Lá Pietá o Diabo É Mulher e Mãe
Lá Pietá o Diabo É Mulher e Mãe
Lá Pietá o Diabo É Mulher e Mãe
Campo Grande | MS
Vol. 23 | Nº 46 | 2019
Salma Ferraz1
Resumo: O presente artigo analisa a presença do Diabo em sua forma feminina nos contos
infanto-juvenis Tereza Bicuda (1988), de Ciça Fittipaldi, e no conto A diaba e sua filha (2000), da
francesa Marie Ndiaye.
Palavras-chave: Teologia; Demonologia; Literatura infantil; Diabo; Diaba.
Abstract:This article analyzes the presence of the devil in female form in tales for children and
young Tereza Bicuda (1988) by Ciça Fittipaldi, tale A diaba e sua Filha (2000) by Marie Ndiaye.
Key Words: Theology; Demonology; Children's Literature; devil demoness
1
Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Brasil.
Realizou estágio pós-doutoral em Letras na Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil. É
Livre Docente em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil. Professora
Associada da Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil. E-mail: salmaferraz@gmail.com.
Lá Pietá: o Diabo é mulher e mãe piedosa!
1. O Diabo é teen
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Ilustração 2
2
Cabe relembrar aqui a consagrada crítica de Carlos Drummond de Andrade em Confissões de
Minas: “O gênero ‘literatura infantil’ tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá música
infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literária deixa de constituir alimento
para o espírito da criança ou do jovem e se dirige ao espírito adulto? [...] Será a criança um ser
à parte, estranho ao homem, e reclamando uma literatura também à parte? Ou será a literatura
infantil algo de mutilado, de reduzido, de desvitalizado – porque coisa primária, fabricada na
persuasão de que a imitação da infância é a própria infância?” (Negrito nosso).
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cristão, recontado por Ângela Lago e com uma leve mãozinha de Albrech
Dürer”3, A Noiva do Diabo (2000), de Celso Sisto, recontagem de uma estória
popular.
Neste artigo irei me debruçar sobre dois contos atuais em que o Diabo
assume o papel feminino, um brasileiro e outro francês: Tereza Bicuda (1988),
de Ciça Fittipaldi, e A Diaba e sua Filha (2000), de Marie Ndiaye.
Nas próprias imagens que ilustram este item, podemos ver como a
imagem do Diabo muda de tempos em tempos. Poderíamos afirmar que cada
época concebe um rosto para o Diabo. A Ilustração 2 nos remete ao Diabo
tradicional: chifres, capa vermelha, unhas imensas, barba de bode, olhos
amarelados, circundado por um gato com olhos da mesma cor que ele.
Certamente que essa imagem que ilustra o conto Os três cabelos de ouro do
Diabo é usada para causar espanto e medo no pequeno leitor. Já imagem da
Ilustração 1, Lúcifer de Liège, também conhecida como Le génie du mal, é uma
estátua esculpida por Guillaume Geefs (1848), retratando Lúcifer, o anjo que
caiu do céu. Atualmente ela está exposta no púlpito da catedral de Saint-Paul de
Liège na Bélgica.
A imagem causa espanto por sua beleza, mas é um retrato que mais se
aproxima do relato bíblico. Afinal Lúcifer, segundo a Bíblia era o mais belo e
inteligente dos anjos, não tinha nada a ver com chifres, enxofre, pés de bode. O
Lúcifer de Liège está na soleira, no entrelugar, nas pregas do sagrado e do
profano. Ainda é um anjo magnífico, mas já traz em si as marcas das da queda:
a tristeza no olhar, as asas não tão delicadas, com marcas que lembram as asas
de um morcego, o cetro quebrado e a coroa que não está mais na cabeça. Entre
3
Prêmio O melhor livro para criança (1992) da FNLIJ, Prêmio Jabuti de editoração (1992) da
CBL.
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os cabelos angelicais, surgem dois chifres. Por sua beleza, está exposto no
púlpito de uma Igreja Cristã. Talvez, Liège quisesse que os cristãos tivessem
misericórdia desse anjo/demônio, porque soubesse que, no fundo, somos
também luciféricos bifrontes.
4
http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/prima-pagina-cic_po.html publicado
em 1985.
