PACOTE - Pacote Anticrime - Aury Lopes Junior

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Sumário Capa

Sobre os autores

APRESENTAÇÃO

CAPITULO I – SUBSTANCIALISMO PENAL E A LEI ANTICRIME: MAIS UM


CAPÍTULO DO AUTORITARISMO PUNITIVO NO BRASIL
I. O TEXTO, O CONTEXTO, O PRETEXTO
1. O contexto: tradição do sistema de justiça criminal no Brasil é autoritária
2. O pretexto: a “luta contra o crime” (sobretudo, a corrupção)
II. A “NOVA” LEGÍTIMA DEFESA E AS PALAVRAS (DES)NECESSÁRIAS DA
LEI
III. UM PANORAMA DO INCREMENTO PUNITIVO NO CÓDIGO PENAL: MAIS
DO MESMO
IV. A EXIGÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO PARA O ESTELIONATO:
REATROATIVIDADE BENÉFICA OU EMBUSTE RETÓRICO?

CAPÍTULO II: O CHOQUE ACUSATÓRIO, ESPAÇOS NEGOCIAIS E A


INTERPRETAÇÃO EVASIVA
I. INTRODUÇÃO
II. A LEI N. 13.964/19 COMO ESTÍMULO COMPORTAMENTAL AOS AGENTES
PROCESSUAIS
III. O CHOQUE ACUSATÓRIO E A ESQUIVA INTERPRETATIVA
IV. O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

CAPÍTULO III – UM ANO DO PACOTE ANTICRIME, CONSEGUIREMOS MUDAR


A CULTURA INQUISITÓRIA?
I. INTRODUÇÃO
II. A OBRIGATORIEDADE DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
III. E A CONVERSÃO DE OFÍCIO PELO JUIZ DA PRISÃO EM FLAGRANTE EM
PRISÃO PREVENTIVA?
IV. VEDAÇÃO DE CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA – ART. 310, § 2º.
V. O DEVER DE REVISAR PERIODICAMENTE A PRISÃO PREVENTIVA
VI. A (INCONSTITUCIONAL) EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA APÓS A
DECISÃO DE PRIMEIRO GRAU NO TRIBUNAL DO JÚRI
VII. CADEIA DE CUSTÓDIA DA PROVA E AS CONSEQUÊNCIAS DA QUEBRA
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a
prévia autorização da Editora Saraiva.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184
do Código Penal.

ISBN 9788553618453

L864p Lopes Jr., Aury Pacote Anticrime [recurso eletrônico] : um ano depois / Aury Lopes Jr.,
Ana Claudia Bastos de Pinho, Alexandre Morais da Rosa. - São Paulo, SP : Saraiva Educação,
2020.
99 p. ; ePUB.
1. Direito. Direito penal. 3. Pacote anticrime. 4. Lei anticrime. 5. Lei n. 13.964/19. I. Pinho,
Ana Claudia Bastos de. II. Rosa, Alexandre Morais da. III. Título.
CDD 345
CDU 343
2020-3181

Índices para catálogo sistemático: 1. Direito penal 345


2. Direito penal 343

EQUIPE EXPRESSA

Editores Aline Darcy Flor de Souza, Sebastião Leandro de Lima Neto Preparação Camilla
Felix Cianelli Chaves Aquisições e Produto Dalila Costa de Oliveira, Rosana Aparecida Alves
dos Santos, Sergio Lopes de Carvalho Produção editorial Daniele Debora de Souza Produção
do e-pub Guilherme Henrique Martins Salvador Capa Deborah Mattos, Tiago Dela Rosa
Projetos Laura Paraíso Buldrini Filogônio Marketing Anderson Portela Comercial Daniel da
Silva Junior

Dúvidas?

Acesse sac.sets@somoseducacao.com.br
AURY LOPES JR.
ANA CLAUDIA BASTOS DE PINHO
ALEXANDRE MORAIS DA ROSA

PACOTE ANTICRIME: UM ANO


DEPOIS
ANÁLISE DA (IN)EFICÁCIA DAS PRINCIPAIS
MEDIDAS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS
IMPLANTADAS PELA LEI N. 13.964/2019
Sobre os autores

Aury Lopes Jr.


Doutor em Direito Processual Penal (Universidad Complutense de
Madrid). Professor Titular de Processo Penal na PUCRS. Professor no
Programa de Pós-Graduação, Especialização, Mestrado e Doutorado em
Ciências Criminais da PUCRS. Professor da Pós-Graduação online em
Ciências Criminais da Faculdade CERS. Advogado Criminalista.
Coordenador do Grupo de Pesquisa “Processo Penal e Estado Democrático
de Direito”.
E-mail: aurylopes@terra.com.br
http://lattes.cnpq.br/4629371641091359
Ana Claudia Bastos De Pinho
Doutora em Direito(UFPA). Mestre em Direito (UFPA). Professora da
Universidade Federal do Pará. Coordenadora do Grupo de Pesquisa
“Garantismo em Movimento”. Promotora de Justiça.
E-mail: acpinho9@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3470653249189577
Alexandre Morais Da Rosa
Doutor em Direito (UFPR). Mestre em Direito (UFSC). Professor
Associado de Processo Penal da UFSC. Professor do Programa de Pós-
Graduação, Mestrado e Doutorado da UNIVALI. Juiz de Direito do TJSC.
ORCID 0000-0002-3468-3335. Pesquisador do SpinLawLab (UNIVALI).
E-mail: alexandremoraisdarosa@gmail.com
Apresentação

A presente obra vem após um ano de vigência parcial da Lei n. 13.


964/2019, conhecido pelo inadequado nome de pacote anticrime (como seria
um pacote legislativo pró-crime?) e que entra em vigor já sofrendo o ataque
do movimento contra-reformista, ou ‘movimento da ‘sabotagem inquisitória’
como denomina Alexandre Morais da Rosa1. Infelizmente, as principais
inovações e evoluções trazidas pela Lei seguem suspensas por conta da
Medida Liminar na Medida Cautelar nas ADIn’s n. 6.298, 6.299, 6.300 e
6.305 concedida pelo Min. FUX no dia 22/1/2020, que suspendeu a eficácia
de vários dispositivos e, entre eles, os principais pontos processuais da
reforma.
Em que pese esse duro golpe, as demais alterações foram relevantes e
precisam ser analisadas à luz da sua eficácia ou ineficácia após esse ano de
vigência. Claro que a velocidade do direito é bem menor do que a velocidade
da sociedade hiperacelerada que vivemos e, por conta disso, muitas medidas
sequer chegaram a julgamentos relevantes nos tribunais superiores nesse
primeiro ano de vigência. Mas, outros dispositivos tiveram ampla e imediata
repercussão, como foi o caso do controle periódico das prisões preventivas (e
o famoso Caso André do Rap), a ação penal de iniciativa pública (agora)
condicionada a representação no estelionato etc.
A presente obra selecionou as principais medidas que entraram em vigor e
buscou questionar a sua (in)eficácia e aplicação, fazendo uma análise do
impacto penal e processual penal gerado. Infelizmente no Brasil, achamos
normal que uma lei ‘pegue’ ou ‘não pegue’, isto é, que uma lei aprovada pelo
congresso nacional, sancionada pelo presidente e em pleno vigor, ainda
depende do humor dos tribunais. Não se trata aqui de técnicas de
interpretação ou filtragem constitucional, mas de verdadeiro decisionismo a
la carte, de extrapolar o espaço interpretativo, como se fez com o art. 316,
parágrafo único ou, no passado, com o art. 212 do CPP.
Nessa perspectiva o livro vem estruturado em três capítulos.
No primeiro capítulo, a cargo de Ana Cláudia Bastos de Pinho, é feito um
diagnóstico crítico das principais alterações verificadas no Código Penal que,
adverte, não foram muitas, tampouco fundantes, no sentido de dar nova
conformação à legislação penal, harmonizando-a com o perfil democrático de
intervenção punitiva trazido com a Constituição de 1988. Todo o contrário. O
que se vê, em verdade, é mais do mesmo. Isto é, mais incremento de punição
(iniciando com o aumento emblemático e simbólico do limite de
cumprimento de penas de 30 para 40 anos), alargamento de medidas mais
gravosas ao imputado (basta olhar para o novo tratamento conferido ao crime
de roubo e suas formas circunstanciadas) e a utilização do modelo
substancialista de Direito Penal de autor (como, por exemplo, na inclusão do
não cometimento de falta grave como exigência para a concessão do
livramento condicional). Na sequência, faz-se uma análise da nova disciplina
da legítima defesa, sobretudo comparando com o que constava do texto
original do projeto que, de tão mexido, deixou sobrar algo aparentemente
desnecessário. O estelionato, por sua vez, mereceu destaque, por ter trazido
uma alteração que ocupou a cena da jurisprudência: a necessidade de
representação. O imbróglio diz com a antiga discussão da retroatividade da
lei de natureza mista o que, desde uma perspectiva garantista, não tem a
menor importância, como se verá. Fato é que, desde uma visão crítica, não
parece ter o STF tomado a melhor trilha, ao decidir sobre o assunto. Ao fim e
ao cabo, manteve-se a estrutura do Código Penal do Estado Novo e suas
subsequentes alterações, sem qualquer virada de rumo, sobretudo na esperada
direção de uma séria teoria do bem jurídico, a bem confirmar o que já
sabemos: uma política criminal – no aspecto legislativo – que, de fato, faça as
honras à Constituição segue sendo uma tarefa para o porvir...
O segundo capítulo, a cargo de Alexandre Morais da Rosa, situa o
ambiente comportamental da “esquiva interpretativa” operada pela liminar do
STF e, no segundo momento, analisar a operacionalidade do acordo de não
persecução penal. Ao final reafirma o desafio acusatório a partir de matriz
psicológica que se esquivam retoricamente de assumir a motivação
inquisitória subjacente. Desde Skinner sabe-se que comportamento operante é
influenciado/controlado pelas suas consequências e não só pelos estímulos
externos, na hipótese, a modificação do ambiente normativo (Pacote
Anticrime). Reside justamente na efetiva e/ou potencial possibilidade de
consequências (positivas/negativas), após a ação de interpretação, o
mecanismo capaz de fazer perseverar ou modificar o comportamento anterior,
denominado de condicionamento operante. Anota-se desde o início que não
se está mitigando a liberdade interpretativa, nem se apontando o “crime de
hermenêutica” e sim a conduta de negar vigência aos novos dispositivos
“como se” sequer existissem ou com erros crassos de teoria do direito (norma
posterior de mesma hierarquia revoga o que for incompatível, por exemplo).
Por fim, no último capítulo, Aury Lopes Jr. questiona se (mais) uma
reforma pontual na estrutura autoritária do CPP teria força para romper com a
cultura inquisitória vigente. Para tanto, seleciona institutos sensíveis e
importantes da reforma, como audiência de custódia (e os problemas gerados
pela pandemia COVID-19), conversão de ofício da prisão em flagrante em
prisão preventiva, a vedação de concessão de liberdade provisória (art. 310, §
2º do CPP), o dever de revisar periodicamente a prisão preventiva (art. 316,
parágrafo único), a (in)constitucionalidade da execução antecipada da pena
após a decisão de primeiro grau no tribunal do júri, a cadeia de custódia da
prova e as consequências da quebra, verificando as inovações inseridas e a
receptividade por parte dos tribunais brasileiros, especialmente STJ e STF.
Pretende-se, com isso, não apenas mostrar o estado atual da arte à luz da
jurisprudência, mas também sinalizar os pontos de resistência ao ‘novo’,
aquelas inovações que correm o sério risco de não atingir a eficácia prevista
pela lei.
Em última análise, estamos diante de mais uma reforma pontual no código
penal, processo penal e execução penal, que bem evidencia os problemas de
eficácia das leis que pretendem ampliar o espectro de proteção de direitos e
garantias fundamentais e uma vez mais demonstram a importância de termos
reformas globais, de códigos inteiramente novos, capazes de romper com a
cultura vigente e, principalmente, modificar as práticas dos atores judiciários.
Enfim, é uma obra crítica e direta, que bem sinaliza os pontos de
estrangulamento a serem observados, sob pena de termos mais um conjunto
de alterações legislativas fadadas à ineficácia.
Boa leitura!
Ana Claudia Bastos de Pinho Alexandre Morais da
Rosa Aury Lopes Jr.
CAPITULO I

SUBSTANCIALISMO PENAL E A LEI ANTICRIME: MAIS UM


CAPÍTULO DO AUTORITARISMO PUNITIVO NO BRASIL
Ana Cláudia Bastos de Pinho
I. O TEXTO, O CONTEXTO, O PRETEXTO

Quando escreveu seu capolavoro (Diritto e Ragione: teoria del garantismo


penale), Luigi Ferrajoli – logo na primeira parte do livro (Epistemologia – a
razão no Direito Penal) – apresentou dois sistemas de Direito e Processo
Penal contrapostos; antípodas: um, que ele chamou de modelo de Direito
Penal Máximo/Substancialista (ao qual corresponde um modelo de Processo
Penal Inquisitório/Decisionista) e outro, o modelo de Direito Penal
Mínimo/Garantista (ao qual corresponde um modelo de Processo Penal
Acusatório/Cognoscitivista)2.
A análise feita pelo professor italiano – para além da riqueza e refinamento
teórico-filosóficos – é fundamental para compreender, antes de tudo, que
Direito e Processo Penal caminham sempre lado a lado, integrando um todo
complexo, que diz a forma por meio da qual o Estado exerce o poder de
punir. Diferentemente do que ocorre no campo civil, o Direito Penal não
acontece senão por meio do Processo Penal e o modo de ser do Processo
Penal é fruto das finalidades atribuídas ao Direito Penal e, em última análise,
à própria pena. Em síntese: o perfil da intervenção punitiva (Direito e
Processo Penal) nesse ou naquele sistema jurídico é, e sempre será, uma
escolha política.
Pois bem. Dito isto, vamos à Lei n. 13.964, de 24/12/2019. Batizada de
“Lei Anticrime”, começou a vigorar (com algumas restrições3) a partir de 23
de janeiro de 2020, trazendo significativas alterações no conjunto da
legislação penal e processual penal pátria. Tudo o que margeia a criação
desse diploma legal, desde sua concepção até a promulgação, tem relação
direta com o que foi mencionado nos parágrafos acima.
Existe, pois, para além do texto, um contexto e um pretexto, que não
podem ser ignorados, até mesmo para que possamos compreender – passados
esses nove meses de vigência (tempo necessário e suficiente a uma gestação!)
– que impactos podemos sentir na aplicação do Direito. Como a
jurisprudência, sobretudo dos tribunais superiores (e, mais especificamente,
por sua própria conformação e finalidades, o STJ), vem lidando com as
alterações? Aliás, no campo penal, essas alterações fizeram, de fato, alguma
diferença no modo como se entende e se aplica o Direito Penal no Brasil? A
carência de decisões sobre alguns pontos da lei, e o excesso em outros, são
sintomas de um quadro, ou de uma tragédia, já de há muito anunciada…
O objetivo dos próximos itens será analisar, de forma crítica, esse
movimento de aceitação da “novidade”, especificamente no que tange a
alguns dos aspectos mais relevantes da parte penal da lei, dialogando com a
jurisprudência e com o modelo de intervenção punitiva desenhado pela
Constituição da República de 1988, a fim de sustentar algumas conclusões
inevitáveis sobre os avanços, retrocessos e/ou permanências (que já
acontecem e que podemos esperar) do modo de aplicação do Direito Penal
em nosso país.
Vamos, pois, ao contexto e ao pretexto.
1. O contexto: tradição do sistema de justiça criminal no Brasil é
autoritária

Tudo começa com as Ordenações Filipinas, que por aqui causaram estragos
por mais de 200 anos (de 1603 a 1830), reproduzindo o modelo inquisitório
da Coroa, propondo o controle do corpo do acusado, por meio de suplícios e
execuções públicas (espetáculos), com o fim de incutir o temor ao poder
central. Interessante notar que essa legislação seguiu a plenos pulmões,
mesmo depois do grito de independência e conviveu, ainda que por pouco
tempo, com a Constituição liberal de 1824 (que, é bom que se diga, silenciou
por completo sobre o tema “escravidão”).
Em 1830, vem o Código Criminal do Império, acompanhado, na sequência,
pelo Código de Processo Penal de 1832. Clientela desses diplomas
repressivos: os escravizados. Objetivo: afirmar o poderio econômico dos
senhores de terra, por meio da manutenção da estrutura escravocrata. Uma
perfeita simbiose entre as leis penais e processuais penais, exatamente na
esteira do que – recorrendo a Ferrajoli – mencionamos no início dessa
introdução. O CPP do Império conservou a natureza inquisitória das
Ordenações, valendo destacar que, em 1871 (por meio da Lei n. 2.033), cria-
se uma figura que marca fortemente a estrutura autoritária do nosso Processo
Penal e que permanece até hoje: o inquérito policial.
Abolida formalmente a escravidão no Brasil, algo precisaria ser feito para
conter a massa de negros, cuja suposta liberdade em nada interessava ao
andar de cima. Solução? Direito Penal! Vem, então, o Código Penal de 1890,
um ano depois da proclamação da República e um ano antes da Constituição
republicana. Clientela: os ex escravizados (daí a criminalização da capoeira,
por exemplo). Em 1932, a chamada Consolidação das leis penais amplia
ainda mais a malha repressiva, dentro da mesma lógica de punir os
indesejáveis.
Eis que chegamos ao Código Penal de 1940 e seu par perfeito, o Código de
Processo Penal de 1941. Numa combinação melhor que goiabada com queijo,
esses dois diplomas, pelas mãos (e cabeça) de Francisco Campos (cuja
simpatia pelo nazi-fasciscmo era decantada aos quatro ventos), vêm
consolidar séculos de práticas inquisitoriais, autoritárias, racistas, classistas,
elitistas. Clientela: pessoas de baixa renda que, de alguma forma, colocassem
em risco a propriedade privada.
Cópias (mal feitas) do Código Rocco italiano, que serviu aos auspícios de
Mussolini, nossos CP e CPP são frutos do Estado Novo varguista, o que por
si só, dispensa maiores comentários. Mas, algo grita nisso tudo: eles estão em
vigor até hoje! Atravessaram três Constituições (ou seja, no Brasil, é mais
fácil mudar uma Constituição do que um Código Penal e de Processo Penal!)
e seguem por aí, desafiando a Constituição democrática de 1988 e fazendo
troça dos modelos de Direito Penal mínimo e Processo Penal acusatório por
ela desenhados4.
Esse breve (porém, necessário) panorama é fundamental para compreender
como se constituiu o nosso sistema de justiça criminal: uma estratégia estatal
muito bem montada para rodar a máquina apenas contra certas pessoas (os
indesejáveis da vez), sob o sedutor discurso da contenção da violência e da
“criminalidade”, apostando na prisão e na punição como formas
insubstituíveis de controle.
2. O pretexto: a “luta contra o crime” (sobretudo, a corrupção)

Conforme já tivemos oportunidade de comentar em outra ocasião5, tratou-


se de uma proposta de lei emergencial, conjuntural, demagógica, que pareceu
muito mais um arroubo individualista de seu criador (o então – agora ex-
Ministro da Justiça e Segurança Pública e ex-Juiz Federal, Sérgio Fernando
Moro), do que propriamente o fruto de um debate qualificado com setores
importantes da sociedade, com as Instituições que compõem o sistema de
justiça criminal e, sobretudo, com a academia. Em verdade, sequer a lei veio
acompanhada de justificativa!
A ideologia do “pacote”, como não poderia deixar de ser, acompanhou a
sanha punitivista. Aumento de penas, corte de garantias, endurecimento no
cumprimento da pena privativa de liberdade, mais elasticidade às medidas
constritivas. Tudo isso sob o pretexto de “combater a criminalidade” (o
próprio nome “Anticrime” já revela sua pretensão audaciosa; como se a
legislação que lhe antecedeu de algum modo tenha sido “a favor do crime”) e,
sobretudo, limpar definitivamente o país da chaga da corrupção, já que –
como dito diversas vezes pelo pai do “pacote” – a ideia era, exatamente,
ampliar aquilo que ele já havia feito quando ocupava o cargo de Magistrado e
conduzia, sob sua batuta, a chamada “Operação Lava Jato”. Em suma: o
“pacote” seria a realização legislativa dos desejos pessoais de seu proponente
acerca de como deve ser a aplicação da justiça criminal no Brasil.
Por evidente que nosso sistema de leis criminais precisa ser revisto! Não é
de hoje que a academia aponta fissuras na legislação penal pátria e verbaliza
a necessidade urgente de adaptá-la ao projeto democrático inserido pelo
modelo de garantias da Constituição. Vozes, infelizmente, inaudíveis, bradam
quase que no vazio ou para si próprias, eis que todas as alterações pelas quais
vêm passando os diplomas legais em matéria penal, desde 1988 (a começar
pela emblemática Lei dos Crimes Hediondos, de 1990) caminham no sentido
diametralmente oposto, isto é, insistem na adoção de uma política criminal de
intervenção máxima, com incremento de penas e amputação de garantias,
sempre embalada pelo discurso falacioso da “contenção da criminalidade”.
Como assinalado acima, com o “pacote” não foi diferente! É mais do
mesmo. Cria-se a emergência, impõe-se o discurso de necessidade de mais
punição e, na sequência, modifica-se a legislação (por todos, Zaffaroni). Esse
é ciclo!
Se em 1990, o grande vilão foi o crime “de rua” – com o tráfico de drogas,
o latrocínio e a extorsão mediante sequestro encabeçando a lista -, em 2019
foi a corrupção que ocupou a cena e serviu de privilegiado material retórico
para agudizar o discurso do “combate ao inimigo”. Repise-se que a alteração
legislativa veio da pena solipsista do então (agora ex) Ministro da Justiça que,
reiteradamente e sem qualquer pudor, colocou-se de forma clara na posição
de “combatente”, quando ainda exercia a Magistratura, esquecendo que, num
devido processo legal (due process of law) são a acusação (Ministério
Público) e a defesa (acusado) que se digladiam. Jamais, o juiz!
Importante notar, todavia, que o pretexto do “combate à corrupção” (como
se a justiça criminal tivesse por finalidade “combater” o que quer que seja!) é
exatamente isso: um mero pretexto! Afinal, basta um simples passar de olhos
pela parte penal da lei (sobretudo a que cuida da execução) para perceber,
sem hesitações, que tudo segue como sempre, ou seja, o manejo de um
arsenal muito bem montado, com o objetivo claro de atingir a mesma
clientela: pobres e negros (pardos). Exatamente! Os mesmos! Os que ocupam
percentual privilegiadíssimo nos mais de 700.000 seres humanos depositados
nas prisões brasileiras, dos quais, mais de 30% sequer foi julgado. Nenhuma
novidade!
Assim como não existe uma “guerra às drogas”, mas uma clara “guerra
contra certas pessoas” (basta ver o perfil dos presos e condenados por crime
de tráfico nesse país6), também não existe um “combate à corrupção”, mas o
uso do aparelho punitivo com a inequívoca finalidade de excluir pessoas
tenham elas – ou não – praticado crime de corrupção. Porque, ao fim e ao
cabo, pouco importa o que elas fizeram, importa que o que elas são! Eis aí o
caráter notoriamente substancialista da intervenção penal num sistema
autoritário7: o uso da máquina de punir contra pessoas previamente
selecionadas, em vez do emprego racional do poder para acertamento de
casos penais. Dito de outra forma: definitivamente, não importa sequer se o
investigado/acusado cometeu algum crime, importa se ele integra um grupo
que, por qualquer razão, precisa ser combatido ou eliminado.
Note-se que tudo passa pela concepção que se tem do Direito e do Processo
Penal! Ao enxergá-los como instrumentos de punição, de luta contra o crime
e de neutralização de inimigos, evidentemente nenhuma proposta de tutela de
garantias individuais subsistirá! Todo o contrário: garantias tornam-se óbices
à “correta aplicação da justiça”; “justiça” essa sempre associada à ideia de
condenação e, o que é pior ainda, a qualquer custo. A velha lógica de que
“fins justificam meios” é, aqui, a tônica que sobressai.
Porém, caso tenhamos – como deveríamos ter – uma concepção garantista
(constitucionalmente orientada) de Direito e de Processo Penal,
compreendendo-os como um sistema integrado de garantias, com o fim de
limitar, constranger o poder de punir, chegaremos à inafastável conclusão de
que há uma esfera inegociável no campo do Direito, que diz com o
cumprimento de regras do jogo previamente dadas (no nosso caso, estão
todas na CR/88) e que, portanto, fins jamais justificarão meios. O sentido de
justiça, num tal modelo, implica condenações de pessoas culpadas (com
culpa verificada no devido processo legal) e absolvições de pessoas
inocentes. Dizendo de outra forma: o que importa não é um resultado
antecipadamente almejado (condenação), mas o caminho percorrido (respeito
às garantias), que pode nos levar a uma condenação, ou uma absolvição.
Esse panorama, ainda que brevemente analisado, é necessário para uma
compreensão de conjunto das alterações trazidas pela “Lei Anticrime”,
proporcionando condições de possibilidade de uma avaliação crítica do que já
foi produzido e do que podemos esperar.
De antemão, embora soe pouco otimista, não parece que tenhamos razões
para acreditar que os juízes e tribunais brasileiros, num arroubo de “amor à
Constituição”, irão – do dia para a noite – enterrar séculos de uma tradição
perniciosa que constituiu o sistema de justiça criminal e passar a tutelar
(como deveriam) os direitos fundamentais das pessoas imputadas, exatamente
como determinam – com clareza solar – os princípios limitadores da
intervenção penal (que herdamos da Ilustração), constantes do extenso rol de
seu art. 5º. Principalmente, considerando que possuem nas mãos uma lei que
segue reproduzindo o mesmíssimo cenário de séculos passados…
Em verdade, o que se tem vivenciado, nesses mais de 30 anos de vigência
da CR/88, é um movimento constante de sabotagem. Os atores jurídicos
(sobretudo juízes e membros do Ministério Público) fazem arranjos
interpretativos os mais mirabolantes possíveis para esvaziar, a todo tempo, o
conteúdo garantista do texto constitucional e dos (poucos) comandos legais
com ele compatíveis. Porém, enquanto houver pelo que lutar, sigamos.
II. A “NOVA” LEGÍTIMA DEFESA E AS PALAVRAS
(DES)NECESSÁRIAS DA LEI

Tão logo começaram os anúncios e a ansiedade em torno do tão esperado


“Pacote Anticrime”, de Sérgio Moro, para a área da “Segurança Pública” 8,
um dos temas mais comentados e polemizados foi, exatamente, aquele que
dizia com o instituto da legítima defesa, já que, na proposta original
encaminhada ao Congresso Nacional, constava uma ampliação importante
nas hipóteses de cabimento dessa excludente, direcionada a justificar ações
policiais. Não à toa que alguns setores críticos ao então projeto de lei
passaram a apelidar essa proposta de alteração de “licença para matar”.
Assim estava redigido o texto original: Art. 23 (…)
§ 2º O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o
excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.
(grifos nossos) Art. 25 (…)

Parágrafo único. Observados os requisitos do caput, considera-se em


legítima defesa:

I – o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado


ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente
agressão a direito seu ou de outrem; e II – o agente policial ou de
segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima
mantida refém durante a prática de crimes. (grifos nossos) Impossível
deixar de laçar alguns comentários, ainda que breves, sobre essa proposta
que, a bom tempo, foi rechaçada pelo Congresso Nacional9.

O art. 23 do CP é o que prevê as causas excludentes do injusto penal. São


elas: a legítima defesa, o estado de necessidade, o estrito cumprimento do
dever legal e o exercício regular de um direito. O seu parágrafo único
estabelece as situações de excesso no exercício dessas excludentes,
afiançando o legislador que referido excesso deverá ser punido a título de
dolo ou culpa.
Entendamos, pois, a lógica disso, sobretudo no que concerne à legítima
defesa, que é a excludente de ilicitude por excelência e, de perto, a que nos
interessa aqui, por ter sido a única que sofreu alteração legislativa.
A legítima defesa é uma espécie de cláusula legal de tolerância, por meio
da qual o particular – em casos excepcionais/extremos – pode ofender o bem
jurídico de um terceiro (a própria vida, inclusive) e, ainda assim, ter a sua
conduta justificada pelo Direito, que, nesses casos, não a considerará crime,
pela falta de um dos requisitos da imputação, qual seja, a antijuridicidade (ou
ilicitude).
Como mencionado acima, os casos são excepcionais/extremos e possuem
seus requisitos criteriosamente definidos pela própria lei (CP, art. 25), quais
sejam: a existência de uma agressão injusta (atual ou iminente), a direito
próprio ou alheio (legítima defesa própria ou de terceiro), repulsa moderada
com o uso de meios necessários (chamados requisitos de proporcionalidade).
Uma vez observados todos eles, no caso concreto, a conduta (embora típica)
estará justificada.
Porém, exatamente pelo caráter vinculado da lei, o sujeito que se encontra
inicialmente em situação de legítima defesa, não se pode valer dessa condição
para alterar a sua posição, isto é, saindo da qualidade de defendente e
assumindo a de agressor, sob pena de não mais se encontrar sob a guarida da
excludente. Surge aqui, então, a figura do excesso, que deverá ser punido, ou
a título de dolo (quando o sujeito, consciente e voluntariamente, assume a
posição de agressor), ou a título de culpa (quando existe erro justificado, por
defeito na dimensão intelectual da conduta, conforme ensinamento preciso de
Juarez Cirino dos Santos10).
Na proposta do pacote anticrime seria incluído um parágrafo segundo ao
art. 23, trazendo uma hipótese de redução ou, até mesmo, exclusão de pena,
se o excesso decorresse de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.
A hipótese não é desconhecida da doutrina, que a trata como uma excludente
supra legal de culpabilidade, por inexigibilidade de comportamento diverso11.
O que impende destacar aqui é que essas categorias (medo, surpresa e
violenta emoção), quando pensadas pela doutrina, obviamente não tinham por
destinatários os agentes policiais e de segurança pública, já que – como uma
categoria da culpabilidade (que diz com o sujeito, bem mais que com o fato)
– a inexigibilidade de comportamento diverso precisa ser avaliada de modo
pessoal, subjetivo. Ou seja, de um policial, em tese preparado para lidar com
situações de perigo, de intenso estresse emocional, de risco concreto e que
precisa estar com a atenção plena voltada para a missão que está executando,
não se pode admitir que se exceda em sua tarefa, lesionando (ou, até mesmo,
matando) alguém, sob a escusa de que estava dominado pelo medo, de que
fora apanhado de surpresa, ou de que se encontrava em estado de violenta
emoção.
Essas condições emocionais, repise-se, podem até ser invocadas por quem,
dadas as circunstâncias do caso, merece ter a sua conduta valorada conforme
seu grau de reprovabilidade, influenciando diretamente na pena. Mas, em
absoluto, tal raciocínio se aplicaria a agentes de segurança pública, cujo
mister tem por base exatamente o enfrentamento de tais condições.
Felizmente, esse parágrafo foi vetado no Poder Legislativo, permanecendo,
como dantes, a critério da doutrina e da jurisprudência avaliar o suposto
cabimento dessa excludente ou atenuante de culpabilidade, no caso concreto.
Prova viva de que o parágrafo 2º do art. 23 foi ali lançado com o fim claro
de beneficiar agentes policias é a continuação da proposta, já no art. 25, em
que – aí de forma literal – há referência aos agentes de segurança pública,
com o fim de estender o cabimento da excludente para casos de conflito
armado e agressão a vítimas mantidas como reféns.
Igualmente em boa hora, o Parlamento rechaçou o inciso I. De uma
redação confusa e infeliz, usando termo desconhecido de nossa tradição penal
(“conflito armado”), tal dispositivo, facilmente, converter-se-ia na tão temida
“licença para matar”, já que “conflito armado” (à semelhança do que ocorre
com a expressão “garantia de ordem pública”, que autoriza a decretação de
prisão preventiva) poderia ser motivo para justificar qualquer reação policial
violenta12.
Ao fim e ao cabo, apenas permaneceu a redação do que seria o parágrafo
segundo do art. 25 do CP e que, agora, na versão em vigor da lei, aparece
como parágrafo único do referido artigo, somente substituído o verbo
“previne” por “repele” e eliminado o termo “agente policial”. A saber: Art.
25 (…)
Parágrafo único. Observados os requisitos previstos no caput deste
artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança
pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida
refém durante a prática de crimes. (grifos nossos) E aí vem a pergunta
que não quer calar: para que esse parágrafo único, que está ai, em
pleno vigor? O que, afinal, mudou no instituto da legítima defesa, com a
Lei Anticrime? O que essas novas palavras trouxeram de significativo?
Resposta: rigorosamente NADA!

