: “Os objetos são os mais comuns”. Completou
afirmando; “A indumentária é a mesma do caboclo do interior”. Essa
concepção apareceu mais claramente quando Land enfatizou as boas
relações dos Xukuru com os “civilizados”, favorecida pela condição dos
índios pertencerem a “população de neo-brasileiros”153, trabalhadores
152
Descrição do Posto Indígena Xucuru, em 21/4/1965 por Ney Land. Museu do Índio/
Sedoc, mic. 182, fot. 654.
153
Idem.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 297


na lavoura para os “civilizados”, ainda que em troca de uma mísera
remuneração diária, situação não questionada pelo membro do CNPI em
seu relatório.
As relações dos Xukuru com os chamados “civilizados” nem
sempre foram boas. É ao menos o que se pode concluir de um registro
do mesmo ano de 1965, quando o encarregado do Posto Xucuru,
respondendo a um telegrama da IR4, afirmava que, após uma sindicância
por ele realizada, encontrara apenas duas índias como empregadas
domésticas, uma delas com 16 anos de idade, em casa de “civilizados”.
O agente do SPI informava ainda que nenhum índio prestava serviço na
casa de funcionários do Posto154. Diante da situação vivenciada pelos
Xukuru, a informação levanta, no mínimo, uma suspeita contrária ao
investigado.
Outro retrato do Posto e dos Xukuru, com uma detalhada riqueza
de informações, é encontrado em um Relatório de Estágio de William
Ribeiro, em 1971.155 As observações resultaram do acompanhamento
da rotina do Posto e da convivência muito próxima com os Xukuru.
Ribeiro começou afirmando a grande dimensão da área habitada pelos
“remanescentes” Xukuru, existindo aldeia distante 20 km da sede do
Posto. Toda a área foi percorrida a cavalo por William, que esteve, dentre
outros locais, em Cana-Brava, Brejinho, Vila de Cimbres. Ele afirmou ter
sido sempre bem recebido por onde passou, apesar do descrédito dos
índios em relação ao Posto.
Pela informação de Ribeiro, fica-se sabendo sobre o descrédito
provocado pela Liga Camponesa que existira vinculada ao Posto,
entre 1962/1963, quando muitos índios “inocentemente” teriam sido
cooptados pelas doutrinas marxistas, embora não tivessem nenhum
conhecimento sobre o assunto. Segundo William as lembranças da
repressão impediam que muitas famílias se aproximassem do Posto. A
chefia em exercício procurava então conquistar a confiança dos índios,
154
Ofício de Agenor da Silva Guedes – Agente do SPI, do Posto Indígena Xucuru,
24/11/1965, para a IR4. Museu do Índio/Sedoc, mic. 179, fot. 665.
155
Relatório de Estágio. MÊS: AGOSTO/SET/OUT. De William Ribeiro Ormundo, no
Posto Indígena Xucuru 27/10/1971. Museu do Índio/Sedoc, mic. 301, fot. 1167.

298 Edson Silva


para que restabelecessem as relações com o Posto.
Acompanhado de um servidor do Posto o estagiário realizou
várias viagens a cavalo, para levar medicamentos a índios doentes,
moradores distantes que não podiam se locomover até o Posto. Essa
ação servia também para angariar a confiança no trabalho desenvolvido e
motivou a procura pela ainda precária enfermaria, localizada na sede do
Posto. Por falta de verbas, a enfermaria possuía, em sua maioria apenas
remédios para os primeiros socorros, medicamentos comprados quase
sempre, com recursos dos próprios funcionários do Posto.
Os atendimentos em Cana Brava não podiam ser realizados na
escola local pois à semelhança da existente em Brejinho, encontrava-se em
estado precário. A escola próxima à sede do Posto não tinha instalações
sanitárias e funcionava em um prédio que, além de ser destinado a uma
casa de farinha, ameaçava desabar, porque que afora as muitas telhas
quebradas, as vigas do madeiramento da coberta estavam partidas e
sendo devoradas pelos cupins. Pela descrição de William, tudo beirava o
completo abandono, colocando em questão a assistência prestada pelo
SPI. Na documentação pesquisada encontram-se diversos pedidos de
verbas pela IR4 à Diretoria do SPI/RJ, para manutenção e aplicação nas
atividades dos postos indígenas.
Ao constatar que a base alimentar dos Xukuru era a mandioca,
William Ribeiro propunha a instalação de uma casa de farinha, para
o aproveitamento do plantio de toda a área do Posto. O maquinário
poderia ser movido pela energia de um gerador. Para o reinício das aulas
em Brejinho eram necessárias reformas nos móveis, no prédio escolar e
em suas dependências, muito danificados pela ação do tempo. A então
Diretoria Regional, que passara para a Funai, fora informada sofre a
situação e providenciaria os recursos necessários aos reparos.
Um grave problema a ser enfrentado era o alcoolismo entre
os índios. Muitos eram encontrados bêbados pelas estradas da Serra
do Ororubá, ao retornarem da venda de seus produtos na feira livre
que funcionava nas quarta-feira no centro de Pesqueira. Por causa do
consumo de álcool alguns provocavam desordens. O Posto realizava
tratamento contra a bebida utilizando remédios, alcançando sucesso em

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 299


vários casos, em uma atuação que segundo Ribeiro exigia dedicação e
paciência.
A eficácia da atuação do Posto, observada em tão curto período
de tempo, apenas três meses, pelo estagiário, foi colocada em questão
por ocasião da pesquisa realizada para a elaboração da Tese. Além
de testemunhar a considerável quantidade de dependentes de bebida,
especificamente a cachaça, conhecida por “urinka”, um dos poucos
vocábulos lembrados da língua materna não mais falada entre os
Xukuru, fomos informados pelos/as entrevistados/as de muitos casos de
familiares mortos, em decorrência do largo consumo do álcool.
Diante das precárias condições de vida e pobreza, o estagiário
William Ribeiro se colocava na condição de indigenista salvador, benfeitor
dos índios Xukuru, quando afirmou; “Cabendo a nós, indigenistas, levar
até eles o mínimo de conforto e segurança, enfim condições de vida”156
Porém, em nenhum momento ele questionou as invasões e apropriações
das terras indígenas por parte dos fazendeiros, provocadora da situação
de miséria em que viviam os índios por toda a Serra do Ororubá. Apesar
da falta de recursos, William expressava otimismo e muita crença na
atuação dos funcionários do Posto para mudar a situação.
Possivelmente aproveitando uma prática do trabalho coletivo
indígena, conhecida, como foi visto, por “juntada”, Ribeiro, juntamente
com jovens indígenas moradores no entorno do Posto, depois de uma
“permissão” da IR4, prepararam um campo para a prática de futebol
nas vizinhanças do Posto. Para “feitura” do campo, porém, os jovens
reformaram “um barraco” e construíram mais duas casas para pessoas
idosas e sozinhas moradoras em Brejinho.
Nas terras de propriedade do Posto havia além de fruteiras,
muitos pés de café, mas descuidados e prejudicados pelo mato daninho.
Após a colheita, o terreno seriam preparado para o plantio do café e da
mandioca. Na estação chuvosa seriam plantados milho, feijão, maracujá
e quiabo, afora goiaba, manga, abacate e jaca, culturas cuja produção
encontrava facilmente mercado. Convicto de que, com isso, seriam

156
Relatório de Estágio. Op. cit.

300 Edson Silva


mudadas as precárias condições de vida dos Xukuru, William afirmava
que assim alcançariam o progresso como meta desejada.
O abandono do Posto Indígena Xucuru e as precárias condições
da assistência oficial eram provavelmente ainda reflexos da crise ocorrida
após as várias denúncias sobre a ação indigenista estatal na década
de 1960, culminando com a extinção do SPI, em 1967. A visita que
resultou no relatório de Ney Land possivelmente objetivava verificar a
extensão das denúncias sobre a atuação governamental entre os Xukuru.
As observações e o relato de William Ribeiro possibilitam esboçar um
retrato, um quadro da atuação oficial e de alguns aspectos da situação em
que se encontravam os Xukuru no início dos anos 1970. Aparentemente
silenciosos, após a repressão aos participantes na Liga Camponesa, os
Xukuru retomaram na década seguinte, a mobilização por seus direitos,
como será visto no capítulo seguinte.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 301


Capítulo VI

“ISSO AQUI É NOSSO! ISSO É DA GENTE!”:


A PARTICIPAÇÃO DOS XUKURU NAS
LIGAS CAMPONESAS

As Ligas Camponesas em Pesqueira: contra os tatuíras


integralistas

Com a manchete: “Vitória dos camponeses de Pesqueira”, uma


notícia publicada pelo Jornal Folha do Povo, em março de 1960157, exaltava
a organização dos agricultores que, com uma greve, tinham derrotado
os “tatuíras integralistas — os Brito e os Didier”. Eram duas famílias da
tradicional oligarquia pesqueirense proprietárias, respectivamente, das
fábricas de doces e conservas Peixe e Rosa. Foram comparadas, pelo
jornal das Ligas Camponesas, aos crustáceos que vivem enterrados
na areia, mas a pouca profundidade, e por essa razão são arrancados
pelas ondas do mar. Ambas as famílias, reconhecidamente ligadas às
hostes políticas conservadoras na cidade que chegou a ser conhecida
como “germanófila brasileira”, por ser um reduto de muitos integralistas
(Amorim, 2002), foram acusadas, pelo jornal, de pagar salários miseráveis
aos operários nas fábricas e explorar os trabalhadores rurais.
A notícia do jornal acusava também os “industriais latifundiários”
por manterem o domínio econômico no município, ale de que, em seus
“feudos” não respeitavam os direitos dos foreiros, agindo com arbitrariedade
quando soltavam o gado dentro das lavouras dos agricultores e, depois de
destruí-las mandavam plantar capim. Segundo ainda o texto jornalístico,
no município imperava a “lei da chibata e facão”. Ocorriam violências

Folha do povo, Recife, 22/3/1950. Arquivo Público Estadual de Pernambuco/APE,


157

Fundo SSP 1083. (Documentação do Dops).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 303


sexuais contra menores e capangas armados, na cidade e no campo,
a mando dos fazendeiros, perseguiam e ameaçavam os trabalhadores
com a omissão das autoridades locais. Com a greve, os trabalhadores
conquistaram melhores salários e a garantia do respeito aos seus direitos.
Na cidade de Pesqueira, desde os fins da década de 1940,
registrava-se a presença de militantes do Partido Comunista Brasileiro,
como comprovam as atas de reuniões apreendidas pela polícia.158 Em
um ofício de 1947, o Delegado de Polícia da cidade comunicava ao
Secretário de Segurança Pública Estadual a apreensão de farto material
de propaganda no Comitê Municipal do PCB. A autoridade policial
informava ainda manter a vigilância, devido ao elevado número de células
comunistas existentes no município.159
Estudos apontam, após 1945, um crescente desenvolvimento
agroindustrial no campo, provocando a expropriação dos camponeses.
Ocorreram então profundas transformações sóciopolíticas, com expulsões
de antigos sitiantes ou o rompimento das relações de trabalho baseadas
na moradia e aforamento de terras, ou ainda pela cobrança abusiva do
foro (AZEVEDO, 1982) Tais situações provocaram, no Nordeste, inúmeros
conflitos entre camponeses e aqueles que detinham a posse de grandes
extensões de terras: os usineiros, na Zona da Mata, e os fazendeiros, na
região do Agreste.
Os governos populistas pós-Guerra de Juscelino Kubitschek
e, principalmente, o de João Goulart, pregaram as chamadas reformas
sociais de base, dentre elas a Reforma Agrária, estimulando a organização
e mobilização dos trabalhadores em todo o país, entre meados da década
de 1950 até os primeiros anos da década seguinte. As Ligas Camponesas
foram, portanto, uma expressão desse quadro político. (AZEVEDO, 1982).
As Ligas Camponesas tiveram suas origens embrionárias na

158
Em atas de reuniões do Comitê Municipal de Pesqueira do PCB, datada de 18/2/1947,
encontram-se as discussões sobre a atuação dos militantes na organização de células
comunistas entre trabalhadores da construção civil e ferroviários.
159
Ofício do Cap. Manoel de Souza Ferraz, 23/05/1947, ao Secretário de Segurança Pú-
blica de Pernambuco. Arquivo Público Estadual (APE), Fundo SSP 1083. (Documentação
do Dops).

304 Edson Silva


década de 1940, com as associações e cooperativas de plantadores
de legumes na periferia do Recife, naquela época ainda uma cidade
cercada de áreas com aspectos rurais, em terras de extintos engenhos de
açúcar nos outrora limites urbanos da capital. Essa experiência, da qual
participavam militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), serviram
de modelo para a organização das Ligas Camponesas.
Nos primeiros meses de 1961, na cidade de Pesqueira, o
ambiente era de muita agitação social. O assunto mais comentado: as
Ligas Camponesas. No detalhado relatório investigativo solicitado por um
“ofício reservado” da Diretoria do Serviço de Proteção aos Índios/SPI, no
Rio de Janeiro, está evidenciado o “ambiente de insatisfação”160 naquela
cidade, uma das muitas no interior pernambucano para onde as Ligas
se estenderam, a partir da Zona da Mata, e já naquele ano contava com
cerca de dez mil associados. (MEDEIROS, 1989)
Um detalhado relatório policial de janeiro de 1962, para a
Secretaria de Segurança Pública, citava as atividades de “incendiários”
em Pesqueira, orientados por José de Alexandre e mais os “auxiliares”
Viana Arcoverde e Manoel Moreira, todos dirigentes das Ligas
Camponesas. O documento relacionou várias fazendas atingidas, dentre
elas as Fazendas Maravilha e Gravatá, de Fernando Didier, a Fazenda
Tambores, de Praxedes Didier, e a Fazenda Ipanema, de Moacir Brito
de Freitas. Segundo o documento, os tais incêndios causaram “vultosos
prejuízos”, com a perda da “colheita anual de rações para a criação”. Na
cidade estavam ocorrendo reuniões para organização do sindicato rural,
onde em uma delas, dentre outras pessoas relacionadas, participara um
deputado vindo do Recife e um vereador local.161
As acusações de incêndios provocados por membros das Ligas
Camponesas, principalmente em canaviais de engenhos e usinas no
160
O Relatório de Paulo Rufino de Melo e Silva, datado de 08/08/1961, dirigido à Dire-
toria do SPI/RJ, cumpriu as determinações do “ofício reservado” de 12/07/61 e de uma
Ordem Interna da 4ª Inspetoria Regional (IR4) do SPI. Museu do Índio/Sedoc, microfilme
182, fotogramas 806-809.
161
Relatório. De Euclides S. Arruda (investigador nº. 70), em Recife 24/01/ 1962, para o
Comissário Supervisor/Secretária de Segurança Pública/SSP. APE, Fundo SSP 29285.
(Documentação do Dops).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 305


litoral no Estado de Pernambuco, foram constantemente noticiadas na
imprensa pernambucana. Porém, um estudo comprovou que as suspeitas
passaram a acusações, na medida em que se expandiu a organização
das Ligas Camponesas. As notícias objetivavam incutir nos leitores e na
população a idéia e o pavor contra os trabalhadores rurais, que insuflados
pelo comunismo das Ligas, estavam criminosamente incendiando o
campo (MONTENEGRO, 2007, p.205-224). Em relação a Pesqueira, na
pesquisa realizada em jornais da época, bem como em outros registros
do Dops do período, não encontramos nenhuma informação sobre os
tais incêndios causadores dos “vultosos” prejuízos nas citadas fazendas.
Durante a década de 1950 crescera consideravelmente a
produção agro-industrial em Pesqueira, mas com um elevado custo
social. Na Serra do Ororubá, onde moravam os índios Xukuru do extinto
Aldeamento de Cimbres, as fazendas de gado, com grande produção
leiteira, dividiam os espaços com o plantio de tomates e frutas destinadas
às indústrias de doces e conservas na cidade. Na Serra também, além
da água canalizada para o abastecimento das indústrias, as matas eram
devastadas, para a retirada de madeira que serviu como combustível para
as fábricas. Seus antigos habitantes eram expulsos de suas terras e, como
foi visto, muitos vieram morar na periferia de Pesqueira, onde alguns se
tornaram operários. (SETTE, 1956). Miséria para muitos e fartura para
poucos. O avanço do latifúndio agro-industrial na Ororubá provocava a
escassez da produção de alimentos destinados à cidade, com a elevação
dos preços, a pobreza generalizada e a mendicância acentuada, como
noticiava um jornal local.162
Em uma longa matéria publicada em fins de 1962 em um jornal
impresso na capital e de grande circulação no Estado de Pernambuco,
as fábricas Peixe anunciavam a execução, com sucesso, de seu plano de
Reforma Agrária em Pesqueira e sete municípios vizinhos, onde existiam
terras de seu domínio com plantios de tomates e frutas destinadas à
fabricação de doces163. Após enfatizar a importância econômica daquela
Notas soltas. A voz de Pesqueira, Pesqueira, 21/06/1953, p.1.
162

As Fábricas ‘Peixe’ de Pesqueira executam com sucesso seu plano de Reforma Agrária.
163

Diário de Pernambuco, Recife, 09/11/ 1962. APE, Fundo SSP 1083. (Documentação

306 Edson Silva


indústria doceira para o desenvolvimento municipal e regional, o artigo
abordava a preocupação com o problema social e as condições de vida
dos trabalhadores.
A “parceria agrícola” estabelecida pela fábrica Peixe estava
baseada em um contrato escrito, com “deveres e obrigações de ambas
as partes”, em que a empresa deveria dar toda a assistência técnica,
sementes, cuidado com o solo, além de irrigação, habitação para o
agricultor e o transporte de toda a sua produção paga em 50%, em um
preço previamente fixado pela fábrica Peixe. Por sua parte, o agricultor
deveria acatar as normas e determinações previstas no contrato, mantendo
em bom estado o solo cultivado, a habitação e as estradas, “recebendo
para isso retribuição extra”, não indicada na reportagem. Além disso, ele
entregaria toda a sua produção, conforme o preço fixado no contrato,
devendo “somente plantar na área reservada à lavoura de subsistência,
cereais ou lavouras de ciclo curto, afim de que, concluída a colheita e de
acordo com o plano de pecuária, o gado da empresa possa pastar em
toda a área, durante dois ou mais meses, até o início das culturas do ano
seguinte”. (FEITOSA, 1985, 82) (Grifamos).
Desde meados de 1950 a fábrica Peixe detinha em seu poder
uma grande área agrícola, onde se situavam as “fazendas” de cultivo,
com base no trabalho assalariado. A parceria proposta por aquela
indústria, no início dos anos 1960, além de fazer parte de um processo
de reestruturação da empresa, foi propagada como uma estratégia para
melhorar, mas fundamentalmente o objetivo era modificar as relações
de trabalho e produção, salvaguardando os interesses da empresa.
A indústria doceira, outrora saudada como promotora do progresso
e do grande desenvolvimento regional dava seus primeiros sinais de
decadência, sendo a perda de lucros e os custos sociais considerados
naturalmente como remediáveis. A proposta da Indústria Peixe constituía
fundamentalmente uma resposta das elites econômicas para atenuar os
conflitos sociais, decorrentes da concentração de terras e da manutenção
de relações de exploração dos trabalhadores rurais, em Pesqueira e

do Dops).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 307


regiões próximas. (FEITOSA, 1985). Os graves problemas sociais eram
vistos, antes de tudo, como uma questão de polícia. É sintomático que o
recorte do jornal esteja arquivado na documentação do Dops.
A fábrica Peixe e as demais indústrias de doces e gêneros
alimentícios instaladas em Pesqueira entraram em decadência em fins
dos anos 1960 que se acentuou na década seguinte, em conseqüência
das mudanças econômicas em que os grandes capitais passaram a ser
investidos no Sudeste do país, em fábricas concorrentes. Ocorreu a
desagregação do clã dos Brito, a venda da empresa a um grupo canadense
e, posteriormente, a falência (CAVALCANTI, 1979).
Em meados de 1981164, o Presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Pesqueira apelava para a Delegacia Regional do
Trabalho em prol de mais de 600 famílias, algumas com mais de 30 anos
de trabalho, moradoras em seis fazendas que pertenciam à fábrica Peixe.
As fazendas tinham sido repassadas ao BNDE para pagamento de dívidas
contraídas com empréstimos públicos. O BNDE estipulou que somente
receberia as terras da empresa devedora com as escrituras em cartório
e sem embaraços com trabalhadores. O sindicalista acusava a empresa
de estar pagando indenizações irrisórias e expulsando os moradores das
terras das fazendas. Os trabalhadores afirmavam que iriam resistir e não
abandonariam as terras.

O perigo comunista e os índios “ignorantes”

O crescimento industrial favoreceu a instalação de novas firmas


comerciais, bancos, prédios públicos, colégios, a abertura de novas
ruas, avenidas, praças e ainda o fornecimento da energia elétrica em
Pesqueira. A concentração de rendas se expressava no vistoso casario das
famílias abastadas. Como também ocorria o surgimento de aglomerações
na periferia urbana, formadas em sua maioria, pelas habitações do
operariado.

164
Sindicalista faz apelo por mais de 600 famílias. Diário de Pernambuco (?), Recife (?),
06/08/1981. APE, Fundo SSP 30930. (Documentação do Dops).