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D.5 Demônio
D.5.1 Anjos caídos
§ A Escritura e a Tradição da Igreja vêem neste ser um anjo
destronado [...]
§ O Diabo é "pecador desde o princípio" (I Jo 3:8), "pai da mentira"
(Jo 8:44).
§ Satanás ou o Diabo, bem como os demais demônios, são anjos
decaídos por terem se recusado livremente a servir a Deus a seu
desígnio. Sua opção contra Deus é definitiva. Eles tentam associar o
homem à sua revolta contra Deus.
D.5.4 Exorcismos para expulsar os demônios
§ O advento do Reino de Deus é a derrota do reino de Satanás [...]
"Regnavit a ligno Deus - Deus reinou do alto do madeiro".
D.5.5 Idolatria e recurso aos demônios
§ Todas as formas de adivinhação hão de ser rejeitadas: recurso a
Satanás ou aos demônios, evocação dos mortos ou outras práticas
que erroneamente se supõe "descobrir" o futuro. [...]
§O uso de amuletos também é repreensível. O espiritismo implica
frequentemente práticas de adivinhação ou de magia. Por isso a Igreja
adverte os fiéis a evitá-lo. [...]
D.5.6 Jesus e as tentações do demônio
§ No final dessa permanência, Satanás o tenta por três vezes
procurando questionar sua atitude filial para com Deus. Jesus rechaça
esses ataques que recapitulam as tentações de Adão no Paraíso
e de Israel no deserto, e o Diabo afasta-se dele "até o tempo
oportuno" (Lc 4,13).
D.5.7 Jesus e seu domínio sobre os demônios
§ Cristo crucificado e ressuscitado quebrou o poder do Maligno [...]
§O advento do Reino de Deus é a derrota do reino de Satanás [...]
§ Por sua paixão, Cristo livrou-nos de Satanás e do pecado.
§ A vitória sobre o "príncipe deste mundo" foi alcançada, de unia vez
por todas, na Hora em que Jesus se entregou livremente à morte para
nos dar sua vida. [...]
D.5.9 Luta contra o poder das trevas
§ Pelo pecado dos primeiros pais, o Diabo adquiriu certa dominação
sobre o homem, embora este último permaneça livre. [...]
D.5.10 Obras do demônio
§ Ele não passa de uma criatura, poderosa pelo fato de ser puro
espírito, mas sempre criatura [...]
2 "Homicida desde o princípio, mentiroso e pai da mentira" (Jo 8,),
"Satanás, sedutor de toda a terra habitada" (Ap. 12:9), foi por ele que
o pecado e a morte
D.5.11 Origem do mal e Significação e etimologia da palavra "diabo"
§ "Deus não fez a morte, nem tem prazer em destruir os viventes... Foi
pela inveja do Diabo que a morte entrou no mundo" (Sb 1:13, 2:24).
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https://pt.wikipedia.org/wiki/Yazidi. Consultando em 20.04.2016, negrito nosso
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Por que digo mais cristã que a nossa? Porque ele, o anjo, Melek Taus é
perdoado e reconciliado com Deus. Os Yazidis são trucidados pelos sunitas
fundamentalistas, pelo Estado Islamico e pelo El.
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sobre Deus tem que se defrontar com o problema do mal, senão perde toda sua
seriedade. Para esses teólogos, “o problema da existência dos Demônios e do
Diabo só pode ser posto e resolvido de modo satisfatório à luz do problema
teológico do mal” (KASPER; LEHMANN, 1992, p.8).
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Para Bars van Iersel, o demônio é o nada, enquanto que, para o teólogo
norte-americano católico John Quinlan, o Diabo é um resíduo das religiões
animistas (RICONDO, 2008, p.251-254). Walter Kasper aponta que os teólogos
modernos questionam a crença tradicional do Diabo:
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os anjos não estão no centro dos Evangelhos, são verdades marginais, porém o
centro é melhor definido a partir da periferia. Anjos e Demônios estão na periferia
da Cristologia, esta sim essencial para a salvação. Fica aqui uma pergunta: é
possível discutir o mal adequadamente? Para Kasper, em última análise, o mal
é um mistério impenetrável ao nosso intelecto, relembrando que a Sagrada
Escritura fala de mysterium iniquitatis.
