O Alcorão, Michael Cook
O Alcorão, Michael Cook
O Alcorão, Michael Cook
Biblioteca COMPREENDER George Sale, que publicou a primeira boa tradução para inglês do
Alcorão em 1734, apressou-se a assegurar aos seus leitores que ne-
O ALCORÃO
nhum bom cristão «pode recear qualquer perigo de uma tão evidente
Autor: Michael Cook
Título original inglês: The Koran falsificação», Num ataque à «comunidade católica», observou que «SÓ
© Michael Cook 2000 os protestantes são capazes de atacar o Alcorão com sucesso; e acredito
que a Providência lhes reservou a eles a glória do seu derrube». Claro
Tradução: João Manuel Pinheiro
Revisão: António José Massano que a Providência não fez nada disso. Contudo, os comentários de Sale
Pintura da capa: Philipe Atkins serviram os seus objectivos. Sendo indubitavelmente um cristão e, tal-
vez, o que é mais importante, um cristão às direitas, sentiu-se livre para
The Koran was originalfy published in engtish in 2000.
rejeitar ·<designações infamantes e expressões indelicadas» referentes
This translation is published by arrangement with/
Esta tradução é publicada com o acordo de: a Muhamrnad' e ao Alcorão. AJJ apresentar as caracteristicas do livro,
descreveu o seu estilo como «geralmente belo e fluente» e ·~em muitas
OXFORD
passagens, especialmente quando a majestade e os atributos de Deus
A Very Short lntroduction são descritos, sublime e magnificente». Um exemplo que destacava na
e licença editorial cedida por cortesia de Editora Temas e Debates sua tradução é o «versículo do trono» (Q2:255), apressando-se a acres-
centar que «não é suposto que a tradução iguale em dignidade o origi-
1a Edição. Abril de 2006
Depósito Legal: 241618/06 nal», um problema que ainda hoje partilhamos com ele.
ISBN: 989-552-187-1 Felizmente que já não é necessário, para um autor ocidental, iniciar
Adaptação gráfica e paginação: Fábrica Mutante um livro sobre o Alcorão da mesma maneira que Sale. Hoje em dia, na
Impressão e acabamento: Rainha & Neves, Santa Maria da Feira
Grã-Bretanha, até os membros da comunidade católica estão emanci-
QUASI EDIÇÕES pados. O meu ponto de partida está possivelmente mais perto, em es-
Apartado 562, 4764-901 Vila Nova de Famalicão pírito, do idioma de um contemporâneo de Sale, Edward Gibbon, que,
quasi@doimpensavel.pt
no seu capítulo sobre a carreira do Profeta, escreveu o seguinte: «Não é
www.doimpensavel.pt/quasl
tel. 252 371 724 a divulgação mas a perdurabilidade da sua religião que merece a nossa
fax. 252 375 164 admiração: a mesma impressão pura e perfeita que ele gravou em Meca
e Medina foi preservada, depois de doze séculos de revoluções, pelos
prosélitos indianos, africanos e turcos do Alcorão.» Não estou certo de
acreditar em tudo o que diz Gibbon, mas, como as suas palavras suge-
rem, o Alcorão constituiu um núcleo de identidade e continuidade ex-
1
O Profeta, vulgarmente conhecido em português por Maomé. (N. do E.)
traordinariamente forte para uma tradição re_ligiosa que já tem quinze Agradecimentos
séculos. A presente obra aborda o papel do Alcorão na história religiosa
do mundo islâmico.
Devo, talvez, um esclarecimento sobre o modo como organizei o li-
vro. Depois de dois capítulos introdutórios (l_a Parte), preferi escrever
a história ao contrário. Começo, pois, com o período moderno (2.a Par-
te), seguindo depois para o mundo muçulmano tradicional (3.a Parte) Este livro beneficiou muito dos comentários que mereceu, ainda em
e, finalmente, para a formação do Alcorão (4. 3 Parte). A razão desta manuscrito, de Mike Doran, Andras Hamori, Patricia Crone e de leitores
escolha é óbvia: para qualquer pessoa, à excepção dos especialistas, os anónimos da Oxford University Press. Também deve muito à prontidão
fenómenos dos nossos tempos são mais fáceis de entender do que os do de muita gente em responder às minhas dúvidas e solicitações. Entre
passado. eles incluo Shahab Ahmed, Ana Berlin, Adrian Brockett, Houchang
Chehabi, François Déroche, Khaled Fahmy, Walter Feldman, Bernard
Haykel, M. J. Kister, Etan Kohlberg, Wilferd Madelung, S. Nomanul
Haq, Everett Rowson, Elizabeth Sartain, Estellc Whelan (já falecida) e
Jan Just Witkam.
Uma das minhas maiores dívidas é para com aqueles que me aj u-
daram a obter e a compreender o material manuscrito em espanhol,
polaco e africânder que aparece nas figuras 18-20. Para o texto espa-
nhol, estou em dívida para com Consuelo López-Morillas, pela preciosa
assistência c orientação, e para com Maribel Fierro por, entre outras
coisas, me ter ajudado a obter a reprodução. Quanto ao texto polaco,
não me teria sido possível obter a sua reprodução sem o apoio constante
de Oleg Grabar, ou ler o texto com alguma segurança sem as recomen-
dações de Peter Golden; e estou agradecido a Kathleen Knight-O'Neill
pela assistência técnica. Devo o texto africânder a Shamil Jeppie, que
também mo transcreveu e traduziu; Beatrice Gruendler e Garyvan Wyk
ajudaram-me a resolver dúvidas.
Provavelmente, muitos dos que me auxiliaram não sabiam que eu
estava a escrever este livro e nenhum deles é, de qualquer modo, res-
ponsável pelo seu conteúdo.
.C'•N~._..,..._,.., _ _ _ _, '''"'"'"'-'""""""""~-..-----
A formação do Alcorão
PRIMEIRA PARTE
Uma nota sobre o árabe 135
Introdução
Indo mais adiante 138
lista das ilustrações 141
Capítulo 1 Preâmbulo 10
Capítulo 2 A mensagem do Alcorão 14
SEGUNDA PARTE
TERCEIRA PARTE
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O objectivo deste mapa é srtuar locars do texto. Contém informação relacionada com uma varredade de períodos
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texto. Mas isto não é uma conclusão categórica: a transmissão oral pode
Capítulo 1
atingir uma fidelidade extraordinária, e a transmissão escrita pode ser
Preâmbulo bastante descuidada.
As observações que se seguem pouco mais são do que senso comum,
mas servem, no entanto, para enquadrar um facto histórico bastante re-
levante. Cada uma das principais tradições euro-asiáticas que dori:rlnam
a história da cultura erudita possuiu um corpo de textos sapienciais,
A ideia de escritura cuja transmissão foi fulcral para o progresso da sua identidade. Os Gre-
A linguagem existe para as pessoas falarem umas com as outras. É gos tiveram Homero, os judeus e os cristãos a sua Bíblia, os zoroastria-
normalmente utilizada num dado instante, dissipando-se as palavras nos a sua Avestá, os hindus os seus Vedas, os budistas os seus Tripitakas,
rapidamente. Muitos esquecem-se da maior parte do que dizem e ou- os Chineses os seus clássicos, e os muçulmanos o Alcorão. Estes textos,
vem ou, no melhor dos casos, apenas se lembram do essencial. Mas, em termos de características e conteúdo, não têm muito em comum.
havendo vontade de o fazer, é possível criar e conservar um aparato Quem, baseando-se apenas nisso, pensaria em colocar a Ilíada, o Alco-
linguístico que tenha uma existência que vá além daquilo que uma pes- rão e os hexagramas do I ching na mesma prateleira? Nem há nada de
soa diga a outra numa dada ocasião. Qualquer canção de embalar pode muito uniforme acerca do modo como esses textos foram preservados,
servir de exemplo. Se alguém nos disser «Ó papão, vai-te embora de bai- não considerando o facto de, mais tarde ou mais cedo, terem sido todos
xo desse telhado», podemos objectar imediatamente que isso não está transcritos. O que eles compartilham, apesar dessa variedade, é a sua
certo_ O facto de fazermos uma objecção mostra que nos relacionamos centralidade nas respectivas culturas.
com um texto. Não existe uma palavra que designe este conjunto de textos canó-
Num sentido mais comum, qualquer texto reclama para si uma certa nicos e os distinga da série de canções de embalar, constituições, ro-
autoridade: estas, e não aquelas, são as palavras da canção de emba- mances, e assim por diante. Alguns são habitualmente referidos como
lar. Mas, na prática, não é provável que as palavras de uma canção de «clássicos». Este termo era utilizado habitualmente para designar as
embalar tenham a mesma autoridade de, por exemplo, a Constituição obras-primas literárias da Grécia e da Roma antigas, as epopeias homé-
dos Estados Unidos da América. Especialmente em épocas em que a ricas e, por analogia, passámos a falar dos «Clássicos chineses>>, Contu-
preservação de textos não era tão fácil como hoje, podia esperar-se que do, não nos sentimos à vontade para aplicar o termo a textos revestidos
as sociedades envidassem os seus melhores esforços para preservarem de uma forte autoridade religiosa. Neste caso, a palavra mais frequen-
aqueles que consideravam de maior autoridade. Uma forma de um tex- temente utilizada é «escritura»: a Bíblia é o caso paradigmático e, por
to ter autoridade suprema é ser sagrado, mas, claro, não é a única. extensão, temos tendência para nos referirmos às <<escrituras» zoroas-
A maneira como uma sociedade se dedica à preservação de um texto triana, hinduísta e budista. Mas a sua utilização destoa, uma vez que
sapiencial pode variar. Por exemplo, pode ou não sentir-se obrigada a nas próprias culturas o Avestá, os Vedas e os Tripitakas são concebidos
reproduzir sempre esse texto com as palavras exactas; pode preservar não como textos escritos, mas como textos de transmissão oral. Feliz-
o texto sob uma forma meramente oral, recorrendo a técnicas de mne- mente que o dilema não se põe com o Alcorão, que é um texto escrito
mónica de graus diversificados de sofisticação para impedir o declínio como a Bíblia
natural da memória humana; ou pode utilizar uma fonna de registo es- Não admira que o Alcorão tenha algo de comum com a Bíblia. Ape-
crito. Em geral, faz sentido supor que uma sociedade que detém o uso sar de os dois textos terem sido escritos com um intervalo de mais ou
da escrita terá mais condições para preservar as palavras exactas de um menos um milénio, são oriundos da mesma zona do mundo e da mesma
10 11
larga tradição monoteísta que lhe é própria. Todavia, não devemos es-
quecer o vasto campo das <<escrituras» e «clássicos» euro-asiáticos. Irá
fornecer-nos algumas comparações úteis ao longo deste livro, ajudan-
do-nos a compreender quer a natureza do Alcorão, quer o papel que
desempenhou na cultura a que pertence.
12 13
Capítulo 2
A mensagem do Alcorão
A Fatiha
14 15
se jtmtavam e não teríamos nenhum sentido concreto sobre como as Iremos saber mais sobre o pecado de desviar outros de Deus quando
pessoas no Bom Caminho se diferenciavam das do deserto. Podemos abordarmos os Seus inimigos. Mas, antes de o fazermos, vale a pena su-
agora, felizmente, começar a folhear o resto do livro. Uma boa maneira blinhar a noção que aparece neste versículo da submissão a Deus, ou de
de começar é ver o que o Alcorão tem a dizer acerca daqueles que estão nos entregarmos inteiramente e Ele (i.slam); foi desta ideia que nasceu
à direita de Deus. a palavra «Islão».
18 17
tância do que qualquer outra para a mensagem do Alcorão, que é a de Deus se encherá de ira contra eles, os amaldiçoará e lhes preparará o Infer-
faltar com o culto ao Deus único (shirk, traduzido convencionalmente no. Que péssimo destino! (Q48:6)
por «politeísmo»). Podemos também equiparar os inimigos de Deus aos «que se extra-
A falta pode ser uma questão de idolatria do mais alto grau. Um ver- viaram» e aos «incrédulos». A animosidade é múrua:
sículo relata as origens do incidente do culto do bezerro que teve lugar
Quem será inimigo de Deus, dos seus Anjos, dos seus enviados, de Gabriel
entre os israelitas a seguir ao êxodo do Egipto:
e de Miguel? Na verdade, Deus é inimigo dos incrédulos. (Q2:98)
Fizemos os Filhos de Israel passar o mar, e chegaram ao território de um
povo que adorava os seus ídolos. Os Filhos de Israel disseram: "Moisés! (Miguel, tal como Gabriel, é um anjo). Tudo isto pode parecer que
Dá-nos um deus como os deuses que eles têm.» (Q7:138) todos aqueles que se oponham a Deus não têm qualquer saída. Mas, fe-
lizmente, não é bem assim.
Ao que Moisés respondeu:
«Procurar-vos-ci um deus fora de Deus, quando Ele vos favoreceu por cima
Orientação
dos Mundos?» (Q7:140)
Como já vimos, os amigos e os inimigos de Deus estão em pólos
Mas a ofensa pode ser ainda mais subtil do que isto, como num ver-
opostos, neste mundo e no próximo. Mas é certamente dificil que os
sículo que aponta o facto de ser mais perigoso andar no mar do que em
membros dos dois gmpos estejam permanentemente bloqueados; se
terra seca:
assim fosse, não seria necessário rogar a Deus que «nos guie no Bom Ca-
Quando embarcam no navio rogam a Deus, oferecendo-Lhe o culto. Mas minho». Presumivelmente, é possível, pelo menos para alguns, «dentre
quando os conduz sãos a rerra, eles associam-Lhe ídolos. (Q29:65} os que se extraviaram», encontrar o «Bom Caminho». O que torna possí-
Nem no mar nem em terra vão estes transgressores tão longe para vel que isto aconteça, sugere a Fatiha, é a orientação de Deus (huda).
negar Deus; chega para os amaldiçoar que, num destes contextos, te- A Fatiha não dá qualquer indicação de como Deus exerce esta orien-
nham associado outros a Ele. Essa gente pode até reclamar que esses tação. Podemos ser tentados a imaginá-la como uma força espiritual
outros não são mais do que intercessores a mediarem as suas relações invisível e silenciosa, que imperceptivelmente penetra nos corações dos
com Deus: homens. Na realidade, é uma orientação caracteristicamente pública.
Conforme vimos em alguns versículos já citados, Deus tem os seus men-
Adoram, prescindindo de Deus, o que não os prejudica nem favorece e di-
sageiros e profetas; entre estes, incluem-se algumas bem conhecidas
zem: «Estes são os nossos intercessores junto de Deus.» {Q10:18)
figuras da tradição judaico-cristã, como Noé, Abraão, Moisés e Jesus,
Mas mesmo isto não os ajuda, pois não conseguiram fazer da sua juntamente com alguns mensageiros árabes, como Sáleh. O seu princi-
religião a religião de Deus. pal papel é serem portadores da orientação de Deus, como no versículo
Todos os que se comportam dessa forma são objecto da cólera divi- que se segue (que, julgamos, se refere ao próprio Muhammad):
na. Quando os israelitas caíram na idolatria, Moisés disse: Foi Ele quem mandou o Seu Enviado, com a direcção e a religião verda-
,,Aos que tomaram por ídolo o Bezerro, atingiu-os um castigo vindo do seu deira, para que prevaleça sobre todas as religiões, ainda que os idólatras
Senhor.» (Q7:152) O odeiem. (Q9:33)
Também os hipócritas e aqueles que não conseguem prestar culto só A orientação trazida pelo mensageiro consiste, muitas vezes, apenas
a Deus enfrentam um futuro medonho: numa mensagem oral, como no caso da missão de Sáleh aos Tamuds.
18 19
Mas em alguns casos - os que mais interessam - o mensageiro traz a Assim: «A verdade provém do vosso Senhor; quem quer crê e quem quer
mensagem sob a forma de Escritura. Esta passagem pode ser entendida não crê.» (QI8:29)
como uma referência ao Alcorão:
Mas outros versículos indicam que a escolha pertence a Deus, por
Eis o Livro, que, sem dúvida, é um guia para os piedosos [... 1; os que crê- exemplo:
em no que te foi revelado, quer antes de ti, quer depois: disso eles estão
Na verdade, aos que são incrédulos é-lhes indiferente que os advirtam ou
convencidos. Esses estão no caminho que conduz ao seu Senhor e serão
não: eles não crêem. Deus selou os seus corações e os seus ouvidos; sobre a
bem-aventurados. (Q2:2, 4, 5) >
sua vista encontra-se um véu. Terão o merecido castigo. (Q2:6-7)
Uma tal orientação divina pode salvar aqueles que se extraviaram:
A compaixão está aqui manifestamente ausente e podemos até falar
Deus favoreceu os cremes ao mandar entre eles um Enviado escolhi~
de má orientação. Há, de facto, referências frequentes no Alcorão a ac-
do entre as suas pessoas, que lhes recita os seus versiculos, os purifica e
ções de Deus que levam ao extravio das pessoas:
lhes ensina o Livro e a Sabedoria, apesar de antes andarem extraviados.
(Q3:164) Se Deus quisesse, teria feito de vós uma comunidade única; mas extravia
a quem quer e conduz a quem quer. Pergnntar-se-vos-á acerca do que ti~
Os futuros seguidores de Muhammad viviam anteriormente no verdes feito. (Q16-93)
deserto; agora, graças à orientação que Deus lhes deu, estão no Bom
Caminho. Como, podemos perguntar, podem ser responsabilizados os inimi-
Mas é necessário mais do que a chegada da orientação divina para gos de Deus pelas suas más acções quando foi Deus que escolheu extra-
que se concretize o feliz resultado. Aqueles a quem chegou a orientação viá-los? A esta questão, o Alcorão não dá resposta; ao fim e ao cabo, é
têm de se arrepender da sua conduta pecaminosa. O tema do arrependi- uma escritura e não um tratado sobre teologia dogmática.
mento é, pois, um tema predominante no Alcorão, que, frequentemente,
está associado à compaixão de Deus - «A minha misericórdia compre- Deus
ende todas as coisas» (Q7:156). Assim, após condenar severamente os
Os humanos, como já vimos, não são, de modo nenhum, todos
adoradores do bezerro, Moisés acrescenta um pensamento aprazível:
iguais. Podem ser amigos de Deus ou Seus inimigos e são capazes de
«Os que cometem maldades e depois se arrependem e crêem serão perdoa- fazer a transição de um lado para o outro. E não é tudo. Os hipócritas,
dos. O teu Senhor será indulgente, misericordioso ... (Q7:153) com quem já nos cruzámos acidentalmente, têm um pé em cada lado, e
E, assim, Deus responde ao arrependimento com o perdão- e, even- há ainda outras subtilezas que podemos pôr de parte. Tudo isto tem o
tualmente, com o Paraíso. De novo, lemos em referência aos israelitas: efeito de aliviar a tensão sobre as categorias corânicas que descrevem os
humanos. Deus é outra questão. O facto de existir apenas um Ele não é
«Depois deles seguiu-se-lhes nma sucessão cujos membros abandonardlll
apenas uma primeira aproximação, é também a última palavra sobre o
a oração e seguiram as paixões; encontrarão a perdição. Excepto aqueles
assunto e torna o conceito de Divindade particularmente tenso. Por esse
que se arrependeram, acreditaram e fizeram o bem. Esses entrarão no Pa-
motivo deixei Deus para o fim, por tudo isso a Fatiha principia com Ele.
raíso c não serão confundidos em nada.» (Q19:59-60)
Uma característica crucial de Deus é o Seu papel cósmico, a que a
Estes versículos parecem sugerir que, uma vez que Deus enviou a Fatiha se refere dando-Lhe o título de «O Senhor de todo o SeJ)>. A pa-
Sua orientação, fica ao critério dos humanos responder positiva ou ne- lavra traduzida «SenhoJ)> envolve não apenas autoridade absoluta mas
gativamente. Na verdade, a afirmação que se segue é muito mais expli- também posse absoluta. O «versículo do trono» desenvolve a ideia da
cita a esse respeito: seguinte fonna:
2C 21
Deus! Não há outra divindade senão Deus, o Vivente, o Subsistente. Nem «Deus, que dá a fala a todas as coisas, concedeu-nos a palavra. Ele criou-
a sonolência nem o sono se apoderam d'Ele. A Ele pertence tudo que há -vos pela primeira vez, e a Ele sereis restituídos.» Na Terra não vos ocul-
nos Céus e na 'terra. [... ] O Seu trono estende-se pelos Céus e pela Terra táveis de tal maneira que nem o vosso ouvido, nem a vossa vista, nem a
e olha pela conservação de tudo o que abrange o Seu reino, sem nada o vossa pele fossem testemunhos contra vós. Julgáveis que Deus não saberia
desmerecer. Ele é o Altíssimo, o Excelso. (Q2:255) a maior parte do que fazíeis. Este é o vosso pensamento. O que pensáveis,
a respeito do vosso Senhor, vos destruiu: estais entre os defraudados.,
A razão por que Deus possui o mundo desta forma é fácil de compreen-
(Q4L21-3)
der: foi Ele que o fez. Ele diz, por exemplo: ,
Como esta passagem sugere, Deus está atento, até ao mais ínfimo
Criámos os Céus, a Terra, e o que há entre ambos, em seis dias. Não senti-
pormenor, a tudo o que se passa no Seu universo:
mos fadiga. (QS0:38)
Ele sabe o que está na terra e no mar, e não cai uma folha sem que o não
E novamente:
saiba. (Q6:59)
Construímos o Céu com solidez. Nós somos o Todo-Poderoso. E a Terra,
Assim, a grandeza do papel cósmico de Deus não O afasta do mais
Nós estendemo-la; como é magnífico Aquele que a estendeu! (Q51:47-8)
insignificante dos assuntos humanos ou de outros. A consequência des-
Deus é, pois, responsável JXlr ter dado vida à estrutura de grande ta intimidade é resumida brilhantemente neste versículo:
escala do universo. Mas Ele participa também nos pormenores, como
Criámos o homem. Sabemos o que é aquilo a que a sua alma o incita
demonstra uma referência à zoologia no versículo que se segue:
com sedução, pois Nós estamos mais perto dele do que a veia jugular.
«De cada coisa criámos um par. Talvez vós reflictais nisso.» (Q51:49). (QSO,l6)
Mais especificamente, Ele criou os humanos: Não há nada que Ele não saiba.
O que é admirável acerca do papel de Deus nos assuntos mundanos
Criámos o homem da essência do barro, depois criámo-lo de uma gota de
sémen, que inserimos em lugar seguro. Então, transfonnámos o sémen
é não só a Sua penetração, mas também a Sua ambivalência. Conforme
num coágulo de sangue; transformámos o coágulo num feto; transformá- já vimos, Deus pode ser misericordioso e compassivo, sensível aos que
mos o feto em ossos e revestimos os ossos de carne. Em seguida, instituímos O procuram em arrependimento, concedendo generosamente orienta-
outra criação. Bendito seja Deus, o melhor dos criadores. (Q23: 12-14) ção e ajuda aos Seus devotos, sem mencionar as recompensas neste e no
outro mundo. Mas Ele pode também ser vingativo e hostil, não só casti-
O barro foi, portanto, a matéria-prima de onde foram feitos os hu-
gando aqueles que não aceitaram a Sua orientação, mas levando-os acti-
manos, do mesmo modo que os génios (jinn) foram criados a partir do
vamente a extraviarem-se e entregando-os assim ao fogo do inferno. Se
fogo ardente (Q15:27). Mas esta nota não é só para informação. O im-
perguntamos por que é assim, a resposta normal é novamente a de que o
portante é que aquilo que Deus fez uma vez, Ele pode voltar a fazê-lo:
Alcorão não é uma dissertação teológica. Mas há um ponto esclarecedor
Em seguida, depois disso, realmente vós sereis mortos: depois, no Dia da que nos é dado pelo próprio Alcorão e que nos leva até ao papel de Deus
Ressurreição, sereis ressuscitados. (Q23: 15-16) como criador. A soberania de Deus sobre o Seu universo é absoluta:
Isto faz-nos voltar às peles altamente articuladas dos inimigos de Bendito seja quem revelou aos Seus servos a verdade, para que fosse uma
Deus. Eis o que essas peles têm para dizer em resposta à pergunta que admoestação para os mundos! Quem tem o domínio dos Céus e da Terra
lhes é feita por aqueles que estão dentro delas: não adopta um filho nem tem associados no Seu poder. Cria todas as coisas
efixaoseudestino. (Q25:1-2)
22 23
Se, como deveríamos, tomarmos muito à letra a declaração de que
Deus criou tudo isto tem uma implicação surpreendente que se torna,
7
Segunda Parte
mais ou menos, explícita na penúltima Sura do Alcorão: O Alcorão no mundo moderno
Dize: Amparo-me no Senhor da Alvorada; do mal de quem por Ele foi tria-
do. Do mal da tenebrosa noite quando se estende. Do mal das mulheres
que sopram nos nós. Do mal do invejoso, quando inveja! (Q113)
(As «mulheres que sopram nos nós» são bruxas.) Isto é o que mais se
aproxima no Alcorão para dizer que Deus criou o que é mau da mesma
forma que criou o que é bom.
Mas, então, podemos perguntar: como é, realmente, Deus? Pode di-
zer-se que esta pergunta não tem resposta; nada existe semelhante a
Ele (Q42:11). Mas um versículo descreve Deus como Luz e explica-nos
como é a Sua Luz:
24
Capítulo 3 ser utilizada para reproduzir o Alcorão em todos os países sob domínio
islâmico, primeiro no Irão e, mais tarde, no Império O~ mano~ Contudo,
A disseminação do Alcorão no século XX, o livro começou a ser impresso em larga escala. A edição
modema padrão é a que foi editada no Egipto, com patrocínio oficial,
em 1924; tem sido frequentemente reeditada e deve estar posicionada
entre os maiores êxitos editoriais do século. Deve ser enorme o número
A modernidade, na experiência da maioria de nós, é uma bênção de exemplares do Alcorão que já foram impressos até hoje, com certeza
mista, e o que é verdadeiro para nós é também verdadeiro para a escri- muito maior do que as cópias manuscritas que foram feitas. De facto,
tura. Podemos começar pelas formas como a modernidade tem sido boa hoje em dia, devotos electronicamente sofisticados não precisam da im-
para a escritura, tanto no mundo islâmico como noutros sítios. pressão: o Alcorão pode ser lido na Internet.
& condições modernas tomaram possível, como nunca, disseminar A tecnologia moderna provocou um salto semelhante em quantida-
uma escritura entre aqueles que nela acreditam. Esta revolução nas de na disponibilidade do Alcorão como texto oral. Em condições pré-
comunicações pode não querer significar muito para os brâmanes, que -modernas, os devotos só podiam ouvir o Alcorão quando e onde alguém
sempre tiveram o cuidado de sonegar os Vedas a uma pane significativa o recitasse -um acto que leva bastantes horas a completar. No decorrer
da sociedade não brâmane. Tão-pouco foi revolucionária para os Chi- do século passado, uma grande gama de tecnologias (gramofones, rá-
neses, entre os quais, logo em 745, o imperador ordenou que todas as dios, gravadores de cassetes, vídeos, televisão) tornaram possível que
casas tivessem uma cópia do seu comentário sobre um simples clássico um dado acto de recitação fosse ouvido noutros locais e noutros tempos
de Confúcio. Mas este aspecto da modernidade teve um desenvolvimen- (e, sem dúvida, que não há nada que se oponha à síntese electrónica
to muito positivo entre os monoteístas. da recitação corânica sem qualquer acto humano precedente). De novo
Há vários aspectos da mudança, sendo o mais evidente o desenvol- aqui, o número de vezes que o Alcorão foi ouvido através dessas tec-
vimento da tipografia. No mundo islâmico pré-moderno, cada cópia do nologias é, de certeza, muito maior do que o número de vezes que foi
Alcorão - um texto de umas setenta e sete mil palavras - tinha de ser recitado durante toda a história islâmica anterior.
escrita à mão, uma tarefa que levava muitos dias de trabalho a um es- Ao longo dos desenvolvimentos que tomaram o Alcorão mais acessí-
criba competente. Sabe-se de um copista medieval que completou um vel fisicamente para os devotos, outras mudanças ajudaram os devotos
Alcorão em seis dias; quando ele se gabava tolamente de que «não sen- a estarem mais bem preparados para receber a mensagem.