308 Edson Silva


Dentre estes, muitos eram índios da Serra do Ororubá, que se
concentravam no Bairro “Mandioca”, o atual “Bairro Xucurus”, que reúne
a grande maioria das famílias indígenas na área urbana de Pesqueira. Em
conversas informais moradores locais mais velhos afirmam que muitas
dessas famílias foram expulsas de seus sítios na Serra, por fazendeiros
invasores. Portanto, muitos dos trabalhadores nas fábricas na cidade,
como também os agricultores na zona rural de Pesqueira, eram índios
xukurus. Na documentação oficial e nas memórias orais indígenas
encontramos relatos das experiências vivenciadas enquanto operários
urbanos ou como trabalhadores-moradores em terras de fazendeiros que
invadiram o antigo aldeamento indígena de Cimbres. Como já foi visto, as
atividades, em sua grande maioria, eram noturnas, para fugir à fiscalização
trabalhista, já que os trabalhadores eram clandestinos; as condições de
trabalho eram penosas e difíceis, era principalmente o serviço pesado de
carregar caixas nas costas, descarregar caminhões, que foram recordadas
também por vários entrevistados.
Na área rural, na Serra do Ororubá, muitos xukurus sem terras
moravam “de favor” em terras nas mãos dos fazendeiros. Pagavam a
moradia com o trabalho na lavoura. Muitos trabalharam desde a infância
nas lavouras, que eram invadidas e destruídas pelo gado do fazendeiro.
Uma outra opção para os índios sem terras era o chamado trabalho
arrendado. E também aumentavam as pressões dos fazendeiros sobre
aqueles que possuíam pequenos pedaços de terras, arrendando-as,
comprando-as, tomando-as à força. O que provocou a dispersão de
famílias indígenas.
Em outras localidades, algumas famílias herdaram dos seus
antepassados pequenos pedaços de terras. O Pajé Xukuru, “Seu”
Zequinha, recordou que a falta de terras obrigava os índios a trabalhar
para os fazendeiros. Ele próprio trabalhou nessas condições. Quando era
de seu interesse, os fazendeiros cediam terras para trabalho em regime
de pagamento, com a maior parte da produção colhida às pressas. Uma
pressão crescente, até a expulsão dos pequenos proprietários:
Quem ficou com uns pedacinhos, ainda trabalhava naqueles

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 309


pedacinhos deles. E quem não tinha, tinha que trabalhar a
roubo. O pessoal, o fazendeiro abria campina, andava aquele
roçado. Eu mesmo trabalhei muito nas propriedades do povo,
dos fazendeiros. Eu pagava um saco de milho por quadra,
pagava. O pagamento era um saco de milho e a prestação
ficava. Fechava pra estação e a fava que a gente ficava, ele
não deixava nem amadurecer direito, o camarada apanhava
verde mesmo, ai que nós vivia assim, mas teve uma época,
que não teve nada. Os fazendeiros tomaram conta. (Pedro
Rodrigues Bispo, Bairro Portal, Pesqueira/PE)

Em 1950, o jornal Folha do Povo denunciara que “a Tribu


Xicurús, composta de uns 10 mil índios”, habitantes na Serra do
Ororubá “há dezenas de anos”, viviam na miséria, sem assistência oficial
e perseguidos. Afirmava a reportagem que o clero de Pesqueira e o
governo eram contrários aos índios, isso a partir de um episódio no qual
enxadas prometidas e enviadas para os índios pela Secretaria Estadual
da Agricultura foram vendidas pelo índio Malaquias, funcionário da
Prefeitura de Pesqueira. Quando cobrada pelos índios, a Secretaria
recebera a informação da Prefeitura de que as ferramentas foram
distribuídas aos destinatários.
Segundo ainda a reportagem o desvio das enxadas contou
com a anuência do líder indígena Luiz Romão, um inimigo e traidor
que enriquecera rapidamente explorando os índios, com o apoio dos
“integralistas Brito e pelo clero”. Uma comissão de índios, embora
ameaçada de prisão, estivera no Recife tendo o Secretário de Agricultura
negado conhecer a denúncia afirmando dispor de enxadas para venda
a compradores. Procurado pelos reclamantes em Belo Jardim, cidade
vizinha a Pesqueira, o Padre Olímpio ordenou que os índios fossem
embora e ameaçou mandar prendê-los. Por estarem então os Xukuru
“famintos, sem enxadas, com a polícia para persegui-los, auxiliada
pelo clero e os integralistas Brito”, conclamava o jornal os índios para
solidificarem sua organização e fazer suas reivindicações por meio de
atividades, de “comícios, passeatas e palestras”, além de deporem o líder

310 Edson Silva


Luiz Romão.165

Jornal Folha do Povo, de


2/3/1950, publicado pelas
Ligas Camponesas.
Acervo APE, Fundo SSP/Dpos.

É necessário compreender o quadro sóciopolítico da época,


para entender as acusações tanto a Luiz Romão como ao Pe. Olímpio
Torres. A partir da leitura de outras fontes, é possível conhecer mais
um pouco as relações políticas e perceber melhor os conflitos expressos
nas afirmações do jornal. Luiz Romão foi muito ligado à Igreja Católica
Romana e, como foi visto, o Padre Olímpio no início da década de 1940,
escreveu artigos no jornal A voz de Pesqueira, nos quais denunciava as
invasões das fazendas de gado na Serra do Ororubá e as expulsões de
famílias indígenas. E, por isso, recebeu críticas, em cartas enviadas ao
mesmo jornal.
Mas, a Igreja Romana, ao mesmo tempo em que denunciava
a exploração e as desigualdades sociais, se preocupava e combatia o
avanço do comunismo no campo, como publicava um jornal do Recife,
na matéria “Bispo de Pesqueira: comunistas agem no interior nordestino”:
Toda a Zona Rural do Nordeste está correndo grave risco,
com a infiltração insidiosa e perseverante dos agentes comu-
nistas através da instalação das chamadas “ligas campone-
sas”, aparentemente destinadas a prestar assistência aos ne-
cessitados, mas constituindo, na verdade, focos de subversão
que poderá explodir quando menos esperarmos — declarou

165
Usurpados os índios Xigurús Folha do povo, Recife, 2//2/1950.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 311


hoje dom Severino Mariano de Aguiar, bispo de Pesqueira,
em Pernambuco, que foi um dos principais coordenadores do
Encontro dos Bispos do Nordeste.166

O Bispo era um dos articuladores dos prelados nordestinos que


discutiam a questão social na Região. O jornal informava que o religioso
estava no Rio de Janeiro, onde fora procurar os ministros da agricultura,
educação e saúde e ainda o Presidente da República, para reclamar da
situação de miséria do camponês nordestino, um homem “ingênuo”
desamparado e por isso de fácil cooptação pelos “bolchevistas manhosos
e hábeis”. Cabia às autoridades agir urgentemente para impedir uma
revolução vermelha no campo!
O líder comunista Gregório Bezerra, em suas Memórias, relatou
que, além das dificuldade, por causa da influência da Igreja Romana,
em conseguir em Pesqueira uma casa de aluguel, para sede das Ligas
Camponesas, a organização enfrentava uma grande resistência do Bispo
local. Ocorria uma seca na região e o religioso adquirira uma considerável
quantidade de gêneros alimentícios, mas só eram distribuídos aos que
confessavam sua fé.
Diante dos protestos, o prelado recuou de sua decisão, embora
a distribuição fosse destinada, em maior quantidade, para os católicos
romanos, provocando inúmeros conflitos entre os flagelados e os
responsáveis pela distribuição dos alimentos. O Comitê local do PCB
solidarizou-se com os famintos e o Bispo passou a atacar com ímpeto
a Liga Camponesa e Gregório Bezerra, chamando-o de “agente do
imperialismo russo” (BEZERRA, 1979, p. 158-159).
As ações do Bispo de Pesqueira são compreendidas, como
foi visto, a partir dos discursos e atuação da Igreja Católica Romana,
nos anos 1950. Em sintonia com o Vaticano, o episcopado brasileiro
formulou discursos e empreendeu ações em favor dos explorados. Os
problemas sociais passaram, portanto, a fazer parte das preocupações
mais importantes da Igreja, fomentando assim uma atuação social e

166
Bispo de Pesqueira: comunistas agem no interior do Nordeste. Diário de Pernambu-
co, Recife, 7/04/1959.

312 Edson Silva


política do clero brasileiro. Dom Severino Mariano, o então Bispo de
Pesqueira era muito próximo ao conhecido Arcebispo de Olinda e Recife
D. Helder Câmara, fundador da CNBB que por meio de um plano de ação
pastoral conjunta para os bispos, como foi visto, objetivava uma atuação
do clero nas questões sociais.

O Jornal Diário de Per-


nambuco (7/4/1959) com
a reportagem em que Dom
Mariano,Bispo de Pesqueira
e uma das lideranças reli-
giosas católicas romanas
no Nordeste, denunciava a
atuação dos comunistas no
campo, por meio das Ligas
Camponesas.
Acervo APE, Fundo SSP/Dops.

Foi nesse quadro sociopolítico, em um ambiente de exploração


e opressão, que as Ligas Camponesas em Pesqueira tiveram a adesão e
participação dos índios Xukuru. Em 1959, era denunciada à Secretaria de
Segurança Pública, no Recife, uma Liga Camponesa “a 12 km da cidade”,
ou seja, em uma área na zona rural de Pesqueira. Segundo o informante,
o candidato a Prefeito daquele município, Luiz Neves, afirmara que: “se
eleito estaria ao lado dos camponeses e resolveria a situação de divisão
de terra”. Afirmava ainda o denunciante que o local estava recebendo
visitas de “Dr. Julião” (Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas no
Nordeste), que organizara a sede e a diretoria da Liga naquele lugar.167
A existência da Liga Camponesa entre os índios era do conhecimento
da Inspetoria do SPI no Recife, que solicitou ao encarregado do Posto

167
“Parte”. De Eliel T. Vasconcelos, Recife 8/12/1959, para o Comissário Auxiliar (Secretaria
de Segurança Pública/SSP). APE, Fundo SSP 1083. (Documentação do Dops).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 313


Indígena Xukuru, em fins de janeiro de1960, a apuração da denúncia de
desvio, para a Liga, do leite destinado à merenda escolar, como constatara
um oficial do serviço secreto do Exército168
A organização da Liga Camponesa prosperou e era vigiada de
perto pelas autoridades. Em 1961, o Delegado de Pesqueira informava
que, recentemente, “camponeses construíram uma palhoça, sendo a
primeira feita pela Liga. Eles tinham ameaçado os proprietários com
armas, gestos e palavras”.169 Em um trecho de um relatório datado do
mesmo ano170 consta que, em Pesqueira, a sede da Liga ficava na área
urbana da cidade. E a sede da Liga “fora da cidade”, encontrava-se no Posto
do SPI, cujo chefe era “o agitador Arnaldo Tenório”, que recentemente
“tinha criado uma polícia dos índios com seu respectivo fardamento”.
Segundo ainda o documento, a Liga “se empenha pelas propriedades
Brejinho, Lage Grande, Cana Brava e Caipi”. A organização tinha mais de
400 integrantes, dirigidos por Gregório Bezerra. Este um conhecido líder
comunista, posteriormente preso pela repressão militar do Golpe, em
1964. Quanto aos locais relacionados em registros históricos aparecem
como lugares de moradia dos Xukuru.
O investigador mandado sigilosamente a Pesqueira pela
Inspetoria Regional do SPI, sediada no Recife, elaborou um relatório171,
no qual detalhou como atuava a Liga Camponesa, entre os índios.
Segundo o investigador, afora Pesqueira, os municípios próximos eram
locais de atuação do “famoso Gregório”. Militantes de sua confiança,
vindos de cidades próximas e até de Vitória de Santo Antão, berço
das Ligas Camponesas, visitavam regularmente Pesqueira, para fazer
168
Memorando reservado nº. 25. Do Chefe da IR4 Raimundo Dantas Carneiro,
08/09/1959, para o Encarregado do PI Xukuru Coriolano de Mendonça. Museu do Índio/
Sedoc, microf. 181, fotog. 338.
169
Telegrama. De Modesto Oliveira, Sargento-Delegado, Pesqueira, 27/05/1961, para o
Delegado Secretário de Segurança Pública no Recife. APE, Fundo SSP 1083. (Documen-
tação do Dops).
170
Relatório datado de 25 de setembro de 1961. Relatório das sindicâncias relativas às
Ligas Camponesas. Da SSP/Delegacia Auxiliar, para o Comissário Supervisor. APE, Fun-
do SSP 29285. (Documentação do Dops).
171
Relatório de Paulo Rufino de Melo e Silva, 08/08/1961, para o Diretor do SPI no Rio
de Janeiro. Museu do Índio/Sedoc, microf. 182, fotogs. 806-809.

314 Edson Silva


“propaganda comunista”. Um deles, Manuel Moreira, agia com descrição,
era especialista em guerrilhas e “periodicamente visitava os caboclos,
constituindo entre eles adeptos”.
Além de Manuel Pereira, apontado como “o principal entre
os índios”, são citados no relatório Zacarias Pereira, Elói Pereira e
Antonio Nascimento, que também eram “ardorosos adeptos das Ligas
Camponesas”. O investigador chamou a atenção que os índios envolvidos
com as Ligas eram moradores em Brejinho e Cana Brava, acentuando
ainda a ausência de adesistas à organização camponesa de moradores
em São José, “apesar de ser o núcleo indígena mais perto da cidade e
por isso mais próprio a manter contacto com os comandos comunistas”.
A observação do investigador revela que, para fugir do controle policial,
a Liga entre os índios foi organizada na Serra do Ororubá, em um local
mais distante da sede do município. Foi citado o nome de Antonio
Nascimento, provavelmente pela sua conhecida liderança na mobilização
para a instalação de um Posto do SPI, entre os Xukuru.
No relatório, ainda é afirmado que a Liga Camponesa em
Pesqueira era conhecida como “Sociedade dos Agricultores”, prometendo
aos filiados vários auxílios sociais, cobrando uma mensalidade,
concedendo uma carteira de sócio aos participantes. Em uma informação
verbal, “Seu” Zequinha, o Pajé Xukuru, afirmou que Artur Elói, Manuel
Pereira (“Mané Barrete”), Antero Pereira e Zé Miguel, todos moradores
em Cana Brava onde, nasceu o Pajé, tinham “a carteirinha com a foice
e o martelo”. O anteriormente citado relatório contabilizou em 1.500 o
número de associados da Liga Camponesa em Pesqueira e menciona
que o Bispo diocesano, a exemplo do ocorrido em outros municípios,
criara uma associação literária e filantrópica, de cunho moral e religioso,
destinada aos agricultores, para combater a organização dos comunistas.
A presença de militantes comunistas na Serra do Ororubá teria
diminuído, informava o investigador no referido relatório, em razão das
ações repressivas das autoridades municipais, com o apoio da chefia
do Posto do SPI e do Sargento do Exército, comandante do Tiro de
Guerra em Pesqueira. O militar tomaria imediatas providências, ao

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 315


ser informado sobre as visitas de pessoas estranhas e a realização de
propaganda comunista entre os índios. Nas conclusões do seu relato, o
investigador afirmava: “De um modo geral, os nossos índios são levados
pelas vantagens a eles oferecidas por seus doutrinadores e dada a sua
ignorância, não acredito que os mesmos sigam por convicção a ideologia
que eles pregam”172.
O policial escreveu estar convicto que, mesmo aqueles citados
índios envolvidos na Liga não tinham “o necessário entendimento para
compreender em toda a sua extensão a ideologia a eles apresentada
pelos comunistas”173 A visão do investigador expressava a concepção
oficial e geral da sociedade da época sobre os índios, tidos como
ingênuos e passíveis de pronta cooptação pelos perigosos comunistas.
Para o investigador, as condições de vida Xukuru, que reconhecidamente
não recebiam uma devida assistência governamental, tornavam-os
potenciais vítimas de ideologias perigosas à ordem social estabelecida.
Mas, uma análise dos relatos Xukuru sobre o envolvimento com a Liga
põe em questão essa concepção. Os Xukuru participaram ativamente na
organização e nas mobilizações da Liga Camponesa, tanto na Serra do
Ororubá, como no centro de Pesqueira.

As memórias indígenas sobre a Liga Camponesa e a


ocupação de Pedra d’Água

Além das memórias orais dos Xukuru, diversos documentos


registram a participação indígena na Liga Camponesa em Pesqueira.
A formação de uma polícia indígena foi apoiada pela Inspetoria do
SPI no Recife, ao remeter ao encarregado do Posto Indígena Xukuru
modelos de fardamento para a milícia.174 Indicando que, oficialmente,
em um primeiro momento, a idéia não tinha nenhuma relação com a

172
Relatório de Paulo Rufino..., op.cit.
173
Idem.
174
Memorando Circular nº. 84/60 que remete cópias das Ordens de Serviço internas nº.
29, 30 e 31. Do Chefe da IR4 Raimundo Dantas Carneiro, 29/03/1960, para o Encarrega-
do do PI Xukuru Coriolano de Mendonça. Museu do Índio/Sedoc, microf. 181, fotog. 339.

316 Edson Silva


Liga Camponesa ou os comunistas, como denunciou a citada “Parte”,
enviada meses antes à Secretaria de Segurança Pública no Recife.
Dois entrevistados recordaram a participação na polícia indígena.
O primeiro falou ter sido convidado por “Arnaldo”, possivelmente o
mesmo indivíduo anteriormente denunciado como “agitador comunista”.
Nas entrelinhas da fala é possível perceber a mobilização para “a festa”,
como chamava a organização, se referindo à ocupação das terras. Os
“soldados-índios” tinham fardamento e várias pessoas da família do
entrevistado foram recrutadas:
Eu fui soldado do SPI. Chegou aqui um chefe, chamado Ar-
naldo. Nós, esse chefe chegou aí pra trabalhar. Aí o dono
do terreno era desse pessoal que num aceitava ninguém no
terreno dele. Era desses caboclos antigo. O que é que você
veio ver minha terra? – esse rapaz! Eu vim trabalhar com
vocês. – Não, aqui não tem ninguém trabalhando pra nós
não. Eles falavam tudo assim! Ai ele foi ajeitou e ficou. Man-
dou fazer um coquetezinho (chapéu) de pano pra nós, vestia
uma roupinha e nós. Chamava-se era dez soldado-índio. Da
minha família foi Antonio Deodato, Antonio Moacir, Antonio
Brainha, tio Mané, meu pai, eu, finado Zezinho, finado Mané
Pereira e o finado Guilherme. Era todinho esse povo. (José
Pereira de Araújo, “Zé de Ismaé”, Aldeia Cana Brava).

O segundo entrevistado, “Seu” Brainha, citado pelo primeiro


como um dos participantes da polícia indígena, falou da sua adesão à
milícia: “Arnaldo chegou lá, em Cana Brava, né? E falou pra botar uns
guardas lá. Uma polícia, lá. Polícia, milícia, o que é que eles diziam lá,
né?” (Antônio Feliciano da Silva, “Seu” Brainha, Bairro José Jerônimo,
Pesqueira). Sobre o indivíduo que fizera o convite, “Seu” Brainha disse:
“Ele era de fora! Era um galeguinho guaxo, de fora, viu?”
Os “soldados-índios” percorriam preventivamente a Serra do
Ororubá, durante a noite:
Não fazia nada, só andar de noite. Um pedaço da noite, e
quando chegar a Cana Brava somente. Pra saber se tinha
algum malfeitor por ali, que aparecesse, néra? Alguma con-

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 317


fusão, alguma briga acontecesse por ali, pra nós pegar o
cabra! Isso às vezes, viu? Não peguemos nada! Ninguém.
Demorou, foi poucos dias. (Antônio Feliciano da Silva, “Seu”
Brainha, Bairro José Jerônimo, Pesqueira)

Pela fala do entrevistado, podemos deduzir que se tratava de um


serviço de vigilância, enquanto existiu a Liga na Serra. O entrevistado
lembrou que posteriormente foram levados para o quartel em Pesqueira,
e depois de uma repreensão, ficaram presos:
Ele trouxe pro quartel pra apresentar ao tenente. Eu sem von-
tade de ser soldado. Nós viemos ficar aqui. Aí pegaram um
reboliço lá, por causa dele lá. E nós fiquemos!
“— Vocês querem ser polícia, vocês vem aqui, no batalhão.
Num sei aonde no 4º Exército, no 2º Exército e pega a farda.
Mas com esse homem aí, vocês não pegam, não”. (Antônio
Feliciano da Silva, “Seu” Brainha, Bairro José Jerônimo,
Pesqueira).

