Duelo Das Virgens

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Atas da VI Semana de Estudos Medievais

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Atas da VI Semana de Estudos Medievais


25 a 27 de outubro de 2005

Rio de Janeiro 2006

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Preparao e diagramao H. P. Comunicao Editora Organizao e reviso Andria Cristina Lopes Frazo da Silva Leila Rodrigues Silva Apoio Fabrcia Anglica Teixeira de Carvalho Capa Guilherme Antunes Jnior Imagem da capa Detalhe do vitral da Paixo de So Vicente de Saragoa e a histria de suas relquias. 1244-1247. Igreja de Saint Germain-des-Prs. Paris

SILVA, Andria Cristina Lopes Frazo da, SILVA, Leila Rodrigues. (Org.) Atas da VI Semana de Estudos Medievais do Programa de Estudos Medievais da UFRJ. Realizada no Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da UFRJ de 25 a 27 de outubro de 2005. 456 p. - Rio de Janeiro, dezembro de 2006. Programa de Estudos Medievais - ISBN 85-88597-06-8 Atas da VI Semana de Estudos Medievais Idade Mdia / Histria / Filosofia / Literatura / Arte / Teologia

Programa de Estudos Medievais Largo de So Francisco, 1 - sala 325 - B Centro - Rio de Janeiro - RJ Cep 20.051-070 e-mail: pem@ifcs.ufrj.br www.pem.ifcs.ufrj.br

VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS 25 a 27 de outubro de 2005 Promoo:


Programa de Estudos Medievais da UFRJ www.pem.ifcs.ufrj.br

Patrocnio:
Fundao Jos Bonifcio Banco do Brasil FAPERJ

Apoio:
ABREM - Associao Brasileira de Estudos Medievais CFCH - Decania do Centro de Filosofia e Cincias Humanas da UFRJ ITF - Instituto Teolgico Franciscano de Petrpolis NUEG - Ncleo de Estudos Galegos da UFF PPGHC- Programa de Ps-graduao em Histria Comparada PR-1 - Pr-reitoria de Graduao da UFRJ PR-2- Pr-reitoria de Ps-graduao e Pesquisa da UFRJ PROEG - Programa de Estudos Galegos da UERJ

Equipe Organizadora: Coordenao Geral:


Andria C. L. Frazo da Silva (Coordenadora do Pem - UFRJ) Leila Rodrigues da Silva (Coordenadora do Pem - UFRJ)

Comisso Organizadora:
Carolina Coelho Fortes (Pem - UFRJ/ UGF) Elisabeth da Silva dos Passos (Pem - UFRJ) Fabrcia A. Teixeira de Carvalho (Pem - UFRJ/ Unigranrio) Marcelo Pereira Lima (Pem - UFRJ) Rita de Cssia Damil Diniz (Pem - UFRJ)

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Comisso Editorial:
lvaro Alfredo Bragana Jnior (UFRJ)
Mestre em Filologia Romnica (UFRJ) Doutor em Letras Clssicas (UFRJ)

Andria Cristina Lopes Frazo da Silva (UFRJ)


Mestre em Histria Antiga e Medieval (UFRJ) Doutora em Histria Social (UFRJ)

Claudia Beltro da Rosa (UNIRIO)


Mestre em Histria Antiga e Medieval (UFRJ) Doutora em Histria Antiga e Medieval (UFF)

Leila Rodrigues da Silva (UFRJ)


Mestre em Histria Antiga e Medieval (UFRJ) Doutora em Histria Social (UFRJ)

Maria do Amparo Tavares Maleval (UERJ)


Ps-Doutora em Letras (USP) Doutora em Letras (USP)

Mrio Jorge da Motta Bastos (UFF)


Mestre em Histria Social (UFF) Doutor em Histria Social (USP)

Paulo Andr Parente (UNIRIO)


Mestre em Histria Social (UFRJ) Doutor em Histria Social (UFRJ)

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Apresentao
O Programa de Estudos Medievais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mantendo o seu compromisso de promover e consolidar os estudos sobre o medievo no Brasil, realiza regularmente, desde sua criao em 1991, diversas atividades acadmicas. A promoo e organizao da VI Semana de Estudos Medievais mais uma dessas iniciativas. O evento, realizado entre os dias 25 a 27 de outubro de 2005, foi patrocinado pelo Banco do Brasil, pela Fundao Jos Bonifcio e pela FAPERJ e recebeu o apoio da Associao Brasileira de Estudos Medievais ABREM, do Centro de Filosofia e Cincias Humanas da UFRJ, do Instituto Teolgico Franciscano, do Ncleo de Estudos Galegos da UFF, do Programa de Estudos Galegos da UERJ, do Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da UFRJ e das Pr-reitorias de Graduao e de Ps-graduao e Pesquisa da UFRJ. A VI Semana de Estudos Medievais, como as anteriores, possuiu como seu principal objetivo configurar-se em espao para o intercmbio e a divulgao da produo acadmica de pesquisadores em nvel de Graduao e Ps-graduao de todo o pas. Neste sentido, durante o evento, dezesseis professores coordenaram mesas e aproximadamente setenta alunos de diferentes instituies de ensino que concluram seus cursos a partir de 2003 ou ainda esto cursando e com formao em diversas reas Histria, Letras, Filosofia, Msica e Artes puderam expor comunicaes, dialogar e aprimorar seus conhecimentos acerca dos estudos medievais. Dessa forma, com muita satisfao que lanamos as Atas da VI Semana de Estudos Medievais, publicao que rene, alm de textos de renomados pesquisadores que participaram na categoria de convidados, as comunicaes selecionadas, entre as apresentadas, pela comisso editorial formada pelos professores lvaro Alfredo Bragana Jnior (UFRJ), Andria Cristina Lopes Frazo da Silva (UFRJ), Claudia Beltro da Rosa (UNIRIO), Leila Rodrigues da Silva (UFRJ), Maria do Amparo Tavares Maleval (UERJ), Mrio Jorge da Motta Bastos (UFF) e Paulo Andr Parente (UNIRIO). O presente volume est dividido em duas sees. Na primeira, reproduzimos, seguindo a ordem da programao, os trabalhos reunidos na mesa intitulada Os Estudos Medievais no Brasil: Literatura, Histria e Msica, composta pelas professoras Maria do Amparo Tavares Maleval (Literatura - UERJ), Maria Filomena Coelho (Histria - UnB / UPIS-DF) e Lenora Pinto Mendes (Msica - UFF). Aqui disponibilizamos tambm o texto produzido pelo professor Marcelo Cndido (USP), responsvel por 9