~
timos fadiga .. (Q50:38), diz-se que a sua mão mirrava. Outro copista Em termos de instrução básica, não há dúvida de que o mundo islâ-
mais prudente costumava levar quatro meses. A tipografia pôde alterar mico de hoje tem melhor instrução do que em qualquer altura do passa-
isto de forma radical: como disse um historiador turco do século XVII, do. É verdade que alguns países muçult:nanos têm índices de instrução
«o trabalho para produzir mil livros é menor do que o trabalho para tão baixos como os mais baixos do mundo; mas já não é invulgar que
produzir um volume manuscrito». A tecnologia é, claro está, muito mais metade de uma população possua algum nível de instrução. E, pelo
antiga do que a modernidade. Os Chineses praticavam-na há mais de facto de o Alcorão continuar a fazer parte do programa da educação
mil anos e a Europa fez o mesmo mais de meio milénio depois; por vol- primária nos países muçulmanos (ver Fig. 1), os devotos são auxiliados,
ta de 1500, a Bíblia tinha sido impressa, pelo menos, 120 vezes. Mas o não só por um maior grau de instrução, mas também por uma maior
mundo islâmico foi muito mais lento a abraçar a nova tecnologia. Ape- exposição do texto.
sar de alguns precedentes medievais que abortaram, só no século XVIII é E.stas mudanças quantitativas tiveram também alguns efeitos qua-
que a tipografia foi adoptada em Istambul e só no século XIX começou a litativos mais subtis. Numa maneira muito característica do que a mo-
2E
27
A homogeneização, contudo, provoca o efeito vingativo da frag-
mentação. Neste caso, pouco tem havido disto, mas vale, contudo, a
pena identificar a principal linha de fractura. Esta linha de fractura não
é sectária: os xiitas, a seita muçulmana que hoje predomina no Irão,
partilham a mesma tradição de recitação com a maioria sunita. É uma
diferença linguística. Os países do Sul do Médio Oriente e do Norte de
J África, onde a língua falada pela população é o árabe, que é, consequen-
temente, a língua da educação primária moderna, têm menos de um
quarto da população muçulmana mundial. Para os restantes, falantes de
turco, persa e de muitas mais línguas, há, necessariamente, uma incom-
patibilidade entre o árabe do Alcorão e a língua da educação primária
local. Não se pode alcançar a alfabetização em ambos ao mesmo tempo
e, provavelmente, tão-pouco do mesmo professor na mesma escola. A
tensão é exacerbada pelo facto de a modernidade trazer uma preocupa-
1. Uma aula de Alcorão em Cartum, Sudão. O cenário é modema· a rapanga está sen- ção acrescida pela inteligibilidade da escritura para os crentes em geral.
tada numa cadeira. o Alcorão está sobre a mesa à frente dela Ela está a ler os primeiros Conforme o nacionalista turco Ziya Gõkalp (falecido em 1924) afirmou,
versículos da Sura 68, onde Deus reafirma ao Profeta que ele Mo está possuído por um
«um país em cujas escolas o Alcorão é lido em turco é um país onde to-
g8nio. Ela tem o dedo sobre a primeira palavra do versículo 5. fa-sa-tubs:ru, KVcrás". O
que Muhammad 1rá ver é se é ele ou os seus O[X)Sitores pagãos é que estao loucos dos, crianças e adultos, ficam a conhecer a voz de Deus».
Só há duas soluções claras para este problema: ou os crentes apren-
dernidade faz à tradição, quando simplesmente não a enfraquece, o dem árabe, ou o Alcorão é traduzido. A primeira solução foi proposta,
efeito das condições modernas fez com que o texto corânico e a sua com grande veemência, por um famoso erudito medieval de Damasco,
recitação fossem mais uniformes do que antes, à custa das variantes Ibn Tayrniyya (falecido em 1328), num livro em que exortava os seus
locais. Estas variantes, como iremos ver, não eram muito grandes no confrades muçulmanos a desistirem de imitar os não-muçulmanos e re-
mundo islâmico tradicional e, mesmo agora, não desapareceram com- gressarem ao Bom Caminho. Na realidade, desejava ver todos os muçul-
pletamente; mas a tendência não deixa dúvidas. Em Marrocos, por manos a utilizar o árabe como a sua língua de todos os dias. A segunda
~
exemplo, a tradição textual norte-africana é ainda preservada nas solução, uma tradução do Alcorão, pretendia não só ultrapassar, mas
mesquitas, mas um intrusivo estilo do Médio Oriente invadiu a praça até substituir, o original árabe e teve uma maior incidência na secular
pública. Esta tendência é parcialmente uma questão de números: um República da Turquia entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais;
pequeno grupo de máquinas de impressão afastou um grande número esta tradução iria ser a peça central da tentativa de criação de uma for-
de copistas, tal como o acesso a recitações de alta qualidade gravadas ma de Islão que fosse inofensiva para o nacionalismo turco. Mas, como
em cassetes devem ter privado o mercado de recitações ao vivo por iremos ver, tais tentativas vão contra a natureza do Islão e, mesmo na
humildes recitadores locais. Em parte, é também uma questão de con- Thrquia, o projecto não foi bem-sucedido. Até à data, o mundo muçul-
solidação de uma tendência: o prestigio cultural do Egipto no mundo mano não-árabe mostra pouca propensão para adoptar a ideia de uma
islâmico moderno deu àquele país uma autoridade desproporcionada escritura vernácula, do estilo da do Protestantismo do século XVI ou da
sobre como deve ser e como deve soar o Alcorão. Em qualquer dos ca- do Catolicismo do século XX.
sos, o resultado é a homogeneização.
28 29
Capítulo 4 dos seus predecessores tradicionais. «ModernO>>, neste contexto, exclui
a maioria dos comentadores do século XIX, cujos trabalhos têm tendên-
A interpretação do Alcorão cia para representar a continuação de uma prática escolástica há muito
estabelecida. Mesmo comentadores do século XX reproduzem frequen-
temente grandes quantidades de materiais interpretativos tradicionais,
mas o terreno está a fugir-lhes de debaixo dos pés. Não é só por o im-
I pacte ocidental ter alterado as condições materiais em que vivem. A
Comentadores antigos e modernos
história moderna também trouxe com ela a hegemonia global de um
Uma cultura que possua um texto canónico, sejam escrituras ou um conjunto de valores estranhos à civilização islâmica tradicional; em ter-
clássico, pode fazer muitas coisas com ele, mas nem todas as culturas mos históricos, são estes os valores do Ocidente pós-cristão. (A própria
fazem a mesma coisa. Algumas práticas, contudo, espalharam-se ex- cristandade não tem desempenhado um papel importante de contesta-
traordinariamente, e uma delas foi a elaboração de comentários. Estes
variam consideravelmente no interior das culturas e entre elas, mas,
1 ção nos últimos dois séculos, e os muçulmanos não têm, normalmen-
te, encontrado dificuldades para suportar as indesejáveis atenções dos
de uma fonna ou de outra, a preocupação é a da interpretação do tex- missionários cristãos.) Como é que, então, os comentadores modernos
to canónico. O texto necessita de ser interpretado pois, uma vez que
foi composto há muitos anos e foi transmitido de uma fonna mais ou
I do Alcorão respondem à imposição de valores modernos às palavras da
sua escritura?
menos fixa, contém agora muita coisa que à primeira vista é obscura, Com o objectivo de ilustrar, irei seleccionar três valores ocidentais
irrelevante ou desconcertante. Isto significa que o comentador tem ten- históricos característicos da cultura global emergente: urna mundivi-
dência para abordar o texto com as pressuposições e preocupações do dência científica; uma atirude tolerante para com as crenças religiosas
seu próprio tempo, e pode procurar adaptar o significado do texto de dos outros; e a aceitação das mulheres como iguais aos homens. Esces
acordo com elas. Muito raramente tem a preocupação de responder a valores não são, claro está, aceites universalmente (e muito menos pra-
urna questão estritamente histórica como: «Não interessa o que significa ticados) no Ocidente, nem as culturas não-ocidentais são obrigadas a
para nós no presente, mas o que é que significava para eles então?» Mas adoptá-los por atacado. Mas são valores com os quais qualquer cultura
isto não deve ser tomado como querendo dizer que o significado do tex- não-ocidental tem de contar no mundo de hoje.
to é massa nas mãos do comentador. Contrariamente a alguns críticos
literários pós-modernos, os comentadores tradicionais agem de acordo .J
O Alcorão e a mundividência científica
com regras. Em consequência disso, encontram o texto frequentemente
resistente aos seus objectivos e estratégias interpretativas; lutam com Há no mundo islâmico de hoje uma bem-fundada e divulgada
passagens onde a vida teria sido muito mais fácil se Confúcio - ou Ho- actividade que consiste em ler as verdades da ciência moderna no
mero, ou Deus- as tivessem expressado de uma maneira diferente. Alcorão. A escritura, segundo esta visão, é «UID livro científico» e
Da mesma forma que há distâncias entre texto e comentador, há
• está «repleta de factos científicos». Assim, a passagem seleccionada
também distâncias entre comentadores. Comentadores separados por no Capítulo 2 que descreve a criação do homem (Q23:12-14) pode
vários séculos, por vários milhares de quilómetros ou .por urna linha ser lid8- se for adequadamente reformulada- como uma antecipa-
divisória sectária principal, podem ter pressuposições e preocupações ção da embriologia moderna.
significativ~ente diferentes. Em alguns casos, urna das diferenças Ou o versículo em que Deus diz do céu «Construímos o Céu com so-
mais profundas é a que separa os comentadores corânicos modernos lidez» (QSl-47). Isto pode ser também interpretado como «NÓS estamos
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a expandi-lo••, contendo uma referência clara a uma noção fundamen- tui nenhum problema; como iremos ver mais à frente, preocupavam-se
tal da cosmologia moderna, a expansão do universo (com a melhoria com algo bastante diferente e, para eles, muito mais preocupante
significativa de que é Deus que procede agora à expansão). Este tipo de A metamorfose preocupa, contudo, os comentadores modernos.
interpretação da escritura, que não se confina ao Islão, apresenta um Violações dramáticas da ordem natural por um Deus pessoal não se
certo risco: a ciência pode progredir, deixando a escritura abandonada adaptam bem às ordenações de uma mundividência científica. Este pen-
com algum equivalente de última hora da há muito desacreditada teoria samento não é novo: já ocorrera a alguns materialistas nos primeiros sé-
flogfstica da combustão. Não é de surpreender que comentadores mais culos do Islão. Mas esses eram marginais e cada vez o foram mais. Pelo
experientes não se envolvam nesta prática e que alguns muçulmanos contrário, no mundo moderno, esse ponto de vista é uma ideia muito
esclarecidos a tenham condenado vigorosamente. forte. A presença de macacos metamórficos em escrituras é incómoda
Contudo, mesmo um comentador que não trate o Alcorão como um - da mesma maneira que a declaração bíblica de que Jonas esteve «no
livro cientifico pode ficar perplexo com versículos que parecem positiva- ventre do peixe» durante três dias e três noites (Jonas 1:17) pode des-
mente não-científicos. Considerem a passagem seguinte, a que iremos concertar judeus e cristãos de mentalidade moderna.
voltar mais do que uma vez neste livro: Neste contexto modificado, a ideia, uma vez isolada, de que a meta-
morfose referida nos nossos versículos era apenas uma metáfora veio a
Pergunta-lhes acerca da cidade que estava à beira do mar, quando os seus
habitantes transgrediam o Sábado, quando os peixes iam no dia de Sá- parecer muito mais atraente. Este ponto de vista fora apresentado por
bado pela superfície, pois no dia que não era Sábado não iam: assim lhes (ou em nome de) um comentador antigo de Meca, Mujahid ibn Jabr
provámos, porque eram perversos. Recordai-vos de quando uma comuni- (falecido por volta de 722), e foi geralmente ignorado. Mas, se lermos
dade de entre eles perguntou: «Porque exortais uma gente à qual Deus vai um bem conhecido comentário moderno escrito por Rashid Rida (fale-
aniquilar ou castigar com um grande tormento?» É uma escusa perante o cido em 1935), baseado nas lições de Muhanunad 'Abduh (falecido em
vosso Senhor. Talvez eles sejam piedosos! Quando os descrentes esquece- 1905), encontramos que o tratamento deste aspecto do Q2:65 começa e
ram o que se lhes havia mencionado, salvámos os que proibiam o mal e im- termina com Mujahid, cuja opinião é defendida como mais plausível do
pusemos um terrível tormento aos que foram injustos, como recompensa
que a da corrente principal. O significado do versículo, segundo diz, é
pelo que haviam prevaricado. Quando tran.sgrediram o que se lhes havia
que o comportamento vergonhoso dos infractores do Sábado fez recair
proibido, dissemos-lhes: «Sede macacos abjectos!» (Q7:163-6)
sobre eles o desprezo das pessoas respeitáveis, que nunca mais os consi-
Como muita coisa no Alcorão, esta passagem não é fácil; contudo, a deraram convenientes para a companhia humana. Argumenta-se ainda
sua essência é bastante clara: Deus testou uma comunidade de pesca- que, se o ponto de vista da corrente principal estava correcto, a história
dores entre os antigos israelitas tentando-os a pescar no Sábado e viu perderia, então, a sua eficácia como aviso: as pessoas sabem pela sua
que alguns se dispunham a fazê-lo; Ele castigou os transgressores trans- própria observação que Deus não tem o costume de castigar os pecado-
formando-os em macacos. Uma referência breve ao mesmo incidente res com metamorfoses. O costume de Deus, é-nos assegurado, é um: Ele
ocorre anteriormente no Alcorão: trata as gerações presentes da mesma forma que tratou as passadas.
A invocação do <<Costume de Deus» (sunnat Allah) é significativa. A
Na verdade conheceis entre vós os que transgrediram o Sábado. Nós disse-
mos-lhes: «Sede macacos abjrttos!» (Q2:65) frase é muito corrente no Alcorão, e o mais importante que aprendemos
nos versículos relevantes é que o cos[Ume de Deus é inalterável:
Os comentadores tradicionais, com uma única excepção, tomaram
Não encontrarás mudança no costume de Deus, não encontrarás alteração
essas referências a metamorfoses muito à letra. Segundo o seu ponto
no costume de Deus. {Q35:43)
de vista, uma vez que Deus é omnipotente, a metamorfose não consti-
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É assim que os nossos comentadores modernos se envolvem num isto indica, o liberalismo inflexível de tais comentadores não resulta de
jogo exegético muito tradicional: opondo uma fonte a outra para ob- qualquer falta de percepção da atracção da ciência moderna.
ter o resultado que desejam. Do mesmo modo que se apoderaram de
Mujahid para o afastar da corrente principal, agora apelam a um con- Tolerar as crenças dos outros
junto de versículos corânicos a fim de ultrapassar o sentido óbvio de
outro. Ao mesmo tempo, este processo clarifica as suas intenções. Um Numa sociedade ocidental moderna é, mais ou menos, axiomático
universo governado por um costume divino que não está sujeito a mu- que as crenças religiosas dos outros povos (embora, claro está, nem to-
dança não é bem um universo governado pelas leis da natureza, mas é dos os comportamentos religiosamente motivados) devem ser toleradas
muitíssimo mais compatível com ela do que um em que Deus oprime e até, talvez, respeitadas. Na realidade, seria considerado como falta
arbitrariamente o modo como o mundo trabalha normalmente. Não de educação e provincianismo referir as opiniões religiosas dos outros
há, pois, contradição entre o Alcorão e a ciência. 'Abduh e Rida foram como falsas e as nossas como verdadeiras; para aqueles que foram intei-
de facto figuras relevantes na tentativa de criarem um Islão de pen- ramente educados na cultura elitista da sociedade ocidental, a própria
samento moderno que se tem vindo a desenvolver a partir dos finais noção de verdade absoluta em matéria de religião soa como coisa do
do século XIX. Como era de esperar, outros comentadores seguiram no passado. É, contudo, uma noção que era central para o Islão tradicio-
mesmo caminho de considerarem as metamorfoses como metáforas, nal, como o foi para o cristianismo tradicional; e nos séculos recentes
sobreviveu melhor no Islão.
entre eles Sayyid Qutb (falecido em 1966), um fundador do fundamen-
O Alcorão tem muito a dizer acerca do tratamento das crenças falsas,
talismo muçulmano no Egipto.
Esta reconciliação do Alcorão com a ciência pode parecer ter sido mas os eruditos tradicionais muçulmanos perceberam o essencial em
fácil mas, na realidade, não foi. É indigno ter de submeter o significado dois versículos. Intitularam o primeiro «O versículo da espada»:
tradicionalmente aceite da Escritura de alguém para acomodar os valo- Terminados que sejam os meses sagrados, matai os idólatras onde os en-
res de outros, e esta indignidade é uma à qual os fundamentalistas, que contrardes. Apanhai-os! Preparai-lhes toda a espécies de emboscadas! Se
escreveram mais recentemente do que Qutb, são particularmente sen- se arrependem, cumprem a oração e dão esmolas, deixai livre o seu cami·
nho. Deus é indulgente e misericordioso. (Q9:5)
síveis. Por isso, o famoso fundamentalista sírio Sa'id Hawwa (falecido
em 1989) denuncia a tentativa de invalidar as metamorfoses: o texto do Por outras palavras, os politeístas devem ser mortos, a não ser que
Alcorão é bastante explícito e não há nada que justifique considerá-lo de se convertam. Um «politeísta» (mushrik) é qualquer um que faz de
uma forma diferente da do seu significado evidente. Um proeminente qualquer outro um «associado» (shnrik) de Deus; o termo é extensivo
comentador libanês xiita do mesmo período, Muhammad Jawad Magh- a judeus e cristãos, na verdade a todos os infiéis. Uma prescrição como
niyya (falecido em 1979), é menos categórico, mas inclina-seno mesmo esta para aplicar a pessoas fora da sua própria comunidade religiosa é
sentido. E observa que aquilo que 'Abduh afirma acerca do costume di- consideravelmente mais benévola do que, por exemplo, a estipulação
vino pode ser verdade em geral mas que há excepções provenientes da na lei bíblica «SÓ das cidades destes povos, que o Senhor, teu Deus, te
sabedoria divina, como os milagres; e tais excepções estão patentes no há-de dar por herança, é que não deixarás nelas alma viva•• (Deutero-
tratamento dado aos antigos israelitas por Deus. Contudo, esta atitude nómio 20:16). Todavia, pouco interfere com a sensibilidade moderna.
é, por si mesma, incómoda. Um «mullah» iraniano contemporâneo que Felizmente que o segundo versículo, intinllado «Versículo do tributo»,
a adopte obriga-se a provar que está completamente familiarizado com in~oduz uma tranquilidade significativa:
noções modernas como «as hipóteses evolutivas» e a «mutation» (trans-
Combatei os que não crêem em Deus nem no último Dia nem proíbem o
creve este último termo do francês em vez de o traduzir). Conforme que Deus e o Seu Enviado proíbem, os que não praticam a religião da ver·
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dade entre aqueles a quem foi dado o Livro! Combatei-os até que paguem
princípio do «não constrangimento», A liberdade de crença (note-se a
o tributo por sua própria mão e sejam humilhados. (Q9:29)
expressão ocidental da frase) é fundamental para os direitos humanos e
Isto é um pouco obscuro, mas estabelece claramente uma categoria foi o Islão que primeiro proclamou este valor_
de incrédulos, que não devem ser combatidos após terem aceite um es- Hawwa, representando uma corrente mais recente de fundamenta-
tatuto que os obriga a pagar algum tipo de taxa c a sofrer alguma humi- lismo do que Qutb, é claramente menos lírico. Na parte relevante do seu
lhação. Os eruditos acordaram em que esta categoria incluía os judeus e comentário, não diz nada sobre grandes princípios, liberdade de crença
os cristãos (uma vez que a ambos fora dado o «Üvrü», isto é, a Bíblia) e ou direitos humanos. Em vez disso, começa por observar que todas as
ainda encontraram razões para a alargar. O que aqui vemos, claro está, autoridades estão de acordo que um pagão árabe só tem a escolha do
não é respeito pela religião falsa, mas dá-lhe, certamente, tolerância Islão ou da espada, enquanto judeus e cristãos têm também a opção de
condicional. Esta oferta de tolerância não era, contudo, universal. Pelo pagar tr1buto; e observa que a situação de outras comunidades religio-
menos foi acordado que não se aplicaria a árabes pagãos, embora isto sas tem sido uma questão de alguma controvérsia_ Isto, diz ele, é a base
pouco interessasse na prática, uma vez que esse grupo tinha deixado que os muçulmanos têm seguido através dos séculos e, na interpreta-
de existir. ção do versículo do «não constrangimento», esta estruhlra deve ser lida
Apesar da sua projecção junto dos eruditos, esses dois versículos não como lá está. O resultado final é que temos sido obrigados a combater
representam a gama completa de declarações corânicas sobre a ques- os incrédulos, mas proibidos de incitá-los a converterem-se, excepto no
tão. Consideremos a seguinte; caso dos pagãos árabes. Em nenhum momento Hawwa hesita na ques-
tão da ideia de que o Islão é uma religião da espada.
Nâo há constrangimento na religião! A rectidão distingue-se da aberração.
O contraste erÍtre Hawwa e os outros comentadores que apresentá-
(Q2,256)
mos reaparece em ligação com o tributo que os não-muçulmanos de-
Podemos dar significado a este versículo do «não constrangimento". vem pagar de acordo com os termos de Q9:29. Qutb recusa-se a discutir
Não estabelece compromisso com a noção da verdade religiosa abso- os pormenores do tópico, estigmatizando-o como um tópico que não
luta, mas sugere fortemente que a religião verdadeira pode, apesar tem qualquer relevância prática, dada a situação actual do Islão. De
de tudo, conviver com qualquer das formas de religiões falsas. Para os igual modo, Maghniyya considera que falar, hoje em dia, de tal tributo
eruditos tradicionais, como veremos mais adiante, essa declaração de é conversa fiada; e diz ainda que o versículo corânico tinha a ver, de
tolerância incondicional- para não dizer indiscriminada- foi um emba- facto, apenas com um contexto histórico especial no começo da histó-
raço; e tiveram de encontrar maneira de a fazer desaparecer. ria islâmica - um tempo em que os infiéis da Península Arábica cons-
Pelo contrário, para muçulmanos de mentalidades mais modernas, tituíam uma perigosa «quinta coluna» antimuçulmana. Os cristãos do
o versículo é, literalmente, uma dádiva divina, uma prova inserida na Líbano, permite-nos ele inferir, não precisam de viver com medo de se-
Escritura de que o Islão é uma religião de tolerância geral e ampla. Por rem confrontados com exigências renovadas de tributo. Hawwa, pelo
isso, quando voltamos ao comentário de 'Abduh e Rida, vemos que a contrário, pensa que já era altura de restaurar a velha prática de lançar
primeira preocupação é resistir à afirmação de que o Islão é a religião um imposto sobre os não-crentes. A sua concessão ao desconserto dos
propagada pela espada. Consequentemente, o versículo do <<não cons- tempos traduz-se num certo abrandamento das regras tradicionais. Os
trangimento» assume o estatuto de um dos «grandes princípioS>> e «po- não-muçulmanos que vivam num estado islâmico terão, claro está, de
derosos pilares» do Islão. Qutb segue a mesma tradição. Descreve os aceitar que o Islão é a religião de Estado e que esse poder está nas mãos
antecedentes da intolerância cristã em finais da Antiguidade; e, quando dos muçulmanos. Como não-muçulmanos, terão de pagar um imposto
o Islão chega, uma das primeiras coisas que faz é anunciar o grande em vez de cumprirem serviço militar. Se preferirem servir nas forças
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l
armadas em vez de pagarem imposto, os muçulmanos considerarão o rico, um produto do Ocidente, não surpreende que uma grande tensão
pedido; mas Hawwa confia que, na prática, os não-muçulmanos irão tivesse envolvido um versículo como o que se segue:
optar por pagar o imposto. Há, possivelmente, mais um elemento de Os homens são responsáveis pelos assuntos das mulheres porque Deus
generosidade fundamentalista implícita nesta proposta: nada é ditoso- favoreceu uns em relação aos outros, e porque eles gastam parte das
bre humilhação. suas riquezas em favor das mulheres. As boas esposas são as devotas,
que guardam na ausência (do marido) o segredo que Deus ordenou
que fosse guardado. Quanto àquelas de quem suspeitais deslealdade,
A igualdade de homens e mulheres admoestai-as, abandonai os seus leitos, castigai-as; porém, se vos obe-
decerem, não procureis meios contra elas. Sabei que Deus é Excelso,
Durante milhares de anos, antes de começar o impacte ocidental,
Magnânimo. (Q4:34)
os Muçulmanos (como os Romanos antes deles) tinham consciência
de que os homens do Norte da Europa assumiam atitudes estranhas Como iremos ver mais adiante, há neste versículo espaço para uma
para com as mulheres. Não as vestiam adequadamente e prestavam variedade de interpretações do mundo islâmico tradicional. Mas há
excessiva atenção às suas opiniões. A idiossincrasia cultural era moti- duas coisas difíceis de negar: o versículo confirma o dominio do homem
vo de preocupação ocasional para os próprios homens do Norte da Eu- e sanciona-o, concedendo ao marido um direito, entre outros, de casti-
ropa; o inglês William Harvey (falecido em 1657), conhecido pelo seu gar uma esposa rebelde. O domínio masculino estava longe de ser uma
trabalho sobre a circulação do sangue, tinha a opinião de que «nós, os novidade nas escrituras monoteístas. O Deus do Génesis diz à mulher
Europeus, não sabemos como mandar ou dirigir as nossas mulheres, ••Procurarás apaixonadamente o teu marido, mas ele te dominará» (Gé-
e os 1\trcos são os únicos que as usam com sabedoria». Mas, até aos nesis 3:16), enquanto o Novo Testamento estabelece que a mulher «re-
tempos modernos, os Muçulmanos não tinham motivo para conside- ceba a instrução e~ silêncio, com toda a submissão» (1 Timóteo 2:11)
rarem esta peculiaridade norte-europeia mais do que uma curiosidade -um conselho já não observado na educação secular moderna. Casti-
etnográfica, comparável talvez às atitudes desviantes para com as mu- gar a esposa, contudo, era novidade na escritura, embora, claro está,
lheres encontradas entre algumas das populações tribais menos civili- não o fosse na sociedade. Como iremos ver mais à frente, a principal
zadas do mundo islâmico. Contudo, desde o século XIX, esta situação preocupação dos comentadores tradicionais era distinguir o castigo fí-
mudou drasticamente. Entre norte-europeus e populações de origem sico legítimo da agressão e do espancamento; mas o que para eles era
norte-europeia, os papéis de homens e mulheres tomaram-se, contu- senso comum é chocante para ouvidos modernos. Em resultado disso,
do, ainda mais distantes dos padrões tradicionais islâmicos; há até um nenhum comentador moderno de algum valor pode deixar de enfrentar
notório e activo movimento feminista nessas sociedades. E, ao mesmo o desafio, de uma maneira ou de outra, deste versículo.
tempo, este padrão norte-europeu alcançou algum grau de estatuto Debrucemo-nos primeiramente sobre o que os comentadores mo-
normativo na cultura global em geral. Uma reunião internacional das dernos têm a dizer sobre o domínio masculino. Nenhum deles se refere
mulheres de todo o mundo, que teve lugar na China em 1995, foi uma ao principio básico em questão, e todos comentam que seria mal visto
experiência incómoda para diversos governos islâmicos, já para não no Ocidente moderno: que os homens são mais bem-parecidos do que
mencionar os anfitriões chineses. as mulheres e pensam melhor, que as respostas das mulheres são intui-
Poderíamos, talvez, pensar que, se a modernidade tivesse emergido tivas e espontâneas, enquanto as dos homens se distinguem pela serie-
da China tradicional, as atitudes muçulmanas pré-modernas no que se dade e pela previsão; que as grandes realizações em todas as esferas da
refere às relações homens/mulheres provavelmente teriam continuado vida se devem aos homens, com tão poucas excepções que confirmam a
a parecer normais. Mas uma vez que a modernidade é, como facto histó- regra; e por aí adiante.