O caput do art. 25 do CP que, diga-se, nesse particular, reproduz


perfeitamente a boa doutrina sobre a legítima defesa, já daria conta do
que agora foi reproduzido em seu (desnecessário) parágrafo único. Se
um agente de segurança pública (ou qualquer pessoa “do povo”) repele
uma agressão (atual, portanto), ou risco de agressão (iminente, portanto),
a vítima mantida refém (direito legítimo de terceiro), durante a prática de
crimes (agressão injusta, portanto), já está totalmente acobertado pelo
caput do art. 25, que, em nenhum momento, exclui pessoas que podem
invocar a justificante em questão! O texto legal faz uso do advérbio
“quem”, ou seja, qualquer pessoa, inclusive um agente de segurança
pública!

A questão é semântica; sintática; linguística e, também de tradição


doutrinária acerca do instituto! Quem, minimamente, sabe o que é legítima
defesa (e isso se aprende no segundo ou terceiro período do curso de Direito),
sabe que esse parágrafo único é mera repetição do que já vem acima dele!
Mas, a questão – para além de semântica ou doutrinária – pode ser,
também (ou, unicamente) simbólica! É como se o recado a ser transmitido
fosse: “a legítima defesa para todos é a do caput, mas, para os agentes de
segurança pública, será diferenciada. Tem um dispositivo legal específico”.
Como se a mera reprodução do caput pudesse converter o parágrafo único em
algo diferente do que ele realmente é! E, como norma geral e abstrata
(preciso frisar), as hipóteses de excesso também se aplicam aos agentes de
segurança pública! Isto é, devem também responder por qualquer excesso que
venham a praticar, seja a título de dolo, seja a título de culpa, esse com menor
probabilidade, já que, como acima referido, estamos, aqui, no campo da
culpabilidade (e não mais do injusto), fazendo com o que o julgador tenha
que ter muito mais cautela no trato subjetivo, isto é, na avaliação de quem é o
autor da conduta.
Assim sendo, essas palavras (des)necessárias não foram, simplesmente,
jogadas ao vento.
III. UM PANORAMA DO INCREMENTO PUNITIVO NO CÓDIGO
PENAL: MAIS DO MESMO

As modificações trazidas ao Código Penal não foram muitas. Na verdade,


nada que alterasse o que, verdadeiramente, deveria ser alterado: a concepção
liberal-individualista que embalou os ideais fascistas de 1940, quando o
diploma repressivo foi gestado, com a proteção da propriedade privada e a
forte tendência ao uso da lógica de “direito penal de autor”, valorando – quer
para tipificar condutas, quer para aumentar penas, quer para eliminar direitos
– a condição do sujeito, ao invés do ato porventura por ele praticado.
De 1940 para hoje, é bem verdade, o CP brasileiro já foi bastante
remexido. Uma das alterações mais significativas foi a famosa “reforma da
Parte Geral”, de 1984 (Lei n. 7.209/84) que, no entanto, em nada modificou a
essência ideológica do Código. Em verdade, foi uma alteração destinada à
adaptação dogmática do Direito Penal brasileiro à teoria finalista da ação, eis
que atingiu institutos caros a esse tema, como erro, dolo, culpa, culpabilidade
etc.
Em 1990, a Lei de Crimes Hediondos chegou para ratificar o projeto
repressivo. Trouxe uma série de aumento nas penas de alguns crimes e
recrudesceu a política de execução de pena. Àquela altura, como já avaliado
no item 1 supra, a justificativa para o “terror penal” foi a forte incidência da
chamada “criminalidade violenta de rua”, ocupando o ranking dos eleitos:
extorsão, extorsão mediante sequestro, latrocínio e crime sexuais. Importante
notar a presença marcante do caráter patrimonialista aqui: o homicídio (que,
em tese, é o crime que afeta nosso bem jurídico primordial) não foi
“contemplado” pela lei de crimes hediondos. A extorsão mediante sequestro
seguida de morte passou a ser o delito mais gravemente apenado em nossa
legislação (24 a 30 anos de reclusão). O latrocínio, veio em segundo lugar (20
a 30 anos). O recado estava dado e era muito claro: a vida só teria maior valor
quando atrelada ao patrimônio! Simples assim13.
A alteração veio, quatro anos depois, por meio da Lei n. 8.930 (de
06/09/94), que introduziu o homicídio qualificado no rol dos crimes
hediondos. Essa lei foi fruto de uma iniciativa popular (coisa rara), que teve
por motivação o assassinato da atriz Daniella Perez, em dezembro de 1992 e
que, à época, estrelava uma novela da Rede Globo, escrita por sua mãe, a
autora Gloria Perez. Foram colhidas 1.3 milhão de assinaturas no país e, em
1994, o projeto foi aprovado e convertido em lei14. Note-se, pois, que o
homicídio qualificado apenas passou a ser considerado hediondo em virtude
da importância e influência pública (e midiática) da vítima e seus familiares.
Antes disso, inúmeros desconhecidos eram, diariamente assassinados, sem
que qualquer movimento para alteração legislativa fosse feito...
Até então... Pois, nada de novo, seguia o CP/40 absolutamente hígido em
relação a sua concepção originária, à parte as alterações pontuais sofridas.
O atual “pacote anticrime” não causou qualquer surpresa. Trouxe mais do
mesmo. Isto é, apenas referendou o cardápio de sempre: mais punição!
Nenhuma, absolutamente nenhuma, proposta de mudança significativa na
proteção dos bens jurídicos constitucionalmente orientados, com o fim de se
respeitar uma séria teoria de bens jurídicos no Brasil que segue, assim, sendo
algo da ordem do onírico...15
Chama atenção, logo de início, a mudança emblemática do art. 75 do
Código Penal: “o tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade
não pode ser superior a 40 (quarenta) anos”. Saltamos de 30 para 40 anos!
Assim, num piscar de olhos! Como se o sistema carcerário brasileiro não
fosse o caos que é (declarado, pelo STF, inclusive, como um “estado de
coisas inconstitucional”16) e como se estivesse totalmente preparado para essa
alteração tão impactante!
O Brasil é o terceiro país que mais encarcera no mundo. Estamos batendo a
casa dos 800.000 presos17. É despicienda qualquer incursão na criminologia
para concluir o óbvio: aumento do tempo de cumprimento das penas jamais
foi e jamais será sinônimo de menos crime, ou menos violência. Todo o
contrário! Será apenas sinônimo de mais pessoas submetias a essa barbárie,
que são as prisões no Brasil. Ou seja, seguimos insistindo num discurso
totalmente demagógico, populista e que já se mostrou, em passado recente,
ineficaz!
Complementando o quadro, a Lei Anticrime tornou mais severas as regras
inscritas no CP para a concessão do livramento condicional. Antes, o art. 83,
inciso III exigia a comprovação de “comportamento satisfatório durante a
execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e
aptidão para prover à própria subsistência mediante trabalho honesto”. Agora,
a redação exige a comprovação de “a) bom comportamento durante a
execução da pena; b) não cometimento de falta grave nos últimos 12 (doze)
meses; c) bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído; d) aptidão para
prover a própria subsistência mediante trabalho honesto”.
A ideia de um direito penal premial, com base no “bom comportamento”
ou “comportamento satisfatório” (o que dá, rigorosamente, no mesmo, eis
que partem da mesma noção de pena como correção, como ortopedia moral)
permanece. Também permanece na lei a necessidade do apenado comprovar
um bom desempenho no trabalho (mesmíssima concepção de prevenção
especial, no sentido de que o “trabalho liberta”, corrige e salva!) e, o mais
grave, a aptidão para prover a própria subsistência mediante trabalho honesto
(como se as oportunidades de emprego no país fossem as mais alvissareiras,
sobretudo para pessoas condenadas criminalmente). A novidade foi, agora, a
necessidade de comprovação objetiva de que o condenado não cometeu falta
grave nos últimos 12 meses ao pedido de concessão do livramento18.
As “faltas graves” estão definidas no art. 50 da LEP (Lei de Execuções
Penais) e estão intimamente relacionadas com a questão da disciplina dentro
do estabelecimento prisional. Ou seja, a inclusão dessa necessidade de
comprovação de não cometimento de falta grave é mais um mecanismo de
controle disciplinar em torno do sujeito condenado, cuja verificação sempre
fica a critério da administração penitenciária. Como se sabe, em matéria de
execução penal, o controle jurisdicional com a real verificação das garantias é
praticamente inexistente19.
Em se tratando de novatio legis in pejus, por evidente, essa alteração
legislativa não retroage, aplicando-se, tão somente, aos casos cujas faltas
graves ocorreram após a vigência da lei20.
Porém, imperioso atentar aqui para a seguinte questão: o perigo da
manipulação retórica, no sentido de, objetivamente, não se considerar a falta
grave anterior, já que existe uma proibição constitucional expressa
(irretroatividade da lei penal mais gravosa), no entanto considerá-la como um
requisito subjetivo (“mau comportamento”;“comportamento insatisfatório”)
para, de igual modo, negar a concessão do livramento21. Como costuma
acontecer num país em que a Constituição, infelizmente, não fez morada, a
mentalidade inquisitória (Jacinto Coutinho) boicota, com toda a força, um
princípio fundante do Direito Penal (irretroatividade da lei mais gravosa), por
meio de um giro discursivo, como se, por passe de mágica, um requisito
objetivo se convertesse em subjetivo e pronto. Bingo! Está resolvido!
A outra mudança em direção ao incremento do poder punitivo foram as
novas causas impeditivas da prescrição da pretensão acusatória, com
destaque à novidade trazida pelo acordo de não persecução penal que,
enquanto não cumprido, ou não rescindido, impede o transcurso do prazo
prescricional (atual inciso IV, do art. 116).
E, se o tema é incremento punitivo, vamos a mais uma mudança simbólica:
a que diz respeito ao crime de roubo. Dois destaques: para a nova disciplina
das causas de aumento de pena e para a inclusão de modalidades
circunstanciadas no rol dos delitos hediondos.
No que concerne às majorantes, a grande novidade é a volta da arma
branca. Digo “volta” porque, na redação original do Código Penal de 1940, a
determinação era de aumento de pena de 1/3 até metade em caso de
“emprego de arma”, no crime de roubo.
Essa expressão “emprego de arma”, evidentemente, abria as portas para as
interpretações mais abertas possíveis, algo que vi na contramão do que
prescrevem os princípios constitucionais do Direito Penal democrático,
sobretudo o da taxatividade, o da ofensividade, o da proibição do bis in idem
e o da presunção do estado de inocência (também aplicado ao direito
material), que conformam a hermenêutica, no sentido de interpretar normas
penais gravosas sempre de forma restritiva.
Dito de outra forma, uma aplicação constitucionalmente orientada desse
dispositivo legal exige que se empreste ao termo “arma” a menor elasticidade
possível, para compreender a causa de aumento de pena somente quando o
objeto utilizado pelo agente do crime de roubo tenha, de fato, potencialidade
lesiva suficiente para ir além da capacidade de incutir temor e constranger a
vítima, posto que essa condição já vem contemplada pelo caput do art. 157.
Explico-me: segundo a doutrina tradicional, é possível dividir o conceito
de “arma” em próprias e impróprias. As primeiras seriam aquelas fabricadas
com a finalidade bélica (todas as armas de fogo, facas de Exército); as
segundas, aquelas que não possuem esse fim, mas que – em razão da
capacidade vulnerante – podem àquelas ser, excepcionalmente, equiparadas
(machados, facões, terçados). E paramos por aí, pois, se entendermos – como
muito já se fez (e, ainda, se faz) – que arma é qualquer objeto capaz de
ofender a integridade física de alguém, corremos o risco de considerar como
arma (para fins de aumentar a pena do crime de roubo) um pedaço de pau,
uma pedra, uma tesoura, uma faca de mesa, uma garrafa de vidro, e por aí
vai, dando ao dispositivo legal gravoso um alcance ampliativo, totalmente
rechaçado pela principiologia do Direito Penal22!
Doutrina e jurisprudência sempre conviveram com essa insegurança, sem
que isso jamais fosse apaziguado. A questão da arma desmuniciada, por
exemplo, ou da arma “de brinquedo” 23. Essas duas condições, claramente e
sob a ótica de uma doutrina constitucionalmente orientada, não podem servir
como causas de aumento de pena, pela simples razão de que uma arma sem
munição e um simulacro de arma não possuem a capacidade ofensiva exigida
pela majorante. Por evidente, uma subtração de coisa alheia móvel praticada
com o uso desses artefatos caracteriza o crime de roubo, já que evidente a sua
capacidade intimidatória. Mas, a conduta fica adstrita ao caput do dispositivo
legal em comento. Não tem o condão de circunstanciar o roubo. Trata-se,
pois, de um roubo simples, e não majorado pelo emprego de arma.
O mesmo raciocínio deve ser empregado quando se trata do uso de objetos
que – embora possam causar alguma lesão – não podem ser entendidos como
“arma”, sob pena de estarmos autorizando a interpretação ampliativa de
dispositivo legal gravoso, tão condenada pela hermenêutica penal (ex: pedaço
de pau, pedra, faca de mesa, corda etc.).
Em 2018 (Lei n. 13.654/2018), houve uma alteração nessa disciplina de
causas de aumento no roubo. O inciso I, do parágrafo 2º, do art. 157, foi
revogado. Em compensação, foi incluído o parágrafo 2º-A, que aumentou o
quantum de majoração (para 2/3), em casos de emprego de arma de fogo.
Resumindo: em 2018, a arma branca foi eliminada. Não mais constituía causa
de aumento de pena no crime de roubo o emprego de qualquer outro artefato,
que não fosse arma de fogo. Ao invés, porém, desse aumento permanecer no
patamar de 1/3 até a metade, subiu para 2/3.
Com a Lei Anticrime, voltamos à situação anterior, todavia de forma mais
agravada ainda. Esclareço: a arma branca volta a integrar o rol das
majorantes, desta feita no novo inciso VII, do parágrafo segundo (“a pena
aumenta-se de 1/3 até 1/2 se a violência ou grave ameaça é exercida com
emprego de arma branca”). A arma de fogo permanece onde estava e com o
mesmo quantum de aumento (2/3). Porém, ao parágrafo segundo é, agora,
inserida a letra B, para contemplar a hipótese do emprego de arma de fogo
de uso restrito ou proibido, com um aumento do dobro (“aplica-se a pena
em dobro se a violência ou grave ameaça é exercida com emprego de arma de
fogo de uso restrito ou proibido”).
As modificações conferiram disciplina mais grave às circunstâncias
especiais de aumento de pena no crime de roubo; seja porque a arma branca
regressa como majorante; seja porque, agora, a arma de fogo de uso restrito
ou proibido autoriza um aumento de pena do dobro. Por essa razão,
evidentemente, a nova disciplina não pode retroagir para atingir fatos
anteriores à vigência da lei24.
Impende, por fim, registrar que a Lei Anticrime fez incluir modalidades
circunstanciadas do roubo no rol dos crimes hediondos (roubo
circunstanciado pela restrição de liberdade da vítima; pelo emprego de arma
de fogo; pelo emprego de arma de fogo de uso proibido ou restrito).
Seguindo a linha populista e demagógica, que já delineamos no capítulo
introdutório, a Lei Anticrime aumentou a pena do crime de concussão (de 2 a
8 anos aumentou para 2 a 12 anos). Novato leis in pejus. Portanto, não pode
retroagir.
IV. A EXIGÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO PARA O ESTELIONATO:
REATROATIVIDADE BENÉFICA OU EMBUSTE RETÓRICO?

Não é de hoje que a doutrina sinaliza a necessidade de criar limites para o


processamento e consequente punição dos crimes patrimoniais sem violência,
que ofendem bens jurídicos particulares.
A lógica é simples e, por certo, diz com a natureza do interesse em questão:
propriedade/patrimônio particulares. De fato, nada justifica que, em casos
assim, o aparato do sistema de justiça criminal seja acionado, independente
da manifestação de vontade da pessoa ofendida. A bem da verdade, em
determinados delitos patrimoniais (inclusive, com violência, como é o caso
do roubo), as providências investigativas somente iniciam a partir de uma
provocação da própria vítima, o que demonstra que, em termos práticos, a
iniciativa do ofendido já vem sendo uma condição real (embora, não legal)
para o processamento.
Porém, a partir da Lei Anticrime, o Código Penal brasileiro passou a,
formalmente, exigir a REPRESENTAÇÃO do ofendido como condição de
procedibilidade25 nas ações penais (públicas), nos crimes de estelionato. Dito
de outra forma: a ação penal que, antes da lei, era pública incondicionada,
agora passa a estar condicionada à representação da vítima, salvo nas
hipóteses previstas no novo parágrafo quinto, do art. 171 (estelionato contra:
I – Administração Pública, direta ou indireta; II – criança ou adolescente; III
– pessoa com deficiência mental; IV – maior de 70 anos de idade ou incapaz).
A questão, aqui, posta em discussão e que, de imediato, capturou a atenção
da jurisprudência é em relação à retroatividade da lei e, mais que isso, em
relação à sua aplicação aos processos já em curso (com denúncia recebida). A
(aparente) polêmica não é de hoje e tem a ver com a natureza da norma
contida nesse comando legal: se de direito penal, se de direito processual
penal. Digo mais: a questão diz, em verdade, com a interpretação que se deva
extrair do art. 5º, XL, da CR/88, a saber: “a lei penal não retroagirá, salvo
para beneficiar o réu”.
Trata-se de garantia penal iluminista que, de igual modo, já constava do
nosso Código Penal de 1940, em seu art. 2º e parágrafo único, in verbis:
“Art. 2º – Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de
considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da
sentença condenatória. Parágrafo único – A lei posterior, que de qualquer
modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos
por sentença condenatória transitada em julgado”.
É a regra da aplicação da lei penal no tempo, que segue a lógica do Direito
Penal liberal da Ilustração e fez guarida entre nós, de forma inconteste. Toda
lei penal benéfica ao imputado deve retroagir. Ponto.
Porém, o Código de Processo Penal da mesma época (1941) traçou
caminho diverso em seu art. 2º, ao prever que “a lei processual penal
aplicar-se-á, desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a
vigência da lei anterior”. A lei processual penal, portanto, aplica-se de
imediato (retroage sempre). Evidentemente, isso precisa passar pelo crivo da
CR/88. Lei penal e lei processual penal são, ambas, leis de garantias à pessoa
investigada/processada/condenada. Portanto, pouco importa se dizem com a
forma (procedimento) ou com a matéria. Importa se favorecem ou prejudicam
o réu. No primeiro caso, devem retroagir. No segundo, não26.
Desta feita, o imbróglio provocado pela recente alteração trazida pela Lei
Anticrime ao estelionato não parece fazer muito sentido. Tudo começa numa
tentativa de definir se se trata de lei penal ou processual penal, o que, desde
uma concepção garantista, não faz a menor diferença. Sigamos.
A mudança está no novo parágrafo 5º do art. 171, do CP: “somente se
procede mediante representação”. Isto é, o legislador de 2019 tornou pública
condicionada à representação a ação penal no estelionato.
Trata-se, claramente, de lei benigna já que, exigindo a representação, cria
um óbice ao poder punitivo, limitando a ação do Ministério Público, pois a
condiciona à manifestação de vontade da parte ofendida. Por tudo o que
acima já foi exposto, não tem o menor sentido discutir se é lei penal (porque
está no CP e sua não observância leva, inexoravelmente, à perda do poder de
punir), se é lei processual penal (porque traz condição para o exercício da
ação penal pública), ou se é de natureza mista. É lei mais benéfica e, como
tal, deve retroagir!
A hipótese não é nova. Lembremos de situação muito semelhante, trazida
com a Lei n. 9.099/95 que, em seu art. 88, modificou a disciplina para o
exercício da ação penal nos crimes de lesão corporal simples (leve) e lesão
corporal culposa, transformando-a em pública condicionada à
representação27. Porém, o próprio legislador forneceu a solução no art. 91, da
mesma lei, in verbis: “nos casos em que esta Lei passa a exigir
representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu
representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob
pena de decadência” (grifos nossos).
Entendeu-se, à época, que a representação funcionaria, assim, como uma
condição de prosseguibilidade, já que – para processos em curso – o ofendido
deveria ser intimado para oferecê-la no prazo de 30 dias, sob pena de
decadência.
No caso presente do estelionato, todavia, a lei silenciou quanto a essa
questão, cabendo a jurisprudência a orientação.
A Quinta Turma do STJ fixou entendimento pela retroatividade da lei
somente para a fase policial, sem incidência sobre os processos já em curso28.
Concluiu, pois, que a representação é apenas condição de procedibilidade,
não se podendo converter em condição de prosseguibilidade, ou seja, para
processos já em curso.
A Sexta Turma, porém, trilhou caminho diverso, decidindo que a regra –
claramente mais benéfica – deveria alcançar os processos em curso (sem
trânsito em julgado), com a intimação da parte ofendida para manifestar seu
interesse na continuação ou não do feito, aplicando, assim, a regra do art. 91,
da Lei n. 9.099/95, por analogia O Supremo Tribunal Federal, por seu turno,
no Habeas Corpus 187.341-SP, de relatoria do Ministro Alexandre de
Moraes, adotou posição mais próxima daquela fixada pela 5ª Turma, ao
definir que a nova lei retroage, apenas, para atingir os casos em que a
denúncia ainda não foi ofertada. Uma vez oferecida a denúncia, segundo a
Corte, resta impossibilitada a representação. Segundo a decisão, o fato da lei
não prever a manifestação de vontade da vítima como condição de
prosseguibilidade impede que assim o faça. Não considerou, portanto, a
possibilidade de aplicação, por analogia, do art. 91, da Lei n. 9.099/95, como
fez a 6ª Turma do STJ29.
Ora, pois. Se o Supremo Tribunal Federal está correto nessa interpretação,
pergunta-se: fizemos o que com o princípio da retroatividade benéfica? Até
que ponto essa distinção (descabida) entre lei de natureza penal e lei de
natureza processual penal possui o condão de desautorizar a aplicação de um
princípio tão caro ao Direito Penal democrático?
Andou muito bem a 6ª Turma do STJ ao trazer essa discussão à baila e,
mais que isso, aplicar, corretamente, a analogia in bonam partem, valendo-se
da norma extraída do art. 91 da Lei n. 9.099/95, demonstrando que a hipótese
não é original no direito brasileiro e que o legislador, em 1995, já havia
fornecido solução adequada, perfeitamente factível.
Porém, com a decisão do STF que – a que tudo indica – fará escola, temos,
amais uma vez, sabotada a aplicação inegociável das garantias penais, desta
vez travestida de uma orientação dogmática pífia que, de há muito, não se
harmoniza com os parâmetros constitucionais e, apenas, reproduz a
mentalidade inquisitória que grassa por aqui.
CAPÍTULO II

O CHOQUE ACUSATÓRIO, ESPAÇOS NEGOCIAIS E A


INTERPRETAÇÃO EVASIVA
Alexandre Morais da Rosa
I. INTRODUÇÃO

Depois de um atribulado processo legislativo, no Natal de 2019 adveio a


Lei n. 13.964/19, denominada “Pacote Anticrime”. O meio jurídico fervilhou
diante do prazo de 30 (trinta) dias para entrada em vigor da lei que promovia
verdadeiro giro acusatório no processo penal. O contexto era de os Tribunais
em recesso e sem tempo hábil para operacionalização de meios para o efetivo
cumprimento das novas disposições. Seguiu-se o adiamento por decisão do
Supremo Tribunal Federal e, depois, em fevereiro, a famosa liminar Fux, pela
qual boa parte dos dispositivos processuais foi suspensa. A ciranda de
liminares fez com que até a edição do livro não se tenha realizado o
julgamento colegiado das Ações Diretas de Inconstitucionalidade. O
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em ambiente pandêmico, procurou
estabelecer regras para paulatina implementação.
A proposta do presente texto, então, pretende abordar dois momentos. No
primeiro, buscar situar o ambiente comportamental da “esquiva
interpretativa” operada pela liminar do STF e, no segundo momento, analisar
a operacionalidade do acordo de não persecução penal. Ao final reafirma o
desafio acusatório a partir de matri psicológica que se esquivam
retoricamente de assumir a motivação inquisitória subjacente.
II. A LEI N. 13.964/19 COMO ESTÍMULO COMPORTAMENTAL
AOS AGENTES PROCESSUAIS

A experiência de se fazer uma prova no ensino médio, na graduação ou


mesmo em concurso público pode servir de metáfora para o que se passa no
Processo Penal. Em geral há presença de Professores e/ou Fiscais durante
toda a prova para garantir que alunos/concursandos haja em conformidade
com as regras do fair play, a saber, do jogo limpo (sem fraudes, cola, auxílio
de terceiros etc.). Alguém poderá, todavia, arriscar-se a “fraudar/colar”
mesmo com a presença de agentes punidores, avaliando, a todo o momento,
meios de obter a vantagem e de não ser descoberto, já que poderá ser punido
com a exclusão e/ou a reprovação. Mas, se o Professor/Fiscal deixar a sala,
para ir ao banheiro, por exemplo, a tendência é a de redução dos estímulos
aversivos e, sem nenhuma autoridade no recinto, o cumprimento da regra de
não colar, nem de obter auxílio dos demais colegas/concursandos, dependerá
da disposição individual do agente e do comportamento dos demais agentes.
Isso porque a ausência de instância potencial de punição tende a rebaixar a
probabilidade de ação em conformidade com as regras. Do mesmo modo, a
tolerância para com condutas ilegais, fora das regras, fomenta o
comportamento desviante.
O comportamento desejado para com os magistrados é o de observância
das regras de processo penal, justamente porque é a partir dessa disposição ao
cumprimento que se pode constatar a eficácia normativa30. Entretanto, para
além das divergências interpretativas, o fenômeno pode ser analisado pela
constatação de que os mecanismos de reforço do comportamento “free style”
(decida conforme bem lhe aprouver, desde que seja inquisidor) precisa de
objeções e, no caso, talvez de punições.31
O intérprete do texto jurídico, no momento da decisão, chega com sua
bagagem teórica e preferências das mais variadas ordens (teóricas, morais,
éticas, ideológicas etc.) porque se vive em uma Democracia plural. A partir
disso, todavia, quando assume uma função pública, no caso de agentes do
Estado (Delegado de Polícia, Magistrados, Ministério Público, Defensores,
Advogados etc.), precisa guardar respeito às deliberações do coletivo, a
saber, as Leis estão para além das escolhas pessoais. Embora o leitor possa
estar dizendo que isso é óbvio, no campo do Processo Penal, o desafio é o de
demonstrar que existem várias camadas de sentido e que prevalece a
mentalidade inquisitorial32, por ausência de mecanismos hábeis à modificação
do comportamento. Dito diretamente, o agente ao cometer uma infração ao
texto da Lei (processual e/ou penal) deve analisar o preço da conduta, ou seja,
qual a sanção (pena, multa, reputação etc.) e a probabilidade efetiva de ser
descoberto e punido.
Essa, aliás, é a lição da Análise Econômica do Crime, segundo a qual as
condutas devem ser criminalizadas estabelecendo-se qual o preço da punição,
a saber, adota-se postura utilitária em que a crença na punição melhora o
bem-estar da sociedade33. Gary Becker34 analisa os custos/benefícios das
práticas criminalizadas:

(S [severidade da resposta estatal) x P [probabilidade de ser preso e


punido] > S [lucros decorrentes do ato])

Desta equação nasce o gerenciamento da leitura econômica do


custo/benefício da tendência do agente (racional e econômico) em obedecer
e/ou transgredir. A premissa de que quem pratica ilícito se expõe ao risco da
punição e quanto maior o preço a pagar, menos incentivos terá35, parte de um
sujeito racional teórico e abstrato36, devendo-se avaliar sempre o contexto
situado do comportamento.
Assim é que a adequação ao comportamento desejado depende da efetiva
existência e operatividade das agências de controle de aplicação da lei, isto é,
sem a imposição de estímulos dos Tribunais Superiores no sentido de
observância da norma decorrente do texto da Lei n. 13.964/2019 (Pacote
Anticrime), cada um faz o que bem quiser, potencializando o atual estado da
arte em que não há estabilidade, coerência, consistência e previsibilidade do
comportamento judicial. A modificação dos textos legais (como o Pacote
Anticrime), com a imposição de novos comportamentos, na função de
estímulos normativos, promove uma resposta dos intérpretes, mantendo ou
alterando o comportamento (comportamento respondente). A Lei é uma
forma de contingência de reforço imposta pelo Estado diante do monopólio
da Jurisdição.
Entretanto, desde Skinner37, sabe-se que comportamento operante é
influenciado/controlado pelas suas consequências e não só pelos estímulos
externos, na hipótese, a modificação do ambiente normativo (Pacote
Anticrime). Reside justamente na efetiva e/ou potencial possibilidade de
consequências (positivas/negativas), após a ação de interpretação, o
mecanismo capaz de fazer perseverar ou modificar o comportamento anterior,
denominado de condicionamento operante38. Anota-se desde o início que não
se está mitigando a liberdade interpretativa, nem se apontando o “crime de
hermenêutica” e sim a conduta de negar vigência aos novos dispositivos
“como se” sequer existissem ou com erros crassos de teoria do direito (norma
posterior de mesma hierarquia revoga o que for incompatível, por exemplo).
Em face então dos estímulos externos, o agente aprende algo novo no
ambiente (normativo) e pode manter ou alterar o comportamento por meio de
5 (cinco) tipos de ações controladoras (ações Û comportamentos): 1) reforço
positivo; 2) reforço negativo; 3) punição positiva; 4) punição negativa; e, 5)
extinção39. A lógica é a de que (i) se o agente agir de maneira x, (ii) em certo
contexto, (ii) a possível/provável consequência será y. É da capacidade de
avaliação do contexto e de riscos que o agente decide40. No processo
decisório há contingência41 e podem incidir armadilhas cognitivas
consistentes em atalhos mentais (heurísticas) e erros sistemáticos (vieses)42. A
análise sempre deve ser situada e contextualizada, uma vez que se dá em
relação ao caso, ou seja, em sua singularidade.
Assim é que se chama de reforço as consequências que aumentam a
frequência do comportamento e podem ser: a) positivo: o acréscimo de algo
novo, em geral recompensas (dinheiro, créditos etc.) que conservam o
comportamento e fomentam a sua regularidade; e, b) negativo: a
retirada/remoção de algo novo, do estímulo aversivo, fomenta a
perseverança/manutenção do comportamento indesejado43. Por punição se
compreende a ação que busca diminuir a probabilidade de o comportamento
44
se repetir , dividindo-se em a) positiva: com a retirada da liberdade, de bens
ou restrição de direitos; e) negativa: com repreensão, humilhação ou
constrangimento (pessoal e/ou coletivo), que tocam na vergonha e culpa do
punido de modo sempre relacional (para uns opera, enquanto para outros
não).
As punições, além dos efeitos diretos, podem gerar efeitos
colaterais/secundários, resultantes do fato de que a longo prazo e pelo
crescente aumento da punição, gerarem emoções negativas e sentimentos de
injustiça, desvinculação coletiva e ausência de perspectivas de reengajamento
social (fugir, retrucar, manipular, ausência de perspectiva social, etc. 45).
Além disso, sem a presença do agente punidor, pode ser que haja recidiva,
porque o estímulo é externo, sendo que a recompensa pessoal do agente se
sustenta na ausência de mecanismos efetivos de controle. Os comportamentos
indesejáveis podem implicar em duas táticas do agente que pretende mantê-
los: a) fuga: com a presença do estímulo aversivo o agente se retira do
contexto de incidência; e, b) esquiva: mesmo com a presença do estímulo
aversivo, o agente previne a sua descoberta e ação. Cabe sublinhar as
externalidades46 (negativas e positivas), consistentes em “contracontrole”,
porque se evita que as instâncias de auditagem (Jurisidicional e Correicional)
possam ter conhecimento da ação mediante táticas de ameaça, omissão
decisória, falácias, enfim, manipulações argumentativo-retóricas que
camuflam a manutenção do comportamento (esquiva).
Por fim, a extinção operante ocorrer quando a resposta do agente é menos
frequente ou o comportamento é removido em face dos estímulos externos,
capazes o suficiente para que a deliberação judicial atenda aos novos limites
estabelecidos pelo estímulo estatal, na hipótese, a Lei n. 13.964/19.
III. O CHOQUE ACUSATÓRIO E A ESQUIVA INTERPRETATIVA