O Diabo não é uma figura pessoal, mas a negação de uma figura que
se dissolve em qualquer coisa anônima, sem rosto, um ser que se
perverte do não-ser; ele é pessoa na maneira de negar a pessoa
[...] ele é a destruição progressiva de si próprio e ao mesmo tempo a
destruição de toda e qualquer ordem cósmica [...] ele é até a essência
a mais alta representação das potencias destrutivas, do elemento
negativo e caótico do mundo [...] por isso o Diabo é de fato em certo
sentido uma figura ridícula [...] é um nada aos olhos de Deus.
(KASPER; LEHMANN, 1992, p. 64-68. Negrito nosso)
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Para Karl Barth (1886-1968), o mal é o nada, é uma terceira via: nem
Deus nem criatura, mas o Não Querer de Deus, o lado negativo e oposto da
eleição.
6
Teólogo holandês católico.
7
Teólogo alemão católico.
8
Teólogo holandês católico.
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seus anjos, já que é credo popular entre os cristãos que Lúcifer foi vencido na
cruz (mas continuam a temê-lo...). O outro problema, com os quais esses
teólogos se debatem, é que se negarmos a existência do Diabo, o cristianismo
perde um dos seus principais sustentáculos, e está errado desde o começo. A
Sataniceia, termo cunhado por mim em meu livro As Malasartes de Lúcifer (2012)
é necessária como contraposição da Teodiceia e complementação perfeita do
Teodrama.
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Ilustração 4, Asherad
Difícil escolher qual conto de engano aqui citar, mas escolhi de minha
preferência: Belfegor, o arquidiabo: a fábula do Diabo que se casou, de
Maquiavel (1469-1527). Nesse conto, todos os homens chegam ao inferno
reclamando que se perderam por causa das mulheres. É feita uma assembleia
9
A mulher ocidental quer seja na vida real ou nos contos, nunca aceitou o silêncio que lhe foi
imposto pelo judaísmo e cristianismo. Remetemos o leitor a um artigo de autoria de Julio de
Queiroz intitulado A Mulher na Humanidade, do Livro Pelas Frestas da Caverna: ensaios (Edifurb,
2013)
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e o arquidiabo, que já fora arcanjo, por ordem de Plutão, vem a terra e se casa.
Rodrigo de Castela, o próprio arquidiabo, sofre tanto nas mãos de sua mulher
Honesta, que resolve voltar para o inferno antes do tempo. Assim como esse,
em vários outros contos a mulher ajuda o marido a enganar o Diabo e livrar-se
de uma promessa ingrata, em muitos casos livrar-se de um pacto que exigia a
entrega de um filho em troca de uma vida rica. Este conto é recontado
brilhantemente por Ângela Lago no livro Muito Capeta publicado em 2004, com
projeto gráfico precioso ilustrado pela própria autora.
Aqui o Diabo sofre, não nas mãos da mulher, mas da sogra. Tanto no
conto de Maquiavel quanto no conto de Ângela Lago, o Diabo se apaixona e
sofre nas mãos de mulheres. Noutros, o Diabo é salvo pelo amor de uma mulher,
como no conto de origem francesa Roberto do Diabo, recontado por Ricardo
Azevedo. Já no conto popular A noiva do Diabo, recontado por Celso Sisto, é a
noiva quem se apaixona e é abandonada no meio de um baile. Em outros a
mulher ajuda a enganar a própria morte, mas são poucos os livros em que o
Diabo veste saia, ou seja, apresenta-se como uma mulher, a própria Diaba.
Escolhi dois contos da produção da LIJ atual em que temos uma Diaba:
Tereza Bicuda da brasileira Ciça Fittipaldi, escrito a partir de um conto popular
(1988) e A diaba e sua filha da francesa Marie Ndiaye (2011).
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Detestava criança e nunca quis ser mãe. Também, expulsou o marido de casa,
amaldiçoando-o. O pobre morreu à míngua no meio do mato, sem ninguém.