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Contudo, os comentadores também dizem coisas que vão noutro importuna sensibilidade ocidental. O comentário de 'Abduh e Rida pole-
sentido, fazendo afirmações que os seus predecessores tradicionais não miza contra aqueles que imitam as maneiras e os costumes dos Europeus,
fizeram e, em muitos casos, não teriam feito. Assim, podem talvez real- e que, por conseguinte, fazem da legalidade de castigar uma esposa rebel-
çar que o versíc.:ulo apenas se preocupa coro as relações entre marido e de um problema crucial. E pedem-lhes que não andem nas nuvens: como
mulher e não entre homens e mulheres em geral. Mesmo no âmbito do é que, na vida real, propõem que se resolva o problema de tais esposas?
contexto matrimonial, procuram limitar a autoridade do marido. 'Ab- Que objecção séria pode ser feita a um marido piedoso e virtuoso que
duh acentua que não se trata, de maneira alguma, de um poder absolu- aplica pressão física moderada sobre uma esposa que está descontrola-
to que retire à esposa o exercício da vontade e da escolha. Maghniyya da? Não sabem que muitos dos seus modelos europeus também batem
observa que o marido não é um rei ditatorial (diktaturi). O palestiniano nas suas educadas, refinadas, meio-vestidas, meio-nuas, sensuais, des~
Muhamrnad 'Izzat Darwasa (falecido em 1984) argumenta que o versí- caradas mulheres? Fazê-lo é uma necessidade que até mesmo aqueles
culo não limita os direitos patrimoniais da mulher, nem a priva da sua que recorrem a extremos em condescender com as mulheres educadas
liberdade nas esferas social e politica. Ao mesmo tempo, a interpretação não podem dispensar. Como, então, pode alguém discutir o facto de que
dos comentadores sobre a desigualdade de homens e mulheres é feita tais actos sejam permitidos numa religião que é compartilhada por toda
com reserva. Sem invocar as diferenças estatisticas entre eles, Rida ob- a espécie e condição de homens? Este apelo ao bom senso não foi, contu-
serva que numerosas mulheres suplantam os maridos em muitas coisas; do, inteiramente bem-sucedido. DaiWasa, na sua defesa das disposições
Maghniyya vai ainda mais longe, ao dizer que muitas mulheres são me- corânicas sobre a esposa rebelde, pode ainda dizer que nenhuma pessoa
lhores do que mil homens. A iraniana Nusrat Amin (Banu-yi Isfahani, sensata as pode considerar injustas; mas logo a seguir concede que cas~
falecida em 1983), uma das poucas mulheres que escreveu um comen· tigar uma esposa nos pode parecer uma ideia estranha nos dias de hoje,
tário ao Alcorão, também realça essa qualificação. mas que, na realid;lde, não é. É um testemunho indirecto do poder desta
Estes variados sinais podem fazer-nos recordar a linguagem da de- nova sensibilidade aquele que Qutb, servindo-se de uma categoria divina,
claração sobre vida familiar que foi adoptada pelos Baptistas do Sul (nos sente ser necessário para tenninar a discussão da questão: foi, diz ele,
Estados Unidos) em 1998. Uma esposa, de acordo com esse documento, Deus que estabeleceu estas normas e, uma vez que Ele as proclamou, não
deve ;(submeter-se afavelmente» à autoridade do marido. E, contudo, pode haver mais nenhuma argumentação sobre a matéria.
refere-se a esta autoridade com a frase ambivalente de «liderança ser- Uma vez estabelecido o princípio, todos os comentadores estão preo-
vil», para logo a seguir dizer que a esposa é «igual» ao marido. cupados em realçar os limites ao direito de o marido castigar a sua es-
Até aqui, a excepção previsível a mdo isto é Hawwa, cujos indícios posa -limites esses que vão encontrar na literatura tradicional muçul-
não indicam quaisquer misturas. Para ele, como também para o autor mana. Acentuam, por exemplo, que o exercício desse direito é aplicado
do Livro do Génesis, é claro que o homem deve mandar na sua esposa, em último recurso. Maghniyya afinna, com algum exagero, que todos
e utiliza livremente termos como «domínio» (saytara). Sem a mínima os eruditos tradicionais concordam que é melhor não castigar a esposa.
explicação inclui, entre os terrenos do domínio masculino, as qualidades Qutb, numa passagem com palavras duras, declara que o versículo não
superiores de intelecto e discernimento dos homens. Ele denuncia vio- autoriza a tratar uma mulher como se fosse um cão amarrado; se os
lentameme os vendedores ambulantes de politicas de liberdade e igual- muçulmanos se comportam dessa forma, isso representa a degradação
dade das mulheres e defende um mundo onde os homens continuem dos seus costumes e não o desejo do seu Deus.
-como ele vivamente frisa- a deixar crescer a barba e a usar turbantes. O que é espantoso no comentário de Ha'Awa, neste caso, é a sua total
Voltando ao direito de o marido castigar uma esposa rebelde, é evi- negligência. Hawwa não aceita, não se compromete, nem demmcia a
dente desde o princípio que os comentadores reagem fortemente a urna sensibilidade moderna. Em vez disso, faz tudo por ignorá-la.
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40
J Relativamente aos três valores que considerámos, é manifesto que Capítulo 5
os comentadores modernos estão divididos em dois grandes grupos.
Os comentadores do primeiro grupo tendem a ser fortemente afecta-
A própria ideia de escritura
dos pelo relevante valor ocidental e, ocasionalmente, a adaptar as suas
escrituras a esse valor. Estes são os modernistas islâmicos na tradição
de Muhammad 'Abduh. Os comentadores do segundo grupo unem-se
contra o valor ocidental e fazem questão de não alterar as escrituras. Verdadeiros crentes tiveram frequentemente de compartilhar o
Estes são os fundamentalistas islâmicos das últimas décadas. O primei- mundo com cépticos e materialistas, desde Ajita Kesakambalin, que
ro grupo tem tendência para remar segundo a maré ocidental, o segun- na Índia antiga teve a audácia de negar a reencarnação, até Yamagata
do contra essa maré; mas ambos os grupos têm perfeita consciência do Banto (falecido em 1821), um pensador japonês que defendia a tese de
que fazem. que «neste mundo não existem deuses, Burlas ou fantasmas, nem acon-
Podemos também discernir uma mudança significativa ao longo do tecem coisas estranhas ou miraculosas". O próprio Alcorão descreve
tempo. Esquematicamente, os comentadores tradicionais são seguidos aqueles que fazem a seguinte afirmação:
pelos modernistas que, por sua vez, são seguidos pelos fundamenta-
Que exisre senão a nossa vida terrena? Morremo5 e nascemos, mas só o
listas. Uma consequência disto é a de os fundamentalistas serem duas tempo(dahr) nos destrói (Q45:24)
vezes removidos dos seus tradicionais antepassados. Além do mais, os
valores ocidentais que eles enfrentam não são apenas modas passagei- Os eruditos, de acordo com o tenno, chamavam «Dahris» a essas
ras correntes mas componentes integrais do mundo, onde é natural que pessoas; encontrámo-las anteriormente corno materialistas, mantendo
a raça humana venha a viver nos tempos futuros. Estas considerações uma atitude de repúdio em relação à metamorfose. Quanto aos cép-
sugerem que a força actual da interpretação fundamentalista da escritu- ticos, Ibn al-Rawandi, no século XIX, defendia que «O Alcorão não é o
ra no mundo islâmico pode não representar um equilíbrio estável. discurso de alguém com sabedoria e que contém contradições, erros e
absurdos». Mas no mundo islâmico tradicional, como em outras comu-
nidades monoteístas da altura, esses cépticos e materialistas procura-
vam ser bastante discretos. O seu lugar era no gabinete.
O mundo moderno tem sido um lugar muito diferente. As pessoas
desse tipo não só saíram do gabinete como, em certo sentido, passaram
a mandar. Se pensarmos em termos de uma escala, que vai de um extre-
mo de crença a um extremo de descrença dura, o grosso da população
no Ocidente moderno está, provavelmente, situado sensivelmente no
meio; mas a nata da cultura situou-se significativamente mais perto da
descrença. O resultado foi que o clima, apesar da tolerância genuína e
do exerdcio do respeito, se tomou pouco hospitaleiro para os crentes
verdadeiros. Fez com que as suas certezas parecessem ingenuidades in-
telectUais, e o seu zelo, fanatismo grosseiro.
Uma razão importante para este estado de coisas tem sido o estatuto
paradigmático da ciência no mundo moderno. Este estatuto tem sido,
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42
f
frequentemente, contestado, e cada vez com maior êxito, nas décadas adiante, os métodos de esrudo modernos, quando aplicados ao Alcorão,
recentes. Se, por qualquer motivo, o progresso científico acabasse, seria não têm o efeito tão perturbador de transformar escrituras em pastiche;
de esperar que o nível de credulidade aumentasse dramaticamente nas mas pressupõem uma abordagem à emergência do Alcorão que é in-
sociedades ocidentais e que o século XX viesse a parecer como uma ida- transigentemente histórica.
de de transição da descrença. Mas, a partir do começo do século XXI, isto O Islão tradicional não resistiu à noção de que a revelação reflectia
ainda não aconteceu. Continuamos a viver numa cultura global, cuja o meio onde fora revelada. (Não houve nenhum paralelismo entre os
orientação secular e científica enfatiza não só as reivindicações parti- eruditos muçulmanos e o carácter radicalmente não-histórico de algu-
culares de escrituras especiais, mas também as próprias escrituras. Que mas atirudes indianas para com os Vedas, de acordo com o qual o texto
sentido pode fazer, num mundo progressista e científico, ligar autorida- sagrado nunca mais podia ser interpretado em referência a uma perso-
de inalienável à palavra de um deus revelado no passado? nalidade histórica ou a um local.) Por exemplo, o famoso jurista Sha-
Como é natural, culturas diferentes reagem à tensão por processos fi 'i (falecido em 820) argumentava que, quando Deus fala do Profeta
diferentes. Na América do Norte, por exemplo, os verdadeiros crentes que lhes manda cumprir «O estabelecido, e lhes proíbe «O reprovável»
têm força suficiente para se lançarem numa guerra cultural contra a (Q7:157), temos de compreender estas palavras em termos das prefe-
corrente, mas não têm tido, até à data, possibilidade de se impor. Na rências de alimentação que prevaleciam entre os árabes na altura. Mas
Ásia Oriental, hoje em dia, não existem textos canónicos com estatuto o Islão tradicional nunca deu o salto da ideia de uma Escritura que com-
hegemónico, excepto, por enquanto, na Coreia do Norte; e os Japone- promete a sociedade na qual foi revelada para a ideia de uma que é pro-
ses, com níveis de descrença tão elevados como quaisquer outros no duto dela própria. Para a maioria dos muçulmanos do mundo moderno,
mundo, provaram ser dignos herdeiros de Banto. O que é surpreen- qualquer movimento significativo nesse sentido não é considerado, de
dente no mundo islâmico é que parece que foi menos penetrado pela nenhuma maneira, como uma opção, e não é provável que o venha a ser
irreligiosidade de todos os principais donúnios culturais; e nas últimas no futuro previsível.
décadas têm sido os fundamentalistas que têm vindo, cada vez mais, a Um par de excepções no Egipto moderno são suficientes para con-
representar a orla da cultura. firmar a regra. A primeira leva-nos até 1947, quando Muhammad
Conclui-se que não devemos esperar atitudes no mundo islâmico Ahmad Khalafallah, assistente rra Universidade do Cairo, que tinha
moderno para a ideia de escritura que espelhem aquelas com as quais aprendido o seu Alcorão na escola primária, apresentou uma disserta-
estamos familiarizados no Ocidente (muito menos o desuso em que caí- ção sobre a estrutura narrativa artística do livro. Considerar escrituras
ram os clássicos de tradição confuciana}. A evolução ocidental tem sido como literatura não era, só por si, uma heresia perigosa; houve amplos
dominada por dois fenómenos, ambos produtos do século XIX. O pri- precedentes tradicionais nesta matéria e Sayyid Qutb escreveu sobre
meiro foi a emergência da <<critica superior» da Bíblia: uma abordagem representação artística no Alcorão. O problema residia na concepção
filológica rigorosa que trata o seu objecto de maneira igual a qualquer insidiosa de Khalafallah sobre licença literária divina; ele pretendia
outro texto que tenha chegado até nós do passado e que o revela como compreender as histórias contadas no Alcorão como literatura, se-
um pastiche de fontes com várias datas e tendências. O segundo foi o gundo o sentido que abandonava a reivindicação de que elas repre-
fenómeno da crença suave - a disposição de grande número de crentes sentavam literalmente verdades históricas. O que Deus pretendia era
da corrente principal de conceder espaço a esta crítica superior e a vi- convencer os árabes dessa época a abraçar o Islão e dirigiu-se a eles de
são científica de que é parte integrante, e na satisfação por se ter salvo acordo com os termos das suas próprias crenças e atitudes. Por exem-
uma religiosidade residual. Nenhum destes fenómenos foi proeminente plo, as Suas referências depreciativas às mulheres (p.e., Q37:149} re-
no mundo islâmico, particularmente o primeiro. Como iremos ver mais flectiam um apelo às pressuposições do ambiente árabe. Do mesmo
44 45
IIIi._
!
modo, havia a tendência para os profetas serem apresentados gene- zado os fundamentalistas chamando-lhes «forças da superstição e do
ricamente, e não como indivíduos, e de uma maneira que fossem a mito», e já tinha deplorado a exaltada reacção muçulmana ao romance
sombra de Muhammad. Se tais representações estavam historicamen- de Salman Rushdie, Os Vers{culos Satânicos.
te correctas, não interessava para o caso. Embora fosse um pensador mais sofisticado do que Khalafallah, a
Khalafallah pensou que isto seria uma forma de isolar o Alcorão, a questão central de Abu Zayd acerca do Alcorão era a mesma. Se o texto
autoria divina do qual não tinha a mais pequena intenção de questio- era uma mensagem enviada aos Árabes do século VIl, teria sido, neces-
nar, das impróprias críticas históricas de orientalistas e missionários; sariamente, formulado num estilo que aceitava aspectos historicamente
esses, asseverava, não tinham compreendido nada do estilo narrativo e específicos da sua língua e cultura. Por conseguinte, o Alcorão foi for-
da técnica do livro. Mas, durante a tempestade que se abateu sobre ele, mado num cenário humano. Era um «produto cultural»- uma frase que
e que durou vários meses, colegas mais velhos e os seus superiores, es- Abu Zayd utilizava muitas vezes e que foi realçada pelo Tribunal de Cas-
pecialmente os da antiga e prestigiada Universidade Islâmica de Azhar, sação quando o classificou como um infiel. Abu Zayd esclareceu que, ao
viam a sua dissertação mais como um ataque à verdade da palavra de utilizar tal argumentação, não estava, de modo algum, a negar a origem
Deus. «O Alcorão», como declarou um dos seus adversários, «diz a ver- divina da mensagem. Mas, como ele disse, não podemos submeter ore-
dade quando entra em conflito com a história, enquanto a história men- metente da mensagem ao estudo cientifico; em consequência, a análise
te neste conflito.» O trabalho de Khalafallah foi denunciado como uma linguística -ler o texto no contexto da sua cultura- é a única maneira de
nova praga pior do que a cólera. Ele próprio foi considerado descrente, podennos compreender a mensagem. Por inferência, toda a abordagem
com a implicação de não poder casar legalmente com uma mulher mu- da cultura tradicional, tal como foi perpetuada pelos fundamentalistas,
çulmana. É extraordinário que tenha calmamente conseguido publicar era radicalmente deficiente. O que tinha sido feito fora transformar a
em 1951 uma versão, de algum modo revista, da sua dissertação, que mensagem do Alcorão num ícone- uma encarnação da palavra de Deus
foi reimpressa várias vezes. Mas as suas ideias pouco futuro tiveram e com um estatuto comparável ao de Jesus na doutrina cristã.
arruinaram a sua carreira. Como sempre, Deus -ou o secularismo- está nos pormenores. Uma
Na vez seguinte, o jogo tinha apostas mais elevadas. Em 1992, Nasr das muitas razões dadas pelo Tribunal de Cassação para rejeitar a pre-
Hamid Abu Zayd, também professor na Universidade do Cairo, fora tensão de Abu Zayd de ser muçulmano foi que ele negava a existência
proposto para promoção a professor catedrático. O resultado do que dos génios - os jinn, como são chamados .em árabe. Estes espíritos são
normalmente teria sido uma simples rotina académica foi um pesadelo tão vivamente reais no mundo do Alcorão como o são os demónios e os
jurídico para ele e para a mulher: um grupo de advogados fundamen- espíritos imundos no Novo Testamento, onde uns dois mil porcos ge-
talistas levou-o a tribunal para que o casal se separasse sob a acusação rasenos se precipitaram do alto no Mar da Galileia devido a estarem
de que as publicações de Abu Zayd o revelavam como descrente. O pro- possessos de um espírito maligno (São Marcos 5:13). Como já vimos,
cesso foi rejeitado inicialmente, mas um tribunal de apelação concor- o Alcorão diz· nos que os génios foram criados a partir do fogo. Contra-
dou com os advogados e o julgamento foi sancionado pelo Tribunal de riamente aos espíritos malignos dos Evangelhos, não são todos maus:
Cassação num decreto de 1996. Entretanto, Abu Zayd e a mulher dei- foram criados para adorarem Deus (QS1:56) e, apesar de muitos aca-
xaram prudentemente o Egipto. Em retrospectiva, nada disto é muito barem no Inferno (Ql1:119), há muçulmanos entre eles (Q72:14); isto
surpreendente. Os fundamentalistas tinham muito mais poder nos anos aconteceu quando alguns génios ouviram uma recitação do Alcorão e
90 do que nos anos 40, e Abu Zayd era uma muçulmano secularista que ficaram tão impressionados que logo foram pregar a mensagem aos seus
se tinha evidenciado como um crítico cáustico do pensamento deles. Já semelhantes (Q46:29). Em complemento desta presença no Alcorão, os
antes de terem começado as suas atribulações legais tinha ridiculari- génios estão fortemente arreigados nas crenças populares egípcias; nes-
46 47
IÍ
te sentido, correspondem não apenas aos espíritos bíblicos, mas tam-
bém aos gnomas e às fadas do folclore europeu. Terceira Parte
Ter-se-ia Abu Zayd excedido ao ponto de negar a existência dos
génios? O que ele fez foi explicar que o motivo da presença deles no
O Alcorão no mundo
Alcorão era que eles faziam parte. da cultura dos Árabes na altura em muçulmano tradicional
que o livro estava a ser escrito. Era só pelo apelo às concepções árabes
existentes de comunicação entre génios e humanos que a noção da re- I
velação divina podia ser inteligível para eles. Isto não seria uma nega-
ção explícita da existência dos génios, mas seria certamente difícil de
imaginar que alguém que fala desta forma pudesse realmente_ acreditar
neles. É um cepticismo que não impressionaria muita gente no Ociden-
te: pode ser-se cristão convicto e não acreditar em demónios e espíritos
imundos. Mas, na sua própria comunidade religiosa, Abu Zayd, embora
tivesse os seus apoiantes, não podia ser descrito como um muçulmano
de fortes convicções.
A nota principal da reacção islâmica actual à cultura global de se-
cularismo e ciência é, pois, a intransigência da crença sólida em vez da
flexibilidade da crença moderada. Isto faz parte do poder, sem paralelo,
do fundamentalismo no mundo islâmico contemporâneo. Quanto mais
tempo poderá conservar este poder e que poderá acontecer se o per-
der, são questões que nos levariam muito para além do futuro previsível
-embora o Irão seja um país a ter em conta. Entretanto, a ideia da Escri-
tura herdada do passado muçulmano tradicional permanece firmemen-
te por reanalisar e é para o passado que vamos agora voltar.
48
Capítulo 6
O Alcorão como códice
Aparecimento do códice
Um texto escrito, ao contrário de um texto oral, tem de parecer-
-se com alguma coisa. Tem de ter escrita, e esta tem de ser visível, por
exemplo através da aplicação de tinta preta em papel branco. Além dis-
so, se o texto tiver uma certa extensão, é natural que exceda a capacida-
de de uma simples peça do material em que está a ser escrito. As peças
múltiplas terão de ser, então, montadas de uma certa maneira, de forma
a conservá-las juntas e em ordem. Estes problemas põem-se a qualquer
cultura interessada em preservar textos escritos volumosos e podem ser
resolvidos de muitas maneiras. Os textos do Egipto antigo foram escri-
tos em rolos de papiro, os da Mesopotâmia antiga em placas de barro, os
da China antiga em tiras de bambu presas por fios, e assim por diante.
No tempo em que Muhammad apareceu, estava muito desenvolvida
no Próximo Oriente uma importante revolução nesta tecnologia. A for~
ma tradicional de preservar um texto volumoso na cultura dos Gregos,
muito influente no Próximo Oriente durante a maior parte do milénio,
anterior ao aparecimento do Islão, fora o rolo de papiro, que os Gregos
foram buscar aos Egípcios. (As placas de barro, pelo contrário, tinham
deixado de ser utilizadas completamente após o primeiro século da nos~ 2. Encadernações do Alcorão. Em cima: A aba da direrta desta encadernação está
softa e é uma característica já encontrada nos códices gnósticos do século IV de Nag
sa era.) Se este livro tivesse sido publicado sob essa forma, estaria agora Hammadi no Alto Egipto. Em baixo: Dois IMos intactos do Alcorão do século XIX com
o leitor a enrolar o fim da Segunda Parte que tinha à sua esquerda e a a mesma característica. O da esquerda é da Âfnca OcidentaJ, e o da direita, do Sudão.
desenrolar o começo da Terceira Parte à sua direita; e não teria de «virar A tira de couro presa à aba do Alcorão da África Ocidental pode ser atada à volta do
volume para o proteger melhor; esta característica também aparece nos códices de
a página>>, pois, a não ser que o papiro tivesse sido reciclado, o verso Nag Hammadi. Estes livros do Alcorão foram estudados por Adrian Brockett.
seria em preto. De facto, contudo, o que o leitor tem nas mãos é um có~
dice. A unidade básica é a folha, ela própria composta por duas páginas livros tradicionais indianos ou chineses, mesmo quando reconhecidos
escritas; o leitor lê primeiro a página da frente e, depois, vira~a e lê o como tal, já não é a mesma coisa.
verso. AI; páginas são encadernadas juntamente e colocadas entre uma Esta maneira de juntar um texto escrito extenso vem da viragem
capa da frente e outra de trás, dependendo a solidez da obra do preço da nossa era. E deparou com uma considerável resistência conserva-
que o leitor pagou pelo livro. 1\tdo isto é natural para nós, mas, para os dora; devia ter demorado alguns séculos até ser considerado correcto
50 51
ler Homero a partir de um códice, e até aos dias de hoje a Tora numa
sinagoga judaica é um rolo (ou um rolo de pergaminho, que é a mesma
coisa). Mas os cristãos adoptaram muito cedo o códice para as suas Es-
crituras e, no tempo de Muhammad, era o formato normal para textos
I
escritos de alguma extensão. Sabe-se da existência de textos corânicos
em pergaminho que datam do princípio do período islâmico; sobre-
vive um número significativo de fragmentos de uma colecção num
pequeno edifício no pátio da Mesquita Umayyad em Damasco. Mas
geralmente podemos pensar, com alguma certeza, no Alcorão como
um códice a partir da altura da sua compilação. O único choque cul-
tural a que um leitor ocidental é exposto ao inspeccionar um Alcorão,
embora seja só no princípio, é que as costas e a frente do livro estão
invertidas - uma consequência do facto de a escrita árabe se fazer da
direita para a esquerda.
As folhas do Alcorão no princípio do período islâmico seriam, tipi-
camente, em papiro ou, mais naturalmente, em pergaminho; o papel só
gradualmente tomou o lugar deles depois de a arte da sua manufactU-
ra ter sido adquirida aos Chineses em meados do século VIII. Quanto à
forma como os códices er~-encadernados, a Fig. 2 mostra uma enca-
dernação em pele que, etJl1empos, serviu para conservar uma parte do
Alcorão~- Ã :aDaQaâtrei~-dobra-se para dentro para proteger as extremi-
dades das folhas; o livro que o leitor tem nas mãos, como todos os livros
3. Um egípcio lendo o Aloorão na Mesquila do Profeta, em Medina. Enquanto o muçul-
modernos, não tem estes requintes. mano está sentado no chão_ o Alcorão está no scukursJ, ou ~cadeira". Numa cultura em
que, tradicionalmente, as pessoas se sentam no chão, uma cadeira era normalmente
considerada como uma marca de autoridade (comparar com a frase «ex catedra,)_ Em
A ideia de um livro sagrado 02.255, o ~trono" é o Seu kurs1. O kursi desta ilustração oarece ser novo, mas o formato
em X é mu1to antigo Já Tutankamón se sentava em algo parecido com isto no século
Temos tendência para utilizar o termo «livro sagrado>> um pouco XIV a C. A prábca de colocar o Alcorão num kursi parece remontar. pelo menos, aos
princípios do século IX da nossa era
descuidadamente. Uma coisa é acreditar que o texto inserido num livro
é sagrado (por ter sido revelado por Deus ou por outras divindades), e
outra coisa é atribuir tal estatuto ao livro como objecto físico. Todos os bem estabelecida entre os muçulmanos que até passou para os caraítas
monoteístas consideram as suas Escrituras sagradas no primeiro caso, - uma seita judaica que nasceu num cenário islâmico, no Iraque, no sé-
mas a doutrina-padrão cristã e judaica não estende essa santidade ao culo VIII.
segundo caso. A Bíblia, claro está, é um objecto que deve ser encarado As implicações práticas desta santidade do códice corânico na vida
com respeito, mas não é um objecto sagrado. Houve muçulmanos que quotidiana foram, frequentemente, motivo da atenção de observadores
viram o Alcorão à mesma luz; mas a maioria, sustentada por apoios co- europeus, apontando as diferenças entre as duas culturas. Busbecq.
rânicos, considerava sagrado o próprio códice. Esta concepção ficou tão que permaneceu oitos anos no Império Otomano como embaixador em
52 53
meados do século XVI, observou que, para os Thrcos, «é um pecado ter-
rível um homem sentar-se sobre o Alcorão (que é a Bíblia deles), mes-
mo inadvertidamente». Edward Lane, numa descrição das «maneiras e
costumes dos Egípcios modernos» publicada em 1836, afirmou que o
respeito que os muçulmanos têm pelo Alcorão é impressionante e obser-
vou que eles «geralmente tinham sempre o cuidado de nunca o segurar
ou tê-lo suspenso de modo a ficar abaixo da faixa à volta da cintura».
Um vendedor que me vendeu um Alcorão em miniatura em Istambul
-que podia ser utilizado como amuleto de boa sorte- também me reco-
mendou que devia ter o mesmo cuidado. Jacques Jomier, ao descrever
o lugar do Alcorão na vida quotidiana do Egipto em meados do século
XX, observou que nenhum muçulmano praticante permitiria que uma
cópia do Alcorão estivesse num sítio que não fosse o topo de uma pilha
4.. Uma escola de Alcorão como foi representada por um artista persa do século XV. No
de livros. Um outro exemplo da reverência com que o Alcorão é tratado
poema persa do século XII que esta miniatura rlustra, um rapaz de dez anos conhece
está ilustrado na Fig. 3. Iremos ver a seguir como certas questões deste uma rapariga na escola de Alcorão (maktab) e inicram um casto romance que continua
género foram tratadas pelos eruditos muçulmanos tradicionais. pelo resto das suas vidas. A presença de raparigas nestas escolas não tinha nada
de anormal no Irão tradicional. O poeta descreve-as como ~colegas de tábuas~ dos
Numa passagem que salienta o seu próprio carácter sublime, eis o rapazes, mas o artista coloca os rapazes à esquerda e as raparigas à direita; um rapaz
que diz o Alcorão: segura numa tábua na ponta da esquerda, e uma rapariga segura noutra na ponta
da direita. No centro, o herói e a heroína partilham um Alcorão, e atrás deles está o
É certamente um Alcorão nobre inscrito num Livro escondido- ninguém professor que aponta com uma vara para uma passagem noutro Alcorão. Estão todos
sem ser purificado o toca -uma revelação enviada pelo Senhor dos Mun- sentados no chão: as três ~cadeiras» (a palavra utilizada em persa é rahl, literalmente
uma sela de camelo) estão reservadas para livros do Alcorão e têm a mesma forma em
dos. (Q56:77-80) X, como na Fig_ 3.