Questionado sobre o motivo das prisões, “Seu” Brainha


respondeu: “Porque tinha que levar os índios pra se apresentarem lá, pra
polícia ver, né? Mas, nós não fomos de nada nessa vida. Nem eu, nem
Zé Cacique, nada”. Pelo relato, percebe-se que a prisão ocorrera pelo
envolvimento do entrevistado e outros companheiros seus com a Liga
Camponesa. Após as prisões, o citado Arnaldo desapareceu “Aí o homem
desapareceu pro Recife, até hoje! Nunca mais veio aqui, nem vi a cara
dele mais nunca na vida!”. (Antônio Feliciano da Silva, “Seu” Brainha,
Bairro José Jerônimo, Pesqueira).
Em fins de 1963, um enviado do Ministério da Agricultura a
Pernambuco declarava ter recebido todo o apoio do Governador Miguel
Arraes e do delegado da Superintendência da Reforma Agrária/Supra
em Pernambuco, para ir a Pesqueira, realizar, in loco, uma investigação
sobre as invasões de terras da União por trabalhadores rurais. Na
apresentação do seu relatório175, o emissário ministerial transmitiu ao

175
Ofício do Subchefe do Gabinete do Ministério da Agricultura, 04/12/1963, para o
Presidente da Supra. Relatório sobre o município de Pesqueira, 23/12/1963. APE, Fundo

318 Edson Silva


delegado da Supra, a recomendação do Ministério na prioridade para
Pesqueira em um convênio com o Governo de Pernambuco. O autor
do detalhado relatório afirmou ter buscado informações com vários
grupos e pessoas em Pesqueira: com os proprietários de terras, com o Pe.
José Maria, designado pelo Bispo de Pesqueira para prestar assistência
religiosa aos camponeses, com o engenheiro agrônomo responsável pelo
Posto de Fomento Agrícola na cidade, e em reuniões com o sindicato dos
trabalhadores rurais, objetivando conhecer “as legítimas reivindicações
da classe”.
O agrônomo informou sobre o clima de agitação política “das
massas rurais” e suas reivindicações; sobre a reação dos proprietários
contrários aos trabalhadores sindicalizados, acusando-os de subversivos,
colocando em perigo a ordem social. As insatisfações dos trabalhadores
resultavam da falta de trabalho, pela recusa dos proprietários em aceitá-
los, mesmo como arrendatários, quando sindicalizados. A situação estava
mais agravada por causa da seca que destruía as lavouras financiadas,
sendo os débitos de muitos endividados cobrados sem amortização, pelo
Banco do Brasil.
Os trabalhadores rurais na condição de arrendatários e
moradores eram expulsos, tendo inclusive as suas casas destelhadas,
informação confirmada pelo Padre José Maria, que tentara demover os
proprietários de tal atitude, justificando assim o religioso a organização
dos trabalhadores. Diante da situação, o emissário do Governo
Federal discorreu sobre o sentido social da propriedade da terra, da
legitimidade da sindicalização dos camponeses e da necessidade de
“uma reforma agrária cristã e democrática”, para o bem do país, como
pregava a CNBB.
Quanto ao fato de existirem, dentre os cerca de 2.000
trabalhadores rurais sindicalizados em Pesqueira, indivíduos oriundos das
Ligas Camponesas em uma reivindicação de classe, eram trabalhadores
que, conjuntamente com os de inspiração cristã, seguiam as orientações

SSP 29293. (Documentação do Dops).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 319


doutrinárias da Igreja Católica Romana no Brasil, lutando por melhores
condições de vida para todos. Afirmava ainda o relator que os
trabalhadores tinham invadido terras púbicas, demonstrando assim seus
propósitos pacíficos, e ainda em expressões de respeito às autoridades do
Governador do Estado e do Presidente da República, como comprovara,
não existindo, portanto, razões para o medo dos proprietários de terras
particulares.
De volta ao Recife, tendo procurado o Governador Miguel Arraes,
o emissário do Ministério da Agricultura afirmou que fora informado por
aquela autoridade do envio de tropas da polícia estadual a Pesqueira, “como
poder menos repressivo do que acompanhamento das soluções jurídicas
mantenedoras da ordem pública, sem detrimento dessa ou daquela parte
desentendida”.176 O relator afirmava ainda concluir seu trabalho otimista,
apesar da grave situação em Pesqueira, onde “as relações das classes em
litígio” poderiam chegar ao extremo, se propagando “a agitação local” por
outras regiões e por todo o Estado de Pernambuco.
O relatório embora em nenhum momento tenha citado os
índios, é claramente favorável, ao ser constatada a ocupação em terras
públicas, às reivindicações e organização dos “trabalhadores rurais”.
Estes reclamavam a falta de trabalho, pois os fazendeiros expulsavam
os arrendatários e os sindicalizados. O delegado ministerial além de
enfatizar a necessidade da assinatura de um convênio entre o Ministério
da Agricultura e o Governo do Estado de Pernambuco, sugeriu que se
recorreresse à legislação trabalhista em vigor, propondo ainda, dentre
outras medidas, que o Governo Federal interviesse fixando um prazo
legal de 3 a 4 anos nos arrendamentos, como solução imediata para os
conflitos.
A leitura do Relatório deixa implícito o apoio do Governador
Miguel Arraes aos ocupantes em Pedra d’Água. O fácil e constante acesso
do Cacique “Xicão” ao Palácio do Governo, em vários momentos, durante
o tempo em que Arraes voltou a governar Pernambuco, em fins da década

Relatório sobre o município de Pesqueira, em 23/12/1963, p. 10. APE, Fundo SSP


176

29293. (Documentação do Dops).

320 Edson Silva


de 1980, expressava essa relação do conhecido político com os índios.
A recepção de Miguel Arraes e o vínculo com os Xukuru foram também
claramente expressos após o assassinato do Cacique, na cidade de
Pesqueira, em maio de 1998, quando o Governador interviu pessoalmente
para a realização da necrópsia no Recife e para o embalsamamento do
corpo, levado para Cimbres, onde foi velado e depois sepultado na mata
da Pedra D’Água.

Cacique “Xicão” discursa durante audiência de lideranças


indígenas com o Governador Miguel Arraes, no Palácio
Campo das Princesas (Recife/PE), em 30/01/1996.
Foto: Arquivo CIMI-NE.

Um entrevistado esteve em Pedra d’Água, quando ocupada na


primeira vez pelos índios. Ele falou que era uma área coberta de matas
e, entre os ocupantes, estavam os comunistas. A alegria dos ocupantes,
mesmo diante das condições do acampamento, deixou o entrevistado
perplexo:
Foi a 1ª retomada! Agora que na época, tinha lá uma história
assim, de dois martelos: um martelo vermelho e um martelo
com... Eles cortavam a madeira, quando caía era aquela festa
deles. Era tiros de bacamarte, de riú e eles todos fazendo
aquela festa. As panelas debaixo dos paus. As caeiras de
carvão. Ficou como um bocado de ciganos! Eu só desassom-
brado! (José Alexandre dos Santos, “Zé de Alexandre”, Ser-

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 321


rinha)

Quando passava pelo local, ele foi convidado para participar


da ocupação, vigiada por um conhecido indivíduo morador em um
dos bairros em Pesqueira:
Eu ia passando para o roçado. Tinha um homem escorado na
porteira pelo lado de dentro da porteira, não pelo lado de fora.
Em Pedra D’Água, na casa de farinha. Para melhor lhe dizer,
eu ia passando, não sabia de nada. O homem esta escorado
na porteira, com uma espingarda 12, com revólver e uma
faca peixeira. Eu já tinha conhecimento com ele. Fui e falei,
“Como é, posso entrar aí?”. O nome dele era Emídio. Agora o
sobrenome eu não sei. Ele era daqui de Baixa Grande. (José
Alexandre dos Santos, “Zé de Alexandre”, Serrinha)

O convite foi feito de imediato: “Pode entrar e venha trabalhar


aqui! Que isso aqui não é do governo mais não. Isso agora é da gente!”.
A área ocupada oficialmente pertencia ao Ministério da Agricultura, fora
cedida à Prefeitura de Pesqueira que a arrendara a produtores do vizinho
Estado da Paraíba.
Ao ser questionado sobre os participantes da ocupação, o
entrevistado falou de pessoas vindas da cidade e da presença dos
comunistas, todos desaparecidos após a repressão sobre os ocupantes:
Da liga camponesa era muita gente. Tinha da Serra, tinha
da Cidade, tinha de todo o canto! Os mais que vieram era de
fora, que era os comunistas. Esse homem que eu falei que
estava escorado na porteira era Emídio. A mulher era D. Nilza.
Ele estava sendo o chefão lá. Esse povo desapareceu que eu
não vi mais! Não sei se é morto ou vivo! (José Alexandre dos
Santos, “Zé de Alexandre”, Serrinha)

A ocupação em Pedra d’Água foi uma ação da Liga Camponesa,


com a participação indígena, em uma área naquele momento sob domínio
da União, terras do antigo aldeamento, “Foi essa Liga Camponesa. Foi
começo da invasão, que invadiram lá a Pedra d’Água. Foi com a Liga

322 Edson Silva


Camponesa, isso mesmo...” (José Alexandre dos Santos, “Zé de Alexandre”,
Serrinha)
O entrevistado falou que os acampados promoveram uma
passeata pelas ruas da cidade de Pesqueira. Eram liderados por um
operário da fábrica Peixe, que possuía plantios nas terras ocupadas.
Quando estiveram na cidade, os ocupantes trouxeram produtos agrícolas:
Que quando é com pouco tempo, eles chegaram a desfilar.
Chegaram a desfilar na Cidade, que o chefão lá era um outro
Pedro. Pedro Calú. Tudo indica, não estou bem lembrado...
Mas que era Pedro Calú, o nome dele. Era da Peixe. Foi
quem plantou aqueles jambres lá, coqueiros, o vajado de
macaxeira, o tomate, o repolho, coentro, cebola, alho. De tudo
o homem tinha muito. Eles ainda chegaram lá a desfilar na
Cidade. Um negócio como um carnaval. Com palha de coco,
cacho de coco, repolho. Que era muita, era muita gente lá!
Os que estavam acampados lá vieram desfilar na Cidade,
desfilaram na Cidade ainda. (José Alexandre dos Santos, “Zé
de Alexandre”, Serrinha)

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 323


“Seu” Cícero Pereira, na Vila de
Cimbres, na Festa de Nossa Sra. das
Montanhas/Tamain em 02/07/2005.
Foto: Edson Silva.

O entrevistado recordou ainda que foram presos: “Porque eles


invadiram terreno do governo. Eles invadiram para trabalhar lá. Que foi
como um bocado de ciganos, aquela empanada, lá”. Ocorreram outras
prisões. Por ter se envolvido na retomada de Pedra d’Água, “Seu” Ciço
Pereira, morador em Cana Brava, onde oconteceu “uma reunião”, foi
preso com outras pessoas da Serra do Ororubá e de Pesqueira:
Sabe por que eu já fui preso? Só porque eu fazia parte da,
desse pessoal, dessas fera que manda nas usina, que tava
a favor das terra. Fizeram reunião em Cana Brava ainda
na casa de um pai, desse povo aí. Depois dessa reunião,
retomada ai de Pedra d’Água, foi dessa retomada, que dessa
época ai que eu fui preso. Eu, Manoel Pereira, Joaquim Neto
e Alonso. Teve uma porção lá de Pesqueira, foi tudo preso
(Cícero Pereira, Bairro Xucurus, Pesqueira/PE).

Preso em 1964 como subversivo, ele recordou o apoio

324 Edson Silva


do Governador Miguel Arraes à ocupação das terras, bem como o
envolvimento de pessoas citadas nos documentos oficiais. A ocupação
aconteceu depois de uma missa, por gente vindo de Cana Brava:
Sessenta e três. Ah! Pois dessa década, dessa data. Eu tava
que fizeram isso aí. Ai daqui a pouco um mês, Miguel Arraes
que era Governo do Estado abriu mão prá D. Luizinha, Zé
Arco-Verde, Luiz Arco-Verde, que era o advogado, que era
meu advogado. Eu sei que fizeram essa miséria lá na Serra
em Cana Brava, depois da missa, que eu nem assisti. Adepois
da missa ajuntaram esse povo, muita gente, já ia pra Cana
Brava e abriram Pedra d’Água (...) e só porque eu passava por
lá e conversava com o povo me trataram como subversivo.
(Cícero Pereira, Bairro Xucurus, Pesqueira/PE).

Outro entrevistado afirmou que, com o Golpe Militar de 1964, a


repressão foi grande, com prisões e expulsão dos ocupantes:
Que quando é com pouco tempo, o pau quebrou. Que quan-
do ele (o Exército) chegou, cabôco, foi cabôco mesmo, que
saía ele correndo no mato, dentro da japicanga de espinho. É
uma planta que tem um espinho preto e a maliça e o calum-
bi. Saíram correndo para escapar. Saíram correndo. Mas que
a madeira deitou, deitou! Foi um pau, foi um pau que não foi
moleza! Porque ele, esse mesmo que me falou isso, foi um
que quase morre. Ele foi cair lá em Santa Catarina, na casa
de Agripino Quelé. Era José Jordão. Apanhou muito, chegou
quase morto! (José de Alexandre, Bairro Serrinha, Pesqueira/
PE)

E ainda completou dizendo: “Dessa vez que eles vieram. Foi


o Exército! Prendeu muita gente. Sofreu lá comunistas e homem que
não era comunista”. Ele citou nomes e o ocorrido durante a prisão dos
militantes comunistas:
Prendeu muita gente. Tinha um doutor Luís Arcoverde, tinha
uma irmã dele chamada Luizinha, aí chegou naquele quartel.
Que quando chegou no quartel, Luizinha foi. Ela era moça
velha. Foi e disse, “Pode trancar ela, que ela é comunista até

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 325


PÓS-ESCRITO
Xukuru do Ororubá: história indígena e História
Ambiental no Semiárido pernambucano1
Edson Silva 2

Introdução
É possível afirmar a existência de uma história indígena ou
uma história dos índios? Os índios estão fora da História, enquanto
história da humanidade? Algum grupo humano vive totalmente
isolado, sem estabelecer relações com outros grupos humanos? E
ainda, é possível analisar a experiências históricas de um grupo
humano desvinculadas de suas relações com o ambiente onde habita?
Apesar de usarmos grosso modo a expressão história indígena, não é
possível pensar, discutir e escrever uma história dos povos indígenas
enquanto uma história étnica, uma história específica. Tal empreitada
estaria fadada ao fracasso, pois existem diferentes povos indígenas.
Seria uma história de cada povo ou uma história de todos os povos
indígenas, correndo-se os riscos de generalizações e ignorando,
omitindo, desconsiderando as singularidades socioculturais de cada
povo indígena?
Ao invés de uma história dos povos indígenas, pensamos que

1 Uma versão desse texto com o título “História indígena e história socio-
ambiental no Semiárido pernambucano: os Xukuru do Ororubá”, foi publicada
em SILVA et ali, 2017, p.13-33.
2 Professor Titular de História do Colégio de Aplicação da UFPE. Doutor
em História pela UNICAMP. Realizou o Pós-Doutorado na UFRJ. É professor
no curso de Mestrado Profissional em História(PROFHISTÓRIA) na UFPE e no
curso de Mestrado em História na UFCG (Campina Grande/PB).

326 Edson Silva


o mais preciso é discutir os índios na História, observando como
cada povo indígena participa, enquanto campo de relações, em
diversos e diferentes espaços, e, com diferentes grupos sociais e
atores sociohistóricos: os índios e a colonização; os índios e os povos
negros, ciganos, os diferentes povos europeus; os índios e os Estados
nacionais; os índios e as mobilizações sociopolíticas, dentre outras
temáticas. Afirmamos, portanto, a compreensão dos povos indígenas
como atores históricos ao lado de outros sujeitos sociopolíticos que
em diferente ambientes atuam/participam nos processos da história
da humanidade.
Durante muito tempo, nos estudos sobre a História do Brasil,
além das referências ao índio dos primeiros anos da colonização,
predominou a visão sobre os povos nativos como vitimados
pelos inúmeros massacres, extermínios, genocídios e etnocídios
provocados pelas invasões e colonização dos portugueses e outro
povos vindos da Europa a partir de 1500. Além disso, os poucos
índios sobreviventes que estariam condenados ao desaparecimento,
engolidos pela marcha colonizadora, pelo progresso e por meio da
“aculturação”, foram integrando-se à nossa sociedade. Em geral,
essas ideias são as que permanecem sendo ensinadas nas escolas
e mesmo nas universidades; elas ainda aparecem em manuais
didáticos, principalmente nos livros de História do Brasil, e também
são veiculadas pela mídia e expressadas pelo senso comum.
Contrariando todas as previsões trágicas, os povos indígenas
no Brasil, ao longo dos anos de colonização, não somente elaboraram
diferentes estratégias de resistência, seja através de guerras ou
confrontos, seja por meio de alianças, acomodações, adaptações

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 327


e simulações diante das situações criadas com a colonização,
como também alcançaram, nas últimas décadas, um considerável
crescimento populacional. Pois, os dados comparativos dos censos
do IBGE entre 2000 e 2010, evidenciaram que a população indígena
no Brasil triplicou no último decênio. Questionando, assim, as
tradicionais visões eurocêntricas, colonialistas e evolucionistas, as
quais tratavam os povos indígenas como atrasados e como vítimas
impotentes em extinção, o que vem exigindo reformulações das
teorias explicativas sobre seus destinos.
Nas pesquisas históricas foi também superada a clássica visão
dos viajantes e cronistas coloniais, retomada pelos historiadores
brasileiros no século XIX e também muito presente nos livros
didáticos de História, classificando os povos indígenas entre os
“Tupi” e os “Tapuia”. Essa costumava ser uma ideia equivocada que
dividia os grupos indígenas em dois blocos monolítico antagônicos,
sendo os “Tupi” ao aldeados mansos e os “Tapuia” chamados de
bárbaros, selvagens habitantes dos sertões e bastante perseguidos.
Tais classificações escondiam as diversidades e as dinâmicas
socioculturais dos povos indígenas em todas as regiões do país.
Observa-se ainda que os povos indígenas no Nordeste ocupam
cada vez mais o cenário sociopolítico regional, questionando os
tradicionais discursos e imagens que ainda advogam a inexistência,
a extinção ou o gradual desparecimento dos índios na Região. Até
bem recentemente, os indígenas no Nordeste foram desconsiderados
nas reflexões históricas, antropológicas e das Ciências Humanas
e Sociais, numa visão baseada em concepções da aculturação ou
mestiçagem, formulada após a extinção oficial dos aldeamentos em

328 Edson Silva


meados do século XIX.
Os habitantes dos lugares onde existiram antigos aldeamentos
foram chamados de “caboclos”, condição essa muitas vezes assumida
pelos indígenas para esconder a identidade étnica diante das
inúmeras perseguições. A essas populações foram dedicados estudos
sobre seus hábitos e costumes, considerados exóticos, suas danças e
manifestações folclóricas, consideradas em vias de extinção. De tal
forma também aparecerem nas publicações de escritores regionais,
cronistas e memorialistas municipais, os quais exaltaram de forma
idílica a contribuição indígena nas origens e na formação social de
cidades do interior do Nordeste.
A imagem do caboclo aparece em obras literárias sobre fatos
pitorescos, recordações, “estórias” de regiões no Semiárido, como
personagens típicos e curiosos que buscavam se adaptar às novas
situações, ou como sem-terras, vagando em busca de trabalho para
sobrevivência. Escritores renomados, intelectuais e pesquisadores
como Gilberto Freyre, Raquel de Queiroz, Câmara Cascudo, José Lins
do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado, ou ainda antropólogos
como Darcy Ribeiro, só para citar alguns dentre os nomes mais
conhecidos, quando se referiram aos indígenas remeteram a um
passado idílico, omitindo a presença indígena contemporânea no
Nordeste.
As violências da ocupação colonial portuguesa foram
tamanhas que se registram, na atualidade, poucos povos indígenas
habitantes no litoral. Embora as invasões com as fazendas de gado
no Sertão nordestino também tenham ocorrido por meio de guerras
e conflitos com os nativos, possivelmente a dimensão espacial

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 329


favoreceu a dispersão e resistência de um considerável número de
grupos indígenas, como é expresso pelos diversos povos conhecidos
no interior do atual Nordeste brasileiro.
Os povos indígenas do Semiárido retomaram suas mobilizações
desde as primeiras décadas do século XX, conquistando o
reconhecimento do Estado brasileiro com a instalação de postos
indígenas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), ainda que a
atuação desse órgão governamental tenha sido muito assistencialista,
sem garantir, de fato, as terras indígenas. Os povos indígenas no
Nordeste, portanto, se constituem em um desafio, uma demanda
para a compreensão dos processos históricos que resultam nas
mobilizações sociopolíticas atuais pelas reivindicações, conquistas
e garantias de seus direitos.
A História Ambiental é o exercício de pesquisas, estudos e
reflexões que buscam estabelecer as relações entre grupos humanos
e as condições de vida em que habitam. Ou seja, contribuir para
discussões na perspectiva histórica evidenciando as relações de
poder, o acesso e a utilização de recursos naturais. Em nossa
abordagem, privilegiamos os chamados grupos subalternos – no
caso, os indígenas – nas suas interações com o Ambiente. Foi,
portanto, nessa perspectiva que buscamos compreender o povo
indígena Xukuru do Ororubá, habitante dos municípios de Pesqueira
e Poção, na chamada região no Semiárido pernambucano.

As invasões coloniais no Semiárido pernambucano


A partir de meados do século XVII, com o fim do domínio
holandês na Capitania de Pernambuco, foi impulsionada a

330 Edson Silva


colonização portuguesa para o interior. As terras da região costeira
estavam ocupadas com a lavoura da cana-de-açúcar e multiplicaram-
se os pedidos à Coroa Portuguesa de terras no “sertão”: senhores de
engenho alegavam possuir gados sem terras onde pudessem criá-
los (MEDEIROS, 1993). Foram concedidas sesmarias pelo governo
português, legitimando-se o expansionismo colonial com a invasão
das terras indígenas. Os colonizadores, além de conflitos com os
indígenas, enfrentavam também os quilombolas de Palmares, que
haviam ampliado seu domínio de territórios desde a Zona da Mata
até os “sertões” (Agreste pernambucano), durante o período em que
as forças portuguesas empenhavam-se em libertar a Capitania do
domínio holandês.
Os conflitos que resultaram das invasões coloniais nos
territórios indígenas ficaram conhecidos genericamente, na
historiografia, como a “Guerra dos Bárbaros”, e se estenderam por
todo o interior nordestino, nas regiões que hoje correspondem ao
Sertão da Bahia e do Maranhão, durando desde o último quartel do
século XVII até a segunda década do século seguinte (PUNTONI,
2002). Muitos indígenas morreram nos combates ou foram reunidos
nas missões.
Para a instalação das fazendas de gado no Agreste e Sertão
pernambucano, era necessário amansar os índios “hostis”. Em 1661,
o governador Francisco de Brito Freire informava o aldeamento de
muitos “tapuias”, até aquele momento considerados “indomáveis”,
tendo sido constituídas duas novas povoações com igrejas, sob a
responsabilidade do Pe. João Duarte do Sacramento, fundador da
Congregação do Oratório no Brasil (MEDEIROS, 1993). Uma das

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 331


missões dos oratorianos, seguindo o curso do rio Capibaribe vindo
de Recife, estava localizada em Limoeiro, na Zona da Mata Norte
pernambucana, de onde partiram missionários que posteriormente
se instalariam no Brejo da Madre de Deus, no Vale do Ipojuca,
para daí aldear outros indígenas na região mais próxima, fundando
o aldeamento do Belo Monte, o qual, com a reforma pombalina,
passou a se chamar Cimbres, onde habitavam os índios Xukuru.
A região, que foi chamada de “sertões” desde o período colonial
até os primeiros anos da República e é atualmente conhecida por
Agreste, compreende 24.400 km do estado de Pernambuco onde
estão localizados diversos municípios e situa-se entre a Zona da
Mata, o litoral úmido e o Sertão propriamente seco, no Semiárido.
O Agreste é uma região de transição climática na qual predomina
o bioma Caatinga, cujo ecossistema complexo contém tanto as
áreas com poucas incidências de chuvas e secas periódicas quanto
os brejos, sejam de altitudes ou de pé-de-serra, regiões úmidas com
pequenos enclaves de matas densas. Por essas razões, é possível
pensar o Agreste no plural, como os “agrestes”.
Os brejos como lugares de fertilidade no Semiárido: os
conflitos com os índios
São nos brejos que nasce a maioria dos rios. Em Pernambuco,
por exemplo, os rios Capibaribe, Una e Ipojuca tem suas nascentes
em brejos no Semiárido, correm para o litoral e desaguam no Oceano
Atlântico. Com cerca de 250 km de extensão, tendo um terço do seu
curso intermitente, o rio Ipojuca foi um dos caminhos da colonização
portuguesa para o interior, concentrando, ao longo do seu percurso,
a maior densidade populacional urbana do Agreste pernambucano,