Toda a riqueza ela pôs a perder, escravos fugiram, empregados sumiram, a
fazenda foi invadida pelo mato e os alimentos, invadidos pelos bichos. Foi a partir
disso que ela enfeou, da sua boca saía tantos palavrões que ela ganhou um bico
no lugar da boca, por isso ficou conhecida como Tereza Bicuda. Gastou todo o
seu dinheiro para ser bela novamente, mas nada adiantou. Seu último recurso:
Como sua beleza não voltou, passou a amaldiçoar a tudo e a todos. Com
seu olho gordo secava tudo que olhava, o seu cuspido enchia a terra de bicho,
seu viver era fazer ruindade, as pessoas se benziam contra ela, fazendo sinal da
cruz, de medo de mal olhado e do bico de Tereza. Uma mocinha a chamou de
Bicuda caranguejeira, beiço grosso de torresmo e caiu dura na hora. Tereza
perdeu tudo que tinha e sua pobre mãe, ouvindo gritos e mais gritos, era quem
lavava os seus trapos. Trabalhava com a enxada para sustentar as diabruras da
filha. Mas a pior de todas as maldades que esta dama das trevas cometeu foi o
que fez contra a sua pobre, velha e dedicada mãe: pôs a mãe para pedir esmola
e se faltasse alguma coisa, batia na velha até correr sangue.
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Consultar as diversas versões da Lenda tradicional portuguesa da Dama do Pé-de-Cabra
disponível em diversos sites na internet.
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negros e delicados assustavam a todos. [...] Todos tinham piedade dela até que
visualizassem os seus pés, a partir daí reinava o medo. Pensavam que a diaba
inventava essa estória para entrar nas casas da aldeia. Ela se lembrava de que
um dia segurou uma criança em seus braços, a quem havia amado, alimentado
e acariciado. Um dia sua filha desapareceu e ela passou a ter no lugar dos pés
cascos negros e delicados. Não sabia quando nem onde, mas sua casa e sua
filha desapareceram: Simplesmente aconteceu. [...] A partir daí passou a se
esconder nas florestas. Saía à noite e quando avistava uma criança corria em
direção a ela para ver se não era sua filha perdida. As crianças morriam de medo
da diaba de cascos de cabra.
Assim que saiu da floresta, avistou uma pequena silhueta de uma menina
sentada à beira da estrada, correu em direção a ela com o coração tão ofegante
que nem ouviu mais o bater dos seus cascos. Chegou perto e viu que a menina
tinha trancinhas no cabelo: “- Venha, venha comigo, disse a diaba, muito
docemente” (Ndiaye, 2011, p.30). De mãos dadas voltaram à floresta, quando a
diaba notou que a criança mancava, baixou os olhos e viu que os pés da menina
eram deformados. Naquela manhã os habitantes expulsaram a menina.
Acreditavam que haviam encontrado a filha da diaba: “Vamos enxotar essa aí ou
ela vai nos trazer a desgraça. Esses pezinhos deformados se transformarão em
cascos e então será tarde demais.” (Ndiaye, 2011, p.32). A diaba viu que a
menina tinha dificuldade para caminhar e a pegou no colo, enlaçando-a em seus
braços. A menina abraçou o pescoço da diaba e suspirou de alívio. [...] A diaba
caminhava rumo à floresta enquanto a menina dormia tranquila em seus braços.
O coração da diaba batia forte e a noite estava calma e quente. Vale a pena citar
o final do conto:
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Ilustração 7 La Pietá
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alia para morrer. Ela não encontra a sua filha, mas encontra uma criança de pés
aleijados e ao enlaçá-la em seus braços um ser rejeitado, o outro, o diferente,
que fora deixada fora da vila para morrer, seus cascos se transformam em pés
delicados. De certa a forma é ela que atrai para si a filha, porque os aldeões
desconfiavam de que a menina poderia ser filha da diaba por causa dos pés mal
formados, que poderia se transformar em cascos no futuro11.
Ilustração 8
11
Isso nos faz lembrar o romance Vitório, o vampiro de Anne Rice. Neste romance há uma cidade
chamada Santa Maddalana, ali não havia nenhum aleijado, deformado, doente ou velho
incapacitados. Estes eram dados como prato principal, ou melhor, uma espécie de dízimo negro
para os vampiros da Corte do Graal de Rubi, que assim não matavam as pessoas sãs.
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