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ministrar durante o evento o curso As Fontes da Realeza Crist na Alta Idade Mdia Ocidental, que discorre sobre as principais questes analisadas durante os trs dias nos quais ministrou a mencionada atividade. Na segunda seo, por ordem alfabtica do sobrenome dos autores, agrupamos os textos selecionados pela comisso editorial. Embora o contedo e o estilo de cada trabalho tenham sido respeitados, procuramos, na medida do possvel, para facilitar a consulta e leitura desta obra coletiva, padronizar a apresentao formal dos textos e das notas. Para tal tarefa nos baseamos na ABNT (NBR 6023/2002). Esperamos que a anlise do material ora publicado possa evidenciar a bem sucedida e crescente ampliao de um campo de estudos medievais no Brasil, assim como o compromisso do Programa de Estudos Medievais com a consolidao plena deste espao. Leila Rodrigues da Silva Andria Cristina Lopes Frazo da Silva

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Sumrio
Apresentao.....................................................................................9 Programao...................................................................................19 Conferncias Maria Filomena COELHO Breves reflexes acerca da Historia Medieval no Brasil...................29 Maria do Amparo Tavares MALEVAL Sobre os estudos medievais na rea de Letras (no Brasil).................34 Lenora Pinto MENDES Panorama da Msica Medieval no Brasil.........................................43 Marcelo Cndido da SILVA Realeza e ideologia episcopal em Gregrio de Tours: os Decem Libri Historiarum VI, 46...........................................................................48 Comunicaes Iracema Andrade de ALENCAR e Valria Fernandes da SILVA Utopia e resistncia: a construo de uma espiritualidade franciscana feminina no sculo XIII.....................................................................63 Leonardo ALMADA A influncia da tica aristotlica em Agostinho................................70 Bruno Gonalves LVARO A legenda de So Jorge e a santidade cavaleiresca: algumas reflexes...........................................................................................79 Guilherme ANTUNES JNIOR Duelo de la virgen de Gonzalo de Berceo: algumas questes...............86

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Monique da Silva CABRAL Cister, o mosteiro santo (sculos XI-XII)...........................................94 Jaqueline de CALAZANS O Movimento Priscilianista no sc. IV............................................103 Joo Cerineu Leite de CARVALHO As ordenaes de D. Duarte e o perfil do estado portugus...........112 Fabrcia A. T. de CARVALHO O discurso de controle da Igreja no sculo XIII..............................119 Carlos Manoel de Hollanda CAVALCANTI O Medievo embutido breve olhar sobre o uso de alegorias cavaleirescas nas histrias em quadrinhos..........................................127 Rita de Cssia Damil DINIZ Consideraes acerca da ao do episcopado peninsular no processo de consolidao da identidade godo-crist no sculo VII..................................................................................................137 Rodrigo da Costa DOMINGUEZ Mercadores-banqueiros e cambistas no Portugal dos sculos XIV e XV: reflexes e consideraes acerca de uma proposta de trabalho..........................................................................................143 Priscila Gonsalez FALCI Santa Eugnia e irmo Eugnio: identidades de gnero na Legenda urea.............................................................................................150 Elza Heloisa FILGUEIRAS Mitologia clssica e cristianismo: miniaturas de um manuscrito medieval das metamorfoses de Ovdio.............................................................159 Carolina Coelho FORTES Maria Madalena e a Ordem Dominicana no sculo XIII: um caso de inverso simblica de gnero.........................................................166 Isabela Pinheiro ISRAEL Juzes em cena: Gil Vicente e Martins Pena....................................173 Alinde Gadelha KHNER Leituras sobre o Diabo na Baixa Idade Mdia...............................180

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Jefferson Eduardo dos Santos MACHADO O uso simblico dos animais na obra Antoniana............................188 Ricardo MARIANI De Londres Nottingham e dos burgos Magna Carta - Uma breve triangulao jurdico/fiscal/ institucional......................................196 Rosiane Graa Rigas MARTINS A condio jurdica da mulher na Castela do sculo XIII: o casamento e o ideal da boa esposa.................................................................202 Helena MATHESON Construindo a realeza (a imagem rgia de D. Joo I na crnica de Ferno Lopes - Portugal sculos XIV XV)...................................207 Ieda Avnia de MELLO Cerimnia da homenagem poder e juramento na dinastia de Avis (Portugal - 1438 a 1495)...............................................................213 Plcido Rios MOREIRA JNIOR Os franciscanos nas cruzadas: uma reflexo sobre as polticas pontifcias e sua relao com os frades menores..............................220 Denise da Silva Menezes do NASCIMENTO Mechthild e o amor s almas do purgatrio.....................................227 Maurcio Prates NOGUEIRA Reflexes sobre a produo historiogrfica sobre a morte na Idade Mdia.............................................................................................235 Alex da Silveira de OLIVEIRA A gula: um estudo comparativo em documentos medievais................242 Bruno de Melo OLIVEIRA Aleivoso, bausador e fraudador: a feudalidade ibrica em palavras latinas e romances..........................................................................251 Elisabeth da Silva dos PASSOS e Karina Dias MURTHA Ordem das Damianitas e a construo da identidade religiosa feminina............................................................................................260 Ana Paula Lopes PEREIRA Deus amicitia est: o conceito de caridade e de amizade espiritual em Aelred de Rievaulx (1110-1167)......................................................269 13

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Fernanda PIMENTA Apropriaes contemporneas do Medievo - O Senhor dos Anis..............................................................................................277 Danbia T. PIMENTEL Atualizao do tema da morte no Auto de Joo Cabral..................286 Thiago de Azevedo PORTO Os cativos na vida de Santo Domingo de Silos: uma contextualizao histrica da santidade....................................................................295 Tamara QURICO A Peste Negra e a representao do inferno em afrescos toscanos do sculo XIV......................................................................................304 Rodrigo dos Santos RAINHA O papel do Homem Santo na Igreja visigoda no sculo VII: a vida de Emiliano.........................................................................................314 Caroline Moreira REIS A temtica artrica em narrativas galegas contemporneas...............321 Raphael de Oliveira REIS So Francisco de Assis: foi, aps o Cristo, a grande personalidade da Histria crist.................................................................................328 Leandro Duarte RUST A institucionalizao da Santa S entre os sculos XI e XIII: uma leitura crtica..............................................................................................335 Rodrigo da Silva SALGADO Um rei, um reino, uma crnica: Afonso Henriques.........................344 Henrique Marques SAMYN A morte e o mar: Mendinho e Manuel Bandeira.............................351 Michelle de Oliveira SANTOS Restries e normatizaes de condutas sexuais nas Atas do II Conclio de Sevilha e do IV Conclio de Toledo............................................358 Andr Luiz Nascimento SILVA Por que Virglio no entrou na Comdia?........................................364