332 Edson Silva


abrangendo vários munícipios, dentre os quais a conhecida cidade
de Caruaru.
A sobrevivência humana nessa região do Semiárido está
intimamente relacionada a alguns poucos rios perenes que nascem
nas serras e correm em direção ao litoral, bem como aos chamados
“brejos de altitudes”, espaços de clima ameno nos quais uma elevada
densidade populacional coexiste com as atividades agrícolas e a
pecuária. A região montanhosa favoreceu a formação desses brejos
constituídos de espaços subsumidos (manchas ou bolsões) diante da
aridez acentuada do clima predominante.
Historicamente, o Agreste vem desempenhando as funções de
fornecedor de gêneros alimentícios e de mão de obra para a Zona da
Mata canavieira e para o litoral, por meio das migrações sazonais.
O Agreste recebe pequena quantidade de chuvas, é caracterizado
pelas “formas ásperas, os solos rasos e não raro pedregosos, a flora
dominante da caatinga e a hidrografia intermitente” (MELO, 1980,
p. 173), onde ocorrem secas periódicas, muitas vezes calamitosas,
agravando a qualidade dos solos e o aproveitamento dos recursos
naturais disponíveis. Nas cercanias do Vale do Ipojuca estão
localizados os brejos de São José e Ororubá, ambos situados na Serra
do Ororubá, em Pesqueira, e o de Poção, no município vizinho do
mesmo nome, além do brejo da Serra do Bituri, localizado entre os
municípios de Sanharó, Belo Jardim e Brejo da Madre de Deus.
A fertilidade das terras nos brejos na Serra do Ororubá, onde
habita o povo Xukuru do Ororubá, foi sempre evidenciada. No
Diccionario Chorographico, Histórico e Estatístico de Pernambuco,
publicado em 1908, foi ressaltada a produção agrícola de Cimbres,

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 333


com milho, feijão, mandioca, algodão, fumo, cana-de-açúcar e
batatas, além de frutas como ananases, laranjas, cajus, goiabas,
bananas e pinha. O autor frisou, porém, que essa produção advinha da
Serra, pois, “geralmente fraca no município, a agricultura, é futurosa
na Serra do Ororubá pela uberdade de que oferece” (GALVÃO,
1908, p. 181).
Em outro trecho, o autor afirmou que, além da abundância da
criação de gado, cavalos, ovelhas e cabras, existiam animais silvestres
na região, como veados, caititus, onças de diversas espécies, raposas,
gatos maracajás, tatus, tamanduás, coelhos, mocós, preás, guarás,
furões, maritacas e tejus, juntamente com aves de diversas espécies
e portes. Afora o cedro, foram citadas outras árvores nativas e seus
usos medicinais:
A aroeira (muito usada no cozimento do entre casca
para dores de garganta), o bom nome (com o uso
específico das moléstias das vias respiratórias), o
jucá ou pau-ferro, o assafraz, guáiaco, cabeça de
negro, gitó, parreira brava, japecanga (succedaneo da
salsaparrilha), o ingazeiro, jaboticabeira, o imbuzeiro,
a catinga de porco (de cujas folhas se faz travesseiros
sobre os quais se deitando os doentes de dores de
cabeça e tonteiras, dizem cessar o incômodo), o
mulungu, o cardeiro (mandacaru), o marmeleiro, o
velame o barbatenão, etc. (GALVÃO, 1908, p. 181).

Os conhecimentos sobre os usos dessas plantas medicinais


evidenciam a sua tradicional utilização pelos indígenas habitantes
naquela região. No Agreste, um ambiente de clima predominante
seco e com falta de chuvas, as disputas pelas regiões úmidas e pelas
fontes de água eram intensas. Daí os conflitos nas terras do antigo
aldeamento de Cimbres envolvendo os fazendeiros invasores e seus

334 Edson Silva


primeiros moradores, os índios. A expansão pastoril foi cada vez
mais acentuada, restringindo, assim, as lavouras de subsistência. Os
brejos das serras, com isso, foram sendo usados como refrigério para
o gado, em períodos de longas estiagens:
As serras, muito úmidas no inverno, não se prestam
à pecuária e são aproveitadas por agricultores que
cultivam cereais, plantas do ciclo vegetativo curto.
Na estação seca, após a colheita do feijão, do milho e
do algodão, o gado é levado para a serra, para o brejo,
onde se mantém com este alimento suplementar à
espera de que, com as primeiras chuvas, a caatinga
reverdeça. São famosas por servirem de refrigério ao
gado certas serras, como as de Jacarará, da Moça e
de Ororobá, em Pernambuco. (ANDRADE, 1998, p.
157).

Por outro lado, o plantio do capim para a pecuária, em áreas


de caatinga ou nas cercanias das matas de serra, provoca a erosão
do solo já tão pobre. A apropriação das terras pelos fazendeiros
criadores de gado e o cultivo de pastagens representaram um novo
ciclo de relações sociais na região. Ao índio pequeno agricultor cabia
utilizar as terras agora consideradas alheias, porque em mãos dos
fazendeiros, em regime de cessão de glebas para cultivo e moradia.
Em troca, o agricultor plantava o capim destinado ao gado, que era
alimentado também de restolhos da lavoura do morador.
Os brejos possuem solos profundos, matas de serras e cursos
d’água permanentes, favorecendo a policultura tradicional, com
lavoura do feijão, mandioca, café e cana-de-açúcar, a horticultura
e a fruticultura, com cultivo de banana, pinha, goiaba, caju, laranja,
dentre outras (MELO, 1980).
Notemos, além disso, que, nesses interflúvios e

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 335


em outros de menor amplitude aparecem manchas
numerosas, que, não chegando a constituir
verdadeiros brejos, representam áreas onde se
atenuam às condições de semiaridez, com seus efeitos
benéficos nas atividades pastoris. Atenuação dos
efeitos da semiaridez é também a existente nas áreas
dos chamados pés de serra, preferidas pela lavoura
nos espaços de baixa pluviosidade. (MELO, 1980, p.
181).

Durante muito tempo, a produção de frutas e hortaliças dos


brejos abasteceu não somente as feiras das cidades próximas, como
também as situadas em bairros do Recife.
O Vale do Ipojuca, por onde corre o rio Ipojuca, estende-
se desde a nascente do referido rio na zona rural do município de
Arcoverde, localizado quase na metade do estado de Pernambuco,
até a cidade de Gravatá, na fronteira entre o Agreste e a Zona da Mata
pernambucana. O Agreste se tornou passagem quase que obrigatória
para quem se destinava da capital ao interior mais distante da
província pernambucana, e foi sendo densamente povoado a partir
da rota de expansão da colonização portuguesa, que inicialmente
seguiu o curso do rio Ipojuca. No Agreste pernambucano, e mais
precisamente no Vale do Ipojuca, entre 1850-1900 ocorreram
significativas transformações socioambientais com a expansão e
decadência da lavoura do algodão (1860-1880), a conhecida grande
e trágica Seca de 1877 e a extensão da ferrovia do Litoral até Caruaru
em 1895 (e posteriormente a outras regiões).
Estudos realizados por pesquisadores de diferentes áreas
apontaram o papel sociohistórico do Agreste a nível regional no
Nordeste, cuja região cumpre importante função de fornecedora de

336 Edson Silva


produtos alimentícios agropastoris, matérias-primas e disponibilidade
de mão de obra para as povoações litorâneas, além de atividades
pecuárias, bem como a policultura com uma variedade de frutas,
legumes e outros produtos agrícolas destinados ao abastecimento
das feiras nas cidades vizinhas e na capital. O Agreste é considerado,
portanto, um dos espaços dinâmicos da economia brasileira. (MELO,
1980; SOBRINHO, 2005).
Os impactos socioambientais da ferrovia
A conclusão da Estrada de Ferro Central de Pernambuco entre
Recife a Caruaru, em 1894, foi saudada com bastante entusiasmo
como símbolo do progresso para o município que representava
o portal do Agreste. Antes da estrada de ferro, naquela região,
“devido à ausência dos meios de transporte, os legumes e cereais
ali apodrecem nos ano de fartura” (ARQUIVO PÚBLICO DE
PERNAMBUCO, 1882, p. 46). O trem, portanto, significou, além da
segurança, a facilidade do transporte e do escoamento da produção,
pois “grande quantidade de solas, couros, algodão, queijo, feijão,
etc.” (ARQUIVO PÚBLICO DE PERNAMBUCO, 1882, p. 46)
fora enviada para a capital, como informava, em 1884, o engenheiro
Henrique Milet ao Ministério da Agricultura.
Todavia, a expansão ferroviária que favoreceu o aumento
da produção agroindustrial no Agreste também provocou o
desmatamento e o uso indiscriminado dos mananciais de água
naquela região, agravando a situação em períodos de seca. O estudo
de um geógrafo em 1956 descrevia a região na qual se localizam
os brejos da Serra do Ororubá como de solo arenoso e pedras, com
clima semiárido e também semiúmido, onde, durante boa parte do

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 337


ano, predominava a seca. O gado dividia o espaço com lavouras e
plantações de tomate:
O pardo triste da vegetação então despida de folhas
e o aspecto agoniado das cetáceas põem em destaque
o viço lustroso das cercas vivas dos aveloses que
cumprem, entre outras utilidades, a função de separar
as áreas do criatório extensivo, em campo aberto, dos
tratos de terras culturáveis, enquanto que apenas aqui
e ali, em locais aparentemente escolhidos a dedo,
algumas raras unidades arbóreas, também sempre
verdes, espalmam suas frondes proporcionando
o bem-estar de uma sombra. Paisagem esta ainda
mais desoladora posta em comparação com a outra,
a da época das chuvas miúdas, quando as caatingas
reverdecem e florescem em todo “Seu” esplendor,
permitindo a colheita de frutos silvestres, a engorda
do gado e o trabalho agrícola nos roçados e nas
plantações de tomate. (SETTE, 1956, p. 8).

Os citados roçados eram os sítios, pequenas glebas de terras


espremidas entre as áreas de criação das fazendas, que permaneciam
nas mãos de umas poucas famílias indígenas. O autor apontava o
desmatamento recente das matas existentes nos brejos úmidos
característicos da Serra. Restavam insignificantes “retalhos de
matas testemunhos”, pois as matas de outrora continuavam a serem
substituídas por cafezais, goiabeiras, bananeiras e outras frutas
(SETTE, 1956). As matas eram derrubadas também para abastecer
de lenha as locomotivas do trem que ligava Pesqueira ao Recife,
“as fornalhas das fábricas de doces, os fornos de padaria e fogões
domésticos” (SETTE, 1956, p.12). Ocorria, portanto, a destruição do
patrimônio natural para atender às exigências da lógica econômica
em vigor.

338 Edson Silva


A partir dessa lógica, a Serra estava sendo toda ocupada. Nas
localidades mais úmidas predominava a criação do gado de corte e o
destinado à produção de leite. Nos sopés da Serra, mais próximos da
cidade, constatava-se a “plantation” do tomate destinado à indústria,
“enxotando cada vez mais para longe os roçados de subsistência ou
mesmo reduzindo as áreas de criação” (SETTE, 1956, p. 14).
Os brejos da Serra do Ororubá foram e continuam sendo os
fornecedores de gêneros alimentícios para Pesqueira e região. Na
lógica econômica em vigor nos anos de 1950, era trazida do Ororubá
a matéria-prima para as indústrias de doces existentes, como registrou
o estudioso acerca de uma possível primeira impressão do visitante
recém-chegado,
Durante os meses de safra, os caminhões abarrotados
de caixotes de frutas e tomates fazem filas diante dos
portões dos estabelecimentos fabris enquanto paira
no ar cheiro de goiaba em processo de cosinhamento
ou o odor acre dos tomates fermentados atraindo
enxames de impertinentes moscas. (SETTE, 1956, p.
16).

A madeira utilizada como combustível na indústria provocava


a destruição das matas: “Essa dependência ao combustível lenha tem
custado à destruição do revestimento vegetal primitivo. As matas
do Ororubá e as caatingas altas dentro de uma área de enorme raio
acham-se praticamente desaparecidas” (SETTE, 1956, p.89). O
desmatamento acelerado, além de influir nas condições do solo na
região, prejudicava desde os pequenos agricultores aos fazendeiros,
comprometendo a própria indústria:
Também a devastação das matas para exploração
da lenha, como já ficou assinalado, não só modifica

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 339


a paisagem física, mas igualmente altera e dificulta
as possibilidades agropecuárias dos fazendeiros
e pequenos plantadores, devido ao aceleramento
dos processos de erosão dos solos no alto da Serra
e ao rápido escoamento e evaporação das águas no
pediplano. (SETTE, 1956, p.92).

Para o geógrafo, a criação de gado também era a grande


responsável pela degradação na Serra, pois existia “o costume, aliás,
já antigo de alguns criadores em soltar os seus gados dentro das
‘mangas’ de ‘refrigérios’ nos brejos úmidos da Ororubá” (SETTE,
1956, p.93).Esses espaços citados pelo estudioso eram locais
de clima ameno e irrigados por riachos e fontes de água, onde se
concentravam as roças dos pequenos agricultores, os índios cujas
terras eram invadidas pelo gado, principalmente nas épocas de
longas estiagens.
Também a água para as fábricas e para o consumo dos moradores
em Pesqueira provinha da Serra. A fábrica Peixe possuía açudes
que abasteciam suas unidades fabris. Todavia, já era vivenciado o
“cruciante problema da água”, agravado principalmente na época das
secas: “A Prefeitura possui dois açudes no alto da Serra que abastecem
mal a cidade sob o regime de racionamento, principalmente durante
os meses de estiagem e pior ainda por ocasião das secas” (SETTE,
1956, p.94).

Fertilidade em terras indígenas: diversidade da produção


no Semiárido pernambucano
Mesmo com as invasões dos latifundiários, em muitos avisos
mensais do “Posto Xucuru” elaborados pelo Chefe do Posto Indígena

340 Edson Silva


Xukuru para a direção central do SPI no Rio de Janeiro, foi citado
que, no final da década de 1950, nas terras do antigo Aldeamento
de Cimbres na Serra do Ororubá, além da colheita do café, eram
produzidas grandes quantidades de farinha de mandioca, feijão
e frutas como caju, mangas, goiaba e banana, além de verduras e
legumes para o consumo. Essas informações revelam a fertilidade
e a diversidade de culturas, no espaço tão pequeno de 6ha de terras,
correspondente ao patrimônio do Posto. Chamando a atenção
ainda que, no início de 1959, apenas a farinha e o feijão foram
integralmente destinados ao consumo. Nos anos seguintes, as frutas,
a mamona e o tomate também foram colhidos em larga escala, assim
como considerável parte da produção agrícola nas terras do Posto
foi destinada às indústrias na cidade, segundo afirmou Ney Land,
membro do Conselho Nacional dos Povos Indígenas (CNPI), na sua
descrição sobre o “Posto Xucuru” (apud SILVA, 2008).
Constata-se, pela leitura dos Avisos Mensais expedidos nos
anos seguintes, um significativo aumento da produção agrícola
destinada à venda, em oposição à diminuição da quantidade para
consumo. Os encarregados do Posto por diversas vezes solicitaram
ou reclamaram à Inspetoria Regional do SPI no Recife a ausência e/
ou atraso dos repasses de recursos, bem como a falta de sementes
e ferramentas para os índios, sempre citados como desamparados.
Tratava-se dos índios espalhados na Serra do Ororubá, enquanto era
vendida quase toda a produção do Posto.
As descrições do Ambiente na Serra do Ororubá elaboradas
por Ney Land em 1965 são por demais pessimistas. A estrada do
Posto Xucuru até a localidade de Brejinho estava em péssimas

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 341


condições, com grandes buracos e desfiladeiros, por onde escoavam
as águas das chuvas. Para Land, não havia comunicação entre as
várias localidades com a Serra do Ororubá. A seca era favorecida
pelo clima quente, e a impermeabilidade do solo provocava o rápido
escoamento das chuvas, em uma região com duas estações bem
definidas: inverno e verão.
A geografia local era de terras altas, com secas, erosões e um
pequeno riacho. Ao enfatizar as “reduzidíssimas lavouras”, o plantio
dos cajueiros, mangueiras e o cafezal, Ney Land evidenciava outra
situação, muito diferente de anos passados recentes da considerável
produção agrícola, principalmente de frutas. O membro do CNPI
afirmou a inexistência de fauna local, apenas de “pássaros para
gaiolas”, bem como a ausência de peixes no riacho. E que, além de
um hectare cultivado com milho, o Posto tinha 20 pés de abacate, 30
bananeiras, quatro laranjeiras e 30 mangueiras. No ano anterior, a
produção de 20 caixas de goiabas fora vendida à fábrica Peixe.
Outro retrato do Ambiente habitado pelo Xukuru, com uma
detalhada riqueza de informações, é encontrado em um Relatório de
Estágio de William Ribeiro, em 1971. Em suas observações, Ribeiro
enfatizou a grande dimensão da área habitada pelos “remanescentes”
Xukuru, afirmado existirem aldeias distantes cerca de 20 km da sede
do Posto. Toda a área foi percorrida a cavalo por William, que esteve,
dentre outros locais, em Cana Brava, Brejinho e Vila de Cimbres, na
Serra do Ororubá.
Na pequena parcela de terras de propriedade do Posto havia,
além de fruteiras, muitos pés de café, mas descuidados e prejudicados
pelo mato daninho. Após a colheita, o terreno seria preparado para o

342 Edson Silva


plantio do café e da mandioca. Na estação chuvosa seriam plantados
milho, feijão, maracujá e quiabo, afora goiaba, manga, abacate e jaca,
culturas cuja produção encontrava facilmente mercado. Convicto
de que, com isso, seriam mudadas as precárias condições de vida
dos Xukuru, William afirmava que assim alcançariam o progresso
como meta desejada (apud SILVA, 2008). Todavia, ao observarmos
o modelo de produção agroindustrial na região, percebemos que,
naquele mesmo período, o cenário para os agricultores Xukuru era
muito desfavorável.
A produção agroindustrial e os impactos socioambientais
Durante a década de 1950 também crescera consideravelmente
a produção agroindustrial em Pesqueira, porém com um elevado
custo social. Na Serra do Ororubá, onde moravam os índios Xukuru
do extinto Aldeamento de Cimbres, as fazendas de gado, com grande
produção leiteira, dividiam os espaços com o plantio de tomates e
frutas destinadas às indústrias de doces e conservas na cidade. Seus
antigos habitantes eram expulsos de suas terras e muitos vieram
morar na periferia de Pesqueira, onde alguns se tornaram operários
das fábricas instaladas na área urbana da cidade (SETTE, 1956).
Miséria para muitos e fartura para poucos. O avanço do latifúndio
agroindustrial na Serra do Ororubá provocava a escassez da produção
de alimentos destinados à cidade, com a elevação dos preços, a
pobreza generalizada e a mendicância acentuada, como noticiava a
Gazeta de Pesqueira, um dos jornais local.
Desde meados da citada década, a fábrica Peixe detinha em seu
poder uma grande área agrícola, na qual se situavam as “fazendas”
de cultivo, com base no trabalho assalariado. A parceria proposta

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 343


por aquela indústria, no início dos anos 1960, além de fazer parte
de um processo de reestruturação da empresa, foi propagada como
uma estratégia para melhorar, mas fundamentalmente o objetivo era
modificar as relações de trabalho e produção, salvaguardando os
interesses da empresa. A indústria doceira, outrora saudada como
promotora do progresso e do grande desenvolvimento regional, dava
seus primeiros sinais de decadência, sendo a perda de lucros e os
custos sociais considerados naturalmente como remediáveis.
Em uma longa matéria publicada em fins de 1962, em um jornal
impresso no Recife e de grande circulação no estado de Pernambuco,
as fábricas Peixe anunciavam a execução, com sucesso, de seu plano
de Reforma Agrária em Pesqueira e sete municípios vizinhos, onde
existiam terras de seu domínio com plantios de tomates e frutas
destinadas à fabricação de doces. Após enfatizar a importância
econômica daquela indústria doceira para o desenvolvimento
municipal e regional, o artigo abordava a preocupação com o
problema social e as condições de vida dos trabalhadores (SILVA,
2008).
A “parceria agrícola” estabelecida pela fábrica Peixe estava
baseada em um contrato escrito, com “deveres e obrigações de
ambas as partes”, em que a empresa deveria dar toda a assistência
técnica, sementes, cuidado com o solo, além de irrigação, habitação
para o agricultor e o transporte de toda a sua produção paga em 50%,
em um preço previamente fixado pela fábrica Peixe. Por sua parte,
o agricultor deveria acatar as normas e determinações previstas no
contrato, mantendo em bom estado o solo cultivado, a habitação e
as estradas, “recebendo para isso retribuição extra”, não indicada

344 Edson Silva


na reportagem. Além disso, ele entregaria toda a sua produção,
conforme o preço fixado no contrato, devendo “somente plantar na
área reservada à lavoura de subsistência, cereais ou lavouras de ciclo
curto, afim de que, concluída a colheita e de acordo com o plano de
pecuária, o gado da empresa possa pastar em toda a área, durante dois
ou mais meses, até o início das culturas do ano seguinte” (FEITOSA,
1985, p.82).
A proposta da fábrica Peixe constituía fundamentalmente uma
resposta das elites econômicas para atenuar os conflitos sociais,
decorrentes da concentração de terras e da manutenção de relações de
exploração dos trabalhadores rurais em Pesqueira e regiões próximas
(FEITOSA, 1985). Os graves problemas sociais eram vistos, antes
de tudo, como uma questão de polícia. É sintomático que os recortes
de jornais sobre a situação vivenciada estejam no Arquivo Público
Estadual de Pernambuco, na documentação dos órgãos de repressão
policial na Ditadura Militar.
A fábrica Peixe e as demais indústrias de doces e gêneros
alimentícios instaladas em Pesqueira entraram em decadência em
fins dos anos 1960. Tal situação se acentuou na década seguinte,
em consequência das sucessivas pragas que atingiram a lavoura do
tomate, apesar do intenso uso de agrotóxicos que provocaria grave
degradação das terras da região. Com as mudanças econômicas,
os grandes capitais passaram a ser investidos no Sudeste do país,
em fábricas concorrentes; com isso, ocorreu a desagregação dos
proprietários, a família dos Brito, e a subsequente venda da empresa a
um grupo canadense, chegando, por fim, à falência (CAVALCANTI,
1979).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 345


Considerações finais: os indígenas refazendo a vida,
reescrevendo a História no Semiárido
Com as invasões dos fazendeiros e da agroindústria nas terras
Xukuru, a situação de penúria indígena durou muitos anos. Em fins
de 1990, o povo indígena Xukuru do Ororubá, a despeito das muitas
perseguições e violências, liderado pelo conhecido Cacique Xicão,
que em maio de 1998 foi assassinado a mando de fazendeiros, se
mobilizou e retomou suas terras invadidas pelos latifundiários,
conquistando a demarcação oficial do território indígena em 2001.
Uma vez conquistada a terra, os indígenas iniciaram uma
experiência de cultivos agroecológicos com resultados exitosos, o
que vem garantido a recuperação do solo, o vicejar de matas com
o retorno da fauna e a vida indígena com dignidade no Semiárido
pernambucano. Famílias Xukuru do Ororubá, na região da Serra
com maior umidade e presença de água por mais tempo mesmo
em longos períodos de estiagens, vêm desenvolvendo o plantio
orgânico de legumes e verduras, que são postos à venda e disputados
pelos consumidores semanalmente nas feiras livres das cidades de
Pesqueira e Arcoverde.
As preocupações Xukuru do Ororubá com o Ambiente foram
enfatizadas nas duas últimas assembleias anualmente realizadas
no mês de maio por aquele povo. Em 2013, por ocasião dos 15
anos do assassinato do Cacique Xicão, ocorreu, na Aldeia Pedra
d’Água, a XIII Assembleia do Povo Xukuru do Ororubá, com o
tema “Limolaigotoípe – unindo as forças do Ororubá na construção
do bem viver, fortalecendo o respeito do índio com a Natureza”.
Estiveram reunidos representantes das aldeias, idosos, mulheres,

346 Edson Silva


jovens e crianças indígenas Xukuru, afora as delegações dos
povos Truká, Kambiwá, Kapinawá e Pipipã, de Pernambuco, e os
Potyguara e os Tabajara, da Paraíba, além de representantes do povo
Dakota dos Estados Unidos e de universidades, ONGs, igrejas,
órgãos e personalidades públicas e aliados dos povos indígenas.
Nas conclusões da Carta Final da citada assembleia, os Xukuru do
Ororubá afirmaram:

Nesse processo de luta, muitos foram perseguidos,


criminalizados, processados e injustamente
condenados, outros tombaram, e suas forças se
encantaram e fizeram das matas do Ororubá suas
moradas. Dessa forma entendemos que fazem parte da
natureza sagrada, sendo assim, reafirmamos o nosso
compromisso com o sagrado, nossa mãe natureza, no
sentido de proteção e zelo.