... 5I 55
rão, que estava envolto no seu invólucro de protecção, embora alguns
achassem que até mesmo isto era desrespeitoso.
O leitor que tenha entrado no espírito legal islâmico talvez já tenha
antecipado uma mais avançada ramificação desta proibição do toque
impuro. Aquilo que diz respeito ao Alcorão no seu todo certamente que
também se aplica a uma parte dele. Considere-se então o caso de uma
criança que está a aprender a escrever textos corânicos na tábua du-
56 57
...I
eruditos desaprovavam a venda e a compra, outros achavam que era Esta última solução foi responsável pelo aparecimento de textos corâni-
melhor comprar do que vender, outros ainda não se opunham a ne- cos antigos que foram escondidos em Damasco, como foi mencionado
nhuma hipótese; como um destes últimos afirmou, o copista recebia anteriormente, e por outros como os encontrados há algumas décadas
apenas o preço dos materiais e a recompensa pelo seu trabalho de es- no interior do telhado da Grande Mesquita de Saná, a capital do Iémen.
crita. Como então, ao fim e ao cabo, podia viver um copista, e, se não
l
Os muçulmanos não foram os primeiros a adoptar estes métodos; os
houvesse copistas, onde é que os muçulmanos poderiam obter os seus
livros do Alcorão? (Uma lógica semelhante era aplicada à remuneração
I
'
budistas na Ásia Central, já no primeiro século da nossa era, enterravam
manuscritos velhos em potes de barro_ Costumes idênticos existiam en-
I
dos mestres que ensinavam o Alcorão às crianças; a alternativa, como tre os judeus, embora o exemplo mais famoso - a Geniza do Cairo - se
consta que disse um Companheiro do Profeta, era as pessoas ficarem reporte a tempos islâmicos.
analfabetas.) Havia, claro está, muçulmanos piedosos que copiavam o A este respeito, pelo menos, as cópias electrónicas do Alcorão apre-
Alcorão sem serem copistas profissionais; sabemos de um descenden- sentam uma simplificação assinalável. Entretanto, sabe-se que os Tali-
l
te de uma família nobre síria por altura das Cruzadas que, tendo sido ban proibiram, em 1997, a utilização de sacos de papel na zona do Afe-
favorecido com uma mão refinada, fez para cima de quarenta cópias ganistão sob o seu controlo, com o argumento de que o papel reciclado
durante a sua vida - sendo a caça a sua outra grande paixão. Mas a podia conter páginas de exemplares do Alcorão_
distribuição de fontes como esta não podia satisfazer a procura muito
i'
-, difundida de livros do Alcorão.
'''-I)_e novo, o problema podia estender-se às citações corânicas. Por
este ~~vo, um erudito antigo preocupava-se com o facto de as moedas
que con~am textos das Escrituras poderem ser utilizadas em actos de
compra e venda. Um seu colega respondeu que não era com as inscri-
ções corânicas que as pessoas faziam compras, mas sim com o ouro ou
a prata de que eram feitas as moedas- se alguém fosse às compras com
uma pequena inscrição mun pedaço de pano, ninguém lhe vendia nada.
É este o mesmo argumento que encontramos na opinião minoritária de
que o códice, enquanto tal, é apenas o material onde se escreve.
Podemos terminar esta cascata de problemas práticos com a questão
de como nos desfazermos de um Alcorão muito gasto ou a desintegrar-
-se (como o que estou a utilizar para escrever este livro), uma vez atingi-
do o fim da sua vida útil. É evidente que a palavra de Deus não deve ser
descartada despreocupadamente, com o risco de sofrer contacto com
impurezas. Foram aprovadas várias soluções, em separado ou combina-
das. Se o material o permitisse, podia limpar-se a tinta das páginas (mas
como seria se a água que continha a tinta dissolvida caísse no chão?).
Podia também enterrar-se o livro - convenientemente embrulhado e
tendo o cuidado de garantir que ninguém andasse por cima do local
onde fora enterrado. Ou podia-se também guardá-lo num lugar seguro_
5B 59
Capítulo 7 destruídos pelas vicissitudes da história uma década depois de terem
sido feitos, e só sobreviveram fragmentos.
O Alcorão como texto A outra estratégia é confiar a preservação do texto aos copistas do
futuro. Isto envolve um risco mais disseminado. Os copistas podem ser
honestos, competentes e conscienciosos, mas também podem não ter
nenhum destes atributos. A esperança, neste caso, é que o texto venha
Estratégias para preservar um texto a ser transmitido em muitas linhas diferentes e que seja muito bem co-
nhecido na comunidade, de modo a que os erros inevitáveis não tenham
Uma cultura que se preocupa com a preservação de um texto escrito possibilidade de sobreviverem e de se repetirem. No caso do Alcorão,
não se empenha, necessariamente, na reprodução exacta das palavras. esta estratégia foi largamente bem-sucedida. Claro que aconteceram
Os papiros gregos do século ma. C. apresentam textos de Homero nos erros, e há discussão sobre a questão delicada sobre o que cada um deve
quais, em relação aos nossos textos uniformemente distintos, são acres- fazer ao encontrar um erro no Alcorão de outra pessoa (seria errado
centadas ou retiradas linhas completas. No mundo islâmico, o modelo não fazer nada, mas também não se deve estragar uma cópia elegante
de vida do Profeta de Ibn Ishaq (falecido em 767 ou 768) foi transmitido com a nossa inaptidão caligráfica)_ Mas, no processo de copiar o texto
no século após a sua morte sob formas bastante divergentes, para que ao longo dos séculos, tais novos erros não permaneceram; pelo contrá-
nos seja possível reconstituir um texto origina 1 a partir delas. Pelos nos- rio, a fidelidade da transmissão é demonstrada pelo facto de as primei-
sbs..próprios modelos de fidelidade textual, ambos os exemplos são um ras anomalias no texto terem sido preservadas fielmente.
pouc~·cno.cantes. Mas a atitude de uma cultura cm relação à transmis- O êxito desta estratégia não é atribuível apenas à piedade e à in-
são fiel não ..)Jrecisa de ser uniforme ou constante. Parece claro que os dulgência. Há pelo menos duas outras maneiras através das quais uma
muçulmanos, n;s.primeiros séculos do Islão, pensaram que as palavras cultura pode fortalecer a transmissão. Uma delas é ter uma forte tradi-
de Deus eram mais merecedoras de uma transcrição exacta do que as ção de recitação oral do texto capaz de reforçar a transmissão escrita;
de Ibn Ishaq. É igualmente claro que, ao longo dos tempos, seguiram na iremos tratar deste assunto no próximo capítulo. A outra é acompanhar
direcção de uma transmissão mais fiel de ambos. o texro com um aparato de suporte cultural que assegure que o texto
Só há duas estratégias básicas que urna c1:1ltura pode adoptar para seja totalmente compreendido Ccompreensão essa que corresponda, ou
procurar preservar um texto numa forma canónica. Uma delas é a estra- não, à ideia do autor ou autores originais). Isto pode até ser ainda mais
tégia «Uma vez por todas» da criação de uma personificação definitiva e importante para textos de transmissão oral do que para textos escritos.
permanente do texto que seja válida «por cem eras>>. Na China de Han, Embora muitos brâmanes recitassem os Vedas sem terem muita noção
foi inscrito em pedra, em 175-183, um texto-padrão de clássicos confu- do seu significado, o desenvolvimento da análise linguística na antiga
cianos que estava em exposição na Academia Imperial. Conforme suge- Índia é um bom exemplo de como compreender um texto pode ajudar à
re o caso chinês, esta estratégia é mais bem desenvolvida pelo Estado. sua transmissão exacta; enquanto a confusão textual do Avestá, as escri-
No caso do Alcorão, dizem-nos que Uthman (governou de 644 a 656), turas orais dos zoroastrianos, nos dá um aviso severo do que acontece
o califa responsável pela sua compilação, reteve uma cópia original na quando um texto é transmitido a um povo que já não sabe o que ele
sua posse; mas não parece que tenha servido como autoridade textual significa. No caso muçulmano, em todos os textos escritos de que nos
de último recurso para a posteridade, e há um relato que diz que foi ocupámos, o aparato cultural era impressionantemente grande e rami-
destruída no dia em que ele foi morto. Talvez tenha sido como devia ser. ficado. A maioria deles assume a forma de obras independentes sobre
Nada dura para sempre; mesmo os clássicos cm pedra de Han foram um ou outro aspecto do Alcorão; um género que já encontrámos foi o
60 61
I
~
comentário e, mais à frente, neste capítulo, iremos abordar obras de O que há de mais óbvio na reprodução que não é a palavra de Deus é
leituras diversificadas. Mas alguns elementos importantes deste meca- a bordadura decorativa. Numa boa cópia, uma bordadura dessas pode
nismo podem aparecer no próprio texto, como pane do conjunto, por ser muito atraente, todavia é completamente opcional; uns manuscritos
assim dizer (embora, ao contrário da Bíblia hebraica, a margem não têm-na, outros não.
seja utilizada para anotações textuais). São esses os elementos que aqui A seguir necessitamos de eliminar as duas pequenas linhas que en-
iremos considerar. cimam a página:
Considerem a passagem do Alcorão reproduzida a partir da edição- Este capítulo contém vários elementos de informação útil. Em pri-
-padrão egípcia na Fig. 6. Embora tenha apenas algumas linhas, contém meiro lugar temos o próprio número da Sura; a numeração das Suras é
uma Sura (ou capítulo) completa, a lOS. a das 114 do livro. A reprodução um costume ocidental recentemente adoptado pelos muçulmanos que,
que o leitor está a ver padece, como o original de onde foi retirada, das geralmente, se referem às Suras pelo nome e não pelo número. Em se-
necessidades de impressão de um mercado de massas; tudo, excepto o gundo lugar, vem o nome. O costume de dar nomes às Suras é antigo,
papel, aparece a negro. Os muçulmanos de hoje estão habituados a isto, mas é de origem humana e não divina. Uma forma de dar nome a uma
mas Abu 'Amr al-Dani (falecido em 1053), um respeitável erudito corâ- Sura é ir ao seu começo. Pondo de parte a invocação <<Em nome de Deus,
nico de Córdova que residia em Denia, na então Espanha muçulmana, beneficente e misericordioso!», que precede ou inicia todas as Suras ex-
não haveria de gostar. Mas, antes de abordannos a questão da cor, há cepto uma, a nossa Sura começa com o versículo:
alguns pontos prévios a tratar. «Não viste (a-lam tara), ó Apóstolo, como o teu Senhor procedeu com os
donos do elefante (al:fil)?» (QlOS:l)
Neste caso, podia ser chamada a Sura de «Não viste ... » (Surat a-lam
~~.*~··) tara); era assim que Tabari (falecido em 923), o famoso comentador e
~~IÇ!}l historiador, se referia a ela. A alternativa é nomear a Sura por uma pa-
lavra-chamariz- algum nome ou palavra distinta ou invulgar que apa-
~ ........-;: .. .,. .. recesse no seu interior. Neste caso, a referência ao elefante salta logo à
~~~~~ ~ vista e, então, podíamos dizer a «Sura do Elefante» (Surat al-fil). Este
nome, ao contrário daquele que Tabari utilizava, é agora o nome-pa-
~:.f.HJi<:DJ:AiT~'c~~J:i::.:rJJÍ
drão, embora um purista preferisse que se falasse antes de «A Sura onde
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é mencionado o elefante». O terceiro elemento, <<De Meca)), diz-nos que
a Sura foi revelada a Muhanunad ainda em Meca antes de ele ir para
Medina em 622. O último elemento é o número de versículos. Destes
Jt:: .. .- .... ~)_,..-...... • ~ ...... quatro elementos, Dani diz-nos que não houve objecção em incluir o
0 ,...J)L..~
f ~'""'J.:"
j""T--.- ~ )"" ... , er-•)~.c
'f .. , segundo e o quarto, e não se refere aos outros.
O último elemento conduz-nos, contudo, a outra intervenção hu-
mana. O leitor pode verificar que há, de facto, cinco versículos na Sura
6. Sura 105 no Alcorão ogipcio (deixamos de parte a invocação inicial) graças ao facto de cada versí-
62 63
~-
culo ser seguido por uma roseta e cada uma delas indicar o número do
versículo. A divisão do texto em versículos é muito antiga e foi motivo
de desacordos ocasionais (mas não a respeito desta Sura). Assinalar a
~~~1 -~
divisão a seguir a cada versículo é também uma prática tradicional. A
numeração dos versículos, embora com precedentes ocasionais, é real- -"~·-"''"'"''
(' . J-f:)l 1 ;ÍT~t.d' í:i._;r':jj
mente um hábito adoptado do Ocidente; hoje em dia é, mais ou menos, I..F7 ;.. ; .Ju- .. ..1
normal no mundo muçulmano. ~
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Ponhamos, agora, de parte todo este material. Confrontemos a Fig. __.J J.:-~~1\_r.l.~ J-)J
\ ;·,
~ ...
7. Todas as palavras são agora as palavras de Deus (incluindo, de cer- , t ~ ....... ,.}_,.,..,...,..
to modo, a invocação inicial); mas continuamos longe das Escrituras
puras. O que temos aqui é, de facto, uma combinação das palavras de ,,J Jt.: -.:..-f
/ ~ ~;;~0
)' ......... f .... ;.
Deus com uma variedade de ajudas humanas para se fazer uma leitu-
7. Sura 105 no Alcoráo egípcio (negro, vermelho e amarelo).
ra correcta. Para compreender do que se trata, temos de perder alguns
momentos a estudar a nanrreza da escrita árabe. O Alcorão está intima- faziam isto de uma forma assaz acidental Num certo aspecto, além do
mente ligado a esta escrita, como o está à língua árabe. Nem todos os mais, mesmo a marcação de consoantes era inerentemente ambígua:
textos sagrados estão assim ligados a uma escrita: os judeus (ao con- não se conseguia perceber se uma consoante era simples ou dupla.
trário dos samaritanos) escrevem a sua Bíblia no que é, actualmente, Para desfazer a ambiguidade da escrita, era necessário partir de uma
a escrita aramaica, enquanto o cânone Pali, do Budismo Theravada, é forma mais radical, mas de uma que tivesse precedentes na região. O
impresso na escrita nacional do respectivo país- a escrita Ta i na Tailân- que não pudesse ser expresso na própria escrita consonântica podia adi~
dia, 'e·a~sim por diante. cionar-se em cima e em baixo. Normalmente este sistema só é usado na
A esc~l'ta.;1rabe, tal como a nossa, deriva basicamente da escrita dos escrita árabe quando é necessário- para clarificar uma ambiguidade ou
'
Ferúcios. O seu'aJfabeto era tão desenvolvido na sua representação de para ajudar o leitor com uma palavra rara ou um nome pouco familiar.
consoantes como era defeituoso na marcação de vogais. Uma inovação Não é vulgar vocalizar um texto completamente, mas pode ser feito; é
importante introduzida pelos Gregos quando se apropriaram desta es- feito regularmente hoje em dia para o Alcorão e tem sido feito ao longo
crita foi estabelecerem maneiras de representar as vogais a par com as de muitos séculos.
consoantes; é graças a eles que agora lemos uma escrita completamente Para ver como isto é feito, voltemos novamente ao primeiro versícu-
vocalizada em oposição a uma completamente consonântica (cnsnntc). lo da Sura 105, que podemos transcrever da seguinte maneira:
Pelo contrário, as derivadas da escrita ferúcia acostumadas a escrever
'a-lam tara kayfa fa'ala rabbuk.a bi-ashabi '1-fili
línguas semíticas tinham a tendência a ser relativamente conservado-
{?-não tu-ver como foi senhor-teu para-companheiros o-elefante]
ras. O árabe, na altura do aparecimento do Islão, não tinha possibilida-
de de marcar vogais breves e só formas ambíguas de marcar as longas. Acontece que as primeiras dez vogais do versículo são as breves; es-
Assim, a palavra para «elefante» é escrita normalmente fyl, que convida tas são marcadas por pequenos traços inclinados por cima da escrita
à leitura correctafi.! (fiyl), mas também erróneadefay!; há também uma consonântica. A mesma linha também contém dois pequenos círculos
convenção ambígua semelhante na utilização de w por u. Para o a lon- incompletos abertos à esquerda; estes marcam a ausênda de uma vogal
go, usavam uma letra que representava propriamente a oclusiva glótica no m de a-lam e no y de kayfiL O leitor zeloso pode também distinguir
(ver «Uma Nota sobre o Árabe») e que agora se tornou ambígua; mas o exemplo único do sinal para u (acima da linha) e os quatro exemplos
64 65
do sinal para i abaixo da linha). Finalmente, o pequeno traço vertical
sobre a penúltima palavra marca a longo em bi-ashabL E é tudo quanto ~~\....u)._ ......4
às vogais. Quanto às consoantes, o sinal que se assemelha à imagem no
espelho de um pequeno número '2' marca a odusiva glótica, enquanto
o sinal bastante indistinto no princípio da última palavra indica a sua ('J.f~)\ I ;11~k.L
<.!=- . t.;__.s
. . ) <.r' • J
•)\
ausência (a minha transcrição não consegue distinguir uma da outra).
A letra que consiste num único traço vertical onde se situam estas mar- t.l\1'-.--Jct.\ tt~,·
~'"""..1 c.r-: . .r."' 1.--,.-- u-.) J u-::-- <..!
cas é alif, um primo do alfa grego e do nosso 'a'; originalmente, repre-
J.fL.c.:...-f~ k<f'J~
sentava a oclusiva glótica por si própria, mas, como já foi mencionado,
tornara-se ambígua. O pequeno sinal como um 'w' que aparece mais ou
menos a meio do versículo indica a duplicação dobem rabbuka. Apesar 8. Sura 105 no Alcorão egípcio (só o negro)
do facto de estes últimos pontos dizerem respeito a consoantes, pode-
mos referirmo-nos a tudo isto, de uma forma livre, como vocalizações. que a escrita se toma mais fluente; o perigo que se corre é que as letras
Estas convenções são, evidentemente, úteis, mas será que temos escritas em cursivo são propícias a perder muito da sua forma, com o
justificações para acrescentá-las às palavras de Deus? Um proeminente resultado de letras originalmente distintas se tomarem indistintas. Os
erudito do século XVIII opinou que, embora não pusesse objecções quan- pontos estão lá para remediar isso. Assim, o ponto acima da linha na
do se tratasse de textos curtos para crianças de escola, não era apropria- última palavm do versículo marca umf; dois pontos teriam feito um q.
do no caso de códices completos; e os manuscritos mais antigos não têm A letra seguinte consiste simplesmente num «dente» e dois pontos por
qualquer vocalização. Mas a opinião da corrente dominante, como foi baixo, fazendo dela umy; um ponto por baixo faria dela um b, dois por
formulada por Dani, era menos conservadora, embora ainda sensível cima fariam um t,. e assim por diante. Estes diacríticos, como são cha-
ao pr.oblema: havia concordância universal em que tal vocalização fosse mados, apareceram muito cedo no período islâmico, mas tiveram uso
permi~idàfiiàs-q~e não era permitido fazê-lo a negro, uma vez que isto esporádico durante muito tempo, mesmo em manuscritos do Alcorão.
equivalia a alterar'ã-própria escrita consonântica, O que era correcto era Não obstante, fazem parte do negro, não do vermelho, e, portanto, abs-
usar vermelho e amarelo (embora Dani também estivesse preparado temo-nos de os remover.
para aprovar verde num caso). O amarelo era para o sinal que marcava Como qualquer outra escrita, o árabe está sujeito a alterações de es-
a oclusiva glótica, e o vermelho para o resto. O código de cor particular tilo que podem afectar muito a sua aparência. A forma da escrita na
que Dani recomendava não era universalmente aplicado, mas está bem Fig. 6 seria considerada estranha no primeiro século do Islão e bastante
representado em manuscritos oriundos de um esconderijo preservado inadequada para uma cópia do Alcorão. As suas formas arredondadas
em Qa)'Tawan, na Tunísia modema. teriam sido consideradas uma escolha estranha até mesmo no século
Retirados os traços, ficamos com a Fig. 8. Aqui há ainda alguns pon- IX, embora nessa altura a escrita fosse muito utilizada para outros fins.
tos por cima e por baixo das linhas que estão correctamente escritos a Foi copiado em Bagdade, nos anos 1000 ou 1001, um extraordinário
negro e são provenientes de um aspecto diferente da história da escrita Alcorão neste estilo; o copista era o ilustre calígrafo Ibn al-Bawwab.
árabe. No alfabeto fenício cada letra era escrita separadamente, como (A caligrafia era uma arte muito prestigiada na cultura islâmica, como
no português impresso, e isto acontece ainda com o hebraico na sua for- também o era na China tradicional.) A Fig. 9 mostra a Sura 105 neste
ma impressa. Mas o árabe criou um estilo cursivo que tem de ser imple- Alcorão (a Sura é anunciada a ouro, mas eu não tentei reproduzir isso).
mentado até em letra de imprensa. A vantagem de um estilo desses é Uma comparação com a Fig. 6 indicará que estamos a ver, essencial-
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9. Sura 105 no Alcorão de lbn ai-Bawwab.
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mente, a mesma forma de escrita em ambas; os paleógrafos chamam
a isto «Naskhi».
Pelo contrário, nos primeiros três séculos do Islão, o Alcorão era
normalmente escrito em escrita angular, sendo a mais conhecida de 10. Sura 105 num fragmento de um Alcorão escrrto em cúfico A Sura ocupa as Ultimas
linhas da frente de uma folha {em cima) e as primeiras linhas no outro lado (em baixo).
todas referida como «Cúfico» pelos especialistas (embora estes esclare- Enquanto o rosto da tolha está bastante gasta, a parte de trás está como nova Data
çam que é um nome impróprio). Esta escrita está ilustrada na Fig. 10. provavelmente da segunda metade do século IX
Leituras de variantes
68 69
ser muito consideráveis. No caso do Alcorão, a cultura muçulmana es- remos o outro posteriormente). Se desejássemos ir mais além dos sete,
tava preocupada com dois grandes géneros diferentes de variação. O podíamos encontrar muitas mais diferenças na passagem (e até para a
primeiro e o mais fundamental tinha a ver com variantes do negro. Es- Sura 105); mas isso seria irmos longe de mais.
tas são principalmente atribuídas às versões do Alcorão em circulação A diferença diz respeito à palavra traduzida «como desculpa». Seis
antes da criação do texto autorizado por volta de 650 (embora algumas dos sete lêem ma 'dhi.ratun (no nominativo; o n final é o artigo indefinido
reflictam pequenas divergências entre transmissões regionais diferentes e é sempre escrito como parte da vocalização)_ O sétimo concorda com
da versão-padrão); estas diferenças não serão abordadas neste capítulo_ eles de acordo com uma transmissão, mas lê ma'dhiratan (no acusativo),
O segundo género de variação envolvia diferenças no vermelho e no de acordo com outros. Isto não faz grande diferença para o significado.
amarelo, e é a estas que aqui vamos dar uma vista de olhos. Na primeira leitura teríamos compreendido «[A nossa admoestação a
Nos primeiros séculos do Islão, havia numerosas tradições divergen- eles é] uma desculpa ... »; enquanto na segunda o significado seria como
tes da recitação do Alcorão que diferiam umas das outras em pequenas na nossa tradução, nomeadamente «[Nós admoestámo-los] como des-
coisas. Aquela por que se aprendia dependia de quem a ensinava. Um culpa... », Este tipo de divergência não preocupa ninguém, excepto um
erudito do século XI percorreu o mundo islâmico desde Marrocos até à erudito que, como Dani, está interessado em variantes textuais. Contu-
Ásia Central e fez um relato de cinquenta tradições diferentes de recita- do, como iremos ver, é de certa forma instrutivo.
ção que recolheu de 365 professores através de 1459 linhas diferentes Embora a geografia religiosa do mundo islâmico tradicional não seja,
de transmissão. Mas, já no século X, Ibn Mujahid (falecido em 936), um demodoalgum, um livrofechadoparanós, continuamosaestar,smpreen-
perito corânico de Bagdade, pôs alguma ordem nessa matéria separan- dentemente, mal informados acerca da história das tradições divergen-
do sete tradições principais, que juntou num livro que ainda existe. A5 tes da recitação corânica. Sabemos que eram muitas nos primeiros sé-
opiniões de Ibn Mujahid sobre o texto corânico estavam abertas à dis- culos e sabemos que no nosso tempo é dominante uma única tradição_
cussão- como um crítico observou com mordacidade, elas não tinham Mas o nosso quadro de desenvolvimento de intervenção é muito esque-
sido enviadas do céu por Deus - mas a sua selecção adquiriu, apesar mático. Como ponto central, temos a sorte de ter alguns comentários
de tudo, uma espécie de estatuto de texto canónico. Osto não evitou de Ibn al-Jazari (falecido em 1429) sobre a situação durante a época da
que ele ou qualquer outro preservassem bastante informação acerca de sua vida; era um erudito damasceno muito viajado e também perito no
outras tradições.) Cada uma das sete tradições seleccionadas por Ibn texto do Alcorão. Como era de esperar, faz comentários sobre as imen-
~ujahid provinha de um proeminente recitador do século VIU. Três des- sas extinções que tinham tido lugar entre as velhas tradições. Mais sm-
té~recitadores provinham da cidade de Cufa, perto de Bagdade; Meca, preendente ainda é a sua descrição da tradição do basraniano Abu 'Amr
Med'41a, Basra e Damasco eram representadas cada uma por um. Uma ibn al-'Ala' (falecido em 770 ou 771), a Hiâz, como dominante na Síria,
dada tn,.dição pode ainda continuar a ser dividida em subdivisões pelas Iémen e Egipto (ele assinala que fora levada do Iraque para Damasco,
transmi~'sões diferentes dos alunos do recitador. Houve uma doutrina afastando a tradição original da Síria por volta de 1100)_ Nos dias de
de que todas as sete tradições tinham sido reveladas ao Profeta, embora hoje, esta tradição sobrevive apenas na região do Sudão (onde se diz que
houvesse uma opinião xiita de que elas eram simplesmente falhas dos se estende para a Eritreia do Norte e o Chade Oriental). Foi substituída
transmissores. no centro do mundo islâmico pela tradição de 'Asim (falecido em 745)
Como acontece, não há diferenças entre os sete recitadores em rela- -uma tradição que, ironicamente, Ibn Mujahid tinha descrito como de
ção à leitura da Sura 105. Há, todavia, dois pontos de desacordo entre pouco êxito na sua cidade natal de Cufa. É possível que tenha ficado a
eles na passagem dos transgressores do Sábado (Q7:163-6) que já exa- dever a sua extraordinária ascensão à associação com os turcos, que vie-
minámos anteriormente, e um deles servirá como ilustração (aborda- ram a dominar enormes áreas do mundo islâmico a partir do século XL
70 71
gando-se a outra para ocidente; estava já bem estabelecida nesta região
c:D ~jJT,._;~
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do mundo islâmico muito antes da tradição de Ibn al-Jazari. Também se
mantém nas terras altas do Iémen.