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Daniele Sandes da SILVA O Profeta e a Umma: relaes de poder e poltica no Alcoro............375 Paulo Duarte SILVA Os sermes da Pscoa de Cesrio de Arles: atuao episcopal na Glia no sc. VI........................................................................................381 Pedro Octvio Imbroise SILVA Histria e fico na narrativa medieval e na escrita de Jos Saramago...389 Vernica da Costa SILVEIRA e Edilaine VIEIRA Concepo do poder real no reino visigodo: reflexes acerca da histria gothorum de Isidoro de Sevilha e na Chronica de Joo de Biclaro............................................................................................395 Maria Valdiza Rogrio SOARES Gnero, a virgindade e a pobreza nos escritos de Clara de Assis...............................................................................................402 Almir Marques de SOUZA JNIOR A realeza Castelhana no contexto da expanso crist (Pennsula Ibrica sculo XIII).................................................................................408 Daniele Gallindo Gonalves e SOUZA Descrio de fonte(s) literria(s) em um trabalho historiogrfico: um exemplo em Parzival de Wolfram von Eschenbach....................................415 Jorge Victor de Arajo SOUZA Claustrum sine amario quase castrum sine armamentario: a Lectio na Regra de So Bento e a prtica de leitura entre os monges beneditinos do Rio de Janeiro (sculos XVII - XVIII)..................................................422 Thais Menezes TORRES O amor corts e a Igreja no Medievo...............................................431 Eliane VENTORIM Escatologia e Terra Santa no Livro do Fim (1305) de Ramon Llull.................................................................................................439 Luciano Jos VIANNA A reconquista no Livro dos Feitos (c. 1252-1274) de Jaime I (12081276)..............................................................................................447

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PROGRAMAO

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Dia 25 de outubro - 3 feira 14h s 15:45h 1 Sesso de Comunicao MESA 1 - Igreja e poder na Baixa Idade Mdia Coord.: Lvia Lindoia Paes Barreto (UFF) Leandro Duarte Rust (UFRJ) A institucionalizao da Santa S entre os sculos XI e XIII: uma leitura crtica Raphael de Oliveira Reis (UFJF) So Francisco de Assis: foi, aps o Cristo, a grande personalidade da Histria Crist Leandro Felix Cantarino (UFJF) A misoginia inquisitorial na Baixa Idade Mdia: um olhar atravs do Martelo das Feiticeiras Eber Cimas das Chagas (UGF) Judasmo e heresia: a construo do Imaginrio inquisitorial MESA 2 - Reflexes histricas sobre os reinos germnicos Coord.: Marcus da Silva Cruz (SUAM) Joo Fernando Silveira Corra (UFRJ) A Igreja ibrica na segunda metade do sculo VI Jaqueline de Calazans (UFRJ) O movimento priscilianista no sculo IV Bruno Borguignon Mota (UFF) A terminologia das relaes de dependncia nos conclios visigticos Cludio Umpierre Carlan (UNICAMP) Arqueologia visigtica: produo monetria na Pennsula Ibrica do sc. VII Renato Rodrigues da Silva (UFF) Igreja Celta, Igreja Romana e os anglo-saxes: um processo de sntese (sculos VI-VIII) MESA 3 - Entre a histria e a fico: reflexes sobre a produo historiogrfica e a literatura da e sobre a Idade Mdia Coord.: Francisco Jos Silva Gomes (UFRJ) Pedro Octavio Imbroise Silva (UFRJ) Histria e fico na narrativa medieval e na escrita de Jos Saramago Thas Menezes Torres (UFRJ) O amor corts e a Igreja no Medievo Tatiana Rocha Custdio (UFRJ) O cdigo de cavalaria: um estudo sobre os romances de cavalaria medieval

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Maria Carolina Viana Vieira (UERJ) O mito do Graal e os cavaleiros predestinados sua contemplao Andr Luiz Nascimento Silva (UFRJ) Por que Virglio no entrou na comdia? 16h s 17:45h 2 Sesso de Comunicao MESA 4 - Imagens crists no Ocidente tardo-medieval Coord.: Maria Cristina Leandro Pereira (UFES) Elza Heloisa Filgueiras (UFES) Mitologia clssica e cristianismo: miniaturas de um manuscrito medieval das Metamorfoses de Ovdio Luciana Queiroz Gracelli (UFES) As representaes da Madona com o Menino na pintura de Giotto Fabrcia dos Santos Giuberti (UFES) Os crucifixos pintados na Itlia do sculo XIII Tamara Quirico (UFRJ) A peste negra e a representao do inferno em afrescos toscanos do sculo XIV MESA 5 - Reflexes sobre o franciscanismo medieval Coord.: Maria do Carmo Parente (UERJ) Iracema Andrade de Alencar (UFRJ) e Valria Fernandes da Silva (UnB) Utopia e resistncia: a construo de uma espiritualidade franciscana feminina no sc. XIII Plcido Rios Moreira Jnior (UFRJ) Os franciscanos nas Cruzadas: uma reflexo sobre as polticas pontifcias Jefferson Eduardo dos Santos Machado (UFRJ) O uso simblico dos animais na obra antoniana: elementos Elisabeth da Silva dos Passos e Karina Murtha (UFRJ) A ordem das Damianitas e a construo da identidade religiosa feminina MESA 6 - Poltica e Religio: convergncias e conflitos no medievo ocidental e oriental Coord.: Cludia Beltro (UNIRIO) Daniele Sandes da Silva (UFF) O profeta e a Umma: relaes de poder e poltica no Alcoro Elisa Tavares Duarte (UFF) Entre o papa e o imperador: expresses de conflito e de santidade na Legenda urea Almir Marques de Souza (UFF) A realeza castelhana da expanso crist (Pennsula Ibrica sculo XIII)