O pacote anticrime colocou, mais uma vez, a demanda de se pensar a


estrutura, o comportamento e (im)possibilidades de reformas parciais, cuja
consequência é a instauração de uma guerra de posições entrincheiradas. A
partir de leituras inquisitórias, acusatórias, mixadas, sem coerência ou mesmo
consistência, defende-se de tudo um pouco. Desde defensores de mudanças
práticas paradigmáticas, até os que dizem que nada mudou, passando para os
harmonizadores que se aproveitam um pouco de cada.
Aproveita-se, assim, a tríplice tipologia de juízes proposta por Duncan
Kennedy47 (do movimento Critical Legal Studies – CLS48) para analisar o
contexto do Processo Penal brasileiro pós Pacote Anticrime. Assim é que a
partir da posição ideológica do julgador (ator ideológico), pretende-se
demonstrar o comportamento hermenêutico estratégico dos argumentos
utilizados para sustentar a mentalidade inquisitória. Parece ingênuo ainda
hoje acreditar na aplicação neutra da lei, embora boa parte dos juristas assim
entenda, daí o êxito do efeito ilusório da ciência do direito,
epistemologicamente insustentável. Por isso, a seleção dos argumentos que
serão utilizados é ideologicamente orientada, inclusive dispositivos inválidos.
Duncan Kennedy diz que é sempre possível ao julgador adotar uma atitude
estratégica para com os materiais significantes, fazendo com que pareçam
algo distinto do que em tenderiam significar, ou mesmo emprestar novos
significados dentro de uma cadeia de significantes, rearticulando a maneira
como são apresentados. Há sempre um espaço para manipulação dos agentes
e julgadores entre as possíveis versões do mesmo material coletado
validamente em um jogo processual, até porque a ordem dos argumentos
altera o resultado. Isso é verificável com a quantidade de reformas de
decisões de primeiro grau, a saber, com o mesmo material significante, a
articulação da teoria do crime, das teorias de processo, dos sentidos possíveis,
modifica-se o resultado da decisão. É claro que isso depende do talento e da
capacidade argumentativa dos agentes processuais, já que alguns sabem
como parecer mais coerentes do que outros.
Entretanto, na imensa maioria das vezes essas opções são maquiadas em
nome da neutralidade e da aplicação estrita da lei, de modo que quase nunca
são evidenciadas as intenções ideológicas. Se perguntados, na maioria,
sorriem, dizendo: “apenas apliquei a lei em vigor”. A seleção das normas
jurídicas e dos fatos relevantes e provados depende de fatores não narrativos,
muitas vezes manipulados. Reconhecer a variável é condição de possibilidade
para o enfrentamento das decisões negacionistas dos efeitos da reforma.
Nesse sentido, Duncan Kennedy49 apresenta três modelos de juiz: a)
Julgador ativista (restringido): A imagem proposta é a do julgador que sabe
da aplicação de determinada regra ao caso, mas por não concordar
pessoalmente — ideologicamente — desloca sua narrativa para plantar uma
exceção. Não busca desconsiderar a lei, mas sim apresentar uma exceção
restritiva do caso em análise, crendo, sinceramente, que a decisão é a
decorrente do melhor direito. Produz decisões que formalmente são
manifestações judiciais defendendo seu ponto de vista, desde uma motivação
defensiva do seu argumento. Enfim, constrói o sentido do material
apresentado — do qual é fiel — corroborando sua decisão, todavia. Quando
não encontra meios de apontar o caso como exceção, submete-se ao Direito.
Esse modelo pode ser tanto conservador como liberal; b) Julgador mediador:
ciente da divisão ideológica, posta-se como observador externo e busca por
meio de sua atividade judicial o comportamento estratégico de conciliar as
vertentes, promovendo o meio termo. Ante os extremos ideológicos situa-se
em posições moderadas, as quais poderiam ensejar a convivência de
diferentes grupos ideológicos; c) Julgador bipolar: No enleio entre posições
ideológicas, muitas vezes por deficiência teórica, decide de maneira
conservadora e no caso seguinte de forma liberal, sem que tenha um mínimo
de coerência. Daí que não se sabe o que esperar dele. Sua bipolaridade
decorre do fato de que não pertence — ou não sabe que pertence — a um
grupo ideológico definido e passa a vida decidindo como bem lhe aprouver.
No Brasil poderia ser chamado julgador Maria-vai-com-as-outras. Que
espécie de lugar de fala essa atitude conforma? Como age um juiz que
sempre é levado pela maré, ainda mais em tempos de torrente incontrolada do
poder punitivo? Que decisão um juiz Maria-vai-com-as-outras coloca no
mundo? Esses arquétipos podem auxiliar a compreensão de como o impacto
da reforma havida foi rejeitada de pronto, sem maiores debates, justamente
pela preponderância do viés ideológico inquisitório, típico do Juiz ativista e
de comportamento esquivo, cujo desafio é o de não deixar a parte processual
do modelo acusatório prevalecer.
No campo do Processo Penal o Brasil é uma ilha inquisitória no oceano
acusatório, com muitas inconsistências normativas e dificuldade de
compreensão democrática dos lugares e funções dos agentes processuais. A
gigantesca reestruturação operada em países latinos para criar as condições
necessárias à implementação do modelo acusatório, no Brasil, submete-se a
marcadores normativos contraditórios e incapazes de fomentar o passo
acusatório. Por isso podemos falar em “graus variados” dos modelos
inquisitório e acusatório, movidos por interesses e incompreensões as mais
variadas. Por outro lado, com Aury Lopes denominou-se de “Movimento de
50
Sabotagem Inquisitória – MSI” o comportamento negacionista do giro
acusatório existente na Jurisdição Penal. É que alterações de tamanha
magnitude, com avanços radicais, demandam pelo menos 4 (quatro)
dimensões de abordagem, a saber: a) pressões normativas institucionais no
sentido acusatório (nacionais e internacionais); b) forte movimento interno de
insatisfação com o modelo inquisitório e atitude acusatória; c) consolidação
de um modelo alternativo progressivo de implementação acusatória, sem
rupturas subjetivas (não se pode reprovar os inquisidores como errados,
desatualizados etc., somente promover o alinhamento acusatório, ou seja, sem
rivalidades); e, d) promover a releitura acusatória dos institutos de modo a
compatibilizar o processo penal ao modelo acusatório e oral, com o uso
maciço da tecnologia.
Para compreender essas quatro dimensões, ciente de que a capacidade de
adaptação democrática dependerá sempre da atitude da Corte Suprema (STF)
e do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Desconsiderar o lugar do exercício
do Poder e da função do maior órgão do Poder Judiciário brasileiro constitui-
se como modalidade de cegueira deliberadas dos mecanismos reais do jogo
democrático.
IV. O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

Dentre as diversas alterações, pela dimensão do texto, elegeu-se a novidade


do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP). Embora recente, a ampliação
dos espaços de consenso no processo penal brasileiro é uma realidade
incômoda, justamente pela incoerência orgânica do sistema e, também, pela
ausência de formação sobre o modo como se negocia no ambiente do ANPP.
Isso porque o risco é o de se ter o ANPP como mais uma modalidade de
acordo pré-determinado em propostas de adesão, perdendo-se a oportunidade
de negociação, muito pela ausência de tradição. Enfim, ANPP não pode ser
considerado como mera proposta de pegar ou largar, em tom de ameaça, sob
pena de se perder a dimensão negocial. Os antecedentes históricos (transação
e suspensão condicional do processo) apresentavam pouco espaço de
negociação, em geral na presença de conciliador ou de juiz, enquanto o
ANPP deve ser feito entabulado em rodadas negociais fora de uma audiência,
dado que cabe ao juiz somente homologar. Aliás, essa era umas das
atribuições do Juiz das Garantias.
Pode-se falar da coexistência de duas frequências do processo penal, já que
enquanto se aponta a indisponibilidade como característica da ação penal,
aceita-se no subsistema do ANPP justamente a disponibilidade. Assim é que
se busca, nesse momento, indicadores do “melhor Direito”51, mas que, para
sua fixação, depende da discussão sobre a barganha no processo penal.
A lógica da barganha é fundamental para que se possa incorporar
habilidades (skills) aos agentes processuais, conforme indiquei no “Guia do
Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos”52 e mais recentemente no
“Como Negociar o Acordo de Não Persecução Penal: limites e
possibilidades”53. Entender o modelo de barganha no processo penal, precisa
do acolhimento do Teorema de Coase54, segundo o qual a propriedade de
direitos e o custo de transação zero levam à eficiência55, independentemente
da alocação final do bem. Assim é que em face de direitos de propriedade
definidos (o que pode ser negociado e o titular), a negociação entre as partes
sempre leva a uma solução mais eficiente. Em sendo o direito ao processo
privilégio (renunciável) do sujeito titular, portanto disponível, a negociação
sobre a culpa e a pena, em face da compreensão ampla de liberdade, autoriza
que diante de uma imputação criminal, com o direito do Estado em punir e o
direito ao processo como disponíveis, a decisão consensual será sempre a
mais eficiente. Perceba-se que a disponibilidade do Estado quanto à ação
penal e a pena, por um lado, e a disponibilidade do acusado sobre o privilégio
ao processo e à liberdade, de outro, formam os componentes que entrarão em
jogo na mesa de negociação, a partir das informações coletadas sobre o
enquadramento e efeitos da conduta penal. Sem compreender isso, toda
discussão sobre o acordo de não persecução penal é diálogo que não se dá
conta de seu lugar e função.
O Teorema de Coase demonstra que se houver possibilidade de
negociação, com direitos de propriedade assegurados, o resultado será
melhor. Entendido o direito ao processo como propriedade do acusado e,
portanto, negociável, abre-se um novo horizonte de compreensão, diverso do
modelo anterior em que a culpa exigia decisão judicial com trânsito em
julgado, a saber, era o juiz que estabelecia a culpa, enquanto agora se negocia
no mercado do processo penal. A partir da aplicação do Teorema de Coase no
acordo de não persecução discute-se: quantas ou quais as recompensas o
sujeito – acusado/investigado – está disposto a receber para desistir da
externalidade (prisão/pena) e quantas ou quais os prêmios legais que o sujeito
(Ministério Público) está disposto a oferecer para obter a formação da culpa,
projetando a barganha como máxima teórica processual penal. Os acordos
negociados, com direitos de propriedades bem garantidos e disponíveis,
tornam o ambiente comercial-penal mais eficiente, tendo em vista seus
interesses individuais em conjunto com o grupo, favorecendo o ‘equilíbrio de
Nash’56, isto é, o ponto em que nenhum dos jogadores tem incentivo para
mudar seu curso de ação se o outro não mudar o dele.
Com isso, justificado estaria o acolhimento de mecanismos de troca e
negociação em face de condutas ilegais, na linha do plea bargaining, sem que
se possa equiparar os institutos, a saber, não são sinônimos (plea bargaining
e acordo de não persecução penal), embora todos guardem espaços de
consenso. São meios de aceleração, redução de custos, com simplificação
procedimental e melhoria da eficiência do Sistema Judicial, já que consegue
“produzir” decisões com trânsito em julgado sem a necessidade de
57
julgamentos caros, demorados e custosos . Logo, um dos efeitos da barganha
é o da redução dos casos penais, repercutindo na eficiência do sistema penal,
dizem os americanos, dando maior capacidade de enfrentamento de casos
complexos58. Tanto assim, que mais de 90% dos casos penais são resolvidos
na modalidade do plea bargaining, sem que se tenha transparência acerca do
modo como a negociação do acordo acontece59. No contexto do plea
bargaining, nos EUA, o investigado pode, com a assistência de defensor: (a)
confessar a culpa (plead guilty); (b) negar a culpa (not guilty); e, (c) não se
defender (no contest, nolo contendere). Nas hipóteses de confessar e não
querer se defender, abre-se caminho para a barganha, com negociação sobre o
conteúdo da acusação e da pena.
A barganha60 é inerente à vida econômica e significa um novo modo de
pensar o processo penal, na via do acordo de não persecução61. Tentar
encaixar a barganha nas categorias clássicas do processo penal brasileiro é o
erro lógico de abordagem. Será preciso obter novos pressupostos para
compreensão, especialmente no tocante à distinção entre “direitos
fundamentais” e “privilégios”, já que a disponibilidade da ação penal e o do
direito (e não dever) ao processo serão os pressupostos ao estabelecimento do
mercado da barganha. Ainda que a legalidade62 presida a atuação estatal, a
abertura de espaços de consenso modifica o regime de produção de verdades
jurídicas, vinculando-se as funções, lugares e poderes dos
jogadores/julgadores63. A oportunidade da ação penal precisa de novas lentes
para sua compreensão, já que informada pelo pragmatismo e utilitarismo,
diante das recompensas dos agentes processuais. Em face da diminuição da
carga de trabalho de jogadores/julgadores públicos e da pena imediata, além
da justificativa de redução de custos de produção, bem assim da possível
emoção (adrenalina) propiciada pelo jogo negocial, a barganha conta com
ampla adesão por parte dos agentes públicos64.
É importante entender em que ponto se podem convergir as estratégias
e se estabelecer a cooperação. Competição ou cooperação? Por exemplo, o
vendedor de carros e o comprador têm como mesmo objetivo a venda, mas
divergem em relação às condições, razão pela qual negociam. Se o vendedor
não aceita baixar o preço, entrincheirado, os êxitos tendem a ser menores.
Uma margem de negociação, barganha, auxilia sempre. Por isso o êxito dos
mecanismos de negociação no processo penal, com as sutilezas daí
decorrentes, em que os ganhos relativos se mostram convergentes. A
capacidade de negociação faz toda a diferença.
Quem se aventura a jogar na barganha não pode ser amador. Precisa
compreender sobre “Teoria de Negociação”. Embora o negociador-acusador
deva jogar limpo, pode acontecer de omitir provas, carregar as tintas em
possíveis provas e ameaçar o investigado a uma pena maior se ele não
acordar/cooperar65. Isso faz parte das interações, mas o limite deveria ser
controlado pelo Estado-Juiz. Entretanto, como as negociações acontecem à
margem do controle jurisdicional, torna-se difícil mensurar os requisitos de
validade, dando azo à manipulação e ao jogo sujo. É da interação entre os
jogadores que negociam informações e os benefícios que surge o termo
colaboração.
Diferente do jogo de xadrez em que todas as jogadas são previsíveis66, no
procedimento para o acordo de não persecução somente da interação, do
levantamento da reputação, expectativa, tática e recompensas é que se pode
estabelecer qual a estratégia no mercado da barganha. O que se pode verificar
nesse contexto é a prevalência das regras de barganha próprias do mercado,
como a sobrecarga penal67, consistente na tática de, no início das
negociações, o jogador acusador acrescentar imputações (tipos penais ou
qualificadoras) para o fim de ter margem de negociação, bem assim sentenças
“pesadas”, com prisão cautelar, para o forçamento da ação delatória, por
exemplo. Não se exclui, ainda, as possibilidades de armadilhas cognitivas,
em que as heurísticas e vieses, incidam, quer para facilitar, quer para
prejudicar a cooperação.
Assim é que não confundindo “legalidade” com “oportunidade”, surgem
68
espaços de negociação em que a lei autoriza que o titular da ação penal
possa negociar com o investigado/acusado e seu defensor o enquadramento
legal, as penas e o regime de cumprimento. A oportunidade, todavia, deve
significar a tomada de decisão sobre cursos de ação, não se confundindo com
a plena disponibilidade, até porque incide controle jurisdicional dos limites
no momento da homologação. O jogo inerente à decisão pressupõe a
‘qualidade’ e ‘quantidade’ das informações capazes de justificar a estratégia
dominante, vinculada às recompensas possíveis, em que o mercado de trocas
se estabelece69.
No âmbito negocial do Processo Penal a grande novidade foi a
regulamentação do “acordo de não persecução penal”, nos termos do art. 28-
A, do CPP (antes previsto nas Resoluções 181 e 183, do CNMP). Abriram-se
diversas discussões sobre o cabimento, direito subjetivo e circunstâncias de
aplicação do novo instituto (aspectos objetivos e subjetivos). Dispõe a lei:
“Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado
confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem
violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o
Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde
que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”.
O espectro de crimes abrangido pela norma é enorme, já que boa parte dos
crimes se dá sem violência e grave ameaça, tendo pena mínima inferior a 4
(quatro) anos. Então, objetivamente, podem ser objeto de acordo de não
persecução boa parte das condutas criminalizadas (sem violência e grave
ameaça), dado que a pena mínima (inferior a 4 anos) deve levar em
consideração as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto
(§1º), por exemplo, a tentativa (CP, art. 14, II) ou tráfico privilegiado (Lei n.
11.343/06, art. 33, §4º). A discussão subjetiva ganha contornos de barganha,
porque a necessidade e suficiência dos termos do acordo para “reprovação e
prevenção do crime” será objeto de negociação. O acordo não gera
reincidência, nem constará da respectiva ficha de antecedentes, salvo para
impedir a concessão do benefício pelo prazo de 5 (cinco) anos (§ 12). Em
sendo cabível nos casos em que não houve ainda julgamento, deve ser
analisada a possibilidade de implementação imediata, diante da prevalência
da regra mais favorável ao imputado.
Não se aplica o acordo de não persecução, nos termos do § 2º, quando: I –
for cabível transação penal (Lei 9.099/95, art. 76); II – se o agente for
reincidente ou houver indicadores de conduta criminal habitual, reiterada ou
profissional, salvo se as condutas anteriores forem insignificantes; III – tiver
sido beneficiando nos 5 (cinco) anos anteriores, de acordo de não
persecução, transação penal ou suspensão condicional do processo; e, IV –
nos casos de violência doméstica/familiar, praticados contra a mulher por
razões de gênero, em favor do agressor. Em se tratando de direito subjetivo
do investigado (na linha da suspensão condicional do processo – STF, HC
83.926), a negativa deve ser fundamentada pelo Ministério Público,
adaptando-se a cada caso penal em sua singularidade (não pode ser genérica
quando for óbice subjetivo).
Desde já cabe sublinhar que o palco da atribuição de culpa deixa de ser o
processo penal para se deslocar para o acordo de não persecução, ganhando
proeminência a atividade investigatória (tanto do Estado, quanto defensiva70),
porque no ambiente negocial a capacidade de estabelecer acordos de “ganha-
ganha” dependerá em muito das habilidades dos jogadores de compreender o
desafio negocial. Por outro lado, não havendo instrução, a defesa deve
antecipar as cartas probatórias defensivas, sob pena de não ter nada para
apresentar. O perfil dos jogadores será fundamental (conservadores,
temerários ou maníacos), assim como as recompensas. Pode-se aproveitar a
audiência de custódia para tal finalidade, até porque o conduzido estará
acompanhado de defensor, avaliando-se a voluntariedade e as condições da
proposta.
Além da confissão formal e circunstancial da prática (recomenda-se
registrada por audiovisual), para o fim de evitar fraudes (que terceiros
confessem crimes alheios), podem ser acordadas, cumulativa e
alternativamente, a seguintes condições: I – reparar o dano ou restituir a coisa
à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;
II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério
Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III – prestar
serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à
pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a
ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do CP; IV – pagar
prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do CP a entidade
pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que
tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou
semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou, V – cumprir, por
prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde
que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
Assim é que se pode acordar sanções típicas (incisos I a IV) e atípicas (V),
cujo controle judicial deve se fazer presente, evitando as violadoras da
dignidade humana (p.ex. andar com camiseta “sou criminoso/furtador”),
sejam inadequadas, abusivas, insuficientes ou excessivas. É vedada
criatividade de penas, para além do democraticamente aceito. Isso porque no
momento da negociação o Ministério Público está em posição de vantagem,
embora a defesa possa ter trunfos (cartas probatórias).
Conseguir prova suficiente para condenação de investigado/acusado por
uma sentença motivada de juiz singular demanda recursos materiais,
financeiros, cognitivos, probatórios, dentre outros, mas submetidos ao regime
de escassez e de rivalidade, justamente porque dispondo de recursos
limitados (escassos), a saída negocial é relevante. Tomar a decisão de
perseguir, processar, defender, pressupõe a alocação de parte dos recursos do
jogador para essa finalidade, rivalizando com outros casos. Então,
parafraseando Alvin Roth71, a economia da Justiça Negociada busca
descrever e indicar a alocação eficiente de recursos escassos. Para isso, deve
haver uma combinação de interesses entre compradores e vendedores, tendo-
se em vista a disponibilidade negocial de direitos devidamente atribuídos.
Aliás, quando mais atribuídos legalmente (e respeitados), melhores as
condições de êxito. (Teorema de Coase). Buscar mecanismos eficientes para
os agentes/jogadores jurídico-econômico pode ser melhorado com o
estabelecimento de ambientes propícios à negociação, mediante
combinações/matching, em que se depende da nossa escolha e de terceiros.
Roth explica: “Matching é o jargão dos economistas para denominar de que
maneira obtemos muitas coisas na vida, coisa que escolhemos mas que
também precisam nos escolher”.72 Não se trata mais da lógica de ter um
produto e apresentar o preço (oferta/demanda), pouco importando quem irá
comprar, como na Bolsa de Valores ou nos classificados online, desde que
haja garantias. No caso de matching, resplandece a necessidade de interesses
convergentes, capazes de justificar a aproximação, uma vez que embora o
“preço” seja sempre discutido, há fatores que transcendem. Será necessária a
aproximação, a confiança, as facilidades de encontro, as garantias, enfim,
uma série de variáveis que tornam o mercado mais complexo. E isso se aplica
ao acordo de não persecução. A grande questão é a “regulação” desse
“mercado” de negociações tendentes os acordos, que trata exatamente da
noção de excesso e de abuso de direito, ou de má-fé na atuação do Estado-
negociador; a dizer, como na economia, o mito de que esse “mercado” do
acordo se regule sozinho não existe – a tendência humana é de aproveitar os
espaços e forçar ao máximo seus benefícios. Por isso será preciso entender os
obstáculos do jogo negocial.
A atividade negocial instaurada em face da abertura do acordo de não
persecução penal parte da noção de que vendedor e comprador querem
maximizar a utilidade do negócio jurídico a ser realizado, minimizando as
perdas. Não se trata de negociação “soma zero”, em que o ganho do
comprador é igual à perda do vendedor, exigindo-se, assim, novas
ferramentas de leitura, especialmente dos campos da economia,
administração, psicologia e sociologia, envoltas sob o foco da “teoria da
tomada de decisão”. A tarefa é multidisciplinar e submetida ao pressuposto
da necessária interação humana sob coordenação de Instituições.
A proposta segue por dois caminhos: a) descritivo do modo como se opera;
e b) prescrito, de como se pode melhorar e mitigar as incertezas
“contratuais”, partindo-se da premissa de que se trata de modalidade de
justiça penal negocial. O vencedor na negociação para o acordo de não
persecução não é o que consegue mais ou menos condenação e sim o que
atinge mais perto a estratégia (objetivo) vinculada à recompensa. Logo, o
domínio profissional das táticas é um ganho estratégico, bem assim as
limitações realísticas da boa-fé e do doping. No mercado instaurado existem
dois lados: compradores e vendedores, com negociações de primeiro nível e
de segundo nível. As de primeiro envolvem as externas
(negociador/investigação ou negociador/acusação vs negociador/defesa),
cujos jogadores – compradores e vendedores – são os protagonistas, enquanto
a de segundo nível as negociações internas (negociadores, mandantes e staff),
tendo em vista as relações entre membros das Instituições, advogados,
defensores, familiares etc. Assim, surge uma tensão entre as negociações
externas – com o lado oposto – e as internas – do mesmo lado –, realizadas
com os “aliados”/familiares/amigos e membros da Instituição. A
complexidade dessas negociações é o que veremos em seguida. Os
Compradores agem em nome do Estado e por meio de Instituições –
Ministério Público – em que são protagonistas as pessoas físicas que ocupam
os respectivos cargos (membros do Ministério Público), que podem ou não
agir em conformidade com as diretrizes gerais da Instituição (obstáculo
mandante-mandatário), conforme indicado pela Escola da Nova Economia
Institucional – NEI73. Entretanto, a ação dos jogadores na compra e venda
exige a coordenação das estratégias e táticas com superiores e subordinados,
implicando “negociações internas”. Já os Vendedores precisam coordenar as
ações entre corréus, advogados, familiares, amigos, inferindo-se complexas
negociações no tocante ao patrimônio, liberdade e reputação.
A formação do mercado da pena e, assim, da compra e venda, com preços
negociados, será o ambiente do acordo de não persecução. Salvo as
negociações simples, realizadas em um único encontro, as demais precisam
de um projeto (draw) e habilidades diferentes. O procedimento perpassa certa
sequência de subjogos/rounds, apresentada adiante, em que se “fecham”
acordos parciais. As variáveis de confiança e boa-fé incidem no momento de
se apresentar as cartas objeto do acordo. As diversas etapas até o termo de
não persecução demandam o estabelecimento de confiança entre os
negociadores, perpassando a superação dos obstáculos estratégicos, de
agência, cognitivos e interativos, capazes de estabelecer a convergência de
recompensas, ou seja, o padrão de ganhos relativos. Comparecem a
assimetria de informações e as antecipações táticas e estratégicas, que fazem
com que a negociação tenha o fator comunicacional como diferenciador. Isso
porque a tensão entre transparência e opacidade faz com que não se coloque
todas as cartas informacionais no primeiro encontro, construindo-se ambiente
de confiança recíproco, autorizador da ampliação do espaço de transparência
a partir de acordos parciais74. Superada a desconfiança entre comprador e
vendedor, surge novo modo de interação. Isso porque o comprador larga em
vantagem, porque seu poder de vetar a continuidade é unilateral, enquanto,
depois de iniciado o procedimento, a vantagem pode passar para o vendedor
que poderá potencializar o resultado positivo. Essa tática pode ser utilizada
como um blefe que, todavia, faz com que o negociador-defesa (advogado ou
defensor) tenha sua reputação desfeita e constitua impeditivo de novos jogos.
É que os compradores têm memória e ninguém gosta de ser enganado, razão
pela qual se tende a não aceitar mais negociar com defensores/advogados que
blefam. O caráter dinâmico da negociação exige que o negociador saiba o
momento correto de colocar as cartas privadas na mesa, a saber, será preciso
timing para compreender o momento de sustentar a atitude cooperativa75. No
jogo da não persecução os jogadores apostam que terão, em face dos
julgadores, a melhor mão probatória capaz de ganhar a partida. Mas isso não
é o suficiente. Será necessário contabilizar os custos do jogo processual
(reputação, tempo, recursos, pena etc.). Mesmo tendo a chance de
condenação/absolvição deve-se antecipar os efeitos – muitas vezes
desastrosos – de se lançar na aventura processual. Há sempre – possíveis –
desgastes para os jogadores. Jogadores profissionais querem obter o máximo
da recompensa, não necessariamente no jogo real isolado, mas no contexto
ampliado do caso penal ou de operações investigativas maiores. Mostrar
fraqueza ou despistar, nas diversas modalidades de blefes pode ser bem útil.
Apostar faz parte do jogo investigatório/processual da delação. A acusação
apresenta, em princípio, as cartas de acusação, enquanto a defesa aposta com
suas cartas ou blefa. Embora a acusação faça a aposta de abertura, sofre as
contingências da dinâmica dos jogos, alterando-se a posição de vantagem. No
acordo de não persecução há uma aposta no escuro em que não se arrisca o
julgamento, já que se faz o acordo.
Em todos os contextos de negociação (interno e externo ao procedimento
negocial) o impasse se estabelece entre a perspectiva de maximizar a
utilidade dos efeitos do negócio jurídico e mitigar/reduzir os riscos e as
incertezas. Além disso, será preciso apurar as externalidades (positivas e
negativas76), ou seja, os efeitos da homologação para com terceiros,
especialmente vítimas. A pretensão de ambos os lados será a de obter o
máximo resultado com o mínimo preço, em opostos, isto é, enquanto o
comprador quer reduzir o valor do desconto das sanções estatais (pena,
multas, sanções gerais), o vendedor pretende ampliar. Será necessária a
obtenção de um ponto médio de vantagens relativas, capaz de criar um núcleo
compartilhado de interesses.
De maneira esquemática, com o auxílio de Mnookin77, é possível apontar
quatro obstáculos no processo de negociação, que servirão de base para
ampliação no contexto do acordo de não persecução: “Primeiro, os
obstáculos estratégicos e os ligados ao problema do mandante e do
mandatário. Os dois outros tipos são de natureza psicológica: um, cognitivo,
se refere à maneira como o espírito humano processa informações,
sobretudo, em situações de avaliação de riscos; o outro resulta da ‘reação
desvalorizadora’ de uma parte em relação à outra”.
O primeiro é o obstáculo estratégico, é fortemente influenciado pela Teoria
dos Jogos. A oposição preliminar de interesses entre compradores e
vendedores de informação no contexto do acordo de não persecução é o
pressuposto para construções de acordos com ganhos relativos, ou seja, não
se ganha tudo, nem se perde tudo. Elaborar o ponto de equilíbrio em que os
jogadores possam se dar por satisfeitos é o desafio dos negociadores para um
acordo de não persecução (ganha-ganha). Será necessária uma leitura da
“Análise Econômica da Litigância e da Negociação”, mediante a apuração de
interesses convergentes e de maximização de ganhos comuns (ganhos
relativos)78. O desafio será o enquadramento da questão/objeto a ser
negociado, demonstrando-se que a cooperação poderá ser vantajosa em face
da dinâmica e custos da manutenção/permanência da litigância. A tática é a
capacidade de criar ambiente de ganhador/ganhador e não de
perdedor/perdedor. A tensão entre a pretensão de divisão equitativa deve
inventariar as possibilidades de compreensão diversa sobre o objeto
negociado e dos ganhos comuns. O desafio será o de iluminar todas as
possibilidades de ganhos comuns. Os protagonistas partem de uma posição de
assimetria de informações no tocante às pretensões recíprocas. Se conhece o
que se conhece e o desconhecido o é por definição. A sombra do
desconhecido pode atuar de modo positivo ou negativo, a depender da
maneira como é encarada. A capacidade de leitura das motivações
subjacentes tocaia a sinceridade do procedimento, dado que paira a
desconfiança de que o adversário não revelou tudo o que podia/queria,
utilizando-se de táticas de blefe, trunfo ou ameaça. A recompensa subjacente
é a variável que pode antecipada com certa capacidade de leitura do caso em
seu contexto.
A revelação das pretensões reais auxilia (mas pode atrapalhar) a
negociação, a depender do momento (leitura do contexto); “abrir o jogo”
pode impossibilitá-lo, ou gerar perdas que seriam desnecessárias. Entretanto,
o paradoxo é que, ao se saber, por exemplo, o valor máximo que o comprador
pagará e o mínimo que o vendedor está disposto a vender, pode se instaurar
controvérsia sobre o ponto de virada. Exemplifico: os negociadores fixam,
antecipadamente, o preço do objeto do acordo, mas não expõem ao
adversário, porque se o fizerem podem gerar problemas: se você sabe que
quero vender o meu celular para você por 800 reais antecipadamente, a
tendência é se valer dessa informação para negociar. Mas se não sabe o
quanto desejo, pode negociar antecipadamente, assim como se eu sei que
você está disposto a pagar até mil reais, tendo a aumentar o meu preço inicial
para 1.200 reais. Adotar certa maleabilidade sobre o preço a ser construído
cooperativamente é tática dominante.
As discussões devem se valer do saber estratégico, associado às reais
potencialidades de consenso, e certo grau de assimetria de informações pode
auxiliar. Por isso, nem sempre o jogo às claras pode ser produtivo. Em cada
contexto deve ser apurada a jogabilidade das recompensas, dada a
(ir)racionalidade da tomada de decisão e o acréscimo ocasional das
recompensas em decorrência da informação advinda da parte contrária.
Entretanto, a obtenção da informação tem um custo e, como tal, a busca de
informação qualificada para servir de mecanismo de ameaça e/ou pressão
pode sair mais caro do que um acordo. O custo agregado à negociação deve
ser levado em conta em todos os momentos, inclusive o tempo para decisão
final (custo de oportunidade).
O segundo obstáculo é o das recompensas conflitantes entre o mandante e
o mandatário79, a saber, entre o jogador primário/mandante e
secundário/mandatário, com recompensas diferentes. Por exemplo, em
negociações entre o Ministério Público, a exigência de “validação” por
superiores, como no caso do Procurador-Geral da República, pode gerar
diferentes recompensas entre os efetivos negociadores e os que tenham o
poder da palavra final, assim como entre o investigado e o seu advogado
negociador que podem ter recompensas diferentes. O advogado/defensor
pode estar motivado para fechar o acordo por fatores externos, especialmente
quando pretende construir uma reputação de cooperação com o comprador ou
estiver trabalhando em diversos casos de acordo de não persecução,
antecipando que a cooperação no caso poderá lhe render benefícios futuros.
Com isso, descortinar as recompensas subjacentes de cada um dos
personagens, mesmo os que aparentemente joguem do mesmo lado, compõe
o quadro de sondagem em relação à comunidade real dos jogadores.
O terceiro é o obstáculo cognitivo: dificuldade de compreensão das ações,
táticas e estratégias em face de ambiente de riscos e incertezas, em que a
emoção e a razão implicam possíveis erros de avaliação, não raro movidos
pelo excesso de confiança. A existência de componentes de crença na sorte
e/ou religioso, ainda, pode ser variável interessante na tomada ofuscada da
decisão, a saber, o critério irracional pode operar e roubar a cena. A
percepção do mundo e da normatividade joga com as coordenadas do sujeito
e as diversas possibilidades de sentido. As características pessoais dos
jogadores (conservadores, temerários ou maníacos; aversão ou adesão ao
risco) são atravessadas pela incerteza sobre o futuro e os jogos paralelos, bem
assim das recompensas subjacentes, potencialmente sempre à espreita,
mesmo que infundadas. Não fomos ensinados a decidir e negociar,
especialmente em ambientes tomados pela incerteza e risco, tendo a
racionalidade apenas como uma variável do complexo dispositivo da decisão
judicial. A variável cognitiva é muito importante, especialmente no tocante à
percepção do resultado, dado que os negociadores podem se focar no que
perderam ou no que ganharam. A alteração da percepção modifica o
incentivo ou não ao acordo. Os negociadores podem ter aversão à perda –
postura que se foca no que será perdido em vez do que ganhou de modo
relativo. Esse viés compõe o mecanismo realístico da tomada de decisão. A
percepção que o sujeito tem da perda pode ofuscar o modo de compreender
as questões. Por exemplo, quem está na posse do objeto em disputa ou da
guarda do filho, tende a pensar a divisão como uma perda, embora se
encaminhe para a tragédia. O obstáculo do enquadramento distorcido do
resultado, associado a crenças excessivamente otimistas, desprovidas de
senso crítico e de certo ceticismo, empurram jogadores ao abismo (excesso
de confiança). A tragédia final não é tida como possível, articulada de modo
distante e ingênuo. O modo como o mesmo fenômeno é percebido altera o
sentido, condicionando os comportamentos à percepção de perda ou de
ganho, mesmo que manipulada. A armadilha lógica da manutenção dos
ganhos previstos implica em desconsiderar o contexto ampliado do caso
investigado. Alternar o modo como se compreender a negociação pode ser
um ganho qualitativo na tomada de decisão, ampliando-se o foco de
percepção das consequências imediatas e a longo prazo.
O quarto obstáculo se estabelece na interação decorrente do procedimento
de negociação e compreende a chamada “reação desvalorizadora” (reactive
devaluation). Parte da pressuposição de que o oponente quer maximizar a
utilidade e, diante disso, as propostas apresentadas devem ter motivações
ocultas/latentes, duvidando-se da sinceridade e da boa-fé do adversário.
Como efeito da dissonância cognitiva, a todo momento da interação as ações
do adversário estão sendo julgadas em face das próprias crenças, fazendo
com que se possa, facilmente, confundir ações de convergência em
armadilhas táticas. Em qualquer negociação de compra e venda a
pressuposição inicial é a de que o vendedor colocou sobrepreço80 (gordura
para queimar) no procedimento de barganha e, com isso, eventual concessão
é tida como insincera, diminuindo a eficácia da tática. Isso porque tende a ser
percebida como uma armadilha previamente delineada e que, no fundo, afasta
a convergência. A assimetria de informações, das recompensas aparentes e
subjacentes, bem assim da desconfiança sobre a boa-fé da proposta pode
gerar atritos comunicacionais81. O desafio do negociador é construir ambiente
capaz de construir cooperativamente propostas capazes de seduzir pelo ganho
relativo. A maneira como as opções são apresentadas e/ou construídas
demanda o desafio de ganhar confiança. Há um momento certo para submeter
novas opções de consenso, tendo em vista a capacidade cognitiva, emocional
e racional dos envolvidos, também considerados os procuradores. Importante
ressaltar que, na tentativa de não ser “enrolado”, a assunção de uma posição
que desconfia de tudo sem estar pautada em análise de jogo pode acabar com
a negociação e é, na verdade, uma das defesas imprestáveis, e denota atitude
preguiçosa/presunçosa (não dá para cortar caminho e não fazer a análise que
a teoria dos jogos inspira) que, cedo ou tarde, evidenciará ao oponente este
trabalho não feito, gerando seu descrédito como negociador. Uma postura “aí
tem coisa” pode ser um tiro no pé se desgarrada dos mínimos indícios da
“coisa”, ainda que intuitivos; até porque, muitas vezes, a constatação da
“coisa” pode beneficiar taticamente o negociador, mas a soma da rigidez com
o prazer viciante e envaidecedor de ser capaz de captar minúcias pode
exatamente agir contra si próprio – muitos são seduzidos, ou viciados, na
necessidade de comprovar suas visões e conclusões, ato inconsciente para
eles, mas que opera como verdadeira recompensa; daí ela se sobrepor à
recompensa real, a que importa, a que está em jogo; e isso é particularmente
peculiar ao universo jurídico (excesso de confiança). Essa característica, se
compuser em algum grau o jurista em negociação, pode lançá-lo em
armadilhas: perceba-se a importância de sondagens das recompensas...
Extremamente necessário é, ainda, modular as reações físicas naturais (sem
falar das verbalizadas), porque o corpo reage sempre e o treino e
conhecimento disso é indispensável (tells). Sabe-se que a maior parte da
comunicação da interação é não verbal, o que respalda a dimensão da
importância – daí se falar na dimensão do “jogo nu”, em nível tal dessa
comunicação, que se joga a descoberto; o mais transparente, aí, está em
desvantagem.
Situados os quatro obstáculos (estratégico, mandante/mandatário,
cognitivo e interacional/procedimental), cabe sublinhar, ainda, do ponto de
vista cognitivo, que a leitura do jogo pode estar turvada por heurísticas e
vieses que impedem a clareza e nitidez da cognição, especialmente pela
pretensão de “obrigar” o oponente a se submeter ao seu ponto de vista. Certa
capacidade de modulação e de atitude cooperativa recíproca será o norte de
qualquer negociação82. O papel dos negociadores, assim, será relevante,
dando-se especial relevo aos detalhes. Uma palavra agressiva/passiva ou
mesmo um simples detalhe – efeito borboleta – pode fazer com que um dos
negociadores se retire da mesa de negociações. No procedimento de
negociação a capacidade de demonstrar as razões de sua proposta, bem assim
de se colocar na posição do adversário, implica em melhorar as condições de
jogabilidade, porque antecipa os obstáculos e abre espaço para manobras
argumentativas de contingência focada nos ganhos relativos convergentes.
O ponto inicial, além da assimetria de informações (um não sabe tudo o
que o outro sabe), parte da tendência de sonegar e proteger a informação
relevante e de valor para fase posterior do procedimento, razão pela qual a
tensão – sigilo e transparência83 – depende do comportamento tático dos
jogadores84. O descortinar das camadas de sigilo depende da confiança
depositada entre os negociadores e no procedimento. O sigilo protege o valor
da informação negociada (seu valor de troca). Se fosse pública, pouco valeria.
O sigilo protege a carta na manga do vendedor de informações e o momento
de revelação deve ser previamente planejado.
Por fim, antever o fracasso da negociação pode ser uma perspectiva
importante. O excesso de confiança, intuitiva e subjetivamente alicerçado,
promove o viés de que tudo vai dar certo, fazendo com que o planejamento
conte com o viés positivo de modo irrealístico. Nem todo fracasso nos
subjogos/rounds da negociação deve ser tido como negativo porque, na
negociação para fechar o acordo, ceder é tática para estratégia de ganhar.
Ademais, sem uma certa dose de risco, mantém-se a lógica da preservação do
conquistado. Jogadas arrojadas e inovadoras, capazes de surpreender o
adversário, compõem a dinâmica do trajeto. A capacidade de detectar o erro e
de promover medidas de contenção é o desafio. Por isso, mesmo com erros
táticos, a estratégia pode ser recomposta, mas não se deve demorar muito a
perceber o “buraco” que se meteu. A rapidez da detecção deve ser aprendida,
com constante vigilância das evidências parciais. O fator tempo de reação
pode ser fatal, justamente porque as relações de confiança no procedimento
precisam ser sustentadas pelos negociadores.
Entender a dimensão do jogo negocial pressupõe, assim, saber perder
batalhas em nome da guerra final. Reconhecer e aprender com o erro,
também, autoriza a melhoria futura da performance. Será preciso habilidade
para customizar as rodadas de negociações ao que o negociador oponente
deseja, dado que o jogo não se joga sozinho. Desconsiderar que a
manutenção da esperança em um resultado parcialmente vantajoso é o que
mantém os negociadores nas mesas, explica muitos dos fracassos de acordos.
Tanto assim que as posturas intransigentes, com pontos fixos inegociáveis,
geram barreiras interacionais (jogadores Rochas). Estar aberto ao novo, às
soluções criativas, portanto, sempre será um ganho em quem aposta no
procedimento, muito mais do que em sua imaginária capacidade de ganhar.
Ao mesmo tempo, pode ser que o fracasso parcial, em uma batalha, seja um
truque do negociador para poder, na rodada seguinte, impor um golpe
fulminante, muitas vezes em face da redução das barreiras do adversário.
Afinal de contas, forçar uma derrota parcial pode ser a tática para conseguir
os resultados pretendidos.
Finalizada a negociação, que poderá ser realizada nos gabinetes respectivos
(recomenda-se a materialização dos encontros), nos moldes do § 3º, o
“acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será
firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu
defensor”, com a posterior designação de audiência pelo Juiz das Garantias
(CPP, art. 3ºB, XVII), para verificação da legalidade e voluntariedade do
agente, por meio de sua oitiva, na presença de defensor (§ 4º). No ato, o Juiz
das Garantias fará juízo sobre o conteúdo das cláusulas, se adequadas,
suficientes e não abusivas. Se positiva, homologará o acordo e, em caso
negativo, devolverá ao Ministério Público para reformulação da proposta,
indicando os parâmetros, a qual deverá contar com a expressa concordância
do investigado e seu defensor (§ 5º). Em todo o caso, o Juiz das Garantias
poderá, nos termos do § 7º, “recusar homologação à proposta que não
atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que
se refere o § 5º” do art. 28-A, do CPP. Cabe Recurso em Sentido Estrito
(CPP, art. 581, XXV) da decisão que recusar homologação ao acordo.
Independentemente do RSE, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público
para analisar a necessidade de complementação das investigações ou
oferecimento da denúncia (§ 8º).
Devidamente cumprido o acordo de não persecução, o Juiz decretará a
extinção da punibilidade (§ 13). Na hipótese de descumprimento, o
Ministério Público deverá comunicar o Juízo para fins de sua rescisão,
garantido o contraditório (preferencialmente em audiência designada para
esse fim), com a posterior possibilidade de denúncia, se necessário (§ 10). O
descumprimento poderá ser motivo para negativa à suspensão condicional do
processo (§ 11).
Nos termos do § 9º, a vítima deve ser cientificada dos termos do acordo e
de eventual descumprimento, mas não há previsão de efetiva participação nas
rodadas, não obstante possa habilitar futuro assistente de acusação e englobar
a reparação civil no contexto do acordo.
É cabível “acordo de não persecução penal” no caso de ação penal privada,
com as sutilezas do controle dos limites do acordo (analogia ao caso de
suspensão condicional do processo, conforme STF, HC 81.720), podendo o
juiz, no caso de negativa do querelante, reconhecer perempção (CP, art. 107,
IV), diante da mora em promover ato de ofício – apresentação da proposta. O
juiz, em qualquer hipótese, pode controlar o fair play e legitimidade das
propostas.
Enfim, o instituto está em fase de acomodação e muitas questões precisam
ser avaliadas no decorrer da implementação85, inclusive sobre o momento
adequado, dado que há controvérsia sobre a possibilidade de ser negociada
depois de recebida a denúncia. Desde já posso arriscar que diante do novo
regime do arquivamento, com controle ideológico e burocrático interno, bem
assim a aversão por novas ações, já que tudo se resolve via negociação, o
futuro do acordo de não persecução é promissor.
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O convite formulado à implementação da lógica acusatória, portanto,