Além disso, os indígenas Xukuru do Ororubá deliberaram


que, a partir daquela data, toda agricultura praticada no seu território
será orgânica, como forma de recuperar as terras degradadas, garantir
a qualidade de vida e fortalecer a agricultura familiar.
Na mesma perspectiva, com o tema “Agricultura Xukuru
princípio do Bem Viver: cultivando com respeito, proteção e zelo
a Nossa Mãe Terra”, ocorreu, em meados de novembro de 2013, na
Aldeia Cana Brav,a o I Encontro de Agricultura e Feira de Troca
de Sementes Tradicionais do Povo Xukuru do Ororubá, que reuniu
agricultores índios Xukuru, pesquisadores e convidados aliados dos
indígenas.
Nesse Encontro, com mesas-redondas, debates e apresentações,
afora as trocas de sementes, foram socializadas experiências

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 347


de agricultura Xukuru do Ororubá e de outros povos indígenas
presentes. No evento, promovido como espaço de trocas de sementes
e materiais propagativos das culturas tradicionais Xukuru, foi
enfatizada a valorização da agricultura tradicional em suas práticas
e procedimentos, como possibilidade de interação com as temáticas
da Saúde e da Educação, buscando, ainda, sensibilizar os presentes
para as questões de impactos ambientais dentro do território Xukuru
do Ororubá e o fortalecimento da organização do povo Xukuru. Na
Assembleia realizada em maio de 2014, outra vez na Aldeia Pedra
d’Água, onde estiveram também presentes diversos convidados, com
o tema “Limolaigotoípe – terra dos ancestrais: a água é o sangue da
Terra”, os Xukuru do Ororubá retomaram suas preocupações com
os recursos naturais disponíveis, dessa vez discutindo a importância
da água, levando em conta a região do Semiárido onde habitam. Na
Carta Final da Assembleia, enfatizaram:
Conscientes dessa realidade desafiadora, após termos
concluído a elaboração do mapa hidrográfico do
Território Xukuru, fomos ungidos espiritualmente
através dos rituais conduzidos pelas lideranças
religiosas do nosso povo. Como forma de
compromisso com a preservação da mãe natureza
e a garantia de continuidade das gerações futuras,
decidimos que se faz necessário fortalecer em todas
as nossas aldeias o processo de conscientização sobre
o valor espiritual da água e a utilização correta da
mesma, seja para o consumo humano, ou para cultivo
da agricultura e criação de animais.

No documento final da citada Assembleia, os Xukuru do


Ororubá assumiram, também, o compromisso de participarem da
Campanha Internacional “Água e Espiritualidade”, a ser promovida

348 Edson Silva


pela ONU como o tema principal do Dia Mundial da Água em 2017.
E finalizaram a Carta lembrando as palavras ditas pelo Cacique
Xicão: “A Água é o sangue da Terra, as matas são os cabelos da Terra,
as pedras são os ossos da Terra”. O território demarcado Xukuru
do Ororubá em grande parte era de terras desmatadas, exauridas
pelos latifundiários. Fontes secaram ou foram contaminadas pelos
agrotóxicos usados pela agroindústria, em uma região onde ocorre a
escassez de água nas épocas de longas estiagens.
Após a demarcação, tornaram-se visíveis matas que cresceram
em vários pontos do território Xukuru do Ororubá. Uma delas, a mais
significativa, é a Mata da Pedra d’Água, na Aldeia do mesmo nome,
primeira área retomada pelos indígenas em 1991, por estar sendo
desmatada. Era nesse local que, apesar das proibições e perseguições
dos fazendeiros, os indígenas realizavam rituais, e é nele também
que, atualmente, estão sepultados guerreiros e guerreiras – ou, como
dizem os Xukuru do Ororubá, estão os que, assim como o Cacique
Xicão, foram “plantados”, para que deles nasçam novos guerreiros e
guerreiras.
Com a caça proibida em comum acordo com os indígenas,
circulam notícias da presença de veados e de outros animais.
Constata-se, ainda, uma diversidade de pássaros antes considerados
extintos nas terras indígenas. As matas são locais tidos como a
Natureza sagrada, morada dos “Encantados” cultuados pelo Xukuru
do Ororubá, que se reinventam e reescrevem a História como um
povo indígena no Semiárido nordestino.
Referências
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FEITOSA, R. J. R. Capitalismo e camponeses no Agreste
pernambucano: relações entre indústria e agricultura na
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SILVA, E. H. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do
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(Tese Doutorado em História Social).
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Milet ao Ministro da Agricultura. Códice Diversos, D38, Recife, 18
mar. 1882.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 351


a alma!”. Aí disseram “Vá embora, vá embora que a mulher é
doida! A moça é doida”. (José de Alexandre, Bairro Serrinha,
Pesqueira/PE).

Mata na atual Al-


deia Pedra d’ Água.
Foto Carol Nasci-
mento, 2007.

No final da década de 1980 os Xukuru, juntamente com outros


povos indígenas no Brasil, participaram ativamente do processo da
Assembléia Nacional Constituinte. Liderados pelo carismático Cacique
“Xicão”, foram a Brasília e estiveram presentes nos debates sobre os
direitos indígenas na Constituição em elaboração. Voltaram a Pesqueira
motivados pelos direitos indígenas garantidos no novo texto constitucional
aprovado em 1988.
Em novembro de 1990, os Xukuru reocuparam a área da
Pedra d’Água que se encontrava nas mãos de 15 posseiros não-índios.
Afirmavam os índios que a Pedra d’Água era um local de rituais indígenas
sagrados e estava sendo desmatada por posseiros arrendatários da
área, sob domínio da Prefeitura de Pesqueira. A reocupação de Pedra
d’Água, onde o Cacique “Xicão” e outros indígenas passaram a morar, foi
um marco na organização e mobilização contemporânea Xukuru, que
retomaram em seguida outras áreas, em mãos de fazendeiros. Esta ação
provocou perseguições, violências e os assassinatos do Cacique Xicão, em
1998, e posteriormente, de outras lideranças Xukuru. Mas, com o apoio

352 Edson Silva


da sociedade civil, os Xukuru pressionaram a Funai para a demarcação
do território indígena, ocorrida em maio de 2001.
Na mata existente em Pedra d’Água, após o sepultamento de
Xicão foi constituído um cemitério, onde também foram sepultados “Xico
Quelé” e outros índios assassinados ou participantes nas mobilizações
pela demarcação das terras. Com isso, a Pedra d’Água passou a ter uma
dimensão simbólica ainda maior, pois os Xukuru afirmam enfaticamente
que os ali sepultados não foram enterrados, mas “foram plantados prá
que deles nasçam novos guerreiros”.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 353


CONSIDERAÇÕES FINAIS
O vivido, o concebido e o expressado:
a história a partir das memórias

Uma publicação de 1981 do governo estadual traz informações


de seis dos sete grupos indígenas então oficialmente reconhecidos em
Pernambuco. Com o objetivo de conhecer a situação em que viviam
os índios no Estado, após uma pesquisa bibliográfica e contatos com
pessoas vinculadas ao assunto, com o apoio da Funai, posteriormente
foram realizadas visitas para observações e entrevistas nos locais de
moradias indígenas, entre os meses de março a julho do ano anterior a
publicação. (Condepe, 1981).
O texto publicado repetiu as concepções, bem como o
etnômio oficial sobre a identidade indígena, para localizar e nomear
“O aldeamento dos remanescentes Xucuru”, na Serra do Ororubá. “Os
Xucuru” foram contabilizados em “2.228 caboclos”, apresentando uma
situação de peculiaridade em relação aos demais grupos indígenas em
Pernambuco, por serem oficialmente reconhecidos, contarem com um
Posto Indígena e não possuírem uma “Reserva” com terras demarcadas.
A pesquisa constatou que “os caboclos” viviam em pequenas glebas de
terras espremidas entre “propriedades de civilizados”, dificultando “o
contato mais estreito entre os grupos familiares”177
Estas afirmações não correspondiam à situação vivenciada pelos
Xukuru, como foi visto no Capítulo III. As observações resultantes da
pesquisa, realizada em tão curto período, não possibilitaram perceber
que, apesar das perseguições e pressões por parte dos fazendeiros e
de poucos índios possuírem pequenos pedaços de terras, os Xukuru
mantinham intensas relações sociais. Os então chamados “sítios” eram
espaços de sociabilidade seja por meio de festas, novenas, ou com as
“juntadas”, o trabalho em mutirão nas roças dos que possuíam terras.
177
Condepe. As comunidades indígenas de Pernambuco, 1981, p.63.

354 Edson Silva


A pesquisa constatou ainda a moradia de índios em diversas
localidades, nomeadas como “aldeias” e não mais sítios, significando o
reconhecimento da presença de uma população com identidade étnica
específica naqueles lugares, ainda que, contraditoriamente, a própria
Funai, ao nomeá-los “caboclos” ou “remanescentes”, e obviamente
os fazendeiros invasores negassem a existência de indígenas na Serra
do Ororubá. O texto publicado lista como “aldeias” onde moravam
“descendentes da população” indígena: Canabrava, Brejinho, Gitó, Boa
Vista, Goiabeira, Afetos, Santana, Lagoa, Trincheira, Matinha, Caetano,
Caldeirão, Retiro, São Brás e Canivete. Muitas dessas localidades são
relacionadas em documentos históricos e foram citadas ou visitadas, para
realização de entrevistas, durante a pesquisa para elaboração da Tese.
Após fazer uma retrospectiva histórica sobre a presença
indígena na Serra do Ororubá, o texto do Condepe abordou a situação
socioeconômica dos Xukuru. Foi constatado apenas um diminuto
número de famílias indígenas possuindo um pedaço de terra: “Do número
total de famílias, apenas 160 dispõem de terra própria, em lotes de
aproximadamente ½ ha”.178 As demais trabalhavam em terras de outros
índios ou de fazendeiros criadores de gado. O texto colocou em oposição
os índios e os fazendeiros, afirmando que os primeiros usavam técnicas
agrícolas rudimentares e nomeando os segundos como “civilizados”.
Ou seja, em plena década de 1980, um texto elaborado por técnicos
governamentais expressava concepções já então superadas pelos estudos
especializados sobre a temática indígena.
Segundo aquele levantamento (Condepe, 1981), com as terras
em mãos dos fazendeiros seu uso pelos índios, ocorria em regime de
arrendamento, para plantar o milho e feijão, e o capim, este último para
os fazendeiros. O que restava da roça era destinado à alimentação do
gado. Contudo, o texto deixou de informar em que condições isso ocorria.
Vários depoimentos esclareceram que o gado era solto dentro da roça
indígena quando esta estava sendo colhida. Basta termos presente a
entrevista de “Seu” Gercino.

178
Condepe. Op. cit, p.65.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 355


De acordo com a publicação, a escassez de terras influenciava
nas condições de pobreza dos Xukuru, com a desnutrição e doenças
decorrentes da fome. O Posto da Funai realizava o atendimento e distribuía
remédios. Todavia, na própria documentação do SPI estão registrados os
constantes pedidos dos encarregados do Posto, anteriormente a vigência
da Funai, de remédios para a farmácia destinada a atender os Xukuru.
Do ponto de vista das “Manifestações Culturais e Religiosas”
a publicação tratou os Xukuru a partir da ênfase na idéia das perdas
culturais. Eles foram denominados de caboclos que estavam “totalmente
aculturados”, isso porque as expressões culturais estavam em acelerado
processo de “desaparecimento”. Por essa razão a unidade do grupo
estava fragilizada, e não eram mais percebidos traços de vida comunitária.
Apenas em Canabrava havia alguma coesão e apenas vestígios da língua
materna falada somente pelos mais velhos. Permeia o texto, portanto, a
idéia de uma essência cultural expressa por meio de sinais distintivos, a
exemplo do falar pleno de uma língua original, cuja ausência entre os
moradores na Serra do Ororubá, significava o desaparecimento daqueles
“remanescentes” indígenas.
Ainda que o Toré continuasse sendo dançado, como constatou
a equipe que visitou a Serra do Ororubá, o texto negava a existência de
expressões culturais indígenas. Os pesquisadores não conseguiram “ler”,
nas entrelinhas, o significado das queixas Xukuru sobre as humilhações
dos fazendeiros que ridicularizavam os “costumes” indígenas. Mesmo
evidenciando Cimbres como o “centro das manifestações comunitárias
de cunho místico-religiosas” indígenas, onde ocorriam grandes festejos
em louvor a São João e Nossa Senhora das Montanhas, o texto afirma
não se tratar de uma festa indígena, mas de uma festa regional da qual os
“caboclos” participavam, juntamente como os não-índios. Não foi levada
em consideração a apropriação e o sentido que os Xukuru sempre deram
àquele local e as festas ali celebradas, como foi demonstrado no Capítulo III.
O texto não explorou o significado das narrativas indígenas sobre
o “achado da imagem” de N.Sra. das Montanhas, e igualmente os rituais
em que os indígenas se vestem com adereços de palhas próprios para
a ocasião, como foi visto também no Capítulo III, enquanto expressões

356 Edson Silva


das apropriações e reelaborações culturais Xukuru. As narrativas e
informações sobre as expressões culturais indígenas foram relatadas
pelo “caboclo Antero”, figura que não recebeu a devida importância na
pesquisa, não obstante tratar-se de Antero Pereira, o Cacique Xukuru
na época, morador na atual Aldeia Cana Brava, de onde se originou o
cacicado Xukuru e também um dos locais, na Serra do Ororubá, em que
a maioria das famílias indígenas sempre possuiu pequenos pedaços de
terras.
Ainda que, do ponto de vista oficial, continuassem sendo
chamados de caboclos e assim tivessem negada sua identidade étnica
indígena, em meados dos anos 1980 os Xukuru se mobilizaram e
participaram ativamente dos debates em torno da Assembléia Nacional
Constituinte e da elaboração da nova Constituição aprovada em 1988.
A participação Xukuru foi incentivada e apoiada, durante todo tempo,
pelo Cimi-NE. A discussão da temática indígena na Constituinte em
vias de convocação foi o motivo para o Cimi se aproximar dos Xukuru,
após várias tentativas anteriormente impedidas pelos encarregados dos
Postos da Funai, segundo afirmaram mais tarde os índios. Em 1986, um
casal de missionários foi morar na área urbana de Pesqueira, de onde
se deslocavam para a Serra do Ororubá, com o objetivo de conhecer os
índios e promover reuniões para discussões sobre a Constituinte.
Apoiados e custeados pelo Cimi-NE, grupos de Xukuru,
juntamente com os de outros povos indígenas no Nordeste, viajaram
por diversas vezes a Brasília para participar de encontros de estudos,
seminários, e para pressionar os deputados que discutiam a elaboração
da nova Constituição. A presença dos índios nordestinos na Capital
Federal, em conjunto com índios vindos das demais regiões do Brasil, em
um momento político tão significativo, deu uma considerável visibilidade
às reivindicações dos índios no Nordeste. Nesse processo, destacou-se e
tornou-se bastante reconhecida, entre os índios no Nordeste, a liderança
de Francisco de Assis Araújo, o “Xicão”, que, retornando de Brasília seria
escolhido Cacique do povo Xukuru.
A participação nos eventos em torno da Constituinte em muito
impulsionou a organização e mobilização Xukuru. Durante as várias

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 357


estadas em Brasília, o Toré foi dançado em diversas vezes e assumiu,
além de um significado político, um marco da identidade e mobilização
Xukuru. Promulgada a Constituição e retornando da Capital Federal,
assessorados pelos missionários do Cimi-NE os Xukuru promoveram,
acompanhada de muito Toré, uma reunião em Cana Brava, com índios
das diversas aldeias na Serra do Ororubá, para relatar os acontecimentos
vivenciados em Brasília, bem como tratar dos direitos indígenas garantidos
na nova Constituição. Decidiram também pela realização de reuniões nas
demais aldeias, para continuar discutindo o assunto179

Fonte:Projeto de Capacitação e Assessoria Técnica/PCAT-Xukuru, 2007.