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Helena Rodrigues Matheson (UFF) Construindo a realeza: a imagem rgia de D. Joo I na Crnica de Ferno Lopes Ieda Avnia de Mello (UFF) Cerimnia da homenagem: poder e juramento na dinastia de Avis (Portugal 1438-1495) 18h s 19:45h CURSO As Fontes da Realeza Crist na Alta Idade Mdia Ocidental Prof. Marcelo Cndido (Histria - USP) Dia 26 de outubro - 4 feira 14h s 15:45h 1 Sesso de Comunicao MESA 7 - Entre monges e guerreiros: reflexes sobre o medievo Coord.: Mrio Jorge da Mota Bastos (UFF) Fernanda Pimenta (UFF) Apropriaes contemporneas do Medievo: O Senhor dos Anis Luiz Gustavo Reis Rodrigues (UFF) Guerreiros e heris na literatura irlandesa medieval: o ciclo de Uster (XII) Monique da Silva Cabral (UFF) Cister: o mosteiro santo (scs. XI-XII) Ana Cristina Campos Rodrigues (UFF) Criao, apogeu e ocaso da ordem do Toso de Ouro Bruno de Melo Oliveira (UFF) Aleluoso, bausador e fraudador: a feudalidade ibrica em palavras latinas MESA 8 - Religio e sociedade nos reinos germnicos Coord.: Maria Beatriz de Mello e Souza (UFRJ) Jorge Victor de Arajo Souza (UFRJ) A lectio na regra de So Bento e a prtica de leitura entre os monges beneditinos Rodrigo dos Santos Rainha (UFRJ) O papel do homem santo na Igreja visigoda do sculo VII: a vida de Emiliano Rita de Cssia Damil Diniz (UFRJ) Consideraes acerca da ao do episcopado peninsular no processo de consolidao da identidade godo-crist no sculo VII Paulo Duarte Silva (UFRJ) Os sermes da Pscoa de Cesrio de Arles: atuao episcopal na Glia do sculo VI Vernica da Costa Silveira e Edilaine Vieira Costa (UFRJ) Concepo do poder real no reino visigodo: reflexes acerca da Historia Gothorum de Isidoro de Sevilha e da Chronica de Joo de Biclaro 21

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MESA 9 - Relendo os pensadores medievais Coord.: Marta Silveira Bedjer (UGF) Luciano Jos Vianna (UFES) A reconquista no Livro dos Feitos (c.1252-1274) de Jaime I (1208-1276) Eliane Ventorim (UFES) Escatologia e Terra Santa no Livro do Fim (1305) de Ramon Llull Leonardo Almada (UFRJ) A influncia da tica Aristotlica em Agostinho Hudson dos Santos Barros (UFRJ) Idade Mdia no pensamento cartesiano? 16h s 17:45h 2 Sesso de Comunicao MESA 10 - A literatura medieval: leituras e apropriaes Coord.: lvaro Alfredo Bragana Jnior (UFRJ) Carolina Moreira Reis (UERJ) A temtica artrica em narrativas galegas contemporneas Carlos Manoel de Hollanda Cavalcanti (UFRJ) O medievo embutido: breve olhar sobre o uso de alegorias caval(h)eirescas nas histrias em quadrinhos Daniele Gallindo Gonalves e Souza (UFRJ) Descrio de fonte(s) literria(s) em um trabalho historiogrfico: um exemplo em Parzival Christiane de Resende Marques (UFRJ) O martrio na obra dramtica de Rosvita Von Gandersheim MESA 11 - Gnero e construo da identidade na Idade Mdia Coord.: Miriam Impillizieri (UERJ) Carolina Coelho Fortes (UFRJ) Maria Madalena e a ordem dominicana no sculo XIII: um caso de inverso simblica de gnero Priscila Gonsalez Falci (UFRJ) Santa Eugnia e Irmo Eugnio: identidades de gnero na Legenda Aurea Maria Valdiza Rogrio Soares (UFRJ) O gnero, a virgindade e a pobreza nos escritos de Clara de Assis Mnica Amim (UFRJ) Breves consideraes sobre o feminino celta: entre mulher sol e a me de Deus Luiz Felipe Pereira Mello dos Santos (UERJ) As mulheres inominadas na demanda do Santo Graal

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MESA 12 - Aproximaes ao Direito medieval Coord.: Paulo Andr Parente (UNIRIO) Bernardo Luiz Martins Milazzo (UNIRIO) Inglaterra dos sculos XII e XV e a influncia do Direito Romano: os casos de Colchester, Londres e a Magna Carta Joo Cerineu Leite de Carvalho (UNIRIO) As ordenaes de D. Duarte e o perfil do Estado portugus Ricardo Mariani (UNIRIO) De Londres a Nottingham e dos burgos Magna Carta Anlia Ramos Perptuo Paniza (UNIRIO) ndia portuguesa: emisses de D. Joo III Rosiane Graa Rigas Martins (UGF) A condio jurdica dos grupos urbanos na Castela do sculo XIII 18h s 19:45h CURSO As Fontes da Realeza Crist na Alta Idade Mdia Ocidental Prof. Marcelo Cndido (Histria - USP) Dia 27 de outubro - 5 feira 14h s 15:45h 1 Sesso de Comunicao MESA 13 - Poltica e religio na Idade Mdia Coord.: Gracilda Alves (UFRJ) Rodrigo da Silva Salgado (UFRJ) Um rei, um reino e uma crnica: Afonso Henriques Cylene Santos Lima (UFRJ) Propaganda rgia na crnica do rei Dom Afonso Henriques Denise da Silva Menezes do Nascimento (USP) Mechthild e o amor s almas do purgatrio Renato Viana Boy (UFRJ) A autocracia bizantina: o sagrado e o profano no Poder Imperial Rodrigo da Costa Dominguez (Univ. Porto Portugal) Mercadores, banqueiros e cambistas no Portugal dos sculos XIV e XV: reflexes e consideraes acerca de uma proposta de trabalho MESA 14 - Reflexes sobre o mal, o pecado e a morte na Idade Mdia Coord.: Marcelo Pereira Lima (UFRJ) Alex da Silveira de Oliveira (UFRJ) A gula: um estudo comparativo em documentos medievais 23

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Michelle de Oliveira Santos (UFRJ) Restries e normatizaes de condutas sociais nas Atas do II Conclio de Sevilha e IV Conclio de Toledo Alinde Gadelha Kuhner (UFRJ) Leituras sobre o diabo na Baixa Idade Mdia Maurcio Prates Nogueira (UFRJ) Reflexes sobre a produo historiogrfica sobre a morte na Idade Mdia Lusa Nogueira de Almeida (UFRJ) Vises sobre a morte no epistolrio do bispo Brulio de Saragoa MESA 15 - Leituras contemporneas do ocidente medieval Coord.: Renata Rozental (UGF) Isabela Pinheiro Israel (UERJ) Juzes em cena: Gil Vicente e Martins Pena Danbia Tupinamb Pimentel (UERJ) A atualizao do tema da morte no auto de Joo Cabral Priscila Bezerra de Menezes (UERJ) Gil Vicente e Suassuna: entre o popular e o erudito Henrique Marques Samyan (UERJ) A morte e o mar: Mendinho e Manuel Bandeira MESA 16 - A Igreja Romana, o fenmeno da santidade e a hagiografia medieval Coord.: Ana Paula Lopes Pereira (UERJ) Fabrcia A. T. de Carvalho (UFRJ) O discurso de controle da Igreja e a Barragana Bruno lvaro (Simonsen) A legenda de So Jorge e a santidade cavaleiresca: algumas reflexes Thiago de Azevedo Porto (UFRJ) Os cativos na Vida de Santo Domingos de Silos: uma contextualizao histrica da santidade Guilherme Antunes Jnior (UFRJ) Duelo de la Virgen de Gonzalo de Berceo: algumas questes Ana Paula Lopes Pereira (UERJ) Deus Amicitia Est: o conceito de caridade e de amizade espiritual em Aelred de Rievaulx