A Fatiha que, como iremos ver, é tantas vezes repetida como as
orações muçulmanas, descreve Deus como «O Senhor do Dia do Julga-
mento» (maliki ymwni 1-din., Q1:4). A palavra maliki é traduzida para
«Senhon•, e esta era a leitura de 'Asim e de run outro dos sete. A maio-
r.:\"' (1U1 J. o - ~1- ria, contudo, lê maliki, que significa «rei», e Tabari considera ser esta
~·~r~,Q a melhor leitura; é ainda recitada por aqueles que seguem Abu 'Amr e
Nafi'. Como habitualmente, isto não reflecte qualquer desacordo relati-
vamente ao negro, que é simplesmente m1k em qualquer dos casos; na
ortografia corânica correcta, só o vermelho distingue as duas leituras
(ver Fig. 12). É, inddentalmente, possível marcar leiruras diferentes no
mesmo códice pela deslocação de um excesso de cor, e temos exemplos
,~ .. y •"./., disto no Qayrawan; mas Dani desaprovou esta prática por dar lugar a
12. O texto de Q1 :4 em três 11vros do Alcorão. A primeira linha mostra o versículo con-
forme está num Alcorão-padráo egípcio: o a longo necessário para a leitura de Hats de
'Asim está marcado com um pequeno alif vertical posto por cima da linha. A segunda
linha mostra o versículo tal como foi encontrado num Alcorão impresso na Tunísia em
1969: o a é breve, em conformidade com a leitura de Warsh de Naf1' O a é também bre-
ve na terceira linha, que segue a leitura de Abu 'Amr. Isto foi retirado de um Alcorão su-
danês copiado no ano da Hégira de 1299 (1881 ou 1882) que foi parar a Leeds como
parte da pilhagem na conquista do Sudão pelos Britânicos em 1898--1899 (Universida-
de de Leeds, Ms. 619)
72 73
Capítulo 8
O Alcorão como culto
I
gefà:do e nada há que se Lht:" assemelhe.» (Ql12) vidades, que podemos descrever, de uma forma livre, como semilitúr·
gicas. Os contextos vão dos quase religiosos aos largamente sociais:. e
74 75
o recitador, provavelmente, cobre uma parte substancial do texto ou
mesmo o texto t~o. Num lado do espectro, os textos antigos referem-se
a muçulmanos que recitavam todo o Alcorão com intervalos regulares;
alguns faziam-no de três em três dias, outros todos os dias. No outro
lado do espectro, Lane, no seu relato do Egipto nas primeiras décadas
do século XIX, observa que um recital de todo o Alcorão é «a melhor
maneira de entreter um grupo de convidados das classes altas e mé-
dias» no Cairo. Uma sessão dessas podia durar nove horas, embora os
convidados não precisassem de estar presentes durante todo esse tem-
po. Nem tão-pouco essa maratona tinha de ser levada a cabo por um
só homem: três ou quatro recitadores treinados podiam fazer turnos. A
proeminência da recitação corânica na vida de todos os dias do Egipto
não era menos surpreendente e até o era mais, nalguns casos, em mea-
dos do século XX. Jomier descreve a forma como devotos vulgares, via-
jando em carros eléctricos, mexiam silenciosamente os lábios enquanto
recitavam as escrituras.
Além disso, o Alcorão está presente na vida de todos os dias sob for-
mas que não são de todo litúrgicas. Assim, Jomier fornece exemplos do
recurso que os Egípcios fazem às escrituras em alturas de crises pes-
soais, como doenças na fatru1ia. Um homem que tivesse um filho com
sarampo ia frequentemente para a cabeceira da criança doente a recitar
passagens do Alcorão; uma delas, já nossa conhecida, era o <<versículo
do trono». Este versículo, como disse Sale, é «SUblime e magnificente»;
é também poderoso, e este poder é a chave da sua utilização neste caso
e em muitas outras ocasiões. Em suma, vemos aqui um grau de satura-
ção das escrintras na vida de todos os dias que é difícil imaginar para a
maioria dos habitantes do mundo ocidental e que o recrudescimento do tual nem chega a ser uma condição prévia para escutar a recitação co-
fundamentalismo serviu, em geral, apenas para realçar. rânica. Até os infiéis com quem os muçulmanos estão em guerra podem
Mesmo fora do contexto da oração, há mais do que um elemento escutá-lo (Q9:6) -em contraste com a atitude restritiva dos brâmanes
de ritual para a recitação do Alcorão. Como com o tocar no códice, há em relação à recitação dos Vedas. Voltando aos elementos do ritual no
problemas de pureza a enfrentar antes de se recitar o texto. Neste caso, desempenho real, o recitador deve começar com as palavras «Busca re-
contudo, as respostas tendem a ser mais acomodaricias; a opinião de fúgio em Deus contra o Demónio maldito», uma vez que isto está espe-
que só os ritualmente puros podiam recitar o Alcorão esrava deprecia- cificado em Q16:98; há também uma fórmula semelhante para o fecho,
tivamente associada a Musaylima, um falso profeta contemporâneo de «<Deus Todo-Poderoso falou verdade». Durante a recitação pode haver
Muhammad. (daro que, se alguém que lê um códice estiver num estado momentos em que o recitador, e talvez também o ouvinte, se devem
de impureza ritual, outra pessoa terá de virar as páginas.) A pureza ri- prostrar. Eis um exemplo:
76 77
Só crêem nos Nossos versículos aqueles que, quando eles lhes são mencio- registos dessa época. Contudo, aprendemos alguma coisa com o di-
nados, caem prostrados e cantam os louvores do seu Senhor. (Q32: 15) álogo entre Ahmad ibn Hanbal (falecido em 855) e um interlocutor
desconhecido:
Num texto-padrão, as palavras em itálico aqui indicadas são subli-
nhadas, e a palavra ((prostrados•• está escrita de forma bem visível na Interlocutor: Qual é a sua opinião sobre a recitação com notas?
margem. O leitor mais atento notará os problemas subtis que isto pode Ibn I:Ianbal: Como se chama?
levantar. E se um praticante do culto escolher tal versículo para recitar Interloc.:utor: Mu~amrnad
durante a fase de pé do ritual da oração? Devem professores e alunos Ibn Hanbal: Então, gostava que o tril.tassem por 'MUQ.arnrnad'?
prostrar-se quando lêem ou recitam um versículo deste tipo no decur-
A objecção, neste caso, é ao alongamento das vogais breves; isto
so da instrução? E quando se ouvir uma recitação gravada do Alcorão
não é uma caracteristica da recitação corânica nos dias de hoje, excepto
(uma questão levantada já em 1899)?
em contextos muito restritos. Por outro lado, Ibn al-Jawzi (falecido em
1201), um seguidor posterior de Ibn Hanbal, costumava iniciar as ses-
Como é recitado o Alcorão sões de pregação emocional em Bagdade com uma recitação corânica
altamente orquestrada_ Tinha uns vinte recitadores presentes; dois ou
Qualquer leitor que tenha visitado um país islâmico e se aventure três deles recitavam um versículo num cântico com requebros que pro-
f para além do hotel saberá que a recitação corânica não se parece mes- vocavam suspiros no coração e, depois, outro grupo ocupava-se de um
' mo nada com a leitura da Bíblia numa igreja presbiteriana, por exem- segundo versículo, e assim por diante. Toda a cerimónia era planeada
l plo. Tudo o que se espera é uma versão cuidada e rigorosa de uma voz ao pormenor, com a ideia de maximizar o impacte emocional na audiên-
normal. O Alcorão, pelo contrário, é cantado_ Numa perspectiva com- cia. Só faltava uma orquestra.
parativa, não há nada de invulgar nisto. A Bíblia hebraica e os Vedas Nos primeiros séculos do Islão já se praticavam estilos diferentes de
são cantados. Buda disse aos seus seguidores para não cantarem as suas recitação. Por exemplo, Ibn Hanbal tinha uma aversão especial à tra-
{ escrituras em estilo védico, mas, não obstante, eles cantam-nas. Na re-
alidade, não cantar os textos canónicos talvez seja considerado uma ex-
dição que estava associada a Hamza (falecido em cerca de 773), um
recitador cúfico que seria incluído posteriormente nos sete de Mujahid:
1
centricidade da cristandade protestante. «todos os ih e os ah», como ele disse (bastante secretamente para nós).
Segundo o ponto de vista dos eruditos muçulmanos, para quem a Outros opuseram-se a praticar estas oclusivas glóticas estridentes de
recitação corânica era uma virtude e a música uma imoralidade, isto rasgar ouvidos associadas a esta tradição_ Hoje em dia há duas prefe-
envolvia- e continua a envolver- um exercício delicado na separa- rências diferentes, mas a inquestionável metrópole da arte de recitação
ção das águas. A partir dos primeiros períodos islâmicos, encontra- corânica é o Egipto - um país onde, ironicamente, Ibn Mujahid não se
~ mos denúncias repetidas da recitação musical do Alcorão e algumas incomodou em nomear um representante quando seleccionou os seus
vozes ocasionais a seu favor. O termo técnico para isto é «recitação sete. As observações que se seguem referem-se, principalmente, aos es-
com notas»; Biruni, um erudito muçulmano do século XI, que foi tilos egípcios de recitação.
também o primeiro indólogo mundial, utiliza esse termo para des- Há duas componentes para a tradição da recitação corânica. A pri-
crever a recitação védica. Não é fácil de saber a extensão eventual do meira é primordialmente fonética e normativa; a segunda é, pensamos
desaparecimento desta detestável prática no Islão, que mais não era nós, musical, e não é estabelecida pelas regras, excepto no respeitante a
do que o estilo melodioso de recitação que conhecemos hoje em dia. desencorajar o recitador a não se exceder. É melhor abordannos as duas
Temos manuscritos medievais em abundância, mas não possuímos componentes separadamente.
7B 79
Já vimos que a Sura 112 era geralmente usada na oração ritual. Se- M()duato.
gue em árabe:
@:e-e §il % e==tRM?S'~
qul huwa 'llãhu ahad
Bi-smi-1 - Li- "hi-r-rab-má- ni-r-ra.-heern. El-
allahu '1-~amad
Iam yalid wa-lam yiilad
wa-lam yakun lahu kufuwan aJ;tad
IJ=_~~~!E_=Fê---'ffE-_~d--i
hamdu li-I - U - hi mb - bi-1- 'á - la - mee · na-r - rah -
IÊ~-..-u:=r--~Er=tda:~==f-~::::7~
árabe, como em qualquer outra língua, quando duas palavras estão jun-
tas, o último som da primeira pode interagir reciprocamente com o pri- ~~~ - .
meiro som da segunda: no inglês-padrão falado, o «n» em «we can do» é ·~m • ta 'o. -lei • him gbei - ri-1-mn.ghdoo - bi 'a • lei - him wn.-ltHI-
80 81
.....
Bismillâhir ralimânir raliim
E !em tere l<eyfe fe'!"le rabbülie bi eãliâbil
fi!' 1!J E !em yec'al l<eydebüm fi ta~libn I @)
Ve ersele ,aleybim tayren ebâbile 1 lj!) Termi-
him bi liicãretin min siccilin 8 1 @ F e ce,aiehüm
l<e,aMin mesl<ill 1$
15. Sura 105 numa transcrição turca. Elkur' an, Istambul, 1932, P- 453.
82 83
execução tinha sido espontânea e, passado aquele momento, ele já não
sabia o que tinha feito.
Traduzir o Alcorão
64 85
~
~~~: ~I árabe e não como substituto dele. Neste sentido, é bastante diferente
da Bíblia inglesa, que substitui a latina, que, por sua vez, substitui a
J.i ·J~ <:i grega e os originais hebraicos. Como Ibn Taymiyya afirmou: «Ninguém
~:
.,;......~ÍO~t..,bJ~JjUJ:..~ •.J,_..J:!I
i:> <;i deve recitar o Alcorão em qualquer outra lingua que não seja o árabe,
.J~~~.,I..U:.fl:~ ;1..-
independentemente de ser capaz ou não de o recitar em árabe.» Não
~ IY;.J ~ (..W_y,•J..l ..,...S..;;y.~ ..si..>! .s ...... r;:..:.J -1 .JI/..-j.14.:..}!>;,;:..s~ 4T <;·
I~~: 1~~u.; ;~; '-""t.,; .J..:J-jU. _yl; ,..r~ ~,:r
surpreende, pois, que não haja, nem nunca tenha havido, uma tradu-
"' •>l:..)•.J}•.J}I;.._.;!S'..t:4 ~1...- .JIJ
!~.>\.>~ )) ...,j.,_u, I.J ,)Ú ,_;;...;§ #;..... 4.S
\"' llt-..C:• ção-padrão em persa.
O persa foi a primeira lingua não-arábica a ser geralmente aceite,
I~
l~l>)j(,r.')I.:..J)o.J..!.o>;Y•~.J~I;~fr~l_..... o llt- <:<
~:
por assim dizer, pela civilização islâmica. Mas seguiram-se outras lín-
guas, e os paralelismos com os dois fonnatos persas acima descritos
espalharam-se por toda a parte. Por exemplo, existem traduções in-
terlineares em turco, espanhol e polaco - todas escritas em caracteres
árabes. (Para ilustrar as versões espanhola e polaca, ver Figs. 18 e 19;
para ilustrar uma versão em africânder em formato diferente, ver Fig.
-~
~jlÍ~jl(.gíW. ·~
• ;t:l 20.) Quanto às traduções com páginas ornamentadas, tenho a honra
., ,:;.:;r~_;í'í~ ' ..rc_::,;.t.iG'i'r, -;·f<;:íí de possuir um Alcorão com tradução em chinês. Apareceu em 1984,
I$- - •' ..... ~ > > ,.J,yo.> - .r
~~ com este formato que já era comum, uma tradução inglesa com a auto-
r1:::_;:i ~ J.,(;í@,l;!:í;~;t ®~-~ ;,;.j
~:
.•.•.
f~ '~ rização da Azhar. Esta augusta instituição impôs como condição para a
~ii
aprovação que o formato fosse aceite; na ausência do original árabe, re-
' """ Jfo=t;"~íí:; f'!'. J..,;.... ·;'~
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_,_--y....-' t . ' ' .
/ . 'it'
t ......~----r
.rp:.-.--V:;..J .....:- ceava-se que alguém pudesse erroneamente pensar que «esta tradução
era o próprio Alcorão». O texto azharita é revelador: não faria qualquer
.. ·A-._ llfA.. •A• .A..._ zA, .t;~?- •A· .
sentido, num contexto cristão, cometer o erro de dizer que a Bíblia do
17. Sura 105 com uma tradu.;ãopersacomo adorno. Teerão e Oum, meados dos anos rei Jaime era a «própria Bíblia». A propósito, a tradução com formato
90, século XX. Isto assemelha-se ao famoso códice cristão de Bezae do século V, onde ornamentado também tem o seu equivalente oral. Na cassete turca, aci-
o grego original tem uma tradução latina a ornamentá-lo - com a significativa diferença
de que no Códice Bezae não há disparidade entre o tamanho dos escritos ma mencionada, depois de o recitador cantar uma passagem em árabe,
segue-se uma tradução em turco em voz normal; não é necessário ter
conhecimento de qualquer dessas línguas para discernir qual das duas
Bíblia latina; a sua opinião era que se devia «traduzir depois da frase e é a palavra de Deus.
não apenas depois das palavras». Conrudo, seria ir longe de mais consi- Conrudo, a ideia de uma tradução que substituísse o original não era
derar o «ayatollah» como um Lutero persa. A ideia de Lutero era germa- de todo desconhecida no começo do Islão, mesmo no contexto nuclear
nizar Moisés pela eliminação dos seus hebraísmos, a um ponto tal que das cinco orações. Os Hanafis, uma das quatro escolas de pensamento
ninguém pudesse pensar em chamar-lhe hebreu; nenhum muçulmano, legal no Islão sunita, conseguiram um conjunto muito forte de seguido-
com a cabeça no seu lugar, pensaria numa ideia tão corrosiva como a de res no mundo dos falantes persas logo após o seu aparecimento. Não foi
despojar Deus dos Seus arabismos. por acaso que só eles, entre as escolas de leis, desenvolveram a ideia de
Uma tradução como a de Makarim Shirazi, apesar do seu relativo ca- que era permitido recitar o Alcorão numa língua não arábica enquanto
rácter afirmativo, era claramente destinada a ajudar o leitor com o texto realizavam as orações rituais. Mas esta prática não criou raízes. Sabe-
86
87
mos que na cidade de Merv, de falantes do persa, um soberano dos prin- melhores momentos do seu esforço espantosamente bem-sucedido para
cípios do século XI preparou uma vez um debate entre os «Hanafis» e os ridicularizar os «Hanafis» foi quando recitou um curto versículo do Al-
seguidores da escola Shafi, seus rivais. Os «Shafitas» venceram, porque corão em persa.
um dos seus líderes fez uma cruel imitação da oração «hanafi». Um dos
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' - ~ ~ -§ 'V- -~-- 19. De uma tradução JXllaca de 0105:1. A implantação de comunidades muçulmanas
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~ , , , -~ tártaras na Lltuãnia, que então abarcava uma área muito superior à dos dia de hoje, foi
um subproduto da sublevação mongol dos séculos Xltl e XIV. Estes tártaros depressa
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esqueceram a sua língua materna turca e, em vez disso, passaram a falar as línguas
dos seus vizinhos e a utilizá-las nos seus livros religiosos. O que aqui vemos. escrito por
, j"c ~~\ .,_ o . L /:__ .-:- baixo do original árabe (como na F1g. 16), é urna tradução JXllaca- escrita numa espé-
cie de ~aljarrúa" polaca. Eis o que está escrito: ..czy-nie-widziales ya Muhammad jakze
~ '-
~ -o,..c:_ """'~-~-.>. ~
_,_ :.;
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uczynil Bóg twój .-, (KNão viste, ó Muhammad. como fez o teu Deus ... ~) O manuscrito
data do começo do século XIX, mas é natural que a tradução seja muito mais antiga
---
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20. De uma tradução africãnder de Q67:1 Neste formato. não há uma distinçáo vi·
suai entre o original e a tradução. O árabe ocupa a primeira metade da primeira tinha
18. Uma tradução espanhola do 0105:1-2. Os mouriscas- muçulmanos espanhóis "Abençoado seja Aquele em cuja mão está o poder.~ A tradução é livre, dando-nos uma
sob soberania cnstã - escrev·,am multas vezes em «aljamiado», isto é, em espanhol paráfrase seguida de um desenvolvimento (que antecipa a segunda metade do vers'l-
com caracteres árabes Os seus escritos religiosos incluíam traduçOes do Alcorão_ Na culo): «En die koning skap is by-die hoege AJ!ah ta'ala, en waartik Allah ta' â/á is baas
passagem que se mostra, a tradução (escrrta por c1ma do original. como nos Evange- vir al-die iets, («E a dignidade real está com Deus o mais nobre. que Ele seja exaltado
lhos lindisfarne}, diz: «Y-mo-te fué lecho a saber como fiço tu-sefior yâ Muhammad e verdaoeiro Deus, que Ele seja exaltado, Ele é o senhor de todas as coisas"). O que
con las-compaiias del-al-fin- Y-.;.no-sabes que pusoAJtah sus artes en-desyerror?~ (As neste ponto chama a atenção de um faJante de inglês é ~baas .. , derivado da mesma
palavras árabes estão em itálico). O dialecto é aragonês («fecho~ por Khecho») O nosso palavra holandesa da «boss" inglesa·. o que chama a atenção a um falante de afr"lcân-
tradutor introduz ya Muhammad (Ó Muhammad!} e conserva o al--fil árabe, enquanto der é a utilização não nonnaltzada d€ «ietS», como se o tradutor estivesse a dizer «ali
outra versão tem «elefante,. A palavra «desyerror» (erro grosseiro} não existe no espa- the somethingsH_ Este texto faz parte da literatura religiosa da comunidade muçulmana
nhol moderno. mas é vulgar no "al;amiadD» Embora a minha lranscnção não o mostre. da Cidade do Cabo do século XIX e fazia parte da colecção de Achmat Davids (já fa-
o "s~ espanhol é consistentemente escrito como sh. O manuscrito fazia parte de uma lecido). Talvez date dos anos 1880 (várias décadas antes de a Bíblia ter sido traduz"! da
substancial colecção encerrada numa parede de uma casa em Almonacid de la Sierra, para alrfcãnder). Esta comunidade foi formada por exilados e escravos oriundos das
uma aldeia de A.ragão. Não há dúvida que a colecção foi metida na parede pelo seu Índias Orientais e de outros locais trazidos para o Ca!:lo pelos Holarn::leses. A presença
dono aquando da expulsão dos mouriscas em 1610_ E lá se manteve guardada no seu dessas populações não holandesas foi essencial para o processo da conversão do
esconderijo até ver a luz do dia em 1884. holandês em afncãnder
88 89
Algumas religiões, como o budismo, gostam de traduzir as escriruras
Capítulo 9
como os patos gostam da água. Contam-nos que o Buda «pode expres-
sar rudo o que quiser em qualquer língua" e, até, que ele «fala todas as O Alcorão como verdade
línguas ao mesmo tempo». Mas a indiferença linguística não era uma
característica do Islão. O Alcorão estava destinado a ser preservado tal
qual fora revelado.
Realmente, revelámos um Alcorão em árabe. Talvez vós mediteis. É possível que um texto, como parte de uma herança religiosa, seja
(Ql2,2) copiado ou recitado sem que ninguém preste muita atenção a qualquer
mensagem ou mensagens que ele possa conter. A Vedanta, a escola
Foi a partir deste versículo que Ibn Hazm (falecido em 1064), um
que há muito domina o hinduísmo intelecrual, é um caso paradigmáti-
espantoso erudito da Espanha muçulmana, traçou a inferência lacónica
co: a sua veneração pelos Vedas é ilimitada, mas a sua mensagem não
<<O não-árabe não é árabe e por isso não é Alcorão». Todavia, a maioria
está nos Vedas propriamente ditos, mas nos Upanixadas posteriores. O
dos problemas têm outras compensações: se uma tradução das escriru-
Alcorão, pelo contrário, não sofreu tal desconexão no seu significado.
ras não é o Alcorão, não haverá restrições para tocá-lo.
O que Deus diz é não só sagrado, mas também infalivelmente verda-
de. O Alcorão é um livro que foi enviado <<Como clarificação de todas
as coisas» (Q16:89), um repertório de verdades que chama a atenção
dos crentes.
Estas verdades têm um papel, de uma maneira formal e informal,
em numerosos aspectos da literatura e da vida muçulmanas. «Encon-
tram-se muitas vezes na sociedade egípcia», escreveu Lane em relação
ao Alcorão e ao que disse o Profeta, «pessoas que introduzem uma cita-
ção apropriada... na conversação normal, seja qual for o tópico; e uma
interrupção deste tipo não é considerada, como seria na sociedade em
geral no nosso próprio pais, hipócrita ou incómoda.» Conta-se até uma
história de um peregrino que encontra uma mulher que comunicou
durante trinta anos exclusivamente através de citações corânicas. Claro
está que isto é altamente excêntrico, mas o que Lane descreve é vulgar.
Um dia, no século X, Qayrawan, um erudito distinto, ouviu, horrorizado,
um triste relato de um viajante sobre a situação do Islão em Bagdade; a
sua resposta terminou com as seguintes palavras: «Realmente somos de
Deus e para Ele nos voltamos.» Para vermos o poder desta frase, temos
de ler a passagem corânica de onde foi retirada:
Mas tu recompensa a força dos perseverantes. Aqueles que, quando sofrem
uma desgraça, dizem: «Realmente, somos de Deus e para Ele nos volta-
mos.» (Q2: 155-6)
00 I ~
Uma tradução idiomática podia ser: ••Que desgraça!>• A mais vulgar tários; estes diferem uns dos outros em extensão, estilo e interesse. É ca-
utilização da citação, então e agora, é consolar alguém pela morte de racterístico da cultura muçulmana que, variando embora enormemente
um ente querido. Outro exemplo da citação vem do nosso observador em prestígio, nenhum deles tenha autoridade exclusiva que seja negada
holandês sobre a Meca do século XIX. Diz ele que «Uma filha de Meca•• aos restantes_
desviava a ira de um marido frustrado com uma citação apropriada do
Q2:229 sobre o divórcio: «OU reconciliação segundo está determinado,
sem prejuíw, ou separação com favor.» Uma tradução livre seria: «Ou
me dás o divórcio, ou não». Ele acrescenta, com algum sarcasmo, que,
excluindo a Fatiha, estas eram as únicas palavras do Alcorão que todas
as mulheres de Meca conheciam.
Os transgressores do Sábado
Se quisermos beneficiar das verdades que Deus enuncia no Seu livro,
precisamos de compreender exactamente o que Ele diz. A tarefa mais
básica de um comentador é destacar, convenientemente, as dificuldades
linguísticas- O Alcorão tem bastantes, e a nossa passagem tem três. Uma
O texto mais acessível para se ter uma ideia do que significou para é a palavra que traduzimos por «terrível» em «terrível tormento» (embo-
muçulmanos uma dada passagem corânica é um comentário do Alco- ra «fone~• se aplicasse melhor às opiniões dos comentadores): ba'is. Esta
rão, um género que já conhecemos no contexto moderno. Esta forma li- palavra, como explica o grande exegeta Tabari, é mais um problema
terária está muito desenvolvida no Islão; comentários dos Vedas são, de textual do que semântico: os sete, embora concordem nas consoantes,
acordo com padrões islâmicos, relativamente tardios e escassos, embo- divergiam fortemente nas vogais (quatro lêem ba'is; um quinto lê ba'is,
ra alguns clássicos chineses tenham, provavelmente, mais comentários bis ou bays, de acordo com a transmissão; um sexto lê bi's; o sétimo lê
que o Alcorão. O comentário existente mais antigo do Alcorão enquanto ba'is ou bay'as)_ Tabari, todavia, sabe o significado da palavra e selec-
trabalho independente reporta-se ao século VIII, e muito material na li- ciona a leitura de ba'is correspondente. Nos outros dois casos não há
teratura comentarista refere-se a auroridades ainda mais antigas. Desde problema com a leitura, mas discute-se o significado; seguem-se aspa-
então, não passa um século sem que haja mais composições de comen- lavras traduzidas «nadando em direcção à margem» (shurra'an) e «ex-
92 93
tremamente sorrateiro» (kha.si'in)_ Assim, para shurra'an, a explicação macacos ... », mas nada nos diz sobre a transformação que presumivel-
dos comentadores inclui (<aparecendo à superfície da água>>, «indo um mente se seguiu. Todavia, os comentadores sabem como tudo se passou.
atrás do outro», «subindo as cabeças» e «de todos os lados»; «nadando Contam-nos que os virtuosos habitantes da localidade acordaram certo
em direcção à margem» é apenas outra dessas sugestões. Neste caso, dia e notaram que os transgressores ainda não tinham aberto os portões
os comentadores parece que se põem a adivinhar ao acaso, tendo só o das suas casas. Intrigados, foram buscar uma escada que encostaram ao
contexto para se guiarem. muro; um deles subiu a escada para olhar para o interior e ficou estu-
Logo que as palavras tenham sido solucionadas, o que podemos espe- pefacto ao verificar que os transgressores se tinham transformado em
rar a seguir de um comentador é que ele aumente a história. Esta é a ta- macacos. Destruídos pela punição que os tinha surpreendido, estes ma-
refa clara parcial de fornecer pormenores adicionais. Portanto, Deus não cacos tinham deixado de poder falar mas continuavam a compreender
menciona onde teve lugar o incidente. A questão é razoável e os comen- quando lhes falavam, respondendo por gestos. Os seus virtuosos conci-
I
'
tadores têm as respostas preparadas. Uns situam a infortunada localida-
de no Mar da Galileia, outros no Mar Vermelho; a localização preferida é
Aila (a antiga Elat, onde hoje se situa o porto jordano de Acaba).
Mas aumentar a história requer, frequentemente, muito mais do
que juntar-lhe esses ponnenores_ Olhemos novamente para as narra-
dadãos desaferrolharam-lhes o portão, e os macacos desapareceram no
deserto. Esta imaginativa sequência nem sequer é sugerida ao de leve
no Alcorão.