Ainda em 1988, como registrou a imprensa pernambucana, os


Xukuru se mobilizaram também ao tomarem conhecimento de que o
fazendeiro Otávio Carneiro Leão tivera um financiamento aprovado pela
Sudene, para implantação da Empresa Agropecuária Vale do Ipojuca
S/A, no Distrito de Cimbres. Os índios pressionaram a Superintendência

179
Relatório da Equipe Xukuru. Recife, Cimi-NE, p.3, dig.

358 Edson Silva


Regional da Funai sediada no Recife, para impedir a emissão do atestado
negativo da existência de uma população indígena no local destinado ao
projeto agropecuário. Como receio de que outros fazendeiros recebessem
o mesmo benefício oficial, exigiam, “em pé de guerra”, a devolução de suas
terras.180Instalou-se um clima de tensão entre os Xukuru, que exigiam a
demarcação de suas terras, baseados nos direitos indígenas garantidos
na então recém promulgada Constituição.181
As lideranças Xukuru reuniam-se diariamente, para discutir
os direitos indígenas fixados na nova Carta Magna do país e, ao final
dos encontros, dançavam o Toré, invocando a proteção e a força dos
Encantados e de N. Sra. das Montanhas. Reivindicavam a devolução de
documentos de suas terras, assinados pela Princesa Isabel, e uma túnica de
capitão, uma espada e botões de ouro pertencentes a seus antepassados,
ex-combatentes na Guerra do Paraguai, pois tanto os papéis como os
objetos tinham sido levados, em 1944, pelo sertanista Cícero Cavalcanti,
ainda trabalhando na Funai no Recife, mas que, naquela época, estivera
na Serra do Ororubá, a serviço do SPI. Por outro lado, os fazendeiros
ampliavam as plantações de capim e soltavam o gado, para ocupar as
terras reivindicadas pelos Xukuru, que prometiam reaver, baseados nos
preceitos constitucionais, o que lhes pertencia por direito.182
Com a destituição, em 1989, do Cacique José Pereira de Araújo,
conhecido por “Zé Pereira” ou ainda “Zé de Ismaé”, acusado de alianças
com a Funai e de não favorecer as reivindicações indígenas, os Xukuru
escolheram, para substituí-lo, Francisco de Assis Araújo, o Cacique
“Xicão”. O carisma e a liderança de “Xicão”, demonstrada em Brasília,
durante a participação nos eventos da Constituinte, deram um novo
impulso à organização e mobilização interna Xukuru, e na busca de apoio
da sociedade civil, a exemplo do Cimi-NE, para a conquista dos direitos
indígenas sobre as terras. Após pressões dos Xukuru, que ingressaram

180
Em pé de guerra, índios Xukurus exigem devolução de terras. Folha de Pernambu-
co, Recife, 22/10/1988, p.1.
181
Xucurus querem terras de seus antepassados. Jornal do Comercio, Recife,
22/10/1988, p.5.
182
Idem

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 359


com uma ação judicial na Procuradoria da República no Recife contra o
Projeto Agropecuário Vale do Ipojuca, uma portaria ministerial determinou
a criação de um Grupo de Trabalho, formado por técnicos da Funai,
para iniciar o processo de identificação e delimitação da terra indígena
Xukuru. O levantamento realizado pelo GT, coordenado pela antropóloga
Vânia Fialho Souza, cadastrou 281 imóveis rurais na área delimitada em
26.980 hectares. O Prefeito de Pesqueira, secretários municipais, pelo
menos um vereador e familiares do então Vice-Presidente da República
Marco Maciel foram listados como posseiros.
O trabalho realizado pelo GT foi bastante significativo para os
Xukuru, uma vez que oficialmente as reivindicações indígenas estavam
sendo reconhecidas. Mas, por outro lado, aumentaram as tensões entre
os índios e os fazendeiros, que passaram a não mais ceder terras em
regime de arrendamento e não aceitar trabalhadores que se identificassem
como Xukuru. A recusa dos fazendeiros de utilizar mão-de-obra indígena
agravou as condições de pobreza dos Xukuru que, motivados pelo
levantamento do GT, iniciaram o processo de retomada de parte das
terras em disputa. (OLIVEIRA, 2006, p.107-108).
A primeira área a ser retomada foi Pedra d’Água, em fins de
1990. Conforme já mencionada, Pedra d’Água fora ocupada pelos índios,
no início dos anos 1960 numa ação conjunta com a Liga Camponesa.
Cerca de 300 índios, em 1990 contando com apoio jurídico do Cimi-NE,
ocuparam 110 ha. em Pedra d’ Água, que estava nas mãos de 15 posseiros
arrendatários de Prefeitura da Pesqueira, em terras de propriedade da
União cedidas ao Município. Em nota distribuída à imprensa, assinada
pelo Cacique “Xicão”, lideranças Xukuru e de outros povos indígenas
no Nordeste, parlamentares e entidades dos movimentos sociais, foi
explicado ser a mata em Pedra d’ Água um local de rituais sagrados e que
tinham sido destruída por posseiros. Além disso, as terras Xukuru estavam
invadidas por fazendeiros, pequenos e médios posseiros, impedindo o
plantio para a sobrevivência indígena, que exigiam providência à Funai.183

183
Os Xukuru retomam área invadida. Porantim, Brasília, nº. 133/134, nov./dez. 1990,
p.9.

360 Edson Silva


Em 1992, os Xukuru retomaram a Fazenda Caípe, uma área com
1450 ha, até então sob o domínio do posseiro e vereador municipal pelo
PFL Hamilton Didier. Contando sempre com o apoio conquistado de
organizações da sociedade civil, como o Cimi-NE, a CPT, o CMI, sindicatos
rurais e urbanos da região de Garanhuns, parlamentares do PT-PE, como
o então Deputado Estadual João Paulo, professores/as da UFPE, UFPB,
dentre outros órgãos e personalidades, ocorreram outras retomadas. Se,
por um lado, esse processo ampliou a dimensão da visibilidade política da
organização e mobilização Xukuru pela demarcação de um território, por
outro, aumentou a rejeição e negação por parte dos fazendeiros sobre a
existência de um grupo indígena na Serra do Ororubá.
Os questionamentos sobre a identidade indígena e a disputa
pelo direito às terras ultrapassaram Pesqueira e ocuparam espaços na
imprensa pernambucana e de outras regiões do Brasil, como o importante
jornal Folha de São Paulo, que ocupou uma página inteira de uma edição
de domingo, com uma longa reportagem, incluindo vários depoimentos
de índios xukurus e fazendeiros. Os argumentos apresentados por índios
e de fazendeiros expressavam um confronto de concepções no presente,
relacionado a um passado que fundamentava a identidade indígena,
conferindo o direito à propriedade das terras em disputa.
Na citada reportagem, Evandro Maciel Chacon, Prefeito de
Pesqueira, primo do então Vice-Presidente da República, Marco Maciel, e
posseiro na Serra do Ororubá, dizia estar procurando mediar o conflito.
Para garantir os mananciais que abasteciam a cidade de Pesqueira,
localizados nas terras reivindicadas pelos indígenas, o Prefeito recorrera
à Justiça contestando o relatório da delimitação do território Xukuru
elaborado pela Funai. Evandro Chacon questionou a existência Xukuru,
quando afirmou: “Houve uma aculturação. Se bobear, tem índio mais
para São Paulo do que eu”.
Para o fazendeiro Hamilton Didier, que tivera as terras em
seu poder ocupadas pelos Xukuru, muitos estavam se passando por
índios: “Eles estão estudando o dialeto, para dizerem que são índios.
Eu dou minha fazenda para você, se você achar algum índio lá”. Ele
também afirmou: “Aqui (em Pesqueira) existem tantos índios quantos

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 361


existem hoje na Avenida Paulista ou em Copacabana”. E ironicamente,
ainda acrescentou: “Eles, os que se dizem índios, perderam o dialeto na
estrada, talvez na subida da serra”. Ao que respondeu Cacique “Chicão”:
“Tomaram nossa língua. Isso foi até bom. Imagine se a gente não soubesse
falar português. Estávamos mortos”.184. Para o fazendeiro, uma identidade
indígena perdida e expressa, por exemplo, no falar de uma língua nativa,
era um dos critérios ausentes nos que se afirmavam índios para exigir
os direitos às terras. Para os Xukuru, as relações históricas explicavam a
condição até vantajosa em que se encontravam, para reivindicar o que
era seu de direito.
Como foi visto, é a partir de suas memórias que os Xukuru do
Ororubá lêem a história para justificar a reivindicação de seus direitos.
As memórias Xukuru foram por eles retomadas tanto no início dos
anos 1950, quando buscaram os benefícios da lei para familiares de ex-
combatentes na Guerra do Paraguai e o reconhecimento oficial para a
instalação de um Posto do SPI na Serra do Ororubá, como em fins dos
anos 1980, quando, após participarem nas discussões e mobilizações
para a elaboração da nova Constituição Federal que garantiu os direitos
indígenas, passaram a reivindicar as suas terras invadidas por fazendeiros.
Naquela década quando os conflitos por terras e os direitos indígenas em
Pesqueira ocuparam o espaço público de debates por meio da imprensa,
os Xukuru do Ororubá recorreram as suas memórias para contrapor as
afirmações contrárias à existência indígena por parte dos fazendeiros.
Por meio da pesquisa das memórias, percebemos elos de uma
história coletiva, de um pertencimento, em um conjunto de situações e
experiências históricas que conferem uma identidade, baseada em um
espaço ancestral comum, a Serra do Ororubá. Daí ser possível afirmar a
existência de uma memória coletiva: “A memória coletiva aparece como
um discurso da alteridade, no qual a posse de uma história que não se
divide, dá ao grupo sua identidade” (GODOI, 1999, p.147). Uma memória
compondo um patrimônio dinâmico e, a exemplo do ocorrido em outros

184
Caboclo, xucuru pode virar sem-terra. Folha de São Paulo, São Paulo, 7/12/1996,
p.11.

362 Edson Silva


lugares e situações, “Verifica-se que ela é ativada num contexto de pressão
sobre o território do grupo, atuando como criadora de solidariedades,
produtora de imaginário, erigindo regras de pertencimento e exclusão,
delimitando as fronteiras sociais do grupo” (GODOI, 1999, p.147).
As memórias orais dos Xukuru do Ororubá sobre a Guerra do
Paraguai ocupam um lugar central nas leituras da História feitas pelos
índios para afirmarem o direito às terras. Elas foram conquistadas como
recompensa pela participação de seus antepassados naquela Guerra.
Um entrevistado lembrou o famoso batalhão “30 do Ororubá”, relatando
como os Xukuru voluntários da Pátria, após lutarem e vencerem a Guerra
do Paraguai, foram recebidos pessoalmente, no Rio de Janeiro, pelo
casal imperial. Estes, não tendo como agradecer reconheceram o direito
indígena as terras,
Chamavam o número Trinta dos Voluntários. Chama os Trinta
dos Voluntários porque foram pro Paraguai, lutaram na guer-
ra lá, venceram... Mas quando veio de volta, passaram no Rio
de Janeiro, o rei e a rainha não tinham com que agradecer
a eles e disse: “Vocês faça sua divisão de terra, é patrimônio
que eu vou assinar pra vocês”. (“Seu” João Jorge, Aldeia Su-
cupira)

Moradora da Aldeia Gitó, Dona Josefa também ouviu do pai e


do avô que seus antepassados venceram a Guerra. No encontro com o
Imperador Pedro I e a Princesa Isabel, os índios não foram recompensados
em dinheiro, porque podiam ser enganados e roubados pelos brancos,
mas receberam as terras:
A pessoa que foi para a Guerra, naquele tempo eu não era
nascida, eu sei contar coisa assim, alguma coisa que eu já
ouvi meu avô falar, meu pai. Os parentes deles foram para
a Guerra, lutaram, venceram a Guerra. E depois que eles
lutaram e venceram a Guerra, a Princesa Isabel queria dar
dinheiro para eles. D. Pedro disse “Não dê, porque eles são
inocentes, os brancos vão roubar o dinheiro. A terra deles. Dê
terra a eles, não dê dinheiro, não”. Aí ela foi e deu a terras a
eles. (Josefa Rodrigues da Silva, Aldeia Gitó)

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 363


Em uma alusão às abotoaduras de bronze do fardamento
militar, a entrevistada afirmou terem os Xukuru recebido ainda roupas
com botões de ouro. Ela falou ainda do chapéu. Destacando, em suas
lembranças, o adereço que completava o uniforme de combate. Enfatizou,
porém, a importância das terras, motivo de contínuas disputas, mas que
foram conquistadas e documentalmente registradas no Rio de Janeiro,
em uma referência à recompensa recebida pelos índios diretamente do
casal imperial:
Ganharam aquela roupa de ouro, com aqueles botão de
ouro, aquele chapéu, aquelas coisa, não é? E ganharam a
terra também. O principal foi a terra. Que justamente essa
terra que ainda hoje estão lutando, querendo acabar com os
índios, sabendo que a terra é dos índios porque foi ganha.
Está lá no Rio de Janeiro, essa cópia das terras está no Rio de
Janeiro. (Josefa Rodrigues da Silva, Aldeia Gitó).

“Seu” Gercino também narrou o encontro dos Xukuru com a


Princesa Isabel ao retornarem da Guerra. Em seu relato, foram os índios
que, receando serem roubados pelos brancos, recusaram dinheiro ou
ouro oferecido, e pediram, como recompensa, as terras onde habitam:
Ela queria dar o dinheiro prá pagar. Mas já tinha índio veio
que já entendia mais ou menos, ai disse: “Bem, se é da sen-
hora dar o dinheiro, o ouro nós não quer. Que a senhora dá
o ouro eles roubam. Os homem branco rouba, dar a coroa
eles carrega, dar espada eles toma. Assim nós queremos em
terra”. Ela deu a terra. É essa aldeia aqui. Essa aldeia aqui foi
dada por ela. (Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra d’Água)

A história contada pelos Xukuru do Ororubá é pontuada por


acontecimentos, momentos e marcos por eles considerados fundamentais
tais como: a participação na Guerra do Paraguai, a época da busca pelo
reconhecimento do SPI, nos anos 1950, e o período da mobilização para
as retomadas das terras, nos anos 1980, sob a liderança do Cacique Xicão.
As memórias sobre a participação dos Xukuru na Guerra do Paraguai,
portanto, são relidas em diferentes contextos.

364 Edson Silva


Mapa das aldeias Xukuru do Ororubá. Desenho elaborado pelas crianças
indígenas, estudantes nas escolas Xukuru, após as etomadas de partes do
território reivindicado pelos indígenas na Serra do Ororubá.
Fonte: PROFESSORES XUKURU, 1997, p.46.

Nos relatos das memórias orais dos Xukuru do Ororubá, é


possível perceber outros momentos que expressaram o cotidiano, os
espaços de sociabilidades criados na Serra do Ororubá, o significado
de Cimbres como um espaço de referência da memória mítico-religiosa
para a afirmação da identidade do grupo, as relações de trabalho com os
fazendeiros ou como operários na indústria, em Pesqueira. E ainda nas
atividades exercidas, para sobrevivência, por falta de terras, e em razão
da seca, na lavoura canavieira na Zona da Mata Sul pernambucana e
Norte alagoana, ou nas plantações de algodão no Sertão paraibano. São
fragmentos colhidos de relatos individuais, de memórias autobiográficas,
mas que fazem parte de uma história coletiva, na medida em que toda
memória individual se apóia na memória grupal, pois toda história de
vida faz parte da história em geral. (HALBWACHS, 2004, 59).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 365


Analisando os relatos dos Xukuru do Ororubá, é possível afirmar,
como disse Michael Pollak, quando discutiu sobre memória e identidade
social, que, entre os Xukuru do Ororubá é “perfeitamente possível que
por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um
fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado,
tão forte que podemos falar numa memória quase herdada”. (POLLAK,
1992, p.2). Compreender o significado das memórias orais Xukuru do
Ororubá é compreender a “história de experiências”. Um debruçar sobre
essas narrativas possibilita entender como “pessoas ou grupos efetuaram
e elaboraram experiências”. (ALBERTI, 2004, p.25).
Essas experiências foram e são marcantes, porque foram
intensamente vividas. As narrativas das memórias orais do povo Xukuru
nos ajudam ainda a “entender como pessoas e grupos experimentaram
o passado e torna possível questionar interpretações generalizantes de
determinados acontecimentos e conjunturas”. (ALBERTI, 2004, p.26). As
reflexões aqui apresentadas procuraram evidenciar como os Xukuru do
Ororubá, apoiados na memória e na história que compartilham sobre
o passado, fazem à releitura de acontecimentos que escolheram como
importantes, para afirmarem seus direitos, mesmo em meio as tantas
perseguições (ver Carta em ANEXO), enquanto um povo indígena, a
partir do vivido, do concebido e do expressado.
A história de “Seu” Gercino, em 83 anos de vida, nascido sem-
terra e falecendo como morador na retomada Aldeia Pedra d’Água, um
lugar mítico-religioso para os Xukuru do Ororubá, é bastante significativa:
no período de um século, ou seja desde a extinção do aldeamento, em
1879, até o início dos anos 1980, quando os Xukuru do Ororubá iniciaram
as mobilizações para retomada de suas terras.

366 Edson Silva


ANEXO
Carta de Agnaldo Xukuru da Prisão
(Presídio Juiz Plácido de Souza, Caruaru/PE).

Caruaru, 06/01/08

Povo Xukuru do Ororubá, guerreiros e guerreiras Xukuru, que


a força encantada do reino do Ororubá, esteja com todos e todas neste
momento. Escrevo-lhes da prisão, onde com muita dignidade, tento
resistir, como fez meu povo, durante estes 507 anos. Estou sofrendo
muito, não apenas pelo fato de estar preso, mas por conta de que me
tiraram do meio do meu povo, dos costumes e tradições do povo Xukuru.
Não permitiram que este ano, eu pudesse estar recebendo com vocês, as
forças encantadas do reino do Ororubá.
No entanto não me tiraram algumas coisas que considero
essencial: a minha dignidade, o meu amor pelo meu povo, o meu
compromisso com a construção do projeto de futuro do meu povo, que
significa a construção de um mundo melhor, sem opressores e oprimidos.
Aqueles que nos perseguiram no passado, através dos nossos
antepassados, ainda hoje nos perseguem representado pelas elites de
Pesqueira, pelos que detém o poder e com ele, conseguem manipular
alguns descomprometidos com a luta do nosso povo e que só pensam
em tirar proveito próprio.
São muitas e articuladas as forças contrarias ás nossas lutas,
ao nosso povo. Estão cada vez mais tentando atrapalhar o trabalho que
nossas lideranças vêm buscando desenvolver. No entanto, esses, que
se unem para destruir o povo xukuru, encontram pela frente muitos
obstáculos e eis alguns deles:
1° — nossas lideranças não se vendem, apesar de terem
dificuldades financeiras;
2° — somos um povo numeroso e unido, consciente dos direitos
e não nos deixamos manipular;

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 367


3° — nosso povo conta com uma estrutura de organização sólida,
como o CISXO, COPIXO, Conselho de Lideranças, Associação;
4° — temos um cacique dinâmico que trabalha e nos deixa
trabalhar e um pajé, que nos ajudou a enxergar e valorizar a força 
encantada do reino do Ororubá;
5° — temos uma mediunidade preparada para juntos quebrar-
mos toda força contrárias a nossas lutas.
Gostaria de aqui da prisão, pedir a união de toda força
encantada. Agradecer os apoios, as demonstrações de confiança em mim
e no companheiro Rinaldo. Quero ainda afirmar que sou inocente e que
acredito na justiça divina.
Estou cheio de esperanças que em breve estarei de volta para
continuar a luta por dias melhores junto ao meu povo. No entanto, sei
que estou pagando um preço alto por estar a frente, junto as demais
lideranças, das lutas e conquistas que temos. Portanto, esse preço pago
com muita dignidade e peço apenas, nesse momento, tão difícil que as
forças continuem unidas, acreditando na nossa inocência.
Mas gostaria de dizer ainda, prá finalizar:índios) estão morrendo
em nosso território nos últimos anos e a maioria delas, através de
emboscadas todas no território xukuru e isso precisa ter fim. Chico Quelé
foi a primeira vitima, depois de Xikão. Quem está por trás dessas mortes,
destes crimes hediondos, precisa pagar por eles, pois se não inocentes
acabam pagando sem dever. Nossa grande luta é pela vida, como nos
orienta nosso pai Tupã, da qual seremos sempre os grandes promotores
e promotoras.
Chega de impunidade! Chegam de perseguição as lideranças e
ao povo Xukuru! Aqueles que nos tentam destruir tem que aprender que
aprendemos com o nosso grande professor  Xikão: “em cima de medo
coragem!”. Com o Cacique Marcos: “diga ao povo que avance!” Com o
nosso Pajé que “as nossas forças estão na Pedra do reino do Ororubá!”.
Agradeço especialmente aos nossos parceiros, pela articulação,
pelo credito no nosso trabalho. Nosso povo é forte e junto comigo
continuará resistindo e como disse um grande líder indígena: “somos
milhões e mesmo que todo o universo seja destruído, nós viveremos”.

368 Edson Silva


Salve as forças encantadas do reino do Ororubá! Salve as matas,
as pedras e água! Salve a união e a força de todo o povo Xukuru!
Um beijo no coração de todo o meu povo e um feliz ano novo
cheio de paz e harmonia para todos  e todas.
Do amigo aprisionado.
Agnaldo Xukuru.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 369


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Diretoria de Índios, códices: DII-10; DII-19; DII-29.
Documentos Avulsos, códice: Petições: Índios.
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Juízes Municipais, códice: JM-10.
Ministério da Agricultura, códices: MA-3, MA-6, MA-8,
Portarias, códice: P-41.
Registros de Ordens, códice RO.
Registros de Terras Públicas, códice: RTP-17.

370 Edson Silva


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— Museu do Estado de Pernambuco – MEPE:
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— Museu do Índio/RJ: Serviço de Documentação/SEDOC
Relatório Anual do CNPI, 1944/Ata da 14ª Sessão (versão não microfilmada).
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ano de 1952.
Microfilme: 798.
Microfilmes: 182; 798; 799, 804.
— Museu Nacional/RJ: Setor de Linguística/Arquivo Curt Nimuendajú
Carta de Curt Nimuendajú, em 27/10/1936, para Heloísa Alberto Torres.
Códice: CVO fotograma 1/3, p.25.
Carta de Curt Nimuendajú, 20/09/1937, para o Diretor do Museu Nacional no
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Carta de José Romão Siqueira, em 30/10/1934, a Curt Nimuendajú. Códice:
CVO fotograma 2/3, p.23.
Carta de Curt Nimuendajú, em 26/10/1943, para Julian H. Steward. Códice:
CVO fotograma 1/3, p.31.

Entrevistas
Antônio Feliciano da Silva, “Seu” Brainha 79 anos. Bairro José Jerônimo,
Pesqueira/PE, 07/07/2004.
Antonio Ferreira, “Pirrila”, 48 anos. Aldeia Caípe, Serra do Ororubá,
Pesqueira/PE, em 16/12/05.
Elpídio de Matos, 88 anos. (Falecido). Aldeia Fulni-ô, Águas Belas/PE, em
08/07/97.
Brivaldo Pereira de Araújo, “Seu” Zé Grande, 82 anos. (Falecido). Aldeia
Cana Brava, Serra do Ororubá, Pesqueira/PE, em 15/12/05.
Cassiano Dias de Souza, 75 anos. (Falecido). Aldeia Cana Brava, Serra do
Ororubá, Pesqueira/PE, em 13/12/05.
Cícero Pereira de Araújo, “Seu” Ciço Pereira, 81 anos. (Falecido). Bairro
Xucurus, Pesqueira/PE, em 05/01/2002.
Floriano Marcolino da Silva, 90 anos. Aldeia Cana Brava, Serra do Ororubá,

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 371


Pesqueira/PE, em 17/12/2005.
Gercino Balbino da Silva, 80 anos. (Falecido). Aldeia Pedra D’Água, Serra do
Ororubá, Pesqueira/PE, em 11/08/2004.
Isaura Bezerra Simplício, “Dona Isaura”, 83 anos, Aldeia São José, Serra do
Ororubá, Pesqueira/PE, em 04/07/2004.
João Jorge de Melo, 65 anos. (Falecido). Aldeia Sucupira, Serra do Ororubá,
Pesqueira/PE, em 30/03/2002.
José Antonio Luiz da Paz, “Seu” Dedé, 48 anos. Aldeia Santana, Serra do
Ororubá, Pesqueira/PE, em 08/04/2004.
José Gonçalves da Silva, “Zé Cioba”, 82 anos. (Falecido). Bairro Portal,
Pesqueira/PE, em 18/12/2005.
José Pedro Simplício, “Seu” Zé Pedro, 75 anos. Aldeia São José, Serra do
Ororubá, Pesqueira/PE, em 05/07/2004.
José Pereira de Araújo, “Zé Pereira” ou “Zé de Ismaé”, 61 anos. (Falecido).
Aldeia Cana Brava, Serra do Ororubá, Pesqueira/ PE, em 08/07/2004.
Josefa Simplício Correia, “Zefa”, 60 anos. Centro, Pesqueira/PE, em
05/07/2004.
Josefa Rodrigues da Silva, 57 anos. Aldeia Gitó, Serra do Ororubá, Pesqueira/
PE, em 30/03/02.
Juvêncio Balbino da Silva, 76 anos. (Falecido). Cana Brava, Serra do Ororubá,
Pesqueira/PE, em 15/12/2005.
Laurinda Barbosa dos Santos, “Dona Santa”, 89 anos. (Falecida). Aldeia
Caípe Serra do Ororubá, Pesqueira/PE, em 12/11/05.
Maria das Graças Simplício Freire, “Dona Nina”. 54 anos. Aldeia São José
Serra do Ororubá, Pesqueira/PE, em 04/07/2004.
Malaquias Figueira Ramos, 62 anos. Aldeia Caípe, E na Aldeia Brejinho, em
17/11/2005. Serra do Ororubá, Pesqueira/PE, em 12/11/1996.
Manoel Balbino Silva, “Mané Preto”, 73 anos. Aldeia Cana Brava, Serra do
Ororubá, Pesqueira/PE, em 17/11/2005.
Maria Alves Feitosa de Araújo, “Dona Lica”, 52 anos (sobrinha de Antônio
Nascimento). Aldeia Cana Brava, Serra do Ororubá, Pesqueira/PE, em
15/12/05.