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16h s 17:45h - MESA-REDONDA Os Estudos Medievais no Brasil: Literatura, Histria e Msica Prof Maria do Amparo Tavares Maleval (Literatura - UERJ) Prof Maria Filomena Coelho (Histria - UnB / UPIS-DF) Prof Lenora Pinto Mendes (Msica - UFF) 18h s 19:45h - CURSO As Fontes da Realeza Crist na Alta Idade Mdia Ocidental Prof. Marcelo Cndido (Histria - USP)

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CONFERNCIAS

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Breves reflexes acerca da Historia medieval no Brasil


Maria Filomena Coelho*

sucesso da Histria Medieval, no Brasil, uma histria de curta durao. Em grande parte fruto da difuso que os medievalistas franceses alcanaram junto de um pblico fora do mbito acadmico, as temticas da Idade Mdia revitalizaram-se, sobretudo a partir da dcada de 80 do sculo passado. Nas principais universidades brasileiras, a Histria medieval tem uma trajetria que antecede essa moda, muito embora devamos reconhecer que foi a partir daquele momento que as reas de Histria Medieval comearam a adquirir um pouco mais de peso dentro da estrutura poltica dos departamentos e das agncias nacionais de fomento pesquisa. Este um caminho, cujo traado ainda se est desenhando, e que nos propomos agora a percorrer brevemente. O medievalismo brasileiro marxista A histria medieval no Brasil tambm filha do seu tempo. E o tempo pelo qual nos embrenharemos nessa histria um tempo de marxismos. De meados da dcada de 60 ao incio da de 80, a histria no Brasil tinha de ser engajada. No era bem visto que, em plena ditadura militar, o historiador perdesse tempo com divagaes pequeno burguesas, estudando os hbitos da nobreza merovngia. pocas to longnquas, geografias to exticas, s eram toleradas se pudessem ser instrumentalizadas na vitria dos oprimidos sobre as classes dominantes. No mximo, permitiam-se incurses Idade Mdia inspiradas por aquelas que tinham sido feitas por Marx e Engels. Foram pocas difceis para aqueles que insistiam em defender a necessidade fundamental de se estudar as sociedades tradicionais crists, pelo que elas significavam como depsito de uma mentalidade e de uma cultura que ainda forneciam chaves interpretativas para entender o sculo XX. Neste sentido, a longa durao era um instrumento terico essencial que se chocava de forma brutal contra a idia de ruptura e revoluo da teoria marxista. Nos departamentos de Histria dos principais centros universitrios do pas, o confronto foi rapidamente politizado e radicalizado entre esquerda e direita, entre conservadores e revolucionrios. Os rtulos eram implacveis. Interpretar a Histria da Idade Mdia a partir da longue dure era apostar numa explicao de permanncias que retirava ao passado aquilo que de mais importante ele
Professora da Universidade de Braslia/UPIS.

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tinha a nos ensinar: a predisposio de nossos antepassados em se rebelar contra a ordem estabelecida, a possibilidade palpvel de mudar o destino. O que se pretendia nas salas de aula era passar a idia de que, ao contrrio do que a verso oficial impunha, a histria s avanava de fato por meio das rupturas, das revolues. E o passado estava cheio de exemplos que deveriam ser resgatados pelo historiador, justamente para poder comprovar essa teoria. Foi a poca das teses, artigos, papers, sobre as revoltas camponesas e sobre qualquer episdio que revelasse a resistncia autoridade institucionalizada. A proposta cientificista implcita no marxismo exigia uma teoria geral e, para a Idade Mdia, ela traduziu-se no modo de produo feudal. Entretanto, bom que se diga que aquilo que estudvamos em sala de aula estava muito longe da complexidade que Marx e Engels enxergaram nessa maneira de produzir. As explicaes e anlises eram quase sempre reducionistas, pobres e, invariavelmente, panfletrias. Mas tambm interessante lembrar que a opo pelo modo de produo feudal, dificilmente era tomada pelos medievalistas, que de resto eram muito poucos no Brasil. Eram os professores de Idade Moderna e at os que se dedicavam Idade Contempornea, que pretendiam restaurar em sala de aula, a verdade que os professores reacionrios de Antiga e Medieval tinham tratado de ocultar. Ento, comeavase por estudar o modo de produo feudal, numa caricatura que esquecia quase sempre o nvel mental da superestrutura, reduzindo tudo ditadura do material, a partir de uma explicao mecanicista da base. Frente aos discursos inflamados dos que, nas reunies de departamento e pelos corredores, defendiam o papel engajado do historiador na luta contra a ditadura militar, era muito difcil ouvir as argumentaes daqueles medievalistas que tentavam explicar que a mentalidade da poca que eles estudavam adequava-se muito pouco a interpretaes economicistas e dogmticas. Paralelamente, a bibliografia disponvel no Brasil no facilitava estudos mais matizados. As tradues de obras de autores europeus no-marxistas para portugus eram quase todas de editoras portuguesas, o que dificultava muitssimo a sua difuso. Os alunos da graduao ficavam limitados s aulas e aos textos mimeografados de tradues domsticas incompreensveis. O medievalismo brasileiro da Abertura Ao ritmo da abertura poltica, entre o final da dcada de 70 e o incio da de 80, o marxismo comeou a permitir que outros ventos soprassem nos departamentos de Histria. No que respeita ao medievalismo, data dessa poca a difuso no Brasil dos autores miditicos franceses: Georges Duby, Jacques Le Goff, Philippe Aris. E recuperam-se outros j desaparecidos, sobretudo, Marc Bloch. a histria das mentalidades finalmente chegando ao Brasil, uma invaso que foi percebida no sem crticas por parte daqueles que ainda empunhavam a bandeira do marxismo. A dcada de 80 ainda foi vivida nos departamentos sob a tnica do confronto partidrio ideolgico, embora j fosse evidente que o Muro no resistiria por muito tempo. A transformao da Histria das Mentalidades em Histria Cultural terminou por dar razo queles que a duras penas insistiam que era
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BREVES REFLEXES ACERCA DA HISTORIA MEDIEVAL NO BRASIL