impõe a obrigação de repensar os conceitos consolidados, justamente porque
se tornaram anacrônicos, gerando vieses86 que impedem a devida
compreensão. Cuida-se de modalidade de “Cegueira Deliberada” dos
pressupostos do sistema acusatório em os agentes processuais
conscientemente projetam/fingem o desconhecimento acerca da significativa
alteração das balizas de compreensão do Processo Penal, para o fim de
manter as velhas práticas, na modalidade de esquiva argumentativa
hermenêutica. Afinal de contas, como justificar a inconstitucionalidade do
Parlamento em declarar que o modelo processual penal é acusatório, a não ser
pela postura ativista de esquiva argumentativo retórica.
Pode-se invocar o erro cognitivo dos “custos afundados”, consistente no
fato de se ter investido tanto tempo, esforço e práticas cotidianas
inquisitórias, que se é incapaz de perceber que chegou o momento de mudar
o curso. É comum que as pessoas consertem um veículo e em vez de
venderem, compreendem o gasto como a razão para sua manutenção, quando,
na verdade, é o momento certo de se desfazer. A lógica de que já se investiu
tanto que não vale a pena se desfazer pode ser devastadora87. A aposta
acusatória exige uma postura intolerante com as práticas
autoritárias/inquisitórias. O princípio da inércia tende a ser dominante e sua
alteração exige um movimento consistente e coerente para o fim de modificar
o modelo de processo penal de 1941, pensado na lógica mecanicista, da ação
penal indisponível, sem flexibilidade, com prevalência da ilusória verdade
real88.
Por isso se elegeu a abordagem do Acordo de Não Persecução Penal como
escopo do artigo, demonstrando-se a urgente necessidade de se repensar as
práticas cotidianas da Justiça Negocial, dada a ausência de formação de
treinamentos adequados para a devida compreensão da nova arena do
processo que se transfere, cada vez mais, para antes do exercício da ação
penal. Isso porque os agentes processuais, diante da deficiente formação, em
geral, apresentam dificuldades no procedimento negocial porque valorizam
demais a punição, a aparente vitória na negociação, que o modo de ajuste
ainda demorará a se estabelecer, com diferenças marcantes no cotidiano
forense próximo. Muito disso se deve ao fato de que no ANPP todos devem
ter ganhos relativos e não se pode querer tudo.
Por fim, a discussão sobre a adoção do Sistema Acusatório remonta a
Constituição da República de 1988, em que segundo parte da doutrina, teria
adotado esse modelo, em contraposição ao movimento de manutenção da
lógica e práticas inquisitórias. A produção acadêmica e prática são
amplamente rivais, sem que tenha conseguido, por isso, alterar-se a
prevalência inquisitória. Mesmo com o Pacote Anticrime declarando
expressamente o modelo acusatório, o STF concedeu liminar para suspender
a eficácia do art. 3º, em um jogo ideológico forte (modelo do Juiz Ativista).
Boa parte disso se dá para inconsistência e incoerência das novas disposições
com o modelo de Código de Processo Penal amplamente estruturado em
sintonia inquisitória. Enquanto não for produzida uma versão alternativa
capaz de ser efetivada de modo claro e preciso, os debates internos
permanecerão na lógica da rivalidade improdutiva. Sequer se trata de diálogo,
mas de vociferações de quem é melhor do que o outro, sem espaço de
consenso. Há um movimento autoreferencial de ataque e revide de nada
produtivo. De qualquer forma, as insatisfações recíprocas estão cada vez mais
evidentes, com posições entrincheiradas inclusive no STF. Cabe à doutrina e
aos Tribunais, em cotejo com o CNJ, o papel decisivo de sugerir possíveis
compreensões de como o funcionamento do processo penal acontecerá. Os
desafios se renovam.
CAPÍTULO III

UM ANO DO PACOTE ANTICRIME, CONSEGUIREMOS MUDAR A


CULTURA INQUISITÓRIA?
Aury Lopes Jr.
I. INTRODUÇÃO

A Lei n. 13.964/2019 veio de forma inesperada, pois sua redação final –


felizmente – é completamente diferente da proposta inicial do ex-ministro
Sergio Moro, e trouxe grandes avanços na democratização e
constitucionalização do CPP (ao contrário da proposta inicial). Pretendemos
nesta obra trazer uma panorâmica dos principais pontos da reforma, após 01
ano de vigência.
Lembrando a clássica afirmação de Alberto BINDER89 sobre o ‘fetichismo
normativista’, sabemos todos que não basta mudar a lei, é preciso mudar
‘cabeças’, mudar cultura e mentalidade, esse é o maior desafio. A crença de
que a lei – por si só -dá conta da transformação, é ingênua, ainda que não seja
errada, na medida em que efetivamente a Constituição deveria ‘constituir’ e a
Lei ser cogente, compelir, mandar que sejam os atos feitos segundo sua
determinação. Mas sem dúvida a equação não é tão simples e os espaços
(muitos impróprios) da discricionariedade judicial acabam conduzindo ao
decisionismo. Sem falar que o Brasil possui uma cultura jurídica
“interessante”, pois temos leis que ‘pegam’ e leis que ‘não pegam’, basta ver
o art. 212 do CPP (que deve ressuscitar com a vigência do art. 3-A do CPP e
a consagração expressa do sistema acusatório) e tantos outros.
No fundo, o grande responsável pelo ‘pegar’ ou não, são os juízes e
tribunais, especialmente o STJ, a quem compete (para o bem e também para o
mal) dar a última palavra acerca da interpretação do CPP. Bastou, por
exemplo, o STJ começar a aplicar a famigerada (e errônea) teoria do prejuízo
às nulidades decorrentes da violação do art. 212 para que ele simplesmente
‘não pegasse’ mais. Ou seja, quando um tribunal superior afirma que violar o
art. 212 é uma nulidade relativa, isso passa a ser uma não-nulidade, o que
equivale a dizer, que ninguém mais observa o que está na lei (daí porque, na
linguagem popular, a lei no Brasil ‘não pega’...).
E os exemplos de esvaziamento normativo são inúmeros, especialmente
quando se trata de ampliar a esfera da proteção e garantias dos acusados, ou
seja, de democratizar e constitucionalizar o processo penal. O movimento da
resistência/sabotagem inquisitória90 é realmente fortíssimo, a exemplo da
quantidade de juízes que insistem em «converter de ofício” a prisão em
flagrante em prisão preventiva, violando as regras mais comesinhas do
sistema acusatório e também da mais óbvia interpretação do art. 311, com
aval dos tribunais. Trataremos disso a continuação.
Um dia ainda compreenderemos o grande erro da teoria geral do processo,
da importação inadequada das categorias do processo civil e, principalmente,
levaremos a sério uma regra básica do processo penal: forma é garantia,
forma é limite de poder, forma é legalidade. Vale a regra e não vale tudo.
Portanto, mais do que mudar a lei, precisamos mudar as práticas
judiciárias, a mentalidade dos atores judiciários, para que efetivamente o
novo gere a mudança.
Infelizmente, as principais inovações e evoluções trazidas pela Lei n.
13.964/2019 seguem suspensas por conta da Medida Liminar na Medida
Cautelar nas ADIn’s n. 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 concedida pelo Min.
FUX no dia 22/1/2020, que suspendeu a eficácia de vários dispositivos e,
entre eles, os principais pontos da reforma:
– suspende a expressa recepção pelo CPP do sistema acusatório (art. 3º-A);
– suspende a criação do juiz das garantias, e com isso mantém o sistema
inquisitório antigo, onde o mesmo juiz (contaminado) atua da investigação
até a sentença; – suspende a exclusão física dos autos do inquérito (outra
grande evolução para assegurar que o juiz julgasse com base na “prova” e
não nos atos inquisitórios da investigação, meros atos informativos); –
permite que o juiz que teve contato com a prova ilícita continue no processo e
até repita seu julgamento (art. 157, § 5º), mantendo a suspensão de vigência
já determinada pelo Min. Toffoli; – mantém o atual sistema de arquivamento
do art. 28 (com aquela estrutura inquisitória que permitia o controle por parte
do juiz), suspendendo a implantação de um modelo mais dinâmico e de
acordo com o sistema acusatório, que é o arquivamento determinado e
revisado no âmbito do MP; – especificamente na parte das prisões cautelares,
ele suspendeu apenas a determinação de soltura do preso caso a audiência de
custódia não fosse realizada no prazo de 24h91 (outro avanço importante,
pois consagrava, finalmente, o sistema de prazo com sanção).
Diante disso, vamos analisar como está a aplicação, após um ano de
vigência, das demais alterações trazidas pelo pacote anticrime e que entraram
em vigor, especialmente: - a obrigatoriedade da realização da audiência de
custódia e o impasse gerado pela pandemia COVID-19; - a nova redação do
art. 311 do CPP e a famigerada ‘conversão’ de ofício da prisão em flagrante
em prisão preventiva; - a vedação da concessão de liberdade provisória em
determinados casos, art. 310, § 2º; - o dever de revisar periodicamente a
prisão preventiva, a cada 90 dias, art. 316, parágrafo único; - implantação das
regras da cadeia de custódia da prova, art. 158-A e ss.
Nossa proposta será fazer uma breve análise de cada uma das inovações,
verificando após, como foi a sua aplicação e eficácia ao longo do primeiro
ano de vigência da Lei n. 13.964/2019.
II. A OBRIGATORIEDADE DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

Importante conquista civilizatória foi o dever para o Estado e a garantia


para o cidadão, de ao ser preso, ser imediatamente conduzido a presença de
um juiz para aferição da legalidade dessa prisão. Inicialmente prevista na
Resolução 213 do CNJ, agora consagrada no CPP, a audiência de custódia
entrou de forma tardia e tímida no sistema de justiça brasileiro. O primeiro
erro foi a implantação a la carte, ou seja, não houve uma aplicação linear, em
todas as comarcas, senão apenas nas capitais e principais cidades do país,
gerando uma absurda distinção no tratamento das pessoas tendo como critério
o lugar onde foram presas. Essa desigualdade de tratamento é inadmissível.
Também se questionava acerca da ausência de ‘lei’, na medida em que não
compete(iria) ao CNJ legislar em matéria processual penal, o que, sublinhe-
se, era uma crítica bem pertinente. Por mais nobre que fosse o motivo e
necessária a implantação, a AC precisava de ‘lei’, que finalmente agora
chega. Inacreditável, porém, que ainda encontre resistência no seio da
magistratura, revelando o quanto faz falta, no Brasil, da superação da
mentalidade inquisitória e a implantação, não apenas de uma mentalidade
acusatória, mas também de uma cultura de audiência92 (consectário lógico) e
de oralidade (fundamental para o contraditório efetivo).
A realização da audiência de custódia é direito subjetivo da pessoa presa e
obrigação para o juiz, sendo imprescindível a sua realização sob pena de
ilegalidade da prisão (algo que, como veremos, acabou virando letra morta
para os tribunais). Trata-se de imposição que decorre do art. 7.5 da
Convenção Americana de Direitos Humanos; do art. 9.3 do Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e da Resolução 213/2015 do
CNJ, e que finalmente vem recepcionada no CPP com o advento da Lei n.
13.964/2019, não podendo o magistrado deixar de realizá-la, ressalvada
excepcionalidade idoneamente motivada (Recomendação CNJ 62/2020), sob
pena de incorrer em tríplice responsabilidade (algo que também custamos a
crer que se efetive).
Dessarte, como afirma o Min. CELSO DE MELLO no HC 186.421/SC
(17/07/2020), “esta Corte, em diversos precedentes sobre questão idêntica à
ora em exame, reconheceu a ocorrência de desrespeito à decisão proferida na
ADPF 347-MC/DF, cujo julgamento, impregnado de eficácia vinculante,
proclamou a obrigação da autoridade judiciária competente de promover
audiência de custódia, tendo em vista o fato – juridicamente relevante – de
que a realização desse ato constitui direito subjetivo da pessoa a quem se
impôs prisão cautelar.” Destaca ainda que o direito à audiência de custódia
em caso de prisão em flagrante (mas nós sempre sustentamos que cabe AC
em qualquer espécie de prisão cautelar) é exigível em qualquer caso,
independente da motivação da prisão, da natureza do ato criminoso, mesmo
que se trate de crime hediondo. O preso tem o direito de ser conduzido “sem
demora” à presença da autoridade judiciária, para ser ouvido sobre as
circunstâncias em que se realizou sua precisão e ainda, examinar os aspectos
de legalidade formal e material do autor de prisão em flagrante, nos termos
do art. 310 do CPP. E conclui o Ministro, neste tópico, afirmando “a
essencialidade da audiência de custódia, considerados os fins a que se
destina, que a ausência de sua realização provoca, entre outros efeitos, a
ilegalidade da própria prisão em flagrante, com o consequente
relaxamento da privação cautelar da liberdade da pessoa sob poder do
Estado.” (grifamos).
Importante sublinhar que essa posição do Min. CELSO DE MELLO foi
acolhida, a unanimidade, pela 2ª Turma do STF no HC 188.888/MG, julgado
em 06 de outubro de 2020. Neste julgamento: “a Segunda Turma do Supremo
Tribunal Federal, em julgamento unânime, concedeu, de ofício, o Habeas
Corpus (HC) 188.888/MG, de relatoria do ministro Celso de Mello. Em seu
voto, o ministro deixou assentado que qualquer pessoa presa em flagrante
tem direito público subjetivo à realização, sem demora, da audiência de
custódia, que pode ser efetivada, em situações excepcionais, mediante
utilização do sistema de videoconferência, sob pena de não subsistir a prisão
em flagrante. O ministro Celso de Mello também firmou o entendimento, em
seu voto, de que o magistrado competente não pode converter, ex officio, a
prisão em flagrante em prisão preventiva no contexto da audiência de
custódia, pois essa medida de conversão depende, necessariamente, de
representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério
Público. Nesse mesmo julgamento, também por votação unânime,
reconheceu-se a impossibilidade jurídica de o magistrado, mesmo fora do
contexto da audiência de custódia, decretar, de ofício, a prisão preventiva de
qualquer pessoa submetida a atos de persecução criminal (inquérito policial,
procedimento de investigação criminal ou processo judicial), “tendo em vista
as inovações introduzidas nessa matéria pela recentíssima Lei n.
13.964/2019 (“Lei Anticrime”), que deu particular destaque ao sistema
acusatório adotado pela Constituição, negando ao Juiz competência para a
imposição, ex officio, dessa modalidade de privação cautelar da liberdade
individual do cidadão (CPP, art. 282, §§ 2º e 4º, c/c art. 311)”, conforme o
voto do relator.”93
Portanto, na linha do disposto no art. 310, § 4º, o Min. CELSO DE
MELLO reafirma categoricamente que a não realização da audiência de
custódia, sem motivação idônea, acarreta a ilegalidade da prisão e seu
necessário relaxamento. Infelizmente, como veremos ao final, isso não está
sendo respeitado por muitos tribunais, que acabaram ‘relativizando’ o dever
de realização da AC (como se percebe nas decisões colacionadas abaixo).
É verdade que a Recomendação n. 62 do CNJ acabou sendo o grande
curinga hermenêutico ao longo do ano de 2020 para que as audiências de
custódia não se realizassem, mas uma vez superada a situação fática que a
justificou (pandemia), o cenário terá que mudar e a regra – realização da AC
– deverá ser seguida.
Em síntese, o estado da arte da Audiência de Custódia em 2020 foi: 1)
Pacote anticrime insere a AC no art. 310 CPP e, no seu § 4º, define um marco
da maior importância ao estabelecer a ilegalidade da prisão em razão da não
realização da audiência de custódia em 24h (finalmente a adoção de prazo
com uma sanção). Infelizmente, esse parágrafo está com sua eficácia
suspensa pela decisão liminar do Min. FUX na ADI 6.298/DF.
2) Com o advento da pandemia COVID-19, é publicada a Recomendação
62 CNJ (17/03/2020), cujo artigo 8 recomenda: Art. 8: “Recomendar aos
Tribunais e aos magistrados, em caráter excepcional e exclusivamente
durante o período de restrição sanitária, como forma de reduzir os riscos
epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do
vírus, considerar a pandemia de Covid-19 como motivação idônea, na forma
prevista pelo art. 310, parágrafos 3º e 4º, do Código de Processo Penal, para
a não realização de audiências de custódia. (...)”.
Posteriormente vem a Portaria 61 CNJ (31/03/2020);
Instituiu plataforma emergencial de videoconferência para
audiências/sessões no período do isolamento pela Covid-19.
A continuação o Ato normativo 0004117-63.2020.2.00.0000 CNJ
(10/07/2020);
Veda a realização de audiências de custódia por videoconferência.
E a Resolução 329 CNJ (30/07/2020);
Art. 19: “É vedada a realização por videoconferência das audiências de
custódia previstas nos artigos 287 e 310, ambos do Código de Processo
Penal, e na Resolução CNJ nº 213/2015.”; Síntese: CNJ orientou a não fazer
audiências de custódias durante a pandemia. Em seguida, acertadamente,
instituiu plataforma para realizar as audiências (em geral e não apenas AC)
por videoconferência e, três meses depois, vedou a realização de audiências
de custódia por videoconferência. Por conta desse imbróglio, o STJ decidiu
em várias oportunidades94 que não há ilicitude na não realização de
audiências de custódia em vista da Recomendação 62/CNJ. Outrossim, outros
entendimentos recentes apontam que a não realização da audiência de
custódia é mera irregularidade95. Esperamos e torcemos para que esse
entendimento (não realização = mera irregularidade) do STJ seja
radicalmente alterado após a cessação da pandemia, sob pena de completo
esvaziamento do avanço que representou a instituição da audiência de
custódia.
Mas uma vez superada a pandemia e esvaziada a Recomendação 62 CNJ, a
Audiência de Custódia obrigatoriamente deve ser realizada (exigindo
motivação idônea que justifique a excepcionalidade de sua não realização), e
então surgem novos problemas: 1. A audiência de custódia não deve(ria) se
limitar aos casos de prisão em flagrante, senão que deve(ria) ter aplicação em
toda e qualquer prisão, detenção ou retenção (dicção do art. 7.5 da CADH),
sendo portanto exigível na prisão temporária e também na prisão preventiva
(independente do momento em que seja decretada, inclusive na conversão por
descumprimento da medidas cautelares diversas). Esse ainda é um ponto de
evolução que precisamos, urgentemente atingir. É injustificável a restrição
que acabou sendo imposta pela práxis forense, de realizar audiência de
custódia apenas em caso de prisão em flagrante, para fins de aplicação do art.
310 do CPP.
2. A audiência de custódia precisa ser realizada no prazo de 24h e,
portanto, antes da análise do art. 310, e – obviamente – antes de ser decretada
a prisão preventiva. É lamentável a prática de alguns juízes – ainda que sob o
argumento da celeridade – de fazer a análise do art. 310 em gabinete para,
somente após a decretação da prisão preventiva, realizarem a audiência de
custódia. Isso é puro golpe de cena que esvazia o objetivo e finalidade da AC.
3. Outro ponto sensível é a forma de condução da entrevista com o preso.
Muitos juízes, erroneamente, se limitam a questionar sobre eventual violência
policial ou tortura, como se a audiência de custódia se limitasse a isso
(verificação de violência policial no ato da prisão). Essa não é a finalidade
única da audiência de custódia e sequer deveria ser a principal preocupação
(pois a violência policial e a tortura são patologias, ainda que obviamente não
possam ser desconsideradas). Ao lado da apuração de eventual violência ou
tortura, a AC serve, essencialmente, para as finalidades insculpidas no art.
310 do CPP, a saber, dar conta dos três momentos: 1. decidir se realmente
existe situação de flagrância, isto é, análise fática e jurídica dos requisitos dos
art. 302 e 303 do CPP, para homologação, sob pena de relaxamento da
prisão; 2. verificar se os aspectos formais do auto de prisão em flagrante
foram devidamente observados, especialmente em relação as exigências
contidas nos arts. 304 e 306 do CPP, para homologação do auto de prisão em
flagrante, sob pena de relaxamento da prisão por ilegalidade; 3. finalmente,
havendo pedido de prisão preventiva por parte do ministério público (jamais,
portanto de ofício), conceder liberdade provisória com ou sem fiança e com
ou sem medida cautelar diversa (art. 319), e, em último caso, quando as
medida cautelares diversas se revelarem inadequadas e insuficientes, decretar
a prisão preventiva (medida excepcional e ultima ratio do sistema cautelar).
Aqui são avaliados os requisitos e os princípios que norteiam a prisão
preventiva, ou seja, se existe a real e concreta necessidade cautelar96.
Eis um ponto crucial da audiência de custódia: o contato pessoal do juiz
com o detido. Uma medida fundamental em que, ao mesmo tempo,
humaniza-se o ritual judiciário e criam-se as condições de possibilidade de
uma análise acerca do periculum libertatis, bem como da suficiência e
adequação das medidas cautelares diversas do art. 319 do CPP.
Para dar conta disso, é obvio que a entrevista com preso não pode se
limitar a aferir se houve ou não violência policial, pois o objeto e finalidade
da AC são muito mais amplos e essa oitiva do preso deve dar conta de
fornecer subsídios para as decisões ali tomadas (os três momentos
anteriormente apontados). Uma vez apresentado o preso ao juiz, ele será
informado do direito de silêncio e assegurada será a entrevista prévia com
defensor (particular ou público). Nessa “entrevista” (não é um interrogatório,
portanto), não serão feitas ou admitidas perguntas que antecipem instrução
própria de eventual processo de conhecimento. Nesse sentido, determina o
art. 8º, VIII, da Resolução 213 do CNJ que o juiz (mas também acusação e
defesa) deve se abster de formular perguntas com finalidade de produzir
prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de
prisão em flagrante. Não se trata de interrogatório e não é uma audiência de
instrução e julgamento, mas uma “entrevista” que se destina exclusivamente
a discutir a “custódia”, ou seja, a forma e condições em que foi realizada a
prisão e, ao final, averiguar a medida cautelar diversa mais adequada ou, em
último caso, a decretação da prisão preventiva.
Essa entrevista não deve se prestar para análise do mérito (leia-se, cognição
plena sobre autoria e materialidade), reservada para o interrogatório de
eventual processo de conhecimento. A rigor, limita-se a verificar a legalidade
da prisão em flagrante (e a existência da situação de flagrância) e a presença
ou não dos requisitos da prisão preventiva, bem como permitir uma melhor
análise da(s) medida(s) cautelar(es) diversa(s) adequada(s) ao caso, dando
plenas condições de eficácia do art. 319 do CPP, atualmente restrito, na
prática, à fiança. Infelizmente, como regra, os juízes não utilizam todo o
potencial contido no art. 319 do CPP, muitas vezes até por falta de
informação e conhecimento das circunstâncias do fato e do autor.
Mas isso não significa que, dependendo do caso, não se possa/deva
entrar na situação fática. Todo o oposto. Como saber se é caso de flagrante
ou não, sem entrar no caso penal, quando a tese da defesa pessoal seja capaz
de infirmar a hipótese flagrancial? Se, por exemplo, o réu nega que estivesse
praticando o crime e traz seus argumentos, é preciso ouvi-lo e apurar, ainda
que em sede de fumaça (verossimilhança) sua tese, pois se acolhida, afasta o
flagrante delito do art. 302,I. Idem em relação a questão temporal dos incisos
III e IV, por exemplo. Ou mesmo em relação a permanência do art. 303.
Dessarte, em alguns casos, essa entrevista vai se situar numa tênue
distinção entre forma e conteúdo. O problema surge quando o preso alegar
a falta de fumus commissi delicti, ou seja, negar autoria ou existência do fato
(inclusive atipicidade). Neste caso, suma cautela deverá ter o juiz para não
invadir a seara reservada para o julgamento. Também pensamos que eventual
contradição entre a versão apresentada pelo preso neste momento e aquela
que futuramente venha a utilizar no interrogatório processual não pode ser
usada em seu prejuízo. Em outras palavras, o ideal é que essa entrevista
sequer viesse a integrar os autos do processo, para evitar uma errônea
(des)valoração.
Enfim, não é tão simples, como querem alguns juízes, que simplesmente se
recusam a ouvir, admitir questionamentos e respostas, sobre aquilo que
consideram ‘mérito’. Errado. O que não se pode fazer é pretender ter o
mesmo nível de cognição necessário para julgar o imputado, afirmar
categoricamente autoria e materialidade, por exemplo. Essa é a diferença da
cognição, ela não pode pretender ser igual àquela feita no processo de
conhecimento.
Feita a entrevista pelo juiz, caberá ao Ministério Público e, após, à defesa
técnica, formularem reperguntas ao preso, sempre guardando compatibilidade
com a natureza do ato e as limitações cognitivas inerentes.
Finalizada a entrevista, poderão – Ministério Público e defesa – requerer:
1. O relaxamento da prisão em flagrante (em caso de ilegalidade); 2.
Concessão de liberdade provisória sem ou com aplicação de medida cautelar
diversa (art. 310 c/c art. 319 do CPP); 3. A adoção de outras medidas
necessárias à preservação de direitos da pessoa presa; 4. Como ultima ratio
do sistema, poderá o Ministério Público requerer a decretação da prisão
preventiva (ou mesmo a prisão temporária, observados seus limites de
incidência).
A audiência de custódia representa um grande passo no sentido da
evolução civilizatória do processo penal brasileiro e já chega com muito
atraso, mas ainda assim sofre críticas injustas e infundadas. É também um
instrumento importante para aferir a legalidade das prisões e dar eficácia ao
art. 319 do CPP e às medidas cautelares diversas.
Por derradeiro, destacamos o disposto no art. 310, § 4º que foi
absurdamente suspenso por conta da liminar do Min. FUX e que fortalecia a
importância e obrigatoriedade da audiência de custódia. Esperamos que a
liminar seja cassada e a obrigatoriedade da audiência de custódia, no prazo de
24h, seja reforçada diante da sanção de ilegalidade da prisão se não realizada
no prazo legal.
III. E A CONVERSÃO DE OFÍCIO PELO JUIZ DA PRISÃO EM
FLAGRANTE EM PRISÃO PREVENTIVA?