Agora que sabemos, tanto quanto é humanamente possível, preci-
samente o que Deus quer dizer e exactamente o que aconteceu nesses
tivas corânicas. Apesar de nos fornecer informação suficiente para tempos recuados, podemos razoavelmente esperar que o comentador
permitir que reconstruamos a história, não é realmente escrita como aborde quaisquer questões doutrinais suscitadas pela passagem. Con-
urna narrativa. Em vez de começar por «Era uma vez», começa com as forme já vimos, os comentadores tradicionais estão pouco preocupados
palavras «Pergunta-lhes acerca da cidade que estava à beira do mar, com a questão de a metamorfose ser compreendida literalmente; com
quando os seus habitantes transgrediam o Sábado, quando os peixes uma única excepção, aceitam-na como verdade que é. Deus é omnipo-
iam no dia de Sábado pela superffcie ___ , No contexto, isto era uma ins- tente e faz o que Ele quer. A verdadeira questão para os comentadores
trução a Muhammad para questionar os judeus acerca de uma história era de teologia moral. No seu estilo elíptico, o Alcorão parece dividir os
que os envergonha; os judeus, como Deus, já conhecem a história, e a habitantes da localidade em três grupos. O primeiro transgrediu o Sá-
Sua preocupação não é tanto para a recontar, mas antes para fornecer bado, o segundo admoestou os transgressores, e o terceiro achou que a
pormenores suficientes para a identificar. Uma vez feito isto, Ele passa admoestação não tinha significado. Contudo, ao descrever a resposta de
ao ponto na história onde tem lugar um diálogo entre dois grupos que, Deus, o Alcorão só se refere a dois grupos: o daqueles que foram trans-
simplesmente, não estavam envolvidos na transgressão do Sábado: «E mutados em macacos e o daqueles que foram salvos. Obviamente que
quando uma comunidade de entre eles perguntou ___ , É óbvio que al- aqueles que transgrediram o Sábado foram transformados, e os que os
gumas pessoas da localidade tinham transgredido o Sábado ao pescar. admoestaram devem ter sido, certamente, salvos. Mas o que aconteceu
Mas Deus, simplesmente, deixa-nos inferir isto - enquanto se antecipa ao terceiro grupo, os que não viam nenhuma utilidade na admoesta-
que um contador de histórias humano se preocupa em explicar como é ção? Era esta a questão com que se debatiam os comentadores.
que aconteceu. O grau das preocupações deles indicava que havia mais em jogo
Este é o género de lacuna que os comentadores têm de preencher, neste caso do que uma falha numa história acerca de israelitas antigos.
e fazem-no com pormenores elaborados que podemos desprezar. En- O próprio Sábado significava tanto para os comentadores como para
contramos uma lacuna idêntica quando chegamos ao processo de meta- a maioria das pessoas no Ocidente de hoje. Mas o destino incerto do
morfose. O Alcorão Conta-nos que Deus disse aos transgressores ..sede terceiro grupo levantou uma questão muito mais geral: as pessoas que
94 95
..
se calam na presença das más acções- não participando nelas- são con- coisa. Era mesmo possível, sem ser sacrilégio, considerar a noção de que
sideradas entre as amaldiçoadas ou entre as que são salvas? Uma pessoa Homero pudesse na altura ter adormecido; é a Horácio, parafraseado
não tem de acreditar em deuses, budas ou fantasmas para reconhecer por Pape, que devemos a frase <<Homero cabeceia com sono». Mas isto
nisto um dilema ético perene. seria impossível no contexto muçulmano: Deus, como sabemos pelo
«versículo do trono••, não dormita nem dorme. Mesmo rejeitando, ape-
Tolerar religiões falsas sar de possível, seria demasiado radical para os eruditos muçulmanos,
96 97
...
muçulmanos. Por isso, havia uma opinião de que o versículo do <<não religiosos. Tabari, pelo contrário, não menciona nenhuma destas defi-
constrangimento» fora revelado com referência específica a um certo ciências femininas. Em vez disso, explica que as palavras «porque Deus
grupo de Medina. Dizem-nos que, nos tempos pré-islâmicos, uma mu- favoreceu uns em relação aos outros» significam «por conta de Deus
lher fazia juramento de que se desse à luz uma criança a poria no seio ter preferido os homens às suas esposas, depois de estas terem pago
dos judeus locais - a intenção era proporcionar-lhe uma vida longa. os seus dotes, as sustentam com as suas posses e satisfazem-lhes as ne-
Com a chegada do Islão, havia algumas crianças nessa situação. Então, cessidades». Por outras palavras, a preferência de Deus foi inserida na
quando a tribo judaica Nadir foi expulsa de Medina, as pessoas disse- justificação económica. Foi assim, diz ele, que Deus preferiu os homens
ram: «Mas, Profeta! Os nossos filhos e irmãos estão entre eles!n O Pro- às mulheres, e é por este motivo que os homens são os administradores
feta não teve resposta para isto até Deus ter enviado o versículo do «não dos interesses delas.
constrangimento», legislando assim que competia às crianças escolher Talvez requeira uma certa sensibilidade cultural detectar, na inter-
entre judaísmo e Islão. (Fste relato podia ser combinado com a opinião pretação de Tabari do versículo, o pensamento de um muçulmano femi-
de que o versículo fora subsequentemente revogado, mas não tinha de nista medievaL Embora não o mencione, Tabari tinha a extraordinária
o ser). Outra sugestão era que o versículo apenas se referia àqueles que opinião de que era permitido a uma mulher ser juiz. Neste ponto estava
eram elegíveis para pagar tributo - e nesse caso nada acrescentava ao em desacordo com a maioria dos seus colegas comentadores Gá para
«versículo do tributo». Esta era a opinião defendida, como mais correc- não mencionar o conde de Cromer, um mordaz crítico moderno das
ta, por Tabari. atitudes muçulmanas para com as mulheres, que era também um duro
antifeminista na sua terra). Ibn al-'Arabi exprime-se com particular vee-
mência sobre este assunto, mas será mais elucidativo vermos a rejeição
Homens e mulheres
da opinião de Tabari por Mawardi (falecido em 1058), um erudito de
Conforme já vimos anteriormente, o Q4:34 estipula que os «homens Bagdade. Ele rejeita isso por duas razões: porque vai contra o consenso
são responsáveis pelos assuntos das mulheres». Esta questão suscitou e porque é incompatível com o nosso versículo. E continua a explicar a
uma contenção que os comentadores masculinos numa sociedade me- preferência de Deus em termos da superioridade masculina em intelec-
dieval civilizada não estariam, certamente, dispostos a questionar. Não to e discernimento. E conclui: «Por isso não é permitido às mulheres ter
tinham, todavia, tOO.os a mesma opinião quando se propunham explicar autoridade sobre os homens.»
as razões para esta disposição. A outra parte de realce do versículo é a instrução dirigida aos crentes
Por que razão deveriam os homens gerir os interesses das mulhe- masculinos para castigar as suas esposas rebeldes sempre que forneces-
res? O próprio Alcorão dá a resposta: «porque Deus favoreceu uns em sário. Isto não criou embaraços aos comentadores medievais como o
relação aos outros, e porque eles gastam parte das suas riquezas em fez aos modernos. Eram homens do seu tempo: o famoso erudito judeu
favor das mulheres». A ideia na segunda parte da frase é suficiente- Maimónides (falecido em 1204) tinha a opinião de que, se uma esposa
mente clara: por via económica, as mulheres recebem algo em retomo se recusasse a desempenhar as suas obrigações, podia ser castigada. A
pela sua submissão à autoridade dos homens. Mas qual é a natureza sua preocupação era manter uma distinção firme entre castigar uma es-
da preferência de Deus na primeira parte da explanação? De acordo posa por algum motivo, que Deus permite claramente neste versículo,
com Ibn al-'Arabi (falecido em 1148), ainda outro erudito famoso da e sová-la, que não era suposto Ele permitir. (Do mesmo modo, a maio-
Espanha muçulmana, há aqui duas coisas a ter em consideração. A pri- ria das pessoas no Ocidente de hoje distingue entre violência corporal
meira refere-se à superioridade intelectUal dos homens em relação às numa criança e um tabefe dado na devida altura). Uma forma vulgar de
mulheres, e a segunda à sua superioridade no desempenho dos actos estabelecer a diferença neste caso era dizer que um marido irritado po-
98 99
dia bater na esposa com um palito -o equivalente funcional na cultura Comentadores xiitas
muçulmana da escova de dentes ocidental.
Os comentadores do Alcorão, como já se tornou evidente, não dizem
Embora os muçulmanos tradicionais não se sentissem incomodados
todos a mesma coisa. As diferenças são algumas vezes idiossincráticas,
pela referência no versículo à possibilidade de poderem castigar as mu-
mas podem também reflectir profundas divisões de obediência. Um
lheres, é interessante verificar que alguns deles eram claramente inco-
desses casos é o do abismo entre sunitas e xiitas, e irei terminar este
modados pela ideia. A posição de que é melhor não se dispor do direito
capítulo com algumas considerações sobre os comentadores xiitas. Os
conferido pelo versículo está bem representada, e até há mesmo uma
xiitas de que nos vamos ocupar são os lmanitas ou Twelvers (cuja maior
opinião de que o «bater» considerado é puramente verbal. Mas onde a
concentração se regista actualmente no Irão). Esta categoria não é, de
arnbivalência surge com maior clareza é nas histórias relativas ao Profe-
modo algum, homogénea: alguns comentários xiitas são semelhantes
ta. É do nosso conhecimento que Muhammad, que nunca castigou uma
aos dos sunitas, enquanto outros são muito mais sectários nas suas fon-
mulher, foi mesmo ao ponto de proibir a prática entre os seus seguido-
tes e preocupações. Podemos pôr de parte o primeiro tipo e concentrar-
res. O seu eficaz Companheiro 'Umar fez-lhe notar que isso estava a pro-
-nos no segundo.
duzir uma indesejável mudança no equihbrío de poder entre maridos e
Há uma margem pronunciada de hostilidade do xiismo ao texto-pa-
mulheres e instou-o a renovar o bofetão de mão finne. Mais tocante foi
drão sunita do Alcorão. Pode dizer-se que é incompleto ou corrupto em
o caso de um homem que esbofeteou a mulher, que veio queixar-se ao
vários aspectos. Por exemplo, Q3:110 no texto-padrão, começa assim:
Profeta; Muhammad preparava-se para que o marido, em retribuição,
fosse esbofeteado, mas Deus interveio enviando-lhe o versículo. O co- Sois a melhor comunidade (umma) que se fez surgir para os homens.
mentário de Muhammad foi: «Eu queria uma coisa, mas Deus queria (03,110)
outra.» Depois disto, podemos sentir a tentação de descrever Deus, nes- A tradição xiita diz que a leitura correcta é: «Sois os melhores irnãs
te caso, como mais papista que o papa. (a'imma). .. " Isto envolve apenas uma pequena alteração para o negro
Deus nem sempre surge desta forma. Diz-se que a esposa do Profe- (ymh por 'mh) mas, contudo, serve para recolocar o versículo no tema
ta, Umm Salama, se queixou ao marido de que o Alcorão só falava de central xüta do ministério dos ímãs, a chefia da comunidade muçulma-
homens. O que veio como resposta foi que a linguagem era inclusiva de na. Há umas cinquenta leituras xiitas deste tipo para o Alcorão no seu
género, com uma vingança: todo. Na prática, contudo, os xiitas parece terem aceite sempre a auto-
Aos muçulmanos, às muçulmanas, aos crentes, às nentes, aos que oram, ridade do texto-padrão. É isto que eles recitam e comentam na maior
às que oram, aos verdadeiros, às verdadeiras, aos perseverantes, às perse- parte dos casos; só quando o seu redentor (o Qa'im) aparecer é que eles
verantes, aos humildes, às humildes, aos caridosos, às caridosas, aos que se atreverão a substituí-lo pela sua própria versão.
jejuam, às que jejuam, aos recatado.o;, às recatadas, aos que recordam e Irei confinar-me, relutantemente, a um exemplo da variedade forte-
às que recordam constantemente Deus, a todos estes Deus preparou um mente sectária de exegese xiita. 'Ayyashi, um erudito de princípios do
perdão e uma enorme recompensa. (Q33:35) século X, cita a seguinte história no seu comentário a Q7:163-6. Na cida-
Talvez não devamos deduzir com demasiada facilidade que a sensi- de de Cufa algumas pessoas foram falar com 'Ali (o gemo do Profeta e
bilidade para com as preocupações femininas é uma característica ex- fundador do xiismo) para lhe pedirem a sua opinião acerca das enguias
clusiva dos nossos tempos. que estavam à venda nos mercados locais - por outras palavras, para
saberem se era permitido aos crentes comê-las. Ele riu-se e convidou-os
a assistir a um prodígio. 'Ali, de seguida, levou-os até à margem de um
rio, cuspiu para a água e recitou algumas palavras, para logo aparecer
100 101
'!'
•
uma enguia de cabeça levantada e boca aberta. 'Ali pediu à enguia que aquilo que para nós e para os comentadores sunitas é um anacronismo
se identificasse e explicou devidamente, para benefício dos seus acom- flagrante. De modo contrário, a natureza mítica do relato de 'Ayyashi é
panhantes, que elas eram antigos habitantes da «cidade que estava à também evidente pela forma como serve para explicar por que o mundo
beira do mar» e citou o versículo corânico. Ainda mais acentuadamente, é como é hoje em dia: diz-nos como certas espécies, sendo de origem
a enguia revelou o significado oculto da passagem: Deus tinha pedido humana, não devem ser comidas por verdadeiros crentes. Este contraste
ao povo da cidade para ser fiel a 'Ali e, por se terem recusado, ficaram entre as exegeses xiita e sunita não deve ser tomado como fixo e inal-
sujeitos à metamorfose, acabando uns no mar como enguias, outros em terável. Não é difícil encontrar ilustrações sóbrias entre comentadores
terra como lagartos e gerbos. 'Ali virou-se, então, para os presentes e x:iitas, ou especulações furiosas entre os sunitas. Mas, se pensarmos em
perguntou-lhes se tinham percebido tudo bem; eles responderam que termos de diferenças de ênfase, o contraste é suficientemente real, em-
sim, que, na realidade, tinham compreendido. E ele concluiu com uma bora muito menos evidente hoje do que era no passado.
observação zoológica que salientava fortemente a herança humana das
enguias: <<Através d'Ele, que enviou Muhammad como profeta, elas fi-
cam menstruadas, tal como acontece com as vossas mulheres!»
A cultura religiosa que a história de 'Ayyashi sublinha é, de certa for-
ma, bastante diferente da da escolástica sunita. Dois dos seus temas são
especificamente xiitas. Um é óbvio: a ênfase na obediência a 'Ali, que é
um valor central do xiismo. O outro requer uma palavra de explicação.
Vivemos num mundo no qual uma das mais visíveis divisas de filiação
religiosa é aquilo que comemos e não comemos. Neste contexto, o sig-
nificado da enguia marca a divisão sectária- os sunitas permitem-na,
enquanto os xiitas a proíbem. É esta a questão que é posta a 'Ali e que
ele resolve com um senso comum xiita através da combinação do teste-
munho da enguia e do argumento da menstruação. AB enguias, por ou-
tras palavras, têm origem humana, e comê-las, como fazem os sunitas,
é equivalente a canibalismo.
Tão surpreendente como estes temas sectários temos a qualidade
mítica da história de 'Ayyashi. Conforme já vimos, os comentadores
sunitas tiveram muita dificuldade em suprir os pormenores do relato
corânico dos transgressores do Sábado, mas fizeram-no com conside-
rável imaginação. Mas não podiam ser acusados de assaltar a história
de Deus com a finalidade de construir um mito seu. No caso de 'Ayyashi,
pelo contrário, os pormenores da versão corânicajá não têm muita im-
portância: o Sábado é posto de parte e os macacos são completamente
ignorados. Em vez disso, os versículos corânicos são utilizados como
uma ocorrência para projectar o dever xiica de afiliação a 'Ali no passa-
do distante- uma projecção que é realizada sem nenhuma relação com
102 103
Deus com um corpo como o nosso- criar Deus à nossa própria imagem,
Capítulo 10 com cabelos lisos ou encaracolados, como faziam os antropomorfistas.
Contudo, também claramente, não se deviam retirar a Deus todos os
O Alcorão como dogma seus atributos inteligíveis e reduzi-Lo a uma cifra dialéctica. Mas onde é
que estava o meio termo seguro?
A questão de que modo Deus falava era a fonte de todas as contro-
vérsias teológicas neste campo. Nós sabemos que Ele fala. Na passagem
Disseram-nos que um homem foi ter, um dia, com o piedoso Hasan sobre os transgressores do Sábado, por exemplo, Ele diz-nos as pró-
al-Basri (falecido em 728) e lhe disse: «Façamos um debate sobre re- prias palavras que lhes dirigiu (Q7:166). De uma m~eira geral, todo
ligião.» Hasan replicou: «Sei qual é a minha religião. Se haveis perdi- o Alcorão, do princípio ao fim, é a palavra de Deus e é, portanto, o Seu
do a vossa, ide procurá-la.» 'Barbahari (falecido em 941), um erudito discurso. Mas como foi que Ele falou? Devemos pensar que Deus está
demagogo de Bagdade e seguidor de Ibn HanbaL aprova esta anedota munido de órgãos da fala, de certo modo análogos aos nossos? Ou será
que cita e diz: «Não perguntes "Porquê?" e "Como?". Teologia, polémi- que Ele fala de uma forma diferente, dando, simplesmente, existência,
ca, disputa e discussão são inovações que lançam dúvidas no coração." por assim dizer, a um som através do ar? Os que tinham tendência para
Uma inovação é uma coisa que a primeira geração de muçuhnanos não a primeira opinião insistiam que o Alcorão era o «discurso de Deus»
fazia e que, portanto, não deve ser feita; pois «àqueles que assegurem em sentido literal; os que estavam inclinados para a segunda opinião
que há alguma parte do Islão com a qual os Companheiros do Profeta opunham-se dizendo que o Alcorão fora «criado». A disputa aumentou.
não nos proveram, há que chamá-los mentirosos». Estas são palavras Aqueles que negavam que o Alcorão fora criado diziam que fora «não
sensacionais. O que elas deixam escapar, claro está, é que teologia, po- criado» e, assim, passaram a considerá-lo co-eterno com Deus. Esta
lémica, disputa e discussão eram, efectivamente, uma actividade flo- opinião, por sua vez, clamava que a denúncia era politeísta. Apesar de
rescente nos primeiros séculos do Islão. Está na natureza das culturas tudo, veio a ser a doutrina da maioria dos sunitas que consideravam que
teológicas não deixar Deus sossegado e gastar muito tempo com minu- o Alcorão, em certo sentido, era eterno.
dências divinas. O auge da controvérsia deu-se na primeira metade do século IX,
Havia, de facto, pessoas nos princípios do mundo islâmico que, lite- quando os califas quiseram impor aos eruditos a doutrina antiantropo-
ralmente, consideravam o cabelo de Deus como um tópico de discussão morfista de que o Alcorão fora criado. No caso que conhecemos melhor,
teológica (seria liso ou encaracolado?). Essas pessoas eram marginais, Ibn Hanbal foi mandado comparecer perante o califa Mu'tasim (gover-
mas a forma como pensavam levanta uma questão de aplicação muito nou de 833 a 842), tendo sido submetido, primeiramente, a uma dis-
mais vasta. Todas as religiões monoteístas se confrontam com o dilema cussão teológica e depois, quando isso não conseguiu vencer a sua re-
de como imaginar Deus. Por um lado, Ele está intimamente ligado à sistência, a açoites ininterruptas. Uma troca de opiniões que teve lugar
vida dos crentes; para O referir, têm, portanto, de O imaginar em ter- entre Ibn Hanbal e o governador de Bagdade um pouco antes de ele ter
mos inteligíveis para os humanos. Todavia, por outro lado, Deus tem comparecido perante o califa prova que, excluindo os açoites, a cultura
de ser sublime, transcendente, inimaginavelmente diferente de nós. No do debate teológico era florescente e pode também servir para ilustrar
Islão, como noutras crenças monoteístas, há suporte das escrituras para a parte desempenhada pelo Alcorão nestas disputas. O governador pre-
ambas as tendências. Assim, o Alcorão fala da "mão de Deus» (Q48: 10) veniu Ibn Hanbal de que o califa o ia mandar açoitar, açoite atrás de
e da «Face do teu Senhor» (Q55:27), mas também nos diz que «Nada açoite, e que depois o atirava para a prisão de onde nunca mais sairia
existe semelhante a Ele•• (Q42:11). O braço-de-ferro entre as duas ten- para ver o sol; isto eram questões sobre os quais um governador estava
dências antitéticas era poderoso. Era claramente inaceitável imaginar
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104
bem habilitado para falar. Mas ele foi depois bastante imprudente ao não-criada de Deus, seja escrita ou recitada, seja no céu ou na terra,
tentar uma certa teologia amadora, baseada na suposição de que «fa- seja guardada nas «tábuas sagradas» ou nas tábuas dos alunos das es-
zer» e «criar» eram a mesma coisa: colas, seja inscrita na pedra ou no papel, seja memorizada ou falada;
Governador: Deus não diz; «Nós fizemos um Alcorão árabe» (Q43:3)? todo aquele que disser o contrário é um incrédulo cujo sangue pode
Como é que podia ter sido feito sem ser criado? ser derramado e de quem Deus se afastou. (A <<tábua conservada» em
Ibn Hanbal; Mas Deus diz «e Ele fê-los como restollio após a ceifa,. Q85:22 a que Tabari se refere, pode ser entendida como um arquétipo
(Q105:5). Isso significa que Ele os criou [como restollio após a ceifa)? celeste do «Livro guardado,, do Q56:78.) Diz-se que alguns foram tão
Governador: tevem-no!
longe que até disseram: «O meu prommciar das palavras do Alcorão é
um acto não-criado.» Tais opiniões podiam conceder um suporte teoló-
gico intransigente para a proibição de tocar no Alcorão num estado de
impureza rimai. Podiam também ser postas de parte como disparates
arrogantes, que é o que elas eram.
Em complemento de ser não-criado, o Alcorão era também inimitá-
vel. Desta vez a própria ideia é, sem sombra de dúvida, corânica. O pano
de fundo de uma das passagens relevantes é a rejeição da mensagem de
Muhammad pela maioria dos seus contemporâneos e pelos seus extra-
vagantes pedidos de milagres- incluindo aquele de que ele devia subir
ao céu e voltar à terra trazendo um livro para eles lerem (Ql7:86). Em
resposta a este desfavorável clima de opinião, Deus ordenou a Muham-
mad que lançasse um desafio:
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que tiveram a audácia de a contestar. Foi, contudo, esta opinião que palavra? Ou seria antes o produto de autores humanos que compunham
se institucionalizou, conferindo assim ao Alcorão um estatuto literário as suas obras com assistência divina? A primeira opinião era do calvinis-
transcendente na cultura islâmica. ta inglês William Whitaker (falecido em 1595): «As Escrituras», dizia,
As doutrinas que acima considerámos parece terem sido novidades «tiveram como autor o próprio Deus; de onde nasceram e se desenvolve-
na história do monoteísmo. Elas têm, contudo, algum paralelismo nas ram.» Esta abordagem era predominante entre Protestantes e Católicos
atitudes indianas para com os Vedas, Biruni relata uma discussão entre nesse tempo. Pelo contrário, Henry Holden (falecido em 1662), um ca-
os hindus sobre se seria possível ou não alguém compor alguma coisa tólico inglês que era professor na Sorbonne, preferia falar em termos de
com a métrica do Veda (a terminologia que ele utiliza torna claro que «assistência especial e divina» que é concedida ao autor humano de um
tinha em mente o paralelismo muçulmano)_ A controvérsia na cultura livro bíblico. Era urna situação típica de muitos católicos do seu tempo
indiana sobre a questão de os Vedas serem eternos ou criados era mui- (embora ele dissesse algo de novo e controverso quando começou a li-
to mais notáveL As suas implicações foram bastante diferentes das da mitar essa assistência a assuntos doutrinais, excluindo «essas coisas que
disputa muçulmana sobre o Alcorão. A doutrina antiga da eternidade são escritas a propósito ou se referem a outras coisas que não dizem res-
dos Vedas insistia que eles não tinham autor; a sua reivindicação de au- peito à Religião))). O que é bastante interessante é que um argumento
toridade era precisamente de eles não serem a palavra de um mero deus contra a teoria do ditado dizia que, se cada palavra dos textos hebraico
e muito menos de um humano. A opinião contrária de que eles eram, e grego tivesse sido revelada, então a Bíblia Latina deixaria de ser uma
de facto, criação de um deus (embora um muito especial) fortaleceu-se Escritura Sagrada.
com o incremento do teísmo que, contudo, não tinha qualquer relação Dos dois devotos cristãos ingleses mencionados no parágrafo pre-
com questões de antropomorfismo. E, uma vez que os Vedas são uma cedente, apenas Whitaker poderia ter sido um muçulmano aceitável e
escritura exclusivamente oral, a questão escolástica central era a eter- ter emprego na Azhar. Ocasionalmente, eram ditas coisas no mundo
nidade do som. («O som», diziam os que questionavam que os Vedas islâmico tradicional que nos faziam recordar Holden. Por exemplo, ha-
tinham sido criados, «não é eterno, pois tem a propriedade de ser pro- via uma teoria que dizia que «Gabriel desceu e levou ao Profeta apenas
duzido, como um vaso»,) Há neste caso, contudo, um notável paralelis- ideias» (mas podemos admitir que eram todas as ideias); foi Muham-
mo: como forma de realçar o estatuto de um texto canónico, é difícil eli- mad que as «expressou na língua dos árabeS>>. Tais ideias, contudo, não
minar a doutrina da sua eternidade. Os monoteístas não-muçulmanos tinham lugar nos equivalentes islâmicos da Sorbonne. O Alcorão era o
poucas tentativas fizeram para competir. Havia a ideia entre os rabinos discurso de Deus; todo aquele que pensasse o contrário tinha perdido a
judeus de que a Tora já poderia ter existido dois mil anos antes da cria- sua religião. A resistência do mundo islâmico moderno às críticas supe-
ção do mundo; mas tal reivindicação, comparada com a pré-eternidade riores apoia-se em mais do que no acidente de que elas são oriundas de
do Alcorão, era um exemplo de modéstia. Por junto, as doutrinas que fontes estrangeiras.
se desenvolveram ao redor do Alcorão concediam-lhe um estatuto mais
elevado do que o da Bíblia, quer na versão judaica, quer na cristã.
Há uma questão sobre a qual ainda não me pronunciei, embora seja
proeminente na hisrória do pensamento cristão sobre a Bíblia. Muito
antes dos nossos tempos, os cristãos tinham começado a discordar sobre
a questão dos papéis respectivos de Deus e do homem para produzires-
crituras. Era, literalmente, a palavra de Deus ditada pelo Espírito Santo
a escribas humanos, cujo único trabalho era registar tudo, palavra por
108 109
OI}JO:liV op Ol}!)ewJOJ V
8!J8d e)JenQ
Capítulo 11 lho delas não se confinava, porém, à transcrição das folhas que 'Uthman
A compilação do Alcorão lhes fornecera. Uma delas lembrava-se de ter ouvido ao Profeta um cer-
to versículo (Q9:128 no nosso texto), mas não conseguiu encontrar nin-
guém que o conhecesse até consultar um tal Khuzayma; o versículo foi
então incluído. Logo que o trabalho ficou completo, 'Uthman devolveu
as folhas a Hafsa. Uma versão paralela desta mesma história conta-nos
Quando perguntamos como é que o discurso de Deus foi compilado, que ele enviou uma cópia do novo texto a cada uma das províncias e or-
sob a forma como hoje o lemos, pomos a teologia para trás das costas e
denou que todas as outras fossem destruídas. Uma coisa que este relato
reentramos no mundo da história. O Alcorão, tal como o conhecemos,
especial não nos diz é quais foram as províncias que não receberam có-
apresenta uma boa quantidade de variação textual no vermelho e ama-
pias. Dani declara que foram enviadas cópias para Cufa, Basra e Damas-
relo, mas é extraordinariamente uniforme em relação ao negro. Como
co e que uma pennaneceu em Medina; e acrescenta que uma tradição
é caracteristico, as diferenças neste caso não afectam mais do que uma de menos confiança estende a lista a Meca, ao lémen e ao Bahrein.
única letra. O livro, no seu conjunto, é composto, portanto, sempre e em Isto é uma história inteiramente plausível e, de certa maneira, até
toda a parte, mais ou menos, pelos mesmos 6200 versículos na mesma pode ser verdade. Mas há problemas relacionados quer com o que se
ordem (o número exacto depende da colocação das divisões entre ver-
passou depois, quer com o que se passou antes. Primeiramente, vamos
sículos e não do próprio texto). Este notável texto imutável é conhecido olhar para a evidência da história subsequente do texto corânico.
como o códice de 'Uthman, uma vez que, desde o relato protótipo, fora
Numa epístola teológica antiga que parecia ter sido escrita por volta
estabelecido por iniciativa do califa 'Uthman (governou de 644 a 656), de 700 por Hasan al-Basri, o autor, a certa alrura, cita o Alcorão da se-
por volta de 650. (A incerteza da data é deyjda ao facto de o aconte- guinte maneira:
cimento não parecer ter tido lugar na tradição histórica árabe.) Todos
os textos do Alcorão que hoje possuímos representam esta revisão, A palavra do teu Senhor é cumprida contra os ímpios que habitam no
Fogo.
embora, como iremos ver, isto possa talvez não ser verdade para todos
os fragmentos sobreviventes do texto corânico. Examinemos primeira- Isto é suficientemente corânico, mas que versículo é que ele cita?
mente uma versão do relato-padrão e, depois, consideremos algumas Não pode ser o Ql0:33 do nosso texto, uma vez que este diz:
das dificuldades que se levantam no texto.