372 Edson Silva


Milton Rodrigues Cordeiro, 57 anos. Aldeia Gitó, Serra do Ororubá,
Pesqueira/PE.
Pedro Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha, Pajé Xukuru, 72 anos. Bairro Baixa
Grande, em 29/03/2002, Pesqueira/PE, em 05/07/2004.
Petronilho Simplício de Freitas, “Seu” Petru, 88 anos. (Falecido). Centro,
Pesqueira/PE, em 09/07/05.
Zenilda Maria de Araújo, “Dona Zenilda”, 55 anos. Viúva do Cacique “Xicão”.
Aldeia Santana Serra do Ororubá, Pesqueira/PE, em 04/07/05.

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XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 383


PÓS-ESCRITO
Xukuru do Ororubá: história indígena e História
Ambiental no Semiárido pernambucano1
Edson Silva 2

Introdução
É possível afirmar a existência de uma história indígena ou uma
história dos índios? Os índios estão fora da História, enquanto história
da humanidade? Algum grupo humano vive totalmente isolado, sem
estabelecer relações com outros grupos humanos? E ainda, é possível
analisar a experiências históricas de um grupo humano desvinculadas de
suas relações com o ambiente onde habita? Apesar de usarmos grosso modo
a expressão história indígena, não é possível pensar, discutir e escrever uma
história dos povos indígenas enquanto uma história étnica, uma história
específica. Tal empreitada estaria fadada ao fracasso, pois existem diferentes
povos indígenas. Seria uma história de cada povo ou uma história de todos
os povos indígenas, correndo-se os riscos de generalizações e ignorando,
omitindo, desconsiderando as singularidades socioculturais de cada povo
indígena?
Ao invés de uma história dos povos indígenas, pensamos que o
mais preciso é discutir os índios na História, observando como cada povo
indígena participa, enquanto campo de relações, em diversos e diferentes
espaços, e, com diferentes grupos sociais e atores sociohistóricos: os índios
e a colonização; os índios e os povos negros, ciganos, os diferentes povos
europeus; os índios e os Estados nacionais; os índios e as mobilizações
sociopolíticas, dentre outras temáticas. Afirmamos, portanto, a compreensão
dos povos indígenas como atores históricos ao lado de outros sujeitos
1
Uma versão desse texto com o título “História indígena e história socioambiental no
Semiárido pernambucano: os Xukuru do Ororubá”, foi publicada em SILVA et ali, 2017,
p.13-33.
2
Professor Titular de História do Colégio de Aplicação da UFPE. Doutor em História
pela UNICAMP. Realizou o Pós-Doutorado na UFRJ. É professor no curso de Mestrado
Profissional em História(PROFHISTÓRIA) na UFPE e no curso de Mestrado em História
na UFCG (Campina Grande/PB).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 385


sociopolíticos que em diferente ambientes atuam/participam nos processos
da história da humanidade.
Durante muito tempo, nos estudos sobre a História do Brasil, além
das referências ao índio dos primeiros anos da colonização, predominou
a visão sobre os povos nativos como vitimados pelos inúmeros massacres,
extermínios, genocídios e etnocídios provocados pelas invasões e
colonização dos portugueses e outro povos vindos da Europa a partir de
1500. Além disso, os poucos índios sobreviventes que estariam condenados
ao desaparecimento, engolidos pela marcha colonizadora, pelo progresso
e por meio da “aculturação”, foram integrando-se à nossa sociedade. Em
geral, essas ideias são as que permanecem sendo ensinadas nas escolas
e mesmo nas universidades; elas ainda aparecem em manuais didáticos,
principalmente nos livros de História do Brasil, e também são veiculadas
pela mídia e expressadas pelo senso comum.
Contrariando todas as previsões trágicas, os povos indígenas no
Brasil, ao longo dos anos de colonização, não somente elaboraram diferentes
estratégias de resistência, seja através de guerras ou confrontos, seja por meio
de alianças, acomodações, adaptações e simulações diante das situações
criadas com a colonização, como também alcançaram, nas últimas décadas,
um considerável crescimento populacional. Pois, os dados comparativos dos
censos do IBGE entre 2000 e 2010, evidenciaram que a população indígena
no Brasil triplicou no último decênio. Questionando, assim, as tradicionais
visões eurocêntricas, colonialistas e evolucionistas, as quais tratavam os
povos indígenas como atrasados e como vítimas impotentes em extinção, o
que vem exigindo reformulações das teorias explicativas sobre seus destinos.
Nas pesquisas históricas foi também superada a clássica visão
dos viajantes e cronistas coloniais, retomada pelos historiadores brasileiros
no século XIX e também muito presente nos livros didáticos de História,
classificando os povos indígenas entre os “Tupi” e os “Tapuia”. Essa
costumava ser uma ideia equivocada que dividia os grupos indígenas em dois
blocos monolítico antagônicos, sendo os “Tupi” ao aldeados mansos e os
“Tapuia” chamados de bárbaros, selvagens habitantes dos sertões e bastante
perseguidos. Tais classificações escondiam as diversidades e as dinâmicas
socioculturais dos povos indígenas em todas as regiões do país.

386 Edson Silva


Observa-se ainda que os povos indígenas no Nordeste ocupam
cada vez mais o cenário sociopolítico regional, questionando os tradicionais
discursos e imagens que ainda advogam a inexistência, a extinção ou o
gradual desparecimento dos índios na Região. Até bem recentemente, os
indígenas no Nordeste foram desconsiderados nas reflexões históricas,
antropológicas e das Ciências Humanas e Sociais, numa visão baseada
em concepções da aculturação ou mestiçagem, formulada após a extinção
oficial dos aldeamentos em meados do século XIX.
Os habitantes dos lugares onde existiram antigos aldeamentos
foram chamados de “caboclos”, condição essa muitas vezes assumida
pelos indígenas para esconder a identidade étnica diante das inúmeras
perseguições. A essas populações foram dedicados estudos sobre seus hábitos
e costumes, considerados exóticos, suas danças e manifestações folclóricas,
consideradas em vias de extinção. De tal forma também aparecerem nas
publicações de escritores regionais, cronistas e memorialistas municipais, os
quais exaltaram de forma idílica a contribuição indígena nas origens e na
formação social de cidades do interior do Nordeste.
A imagem do caboclo aparece em obras literárias sobre fatos
pitorescos, recordações, “estórias” de regiões no Semiárido, como
personagens típicos e curiosos que buscavam se adaptar às novas situações,
ou como sem-terras, vagando em busca de trabalho para sobrevivência.
Escritores renomados, intelectuais e pesquisadores como Gilberto Freyre,
Raquel de Queiroz, Câmara Cascudo, José Lins do Rego, Graciliano Ramos
e Jorge Amado, ou ainda antropólogos como Darcy Ribeiro, só para
citar alguns dentre os nomes mais conhecidos, quando se referiram aos
indígenas remeteram a um passado idílico, omitindo a presença indígena
contemporânea no Nordeste.
As violências da ocupação colonial portuguesa foram tamanhas
que se registram, na atualidade, poucos povos indígenas habitantes no
litoral. Embora as invasões com as fazendas de gado no Sertão nordestino
também tenham ocorrido por meio de guerras e conflitos com os nativos,
possivelmente a dimensão espacial favoreceu a dispersão e resistência
de um considerável número de grupos indígenas, como é expresso pelos
diversos povos conhecidos no interior do atual Nordeste brasileiro.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 387


Os povos indígenas do Semiárido retomaram suas
mobilizações desde as primeiras décadas do século XX, conquistando
o reconhecimento do Estado brasileiro com a instalação de postos
indígenas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), ainda que a
atuação desse órgão governamental tenha sido muito assistencialista,
sem garantir, de fato, as terras indígenas. Os povos indígenas no
Nordeste, portanto, se constituem em um desafio, uma demanda para a
compreensão dos processos históricos que resultam nas mobilizações
sociopolíticas atuais pelas reivindicações, conquistas e garantias de
seus direitos.
A História Ambiental é o exercício de pesquisas, estudos e
reflexões que buscam estabelecer as relações entre grupos humanos
e as condições de vida em que habitam. Ou seja, contribuir para
discussões na perspectiva histórica evidenciando as relações de poder,
o acesso e a utilização de recursos naturais. Em nossa abordagem,
privilegiamos os chamados grupos subalternos – no caso, os indígenas
– nas suas interações com o Ambiente. Foi, portanto, nessa perspectiva
que buscamos compreender o povo indígena Xukuru do Ororubá,
habitante dos municípios de Pesqueira e Poção, na chamada região no
Semiárido pernambucano.

As invasões coloniais no Semiárido pernambucano

A partir de meados do século XVII, com o fim do domínio


holandês na Capitania de Pernambuco, foi impulsionada a colonização
portuguesa para o interior. As terras da região costeira estavam ocupadas
com a lavoura da cana-de-açúcar e multiplicaram-se os pedidos à
Coroa Portuguesa de terras no “sertão”: senhores de engenho alegavam
possuir gados sem terras onde pudessem criá-los (MEDEIROS, 1993).
Foram concedidas sesmarias pelo governo português, legitimando-
se o expansionismo colonial com a invasão das terras indígenas.
Os colonizadores, além de conflitos com os indígenas, enfrentavam
também os quilombolas de Palmares, que haviam ampliado seu
domínio de territórios desde a Zona da Mata até os “sertões” (Agreste

388 Edson Silva


pernambucano), durante o período em que as forças portuguesas
empenhavam-se em libertar a Capitania do domínio holandês.
Os conflitos que resultaram das invasões coloniais nos territórios
indígenas ficaram conhecidos genericamente, na historiografia, como a
“Guerra dos Bárbaros”, e se estenderam por todo o interior nordestino,
nas regiões que hoje correspondem ao Sertão da Bahia e do Maranhão,
durando desde o último quartel do século XVII até a segunda década
do século seguinte (PUNTONI, 2002). Muitos indígenas morreram nos
combates ou foram reunidos nas missões.
Para a instalação das fazendas de gado no Agreste e Sertão
pernambucano, era necessário amansar os índios “hostis”. Em 1661, o
governador Francisco de Brito Freire informava o aldeamento de muitos
“tapuias”, até aquele momento considerados “indomáveis”, tendo sido
constituídas duas novas povoações com igrejas, sob a responsabilidade
do Pe. João Duarte do Sacramento, fundador da Congregação do
Oratório no Brasil (MEDEIROS, 1993). Uma das missões dos oratorianos,
seguindo o curso do rio Capibaribe vindo de Recife, estava localizada
em Limoeiro, na Zona da Mata Norte pernambucana, de onde partiram
missionários que posteriormente se instalariam no Brejo da Madre de
Deus, no Vale do Ipojuca, para daí aldear outros indígenas na região
mais próxima, fundando o aldeamento do Belo Monte, o qual, com a
reforma pombalina, passou a se chamar Cimbres, onde habitavam os
índios Xukuru.
A região, que foi chamada de “sertões” desde o período colonial
até os primeiros anos da República e é atualmente conhecida por
Agreste, compreende 24.400 km do estado de Pernambuco onde estão
localizados diversos municípios e situa-se entre a Zona da Mata, o litoral
úmido e o Sertão propriamente seco, no Semiárido. O Agreste é uma
região de transição climática na qual predomina o bioma Caatinga, cujo
ecossistema complexo contém tanto as áreas com poucas incidências
de chuvas e secas periódicas quanto os brejos, sejam de altitudes
ou de pé-de-serra, regiões úmidas com pequenos enclaves de matas
densas. Por essas razões, é possível pensar o Agreste no plural, como
os “agrestes”.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 389


Os brejos como lugares de fertilidade no Semiárido: os conflitos com
os índios

São nos brejos que nasce a maioria dos rios. Em Pernambuco, por
exemplo, os rios Capibaribe, Una e Ipojuca tem suas nascentes em brejos
no Semiárido, correm para o litoral e desaguam no Oceano Atlântico. Com
cerca de 250 km de extensão, tendo um terço do seu curso intermitente, o
rio Ipojuca foi um dos caminhos da colonização portuguesa para o interior,
concentrando, ao longo do seu percurso, a maior densidade populacional
urbana do Agreste pernambucano, abrangendo vários munícipios, dentre os
quais a conhecida cidade de Caruaru.
A sobrevivência humana nessa região do Semiárido está
intimamente relacionada a alguns poucos rios perenes que nascem nas
serras e correm em direção ao litoral, bem como aos chamados “brejos
de altitudes”, espaços de clima ameno nos quais uma elevada densidade
populacional coexiste com as atividades agrícolas e a pecuária. A região
montanhosa favoreceu a formação desses brejos constituídos de espaços
subsumidos (manchas ou bolsões) diante da aridez acentuada do clima
predominante.
Historicamente, o Agreste vem desempenhando as funções de
fornecedor de gêneros alimentícios e de mão de obra para a Zona da Mata
canavieira e para o litoral, por meio das migrações sazonais. O Agreste
recebe pequena quantidade de chuvas, é caracterizado pelas “formas
ásperas, os solos rasos e não raro pedregosos, a flora dominante da caatinga
e a hidrografia intermitente” (MELO, 1980, p. 173), onde ocorrem secas
periódicas, muitas vezes calamitosas, agravando a qualidade dos solos e o
aproveitamento dos recursos naturais disponíveis. Nas cercanias do Vale do
Ipojuca estão localizados os brejos de São José e Ororubá, ambos situados
na Serra do Ororubá, em Pesqueira, e o de Poção, no município vizinho
do mesmo nome, além do brejo da Serra do Bituri, localizado entre os
municípios de Sanharó, Belo Jardim e Brejo da Madre de Deus.
A fertilidade das terras nos brejos na Serra do Ororubá, onde
habita o povo Xukuru do Ororubá, foi sempre evidenciada. No Diccionario
Chorographico, Histórico e Estatístico de Pernambuco, publicado em

390 Edson Silva


1908, foi ressaltada a produção agrícola de Cimbres, com milho, feijão,
mandioca, algodão, fumo, cana-de-açúcar e batatas, além de frutas como
ananases, laranjas, cajus, goiabas, bananas e pinha. O autor frisou, porém,
que essa produção advinha da Serra, pois, “geralmente fraca no município,
a agricultura, é futurosa na Serra do Ororubá pela uberdade de que oferece”
(GALVÃO, 1908, p. 181).
Em outro trecho, o autor afirmou que, além da abundância da
criação de gado, cavalos, ovelhas e cabras, existiam animais silvestres na
região, como veados, caititus, onças de diversas espécies, raposas, gatos
maracajás, tatus, tamanduás, coelhos, mocós, preás, guarás, furões, maritacas
e tejus, juntamente com aves de diversas espécies e portes. Afora o cedro,
foram citadas outras árvores nativas e seus usos medicinais:
A aroeira (muito usada no cozimento do entre casca para
dores de garganta), o bom nome (com o uso específico
das moléstias das vias respiratórias), o jucá ou pau-ferro,
o assafraz, guáiaco, cabeça de negro, gitó, parreira brava,
japecanga (succedaneo da salsaparrilha), o ingazeiro,
jaboticabeira, o imbuzeiro, a catinga de porco (de cujas folhas
se faz travesseiros sobre os quais se deitando os doentes de
dores de cabeça e tonteiras, dizem cessar o incômodo), o
mulungu, o cardeiro (mandacaru), o marmeleiro, o velame o
barbatenão, etc. (GALVÃO, 1908, p. 181).
Os conhecimentos sobre os usos dessas plantas medicinais
evidenciam a sua tradicional utilização pelos indígenas habitantes naquela
região. No Agreste, um ambiente de clima predominante seco e com falta
de chuvas, as disputas pelas regiões úmidas e pelas fontes de água eram
intensas. Daí os conflitos nas terras do antigo aldeamento de Cimbres
envolvendo os fazendeiros invasores e seus primeiros moradores, os índios.
A expansão pastoril foi cada vez mais acentuada, restringindo, assim, as
lavouras de subsistência. Os brejos das serras, com isso, foram sendo usados
como refrigério para o gado, em períodos de longas estiagens:
As serras, muito úmidas no inverno, não se prestam à
pecuária e são aproveitadas por agricultores que cultivam
cereais, plantas do ciclo vegetativo curto. Na estação seca,
após a colheita do feijão, do milho e do algodão, o gado é

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 391


levado para a serra, para o brejo, onde se mantém com este
alimento suplementar à espera de que, com as primeiras
chuvas, a caatinga reverdeça. São famosas por servirem de
refrigério ao gado certas serras, como as de Jacarará, da Moça
e de Ororobá, em Pernambuco. (ANDRADE, 1998, p. 157).
Por outro lado, o plantio do capim para a pecuária, em áreas de
caatinga ou nas cercanias das matas de serra, provoca a erosão do solo já
tão pobre. A apropriação das terras pelos fazendeiros criadores de gado e
o cultivo de pastagens representaram um novo ciclo de relações sociais na
região. Ao índio pequeno agricultor cabia utilizar as terras agora consideradas
alheias, porque em mãos dos fazendeiros, em regime de cessão de glebas
para cultivo e moradia. Em troca, o agricultor plantava o capim destinado
ao gado, que era alimentado também de restolhos da lavoura do morador.
Os brejos possuem solos profundos, matas de serras e cursos
d’água permanentes, favorecendo a policultura tradicional, com lavoura do
feijão, mandioca, café e cana-de-açúcar, a horticultura e a fruticultura, com
cultivo de banana, pinha, goiaba, caju, laranja, dentre outras (MELO, 1980).
Notemos, além disso, que, nesses interflúvios e em outros de
menor amplitude aparecem manchas numerosas, que, não
chegando a constituir verdadeiros brejos, representam áreas
onde se atenuam às condições de semiaridez, com seus efeitos
benéficos nas atividades pastoris. Atenuação dos efeitos da
semiaridez é também a existente nas áreas dos chamados
pés de serra, preferidas pela lavoura nos espaços de baixa
pluviosidade. (MELO, 1980, p. 181).
Durante muito tempo, a produção de frutas e hortaliças dos brejos
abasteceu não somente as feiras das cidades próximas, como também as
situadas em bairros do Recife.
O Vale do Ipojuca, por onde corre o rio Ipojuca, estende-se desde
a nascente do referido rio na zona rural do município de Arcoverde,
localizado quase na metade do estado de Pernambuco, até a cidade de
Gravatá, na fronteira entre o Agreste e a Zona da Mata pernambucana. O
Agreste se tornou passagem quase que obrigatória para quem se destinava
da capital ao interior mais distante da província pernambucana, e foi
sendo densamente povoado a partir da rota de expansão da colonização

392 Edson Silva


portuguesa, que inicialmente seguiu o curso do rio Ipojuca. No Agreste
pernambucano, e mais precisamente no Vale do Ipojuca, entre 1850-1900
ocorreram significativas transformações socioambientais com a expansão
e decadência da lavoura do algodão (1860-1880), a conhecida grande e
trágica Seca de 1877 e a extensão da ferrovia do Litoral até Caruaru em
1895 (e posteriormente a outras regiões).
Estudos realizados por pesquisadores de diferentes áreas
apontaram o papel sociohistórico do Agreste a nível regional no Nordeste,
cuja região cumpre importante função de fornecedora de produtos
alimentícios agropastoris, matérias-primas e disponibilidade de mão de
obra para as povoações litorâneas, além de atividades pecuárias, bem como
a policultura com uma variedade de frutas, legumes e outros produtos
agrícolas destinados ao abastecimento das feiras nas cidades vizinhas e na
capital. O Agreste é considerado, portanto, um dos espaços dinâmicos da
economia brasileira. (MELO, 1980; SOBRINHO, 2005).