É inacreditável que a essa altura da história, ainda tenhamos que reafirmar


o absurdo que constitui uma prisão decretada pelo juiz de ofício, em franca
violação do ne procedat iudex ex officio, da estrutura acusatória e também
incompatível com o alheamento necessário para assegurar a imparcialidade
do juiz (inclusive na perspectiva da aparência de imparcialidade).97 Mas no
Brasil, a cultura inquisitória possui uma força inacreditável e não faltam
juízes e tribunais para – em verdadeiro contorcionismo jurídico – tentar
justificar o injustificável.
Seguimos então tentando romper com a cultura inquisitória, que, como se
verá a seguir, não é uma tarefa fácil.
Entendemos e reafirmamos que não pode haver conversão de ofício98 da
prisão em flagrante em preventiva (ou mesmo em prisão temporária). É
imprescindível que exista a representação da autoridade policial ou o
requerimento do Ministério Público. A “conversão” do flagrante em
preventiva equivale à decretação da prisão preventiva. Portanto, à luz das
regras constitucionais do sistema acusatório (ne procedat iudex ex officio) e
da imposição de imparcialidade do juiz (juiz ator = parcial), não lhe incumbe
“prender de ofício”.
Além de violenta afronta ao sistema acusatório constitucional e
convencional, deve-se atentar para o fato de que a Lei n. 13.964/2019
suprimiu a expressão “de ofício” que constava no art. 282, § 2º e do art. 311.
A nova redação dada pelo pacote anticrime ao art. 311 é muito clara: Art.
311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá
a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério
Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade
policial.
Não há mais espaço para uma interpretação que extraia, da clara redação
do artigo, a possibilidade de o juiz prender de ofício, seja na fase pré-
processual, seja na fase processual.
Exatamente nessa linha vem a decisão do Min. CELSO DE MELLO no
HC 186.421/SC, em 17/07/2020, que textualmente afirma que a nova redação
“vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio
‘requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por
representação da autoridade policial ou mediante requerimento do
Ministério Público’, não mais sendo lícito, portanto, com base no
ordenamento jurídico vigente, a atuação ‘ex officio’ do Juízo processante em
tema de privação cautelar da liberdade.”
E enfatiza o Ministro “a significar que se tornou inviável a conversão, de
oficio, da prisão em flagrante de qualquer pessoa em prisão preventiva,
sendo necessária, por isso mesmo, anterior e formal provocação do
Ministério Público, da autoridade policial ou, quando for o caso, do
querelante ou do assistente do MP.”
E conclui o Min. CELSO DE MELLO de forma acertada e precisa que:
“Em suma: tornou-se inadmissível, em face da superveniência da Lei nº
13.964 (“Lei Anticrime”), a conversão, ”ex officio”, da prisão em flagrante
em preventiva, pois a decretação dessa medida cautelar de ordem pessoal
dependerá, sempre, do prévio e necessário requerimento do Ministério
Público, do seu assistente ou do querelante (se for o caso), ou, ainda, de
representação da autoridade policial na fase pré-processual da “persecutio
criminis”, sendo certo, por tal razão, que, em tema de privação e/ou de
restrição cautelar da liberdade, não mais subsiste, em nosso sistema
processual penal, a possibilidade de atuação “ex officio” do magistrado
processante.” (grifei) Essa posição do Min. CELSO DE MELLO foi acolhida,
a unanimidade no julgamento do HC 188.888/MG, onde a 2ª Turma do STF
também firmou o entendimento de “que o magistrado competente não pode
converter, ex officio, a prisão em flagrante em prisão preventiva no contexto
da audiência de custódia, pois essa medida de conversão depende,
necessariamente, de representação da autoridade policial ou de requerimento
do Ministério Público. Nesse mesmo julgamento, também por votação
unânime, reconheceu-se a impossibilidade jurídica de o magistrado, mesmo
fora do contexto da audiência de custódia, decretar, de ofício, a prisão
preventiva de qualquer pessoa submetida a atos de persecução criminal
(inquérito policial, procedimento de investigação criminal ou processo
judicial), “tendo em vista as inovações introduzidas nessa matéria pela
recentíssima Lei n. 13.964/2019 (“Lei Anticrime”), que deu particular
destaque ao sistema acusatório adotado pela Constituição, negando ao Juiz
competência para a imposição, ex officio, dessa modalidade de privação
cautelar da liberdade individual do cidadão (CPP, art. 282, §§ 2º e 4º, c/c art.
311)”, conforme o voto do relator.”99
Diante de um cenário tão claro de qual é o standard de legalidade da prisão
cautelar, não é exagero considerar que, em tese, comete o crime de abuso de
autoridade previsto no art. 9º da Lei n. 13.869/2019, o juiz que ‘converte’ de
ofício’ uma prisão em flagrante em prisão preventiva, na medida em que
preenche os elementos do tipo penal: Decretar medida de privação da
liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais. Pena –
detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Inobstante tudo isso, o movimento da resistência inquisitória persiste,
desconsiderando a Constituição, o CPP e a decisão do STF, infelizmente.
Nesse sentido, é decepcionante ler a decisão da 6ª Turma do STJ
(inclusive, proferida depois da decisão citada, do Min. Celso de Mello) no
HC 583.995 onde por maioria de votos – vencidos os Ministros Sebastião
Reis Jr. e Néfi Cordeiro – foi reafirmada a possibilidade da conversão de
ofício da prisão em flagrante em prisão preventiva.
Como noticiado no site do STJ (acórdão ainda não estava disponível no
momento da elaboração da presente obra) “para a Sexta Turma do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), em situações excepcionais, é possível a conversão
da prisão em flagrante em medida cautelar pessoal, inclusive a prisão
preventiva, mesmo sem pedido expresso do Ministério Público ou da
autoridade policial. O colegiado, por maioria, negou habeas corpus a um
indivíduo acusado de homicídio tentado, cuja prisão em flagrante fora
convertida em preventiva pelo juiz plantonista, com fundamento na
necessidade de assegurar a aplicação da lei penal e garantir a ordem pública.
A defesa sustentou a ilegalidade do decreto de prisão preventiva, por não ter
havido requerimento do MP nem representação policial – o que seria
contrário ao art. 311 do Código de Processo Penal (CPP), com a nova redação
dada pela Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Segundo consta do
processo, a audiência de custódia deixou de ser realizada com base em
orientações oficiais para a prevenção do novo coronavírus. O ministro
Rogerio Schietti Cruz – autor do voto que prevaleceu no julgamento –
afirmou que, com a edição da Lei n. 13.964/2019, não mais se permite que o
juiz, mesmo no curso da ação penal, adote a prisão preventiva sem
provocação do MP. Para o ministro, a imparcialidade do juiz que conduz a
causa – ou, mais ainda, daquele que supervisiona a investigação preliminar –
poderia ser colocada em risco caso lhe fosse autorizado decretar a prisão ou
outra medida cautelar sem pedido do órgão com atribuição legal para tanto.
Schietti ressaltou, porém, que o art. 282, parágrafo 5º, do CPP permite ao
juiz, com ou sem pedido das partes, revogar medidas cautelares ou substituí-
las se verificar que não mais há motivo para sua manutenção, bem como
voltar a decretá-las caso encontre razões para isso. A propósito, o ministro
lembrou que a redação anterior do art. 311 do CPP autorizava a decretação da
preventiva de ofício, no curso da ação. Com o Pacote Anticrime, passou a ser
indispensável o pedido do MP, da polícia ou do querelante (no caso da ação
penal privada). No entanto – apontou –, a conversão do flagrante em prisão
preventiva é uma situação à parte, que não se confunde com a decisão judicial
que simplesmente decreta a preventiva ou qualquer outra cautelar. Quando há
o flagrante – explicou o ministro –, a situação é de urgência, pois a pessoa já
está presa e a lei impõe ao juiz, independentemente de qualquer provocação,
a obrigação imediata de verificar a legalidade dessa prisão e a eventual
necessidade de convertê-la em preventiva ou de adotar outra medida.”
“Para Schietti, a conversão nem deveria ser vista propriamente como um
ato de ofício, já que a lei obriga o juiz a optar entre uma das hipóteses
indicadas no CPP. Essa decisão, em regra, será adotada em uma audiência de
custódia, com a presença de representantes do MP e da defesa, ocasião em
que as partes, inevitavelmente, irão se manifestar sobre a eventual conversão
da prisão – porém, como destacou Schietti, a audiência pode não se realizar
no prazo legal por alguma razão justificável, a exemplo do que ocorreu no
caso em julgamento. Em tais situações, a providência mais prudente – na
opinião do ministro – seria abrir vista ao órgão do Ministério Público, para se
pronunciar sobre o flagrante e sua possível conversão em preventiva ou outra
cautela, mas isso implicaria atraso na decisão, em prejuízo do autuado.
Schietti alertou que simplesmente conceder liberdade provisória ao preso,
independentemente do risco que isso venha a representar para a sociedade,
seria desconsiderar outros fatores que estão em jogo além do interesse
individual do autuado. Assim, “a conversão do flagrante em prisão preventiva
e o envio imediato dos autos ao MP, em contraditório diferido, não se mostra
medida ilegal ou arbitrária”. Mesmo reconhecendo que esta não é a solução
ideal, o ministro comentou que ela atende à exigência de uma decisão no
prazo legal. Ele apontou que o parágrafo 4º do artigo 310 do CPP, que manda
relaxar a prisão caso não seja realizada a audiência de custódia em 48 horas
após o flagrante, está suspenso por liminar do Supremo Tribunal Federal.
Enquanto não houver uma definição sobre tal questão, disse Schietti, a pura e
simples anulação da prisão preventiva, por ausência de requerimento
expresso para a conversão, pode ser uma “providência açodada”, diante da
falta de clareza sobre as inovações legais. O voto do ministro Schietti foi
seguido pela ministra Laurita Vaz e pelo ministro Antonio Saldanha Palheiro,
ficando vencidos os ministros Sebastião Reis Júnior e Nefi Cordeiro.”100
Não concordamos com a posição do ministro, pelos motivos já externados
anteriormente (desnecessário repetir), sublinhando a insustentabilidade do
argumento de que ‘converter’ não é o mesmo que ‘decretar’, pois faticamente
é. Também não se justifica o argumento da urgência, na medida em que a
ilegalidade da prisão de oficio não justifica e só agrava a situação. O discurso
da urgência sempre serviu exatamente para esse fim utilitarista e punitivista,
como argumento coringa para limitação de direitos e garantias fundamentais,
ou seja, para violação das regras do devido processo. Como afirma o
ministro, sua decisão não é o ideal (então não deveria ter decidido assim),
mas atende a exigência de uma decisão no prazo legal. Ora, um típico caso de
remédio cujos efeitos são mais gravosos que a própria doença que se propõe a
curar... O argumento, não se sustenta.
Por derradeiro, não existe nenhuma falta de clareza nas ‘inovações legais’.
O texto é claro, unívoco e, como se não bastasse, veio como uma resposta a
décadas de crítica por parte da doutrina. Enfim, nos resta lamentar a
persistência de uma leitura tão retrógrada e a esperança de que essa posição
não persista, e que se opere – finalmente – uma superação da cultura
inquisitória.
IV. VEDAÇÃO DE CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA –
ART. 310, § 2º.

O art. 310, § 2º, inserido na reforma trazida pela Lei n. 13.964/2019 é um


grande retrocesso, além de ser – a nosso juízo – inconstitucional. Diz o
dispositivo em tela: § 2º Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que
integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo
de uso restrito, deverá denegar a liberdade provisória, com ou sem medidas
cautelares.
Inicialmente é criticável o já conhecido bis in idem da reincidência, ou
seja, a dupla (ou mais) punição pela mesma circunstância (reincidência) já tão
criticada pela doutrina penal. Depois o artigo elege, à la carte e sem critério
para justificar, determinadas condutas para proibir (inconstitucionalmente) a
concessão de liberdade provisória. Inclusive, considerando que se trata de
prisão em flagrante, dependendo do caso, é praticamente inviável já se ter
uma prova suficiente de que o agente, por exemplo, é membro de uma
organização criminosa ou milícia, para aplicar o dispositivo.
Mas o ponto nevrálgico do problema está na vedação de concessão de
liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares, pelos seguintes
fundamentos: – cria uma prisão em flagrante que se prolonga no tempo,
violando a natureza pré-cautelar do flagrante; – estabelece uma prisão
(pré)cautelar obrigatória, sem necessidade cautelar e sem que se demonstre o
periculum libertatis; – viola toda principiologia cautelar, já analisada;
– por fim é flagrantemente inconstitucional, pois o STF já se manifestou
nesse sentido em casos análogos (como na declaração de
inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072 e casos posteriores).
O STF já afirmou e reafirmou que é inconstitucional as regras (como a
constante na lei de drogas, mas também já o fez em relação a lei dos crimes
hediondos e outras) que vedam a concessão de liberdade provisória, inclusive
em decisão que teve repercussão geral reconhecida: Recurso extraordinário.
2. Constitucional. Processo Penal. Tráfico de drogas. Vedação legal de
liberdade provisória. Interpretação dos incisos XLIII e LXVI do art. 5º da CF.
3. Reafirmação de jurisprudência. 4. Proposta de fixação da seguinte tese: É
inconstitucional a expressão e liberdade provisória, constante do caput do art.
44 da Lei n.11.343/2006. 5. Negado provimento ao recurso extraordinário
interposto pelo Ministério Público Federal. [RE 1.038.925 RG, Rel. Min.
Gilmar Mendes, P, j. 18-8-2017, DJE de 19-9-2017, Tema 959.]
101
Como noticiado no site do STF, “o Supremo Tribunal Federal (STF)
reafirmou sua jurisprudência no sentido da inconstitucionalidade de regra
prevista na Lei de Drogas (Lei n. 11.343/2006) que veda a concessão de
liberdade provisória a presos acusados de tráfico. A decisão foi tomada pelo
Plenário Virtual no Recurso Extraordinário (RE) 1.038.925, com repercussão
geral reconhecida”. Em maio de 2012, no julgamento do Habeas Corpus
(HC) 104.339, o Plenário do STF havia declarado, incidentalmente, a
inconstitucionalidade da expressão “liberdade provisória” do art. 44 da Lei de
Drogas. Com isso, o Supremo passou a admitir prisão cautelar por tráfico
apenas se verificado, no caso concreto, a presença de algum dos requisitos do
artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP). Desde então, essa decisão
serve de parâmetro para o STF, mas não vinculava os demais tribunais. Com
a reafirmação da jurisprudência com status de repercussão geral, esse
entendimento deve ser aplicado pelas demais instâncias em casos análogos.
Portanto, a vedação de concessão de liberdade provisória contida no art.
310 para certos tipos de crimes é claramente inconstitucional. Mas, apenas
para esclarecer, isso não impede, obviamente, que uma prisão em flagrante
exista e posteriormente seja decretada a prisão preventiva, mediante
requerimento do MP ou representação da autoridade policial, desde que
presentes os requisitos legais da prisão preventiva, que serão estudados a
continuação.
Mas e a jurisprudência, como está lidando com esse dispositivo?
Incrivelmente encontramos diversos acórdãos de tribunais de segundo grau
aplicando acriticamente o dispositivo e chancelando a manutenção da prisão
em flagrante com base no art. 310, §2º. Mas em todos os casos analisados,
houve a posterior decretação da prisão preventiva como uma decorrência
automática do flagrante homologado e que se encaixavam na situação do §
2º. Então não se manteve a prisão apenas com o título de flagrante, mas se
naturalizou a consequente prisão preventiva decorrente da prisão em flagrante
por esses crimes (quase uma presunção de necessidade cautelar que é
incompatível com a presunção de inocência).
Ainda não há – pelo menos até o fechamento deste texto – uma
manifestação clara e categórica do STF, sequer de alguma das turmas.
Esperamos que o STF mantenha a coerência em relação aos julgados
anteriormente citados, que sempre foram no sentido de afirmar a
inconstitucionalidade da vedação de concessão de liberdade provisória.
Aguardemos.
V. O DEVER DE REVISAR PERIODICAMENTE A PRISÃO
PREVENTIVA

Mais uma importante inovação do pacote anticrime foi o art .316,


especialmente no parágrafo único, que consagra – finalmente – o dever de
revisar periodicamente a prisão preventiva: Art. 316. O juiz poderá, de ofício
ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da
investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela
subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a
justifiquem.
Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor
da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa)
dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão
ilegal.
O caput do artigo diz respeito ao Princípio da Provisionalidade, no sentido
de que a prisão preventiva é situacional, tutelando uma situação fática de
perigo. A inovação diz respeito ao parágrafo único, que finalmente contempla
o dever de revisar periodicamente a prisão preventiva, a cada 90 dias.
Infelizmente seguimos sem um prazo máximo global de duração da prisão
preventiva.
O dever de revisar a medida é imperioso e a sanção está expressamente
prevista na lei (a prisão preventiva passa a ser ilegal se não realizada), então é
prazo com sanção e obrigatória observância.
Mas e os juízes e tribunais, como estão lidando com o dever de revisar
periodicamente a prisão preventiva?
A matéria também foi afetada pela Recomendação nº 62/CNJ:
Art. 4º, I, c: “Recomendar aos magistrados com competência para a fase
de conhecimento criminal que, com vistas à redução dos riscos
epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do
vírus, considerem as seguintes medidas: I – a reavaliação das prisões
provisórias, nos termos do art. 316, do Código de Processo Penal,
priorizando-se: (...) c) prisões preventivas que tenham excedido o prazo de
90 (noventa) dias ou que estejam relacionadas a crimes praticados sem
violência ou grave ameaça à pessoa;”
Com isso o CNJ não apenas reconhece o dever de revisar periodicamente,
como recomenda que os juízes considerem a superação do prazo de 90 dias
como um dos motivos para concessão da prisão domiciliar.
Mas para além disso, como foi o tratamento no STJ?
Infelizmente o STJ dá sinais de relativização do dever de revisar
periodicamente, especialmente no que se refere à concessão de liberdade pela
não observância da exigência legal, o que é lamentável. Nesse sentido a
decisão da 6ª Turma102:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. SUPERAÇÃO DO
ÓBICE DA SÚMULA N. 691 DO STF. IMPOSSIBILIDADE. REAVALIAÇÃO
PERIÓDICA DOS FUNDAMENTOS DA PRISÃO PREVENTIVA A CADA 90
DIAS. ART. 316, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPP. PRAZO NÃO
PEREMPTÓRIO. EXCESSO DE PRAZO. NÃO OCORRÊNCIA. RISCO DA
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS E DESENVOLVIMENTO DA COVID-19.
AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. (...) 2. A nova redação do art.
316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, operada pela Lei n.
13.964/2019, determina a reavaliação periódica dos fundamentos que
indicaram a necessidade da custódia cautelar a cada 90 dias. “Contudo, não
se trata de termo peremptório, isto é, eventual atraso na execução deste ato
não implica automático reconhecimento da ilegalidade da prisão, tampouco
a imediata colocação do custodiado cautelar em liberdade” (AgRg no HC n.
580.323/RS, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª T., DJe
15/6/2020). (...) 6. Agravo regimental não provido. (AgRg no HC
588.513/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA,
julgado em 30/06/2020, DJe 04/08/2020)
Também a 5ª Turma se manifestou no mesmo sentido no HABEAS
CORPUS n. 589.993 – BA (2020/0145854-2): Trata-se de habeas corpus
com pedido de liminar impetrado em favor de MAGNO RODRIGUES SILVA
contra decisão de Desembargador integrante do TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO ESTADO DA BAHIA, que indeferiu a liminar no HC n. 8015129-
93.2020.8.05.0000.
(...)
Por outro lado, ainda que tivesse sido ultrapassado o prazo estabelecido no
art. 316, Parágrafo Único, do CPP, tal fato, por si só, não ensejaria a
revogação da prisão cautelar do Paciente, mas tão-somente a sua reavaliação,
o que, como visto acima, já foi realizado por esta Egrégia Corte de Justiça.
(HC 589.993/BA, Min. Jorge Mussi, 01/07/2020) Também esvaziando a
evolução esperada, na medida em que desconsidera a aplicação da sanção em
caso de violação do dever de revisar periodicamente: AGRAVO
REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO INDEFERIDA
LIMINARMENTE. SÚMULA 691/STF. AUSÊNCIA DE PATENTE
ILEGALIDADE. HOMICÍDIO QUALIFICADO. NECESSIDADE DE
REAVALIAR A PRISÃO CAUTELAR A CADA 90 DIAS.
INTELIGÊNCIA DO ART. 316, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPP. PRAZO
NÃO PEREMPTÓRIO. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO.
MODUS OPERANDI. RÉU COM REGISTRO DE DIVERSOS
PROCEDIMENTOS CRIMINAIS. RISCO DE REITERAÇÃO.
NECESSIDADE DE ASSEGURAR A ORDEM PÚBLICA. CONDIÇÕES
FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
(...) 3. Além disso, com o fim de assegurar que a prisão não se estenda por
período superior ao necessário, configurando verdadeiro cumprimento
antecipado da pena, a alteração promovida pela Lei nº 13.964/2019 ao art.
316 do Código Penal estabeleceu que o magistrado revisará a cada 90 dias a
necessidade da manutenção da prisão, mediante decisão fundamentada, sob
pena de tornar a prisão ilegal. 4. Necessário, porém, assim como se deve
proceder em relação a um ocasional excesso de prazo na formação da culpa,
considerar que para o reconhecimento de eventual constrangimento ilegal
pela demora no reexame obrigatório da custódia cautelar, exige-se uma
aferição realizada pelo julgador, à luz dos princípios da razoabilidade e
proporcionalidade, levando em conta as peculiaridades do caso concreto, de
modo a evitar retardo abusivo e injustificado na prestação jurisdicional. 5.
Ora, é certo que em respeito ao princípio da dignidade humana, bem como
ao da presunção de não culpabilidade, o reexame da presença dos requisitos
autorizadores da prisão preventiva deve ser realizado a cada 90 dias, nos
termos da novel norma processual. Contudo, não se trata de termo
peremptório, isto é, eventual atraso na execução deste ato não implica
automático reconhecimento da ilegalidade da prisão, tampouco a imediata
colocação do custodiado cautelar em liberdade. (...) (AgRg no HC
580.323/RS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA
TURMA, julgado em 02/06/2020, DJe 15/06/2020)
Enfim, o que infelizmente se percebe é que o STJ (e os tribunais inferiores,
que já seguem a mesma linha, como regra) está esvaziando – uma vez mais –
uma das grandes inovações trazidas pelo pacote anticrime. Ao relativizar a
sanção decorrente da violação do dever legal, o STJ acaba por sepultar o
dever de revisar periodicamente a prisão preventiva, pois no Brasil, prazo
sem sanção é igual a ineficácia da proteção ao direito fundamental que se
pretendia tutelar. Uma pena.
No STF o cenário não é diferente, principalmente após a polêmica
estabelecida no midiático caso “André do Rap” (MEDIDA CAUTELAR n.
HABEAS CORPUS 191.836 SÃO PAULO). Com isso, o entendimento
passou a ser de flexibilização do dever de revisar (desconsiderando, portanto,
a previsão de ilegalidade) ou ainda, reconhecer a violação, mas determinar
que o juiz decretante faça a revisão, isto é, realize a análise sobre a
manutenção ou não dos requisitos legais. Ao final desse julgamento, por
maioria, ficou decido firmar a seguinte tese: “A inobservância do prazo
nonagesimal do Artigo 316, do CPP, não implica automática revogação da
prisão preventiva, devendo o juiz competente ser instado a reavaliar a
legalidade e a atualidade dos seus fundamentos.”
Em última análise, tanto STJ como STF deram uma interpretação de
tamanha relativização e flexibilização que o dever de revisar a medida sob
pena de ilegalidade virou – uma vez mais – letra morta, ou seja, ‘uma lei que
não pegou’. Ainda que se argumente que o dever de revisar persiste, ao tirar a
eficácia da sanção (ilegalidade) se operou o completo esvaziamento do
dispositivo. Restou, ao final, apenas uma possibilidade de a defesa requerer, a
cada 90 dias, que o juiz profira uma decisão fundamentada no sentido de
manter ou não a prisão preventiva, sendo que nenhuma sanção advirá da
inobservância desse prazo.
E quando o processo está em fase recursal, pois enquanto estiver em
primeiro grau compete ao juiz das garantias (até a fase do art. 399) ou ao juiz
da instrução, a quem compete a revisão periódica?
Iniciemos por uma posição do STJ – com a qual não podemos concordar –
que afirma a inaplicabilidade do controle de duração da prisão preventiva
quando o feito estiver em grau recursal: PROCESSO PENAL. PEDIDO DE
RECONSIDERAÇÃO NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS.
REAVALIAÇÃO DA PRISÃO CAUTELAR PELO TRIBUNAL DE
ORIGEM.ART. 316, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPP. INAPLICABILIDADE.
RECURSO NÃO PROVIDO.1. O pedido de reconsideração será recebido
como agravo regimental, diante da ausência de previsão regimental para a
utilização desse instrumento contra decisão do Relator, bem como em
homenagem aos princípios da fungibilidade recursal e da instrumentalidade
das formas.2. Nos termos do parágrafo único do art. 316 do CPP, a revisão,
de ofício, da necessidade de manutenção da prisão cautelar, a cada 90 dias,
cabe tão somente ao órgão emissor da decisão (ou seja, ao julgador que a
decretou inicialmente).3. O caput do art. 316 do CPP, ao normatizar o tema,
previamente dispõe o limite temporal da providência judicial – “no correr da
investigação ou do processo”.4. Seja diante de uma interpretação
sistemática do CPP, seja porque a lei “não contém palavras inúteis”,
conclui-se que a aplicação dos referidos dispositivos restringe-se tão
somente à fase de conhecimento da ação penal. Isto é, o reexame da
necessidade da prisão cautelar, de ofício, deve ser feito desde a fase
investigatória até o fim da instrução criminal, quando ainda não se tem um
juízo de certeza sobre a culpa do réu e, sendo assim, com muito mais razão,
o julgador deve estar atento em conferir celeridade ao feito e em restringir a
liberdade apenas de acusados que representem risco concreto à instrução
criminal, à aplicação da lei penal e à ordem pública.5. Em complementação,
ressalta-se que a observância da referida norma pelos Tribunais de Justiça e
Federais, quando em autuação como órgãos revisores (grau recursal),
inviabilizaria sobremaneira o trabalho das Cortes de Justiça, cuja jurisdição
abrange inúmeras Varas e Comarcas em todo o país. Outra questão de
ordem prática seria a dificuldade de o Tribunal recursal se manter
atualizado sobre a situação do réu, ao tempo do julgamento do pedido de
reavaliação, devido ao distanciamento das Varas e Comarcas de origem, o
que poderia ocasionar uma apreciação equivocada sobre a necessidade da
prisão cautelar. Por exemplo, a fuga do estabelecimento prisional –
fundamento bastante para a manutenção do encarceramento provisório –
poderia ser informada tardiamente ao Desembargador relator. 6. Pontue-se,
também, que o sistema processual penal prevê meios de impugnação
próprios a serem dirigidos aos Tribunais, nos casos de coação ilegal à
liberdade de locomoção do réu. Inclusive, nada impede que a defesa a cada
90 dias, em tempo maior ou menor, renove nas Cortes de Justiça o pedido de
relaxamento da prisão cautelar por excesso de prazo. Ou mesmo, pleiteie a
revogação da prisão cautelar quando do surgimento de um fato novo,
utilizando-se, dentre outros, o habeas corpus.7. Portanto, a norma contida no
parágrafo único do art. 316 do Código de Processo Penal não se aplica aos
Tribunais de Justiça e Federais, quando em atuação como órgão revisor. 8.
Agravo regimental não provido. (AgRg no HC 569.701/SP, Rel. Ministro
RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 09/06/2020, DJe
17/06/2020)
Além de muito preocupante e equivocada, é lamentável qualquer tentativa
de não aplicação do controle de duração da prisão preventiva, quando o
processo estiver em grau recursal.
Não podemos concordar com tal interpretação e nos parece que os tribunais
não estão e nem poderiam estar imunes ao controle do prazo, inclusive do
direito de ser julgado em um prazo razoável (art. 5º, LXXVIII da CF).
Pensamos que segue sendo de competência do juiz de primeiro grau, pois
ele é o “órgão emissor da decisão» a que se refere o art. 316, parágrafo único.
Contudo, é verdade que ele já esgotou sua jurisdição, de modo que o feito
está afeto ao respectivo tribunal. Então, como sugere PAULO QUEIROZ103,
podemos tratar o tema na seguinte perspectiva: a) a revisão dos fundamentos
da prisão preventiva é imperiosa enquanto não passar em julgado a
condenação; b) enquanto não for proferida a sentença, caberá ao juiz (ou
relator nas ações penais originárias) fazer o reexame obrigatório; c) interposta
apelação, competirá ao tribunal reapreciar a prisão; d) o tribunal poderá
delegar essa função ao juiz que proferiu a sentença condenatória.”
Estamos de acordo com a proposta de QUEIROZ, destacando que o mais
importante é: em grau recursal, ou o tribunal faz a revisão (relator) ou delega
para que o juiz de primeiro grau o faça. O que não se deve admitir é a
violação do imperativo legal, deixando de fazer o controle periódico da
existência ou não da necessidade cautelar, da situacionalidade que a legitima,
o que nos remete sempre para a base principiológica analisada anteriormente.
Dessarte, tudo indica que predominará – inclusive no STF – o
entendimento do STJ de que não se aplica o dever de revisar a medida
quando o feito já estiver em tribunais de justiça ou regional federal (e, com
mais razão, quando afeto ao STJ ou STF).
VI. A (INCONSTITUCIONAL) EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA
APÓS A DECISÃO DE PRIMEIRO GRAU NO TRIBUNAL DO JÚRI