Apalavra do teu Senhor é cumprida contra os ímpios que não são crentes.
De acordo com uma narrativa citada por Dani, um dos Companhei- (Ql0,33)
ros do Profeta foi falar com 'Uthman para se queixar das fortes diver-
gências na recitação corânica que surgiram entre os muçulmanos - tal Mas também não pode ser o Q40:6, o único outro versículo que é
como acontecera, preveniu ele, entre judeus e cristãos antes deles. semelhante a ele no nosso texto, uma vez que este diz:
'Uthman pediu de seguida a Hafsa, uma das viúvas do Profeta, para lhe
A palavra do teu Senhor é composta contra os não crentes que habitam no
mandar as folhas que estavam na posse dela, o que ela fez. Foi por ele Fogo. (Q40:6}
nomeado um grupo de cinco pessoas, que foram instruídas no sentido
de copiarem as folhas num só volume, mantendo a ordem do mesmo. Isto não pode ser apenas descuido de um copista posterior pois, na
As cinco pessoas eram normalmente capazes de resolver, entre elas, os passagem imediatamente a seguir à citação, o autor observa: «A pro-
seus desacordos mútuos, mas uma disputa acerca da forma exacta de messa de castigo só foi cumprida contra eles depois de terem forjado a
uma determinada palavra tinha de ser apreciada por 'Uthman. O traba- sua «impiedad~. O híbrido está, então, preso ao texto da epístola. En-
tretanto, os eruditos preservam bastantes relatos acerca das divergên-
112
cias no códice 'Uthman encontradas em algumas das versões que ele ção San'a. Parecia possível que o trabalho preliminar nestes fragmentos
substituiu. Uma delas, a de Ibn Mas'ud (falecido em 652 ou 653), tinha pudesse ser resumido em três pontos. Primeiro, dizia-se que a extensão
este texto no Q40:6: das variantes era consideravelmente maior do que está consignado nas
nossas fontes literárias, embora em carácter a variante não parecesse
A Palavra do teu Senhor foi dita antes contra os ímpio:; que habitam no
muito diferente do género de coisas que estas fontes registam. Segundo,
Fogo.
a ortografia destes - e de outros - fragmentos antigos diverge daquela
O nosso autor partilha uma variante com esta versão não-«'uthmâ- com que estamos familiarizados num ponto bastante surpreendente,
nica» («OS ímpios»), mas não a outra («foi dita antes»); talvez utilize nomeadamente na falta frequente de marcar o a longo como parte da
urna outra versão não-«'uthmânica)) cujas variantes os eruditos não estrutura consonântica em palavras como qala, «ele disse» (a grafia ql
registaram. Alguma coisa sobreviveu claramente à destruição de 'Uth- que aparece nestes fragmentos seria lida no nosso texto como qul, que
man e, fosse o que fosse, era ainda de utilização corrente várias décadas significa «diZ!», E por fim, mas não menos importante, esses fragmen-
depois. De facto, Malik, o bem conhecido jurista de Medina que mor- tos que mostram o final de uma Sura e o princípio de outra revelam
reu em 795, ainda achou que era necessário declarar que o governante alguns desvios evidentes da ordem-padrão das Suras; estes desvios são
tinha o dever de evitar a venda ou a recitação da versão de Ibn Mas'ud. comparáveis aos relatados pelas fontes literárias para um par de versões
Mesmo no século X houve uma tentativa fracassada para fazer renascer suplantadas pelo códice «'uthmânico», mas não coincidem regularmen-
essas leituras, contudo nesse tempo já tinham deixado de ser urna tra- te com elas.
dição viva. Há, por conseguinte, provas de que, no período pós-'Uthman, as coi-
Que o texto do Alcorão ainda não estava firmemente fixado nas dé- sas eram mais complicadas do que a história da fixação do seu texto
cadas que se seguiram a 'Uthman, como o foi posteriormente, é também canónico possa sugerir. Isto, todavia, não é de rodo surpreendente. Vol-
sugerido por moedas e inscrições oficiais da última década do século VII temos agora ao período anterior à sua redacção. Aqui só temos as narra-
(para exemplo, ver Fig. 5). Estas reproduziam aquilo que é, sem som- tivas e variantes preservadas nas fontes literárias, pois não parece haver
bra de dúvida, material corânico, mas com variações comparáveis às comprovação em primeira mão do texto corânico que tenha sobrevivido
da epístola de Hasan al-Basri. Ou as autoridades utilizaram um texto a este período. As nossas fontes, no seu conjunto, fornecem diferentes e
não-«'uthmânico», ou então sentiram que tinham a liberdade de para- desconcertantes quadros da pré-história do texto <<'uthmânico)),
frasear o texto «'uthm.ânico». No mesmo período, ou um pouco mais Se olharmos com atenção para a narrativa citada por Dani, distin-
tarde, relatou-se que Haijaj, o governador do Iraque, teria feito uma guimos a presença de dois temas antitéticos. Um, que é central à história
série de alterações no texto corânico que, em vários casos, envolveu a conforme é contada neste relato, é que o trabalho difícil já tinha sido
substituição de uma palavra por outra e que enviou depois cópias para feito quando 'Uthman entrou em acção; restava apenas copiar as folhas
as províncias. soltas da escritura que já estavam na posse de Hafsa e, claro está, juntar
Encontram-se também variantes nos primeiros manuscritos corâ- tudo num códice. O outro tema, que aparece mais ou menos como uma
nicos. Os mais antigos livros completos do Alcorão, comprovadamente ideia posterior a este relato, aponta para um processo muito mais taxati-
datados, que possuímos são apenas do século IX. Há, contudo, inúmeros
fragmentos que, apesar da dificuldade em lhes atribuir datas precisas, I vo: um versículo só poderia ser colocado no seu lugar se se encontrasse
alguém que o tivesse na sua posse. O primeiro sugere uma edição, o
I
são claramente mais antigos; supõe-se geralmente que os mais antigos segundo urna compilação efectiva. A maior parte das narrativas fazem
remontam, pelo menos, aos princípios do século VIU, e talvez mesmo ao de 'Uthman pouco mais do que editor, mas há algumas em que ele apa-
século VII. Este estrato está particularmente bem representado na colec- rece como compilador, apelando às pessoas para lhe trazerem qualquer
115
114
pedaço do Alcorão que, por acaso, possuíssem. E elas respondiam en-
tregando textos em tábuas, omoplatas de animais e ramos descascados
de palmeiras. (A Fig. 21 mostra como seria uma omoplata, contudo esta
não parece ser muito antiga.)
Se partirmos do princípio que 'Uthman conseguiu realmente o ma-
terial. ou a maior parte dele, de Hafsa, como é que ela estava na posse
dele? Além de viúva do Profeta, Hafsa era também filha de 'Umar, o
segundo califa que governou de 634 a 644. Ele também, segundo cons-
ta, tinha compilado o Alcorão ao longo da vida, tendo sido de facto o
primeiro a organizá-lo num códice. (Claro está que, devido a isto, as fo-
lhas de Hafsa não deviam estar soltas.) Ele também apelou às pessoas
para lhe trazerem o que tivessem, com resultados igualmente brilhan-
tes. E, contudo, também consta que recebeu os materiais já prontos do
seu predecessor Abu Bakr. Ao recuarmos até ao reinado de Abu Bakr,
que governou de 632 a 634, o modelo é muito parecido. Ele também
tem o mérito de ter sido o primeiro a compilar o Alcorão entre duas
capas. Temos de novo brilhantes relatos da compilação de materiais
oriundos de fontes dispersas. E, uma vez mais, há também relatos que
sugerem que, de facto, o material já teria sido reunido-neste caso, no
tempo do Profeta.
Enfrentamos assim contradições graves na nossa fonte material re-
lativamente a duas questões: quem compilou o Alcorão e de onde foi
ele compilado. Em termos históricos, as diferenças entre os relatos rivais
não são de somenos relevância. É mais que evidente que uma primeira
redacção do material já reunido durante a vida do Profeta inspiraria uma
confiança considerável no nosso texto do Alcorão. Pelo contrário, uma
compilação tardia de material que estivesse disperso dar-nos-ia alento
para dar crédito aos inúmeros relatos mais antigos das nossas fontes, que
nos garantiam que o Alcorão de 'Uthman estava incompleto, talvez mes-
mo de uma forma dramática. «Que ninguém diga», declarava o piedoso
filho de 'Umar, «que ele tem na sua posse o Alcorão oompleto. Como é
que ele sabe que está completo? A maior parte do Alcorão desapareceu.»
(Isto pode fazer-nos recordar as lamentações indianas pelos Vedas per-
didos.) Uma história curiosa relata que o registo escrito de um versículo.
descrevendo o castigo por apedrejamento por adultério, se perdeu quan-
21. Omoplata de um camelo com a Fatiha. O escriba começa com ortografia tradicional
do foi comido por uma cabra por altura da morte do Profeta. corànica, entre outras coisas pela inserção de um a longo em malikl em-negro
116 117
O que tudo isto levanta é uma questão de método. Devemos sim-
Capítulo 12
plesmente aceitar a historicidade de um elemento na nossa fonte ma-
terial - digamos, o relato-padrão do estabelecimento por 'Uthman do O Alcorão durante a vida do Profeta
texto canónico - e, por consequência, interpretar ou rejeitar os outros
elementos? Ou teremos dúvidas mais radicais? É melhor adiarmos esta
questão até termos considerado o Alcorão, como possivelmente se apre-
sentava, durante a vida do Profeta.
O arquétipo celestial do Alcorão é um livro. O Alcorão que temos
Entretanto, há um ponto histórico mais amplo que podemos tomar
aqui na terra é também um livro. Seria, portanto, natural esperar que
com alguma segurança apesar destas incertezas: pelos modelos de ou-
Deus revelasse a Sua oração como um texto completo - enviando-o
tros sítios e de outros tempos, o processo pelo qual o Alcorão alcançou
«em bloco, de uma vez••, como os descrentes críticos pensavam que Ele
o estatuto de um texto canónico parece ter sido invulgannente rápido.
devia ter feito (Q25:32). Em vez disso, as fontes muçulmanas descre-
Em certa medida, isto reflecte o facto de os muçulmanos não terem
vem um processo de revelação que é simultaneamente oral e gradual.
tido necessidade de inventar a ideia de um cânone de escritura para
A revelação é transmitida oralmente por Gabriel a Muhammad, que a
eles próprios. As nossas fontes são, todavia, completamente persuasivas
recita, enquanto escribas a passam a escrito. E é composto, passagem
ao relatar a canonização veloz do Alcorão à iniciativa do Estado. Exis-
a passagem, numa ordem bastante diferente da do Alcorão dos nossos
te aqui um contraste significativo com a emergência lenta e instável de
dias. Teria Muhammad, então, voltado a reunir o material na sua ordem
ambos os cânones bíblicos. No caso da Bíblia hebraica, o processo teve
arquetípica? O testemunho das no.ssas fontes neste ponto está dividido.
lugar muito depois da morte da monarquia israelita; no caso do Novo
Uma opinião posterior era que ele teria feito tudo excepto um códice da
Testamento, a formação gradual do cânone estava já bastante avança-
revelação; mas também sabemos por pareceres desse tempo que, por
da na altura em que o Estado romano adoptou o cristianismo. O facto
altura da morte dele, o Alcorão não tinha sido completamente reunido.
de termos, para todos os efeitos práticos, apenas uma única recensão
De qualquer modo, temos de pensar o Alcorão, durante a vida do Pro-
do Alcorão representa um testemunho extraordinário da autoridade do
feta, como revelação «em desenvolvimento». É o carácter sequencial do
primeiro Estado islâmico.
processo que dá sentido à ideia de ab-rogação.
Momentos de revelação
118 119
foi por ocasião do protesto feminista de Umm Salama que Q33:35 foi re- pelo seu lapso, e o Profeta ficou muito incomodado e receoso. Deus, to-
velado. Claro está que há algo de estranho na ideia de que este versículo davia, tratou-o cordialmente, enviando Q22:52 para o reassegurar de
devesse, de uma vez e simultaneamente, fazer parte de uma Escritura que tais coisas já tinham acontecido a outros profetas antes dele e tratou
pré-eterna e uma resposta a uma queixa passageira de uma mulher. Mas de corrigi-las.
este caso não apresenta nenhum problema teológico: Deus já sabia, na Conforme foi descrito nas fontes tradicionais muçulmanas (embora
eternidade passada, tudo o que Umm Salama diria ou faria. talvez não como foram recontadas por Salman Rushdie), esta história
Provavelmente por o leitor ter curiosidade acerca disso, irei dedicar é interessante por dar continuidade a um antigo tema monoteísta: ho-
algum espaço a uma ligação deste tipo que se tornou notória até no Oci- mens de Deus, mesmo os maiores de entre eles, são humanos. Moisés
dente. Eis o versículo relevante: tentou abandonar a sua missão suplicando que não era um homem do-
tado para falar (Êxodo 4:10) e mais tarde atirou com as tábuas e par-
Antes de ti não mandámos nenhum Enviado nem Profeta sem que o Demó-
tiu-as ao pé do monte (Êxodo 32:19). Em Getsémani, Jesus perdeu a
nio deitasse o peeado no seu desejo quando o desejavam, mas Deus apaga
serenidade a ponto de suplicar: <<Meu Pai, se é possível afaste-se de mim
o que deita o Demónio e em seguida confirma os Seus versículos- Deus é
este cálice» (Mateus 26:39). Por esse motivo, a história está em boa
omnisciente e sábio. (Q22:52)
companhia. Mas é possível que seja verdade? Foi rejeitada no mundo
Deus parece estar a falar de algum processo em que Satanás procu- muçulmano durante vários séculos por ser considerada incompatível
rava corromper, por interpolação, o texto de Escrituras prévias. Além com o dogma de os profetas serem imunes ao erro. Contudo, segundo
disso, a utilização do tempo presente (ou poderia ser o futuro) na se- um ponto de vista de um historiador, as objecções são, de algum modo,
gunda parte do versículo - Deus «apaga» e «confirma» - sugere que diferentes. Assim, uma coisa que temos de perguntar a nós próprios é se
Satanás persiste nos seus esforços. Ficava aqui bem uma narrativa que foi a ocorrência do acontecimento que deu lugar a Q22:52, conforme
descrevesse uma tentativa por Satanás, e a resposta atempada de Deus reivindica a história, ou se foi a existência do versículo que deu lugar à
de insinuar algo na revelação de Muhammad. E, sem dúvida, que a te- história. A narrativa, possivelmente, partilha a qualidade acidental de
mos: eis a história dos versículos satânicos. ser «apenas tuna história» com muitos mais relatos.
De acordo com a história, Muhammad, quando ainda estava em
Meca, sentia-se profundamente afectado pelo amor que nutria pelo seu
As revelações em Meca e Medina
povo, apesar de serem pagãos, e desejava encontrar uma forma para os
conquistar para a sua causa. Aconteceu que nesta altura Deus enviou Segundo Hisham ibn 'Urwa (falecido em cerca de 763), tudo o que
a Sura 53 e Muhammad recitou-a. Conrudo, quando ele chegou a dois no Alcorão se refere a comunidades e gerações do passado, ou que es-
versículos que mencionavam três deusas pagãs (Q53:19-20), Satanás tabelece as credenciais do Profeta, fora-lhe revelado em Meca. Pelo
aproveitou-se do seu estado de espírito para pôr na sua boca os dois contrário, tudo o que prescreve deveres e nonnas de conduta foi-lhe re-
versículos: <<Estas são as elogiadas grous e há esperança na sua inter- velado em Medina. Uma divisão deste género (descontando uma quan-
cessão>>. Podemos pôr de parte a intrigante ornitologia da interpolação tidade limitada de material revelado noutros sírios) é fundamental para
de Satanás; o que interessa é o seu reconhecimento das deusas pagãs, a cultura muçulmana sobre o Alcorão e foi igualmente adoptada pelos
como intermediárias legítimas entre o homem e Deus. Esta concessão eruditos ocidentais. Tratam ambos de siruar cada Sura numa das duas
ao politeísmo satisfazia enormemente os pagãos e, quando Muhammad cidades, mas ambos estão preparados para introduzir passagens parti-
chegou ao último versículo da Sura, entregaram-se à prostração ali im- culares da Sura em questão na outra cidade. Uma cronologia posterior
posta (Q53:62). Mas, subsequentemente, Gabriel censurouMuhammad -relativa ou absoluta- é, então, estabelecida por ambos dentro de cada
120 121
um dos dois corpos de revelação. A diferença principal talvez resida tos aéreos lá mencionados, Deus é que sabe.) Apesar da ausência de
na tendência que os eruditos ocidentais têm para prestar uma atenção narrativa no relato corânico, a linguagem é viva, e até talvez tenhamos
mais explícita às diferenças de conteúdo e estilo do que a maioria dos a tentação de a classificar de poética - embora o Alcorão insista que
muçulmanos. Em ambos os lados, contudo, há concordância ampla so- Muhammad não era um poeta. (Q69:41)
bre as linhas gerais, apesar de enormes divergências nos pormenores. Vejamos agora a Sura no árabe original:
Sem tomar em consideração quanta desta abordagem é historicamente
a-lam tara knyfafa'ala robbuka bi-ruhabi 'l-fil
válida, pode, todavia, ajudar-nos a pensar nos diferentes géneros de ma- a-lam yaj'al kaydahumfi tadlil
terial que encontramos no Alcorão. wa-arsala 'alayhi.m tayran ahabil
Uma Sura típica do período inicial de Meca é a 105, a «Sura do Ele- tarmihim bi-hijaratin min sijjil
fante», Eis, seguidamente, a Sura completa, à excepção da invocação fa-já'alahum kn-'a.sfin ma'kul
inicial:
Como se vê, a Sura consiste numa sucessão de versículos bastante
Não reparaste no que [eU Senhor fez com os possuidores dos elefantes? curtos. Não são linhas de poesia: não há um padrão métrico global e,
Acaso não desbaratou Ele as suas conspirações enquanto o primeiro versículo tem dezassete sílabas, os restantes têm
Enviando contra eles um bando de criaturas aladas apenas entre dez e doze. Por outro lado, a rima é evidente, embora nem
Que lhes arrojaram pedras de argila endurecida sempre seja uniforme. Há também uma certa arte na distribuição das
E os deixou como plantações devastadas pelo gado? (QlOS: 1-5)
vogais longas: excepto no quarto versículo, elas surgem apenas no final
Marquei a divisão dos versículos separando-os por linhas. de cada versículo. Uma parte disto é peculiar a esta Sura, mas muito
Este caso é, possivelmente, um exemplo do que queria dizer Hisham material de Meca exibe a mesma característica geral. Já abordámos a
em relação às revelações que se referiam à «gerações» do passado Sura 112 no contexto de oração e recitação:
- embora, neste caso, leve a crer que seja um passado recente. Como Diz: «Ele é o Deus único,
é frequente neste material de Meca, a questão é invocar a ocasião de Deus, o Absoluto,
um castigo divino do passado como uma aviso terdvel aos contemporâ- Ser que não gerou nem foi gerado,
neos do Profeta. Como no caso dos transgressores do Sábado, não há a E nada há que se Lhe assemelhe.» (Qll2)
preocupação de contar uma história para benefício daqueles que a não qul huwa ~lâhu ahad
aUâhu 'l-samad
conhecem. Se procurarmos uma narrativa dos acontecimentos a que
lamyalid wa-lamyülad
aludimos, temos de a procurar nos eruditos muçulmanos. Dizem-nos
wa-lamyakun lahu kufuwan ahad
eles que Deus respondia a um ataque ao santuário de Meca que teve
lugar mais ou menos na altura em que Muhanunad nasceu (assim, ele Neste caso a rima é perfeita, mas a variação no número de sílabas
«vê» o incidente apenas pelos olhos da sua mente). O ataque foi lançado por versículo é ainda maior. Uma característica típica do modo de dizer
por Abraha, um rei do Iérnen, cujo exército estava, claro está, equipado corânico aqui exemplificado é o formato •<diz»; já o encontrámos diver-
com um elefante- ou, como nos informa o «ayatollah» Makarim Shirazi sas vezes, por exemplo nas instruções de Deus a Muhammad para que
no seu comentário, com grande número de elefantes. (Para os leitores lançasse o desafio de Q17:88.
que se interessam por factos históricos, este Abraha governou, de facto, Pelo contrário, material tipicamente de Medina é natural que o con-
no século VI no Iémene organizou uma expedição em direcção a Meca; sideremos prosaico. O versículo sobre as mulheres, com que já nos fami-
quanto ao elefante que faz a ligação à nossa Sura e aos bombardeam.en- liarizámos, é um caso paradigmático:
122 123
Os homens são responsáveis pelos assuntos das mulheres porque Deus bi-ma kanuyafsuqun (por sua transgressão)
favoreceu uns em relação aos outros, e porque eles gastam parte das khasi'in (Sede simios desprezíveis)
suas riquezas em favor das mulheres. AI; boas esposas são as devotas,
Nenhuma destas frases é apenas um acréscimo. A segunda aparece
que guardam na ausência (do marido) o segredo que Deus ordenou
algures no Alcorão como uma que fecha versículos. A última é típica da
que fosse guardado. Quanto àquelas de quem suspeitais deslealdade,
admoestai-as, abandonai os seus leitos, castigai-as; porém, se vos obe- ausência de uniformidade nos padrões de rima corânica (comparar com
decerem. não procureis meios contra elas. Sabei que Deus é Excelso, o versículo final da Sura 105). Contudo, o ponto principal a notar aqui
Magnânimo. (Q4:34) é que a primeira e a terceira frases (que são idênticas) exibem, de outra
maneira, uma desnecessária elaboração gramatical: kanu yafsuqu po-
Esta passagem é formada por um único versículo que, apesar disso,
dia ser simplesmente expresso por fasaqu, a não ser que esta não levasse
é mais comprido do que as Suras 105 e 102 juntas_ Em vez de estilo poé- a rima. Um outro exemplo mais desagradável da atracção pelo padrão
tico, temos prosa expositiva. O princípio do domínio masculino é enun- rimado ocorre no final do relato da criação dos humanos que eu citei no
ciado e apoiado por duas justificações. O comportamento feminino com Capítulo 2 (Q23:12-14). Deus é descrito como o <<melhor dos criadores»
respeito a este princípio é, pois, tratado ao abrigo de duas premissas: a (ahsanu 1-khaliqin); sem a orientação apropriada, um leitor que tome
que está de acordo com o princípio e a que o viola. Neste último caso, tudo à letra pode ser tentado a inferir dessa passagem a existência de
estão ordenadas uma série de medidas práticas, juntamente com uma criadores- embora inferiores- diferentes de Deus.
instrução de desistência, se se provar que tiveram êxito.
A ligação residual com o estilo do material de Meca está no final do
versículo: «Deus é Excelso, Magnânimo.» Isto nada acrescenta à subs- As arestas grosseiras
tância do versículo e nada nos diz acerca de Deus que não soubéssemos
As abordagens que considerámos até aqui, neste capítulo, são baseadas
antes. As suas funções estão algures. Em primeiro lugar, diz-nos que o
na saída para fora do Alcorão, a fim de relacionar o conteúdo da Escritura
versículo chegou ao fim - que em linguagem prosaica do género que
com os acontecimentos ou as fases da vida do Profeta. Mas o próprio Alco-
encontramos aqui pode não ser, de outro modo, evidente. Em segundo
rão pode dizer-nos algwna coisa acerca da sua própria história. Um pon-
lugar, tem rima. O versículo seguinte vai terminar com uma frase se-
to-chave neste caso é que os que foram responsáveis pela redacção final
melhante, nomeadamente «Deus é Sapiente, Inteiradíssimo>>. Vejamos
do nosso texto parece terem feito uma abordagem minimalista à sua <<edi-
agora as duas frases no árabe original:
ção». Podemos verificar isto se olharmos para tun dos dois versículos no
Inna 'llaha kana 'aliyyan kabira livro, que se referem, pelo nome, a tun contemporâneo de Muhammad.
Inna 'llaha kana 'aliman khabira
Recorda-te de quando dizias a quem Deus cumulou de bens e tu o favo-
A rima prolonga-se por três sílabas, e o paralelismo total não podia receste: «Retém a tua esposa e teme a Deus!» Ocultavas no teu interior o
ser mais forte. Esta colagem a uma frase rimada é muito comum no que Deus ia mostrar: temias os homens, enquanto Deus era mais digno de
material de Medina. Mas há também casos intermédios; um deles é a que O temesses. Quando Zaid decidiu o assunto e se divorciou, casámos-te
passagem sobre os transgressores do Sábado (Q7:163-6), que, embora com ela, para que os muçulmanos, ao casarem-se com as esposas dos seus
ocorra numa Sura considerada como oriunda de Meca, é atribuída a filhos adoptivos, não cometam pecado, se estes decidiram divorciar-se de-
las. Cumpra-se a Ordem de Deus! (Q33:37)
Medina. Nesce caso os finais dos versículos são:
bi-ma kanuyafsuqun (por sua transgressão) Isto começa com uma longa e complicada proposição subordina-
la'allahumyattaqun (quem sabe O temerão) da, mas nunca sabemos aquilo a que a proposição está subordinada.
124 125
Nesta parte do versículo, Deus é constantemente referido na terceira prova proveniente do nosso Senhor: esta é a camela de Deus. Será um sinal
pessoa («a quem Deus cumulou de bens••, etc.). Segue-se depois uma para vós. Deixai-a comer na Terra de Deus! Não lhe façais mal, pois cairia
frase completa onde Deus fala na primeira pessoa do plural («Casámos- sobre vós wn tormento doloroso! (Q7:73)
-te com ela»; comparar Génesis, 1:26: «Façamos o ser humano à nossa
A segunda versão começa exactamente do mesmo modo e concorda,
imagem»). Finalmente, o versículo fecha com um refrão em que Deus
palavra por palavra, até ao ponto onde começa o meu itálico. E conti-
volta na terceira pessoa («Cumpra-se a ordem de Deus!»). Estas trocas
nua: «Ele vos formou a partir da Terra e vo-la fez habitar... » (Q11:61).
gramaticais de pessoa são muito comuns no Alcorão; aparece outro
No decurso deste material novo há uma referência a «Uma prova prove-
exemplo no versículo que se diz ter vindo em ligação com os versículos
niente do meu Senhor» (Q11:63), mas num contexto diferente. Então,
satânicos (Q22:52). Os redactores finais do texto não consideraram cla-
repentinamente, estamos de volta ao teor exacto da primeira versão, a
ramente ser obrigação deles dispensar tais coisas - ou mesmo corrigir
partir do ponto em que tennina o meu itálico até ao final do versículo
o que aparentava serem óbvios erros gramaticais (p. ex., Q2:177). Isto
(Q11:64). A única diferença é que desta vez o castigo não é «doloroso»
coaduna-se bem com a ausência no Alcorão do que quer que seja que se
(alim) mas «aproximado» (qarib); estes adjectivos estão colocados no
assemelhe a uma interpolação, reflectindo acontecimentos subsequen-
final dos seus respectivos versículos, e em cada caso a escolha está rela-
tes à morte do Profeta. Os Evangelhos Sinópticos põem na boca de Jesus
cionada com o padrão da rima. A divergência entre as duas passagens
uma profecia suspeita da destruição do Templo (São Marcos, 13:2, etc.),
foi claramente provocada por uma acção em que o material possuiu um
um acontecimento que ocorreu várias décadas após a sua morte, mas
grau de plasticidade de uma ordem bastante diferente de tudo o que ve-
bastante perto do tempo em que os Evangelhos estavam a ser redigidos.
mos nas variantes textuais, confirmadas pelos manuscritos mais antigos
Não há sinais de que os redactores do Alcorão se tivessem deixado ar-
ou transmitidas pelos eruditos muçulmanos. Neste caso, entãoj temos
rastar por uma tentação dessas. Resumindo, a composição final do tex-
uma janela sobre uma época em que o material corânico - pelo menos
to foi muito conservadora. Para os eruditos, isto foi uma graça divina.
aqui na terra- estava num estado de mudança considerável.