empobrecedor olhar para a Idade Mdia unicamente pela lente da vida material e que a longa durao fazia algum sentido. Na realidade, at a Idade Moderna acabou afetada por esse novo vis, e hoje j no h dvida de que o corte cronolgico que separa as duas idades impede que se tenha uma viso mais complexa da construo da civilizao crist ocidental. preciso perceber essas pocas como uma unidade, coisa que h muito era defendida por Perry Anderson, em Linhagens do Estado Absolutista. Curiosamente um autor marxista, mas pouco considerado nos meios ortodoxos por ser um historiador que contemplava a importncia decisiva das chamadas superestruturas. No cenrio historiogrfico brasileiro, a possibilidade de eliminar aquela barreira cronolgica vem fortalecendo os estudos ibricos, estimulando os historiadores a transitar pela ponte que une a Idade Mdia portuguesa ao Brasil Colnia. De qualquer forma, permanecem muitos entraves acadmicos, de cunho poltico, a serem superados. Alm da Pennsula Ibrica, vem sendo resgatado o valor de se estudarem outras geografias - ainda que exticas restaurando-se os vnculos entre histria, civilizao e erudio. A Histria Cultural reabilitou a poltica, entendida agora como cultura poltica, trazendo de volta a narrativa. Nesse sentido, o medievalismo no Brasil tem apresentado trabalhos que claramente adotaram a narrativa poltica como linguagem, quer se trate de abordagens que tm as instituies e o poder como objeto de estudo, ou at mesmo de trabalhos de cunho hagiogrfico. Cumpre ainda dizer que, embora o marxismo no esteja mais na moda, isso no significa que o medievalismo brasileiro tenha jogado fora as reflexes de Marx sobre as relaes sociais engendradas pela vida material e vice-versa. Na realidade, hoje em dia observamos a vigncia profcua de algumas linhas mestras de seu pensamento, mas agora afastadas daquele dogmatismo panfletrio. O medievalismo brasileiro hoje Hoje, o medievalismo brasileiro est cada vez mais consolidado. Em tempos de democracia e de globalizao, j no se sustenta mais a bandeira poltica dentro dos departamentos de Histria, que clamava pela necessidade de fortalecer os estudos da rea de Histria do Brasil, em detrimento de outras linhas de pesquisa que pareciam inteis aos olhos dos que advogavam pela revoluo. Mas, ainda assim, a Historia Medieval uma rea que precisa de vez em quando justificar a sua existncia. A disponibilidade de verbas para atividades de divulgao e pesquisa bastante reduzida, bem como a possibilidade de se conseguirem bolsas de ps-graduao para o exterior. Por outro lado, desenvolver estudos medievais requer do estudioso um investimento muito alto em sua preparao, algo difcil de se alcanar sem o auxlio dos rgos responsveis pela poltica cientfica do pas. quase impossvel ser um bom medievalista sem conhecimentos de latim, paleografia, francs, ingls e sem o acesso aos arquivos. Como em outras reas da vida nacional, a sobrevivncia da Idade 31

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Mdia no Brasil deu-se graas aos esforos, quase titnicos, de alguns estudiosos, entre os quais , no campo da Histria, Daniel Valle Ribeiro, Mara Sonsoles Guerras e, recentemente, Hilrio Franco Jnior; nos Estudos Literrios, Leodegrio de Azevedo Filho, ngela Vaz Leo, Lnia Mrcia Mongelli e Amparo Maleval. Os estudos medievalistas no Brasil receberam um forte impulso com a criao da Associao Brasileira de Estudos Medievais (ABREM), em 1996. A promoo de encontros peridicos entre estudiosos organizados pela Associao, certamente permitiu o adensamento do medievalismo entre ns. Os Encontros Internacionais de Estudos Medievais iniciados na USP em 1995, sucederam-se depois na UFRGS, em 1997, na UERJ, em 1999, na UFMG, em 2001, na UFBA, em 2003, na UEL, em 2005. O nmero de scios, atualmente, ronda os 450, com um crescimento constante. A revista Signum, j em sua stima edio, um importante veculo para a divulgao institucional da Associao no Brasil e no exterior. Em termos de linhas de pesquisa em histria medieval h hoje, no Pas, um bom nmero. Citaremos apenas algumas. Na UFRJ, o Programa de Estudos Medievais, coordenado por Leila Rodrigues e Andria Frazo da Silva, contempla temticas em torno s instituies e s formas polticas, mais precisamente vinculadas consolidao da Igreja e a normalizao da sociedade nos Reinos Germnicos, religio e religiosidade, produo intelectual eclesistica na Alta Idade Mdia Ocidental, marginalidade e excluso no mesmo perodo, a Igreja papal e a produo hagiogrfica, religio e religiosidade, questes de gnero, o saber e os centros de produo intelectual nas pennsulas ibrica e itlica nos sculos XI a XIII. A USP e a UNICAMP constituram o Laboratrio de Estudos Medievais (LEME), que tem por objetivo congregar professores, pesquisadores e estudantes para a realizao de eventos e o desenvolvimento de pesquisas na rea de Histria Medieval. No que se refere a esse ltimo tpico, desenvolve atualmente um projeto de pesquisa comum intitulado Renovatio e reformatio: reformas e sociedade, do advento da realeza crist consolidao da monarquia papal. Esse projeto, que integra as pesquisas dos alunos, divide-se em trs eixos: Imprio e Sociedade: a realeza crist entre os sculos VIII e IX, coordenado por Marcelo Cndido, Igreja e Sociedade: a Reforma da Igreja entre os sculos X e XIII, coordenado por Nri Campos; e Imprio e Igreja: a plenitudo potestatis papal entre os sculos XIII e XIV, coordenado por Ana Paula Magalhes. A pesquisa pretende refletir sobre os projetos de sociedade elaborados pela Igreja em trs momentos distintos: no perodo franco, na era gregoriana e no final da Idade Mdia, esperando poder realizar uma reflexo comum sobre a nova histria poltica e suas implicaes nos estudos medievais. Na UNESP, em Assis, Ruy Andrade Filho desenvolve a temtica da religiosidade no Reino Catlico de Toledo (sculos VI-VIII) a partir das hagiografias, e a analogia antropomrfica visigtica e/ou o Primeiro Corpo do Rei, portanto na rea daquela nova histria poltica.
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Na UFES, Ricardo Costa coordena uma linha de pesquisa voltada para os estudos Llulianos, com ampla divulgao, inclusive, na Internet. Na mesma linha, Adriana Zierer, na UEMA, com base na aproximao entre cultura e sociedade, leva a cabo um projeto sobre as representaes do alm e da salvao medieval nas obras de Ramn Llull. Na URGS, Jos Rivair Macedo desenvolve e coordena estudos sobre as manifestaes culturais da cristandade ocidental. Na UFG, Dulce Amarante dirige um grupo de pesquisa de estudos ibricos, cujas temticas se debruam principalmente sobre o saber mdico e fsico. Na UnB, Maria Eurdice Ribeiro tem uma linha de pesquisa sobre iconografia e cartografia medieval. Ainda na UnB e na UPIS-DF, formamos, em 2004, um grupo de estudos e de pesquisa em torno Histria da Justia, com base na tradio ibrica medieval, que pretende abordar antigas temticas da Histria do Direito e das Instituies na perspectiva da Histria Cultural, alm de considerar novos objetos de estudo, antes desprezados pela historiografia. Dessa forma, aborda-se de forma ampla a Histria da Justia, entendida como prticas e discursos vinculados a uma determinada cultura poltica, sem limitar a pesquisa s instituies e autoridade constituda. A Justia, entendida como poder exercido e sofrido, amplia-se a todas as esferas do cotidiano e das relaes sociais. * * * Estas reflexes pretenderam unicamente sublinhar o quo vinculado est o medievalismo s tendncias de poca. O entrelaamento das temticas da cultura e do poder parece nortear as principais linhas de pesquisa atualmente funcionando no Brasil, coisa que, de resto, se repete em outras reas da Histria, assim como na Antropologia, na Cincia Poltica e na Sociologia. A redefinio em torno da problemtica do poder trouxe de volta a Idade Mdia, poca na qual se inventaram algumas das engrenagens do exerccio do poder e se cristianizaram outras j existentes, mas na qual, sobretudo, possvel visualizar de maneira mais transparente as formas concretas que assume a luta pelo poder, antes que fossem limitadas representao onipotente do Estado.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Sobre os estudos medievais na rea de Letras (no Brasil)