Mais um ponto problemático trazidos pelo pacote anticrime foi a inserção


da alínea “e”, no art. 492, com a determinação de execução antecipada da
pena, quando for igual ou superior a 15 anos.
Sem dúvida um grande erro do legislador, pois (resumidamente):
– viola a presunção constitucional de inocência, na medida em que trata o
réu como culpado, executando antecipadamente sua pena, sem respeitar o
marco constitucional do trânsito em julgado; – se o STF já reconheceu ser
inconstitucional a execução antecipada após a decisão de segundo grau, com
muito mais razão é inconstitucional a execução antecipada após uma decisão
de primeiro grau (o tribunal do júri é um órgão colegiado, mas integrante do
primeiro grau de jurisdição); – da decisão do júri cabe apelação em que
podem ser amplamente discutidas questões formais e de mérito, inclusive
com o tribunal avaliando se a decisão dos jurados encontrou ou não abrigo na
prova, sendo um erro gigantesco autorizar a execução antecipada após essa
primeira decisão; – tanto a instituição do júri como a soberania dos jurados
estão inseridos no rol de direitos e garantias individuais, não podendo servir
de argumento para o sacrifício da liberdade do próprio réu; – ao não se
revestir de caráter cautelar, sem, portanto, analisar o periculum libertatis e a
necessidade efetiva da prisão, se converte em uma prisão irracional,
desproporcional e perigosíssima, dada a real possibilidade de reversão já em
segundo grau (sem mencionar ainda a possibilidade de reversão em sede de
recurso especial e extraordinário); – a soberania dos jurados não é um
argumento válido para justificar a execução antecipada, pois é um atributo
que não serve como legitimador de prisão, mas sim como garantia de
independência dos jurados; – é incompatível com o disposto no art. 313, § 2º,
que expressamente prevê que “não será admitida a decretação da prisão
preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena”.
Na mesma linha, trazendo ainda outros argumentos, PAULO QUEIROZ104
afirma que, “além de incoerente e ilógica, é claramente inconstitucional, visto
que: 1) ofende o princípio da presunção de inocência, segundo o qual
ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória (CF, art. 5°, LVII), razão pela qual toda medida cautelar
há de exigir cautelaridade, especialmente a prisão preventiva; 2) viola o
princípio da isonomia, já que condenações por crimes análogos e mais graves
(v.g., condenação a 30 anos de reclusão por latrocínio) não admitem tal
exceção, razão pela qual a prisão preventiva exige sempre cautelaridade; 3)
estabelece critérios facilmente manipuláveis e incompatíveis com o princípio
da legalidade penal, notadamente a pena aplicada pelo juiz-presidente; 4)o só
fato de o réu sofrer uma condenação mais ou menos grave não o faz mais ou
menos culpado, já que a culpabilidade tem a ver com a prova produzida nos
autos e com os critérios de valoração da prova, não com o quanto de pena
aplicado; 5)a gravidade do crime é sempre uma condição necessária, mas
nunca uma condição suficiente para a decretação e manutenção de prisão
preventiva. Como é óbvio, a exceção está em manifesta contradição com o
novo art. 313, § 2º, que diz: Não será admitida a decretação da prisão
preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena.”
RECURSO EM HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. HOMICÍDIO
QUALIFICADO. CUMPRIMENTO IMEDIATO DE SENTENÇA. TRIBUNAL
DO JÚRI. FUNDAMENTAÇÃO GENÉRICA. ILEGALIDADE.
OCORRÊNCIA. SENTENÇA ANTERIOR À VIGÊNCIA DO ATUAL ART.
492, I, E, DO CPP. PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE DA NORMA
PROCESSUAL. NÃO APLICABILIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. É
pacífica a jurisprudência desta Corte Superior no sentido de ser ilegal a
decisão que nega o direito de recorrer em liberdade sem a indicação de
elementos concretos, fundada apenas na premissa de que deve ser executada
prontamente a condenação preferida pelo Tribunal de Júri. 2. Não
apresentada motivação concreta para a custódia cautelar na sentença, que
apenas faz referência genérica ao fato de ter o paciente respondido preso ao
processo e à pena aplicada ao paciente pelo Tribunal de Júri, há manifesta
ilegalidade. 3. O art. 492, I, e, do CPP, com redação dada pela Lei n.
13.964/2019, embora violador ao constitucional princípio da presunção de
inocência, não pode de todo modo ser retroativamente aplicado, incidindo
em sentença prolatada em data anterior a sua vigência. 4. Recurso em
Habeas corpus provido para determinar a soltura do recorrente ELIZEU
JOSE DOS SANTOS, o que não impede a fixação de medida cautelar diversa
da prisão, por decisão fundamentada. (RHC 124.377/MS, Rel. Ministro NEFI
CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 09/06/2020, DJe 16/06/2020)
Além de afirmar a inaplicabilidade da prisão automática e sem necessidade
cautelar concreta, ainda destaca a impossibilidade e dar efeito retroativo a tal
dispositivo.
No TJSP, encontramos decisões nos dois sentidos:
Defendendo a execução antecipada da pena aplicada pelo júri: Habeas
Corpus – Homicídio qualificado – Sentença condenatória – Pleito de
concessão do direito de recorrer em liberdade. R. sentença condenatória que
decretou a segregação cautelar, de forma fundamentada, embasada no art.
492, inciso I, alínea “e”, do Código de Processo Penal, em vigor e,
portanto, apto a ser cumprido – Inexistência de constrangimento ilegal.
Ordem denegada. (TJSP; Habeas Corpus Criminal 2053381-
88.2020.8.26.0000; Relator (a): Ely Amioka; Órgão Julgador: 8ª Câmara de
Direito Criminal; Foro de Sumaré – 1ª Vara Criminal; Data do Julgamento:
28/04/2020; Data de Registro: 28/04/2020).
Contrário à aplicação da execução antecipada: HABEAS CORPUS.
TRIBUNAL DO JÚRI. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. Paciente
condenado a 31 (trinta e um) anos, 1 (um) mês e 18 (dezoito) dias de
reclusão, em regime inicial fechado, como incurso, por duas vezes, nos arts.
121, §2º, incisos I e IV e 211, ambos do Código Penal. Determinada a
execução provisória da pena com a consequente expedição do mandado de
prisão com fundamento no artigo 492, inciso I, alínea “e”, do Código de
Processo Penal, com redação atribuída pela novel Lei n. 13.964/2019.
Impossibilidade. Inviabilidade do cumprimento provisório da pena
pendente o feito de trânsito em julgado da condenação. Ações Diretas de
Constitucionalidade n. 43, 44 e 54, julgadas em conjunto no âmbito do
Colendo Supremo Tribunal Federal. Constitucionalidade da regra do
Código de Processo Penal que prevê o esgotamento de todas as
possibilidades de recurso para o início do cumprimento da pena.
ORDEM CONCEDIDA. (TJSP; Habeas Corpus Criminal 2042353-
26.2020.8.26.0000; Relator (a): Camargo Aranha Filho; Órgão Julgador: 16ª
Câmara de Direito Criminal; Foro Central Criminal – Júri – 2ª Vara do Júri;
Data do Julgamento: 03/04/2020; Data de Registro: 03/04/2020) Interessante
ainda a seguinte decisão proferida pelo TJRS:
HABEAS CORPUS. JÚRI. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA
DETERMINADA EM PLENÁRIO. ART. 492, I, E, C/C § 4º, DO CPP.
POSICIONAMENTO DO RELATOR, QUANTO À
INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA, RESSALVADO. ANÁLISE
DO CASO CONCRETO QUE, DE QUALQUER FORMA, AUTORIZA A
LIBERDADE PROVISÓRIA. INTELIGÊNCIA DOS §§ 5º E 6º DO MESMO
DISPOSITIVO LEGAL. A legalidade da prisão determinada nos termos do
art. 492, I, e, c/c § 4º, do CPP não impede o deferimento de pedido
revogatório, quando esse atende ao disposto no § 6º e, além disso, se
mostram presentes as hipóteses do § 5º, ambos do mesmo dispositivo legal.
Caso concreto em que restou evidenciado que a pena aplicada na sentença
condenatória de origem será, fatalmente, reduzida a montante inferior a 15
(quinze) anos de reclusão, o que autoriza, nos termos das citadas normas
processuais, a atribuição de efeito suspensivo à apelação interposta pelo
paciente, e consequente liberdade provisória, já que permaneceu solto
durante todos os 12 (doze) anos em que o feito tramitou. ORDEM
CONCEDIDA. UNÂNIME.
E no voto do relator, ainda encontramos importantes considerações: “A
partir daqui, por estar agora adentrando no mérito, entendo pertinente fazer
um parêntese antes de prosseguir na ratificação do que foi por mim decidido,
a fim de destacar meu entendimento pessoal acerca dos dispositivos legais
acima mencionados, que entendo inconstitucionais. Isso porque, já estando
estabelecida, atualmente, a inconstitucionalidade da prisão decorrente de
condenação em segunda instância, mostra-se absoluta e incontestavelmente
afrontoso ao princípio da isonomia entender possível a execução provisória
de pena aplicada em decisão de instância inferior, como a proferida pelo
Tribunal do Júri, pois a principiologia constitucional aplicável (
precipuamente a presunção de inocência ) é exatamente a mesma nos dois
casos. Com efeito, o veredicto do Tribunal do Júri é decisão de primeiro
grau, e se submete ao duplo grau de jurisdição com limites que, embora
maiores que os de apelações em processos comuns, são menores que os
limites pelos quais uma decisão de segunda instância se submete à revisão de
terceira instância. Então, se nesse último caso a execução provisória da pena
não se justifica, por inconstitucional, não vislumbro qualquer razão de
ordem lógica para que no primeiro caso se a entenda justificável e
constitucional. E nem se cogite, para tanto, invocar a soberania dos
veredictos, pois, para além de não ser ela absoluta (o próprio art. 593, III,
do CPP a excepciona), sua força equivale à de uma decisão de mérito
proferida em segunda instância, de modo que a prevalência deve continuar
sendo, em qualquer caso (e, repito: por questão de isonomia), do princípio
da presunção de inocência. É nesses termos, então, que considero
absolutamente afrontosas à Constituição Federal, e com ela incompatíveis,
as determinações contidas no atual art. 492, I, alínea e, in fine, c/c o § 4º, do
CPP.” (Habeas Corpus Criminal, n. 70084112770, Segunda Câmara
Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Mello Guimarães, Julgado
em: 27-04-2020) Percebemos assim, uma acertada resistência por parte de
alguns tribunais e também por parte do STJ em fazer uma aplicação
automática e acrítica da execução antecipada da pena, aplicada em primeiro
grau pelo tribunal do júri, até por conta da recente decisão do STF no sentido
da inconstitucionalidade da execução antecipada após a decisão de 2º grau. A
matéria é bastante sensível e graves suas consequências, ainda que nos pareça
elementar e flagrante a inconstitucionalidade do dispositivo, como
explicamos no início desse tópico. Mas é preciso esperar o que dirá o STF,
pois a matéria será a ele submetida, antevendo-se um julgamento
extremamente preocupante, pois com a aposentadoria do Min. Celso de
Mello e as declarações favoráveis feitas pelo Min. Dias Toffoli no passado,
há sinais de que o STF pode – absurda e paradoxalmente – afirmar ser
constitucional a execução antecipada em primeiro grau, mesmo tendo
declarado inconstitucional a execução da pena após a decisão de segundo
grau.
VII. CADEIA DE CUSTÓDIA DA PROVA E AS CONSEQUÊNCIAS
DA QUEBRA