Significava que as arestas grosseiras não tinham sido polidas; e arestas
Devo talvez terminar, tomando um ponto explicito que se manteve
grosseiras num texto podem apresentar pistas valiosas sobre o estado
implícito ao longo deste capítulo. Tem a ver com uma das formas em
primitivo do material que as contém.
que o Alcorão é diferente da Bíblia. Se quisermos saber alguma coisa
Um exemplo disto é a existência de ocorrências extensivas de passa-
sobre as vidas de Moisés e Jesus, vamos ler os livros relevantes da Bíblia,
gens paralelas. Assim, histórias sobre antigos profetas são relatadas em
e eles dizem-nos. Podemos ou não acreditar na história que lá vem, mas
várias Suras. Um número significativo de material será comum a dois ou
quase não existem outras fontes que contribuam de modo significati-
mais textos repetidos, mas haverá, ao mesmo tempo, diferenças subs-
vo. Pelo contrário, enquanto o Alcorão nos conta muitas histórias à sua
tanciais. Já vimos este género de efeito, a uma pequena escala, no caso
maneira, a história de Muhammad não está entre elas. Há referências a
dos dois versículos que pusemos ao lado da citação corânica anómala
episódios da sua vida, mas são apenas referências, não são narrativas.
de Hasan al-Basri (Q10:33, Q40:6). É difícil ilustrar, sucintamente, o fe-
Em complemento, ao livro não é dado mencionar nomes no contexto do
nómeno mais amplo, mas passemos a comparar partes de duas versões
seu próprio tempo. O próprio Muhammad é mencionado quatro vezes,
da história de Sáleh e os Tamuds. Os Tamuds eram um povo conhecido
e dois contemporâneos seus uma vez cada; oito nomes de locais árabes
da antiga Arábia; o Alcorão conta que Deus lhes enviou Sáleh como seu
ocidentais aparecem uma vez só cada um deles. Escrever a biografia do
profeta. A primeira versão começa da seguinte maneira:
Profeta apenas com base do Alcorão não é simplesmente uma opção e,
Enviámos à gente de Tamud wn homem da sua tribo, Sáleh. Disse: «Meu por essa razão, é quase impossível relacionar a escritura com a sua vida
povo! Adorai a Deus! Não tendes outro Deus senão Ele! Chegou-vos uma sem sair para fora do livro.
126 127
Capítulo 13 rácter prático. O segundo inclui uma descrição do que acontece no caso
de «um homem ser herdeiro de kalala»; esta palavra que também surge
Dúvidas e enigmas em Q4: 176, parece ter preocupado os comentadores dos primeiros tem-
pos e pennanece obscura desde então. Outra coisa sem tal significado
prático, mas apesar de tudo bastante estranha, é o facto de cerca de um
quarto das Suras do Alcorão começarem com concatenações de letras
No capítulo anterior vimos duas Suras no original em árabe. Talvez misteriosas a que não pode ser atribuído nenhum significado. O primei-
não tenham tido muito significado para o leitor sem contacto prévio ro versículo da Sura 19, por exemplo, é k-h-y- 's (isto é lido recitando os
com a língua, mas no geral não são textos difíceis. Na Sura 105, não nomes das letras árabes).
há nada que esteja para além da capacidade de um aluno universitário Cada urna delas é um enigma. Alguém teria, noutros tempos, co-
munido com o dicionário-padrão do árabe literário moderno, excepto nhecido os seus significados, mas, contudo, esse conhecimento não se
as palavras ababil e sijjil. O mesmo se passa com a Sura 112, exceptuan- estendeu até aos primeiros comentadores cujas opiniões chegaram até
do a palavra samad (se lermos kufu'an pelo isolado kufuwan de Hafs de nós, e muito menos a nós. É natural que os eruditos modernos devam
'Asim). O que é estranho acerca destas palavras é que o estudante que continuar a investigar as soluções. Mas o enigma maior é por que as
se lança numa carreira universitária em estudos islâmicos não saberá, obscuridades deste tipo devam ser uma característica tão notória do
décadas mais tarde, o que elas significam. Encontrámos obscuridades Alcorão. Um período longo separa frequentemente a cultura de onde
semelhantes nos versículos sobre os transgressores do Sábado (Q7: 163- provém tal trabalho das tradições eruditas mais antigas que interpre-
-6). São casos típicos de todo um grupo de enigmas linguísticos no texto tam os seus significados para nós. Mas em qualquer relato convencional
do Alcorão, e as traduções não podem fazer mais do que interpretá-los sobre a história inicial do Islão, não deveria ter havido tal intervalo no
através da confusa selecção e escolha de suposições antagónicas. Estas caso do Alcorão.
suposições são geralmente fruto do trabalho de comentadores muçul- Uma abordagem não convencional ao problema provocará uma
manos, mas os estudiosos ocidentais não têm hesitado em contribuir violência considerável no quadro geralmente aceite de como as coisas
com novas suposições. aconteceram, mas, contudo, deve valer a pena perseguir o enigma. Em
Algumas vezes, sem dúvida, a obscuridade é óbvia. A Sura 101, con- geral, há duas maneiras pelas quais podíamos gerar um intervalo que
forme já vimos, principia assim: «O Ruidoso! Que é o Ruidoso?» Num tal explicasse as obscuridades. Uma é supor que os materiais que formam o
contexto seria presunção irmos dar, rapidamente, uma explicação; Deus Alcorão não se tomaram geralmente disponíveis como escritura senão
faz menção de dizer que Ele sabe algo que nós não sabemos. Também várias décadas após a morte do Profeta, com o resultado de que, quando
há casos em que a exigência da rima deve ser tomada em consideração: isso aconteceu, a memória do significado original do material se tivesse
ababi~ sijjil e samad são exemplos disso. Mas noutras ocasiões as cir- perdido. A outra é especular que muito do que se encontra no Alcorão
cunstâncias não são tão atenuantes. O «versículo do tributo~·, que é de já era velho no tempo de Muhammad. As duas abordagens são comple-
importância legal fundamental para o Estado islâmico, determina que mentares. Cada uma delas tem os seus atractivos e os seus problemas
os não-crentes em questão devem pagar o tributo por sua própria mão -especialmente a necessidade de rejeitar muito do que as nossas fontes
('anyadin, Q9:29); o que esta simples frase significa continua a ser tão narrativas nos dizem.
indefinível para os eruditos modernos como o era para os comentado- O ponto principal a favor de uma hipótese em que o Alcorão estaria
res medievais. Dois versículos longos do tempo de Medina determinam fora de cena durante várias décadas é que ele também seria responsá-
uma complexa lei de herança (Q4:11-12), de novo um assunto de ca- vel por outro conjunto de enigmas descobertos pela investigação sobre
128 129
o desenvolvimento inicial da lei islâmica. Cada uma delas envolve um judeus. Desde esses tempos, diz-nos ele, muitos deles vivem à maneira
aspecto da lei islâmica que de um modo muito fundamental parece judaica. O que ele descreve não é o Islão, mas já antecipa a fusão de
contradizer ou ignorar o Alcorão. Por exemplo, é notório que o Islão monoteísmo com a identidade árabe que é fundamental para ela. Se
prescreve o apedrejamento como castigo-modelo para o adultério pro- estivermos inclinados a seguir a ideia da pré-existência de material co-
vado (zina), e tradições aceites acerca da actividade legal do Profeta rânico, foi num meio destes que possivelmente nasceu.
mostram-no como relutante em aplicar este castigo. Todavia, se formos Irei terminar este capítulo escolhendo, não ao acaso, dois exemplos
ao Alcorão, é isto que lemos: $ das muitas ideias que têm sido avançadas no último quartel do século
de cultura ocidental sobre o Alcorão. A primeira, que pressupõe uma
À adúltera (al-zaniya) e ao adúltero (al-zani), a cada um deles dai cem
abordagem nada convencional à emergência da escritura, diz respeito
açoites. (Q24:2)
ao fenómeno das passagens paralelas. John Wansbrough, que as ape-
Como é que esta discrepância se levantou era uma questão para a lidou de «tradições diferentes», sugeriu que talvez tivéssemos aqui os
qual os eruditos muçulmanos tinham as suas respostas, uma delas que resultados do desenvolvimento de «tradições independentes, possivel-
nós já encontrámos sob a forma de uma cabra esfomeada; mas as solu- mente regionais, incorporadas mais ou menos intactas na compilação
ções avançadas nem foram simples nem claras. canónica». Esta seria uma maneira de explicar o fenómeno; mas podía-
A outra hipótese mencionada anteriormente é que muito do material mos também pressupor que Muhammad tivesse uma certa quantidade
que está no Alcorão possa ter sido apropriado de qualquer outra parte de material que utilizara de forma diferente em ocasiões diferentes.
- uma espécie de versão terrestre do dogma da pré-existência do Al- Contudo, Wansbrough obriga-nos a considerar seriamente o facto de o
corão. Isto podia, indiscutivelmente, ser apoiado por algumas curiosas fenómeno ter de significar alguma coisa. A segunda ideia, que é muito
incompatibilidades entre a Escritura e a biografia do Profeta. Por exem- menos herética nas suas suposições, diz respeito ao papellinírgico da
plo, foi há já muito assinalado que o Alcorão fala de viagens maritimas escritura. Conforme vimos, o Alcorão, apesar do papel proeminente que
de uma forma que é surpreendente para alguém que não tinha qualquer tem na vida muçulmana, é apenas utilizado numa amplitude limitada
experiência do assunto. (A objecção peca por defeito, claro está, se con- na própria liturgia~ em contraste nítido com a Bililia entre judeus e
siderarmos Deus como o autor do livro.) Mas dado que a linguagem do cristãos. Porque é que isto terá de ser assim e sempre foi assim? Angelika
Alcorão é, na sua maior parte, árabe acessível, não é natural que um tal Neuwirth, que deu especial atenção ao problema, encontrou indicações
meio possa estar situado muito longe, quer no espaço, quer no tempo. no material de Meca do Alcorão de que este tomou forma em contextos
linírgicos que desapareceram posteriormente. De novo, há algo de dis-
Lotesteve entre um dos Enviados, quandoosalvámosjuntocom toda a sua
família, com excepção de uma anciã que ficou entre os que se atrasaram. tintamente revelador acerca da sugestão; mas como tende a ser o caso
Em seguida destruímos os outros. Com efeito, vós passais junto deles de com as ideias interessantes acerca do Alcorão, provavelmente não pode
manhã e à noite. Não reflectireis? (Q37:133-8) ser provado.
130 131
é um único livro de conteúdo bem definido entre duas capas. Embo-
Capítulo 14
ra não tenha correcções- houve, como já vimos, opiniões divergentes
Conclusão acerca do que devia e não devia ser incluído-, não há urna única forma
de o dividir em componentes de origens distintas. Há outros textos no
Islão que têm algum tipo de escatuto canónico, mas são bastante dife-
rentes do Alcorão e estão a outro nível.
$ Em segundo lugar, se pusermos de parte a questão da sua existência
Faz parte da natureza de uma escritura ou de um clássico ser duas
pré-celestial, o Alcorão é uma obra extraordinariamente tardia para ter
coisas ao mesmo tempo. Por um lado, ser um produto do seu próprio
o reconhecimento de estatuto canónico. Mesmo as escrituras relativa-
tempo. De facto, é precisamente essa distância temporal que suscita o
mente adventícias do Novo Testamento têm vários séculos mais. Há,
modelo elaborado da actividade escolástica que vai rodear um tal texto
claro está, livros mais recentes entre alguns grupos, como os siques e os
- os esforços para preservar as palavras originais, explicar as suas obs-
mórmones, que gozam do estaruto de escritura. Mas o Alcorão foi a úl-
curidades, interpretar o seu significado, e assim por diante. E por outro
tima obra a adquirir esse estaruto numa civilização mundial- um facto
lado, tem autoridade no nosso tempo. Se se desse o caso de perder essa
relacionado com a invulgar e tardia origem de toda a cultura.
autoridade, nunca mais seria uma escritura ou um clássico, apenas um
Em terceiro lugar, o Alcorão é indubitavelmente uma escritura e não
texto de interesse para aqueles que têm curiosidade pelo passado. Exis-
um clássico. Na verdade, podia bem ser descrito como uma escritura pa-
tindo estas duas coisas ao mesmo tempo, é uma tarefa difícil, e podemos
radigmática, a palavra de Deus no sentido mais imediato e descompro-
terminar este livro perguntando se o Alcorão está bem equipado para
metido. Ao mesmo tempo, o Alcorão é inimitável e, para a maioria dos
satisfazê-las na actualidade. A melhor maneira de responder à pergun-
muçulmanos, não criado; a sua santidade estende-se ao códice como
ta é ir ao encontro do ambiente do conjunto mais vasto de Escrituras
um objecto físico nas mãos dos fiéis. Utilizando o termo de Abu Zayd,
e clássicos euro-asiáticos dos quais o Alcorão faz parte. Como é que o
é um ícone.
Alcorão se situa nesta companhia?
Todas estas características são relevantes, hoje em dia, para o des-
Em primeiro lugar, é extraordinariamente bem definido e compacto.
tino do Alcorão. A sua focalização minuciosamente religiosa limitou,
Houve quatro Vedas- transmitido cada um deles em diferentes linha-
gens brâmanes -juntamente com uma grande quantidade de material sem dúvida, o seu poder de atracção para leitores não-muçulmanos.
Enquanto para nós as epopeias homéricas são literatura e a Bíblia pode
associado que seria incluído numa definição mais ampla do cânone.
ser lida como literatura, os leitores ocidentais não se voltam para o
Houve duas epopeias homéricas, desta vez transmitidas na mesma li-
Alcorão, a não ser que tenham como objectivo estudar o Islão. Mas,
nhagem, embora o ambiente social também tivesse criado os Hinos Ho-
dentro da comunidade muçulmana, esta característica do livro apenas
méricos, cujo lugar no cânone ·era marginal. Quando o cânone bíblico
serve para acentuar a sua mensagem e, ao mesmo tempo, os outros
foi eventualmente estabel~, havia trinta e nove livros do Antigo Tes-
pomos mencionados acima funcionam grandemente a seu favor. Uma
tamento e vinte e sete do Novo; havia também uma grande quantidade
vez que o Alcorão, em termos históricos mundiais, apareceu relativa-
de material apócrifo que aparecia numas Bíblias e não noutras. Havia
mente tarde, permite que a língua em que foi escrito retenha um grau
mais do que o suficiente do Tripitaka budista para formar 130 000 blo-
significativo de identidade com uma das grandes línguas literárias do
cos quando os Chineses imprimiram uma tradução do texto nos finais
mundo moderno- ou, colocando a questão de outro modo, o árabe é a
do século X; hoje, o cânone Pali enche várias prateleiras numa bibliote-
única das principais línguas clássicas ainda de uso corrente. Ao mesmo
ca. Na China confuciana, havia opiniões diferentes quanto ao número
exacto e à identidade dos clássicos. O Alcorão, ao contrário de tudo isto, tempo, a compacidade e a definição nítida do cânone são extraordina-
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"l
riamente convenientes para a disseminação no seio de grande número Uma nota sobre o árabe
de fiéis no mundo moderno. Estas características do Alcorão desem-
penham o seu papel na resistência do Islão como sistema de crença,
características notáveis no mundo em que vivemos. Como também é
a sua chamada para o Bom Caminho - o caminho fora do qual tudo é
manifestamente errado.
Isto é, sem dúvida, uma declaração assaz fundamentalista da men- J Esta nota tem dois objectivos: o primeiro é dizer alguma coisa sobre
sagem, embora tenha alcançado uma enorme ressonância no mundo esta língua que é tão fundamental para o carácter do Alcorão; o segun-
islâmico em décadas recentes e que bem pode continuar a mantê-la nos do procura dar alguma orientação (embora não muita) ao leitor que
tempos vindouros. Mas talvez não devamos dar aos fundamentalistas a considere frustrante não ter nenhuma noção acerca de como promm-
última palavra. Em 1998, por exemplo, foi publicado umlivm na Repú- ciar palavras árabes e nomes transcritos neste livro.
blica Islâmica do Irão escrito por 'Abd al-Karim Surush, um proeminen-
te intelectual religioso. Este volume (com uma edição de 5000 exem-
-
A língua árabe
plares) defende o pluralismo religioso sob o apelativo- para não dizer
subversivo - titulo de Bons Caminhos (Sirat-ha-yi-mwtaqim). Como O árabe pertence a uma família de línguas estreitamente relaciona-
qualquer intérprete honesto de uma tradição religiosa, Surush não im- das, conhecida pelo nome de «Semítica••; outros membros da família são
põe apenas as preocupações do seu tempo às da escritura. Muito pelo o acadiano, o hebraico, o aramaico e o etíope. Em termos demográficos
contrário, ele consegue encontrar apoio para o seu pluralismo no facto e culturais, o árabe tem sido, de longe, a mais bem-sucedida das línguas
de, à parte a Fatiha, o Alcorão tender a falar não de «O Bom Caminho» semíticas. É a única que veio a ser a língua de uma civilização mundial e
mas de <<Um bom caminho»- como quando Deus garante a Muhammad é a única que tem, actualmente, o estatuto de língua mundial.
que ele vai por «Um bom caminho» (Q36:4). Graças a isto, Surush pode A característica mais notável das línguas semíticas, bem exemplifi-
ler a sua escritura como permitindo implicitamente uma pluralidade de cada no árabe, é o sistema de raízes triconsonânticas. Consideremos as
caminhos para a salvação. Seria necessário um profeta para nos dizer formas inglesas «Sing», «Sang» «Sung» e «Song». Neste caso, a raiz pode
que futuro está reservado a estas ideias no mundo islâmico. Entretanto, ser identificada como o par de consoantes s e ng, enquanto o patamar
talvez não seja de todo acidental o facco de Surush escrever em persa. O das alterações na vogal intermediária serve para assinalar uma varieda-
próprio titulo do seu livro desafiaria a sua tradução para árabe. de de formas verbais e um substantivo. Que o inglês não é uma língua
semítica é, todavia, evidente em dois pontos: o sistema opera em pares
de consoantes, não em trios; e a sua modelação é bastante limitada e
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r
ção») deu-nos o português «Alcorão», e um muqri' é alguém que ensina
•• ', Q.
outros a recitar.
A primeira é a oclusiva glótica. Os falantes de inglês padrão não a
notam na sua própria fala, mas percebem-na claramente nos outros dia-
A pronúncia do árabe
lectos (como quando um «cockney» pronuncia «bottle» como «bo'l», ou
O leitor deve ter notado algumas características do árabe transcri- um natural de Glasgow diz «hwe abü' i'?» por «What about it?» É muda
to que, pelos padrões normais do inglês, são um pouco estranhas. Se- J no artigo definido al- quando toma a forma de 'l- (como em ~Q.ãbi' l-fil.
guem-se algumas explicações dessas excentricidades. O par' e Q_ relacionam-se facilmente entre si (a primeira é uma versão
sonora da segunda), mas impossível de relacionar-se seja com o que for
na fonética do inglês: se isso ajudar, são fricativas faríngeas. Não pode-
a, i, u (breves) em oposição a ã., i, ii (longos)
mos ser conftmdidos pelo $1).; representa um \i seguido por um Q_ (compa-
As primeiras três vogais são breves, as últimas três são vogais longas. J rar com a palavra inglesa «mishap»).
A diferença pode ser idêntica à que existe entre vogais de pares em in-
glês-padrão, como: «fat»/«father», «fit»/«feet», «full>>/«fooh•.
Consoantes duplas
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Indo mais adiante roquino de 1568 (mostrado na Fig. 11) no Museu Britânico. A segunda
coisa que podem fazer é ouvir a recitação do Alcorão. É normalmente
possível comprar cassetes baratas onde vivam largas comunidades mu-
çulmanas (há-as frequentemente à venda em livrarias muçulmanas); e
nos tempos que correm podem ouvi-lo em gravações e comprá-lo atra-
vés da Internet. Melhor ainda, ouvir o Alcorão a ser recitado ao vivo, se
.i tiverem essa oportunidade- mas se não forem muçulmanos, não devem
Traduções do Alcorão
partir do principio que são bem-vindos sem antes pedirem permissão
Há já muitas traduções do Alcorão em língua inglesa. As apresenta- para o fazer.
ções de passagens corânicas contidas neste livro' são baseadas na tradu- Se souberem um pouco de árabe, vão precisar de um Alcorão ver-
ção de A. J. Arberry, embora eu as tivesse modificado sempre que achei dadeiro, de preferência uma boa edição do texto-padrão egípcio. Claro
apropriado fazê-lo (The Koran interpreted, Londres, 1964; note-se que o
J está que têm de tocá-lo. Para os não-muçulmanos, o meu conselho é
sistema de numeração dos versículos utilizado por Arberry é diferente seguir a opinião de Dawud ibn 'Ali (falecido em 884), o fundador da
do do Alcorão egípcio, que utilizei neste livro). Outra tradução frequen- escola de leis Zahiri; ele não apresenta objecções a que manuseemos
temente utilizada é a de Abdallah Yusuf Ali, que contém um texto em o Alcorão. Talvez seja útil utilizar a Azhar -tradução, página a página,
árabe e um comentário (The Hoty Qur-an, translation & commentary, autorizada mencionada no capítulo 8 (M. M. Kh.atib, The Bounteous Ko-
Labore, 1938; uma versão revista publicada nos Estados Unidos em ran: a translation ofmeaning and commentary, Londres, 1984). Se não
1991 tem como título The meaning of the Holy Qur'an). Uma das coisas conhecerem a língua árabe, mas têm interesse suficiente por aprendê-
que estes dois tradutores tinham em comum é que cada um deles en- -la, o melhor é frequentarem um curso. Em alternativa, talvez sejam do
controu consolo em traduzir o Alcorão numa alrura de grave angústia género de aprender gramática e algum vocabulário básico a partir de
pessoal. Eles diferem no facto de Yusuf Ali, ao contrário de Arberry, ter livros de ensino. Neste caso, recomendo D- Cowan, An introduction to
querido «fazer do inglês uma língua islâmica», uma ambição que pare- modem literary Arabic, Cambridge, 1958. O vosso primeiro dicionário
ceu mais extravagante então do que agora. deve ser H. Wehr, A dictiDnary of modem written Arabic, ed. L. Milton
Cowan, Wiesbaden, 1979.
O próprio Alcorão
Livros sobre o Alcorão
Conforme já vimos, o Alcorão é -entre outras coisas- um ícone. Há
duas coisas que podem fazer para ter esta noção sem conhecerem uma Há uma grande quantidade de livros escritos em inglês sobre o Al-
única palavra de árabe. A p~eira é ir ver o ícone. Os grandes museus corão. Uma sinopse útil, mas já de algum modo datada, deste tema é
possuem, frequentemente, bons manuscritos de livros do Alcorão ou an- Bell's Introduction t.o the Qur'an~ revista por W. M. Watt, Edimburgo,
tigos fragmentos: por exemplo, podem até encontrar um Alcorão mar- 1970. Uma obra recente é Discovering the Qur'a.n, Londres, 1996, de
N. Robinson. Embora o livro seja realmente uma peça de investigação
1Na presente edição foram utilizadas, respectivamente, as traduções portuguesas (preocupado principalmente com a questão de até que ponto é possível
da autoria do Prof. Sarnir El Hayek (O Significado dos Versículos do Alcorão Sagra- discernir estruturas em larga escala no Alcorão), é de leitura acessível
do, MarsaM Editora Jornalística, Ld.a, São Paulo, 1994} e de Américo Carvalho
e constitui uma confluência interessante das culturas alemã e muçul-
(Alcorão, Europa-América, Mem-Martins, 1978), com algumas modificações exi-
mana contemporâneas. Um pequeno estudo sobre aquilo que o Alcorão
gidas pelo original inglês. (N. do E.)
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tem a dizer acerca de algumas coisas importantes para ele pode ser lido Lista das ilustrações
nos capítulos 3-6 do meu Muhammad (Oxford University Press, série
«Past Masters», Oxford, 1983). Aqueles que estiverem interessados em
ler mais acerca da recitação do Alcorão consultem a minha fonte prin-
cipal sobre o assunto: K Nelson, The art of reciting the Qur'an, Austin,
Texas, 1985 (baseado no trabalho de campo que ela levou a cabo no
Cairo em 1977-1978). ) 1. Uma aula de Alcorão em Cartum, Sudão
Quase nada disse neste livro sobre os muçulmanos que vivem em paí- © Peter Sanders Photography .................................................. 28
ses ocidentais. A situação deles é, sem dúvida, atípica dos outros muçul-
manos, mas, pelo facto de se exprimirem por meio de línguas ocidentais 2. Encadernações do Alcorão
- das quais muitos são utilizadores natos -, a sua maneira de pensar é Reproduções por amável autorização dos Curadores da Biblioteca
facilmente acessível ao leitor ocidental. Um exemplo de uma obra escri-
j de Chester Beatty, Dublin (Ms. 1417 a) e da Biblioteca da Univer-
ta por um muçulmano de mentalidade moderna que fez a maior parte sidade de Leeds, Leeds Arabic Ms. 301 e Universidade de Leeds
da sua carreira nos Estados Unidos e que escreveu em inglês é Major the- Ms. 619 ................... .... .............................................................. 51
mes ofthe Qur'an, Minneapolis, 1989, de Fazlur Rahman. Como grande 3. Um egípcio lê o Alcorão na Mesquita do Profeta, Medina
parte daquilo que os muçulmanos publicam no Ocidente (incluindo as © Peter Sanders Photograph ................... .............. ............ .......... 53
obras de Mohammed Arkoun, que escreve em francês), este não é o gé-
4. Uma escola de ensino do Alcorão ilustrada por um artista persa
nero de livro que seria de esperar que a Azhar aprovasse.
Thdo isto parte do princípio que querem ler o Alcorão em inglês. do século XV
Manuscrito do Khamsa. de Nizam, na Biblioteca John Rylands,
Aqueles que lêem francês ou alemão podem tentar consultar a bibliogra-
Manchester (Ryl. Pers. 36, fólio 107) ........................... ............... 55
fia de Robinson para obterem pistas. O volume de obras escritas sobre o
Alcorão em árabe e noutras línguas islâmicas é, sem dúvida, imenso (é 5. A criação de moeda islâmica
referido abaixo um significativo trabalho cultural em língua árabe). J. Walker, A catalogue of the Muhammadan coins in the Briti.~h Mu-
Muitos dos livros acima mencionados foram reeditados uma ou sewn, Londres 1941-1956, vol. 1, p. 2, moeda B: p. 13, n. 0 19: vol.
mais vezes. 2, p. 173, n. 0 467 © The British Museum .................................. .. 56
6. Sura 105 no Alcorão egípcio ............ ........... ............ ............ .... 62
As minhas fontes
7. Sura 105 no Alcorão egípcio (negro, vermelho e amarelo)...... 65
Os peritos em islamismo.4Jão uma boa ideia da proveniência da
8. Sura 105 no Alcorão egípcio (só negro)................................... 67
maioria do material utilizado neste livro. Será bem-vinda qualquer pes-
soa que me contacte e que necessite de uma referência para uma ou 9. Sura 105 no Alcorão de Ibn al-Bawwab
outra informação importante. Tirei um proveito especial da monografia Reproduzido por amável autorização dos Curadores da Biblioteca
de Hind Shalabi sobre o texto corânico na Tunísia medieval (al-Qira' Chester Beatty, Dublin (Ms. 1431, f. 282 a) ............................ ..... 68
at bi-Ifriqiyya min al-jath ila muntasaf al.qarn al-khamis al-hjjri, Tunes
10. Sura 105 num fragmento de um Alcorão escrito em cúfico
1983) e de um ensaio ainda não publicado da autoria de M. J. Kister
Reproduzido por amável autorização dos Curadores da Biblioteca
intitulado 'Layamassuhu illa 1-mutahharuna'.
Chester Beatty, Dublin (Ms. 1410, f. 87 a-b) .......................... ...... 69
140
11. Sura 105 num Alcorão marroquino
Reproduzido por amável autorização da British Library ..... .......... 69
r
13. Como rezar, de um opúsculo turco........................................ 75
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