Maria do Amparo Tavares Maleval*

e aos encontros cientficos2 promovidos pela ABREM (Associao Brasileira de Estudos Medievais) em seus dez anos de existncia3, podemos hoje dimensionar de modo mais concreto a produo acadmica realizada no Brasil relativa Idade Mdia. Principalmente oportuna, nesse sentido, foi a iniciativa levada a cabo pelo Professor Dr. Jos Rivair de Macedo, da UFRGS e poca Secretrio da ABREM (binio 2001-2003), de organizar o primeiro Catlogo de dissertaes e teses no mbito da Idade Mdia, concludas de 1990 a 2002, publicado em 2003. Na rea de Letras constatou existirem nada menos que 147 trabalhos de Lngua e Literatura. Esta seria, ento, a rea em que se apresentam mais abundantes os estudos medievais, seguida muito de perto pela rea de Histria (121 trabalhos) e menos proximamente pela de Filosofia (60 trabalhos), registrando-se ainda alguns poucos trabalhos relacionados Teologia (2), Direito (2) e Msica (1) (MACEDO, 2003, p. 9). Grandes focos de medievalistas em Letras no Brasil, at os anos 80, foram o Rio de Janeiro e So Paulo. Junto PUC do Rio o Padre Augusto Magne publicou pela primeira vez uma edio completa da Demanda do Santo Graal (1944; reedio melhorada, 1955-1970), alm de outras importantes fontes primrias medievais4. Na UFRJ, o Professor Celso Cunha realizou importantes trabalhos concernentes, principalmente, ao Trovadorismo, incluindo-se neles a elaborao de cuidadosas edies crticas das cantigas de Paay Gmez Chaarinho (1945), Joan Zorro (1949) e Martin Codax (1956), posteriormente reunidas em edio de 1999. Estes so apenas dois exemplos, mas ainda poderiam ser citados tantos outros, como o ilustre romanista sueco Bertil Maler, a quem devemos cuidadosa edio, acompanhada de estudos complementares, do Orto do Esposo (1956-1964); Serafim da Silva Neto, com importantes estudos de histria da lngua e edies de textos medievais, como A Bblia medieval portuguesa (1958), A mais antiga verso conhecida da Regra de So Bento (1959-1960), etc; Souza da Silveira, autor de excelente edio crtica de Dois autos de Gil Vicente (o da Mofina Mendes e o da Alma) (1973, 2. ed.), com estudo introdutrio de Cleonice Berardinelli, tambm especialista em Gil Vicente; Leodegrio A de Azevedo Filho, organizador da coleo Oskar Nobiling, com dois volumes de edies crticas publicados
Professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 34

Graas aos empreendimentos editoriais

SOBRE OS ESTUDOS MEDIEVAIS NA REA DE LETRAS (NO BRASIL)

As cantigas de Pero Meogo (AZEVEDO FILHO, 1974) e As cantigas de Pero Mafaldo (SPINA, 1983); etc. Em So Paulo, o Professor Segismundo Spina produziu um valioso conjunto de obras, com lies fundamentais sobre a lrica medieval, notadamente, mas no s. Podemos citar, entre outras, Do formalismo esttico trovadoresco (1966.) e A lrica trovadoresca (1991), alm da j mencionada edio crtica das cantigas de Pero Mafaldo (1983). Antes dele, tambm Antnio A. Soares Amora dera sua contribuio aos estudos medievais, debruando-se sobre D. Dinis (1943), o Nobilirio do Conde D. Pedro (1948) e O leal conselheiro de D. Duarte (1948). Contemporneo de Spina, Massaud Moiss, em sua fecunda e variada produo ensastica, conta com ttulos dedicados ao medievo, como por exemplo A novela de cavalaria no Quinhentismo portugus (1957) ou, mais recentemente, As estticas literrias em Portugal sculos XIV a XVIII (1997) e A esttica medieval (2003). Ressalte-se que tambm a Bahia possui tradio nos estudos sobre a Idade Mdia, tendo, por exemplo, l publicado Albino de Bem Veiga a sua edio do Virgeu de Consolaon (1969). Dos anos 80 em diante vemos que esses focos se ampliam e/ou modificam, abrangendo Belo Horizonte, com o importante trabalho interdisciplinar sobre as cantigas de Santa Maria que vem sendo desenvolvido na PUC Minas por ngela Vaz Leo, com Vanda de Oliveira Bittencourt, da rea de Lingstica, e orientandos, intitulados cantigueiros de Santa Maria (LEO, 2004, p. 309-317). A UFBa tem recentemente desenvolvido de forma significativa estudos lingsticos e filolgicos de textos medievais, podendo ser citada Rosa Virgnia Mattos e Silva, autora de Estruturas trecentistas (1989) e orientadora de vrias dissertaes e teses, trabalho tambm desenvolvido por Nilton Vasco da Gama, Maria Tereza L. G. Pereira e Clia Marques Teles (MACEDO, 2003). Ainda no Nordeste, merece destaque a contribuio de Maurice Van Woensel, infelizmente j falecido, autor, com a colaborao de Chico Viana, ambos da UFPB, de interessantes reflexes (1998) e edies de fontes primrias medievais (1998 e 2001). No Rio de Janeiro, destacaramos, por mais constantes, o trabalho de Maria Elizabeth Graa de Vasconcellos (MACEDO, 2003), da UFRJ, j aposentada, e, sem falsa modstia, o meu prprio, na UFF e, mais recentemente, na UERJ; bem como o de colegas mais jovens, como lvaro A. Bragana Jr., na UFRJ. Esses estudos cariocas se incluem principalmente no mbito dos estudos culturais e/ou comparados, e tambm de editorao de fontes primrias ( MALEVAL, 2005, etc.). Em So Paulo, Heitor Megale, da USP, Lnia Mrcia de M. Mongelli, tambm da USP, Maria Helena Ribeiro da Cunha, idem, e Yara Frateschi Vieira, da UNICAMP, continuam dando regularmente contribuies fundamentais medievstica, atravs da publicao de fontes primrias, de tradues, de ensaios, de orientaes, etc. Na UNESP, campus de Araraquara, 35