Mais uma importante inovação legislativa (pois doutrinariamente a matéria


já era por todos conhecida) trazida pelo pacote anticrime foi a
regulamentação da cadeia de custódia da prova, nos arts. 158-A e ss. A
cadeia de custódia da prova nos remete ao conjunto de procedimentos,
concatenados, como elos de uma corrente, que se destina a preservar a
integridade da prova, sua legalidade e confiabilidade. Uma corrente que liga
duas pontas, que vai da identificação dos vestígios até o seu descarte. A
quebra equivale ao rompimento de um dos elos da corrente.
É preciso considerar que haverá diferentes morfologias da cadeia de
custódia conforme o tipo de prova que estamos tratando. Uma prova pericial
de exame de DNA, por exemplo, possui especificidades que obrigam ao
estabelecimento de determinada rotina de coleta, transporte, armazenagem,
análise etc. que será completamente diferente da perícia sobre o material
obtido em uma interceptação telefônica, por exemplo.
Dados como local do crime, temperatura, condições meteorológicas,
condições específicas de transporte e armazenagem, nada dizem quando se
trata de uma interceptação telefônica, mas são absolutamente cruciais em se
tratando de coleta de DNA. Essa especificidade também irá se refletir no
tema da ‘quebra da cadeia de custódia’, como explicaremos a continuação.
Como explica GERALDO PRADO105, a alteração das fontes contamina os
meios e sua não preservação afeta a credibilidade desses meios. De nada
adianta argumentar em torno do “livre convencimento motivado”, pois
existem standards de validade não disponíveis, que asseguram o caráter
racional-legal da decisão e a imuniza dos espaços impróprios da
discricionariedade e do decisionismo (o absurdo “decido conforme a minha
consciência”, exaustivamente denunciado por LENIO STRECK). Para essa
preservação das fontes de prova, através da manutenção da cadeia de
custódia, exige a prática de uma série de atos, um verdadeiro protocolo de
custódia, cujo passo a passo vem dado pelo art. 158-B e s.
Mas sem dúvida a questão mais tormentosa, especialmente diante da
omissão do legislador, é a definição das consequências da quebra da
cadeia de custódia (break on the chain of custody).
Como explicamos em outra oportunidade106, preferimos pensar a quebra da
cadeia de custódia como temática diretamente vinculada as regras do devido
processo penal, na medida em que significa o descumprimento de uma
forma-garantia. Portanto, como regra, deve conduzir ao campo da ilicitude
probatória, devendo esbarrar no filtro da admissibilidade/inadmissibilidade.
Utilizando o mesmo raciocínio desenvolvido ao tratar das invalidades
processuais, em que a violação da forma traz atrelada a lesão a um direito
fundamental, é preciso compreender que a disciplina da cadeia de custódia é
um meio para o cumprimento de regras probatórias diretamente vinculadas à
concepção de devido processo penal. Dessarte, quebrar a cadeia de custódia é
violar as regras que a definem e, portanto, é violar o devido processo.
A quebra da cadeia de custódia faz com que ela seja considerada uma
prova ilícita, na medida em que, na dicção do art. 157 do CPP, viola
normas legais (CPP). Sendo prova ilícita, não deve ser admitida (esbarra no
filtro de admissibilidade que é o segundo momento da prova), mas se já
estiver incorporada ao processo (quando a quebra é detectada posteriormente
ao ingresso, por exemplo, ou se produz no curso do próprio processo), deve
ser declarada ilícita, desentranhada e proibida a valoração probatória.
Não se desconhece, entretanto, posição doutrinária diversa, que situa a
quebra da cadeia de custódia no campo da ‘valoração’, ou seja, superado o
filtro da admissibilidade, avalia-se a violação das regras na valoração
probatória feita na decisão final. Para tanto, argumenta-se que as regras da
cadeia de custódia servem para acreditação da prova, para assegurar sua
credibilidade e confiabilidade, de modo que a inobservância vai afetar essa
dimensão. Caberia ao juiz, quando da decisão final, valorar ou desvalorar
aquela prova em que houve o rompimento de um elo da cadeia de custódia.
Afeta, assim, a credibilidade da prova produzida, que terá maior ou menor
valor conforme a gravidade da quebra da cadeia de custódia.
Não se descarta a aplicação desse raciocínio quando a violação da forma
for irrelevante diante daquele específico meio de prova, pois como dissemos
no início, existem diferentes morfologias da cadeia de custódia conforme o
tipo de prova que estamos tutelando. Logo, excepcionalmente, a questão
poderá se resolver no filtro de valoração e não no de admissão da prova.
Mas essa posição não pode ser aplicada de forma geral, na medida em que
comete o grave erro de desconectar a problemática das regras do devido
processo e de uma premissa básica: forma é legalidade, forma é garantia.
Portanto, a quebra situa-se na perspectiva de violação mais ampla das regras
probatórias. Também conduz a um terreno perigosíssimo do decisionismo,
dos espaços impróprios da discricionariedade judicial, na ingênua ‘crença na
bondade dos bons’. Desloca para uma crença excessiva na valoração dos
juízes, desconsiderando que existe uma violação prévia da legalidade que
deveria ter conduzido para a inadmissibilidade. Em outras palavras, as regras
probatórias servem para interditar o conhecimento do juiz, na medida em que
houve a violação da legalidade.
Diante de tão importante instituto, como têm se manifestado os
tribunais, especialmente no que tange à quebra da cadeia de custódia da
prova?
Infelizmente, uma vez mais, os tribunais sinalizam – como regra geral,
sempre ressalvando a existência de meritórias exceções, em todos os temas,
por elementar – uma imensa dificuldade em aceitar o ‘novo’, romper com a
concepção utilitarista e punitivista, para efetivamente fazer valer as regras do
devido processo penal constitucional.
De início já se percebe um rigor de que a defesa comprove efetivamente a
quebra da cadeia de custódia, o que não está errado. O problema inicia
quando se exige que a defesa comprove a ocorrência de interferência na
prova, e, o que é mais grave, quando associam o instituto com a
demonstração de prejuízo. Exemplos: HABEAS CORPUS. LATROCÍNIO.
NULIDADES E PEDIDOS NÃO APRECIADOS NO TRIBUNAL A QUO.
SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO QUE
DETERMINOU A BUSCA E APREENSÃO. DEVASSAS NOS
SMARTPHONES APREENDIDOS. INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS E
NO APLICATIVO WHATSAPP.
EXISTÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PRÉVIA. AUSÊNCIA DE
PROVA SOBRE A QUEBRA DA CADEIA DE CUSTÓDIA.
CONDENAÇÃO QUE NÃO TEVE POR BASE NENHUMA PROVA
ORIUNDA DA DEVASSA NOS APARELHOS APREENDIDOS. AUSÊNCIA
DE PREJUÍZO AOS PACIENTES. HABEAS CORPUS DENEGADO.
(...)
3. Não se verifica a alegada “quebra da cadeia de custódia”, pois nenhum
elemento veio aos autos a demonstrar que houve adulteração da prova,
alteração na ordem cronológica dos diálogos ou mesmo interferência de
quem quer que seja, a ponto de invalidar a prova.(...) (HC 574.131/RS, Rel.
Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 25/08/2020, DJe
04/09/2020)
E ainda:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. NULIDADE
DA SENTENÇA POR VIOLAÇÃO AOS INCISOS II E III DO ART. 381 DO
CPP. NULIDADE DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS.
INEXISTÊNCIA. AUSÊNCIA DA CADEIA DE CUSTÓDIA DE EVIDÊNCIA.
CRIME DA LEI 12.850/2013 (ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA) E DELITO
DO ART. 334 DO CP. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO.
COMPROVAÇÃO. DOSIMETRIA. (...) 9. Descabe falar em ausência de
cadeia de custódia quando inexistir suspeita de fraude em relação às provas
colhidas durante a interceptação telefônica e quando ausente a
demonstração de prejuízo apto a sustentar a nulidade da prova e, por
consequência, da ação penal. (...) (TRF4, ACR 5001720-22.2016.4.04.7011,
OITAVA TURMA, Relator para Acórdão JOÃO PEDRO GEBRAN NETO,
juntado aos autos em 14/02/2020)
Não apenas nestas, mas em outras decisões analisadas, verificamos uma
tendência de aplicação restritiva por parte dos tribunais em relação ao
instituto e às consequências da quebra da cadeia de custódia. Em geral tem
predominado a visão consequencialista da prova com a relativização da forma
e, por consequência, admissão da prova obtida com a quebra da cadeia de
custódia, ainda que usando recursos argumentativos como ‘não foi a única
prova’, não foi ‘decisiva’, ou – o que é pior e mais grave – invocando a
ausência de demonstração de prejuízo. Não se pode confundir ilicitude
probatória com nulidade. Ambas se situam, é verdade, no campo da ilicitude
processual, mas com matrizes diversas. A teoria do prejuízo, como já
explicamos107, é uma equivocada importação do processo civil,
absolutamente inadequada para o processo penal, onde forma é legalidade, é
limite de poder. Ademais, inviável sua aplicação para admitir uma prova
ilícita, pois quebrada a cadeia de custódia. O prejuízo é a própria ilegalidade.
Enfim, a efetivação da garantia da preservação da cadeia de custódia da
prova vai encontrar ainda muita resistência com base no argumento da ‘falta’,
ou seja, na ‘falta’ de condições materiais e pessoais dos órgãos estatais
encarregados da preservação. Já existem manifestações no sentido de que o
CPP foi excessivamente minucioso e que é inviável efetivar a garantia com a
precariedade dos órgãos encarregados da realização das perícias. Com isso,
uma vez mais vamos transformar em normal o anormal funcionamento das
agências estatais, em franco detrimento dos indivíduos, neste caso, dos
acusados, desconsiderando que o caminho civilizatório é outro: incumbe aos
Estados se aparelharem para dar conta da qualidade dos serviços necessários
para a correta prestação jurisdicional e redução do erro judiciário, e não aos
réus serem novamente sacrificados pelas falhas, faltas e precariedades dos
agentes públicos.
No fundo de todas as questões trazidas está, uma vez mais, a imensa
dificuldade em romper com a cultura inquisitória, para a efetivação do projeto
democrático da Constituição, de fortalecimento do sistema de garantias
individuais, com a implantação de um processo penal acusatório, que
assegure a imparcialidade do juiz e o real e efetivo contraditório (inclusive na
perspectiva da igualdade cognitiva).
Ainda teremos um longo caminho pela frente, sempre temendo que o STJ e
demais tribunais ‘relativizem’ a gravidade da violação da forma-garantia,
fazendo com que mudanças importantes virem letra morta, com que
dispositivos legais cogentes ‘não peguem’, enfim, sepultando a reforma e
fazendo com que tudo continue como sempre foi, mantendo o processo penal
brasileiro como o mais atrasado, inquisitório e autoritário da américa latina.
Esperamos que não.
1 Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jan-03/limite-penal-estrutura-
acusatoria-atacada-msi-movimento-sabotagem-inquisitoria>.
2 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial
Trotta, 2000, p. 33-89.
3 O Ministro LUIZ FUX, do STF, em decisão monocrática, datada de 22/01/20, suspendeu,
por tempo indeterminado, a eficácia de alguns dispositvos da Lei, sobretudo os que dizem
respeito ao juiz de garantias, atingindo em cheio o núcleo acusatório da reforma.
4 Para uma leitura aprofundada sobre a tradição autoritária do Direito e Processo Penal
brasileiros indico: SALES, José Edvaldo Pereira. A tradição jurídico-penal brasileira e
o garantismo de Luigi Ferrajoli: das tensões à busca hermenêutica por diálogos
perdidos. Tese apresentada ao programa de Pós Graduação em Direito do Instituto de
Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará e depositada na biblioteca da referida
IES. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma
genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. Florianópolis: Tirant lo
Blanch, 2018, v. 1.
5 PINHO, Ana Cláudia Bastos de; SALES, José Edvaldo Pereira. “Lei Anticrime”: uma
leitura possível a partir do garantismo jurídico-penal. In: Boletim IBCCRIM, ano 28, n.
331, p. 4-6, junho de 2020.
6 Sobre o tema, remeto à excelente pesquisa de Marcelo Semer: Sentenciando o tráfico: o
papel dos juízes no grande encarceramento. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.
7 Nas palavras de Ferrajoli: “El primer aspecto de la epistemología antigarantista es la
concepción no formalista ni convencionalista, sino ontológica o sustancialista, de la
desviación penalmente relevante. Según esta concepción, objeto de conocimiento y de
tratamiento penal no es tanto ni sólo el delito en cuanto formalmente previsto como tal
por la ley, sino la desviación criminal en cuanto en sí misma inmoral o antisocial y, más
allá de ella, la persona del delincuente, de cuya maldad o antisocialidad el delito es
visto como una manifestación contingente, suficiente pero no siempre necesaria para
justificar el castigo” (In Derecho Y Razón… p. 41) (grifos nossos).
8 Importante notar que o uso da expressão “segurança pública” é sintomático.
Compreender uma importante alteração legislativa no campo penal como parte de uma
estratégia governamental de segurança púbica (lembrando que o Ministério da Justiça, no
atual governo, recebeu o complemento de “e da Segurança Pública”) é admitir que se está
partindo de uma concepção politico-criminal de Defesa Social, em que, o Direito e o
Processo Penal se apresentam como mecanismos aptos a empreender a “luta contra o
crime”, num claro paradigma de Estado de Polícia (Zaffaroni). Ou seja, um total
desvirtuamento do perfil traçado pelo Constituinte de 88, em que Direito e Processo
Penal não estão à disposição do poder, senão que são o seu próprio controle e limite
(Estado de Direito).
9 Segundo veiculado na imprensa, o motivo da derrota de Sérgio Moro, nesse particular,
deveu-se a uma reação do Presidente da Câmara, Deputado Rodrigo Maia que, fazendo
alusão ao então recente episódio de violência policial que redundou no homicídio da
criança Agatha, no Rio de Janeiro, manifestou justificada preocupação com a aprovação
de uma proposta de lei que ampliava as hipóteses de legítima defesa, sobretudo a agentes
policiais e de segurança pública. Sobre o tema, ver reportagem da Revista Veja.
Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/grupo-na-camara-retira-excludente-de-
ilicitude-do-pacote-anticrime/ >. Acesso em: 23 out. 2020.
10 “O excesso por defeito na dimensão intelectual da conduta constitui erro de
representação, pelo qual o sujeito representa como existente realidade inexistente (por
exemplo, a continuação de agressão cessada), configurando erro de tipo permissivo, com
imediata exclusão de dolo – podendo excluir também a imprudência, se “plenamente
justificado pelas circunstâncias” (CP, art. 20,§1º)”. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito
Penal: Parte Geral. 6. ed. Curitiba: ICPC Cursos e Edições, 2014, p. 320.
11 Juarez Cirino dos Santos (Direito Penal: Parte Geral, cit., pp. 328 – 332), por exemplo,
defende que, em casos de legítima defesa real ou putativa, os excessos podem ser
exculpáveis em situações afetivas de medo, de susto ou de perturbação. Nesse viés,
Cirino dos Santos assevera que a redução dos controles e a anormalidade psicológica
causada por esses estados afetivos fundamentam exculpação do excesso de legítima
defesa, ainda que não estejam previstas no Código Penal.
12 Nunca é demais lembrar que a polícia brasileira é, por tradição violenta (principalmente
contra as classes subalternas) e uma das que mais mata (e também, morre), no mundo.
Também importante registrar que não são raras as ocorrências de reações desmedidas de
policiais (pensemos nos episódios seguidos nas favelas cariocas, em que pessoas
inocentes – não raro crianças – foram covardemente assassinadas), a bem demonstrar
que, ao invés de ampliar o leque das justificantes e dirimentes, nesses casos, o que se
precisa é de controle no exercício do poder.
13 Para uma análise completa dos bastidores e contexto da lei de Crimes Hediondos,
conferir: Alberto Silva Franco et. al, Crimes Hediondos. 7. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011.
14 Disponível em: <https://www.politize.com.br/4-projetos-de-iniciativa-popular-que-
viraram-leis/>. Acesso em: 23 out. 2020
15 Importante referir que segue em tramitação o Projeto de Lei n. 236/2012 no Senado
Federal (Autoria do Senador José Sarney) que objetiva proporcionar uma mudança
significativa na legislação penal, a partir da aprovação de um novo Código Penal. No
entanto, o Pacote Anticrime furou a fila e foi aprovado em menos de um ano. Sobre o
projeto de Lei n. 236/2012, acessar:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404 >. Acesso em:
04 nov. 2020.
16 Sobre o tema, buscar Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347.
Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4783560>.
Acesso em 04 nov. 2020.
17 De acordo com o último levantamento divulgado pelo Departamento Penitenciário
Nacional (Depen), o Brasil possui 755.274 pessoas privadas de liberdade. Disponível em:
< http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen-lanca-infopen-com-dados-de-dezembro-de-
2019>. Acesso em: 04 nov. 2020
18 AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL.
LIVRAMENTO CONDICIONAL E PROGRESSÃO DE REGIME. EXAME
CRIMINOLÓGICO. IMPOSSIBILIDADE DE INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA ÀS
RESTRIÇÕES DO DECRETO DE INDULTO/COMUTAÇÃO. ATO
DISCRICIONÁRIO DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO
SISTEMÁTICA E TELEOLÓGICA PARA DEFERIMENTO DE INDULTO. PACOTE
ANTICRIME. AGRAVO DESPROVIDO. 1. Não se permite interpretação extensiva das
restrições contidas no decreto concessivo de comutação/indulto. Em outras palavras, não
se pode criar demais restrições à concessão da benesse que não sejam aquelas versadas
expressamente na norma presidencial. A leitura que deve ser feita da lei é aquela com
base em interpretação que empreste à norma maior concretude possível, porém sempre
mantendo como vetor exegético os princípios insculpidos na Constituição Federal. 2. Se
para o indeferimento da comutação pela prática de falta grave é necessário que a referida
infração disciplinar seja verificada nos 12 meses anteriores à publicação do Decreto
concessivo, não há razão para que, no caso de progressão de regime e livramento
condicional tal lapso de tempo não seja igualmente observado. 3. Interpretação
sistemática e teleológica do art. 4º, inciso IV do Decreto 9.246/2017, com seu inciso I. 4.
De acordo com o art. 83, III, do Código Penal (redação dada pela Lei 13.964/2019),
falta grave praticada há mais de 12 meses não pode obstar a concessão do
livramento condicional. 5. Agravo regimental desprovido. (STJ – AgRg no HC: 587.663
SP 2020/0136418-4, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento:
08/09/2020, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/09/2020. (grifos nossos)
19 Salo de Carvalho. Penas e Garantias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
20 AGRAVO EM EXECUÇÃO. LIVRAMENTO CONDICIONAL. A introdução da regra
agora prevista no art. 83, III, alínea “b” do CP, por meio da Lei nº. 13.964/19, conhecida
como o “Pacote Anticrime”, modificou de forma restritiva a previsão do requisito
subjetivo para fins de livramento condicional, inserindo a exigência de inexistência de
falta grave – com previsão de limite temporal para aferição do requisito (12 meses) -,
assim vedando a concessão do benefício ao preso que tenha falhado em seu
comportamento disciplinar. Trata-se, portanto, de novatio legis in pejus, cuja
retroatividade é vedada pelos art. 5º, XL da CF e 2º do CP. Nova lei aplicável apenas
aos casos em que a falta grave foi praticada já na sua vigência, porque, se a norma de
natureza penal mais gravosa institui como baliza o cometimento de falta disciplinar de
natureza grave, em um determinado período, para fins de concessão do beneplácito, é
esse o marco a ser considerado para definição da anterioridade ou não da novidade
legislativa. Inaplicabilidade do art. 83, III, alínea “b” do CP ao caso concreto, em
que praticada a falta grave pelo agravante em 14.04.2019, antes da vigência da novel
legislação. Situação, contudo, que não conduz ao implemento dos requisitos para o
livramento condicional. Benefício cuja concessão assenta-se, desde muito antes das
inovações introduzidas pela Lei nº. 13.964/19, na conjugação favorável dos requisitos
objetivos e subjetivos a informarem modificação de comportamento e condições que
permitam ao apenado retornar ao convívio social. Nunca houve óbice à que o histórico
carcerário do preso fosse considerado para a análise do requisito subjetivo à obtenção dos
benefícios execucionais, sobretudo o livramento condicional, que exige que o detento
demonstre senso de responsabilidade compatível com a vida em liberdade. O mérito do
apenado, para a liberdade condicionada, diz com a totalidade do período de cumprimento
da pena, sobrelevando, além do atestado de conduta carcerária, questões outras, ligadas
diretamente ao comportamento do preso, durante o tempo de expiação, como o registro,
ou não, de faltas graves. Hipótese na qual o preso, ainda que implementado o requisito
objetivo, ostenta falta grave recente, de elevada gravidade, consistente no cometimento
de novos crimes dolosos (tráfico de drogas, porte ilegal de arma de fogo, corrupção de
menores e receptação), no curso de prisão domiciliar. Decisão monocrática mantida.
AGRAVO IMPROVIDO, POR MAIORIA.(Agravo de Execução Penal, n. 70084230770,
Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Fabianne Breton Baisch,
Julgado em: 24-06-2020) (grifos nossos).
21 EMENTA: AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL – PRELIMINAR – DECISÃO
FUNDAMENTADA NA LEI 13.964/19 (PACOTE ANTICRIME) – RETROATIVADE
DE LEI MAIS GRAVOSA – NÃO OCORRÊNCIA – NULIDADE DO DECISUM –
INVIABILIDADE – DECISÃO FUNDAMENTADA – MÉRITO – PROGRESSÃO DE
REGIME – NECESSIDADE – UTILIZAÇÃO DE FALTAS GRAVES QUE
ENSEJARAM A REGRESSÃO DO REGIME PRISIONAL PARA AFERIÇÃO DO
REQUISITO SUBJETIVO – CONFIGURAÇÃO DE BIS IN IDEM – IMPLEMENTO
DOS REQUISITOS OBJETIVO E SUBJETIVO – LIVRAMENTO CONDICIONAL -
COMPORTAMENTO INSATISFATÓRIO NO CURSO DA EXECUÇÃO –
MANUTENÇÃO DO INDEFERIMENTO DO BENEFÍCIO, MAS COM
RECOMENDAÇÃO. – A Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que aperfeiçoa a
legislação penal e processual penal, alterou o requisito objetivo do artigo 112 da Lei de
Execução Penal para criar percentuais gradativos para crimes comuns, hediondos, bem
como aos primários e reincidentes para o cálculo diferenciado para a progressão de
regime. – O requisito subjetivo para a concessão da progressão permanece idêntico e, tão
somente, foi deslocado do caput da redação anterior, para o §1°, do artigo 112 da Lei de
Execução Penal. – Se apenas o requisito subjetivo foi utilizado para negar a
progressão de regime ao apenado, não houve qualquer prejuízo ou retroatividade de
lei mais gravosa. – Embora as faltas graves mencionadas na decisão recorrida sejam
anteriores ao Pacote Anticrime, segundo o Enunciado 12, da I Jornada de Direito Penal e
Processo Penal do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal
(CEJ/CJF) “O requisito previsto no art. 83, III, b, do Código Penal, consistente em o
agente não ter cometido falta grave nos últimos 12 (doze) meses, poderá ser
valorado, com base no caso concreto, para fins de concessão de livramento
condicional quanto a fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei 13.964/2019,
sendo interpretado como comportamento insatisfatório durante a execução da
pena”. – Considerando que o il. Magistrado a quo indic ou as razões que o levaram a
concluir pela impossibilidade de concessão dos benefícios da execução requeridos pela
defesa técnica, não há que se falar em ausência de fundamentação, ofensa à Constituição
Federal ou em inobservância da legislação processual penal. – Descabida a utilização das
faltas graves que ensejaram a regressão de regime para considerar o requisito subjetivo
reprovável para fins de nova concessão da progressão de regime, sob pena de violação ao
princípio non bis in idem. – A prática de falta grave pode ser considerada como
comportamento insatisfatório no curso da pena, o que obsta a concessão do benefício do
livramento condicional, pois, indica que o agravado pode frustrar os fins educativos da
pena já que demonstrou senso de irresponsabilidade e indisciplina. Assim, inviável a
concessão do benefício de livramento condicional, eis que não preenchidos os requisitos
do art. 83, III, do Código Penal. – Recomenda-se que o MM. Juiz da Vara de Execução
reaprecie a possibilidade de concessão do benefício diante da proximidade do decurso de
um ano da prática da última falta grave. (TJMG – Agravo em Execução Penal
1.0271.18.000075-1/003, Relator(a): Des.(a) Paula Cunha e Silva , 6ª C MARA
CRIMINAL, julgamento em 08/09/0020, publicação da súmula em 09/09/2020) (grifos
nossos).
22 Ainda sobre a distinção entre arma própria e arma imprópria, checar: Guilherme de
Souza Nucci. Código Penal Comentado. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 1000-
1001.
23 Em virtude da grande recorrência de seu uso, a “arma de brinquedo” possui uma longa
história de debates jurisprudências e legislativos em relação à sua relevância no direito
penal. Até a promulgação da Lei n. 13.654/2018, a jurisprudência pátria apresentava
grande divergência sobre a majoração do roubo face ao uso de arma de brinquedo. Em
1997, o STJ sumulou entendimento que “No crime de roubo, a intimidação feita com
arma de brinquedo autoriza o aumento da pena” (Súmula 174 – STJ). Já em 2001, a
Terceira Seção do STJ negou provimento ao RESP n. 213.054-SP e acordou pelo
cancelamento do referido entendimento sumular. Entretanto, o entendimento não foi
constante desde o julgamento, tendo inclusive da 5a Turma do STJ admitido o
incremento da pena em razão do uso de arma de brinquedo (REsp 1662618-MG, Rel.
Min. Ribeiro Dantas. 5ª Turma. STJ. DJe 22.06.2017).
No mesmo sentido, o Congresso Nacional travou um debate acalorado acerca da relevância
penal do uso de arma. No mesmo ano da edição da Súmula 174 do STJ, o Congresso
aprovou a Lei n. 9.437/97 que tipificava o uso de arma de brinquedo com o objetivo de
cometer crimes (Art. 10, § 1º, II). Já em 2003, todas as disposições da Lei n. 9.437/97
foram revogadas com a promulgação do Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826/03).
24 APELAÇÃO PENAL. ROUBO QUALIFICADO. ART. 157, § 2º, INC. I DO CPB. 1)
ÉDITO CONDENATÓRIO RESPALDADO EXCLUSIVAMENTE EM PROVAS
INQUISITORIAIS. IMPROCEDÊNCIA. DEPOIMENTO DA VÍTIMA NA FASE
ADMINISTRATIVA CORROBORADO PELO AUTO DE APRESENTAÇÃO E
APREENSÃO DOS OBJETOS SUBTRAÍDOS, BEM COMO PELOS DEPOIMENTOS
TESTEMUNHAIS PRESTADOS TANTO EM SEDE INQUISITORIAL, COMO EM
JUÍZO. 2) DECOTE DA MAJORANTE REFERENTE AO USO DE ARMA
DURANTE A EMPREITADA. PROVIMENTO – ALTERAÇÃO LEGISLATIVA
TRAZIDA PELA LEI Nº 13.654/2018, DE 23/04/2018, QUE REVOGOU O INCISO I,
§2º, ART. 157, DO CP, EXCLUINDO A INCIDÊNCIA DA MAJORANTE QUANDO
TRATAR-SE DE ARMA BRANCA, COMO NA HIPÓTESE. CRIME ANTERIOR À
LEI 13.964/19, QUE PREVÊ O USO DE ARMA BRANCA COMO MAJORANTE AO
CRIME DE ROUBO. IRRETROATIVIDADE DA LEI PENAL IN PEJUS –
DESCLASSIFICAÇÃO PARA ROUBO SIMPLES. REDIMENSIONAMENTO DA
PENA. 3) SUBSTITUIÇÃO, DE OFÍCIO, DO REGIME PRISIONAL SEMIABERTO
PARA O ABERTO. ART. 33, §2º, ALÍNEA C, DO CPB. 4) RECURSO CONHECIDO
E PARCIALMENTE PROVIDO, PARA AFASTAR A MAJORANTE REFERENTE
AO USO DE ARMA DURANTE A EMPREITADA, COM O CONSEQUENTE
REDIMENSIONAMENTO DA PENA PARA 04 (QUATRO) ANOS DE RECLUSÃO E
10 (DEZ) DIAS-MULTA, À RAZÃO DE 1/30 (UM TRIGÉSIMO) DO SALÁRIO
MÍNIMO VIGENTE À ÉPOCA DO FATO DELITUOSO, E, DE OFÍCIO,
SUBSTITUÍDO O REGIME PRISIONAL SEMIABERTO PARA O ABERTO. 1-A 9 –
materialidade e a autoria delitiva encontram-se evidenciadas nos autos através da palavra
da vítima na fase administrativa, corroborada pelo Auto de Apresentação e Apreensão
dos objetos subtraídos, bem como pelos depoimentos testemunhais prestados tanto em
sede inquisitorial, como em juízo. 2- O afastamento da majorante do uso de arma é
medida que se impõe, em razão da alteração legislativa trazida pela Lei n.
13.654/2018, de 23/04/2018, que revogou o inciso I do §2º do art. 157 do CP,
excluindo a incidência da majorante quando tratar-se de arma branca, devendo a
referida alteração legislativa ser aplicada imediatamente, retroagindo inclusive para
alcançar fatos praticados anteriormente à vigência do diploma legal, por tratar-se
de novatio legis in mellius, sendo certo que tendo sido o crime praticado anterior à
lei 13.964/19, que passou a prever o uso de arma branca como majorante do crime
de roubo, não há que se falar na sua aplicabilidade na hipótese, ante à
irretroatividade da lei penal in pejus. Assim, desclassificado o crime imputado ao
apelante para o de roubo simples, impõe-se, de igual modo, o redimensionamento da
reprimenda a ele estabelecida para 04 (quatro) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa, à
razão de 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente à época do fato delituoso. 3-
Tendo em vista o quantum da reprimenda corporal redimensionada, bem como não ter
sido valorada em desfavor do apelante nenhuma das circunstâncias judiciais previstas no
art. 59, do CPB, impõe-se a substituição do regime prisional semiaberto a ele
estabelecido, para o mais brando, à luz do art. 33, §2º, alínea c, do CPB. 4-Recurso
conhecido e parcialmente provido, para afastar a majorante referente ao uso de arma
durante a empreitada, com o consequente redimensionamento da pena para 04 (quatro)
anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa, à razão de 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo
vigente à época do fato delituoso, e, de ofício, substituído o regime prisional semiaberto
para o aberto. (2020.00251959-05, 211.438, Rel. VANIA VALENTE DO COUTO
FORTES BITAR CUNHA, 2ª Turma de Direito Penal. Julgado em 21/01/2020.
Publicado em 28/01/2020) (grifos nossos)
25 Destaco, com Aury Lopes Júnior, que a representação é condição da ação. Leia-se:
“Para nós, é uma condição da ação, mas alguns autores definem como condição de
procedibilidade. De qualquer forma, o que importa é que o MP não pode proceder contra
alguém sem que exista essa autorização do ofendido (nem mesmo o inquérito pode ser
formalmente instaurado sem ela, diante da exigência do art. 5º, parágrafo 4º, do CPP)”.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 250.
26 Paulo Queiroz trabalha muitíssimo bem essa questão: “Em conclusão parece-nos
irrelevante a mui recorrente distinção entre lei penal e lei processual penal, para fins
de retroatividade da lei, uma vez que ambas cumprem a mesma função político-
criminal, de proteção do mais débil (acusado) em face do mais forte (o Estado), além
de que o Direito é uno, não podendo, por isso, ser garantista num momento (penal) e
antigarantista noutro (processual)”. QUEIROZ, Paulo. Direito Penal 1 – Parte Geral. 13.
ed. Salvador: JusPodivm, 2018. (grifos nossos)
27 “Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de
representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões
culposas”. (grifos nossos)
28 “AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL
PENAL. CRIME DE ESTELIONATO. APLICAÇÃO RETROATIVA.
INVIABILIDADE. ATO JURÍDICO PERFEITO. MANIFESTAÇÃO DA VÍTIMA.
INTERESSE NA RESPOSTA PENAL DO ESTADO. REGIME MAIS GRAVOSO.
RÉU REINCIDENTE E QUE OSTENTA MAUS ANTECEDENTES.
POSSIBILIDADE. AGRAVO DESPROVIDO. 1. A discussão gira em torno da
incidência das recentes alterações legislativas (Lei n. 13.964/19) sobre a natureza da ação
penal do crime de estelionato de forma retroativa ou não nas persecuções penais em
curso, pois, com o advento da Lei n. 13.964/201 9, conhecida como “pacote anticrime”,
houve alteração do art. 171 do Código Penal ? CP, passando a ação penal a ser proposta
somente mediante representação. 2. Esta Quinta Turma passou a entender que a
retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase
policial, não alcançando o processo, ao mais quando se constata que foi
demonstrada a intenção da vítima em autorizar a persecução criminal, caso dos
autos. […]” (STJ – AgRg no REsp: 1.872.308 DF 2020/0100841-4, Relator: Ministro
JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Julgamento: 15/09/2020, T5 – QUINTA TURMA,
Data de Publicação: DJe 21/09/2020) (grifos nossos). EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
NO AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO
EM RECURSO ESPECIAL. PUBLICAÇÃO DE PAUTA DO JULGAMENTO EM
SESSÃO VIRTUAL. FEITO LEVADO EM MESA. SESSÃO REALIZADA POR
VIDEOCONFERÊNCIA. DIVERSO DO JULGAMENTO VIRTUAL. 2
INAPLICABILIDADE DOS ARTIGOS 184-A a 184-H DO REGIMENTO INTERNO.
NÃO PRERROGATIVA DE SUSTENTAÇÃO ORAL. ALEGADA OMISSÃO.
PRETENDIDA APLICAÇÃO RETROATIVA DA REGRA DO § 5º DO ART. 171 DO
CÓDIGO PENAL, ACRESCENTADO PELA LEI N. 13.964/2019 (PACOTE
ANTICRIME). INVIABILIDADE. ATO JURÍDICO PERFEITO. CONDIÇÃO DE
PROCEDIBILIDADE. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. APLICAÇÃO DO
ART. 28-A DO CPP.INOVAÇÃO RECURSAL. IMPOSSIBILIDADE.
IRRESIGNAÇÃO DA PARTE COM DECISÃO EMBARGADA. INVIABILIDADE.
EMBARGOS PARCIALMENTE ACOLHIDOS PARA SANAR OMISSÃO, SEM
EFEITOS INFRINGENTES. [...] IV – Outrossim, quanto a pretendida aplicação
retroativa da regra do §5º do art. 171 do CP, acrescentado pela Lei n. 13.964/2019,
esta colenda Quinta Turma já decidiu que “além do silêncio do legislador sobre a
aplicação do novo entendimento aos processos em curso, tem-se que seus efeitos não
podem atingir o ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia), de
modo que a retroatividade da representação no crime de deve se restringir à fase
policial, não alcançando o estelionato processo”, pois, “do contrário, estar-se-ia
conferindo efeito distinto ao estabelecido na nova regra, transformando-se a
representação em condição de prosseguibilidade e não procedibilidade (EDcl no AgRg
nos EDcl no AREsp 1.681.153/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA,
julgado em 08/09/2020, DJe 14/09/2020) (grifos nossos).
29 “HABEAS CORPUS 187.341 SÃO PAULO. RELATOR: MIN. ALEXANDRE DE
MORAES. PACTE.(S): ERIC FABIANO ARLINDO. IMPTE.(S): CESAR COSMO
RIBEIRO. ADV.(A/S):ALESSANDRA MARTINS GONCALVES JIRARDI.
COATOR(A/S)(ES) :RELATOR DO HC Nº 585.179 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE
JUSTIÇA. Ementa: HABEAS CORPUS. ESTELIONATO. AÇÃO PENAL. PÚBLICA
CONDICIONADA A PARTIR DA LEI N. 13.964/19 (“PACOTE ANTICRIME”).
IRRETROATIVIDADE NAS HIPÓTESES DE OFERECIMENTO DA DENÚNICA JÁ
REALIZADO. PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA LEGALIDADE
QUE DIRECIONAM A INTERPRETAÇÃO DA DISCIPLINA LEGAL APLICÁVEL.
ATO JURÍDICO PERFEITO QUE OBSTACULIZA A INTERRUPÇÃO DA AÇÃO.
AUSÊNCIA DE NORMA ESPECIAL A PREVER A NECESSIDADE DE
REPRESENTAÇÃO SUPERVENIENTE. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE.
HABEAS CORPUS INDEFERIDO. 1.Excepcionalmente, em face da singularidade da
matéria, e de sua relevância, bem como da multiplicidade de habeas corpus sobre o
mesmo tema e a necessidade de sua definição pela PRIMEIRA TURMA, fica superada a
Súmula 691 e conhecida a presente impetração.
2.Em face da natureza mista (penal/processual) da norma prevista no §5º do artigo
171 do Código Penal, sua aplicação retroativa será obrigatória em todas as hipóteses
onde ainda não tiver sido oferecida a denúncia pelo Ministério Público,
independentemente do momento da prática da infração penal, nos termos do artigo 2º, do
Código de Processo Penal, por tratar-se de verdadeira “condição de procedibilidade da
ação penal”.
3.Inaplicável a retroatividade do §5º do artigo 171 do Código Penal, às hipóteses onde
o Ministério Público tiver oferecido a denúncia antes da entrada em vigor da Lei
13.964/19; uma vez que, naquele momento a norma processual em vigor definia a
ação para o delito de estelionato como pública incondicionada, não exigindo
qualquer condição de procedibilidade para a instauração da persecução penal em
juízo. 4.A nova legislação não prevê a manifestação da vítima como condição de
prosseguibilidade quando já oferecida a denúncia pelo Ministério Público.
5.Inexistente, no caso concreto, de ilegalidade, constrangimento ilegal ou teratologia apta
a justificar a excepcional concessão de Habeas Corpus. INDEFERIMENTO da ordem”.
(grifos nossos)
30 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020;
MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos
Jogos. Florianópolis: EMais, 2020.
31 HÜBNER, Maria Martha Costa; MOREIRA, Márcio Borges. Temas clássicos da
psicologia sob a ótica da análise do comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, 2015; RAMOS, Ana Luisa Schmidt. A eficácia da lei ambiental para
fomentar o comportamento sustentável. 2018. 36f. Monografia (Graduação em
Psicologia) – Universidade do Sul de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.
32 GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia
das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. Florianópolis: Tirant lo blanch, 2018,
v. 1; MALAN, Diogo. Ideologia política de Francisco Campos: influência na legislação
processual brasileira. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo (orgs.). Autoritarismo e
Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 1-86; SULOCKI,
Victoria Amália de Barros Carvalho Gozdawa de. Autoritarismos presentes: biopolítica,
estado de exção e poder soberano. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo (orgs.).
Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 87-
127; VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. Belo Horizonte:
DePlácido, 2016; MORAIS DA ROSA, Alexandre; KALHED JR, Salah H. In dubio pro
Hell: profanando o sistema penal. Florianópolis: EMais, 2020
33 RODRIGUES, Filipe Azevedo. Análise Econômica: Da expansão do Direito Penal.
Belo Horizonte: Del Rey, 2014, p. 3-4: “Para definir a fronteira entre a expansão
punitivista e a razoável (ou inevitável), o método a ser proposto neste trabalho consiste
em aplicar a Análise Econômica do Direito (AED), Positiva ao Direito Penal, sob
parâmetros de eficiência. (...) Entre as premissas da microeconomia utilizadas, cabe
destaque para os conceitos de homo economicus, custos de oportunidade (trade off), de
maximização racional, teoria da escolha racional, eficiência, equilíbrio, falhas do
mercado (e do governo), e, dentre estas, assimetrias informacionais e externalidades”.
Consultar: VIAPIANA, Luiz Tadeu. Economia do Crime: uma explicação para a
formação do criminoso. Porto Alegre: AGE, 2006; LEVITT, Steven David; DUBNER,
Stephen. Superfreakonomics: o lado oculto do dia a dia. Trad. Afonso C. da C. Serra.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2010; STELZER, Joana; GONÇALVES, Everton das Neves.
Análise econômica do direito. Uma inovadora teoria geral do direito. In: OLIVEIRA,
Amanda Flávio de (coord.). Direito Econômico: evolução e institutos. Rio de Janeiro:
Forense, 2009; GONÇALVES, Everton das Neves; STELZER, Joana. Eficiência e
direito: pecado ou virtude: uma incursão pela análise econômica do direito. Revista
Jurídica (FIC), v. 28, p. 77-122, 2012.
34 BECKER, Gary. Crime and punishment: an economic approach. In: Journal of political
economy: Essays in the economics of crime and punishment. National Bureau of
Economic Reserach, p. 169-217, 2001.
35 COOTER, Robert; ULLEN, Thomas. Direito & Economia. Trad. Luis Marcos Sander
e Francisco Araújo da Costa. Porto Alegre: Bookman, 2010, p. 481: “Nosso modelo do
crime racional simplifica a realidade de diversos modos que precisam ser frisados. No
mundo real, o crime tem múltiplas causas, então a pesquisa empírica sobre o crime deve
trabalhar particularmente com a análise de regressão de múltiplas variáveis (...) A maioria
dos criminosos possui informações imperfeitas sobre os benefícios do crime e as
probabilidades e magnitudes das penas. Os criminosos provavelmente não são neutros em
relação ao risco. A maioria dos indivíduos é avessa ao risco, mas os criminosos
provavelmente são excepcionalmente dados a correr riscos.”.
36 LEVITT, Steven David; DUBNER, Stephen. Superfreakonomics: o lado oculto do dia
a dia. Trad. Afonso C. da C. Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 12: “Becker sugeriu
que a abordagem econômica não é matéria acadêmica, nem meio para explicar ‘a
economia’, mas, sim, a decisão de observar e analisar o mundo de maneira um tanto