Os impactos socioambientais da ferrovia

A conclusão da Estrada de Ferro Central de Pernambuco entre


Recife a Caruaru, em 1894, foi saudada com bastante entusiasmo como
símbolo do progresso para o município que representava o portal do
Agreste. Antes da estrada de ferro, naquela região, “devido à ausência dos
meios de transporte, os legumes e cereais ali apodrecem nos ano de fartura”
(ARQUIVO PÚBLICO DE PERNAMBUCO, 1882, p. 46). O trem, portanto,
significou, além da segurança, a facilidade do transporte e do escoamento da
produção, pois “grande quantidade de solas, couros, algodão, queijo, feijão,
etc.” (ARQUIVO PÚBLICO DE PERNAMBUCO, 1882, p. 46) fora enviada
para a capital, como informava, em 1884, o engenheiro Henrique Milet ao
Ministério da Agricultura.
Todavia, a expansão ferroviária que favoreceu o aumento da
produção agroindustrial no Agreste também provocou o desmatamento e
o uso indiscriminado dos mananciais de água naquela região, agravando a
situação em períodos de seca. O estudo de um geógrafo em 1956 descrevia
a região na qual se localizam os brejos da Serra do Ororubá como de

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 393


solo arenoso e pedras, com clima semiárido e também semiúmido, onde,
durante boa parte do ano, predominava a seca. O gado dividia o espaço com
lavouras e plantações de tomate:
O pardo triste da vegetação então despida de folhas e o aspecto
agoniado das cetáceas põem em destaque o viço lustroso
das cercas vivas dos aveloses que cumprem, entre outras
utilidades, a função de separar as áreas do criatório extensivo,
em campo aberto, dos tratos de terras culturáveis, enquanto
que apenas aqui e ali, em locais aparentemente escolhidos
a dedo, algumas raras unidades arbóreas, também sempre
verdes, espalmam suas frondes proporcionando o bem-estar
de uma sombra. Paisagem esta ainda mais desoladora posta
em comparação com a outra, a da época das chuvas miúdas,
quando as caatingas reverdecem e florescem em todo “Seu”
esplendor, permitindo a colheita de frutos silvestres, a engorda
do gado e o trabalho agrícola nos roçados e nas plantações
de tomate. (SETTE, 1956, p. 8).
Os citados roçados eram os sítios, pequenas glebas de terras
espremidas entre as áreas de criação das fazendas, que permaneciam nas
mãos de umas poucas famílias indígenas. O autor apontava o desmatamento
recente das matas existentes nos brejos úmidos característicos da Serra.
Restavam insignificantes “retalhos de matas testemunhos”, pois as matas
de outrora continuavam a serem substituídas por cafezais, goiabeiras,
bananeiras e outras frutas (SETTE, 1956). As matas eram derrubadas
também para abastecer de lenha as locomotivas do trem que ligava
Pesqueira ao Recife, “as fornalhas das fábricas de doces, os fornos de padaria
e fogões domésticos” (SETTE, 1956, p.12). Ocorria, portanto, a destruição
do patrimônio natural para atender às exigências da lógica econômica em
vigor.
A partir dessa lógica, a Serra estava sendo toda ocupada. Nas
localidades mais úmidas predominava a criação do gado de corte e o
destinado à produção de leite. Nos sopés da Serra, mais próximos da cidade,
constatava-se a “plantation” do tomate destinado à indústria, “enxotando
cada vez mais para longe os roçados de subsistência ou mesmo reduzindo
as áreas de criação” (SETTE, 1956, p. 14).

394 Edson Silva


Os brejos da Serra do Ororubá foram e continuam sendo os
fornecedores de gêneros alimentícios para Pesqueira e região. Na lógica
econômica em vigor nos anos de 1950, era trazida do Ororubá a matéria-
prima para as indústrias de doces existentes, como registrou o estudioso
acerca de uma possível primeira impressão do visitante recém-chegado,
Durante os meses de safra, os caminhões abarrotados de
caixotes de frutas e tomates fazem filas diante dos portões
dos estabelecimentos fabris enquanto paira no ar cheiro de
goiaba em processo de cosinhamento ou o odor acre dos
tomates fermentados atraindo enxames de impertinentes
moscas. (SETTE, 1956, p. 16).
A madeira utilizada como combustível na indústria provocava a
destruição das matas: “Essa dependência ao combustível lenha tem custado
à destruição do revestimento vegetal primitivo. As matas do Ororubá e as
caatingas altas dentro de uma área de enorme raio acham-se praticamente
desaparecidas” (SETTE, 1956, p.89). O desmatamento acelerado, além de
influir nas condições do solo na região, prejudicava desde os pequenos
agricultores aos fazendeiros, comprometendo a própria indústria:
Também a devastação das matas para exploração da lenha,
como já ficou assinalado, não só modifica a paisagem
física, mas igualmente altera e dificulta as possibilidades
agropecuárias dos fazendeiros e pequenos plantadores,
devido ao aceleramento dos processos de erosão dos solos
no alto da Serra e ao rápido escoamento e evaporação das
águas no pediplano. (SETTE, 1956, p.92).
Para o geógrafo, a criação de gado também era a grande responsável
pela degradação na Serra, pois existia “o costume, aliás, já antigo de alguns
criadores em soltar os seus gados dentro das ‘mangas’ de ‘refrigérios’ nos
brejos úmidos da Ororubá” (SETTE, 1956, p.93).Esses espaços citados pelo
estudioso eram locais de clima ameno e irrigados por riachos e fontes de
água, onde se concentravam as roças dos pequenos agricultores, os índios
cujas terras eram invadidas pelo gado, principalmente nas épocas de longas
estiagens.
Também a água para as fábricas e para o consumo dos moradores
em Pesqueira provinha da Serra. A fábrica Peixe possuía açudes que

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 395


abasteciam suas unidades fabris. Todavia, já era vivenciado o “cruciante
problema da água”, agravado principalmente na época das secas: “A
Prefeitura possui dois açudes no alto da Serra que abastecem mal a cidade
sob o regime de racionamento, principalmente durante os meses de estiagem
e pior ainda por ocasião das secas” (SETTE, 1956, p.94).

Fertilidade em terras indígenas: diversidade da produção no Semiárido


pernambucano

Mesmo com as invasões dos latifundiários, em muitos avisos mensais


do “Posto Xucuru” elaborados pelo Chefe do Posto Indígena Xukuru para a
direção central do SPI no Rio de Janeiro, foi citado que, no final da década
de 1950, nas terras do antigo Aldeamento de Cimbres na Serra do Ororubá,
além da colheita do café, eram produzidas grandes quantidades de farinha
de mandioca, feijão e frutas como caju, mangas, goiaba e banana, além de
verduras e legumes para o consumo. Essas informações revelam a fertilidade
e a diversidade de culturas, no espaço tão pequeno de 6ha de terras,
correspondente ao patrimônio do Posto. Chamando a atenção ainda que, no
início de 1959, apenas a farinha e o feijão foram integralmente destinados
ao consumo. Nos anos seguintes, as frutas, a mamona e o tomate também
foram colhidos em larga escala, assim como considerável parte da produção
agrícola nas terras do Posto foi destinada às indústrias na cidade, segundo
afirmou Ney Land, membro do Conselho Nacional dos Povos Indígenas
(CNPI), na sua descrição sobre o “Posto Xucuru” (apud SILVA, 2008).
Constata-se, pela leitura dos Avisos Mensais expedidos nos anos
seguintes, um significativo aumento da produção agrícola destinada à venda,
em oposição à diminuição da quantidade para consumo. Os encarregados
do Posto por diversas vezes solicitaram ou reclamaram à Inspetoria Regional
do SPI no Recife a ausência e/ou atraso dos repasses de recursos, bem
como a falta de sementes e ferramentas para os índios, sempre citados como
desamparados. Tratava-se dos índios espalhados na Serra do Ororubá,
enquanto era vendida quase toda a produção do Posto.
As descrições do Ambiente na Serra do Ororubá elaboradas por
Ney Land em 1965 são por demais pessimistas. A estrada do Posto Xucuru

396 Edson Silva


até a localidade de Brejinho estava em péssimas condições, com grandes
buracos e desfiladeiros, por onde escoavam as águas das chuvas. Para
Land, não havia comunicação entre as várias localidades com a Serra do
Ororubá. A seca era favorecida pelo clima quente, e a impermeabilidade do
solo provocava o rápido escoamento das chuvas, em uma região com duas
estações bem definidas: inverno e verão.
A geografia local era de terras altas, com secas, erosões e um
pequeno riacho. Ao enfatizar as “reduzidíssimas lavouras”, o plantio dos
cajueiros, mangueiras e o cafezal, Ney Land evidenciava outra situação, muito
diferente de anos passados recentes da considerável produção agrícola,
principalmente de frutas. O membro do CNPI afirmou a inexistência de
fauna local, apenas de “pássaros para gaiolas”, bem como a ausência de
peixes no riacho. E que, além de um hectare cultivado com milho, o Posto
tinha 20 pés de abacate, 30 bananeiras, quatro laranjeiras e 30 mangueiras.
No ano anterior, a produção de 20 caixas de goiabas fora vendida à fábrica
Peixe.
Outro retrato do Ambiente habitado pelo Xukuru, com uma
detalhada riqueza de informações, é encontrado em um Relatório de Estágio
de William Ribeiro, em 1971. Em suas observações, Ribeiro enfatizou a
grande dimensão da área habitada pelos “remanescentes” Xukuru, afirmado
existirem aldeias distantes cerca de 20 km da sede do Posto. Toda a área foi
percorrida a cavalo por William, que esteve, dentre outros locais, em Cana
Brava, Brejinho e Vila de Cimbres, na Serra do Ororubá.
Na pequena parcela de terras de propriedade do Posto havia, além
de fruteiras, muitos pés de café, mas descuidados e prejudicados pelo mato
daninho. Após a colheita, o terreno seria preparado para o plantio do café e
da mandioca. Na estação chuvosa seriam plantados milho, feijão, maracujá
e quiabo, afora goiaba, manga, abacate e jaca, culturas cuja produção
encontrava facilmente mercado. Convicto de que, com isso, seriam mudadas
as precárias condições de vida dos Xukuru, William afirmava que assim
alcançariam o progresso como meta desejada (apud SILVA, 2008). Todavia,
ao observarmos o modelo de produção agroindustrial na região, percebemos
que, naquele mesmo período, o cenário para os agricultores Xukuru era
muito desfavorável.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 397


A produção agroindustrial e os impactos socioambientais

Durante a década de 1950 também crescera consideravelmente


a produção agroindustrial em Pesqueira, porém com um elevado custo
social. Na Serra do Ororubá, onde moravam os índios Xukuru do extinto
Aldeamento de Cimbres, as fazendas de gado, com grande produção
leiteira, dividiam os espaços com o plantio de tomates e frutas destinadas
às indústrias de doces e conservas na cidade. Seus antigos habitantes eram
expulsos de suas terras e muitos vieram morar na periferia de Pesqueira,
onde alguns se tornaram operários das fábricas instaladas na área urbana da
cidade (SETTE, 1956). Miséria para muitos e fartura para poucos. O avanço
do latifúndio agroindustrial na Serra do Ororubá provocava a escassez da
produção de alimentos destinados à cidade, com a elevação dos preços, a
pobreza generalizada e a mendicância acentuada, como noticiava a Gazeta
de Pesqueira, um dos jornais local.
Desde meados da citada década, a fábrica Peixe detinha em seu
poder uma grande área agrícola, na qual se situavam as “fazendas” de
cultivo, com base no trabalho assalariado. A parceria proposta por aquela
indústria, no início dos anos 1960, além de fazer parte de um processo
de reestruturação da empresa, foi propagada como uma estratégia para
melhorar, mas fundamentalmente o objetivo era modificar as relações de
trabalho e produção, salvaguardando os interesses da empresa. A indústria
doceira, outrora saudada como promotora do progresso e do grande
desenvolvimento regional, dava seus primeiros sinais de decadência, sendo
a perda de lucros e os custos sociais considerados naturalmente como
remediáveis.
Em uma longa matéria publicada em fins de 1962, em um jornal
impresso no Recife e de grande circulação no estado de Pernambuco, as
fábricas Peixe anunciavam a execução, com sucesso, de seu plano de Reforma
Agrária em Pesqueira e sete municípios vizinhos, onde existiam terras de seu
domínio com plantios de tomates e frutas destinadas à fabricação de doces.
Após enfatizar a importância econômica daquela indústria doceira para o
desenvolvimento municipal e regional, o artigo abordava a preocupação com
o problema social e as condições de vida dos trabalhadores (SILVA, 2008).

398 Edson Silva


A “parceria agrícola” estabelecida pela fábrica Peixe estava
baseada em um contrato escrito, com “deveres e obrigações de ambas
as partes”, em que a empresa deveria dar toda a assistência técnica,
sementes, cuidado com o solo, além de irrigação, habitação para o
agricultor e o transporte de toda a sua produção paga em 50%, em um
preço previamente fixado pela fábrica Peixe. Por sua parte, o agricultor
deveria acatar as normas e determinações previstas no contrato, mantendo
em bom estado o solo cultivado, a habitação e as estradas, “recebendo
para isso retribuição extra”, não indicada na reportagem. Além disso, ele
entregaria toda a sua produção, conforme o preço fixado no contrato,
devendo “somente plantar na área reservada à lavoura de subsistência,
cereais ou lavouras de ciclo curto, afim de que, concluída a colheita e de
acordo com o plano de pecuária, o gado da empresa possa pastar em
toda a área, durante dois ou mais meses, até o início das culturas do ano
seguinte” (FEITOSA, 1985, p.82).
A proposta da fábrica Peixe constituía fundamentalmente
uma resposta das elites econômicas para atenuar os conflitos sociais,
decorrentes da concentração de terras e da manutenção de relações de
exploração dos trabalhadores rurais em Pesqueira e regiões próximas
(FEITOSA, 1985). Os graves problemas sociais eram vistos, antes de
tudo, como uma questão de polícia. É sintomático que os recortes de
jornais sobre a situação vivenciada estejam no Arquivo Público Estadual
de Pernambuco, na documentação dos órgãos de repressão policial na
Ditadura Militar.
A fábrica Peixe e as demais indústrias de doces e gêneros
alimentícios instaladas em Pesqueira entraram em decadência em
fins dos anos 1960. Tal situação se acentuou na década seguinte, em
consequência das sucessivas pragas que atingiram a lavoura do tomate,
apesar do intenso uso de agrotóxicos que provocaria grave degradação
das terras da região. Com as mudanças econômicas, os grandes capitais
passaram a ser investidos no Sudeste do país, em fábricas concorrentes;
com isso, ocorreu a desagregação dos proprietários, a família dos Brito, e
a subsequente venda da empresa a um grupo canadense, chegando, por
fim, à falência (CAVALCANTI, 1979).

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 399


Considerações finais: os indígenas refazendo a vida, reescrevendo a
História no Semiárido

Com as invasões dos fazendeiros e da agroindústria nas terras


Xukuru, a situação de penúria indígena durou muitos anos. Em fins de 1990,
o povo indígena Xukuru do Ororubá, a despeito das muitas perseguições e
violências, liderado pelo conhecido Cacique Xicão, que em maio de 1998
foi assassinado a mando de fazendeiros, se mobilizou e retomou suas
terras invadidas pelos latifundiários, conquistando a demarcação oficial do
território indígena em 2001.
Uma vez conquistada a terra, os indígenas iniciaram uma
experiência de cultivos agroecológicos com resultados exitosos, o que vem
garantido a recuperação do solo, o vicejar de matas com o retorno da fauna
e a vida indígena com dignidade no Semiárido pernambucano. Famílias
Xukuru do Ororubá, na região da Serra com maior umidade e presença
de água por mais tempo mesmo em longos períodos de estiagens, vêm
desenvolvendo o plantio orgânico de legumes e verduras, que são postos à
venda e disputados pelos consumidores semanalmente nas feiras livres das
cidades de Pesqueira e Arcoverde.
As preocupações Xukuru do Ororubá com o Ambiente foram
enfatizadas nas duas últimas assembleias anualmente realizadas no mês de
maio por aquele povo. Em 2013, por ocasião dos 15 anos do assassinato do
Cacique Xicão, ocorreu, na Aldeia Pedra d’Água, a XIII Assembleia do Povo
Xukuru do Ororubá, com o tema “Limolaigotoípe – unindo as forças do
Ororubá na construção do bem viver, fortalecendo o respeito do índio com a
Natureza”. Estiveram reunidos representantes das aldeias, idosos, mulheres,
jovens e crianças indígenas Xukuru, afora as delegações dos povos Truká,
Kambiwá, Kapinawá e Pipipã, de Pernambuco, e os Potyguara e os Tabajara,
da Paraíba, além de representantes do povo Dakota dos Estados Unidos e
de universidades, ONGs, igrejas, órgãos e personalidades públicas e aliados
dos povos indígenas. Nas conclusões da Carta Final da citada assembleia, os
Xukuru do Ororubá afirmaram:
Nesse processo de luta, muitos foram perseguidos,
criminalizados, processados e injustamente condenados,

400 Edson Silva


outros tombaram, e suas forças se encantaram e fizeram das
matas do Ororubá suas moradas. Dessa forma entendemos
que fazem parte da natureza sagrada, sendo assim,
reafirmamos o nosso compromisso com o sagrado, nossa
mãe natureza, no sentido de proteção e zelo.
Além disso, os indígenas Xukuru do Ororubá deliberaram que, a
partir daquela data, toda agricultura praticada no seu território será orgânica,
como forma de recuperar as terras degradadas, garantir a qualidade de vida
e fortalecer a agricultura familiar.
Na mesma perspectiva, com o tema “Agricultura Xukuru princípio
do Bem Viver: cultivando com respeito, proteção e zelo a Nossa Mãe Terra”,
ocorreu, em meados de novembro de 2013, na Aldeia Cana Brav,a o I
Encontro de Agricultura e Feira de Troca de Sementes Tradicionais do Povo
Xukuru do Ororubá, que reuniu agricultores índios Xukuru, pesquisadores e
convidados aliados dos indígenas.
Nesse Encontro, com mesas-redondas, debates e apresentações,
afora as trocas de sementes, foram socializadas experiências de agricultura
Xukuru do Ororubá e de outros povos indígenas presentes. No evento,
promovido como espaço de trocas de sementes e materiais propagativos
das culturas tradicionais Xukuru, foi enfatizada a valorização da agricultura
tradicional em suas práticas e procedimentos, como possibilidade de
interação com as temáticas da Saúde e da Educação, buscando, ainda,
sensibilizar os presentes para as questões de impactos ambientais dentro
do território Xukuru do Ororubá e o fortalecimento da organização do povo
Xukuru. Na Assembleia realizada em maio de 2014, outra vez na Aldeia
Pedra d’Água, onde estiveram também presentes diversos convidados,
com o tema “Limolaigotoípe – terra dos ancestrais: a água é o sangue
da Terra”, os Xukuru do Ororubá retomaram suas preocupações com os
recursos naturais disponíveis, dessa vez discutindo a importância da água,
levando em conta a região do Semiárido onde habitam. Na Carta Final da
Assembleia, enfatizaram:
Conscientes dessa realidade desafiadora, após termos
concluído a elaboração do mapa hidrográfico do Território
Xukuru, fomos ungidos espiritualmente através dos rituais
conduzidos pelas lideranças religiosas do nosso povo. Como

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 401


forma de compromisso com a preservação da mãe natureza
e a garantia de continuidade das gerações futuras, decidimos
que se faz necessário fortalecer em todas as nossas aldeias o
processo de conscientização sobre o valor espiritual da água e
a utilização correta da mesma, seja para o consumo humano,
ou para cultivo da agricultura e criação de animais.
No documento final da citada Assembleia, os Xukuru do Ororubá
assumiram, também, o compromisso de participarem da Campanha
Internacional “Água e Espiritualidade”, a ser promovida pela ONU como
o tema principal do Dia Mundial da Água em 2017. E finalizaram a Carta
lembrando as palavras ditas pelo Cacique Xicão: “A Água é o sangue da
Terra, as matas são os cabelos da Terra, as pedras são os ossos da Terra”.
O território demarcado Xukuru do Ororubá em grande parte era de terras
desmatadas, exauridas pelos latifundiários. Fontes secaram ou foram
contaminadas pelos agrotóxicos usados pela agroindústria, em uma região
onde ocorre a escassez de água nas épocas de longas estiagens.
Após a demarcação, tornaram-se visíveis matas que cresceram
em vários pontos do território Xukuru do Ororubá. Uma delas, a mais
significativa, é a Mata da Pedra d’Água, na Aldeia do mesmo nome, primeira
área retomada pelos indígenas em 1991, por estar sendo desmatada. Era
nesse local que, apesar das proibições e perseguições dos fazendeiros,
os indígenas realizavam rituais, e é nele também que, atualmente, estão
sepultados guerreiros e guerreiras – ou, como dizem os Xukuru do Ororubá,
estão os que, assim como o Cacique Xicão, foram “plantados”, para que
deles nasçam novos guerreiros e guerreiras.
Com a caça proibida em comum acordo com os indígenas, circulam
notícias da presença de veados e de outros animais. Constata-se, ainda, uma
diversidade de pássaros antes considerados extintos nas terras indígenas. As
matas são locais tidos como a Natureza sagrada, morada dos “Encantados”
cultuados pelo Xukuru do Ororubá, que se reinventam e reescrevem a
História como um povo indígena no Semiárido nordestino.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, M. C. A terra e o homem no Nordeste. 6º ed. Recife: Editora


Universitária UFPE, 1998.

402 Edson Silva


CAVALCANTI, C. M. de L. Acumulação de capital e a industrialização em
Pesqueira (Pernambuco). Recife: UFPE, 1979 (Dissertação Mestrado em
Economia).
FEITOSA, R. J. R. Capitalismo e camponeses no Agreste pernambucano:
relações entre indústria e agricultura na produção de tomate me Pesqueira
– PE. Recife: UFPE, 1985 (Dissertação Mestrado em Sociologia).
GALVÃO, S. V. Diccionario chorographico, histórico e estatístico de
Pernambuco. Rio de Janeiro: [s.n.], 1908.
MEDEIROS, M. C. Igreja e dominação no Brasil escravista: o caso dos
oratorianos de Pernambuco (1659-1830). João Pessoa: Ideia, 1993.
MELLO, J. A. G. de. Três roteiros de penetração no território pernambucano
(1738 e 1802). In: ______. Da Inquisição ao Império. Recife: Editora
Universitária UFPE, 2004. p. 87-113.
MELO, M. L. Os agrestes. Recife: SUDENE, 1980.
PUNTONI, P. A. Guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do
Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec, 2002.
SETTE, H. Pesqueira: aspectos de sua geografia urbana e de suas
interrelações regionais. Recife: Colégio Estadual de Pernambuco, 1956.
SOBRINHO, V. As regiões naturais do Nordeste, o meio e a civilização.
Recife: Condepe, 2005.
SILVA, Edson. História indígena e história socioambiental no Semiárido
pernambucano: os Xukuru do Ororubá. In: SILVA, Edson; SANTOS, Carlos
A. B; OLIVEIRA, Edivania G. S; COSTA NETO, Eraldo M. (Orgs.). História
ambiental e história indígena no Semiárido brasileiro. Feira de Santa/BA:
UEFS Editora, 2016, 13-33.
SILVA, E. H. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá
Pesqueira/PE, 1950-1988. Campinas/SP: UNICAMP, 2008 (Tese Doutorado
em História Social).

FONTES
ARQUIVO PÚBLICO DE PERNAMBUCO. Ofício de Henrique Milet ao
Ministro da Agricultura. Códice Diversos, D38, Recife, 18 mar. 1882.

XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá... 1950-1988 403


XUKURU: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1950-1988
Edson Silva

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FORMATO 15,5 x 22 cm
TIPOLOGIA ClearlyRoman, ClearlyGothic, ClearlyGothicLight
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