diferente. É uma forma sistemática de descrever como as pessoas decidem e como
mudam de opinião; como escolhem alguém a quem amar e com quem casar, e talvez
alguém para odiar e até matar; como, ao deparar com uma pilha de dinheiro, alguém a
saqueará, a deixará intocada ou até a aumentará com o próprio dinheiro; por que, não
raro, se tem medo de alguma coisa e se anseia por outra apenas um pouco diferente; por
que se pune certo tipo de comportamento e se recompensa outro semelhante”.
37 SKINNER, B.F. Ciência e comportamento humano. Trad. João Carlos Todorov e
Rodolfo Azzi. 11. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
38 SKINNER, B.F. Ciência e comportamento humano. Trad. João Carlos Todorov e
Rodolfo Azzi. 11. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 20.
39 SIDMAN, Murray. Coerção e suas implicações. Campinas: Livro Pleno, 2011, p. 51.
40 SIDMAN, Murray. Coerção e suas implicações. Campinas: Livro Pleno, 2011, p. 54 e
104.
41 SIDMAN, Murray. Coerção e suas implicações. Campinas: Livro Pleno, 2011, p. 104:
“identificar o comportamento e as consequências; alterar as consequências; ver se o
comportamento muda”
42 WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vieses da
Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação
contraintuitiva. Florianópolis: EMais, 2021.
43 SIDMAN, Murray. Coerção e suas implicações. Campinas: Livro Pleno, 2011, p. 55-
56.
44 SIDMAN, Murray. Coerção e suas implicações. Campinas: Livro Pleno, 2011, p. 81.
45 SKINNER, B.F. Ciência e comportamento humano. Trad. João Carlos Todorov e
Rodolfo Azzi. 11 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 199.
46 MANKIW, N. Gregory. Princípios de Microeconomia. Trad. Allan Vidigal Hasting;
Elisete Paes e Lima. São Paulo: Cangage Learning, 2016, 184: “Uma externalidade surge
quando uma pessoa se dedica a uma ação que provoca impacto no bem-estar de um
terceiro que não participa dessa ação, sem pagar nem receber nenhuma compensação por
esse impacto. Se o impacto sobre o terceiro é adverso, é denominada externalidade
negativa. Se é benéfico, é chamado de externalidade positiva”. Embora a noção de
externalidade se vincule aos ganhos econômicos, pode-se adotar a compreensão dos
efeitos (negativos ou positivos) do jogo processual em relação a terceiros não envolvidos
diretamente no processo penal.
47 KENNEDY, Duncan. Izquierda y derecho. Ensayos de teoría jurídica crítica. Trad.
Guillermo Moro. Buenos Aires: Siglo Vintiuno, 2010.
48 GAUDÊNCIO, Ana Margarida Simões. Entre o centro e a periferia. Rio de Janerio:
Lumen Juris, 2013
49 KENNEDY, Duncan. Izquierda y derecho. Ensayos de teoría jurídica crítica. Trad.
Guillermo Moro. Buenos Aires: Siglo Vintiuno, 2010, p. 38-43
50 LOPES JR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Estrutura acusatória atacada pelo
MSI – Movimento Sabotagem Inquisitória (CPP, art. 3º – A, Lei 13.964) e a resistência
acusatória. In: CAMARGO, Rodrigo Oliveira de; FELIX, Yuri. Pacote Anticrime:
Reformas Processuais. Florianópolis: EMais, 2020, p. 45-60.
51 NICOLÁS GARCÍA, Gerardo; ALBERTO JULIANO, Mario; PÉREZ GALIMBERTI,
Alfredo. Derecho al mejor derecho y poder punitivo. Buenos Aires: Del Puerto, 2011,
p. 31.
52 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos
Jogos. Florianópolis: EMais, 2020. O tema foi realinhado aqui em face do estabelecido
no Guia referenciado.
53 MORAIS DA ROSA, Alexandre; ROSA, Luísa Walter da; BERMUDEZ, André Luiz.
Como negociar o acordo de não persecução penal: limites e possibilidades.
Florianópolis: EMais, 2021.
54 COASE, Ronald Harry. The firm, the Market, and the law. Chicago: The University
of Chicago Press, 1990.
55 SZTAJN, Rachel; ZYLBERSZTAJN, Décio. Análise econômica do direito e das
obrigações: In: ZYLBERSZTAJN, Décio; SZTAJN, Rachel. Direito e Economia. Rio de
Janeiro: Campus, 2005, p. 1-2: “Coase explicou que a inserção dos custos de transação na
Economia e na Teoria das Organizações implica a importância do Direito na
determinação de resultados econômicos. Segundo o Teorema de Coase, em um mundo
hipotético sem custos de transação (pressuposto da Economia Neoclássica), os agentes
negociarão os direitos, independentemente da sua distribuição inicial, de modo a chegar à
sua alocação eficiente. Nesse mundo, as instituições não exercerão influência no
desempenho econômico. Ocorre que, como asseverou Coase, esse é o mundo da
blackboard economics. Ao criticar a análise econômica ortodoxa, Coase enfatizou que,
no mundo real, os custos de transação são positivos e, ao contrário do que inferem os
neoclássicos tradicionais, as instituições legais impactam significativamente o
comportamento dos agentes econômicos”.
56 DAVIS, Morton David. Teoria dos Jogos: uma introdução não-técnica. Trad. Leonidas
Hegenberg e Otanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 117-118 “Começa ele
por presumir que duas partes estão negociando um contrato. (...) Por motivo de
conveniência e sem perda de generalidade, Nash presume que um fracasso nos
entendimentos – não se faz o acordo, não há venda, ... – terá a utilidade zero para ambos
os jogadores. Escolhe ele, a seguir, um resultado singular, arbitrado, retirando-o do
conjunto de acordos que os participantes têm a possibilidade de atingir, seleciona o
resultado em que o produto das utilidades dos jogadores é máximo. Esse esquema tem
quatro propriedades de grande convivência que, ao ver de Nash, justificam sua utilização
e é o esquema único a possuir tais propriedades que são: 1. O resultado arbitrado deve ser
independente da função utilidade. Qualquer resultado arbitrado deve depender claramente
das preferências dos jogadores e essas preferências se expressam através de uma função
de utilidade. Contudo, e tal como anteriormente vimos, há muitas funções de utilidade
dentre as quais escolher. Como a escolha de uma função de utilidade é inteiramente
arbitrária, torna-se razoável exigir que o resultado arbitrado não dependa da função de
utilidade escolhida. 2. O resultado arbitrado deve ser o ótimo de Pareto. Nash considerou
desejável que o resultado arbitrado se confundisse com o ótimo de Pareto, isto é, não
deve existir qualquer outro resultado em que ambos os jogadores consigam
simultaneamente mais do que em tais condições conseguem. 3. O resultado arbitrado
deve ser independente de alternativas irrelevantes. Suponhamos que haja dois jogos A e
B nos quais todos os resultados de A sejam também resultados de B. Se o resultado
arbitrado de B for também um resultado de A, tal resultado deverá ser o mesmo arbitrado
de A. Em outras palavras, o resultado arbitrado em um jogo permanece o resultado
arbitrado, mesmo quando se eliminam outros resultados como possíveis acordos. 4. Num
jogo simétrico, o resultado arbitrado tem a mesma utilidade para ambos os participantes.
Suponhamos que os jogadores, num jogo de negociações, tenham papéis simétricos, ou
seja, que haja um resultado com a utilidade x para um dos jogadores e a utilidade y para o
outro; nessas circunstâncias, deverá existir também um resultado que tenha utilidade y
para o primeiro jogador e x para o segundo. Em jogo desse tipo, o resultado arbitrado
deve ter a mesma utilidade para ambos os jogadores”.
57 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial:
Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no Processo Penal
brasileiro. São Paulo: IBCcrim, 2015, p. 28: “Em termos médios, aponta-se que 90% dos
casos de sentença condenatória se fundamentam no reconhecimento de culpabilidade
(guilty plea), obtido por meio de acordos entre acusação e defesa e, portanto, sem a
necessidade de provas incriminatórias sólidas e lícitas, além da dúvida razoável. (...)
Recentemente, em 2013, Dervan e Edkins apontaram a estatística de que quase 97% das
condenações no sistema federal se dão com base em acordos para reconhecimento da
culpabilidade”.
58 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de direito processual – Oitava série. São
Paulo: Saraiva, 2004: “A bem dizer, só nos filmes policiais é que o processo penal norte-
americano encontra seu ponto culminante na sessão de julgamento, com a carga de
dramaticidade que tanto emociona as plateias: a realidade quotidiana parece bem menos
espetacular”.
59 MACHADO, Helena; PRAINSACK, Barbara. Tecnologias que incriminam: olhares
de reclusos na era do CSI. Coimbra: Almedina, 2014, p. 17: “Há mais de três décadas que
se sabe que aproximadamente 90 por cento dos arguidos (ou mais, em algumas
jurisdições) que são condenados optam por se declarar culpados sem sequer chegarem a
ir a tribunal (Alschuler 1979, Heumann 1978). Esta decisão poupa ao Estado o trabalho
de ter de nomear um júri e levar a cabo um julgamento que, muito provavelmente, seria
moroso. De facto, se um terço sequer daqueles que estão presos pedisse ou exigisse um
julgamento com um júri, o sistema ficaria congestionado durante décadas. Por isso, o
acordo entre as partes (plea bargain – o acordo entre as partes ou acordo de sentença
tende a ser associado a sistemas de justiça tipo adversarial e, geralmente, envolve a
admissão da culpa por parte do acusado em troca de um tratamento mais favorável pelo
tribunal, por exemplo, na redução da pena) é uma espécie de pacto com o Diabo, algo de
que todos os que fazem parte do sistema de justiça criminal têm perfeita consciência”.
60 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial:
Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no Processo Penal
brasileiro. São Paulo: IBCcrim, 2015, p. 68: “Define-se a barganha como o instrumento
processual que resulta na renúncia à defesa, por meio da aceitação (e possível
colaboração) do réu à acusação, geralmente pressupondo a sua confissão, em troca de
algum benefício (em regra, redução da pena), negociado e pactuado entre as partes ou
somente esperado pelo acusado. Assim, são elementos essenciais à barganha a renúncia à
defesa (desfigurando a postura de resistência e contestação do acusado), a imposição de
uma punição antecipada e a esperança do réu em receber algum benefício por tal
consentimento (ou em evitar uma punição em razão do exercício de seus direitos)”.
61 SCHÜNEMANN, Bernd. ¿Crisis del procedimiento penal? ¿Marcha triunfal del
proceso penal norte-americando en el mundo? In: SCHÜNEMANN, Bernd. Temas
actuales y permanentes del derecho penal después del milênio. Madrid: Tecnos, 2002, p.
288-302; COSTA, Eduardo Maia. Princípio da oportunidade: muitos vícios, poucas
virtudes. Revista do Ministério Público de Lisboa, v. 22, n. 85, p. 37-49, Lisboa, jan-
mar., 2001.
62 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial:
Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no Processo Penal
brasileiro. São Paulo: IBCcrim, 2015, p. 43: “Importante frisar a necessidade de se
perceber que, de um lado, há a legalidade, que delimita (e, assim, limita) na lei os espaços
de atuação dos atores do campo criminal – especialmente daqueles que almejam impor o
poder punitivo estatal. De modo distinto se caracteriza a obrigatoriedade da ação penal, a
qual, segundo nossa visão, pode ser excepcionada dentro da legalidade, ou seja, conforme
hipóteses e condições previstas no texto legal”.
63 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no processo penal
na perspectiva das garantias constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2006, p. 50: “A legalidade, numa acepção mais estrita, é o princípio que informa que a
persecução penal, que a dedução de uma pretensão acusatória, que a sustentação da
acusação não pode depender da vontade subjetiva dos órgãos que têm o dever jurídico de
atuar segundo o ordenamento jurídico vigente”.
64 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial:
Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no Processo Penal
brasileiro. São Paulo: IBCcrim, 2015, p. 88: “Por certo, o que determina o triunfo da
barganha é sua integral e sintomática aderência aos interesses daqueles diretamente
envolvidos e responsáveis pela gestão da justiça criminal, especialmente dos que
possuem maior poder na administração da esfera punitiva estatal: membros do órgão
acusador (Ministério Público) e julgadores (Poder Judiciário). (...) Portanto, a barganha é
instituto que se expande a partir do poder daqueles que são beneficiados por suas
consequências, até um ponto que, conforme George Fisher, adquire poderes próprios e
influencia todo o sistema de justiça criminal, fortalecendo aquilo e aqueles que a
defendem e fragilizando qualquer tentativa de redução em sua atuação”.
65 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial:
Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no Processo Penal
brasileiro. São Paulo: IBCcrim, 2015, p. 92: “As limitações impostas
jurisprudencialmente à atuação do Ministério Público definem que não pode esconder
provas favoráveis à defesa ou fabricar indícios para incentivar o acordo; além disso,
teoricamente é proibida a ação vingativa do promotor em razão do exercício do direito ao
julgamento pelo acusado. Entretanto, essas restrições são de pouca aplicabilidade diante
da discricionariedade e da abertura interpretativa que autoriza os mais diversos tipos de
acordos e contraprestações. Por exemplo, no caso United States v. Nuckols homologou-se
plea bargaining em que se ameaçava o réu de que, se não aceitasse a proposta, sua esposa
iria ser acusada conjuntamente. Portanto, resta patente a fragilidade dogmática do
requisito de voluntariedade em um cenário pautado pela barganha, diante da inerente
coercibilidade da proposta de redução da punição em caso de renúncia ao processo e da
construção jurisprudencial de seus contornos que (....) é relativizada ao extremo ao ter-se
por sanada qualquer violação se houver o acompanhamento de um advogado.”
66 BÊRNI, Duilio de Avila. Teoria dos Jogos: Jogos de estratégia, estratégia decisória,
teoria da decisão. Rio de Janeiro: Reichmann & Affonso, 2004, p. 13: “No xadrez existe
o melhor jeito de jogar e não cabe o blefe. “Assim, ao centrarmos nosso interesse na
interação estratégica, já eliminamos três caminhos: o da interação sincera, o dos jogos de
azar e o dos jogos que têm melhor maneira de jogar. Interessa-nos a situação em que há
interação entre agentes, sendo que a ação de alguns influencia o bem-estar dos demais, e
vice-versa”.
67 KARAM, Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais: a concretização antecipada do
poder de punir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 41: “Parece, pois, que só
mesmo a força da ‘chantagem’ de que fala Cattaneo poderia explicar o ‘sucesso’ da pena
negociada, a fazer com que, na matriz de onde se espraiou – Os Estados Unidos da
América -, dada a amplitude do campo de admissibilidade de negociação sobre a pena,
que, diferentemente do que ocorre no Brasil e em outros países, não encontra limitações
de natureza da infração penal e/ou na dimensão das penas cominadas, a imensa maioria
dos processos penais se extinga no nascedouro, com a consentida submissão do réu à
pena”.; PHILIPPI, Isabela Ramos. A (im)possibilidade de aplicação da plea bargaining
no processo penal brasileiro: uma análise conforme a Constituição da República e a
tradição continental. Florianópolis: UFSC (Direito – Monografia), 2010, p. 47: “Outro
dos principais problemas apontados pela doutrina norte-americana, e que também
envolve a figura do promotor de justiça, é a controvertida prática do overcharging, que se
caracteriza pela formulação de imputação mais grave do que aquela que seria a mais
adequada aos fatos. Com esse tipo de conduta, o promotor propõe ao acusado a
desconsideração de parte da imputação em troca de sua declaração de culpa. No entanto,
ao final da plea bargaining, o acusado acaba por não receber vantagem alguma, já que se
declarou culpado exatamente pelo crime que o promotor estaria autorizado a acusá-lo.
American Bar Association, que propôs, a partir dos Standarts Relating to Pleas of Guilty,
diversos requisitos indispensáveis à regularidade do instituto da plea bargaining, o que foi
chamado pela doutrina de due process of plea bargaining.”
68 VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial:
Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no Processo Penal
brasileiro. São Paulo: IBCcrim, 2015, p. 55: “Pensa-se que a justiça consensual (ou
negocial) é o modelo que se pauta pela aceitação (consenso) de ambas as partes –
acusação e defesa – a um acordo de colaboração processual com o afastamento do réu de
sua posição de resistência, em regra impondo encerramento antecipado, abreviação,
supressão integral ou de alguma fase do processo, fundamentalmente com o objetivo de
facilitar a imposição de uma sanção penal com algum percentual de redução, o que
caracteriza o benefício ao imputado em razão da renúncia ao devido transcorrer do
processo penal com todas as garantias a ele inerentes”.
69 KARAM, Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais: a concretização antecipada do
poder de punir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 39-40: “Como aponta
Alessandro Gamberini, o ‘vendedor’ da sanção (o Ministério Público) pode determinar o
‘preço’ de modo decisivo, fixando os cânones da pena. Ao réu ‘comprador’ resta pouca
margem de manobra para se subtrair a um pacote pré-fabricado que quase sempre se
apresenta na base do ‘pegar ou largar’”.
70 DIAS, Gabriel Bulhões Nóbrega. Manual prático de Investigação Defensiva.
Florianópolis: EMais, 2019; SILVA, Franklyn Roger Alves. Investigação criminal direta
pela defesa. Salvador: Juspodvm, 2019; SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito
policial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004; MACHADO, André Augusto Mendes.
Investigação criminal defensiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010; MALAN,
Diogo. Investigação defensiva no processo penal. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo, v. 20, n. 96, p. 279-309, mai./jun. 2012; SAMPAIO, Denis.
Reflexões sobre a investigação defensiva: possível renovação da influência italiana pós
“Código Rocco” sobre a indagine difensive. In: ADVOCACIA criminal, direito de
defesa, ética e prerrogativas. Coordenação de Diogo MALAN, Flávio MIRZA. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2014. Acesso em: 4 mar. 2018. p. 96-120; MAURICIO, Bruno;
HENRIQUE, Diego; MARTINELLI, João Paulo Orsini. A possibilidade de investigação
defensiva dentro do modelo constitucional brasileiro. Revista Liberdades, São Paulo, v.
12, p.1-19, 31 abr. 2013; ANDRADE, Andressa Paula de; ÁVILA, Gustavo Noronha de.
‘Scherlock Holmes’ no processo penal brasileiro? Lineamentos sobre a Lei 13.432 de 11
de abril de 2017 e a investigação criminal defensiva. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 25,
n. 296, p. 8-9., jul. 2017.
71 ROTH, Alvin R. Como funcionam os mercados. Trad. Isa Mara Lando e Mauro
Lando. São Paulo: Portofolio-Penguin, 2016, p. 14.
72 ROTH, Alvin R. Como funcionam os mercados. Trad. Isa Mara Lando e Mauro
Lando. São Paulo: Portofolio-Penguin, 2016, p. 15: “Não basta informar à Universidade
de Yale que você vai se matricular, nem ao Google que você vai aparecer amanhã para
começar a trabalhar lá. Você precisa ser aprovado ou contratado. Tampouco Yale ou o
Google podem ditar quem vai escolhê-los, assim como um cônjuge não pode
simplesmente escolher outro: cada um também tem que ser escolhido. (...) Há inúmeros
casamentos ocorrendo nos mercados, e os mercados, como as histórias de amor,
começam com desejos. Um ambiente de mercado ajuda a dar forma a esses desejos e a
satisfazê-los, unindo compradores e vendedores, estudantes e professores, empregadores
a candidatos e, por vezes, pessoas em busca de amor”.
73 GONÇALVES, Jéssica. Acesso à justiça: do modelo competitivo de estabilização dos
conflitos à estratégia cooperativa. Florianópolis: Habitus, 2020.
74 COLSON, Aurélien. Administrar a tensão entre sigilo e transparência: os casos análogos
da negociação e das empresas. In: LEMPEREUR, Alain Pekar; SEBENIUS, James;
DUXERT, Yann. Manual de Negociações Complexas. Trad. Yves Bergougnoux. Rio de
Janeiro: FGV, 2009, p. 43: “Naturalmente, a tensão existe em primeiro lugar porque ela
se baseia – como a tensão entre criação e distribuição de valor – na hipótese da
reciprocidade. Só há vantagem para mim a priori em ser transparente com o outro se ele
o for comigo – daí o clássico dilema do prisioneiro. Do mesmo modo, nossa negociação
só será mantida em sigilo em relação a terceiros se o outro for tão discreto quanto eu.
Como para a transparência, o sigilo supõe então que haja confiança entre os atores. Um
pode escolher romper o sigilo e achar que a revelação da negociação terá um impacto
negativo sobre o outro e positivo para si”.
75 COLSON, Aurélien. Administrar a tensão entre sigilo e transparência: os casos análogos
da negociação e das empresas. In: LEMPEREUR, Alain Pekar; SEBENIUS, James;
DUXERT, Yann. Manual de Negociações Complexas. Trad. Yves Bergougnoux. Rio de
Janeiro: FGV, 2009, p. 46: “A tensão entre sigilo e transparência é, portanto, real na
medida em que cada um desses dois polos contrários possui vantagens para o negociador.
Essas vantagens se completam e se opõem, como é nas outras tensões, por exemplo, entre
empatia e autoafirmação. Como o bom negociador sabe tanto cooperar quanto se mostrar
competitivo, deve saber jogar tanto com o sigilo quanto com a transparência. Nessa
tensão, como nas três outras, o meio-termo não é uma abordagem satisfatória: é preciso
saber se mostrar francamente transparente em certas instâncias e saber manter o mais
absoluto sigilo em outras. Na mesa, o bom negociador gosta do seu champanhe gelado e
do seu expresso quente, e não dos dois igualmente mornos...”
76 MANKIW, N. Gregory. Princípios de Microeconomia. Trad. Allan Vidigal Hasting;
Elisete Paes e Lima. São Paulo: Cengage Learning, 2016, 184: “Uma externalidade surge
quando uma pessoa se dedica a uma ação que provoca impacto no bem-estar de um
terceiro que não participa dessa ação, sem pagar nem receber nenhuma compensação por
esse impacto. Se o impacto sobre o terceiro é adverso, é denominada externalidade
negativa. Se é benéfico, é chamado de externalidade positiva”. Embora a noção de
externalidade se vincule aos ganhos econômicos, pode-se adotar a compreensão dos
efeitos (negativos ou positivos) do jogo processual em relação a terceiros não envolvidos
diretamente no processo penal.
77 MNOOKIN, Robert. Superar os obstáculos na resolução de conflitos. In:
LEMPEREUR, Alain Pekar; SEBENIUS, James; DUXERT, Yann. Manual de
Negociações Complexas. Trad. Yves Bergougnoux. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 125-
144.
78 MNOOKIN, Robert. Superar os obstáculos na resolução de conflitos. In:
LEMPEREUR, Alain Pekar; SEBENIUS, James; DUXERT, Yann. Manual de
Negociações Complexas. Trad. Yves Bergougnoux. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 128;
GOULART, Bianca Bez. Análise Econômica do Litígio: entre acordos e ações judiciais.
Salvador: JusPodivm, 2019; MARCELLINO JUNIOR, Julio Cesar. Análise econômica
do acesso à justiça: A tragédia dos custos e a questão do acesso inautêntico.
Florianópolis: EMais, 2018; PATRÍCIO, Miguel C. T. Análise econômica da litigância.
Coimbra: Almedina, 2005.
79 MNOOKIN, Robert. Superar os obstáculos na resolução de conflitos. In:
LEMPEREUR, Alain Pekar; SEBENIUS, James; DUXERT, Yann. Manual de
Negociações Complexas. Trad. Yves Bergougnoux. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 129;
RAMOS, Ana Luísa Schmidt; MORAIS DA ROSA, Alexandre. O problema cognitivo
do discurso da sustentabilidade. In: Associação Internacional de Constitucionalismo,
Transnacionalidade e Sustentabilidade. 9 Seminário Internacional de Governança e
Sustentabilidade. Jun. 2017; Alicante, Espanha.
80 ALKON, Cynthia. Plea Bargaining as a Legal Transplant: A Good Idea for Troubled
Criminal Justice Systems? Transnational Law and Contemporary Problems, v. 19,
abr/2010, p. 394-395.
81 MNOOKIN, Robert. Superar os obstáculos na resolução de conflitos. In:
LEMPEREUR, Alain Pekar; SEBENIUS, James; DUXERT, Yann. Manual de
Negociações Complexas. Trad. Yves Bergougnoux. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 138:
“Claramente, uma proposta de troca de concessões ou de meios-termos entre adversários
pode se revelar extremamente problemática. O fato para uma parte de apresentar uma
oferta unilateral de concessão, acreditando que a outra a considerará válida, e o fato para
a outra de reagir desvalorizando-a aumentam as dificuldades de resolução”.
82 ZARTMAN, William I. Conceber a teoria da negociação como um meio de resolver
conflitos econômicos. In: LEMPEREUR, Alain Pekar; SEBENIUS, James; DUXERT,
Yann. Manual de Negociações Complexas. Trad. Yves Bergougnoux. Rio de Janeiro:
FGV, 2009, p. Zartman p. 21-22: “Esse dilema estabelece que quanto mais rígidos forem
os negociadores, mais eles serão capazes de obter uma grande parte do resultado, porém
menos estarão dispostos a querer obter um resultado (acordo). Ao contrário, quanto mais
flexíveis forem os negociadores, mais eles estarão suscetíveis a encontrar um acordo, mas
menos estarão aptos a levar uma parte importante do acordo obtido. Quando poderíamos
imaginar um ponto de equilíbrio por meio de uma estratégia mista, essa abordagem é
pouco segura, no melhor dos casos, irreal, na pior das hipóteses, e quase não serve como
quadro de referência ou de doutrina para os negociadores”.
83 COLSON, Aurélien. Administrar a tensão entre sigilo e transparência: os casos análogos
da negociação e das empresas. In: LEMPEREUR, Alain Pekar; SEBENIUS, James;
DUXERT, Yann. Manual de Negociações Complexas. Trad. Yves Bergougnoux. Rio de
Janeiro: FGV, 2009, p. 33-47.
84 SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração unilateral premiada como consectário
lógico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira
de Direito Processual Penal, vol. 3, n. 1, p. 131-166, jan./abr., 2017, p. 143: “A
promotoria não está obrigada a revelar as evidências restantes, nem tampouco esclarecer
se existiriam outras. Como qualquer negócio, não estariam as partes compelidas a exibir
as vulnerabilidades. Se a tese acusatória é frágil, que tal debilidade apareça somente no
julgamento, conforme decidiu a Corte de Nova Iorque em People v. Jones (1978). E a
Suprema Corte, em U. S. v. Bagley (1985), foi além, ao declarar que o não acesso da
defesa ao acervo probatório da acusação, mesmo às exculpantes, apenas vicia o negócio
jurídico se o acusado provar (ônus seu) que, caso tivesse tomado ciência deste, não teria
pactuado, preferindo o julgamento convencional, com todos os riscos a ele inerentes”.
85 LOPES JR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Saldão penal e a popularização
da lógica da colaboração premiada pelo CNMP. Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2017-set-22/limite-penal-saldao-penal-popularizacao-logica-
colaboracao-premiada-cnmp>; CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. O acordo de não-
persecução penal criado pela nova Resolução do CNMP. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2017-set-18/rodrigo-cabral-acordo-nao-persecucao-penal-
criado-cnmp>; MOREIRA, Rômulo de Andrade. No país das Resoluções e dos
Enunciados, quem precisa de lei. Disponível em:
<https://emporiododireito.com.br/leitura/no-pais-das-resolucoes-e-dos-enunciados-quem-
precisa-de-lei-1508416553>.
86 WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vieses da
Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação
contraintuitiva. Florianópolis: EMais, 2020; TOBLER, Giseli Caroline; MORAIS DA
ROSA, Alexandre; FALAVIGNO, Chiavelli Facenda. Cegueira Deliberada: o dolo na
lavagem de dinheiro em face das heurísticas e vieses decisórios. Florianópolis: EMais,
2020.
87 GICO JR., I.T. De Graça até Injeção na Testa: análise juseconômica da gratuidade de
Justiça, Economic Analysis of Law Review, 5, p. 167-168, 2014: “Tradicionalmente, os
integrantes da academia jurídica iniciam suas análises partindo do pressuposto de que o
direito é composto por normas e seu objeto prioritário de pesquisa é identificar o
conteúdo e o alcance dessas normas. A normatividade das regras jurídicas é pressuposta e
o instrumental de pesquisa predominantemente utilizado é a hermenêutica. (...) Por outro
lado, os juseconomistas têm como principal característica considerar o direito enquanto
um conjunto de regras que estabelecem custos e benefícios para os agentes que pautam
seus comportamentos em função de tais incentivos. Assim, a abordagem juseconômica
investiga as causas e as consequências das regras jurídicas e de suas organizações na
tentativa de prever como cidadãos e agentes públicos se comportarão diante de uma dada
regra e como alterarão seu comportamento caso essa regra seja alterada. Nesse sentido, “a
normatividade do direito não apenas não é pressuposta como muitas vezes é negada, isto
é, admite-se que regras jurídicas enquanto incentivos – em algum caso concreto – podem
ser simplesmente ignoradas pelos agentes envolvidos (Gico Jr., 2010, p. 21)”; LONGO,
Analú Liberato. Análise das alterações introduzidas pela Lei n. 12.683/2012 com base na
Teoria Econômica do Crime. Florianópolis: UFSC (Dissertação – Direito), 2018;
BECKER, Gary S.; LANDES, William M. Essays in the Economics of Crime and
Punishment. NewYork: Columbia University Press, 1974.
88 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2020; KHALED JR,
Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial.
São Paulo: Atlas, 2018; MORAIS DA ROSA, Alexandre; KALHED JR, Salah H. In
dubio pro Hell: profanando o sistema penal. Florianópolis: EMais, 2020.
89 “Se le ha puesto el nombre de ´fetichismo normativista` a la práctica según la cual las
autoridades públicas sancionan leyes, muchas veces con propuestas ambiciosas de
cambio y, luego, se despreocupan de su puesta en marcha. Tras esta práctica no se
encuentra una forma de “pensamiento mágico” –lo que sería una forma de volver
superficial el fenómeno con analogías fáciles, sino uno de los mecanismos más profundos
de pervivencia de la sociedad de privilegios, es decir, usar la legalidad como una
máscara de legitimidad y no como instrumento de realización de políticas efectivas.”
Disponível em: <http://biblioteca.cejamericas.org/bitstream/handle/2015/5254/binder-ref-
justicia.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Data da captura: 17/09/2020
90 Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jan-03/limite-penal-estrutura-
acusatoria-atacada-msi-movimento-sabotagem-inquisitoria>;
91 Inclusive em espantosa contradição com seu próprio voto, proferido na ADIn n. 5.240,
conforme apontamos em artigo publicado com Alexandre Morais da Rosa no sítio:
<https://www.conjur.com.br/2020-jan-24/limite-penal-liminar-ministro-fux-revogou-
decisao-plenario>.
92 Sobre o tema, importante a leitura do artigo que publicamos em coautoria com Thiago
Minagé no site: <https://www.conjur.com.br/2020-ago-07/limite-penal-oralidade-cultura-
audiencias-lei-13942019>.
93 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?
idConteudo=452951>.
94 No RHC 129.574/MG, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em
18/08/2020, DJe 04/09/2020: VI – Não há que se falar em nulidade em face da não
realização da audiência de custódia no caso concreto, pois esta Corte de Justiça tem se
posicionado no sentido de que, “tendo sido o auto de prisão em flagrante submetido ao
juiz para homologação, e convertido em prisão preventiva, fica superada a falta da
audiência de custódia, que tem como finalidade apresentar a pessoa presa em flagrante
ao juiz para que este decida sobre a necessidade ou não da prisão processual” (RHC n.
63.199/MG, Sexta Turma, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe de 3/12/2015). No CC
168.522/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em
11/12/2019, DJe 17/12/2019: 1. A audiência de custódia, no caso de mandado de prisão
preventiva cumprido fora do âmbito territorial da jurisdição do Juízo que a determinou,
deve ser efetivada por meio da condução do preso à autoridade judicial competente na
localidade em que ocorreu a prisão. Não se admite, por ausência de previsão legal, a
sua realização por meio de videoconferência, ainda que pelo Juízo que decretou a
custódia cautelar. No HC n. 610.839 – SP (2020/0228880-2), o Rel. Min. NEFI
CORDEIRO acompanhou o entendimento da turma, mas fez a ressalva de seu
entendimento pessoal sobre o tema: Em relação à ausência da audiência de custódia, o
entendimento majoritário desta Sexta Turma é no sentido de que sua não realização não
enseja nulidade da prisão preventiva em que posteriormente convertida, pois, observadas
as outras garantias processuais e constitucionais, resta superado o exame desse tema. A
propósito: AgRg no HC 353.887/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA
TURMA, julgado em 19/05/2016, DJe 07/06/2016; RHC 76.906/SP, Rel. Ministra
MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 10/11/2016, DJe
24/11/2016; RHC 63.632/PR, Rel. Ministro ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA
TURMA, julgado em 25/10/2016, DJe 18/11/2016. Fiquei vencido nos precedentes
citados e permaneço com igual compreensão. É a audiência de custódia requisito de
proteção para a prisão, que não resta superada pela conversão do flagrante em
preventiva. Em temas fundamentais ao processo e a constrição talvez seja aquele que
mais diretamente atinja a pessoa do acusado, a forma é instrumento de salvaguarda,
inarredável pelos danosos efeitos que provoca, tornando letra morta a garantia de
preservação pessoal assumida pelo país em compromissos internacionais e permitindo
não somente a proliferação desnecessária da segregação cautelar, mas também
impedindo o direito de contato pessoal do preso com seu juiz, assim como a constatação
direta pelo magistrado das condições físicas do preso e das circunstâncias de sua prisão.
Mais que forma, é defesa da preservação pessoal processualmente estabelecida em favor
do cidadão. Não obstante, por segurança jurídica, pois à sociedade desserve a
compreensão diversa de justiça unipessoal do integrante de colegiado, tão somente
ressalvo meu entendimento no tema e acompanho o resultado esperado e acima citado de
precedentes desta Sexta Turma.(...). Na 5ª Turma do STJ (HABEAS CORPUS n. 597864
– RN (2020/0176044-2, Rel. Min. REYNALDO SOARES DA FONSECA) o
entendimento foi além da dispensabilidade da AC em razão da pandemia, para afirmar
que “(...) De início, quanto à alegação de ilegalidade pela não realização de audiência de
custódia, não se ignora que a alteração promovida pela Lei n. 13.964/19 ao art. 310 do
Código de Processo Penal fixou o prazo máximo de 24 horas da prisão para a realização
da formalidade, sob pena de tornar a segregação ilegal. Entretanto, a nova redação do §
4º do referido artigo ressalva a possibilidade de que, constatada a ilegalidade da
custódia, seja imediatamente decretada nova prisão. A previsão legal converge,
portanto, em termos práticos, com o entendimento jurisprudencial pacífico nesta Corte,
no sentido de que “a conversão do flagrante em prisão preventiva torna superada a
alegação de nulidade relativamente à falta de audiência de custódia” (RHC 117.991/RS,
Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 17/12/2019, DJe
19/12/2019). Ademais, convém atentar que a norma foi suspensa por decisão liminar
proferida pelo Exmo. Min. Luiz Fux nos autos da Medida Cautelar na Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 6.305, do Distrito Federal, prevalecendo, portanto, por ora,
entendimento jurisprudencial estabelecido.”
95 STF, HC 176766, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em
04/05/2020: (...) “CUSTÓDIA – AUDIÊNCIA – REALIZAÇÃO – AUSÊNCIA. A falta de
audiência de custódia constitui irregularidade, não afastando a prisão preventiva, uma
vez atendidos os requisitos autorizadores do artigo 312 do Código de Processo Penal e
observados os direitos e garantias versados na Constituição Federal. PRISÃO
PREVENTIVA – TRÁFICO DE ENTORPECENTES – ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO
– ORDEM PÚBLICA. Decorrendo a custódia da prática dos crimes de tráfico de drogas
e associação para o tráfico, a teor de conteúdo de conversas armazenadas em dispositivo
de telefonia, indicando funções definidas dentro do esquema criminoso, revelados
indícios da continuidade da exploração do comércio ilícito mesmo após a apreensão de
tóxicos e a prisão de envolvidos, tem-se dados a sinalizarem a periculosidade do
envolvido, sendo viável a prisão preventiva.”
96 Sobre o tema das prisões cautelares, fundamento, requisitos e princípios, remetemos o
leitor para nossas obras “Direito Processual Penal” e “Prisões Cautelares”, ambas
publicadas pela Editora Saraiva.
97 Sobre o tema, remetemos o leitor para nossa obra “Fundamentos do Processo Penal”,
publicado pela Editora Saraiva, onde aprofundamentos essa questão.
98 Situação distinta, mas que poderá gerar alguma confusão com a nossa afirmação, está no
caput do art. 316: “O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão
preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para
que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a
justifiquem”. Primeiro ponto é: para revogar a prisão preventiva ele pode agir de ofício, e
o faz como garantidor da legalidade. Segundo ponto: mas então o juiz pode prender de
ofício? Não, a situação prevista neste artigo não autoriza essa conclusão, pois não se trata
de prisão decretada originariamente de ofício, senão de um imputado que está em
liberdade e descumpre as medidas cautelares diversas ou sobrevierem razões que a
justifiquem. Mas aqui ele não decreta originariamente, senão que “novamente” a decreta.
O pedido originário foi feito, depois o imputado é solto e então descumpre os requisitos
impostos e o juiz volta a decretá-la. De qualquer forma, o ideal é que o MP postule essa
nova decretação para estrita observância do sistema acusatório e para assegurar a estética
de imparcialidade do julgador, como já explicamos anteriormente.
99 Disponível em: <//www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?
idConteudo=452951>.
100 STJ. Habeas Corpus 583.995/MG. Rel. Min. Rogério Schietti Cruz. DJe 07/10/2020.
101 Disponível em:<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?
idConteudo=354431>.
102 AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. INDEFERIMENTO LIMINAR.
SÚMULA 691 DO STF. EXCESSO DE PRAZO PARA FORMAÇÃO DA CULPA.
DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO. PRAZO DE 90 DIAS PARA
REAVALIAÇÃO DA PRISÃO. ART. 316, PARÁGRAFO ÚNICO DO CPP. AGRAVO
IMPROVIDO. (...) 3. O prazo de 90 dias para reavaliação da prisão preventiva,
determinado pelo art. 316, parágrafo único, do CPP, é examinado pelo prisma
jurisprudencialmente construído de valoração casuística, observando as complexidades
fáticas e jurídicas envolvidas, admitindo-se assim eventual e não relevante prorrogação
da decisão acerca da mantença de necessidade das cautelares penais. 4. Agravo
regimental no habeas corpus improvido. (AgRg no HC 579.125/MA, Rel. Ministro NEFI
CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 09/06/2020, DJe 16/06/2020)
103 O artigo de Paulo QUEIROZ está disponível no site:
<https://www.pauloqueiroz.net/sobre-a-revisao-obrigatoria-dos-fundamentos-da-
preventiva/>. Data da captura: 03/07/2020
104 O excelente texto de Paulo Queiroz, de onde extraímos apenas um trecho, é bem mais
amplo, trazendo ainda uma análise importante da prisão preventiva. Recomendamos a
leitura no sítio: <https://www.pauloqueiroz.net/a-nova-prisao-preventiva-lei-n-13-964-
2019/>.
105 O que segue é uma síntese de vários pontos tratados na magistral obra de Geraldo
Prado, intitulada Prova Penal e sistema de controles epistêmicos. A quebra da cadeia de
custódia das provas obtidas por métodos ocultos, São Paulo, Marcial Pons, 2014.
Também consultamos o artigo “Ainda sobre a quebra da cadeia de custódia das provas”,
in Boletim do IBCCrim, n. 262, setembro de 2014, p. 16-17, do mesmo autor.
106 Em nossa obra “Direito Processual Penal”, a partir da 17ª edição onde incluímos esse
tema, publicada pela Editora Saraiva.
107 Em capítulo próprio de nossa obra “Direito Processual Penal’, publicado pela editora
Saraiva, para onde remetemos o leitor para evitar longa repetição.

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