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Carlos Alberto Iannone, infelizmente falecido, vinha dirigindo um laborioso grupo de pesquisadores, que na dcada de 1990 deu a lume algumas edies de trovadores galego-portugueses. Estes so os nomes que nos ocorrem, de medievalistas que no apenas tm produzido estudos prprios, mas formado grupos de orientandos, que podero dar continuidade especializao em pauta. O que, evidentemente, no significa que no existam muitos outros comprometidos com o exame da lngua e da literatura medievais, como, para s citarmos nomes de doutores mais recentes, associados ao recm-criado GT de Estudos Medievais da ANPOLL (Associao Nacional de Ps-Graduao em Letras e Lingstica), que certamente ampliar seus quadros: Roberto Ponte e Elizabeth Martins, da UFC, Risonete de Souza, da UFBa, Mrcio Muniz, da UEFS, Paulo Roberto Sodr, da UFES, Viviane Cunha, da UFMG, Delia Cambeiro e Regina Michelli, da UERJ, Gladis MassiniCagliari, da UNESP. Voltando aos trabalhos arrolados por Jos Rivair de Macedo, observando-lhes as predominncias dos enfoques realizados vemos que so muito numerosos os estudos culturais (ou interdisciplinares, ou transdisciplinares...) da literatura, o que tambm se constata nos projetos docentes que compem o mais recente GT da ANPOLL de Estudos Medievais. Oficializado em junho do corrente ano de 2005, esse GT por mim coordenado, sendo vice-coordenador lvaro Bragana Jnior. Aproximam-se, dessa forma, cada vez mais os estudos literrios dos historiogrficos, o que se percebe tambm em publicaes e intervenes feitas em eventos acadmicos. Onde residiria a especificidade (ou no) desses estudos? a questo que gostaramos de colocar, para reflexo. Deixando de lado os estudos gramaticais, mais difceis de se dilurem em mtodos de outras disciplinas, comearamos por fazer uma breve, como convm ao momento, retrospectiva da questo metodolgica na abordagem acadmica da literatura stricto sensu, entendida como
parte do conjunto da produo escrita e, eventualmente, certas modalidades de composies verbais de natureza oral (no escrita), dotadas de propriedades especficas, que basicamente se resumem numa elaborao especial da linguagem e na constituio de universos ficcionais ou imaginrios (SOUZA, 2004, p. 45).

Retroagindo ao sculo XIX, vemos que os estudos literrios se afastam das antigas disciplinas clssicas Filologia, Gramtica, Retrica e Potica e se aproximaram das cincias positivistas, em particular da Histria; como tambm da Psicologia, da Sociologia e da verso oitocentista da Filologia. Mais para o final do sculo XIX esta tendncia ser substituda pelo impressionismo crtico, que privilegia a fruio, de carter subjetivo e particular, do texto literrio, colocando-se, dessa forma, contra o objetivismo e a generalidade e, portanto, contra o mtodo, que se caracteriza justamente por esses aspectos. No sculo XX, aos mtodos extrnsecos, assim considerados os de extrao oitocentista, sero opostos os intrnsecos, propriamente literrios,
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SOBRE OS ESTUDOS MEDIEVAIS NA REA DE LETRAS (NO BRASIL)

correntes da Teoria da literatura, a nova disciplina que se firmou principalmente aps a publicao dos estudos de Ren Wellek e Austin Warren, em 1949. Estes mtodos, atentos especificidade do texto literrio chamada literariedade, termo cunhado pelo lingista russo Roman Jakobson em 1919 , encarado com objetividade e rigor, incluem: a estilstica, inicialmente na Alemanha e na Sua e posteriormente na Espanha etc; o formalismo eslavo; a escola morfolgica alem; a nova-crtica anglo-americana; a potica gerativa. A lingstica estaria na raiz desses mtodos, bem como da fenomenologia dos estratos do polons Roman Ingarden, aliada filosofia fenomenolgica de Edmund Husserl. Diga-se de passagem que outras correntes fenomenolgicas se formaram, influenciadas pelo pensamento existencialista de Martin Heidegger, como a escola de Zurique, na qual pontificou Emil Staiger, e a crtica ontolgico-hermenutica, opostas ao calculismo e controle da realidade do cientificismo, como tal castrador da dimenso ontolgica do Ser e incapaz de atingir a profundidade de suas manifestaes. Enfim, o mtodo lingstico foi adaptado aos estudos da literatura, por ser esta tambm um fenmeno da linguagem. Da mesma forma procedeu-se a aproximaes com a Antropologia e a Psicanlise, por apresentarem afinidades as linguagens do mito e do sonho com a da literatura, enquanto constituio de um universo imaginrio ou ficcional. O estruturalismo, atitude metodolgica originada do sistema conceitual proposto por Ferdinand de Saussure e do gestaltismo alemo, firmou-se atravs do Grupo Tel Quel, ligado ao formalismo eslavo, de uma corrente derivada da antropologia estrutural, notadamente de Claude Lvi-Strauss, e de outra procedente da psicanlise, principalmente de Jacques Lacan. Michel Foucault e Jacques Derrida se apresentariam posteriormente como pensadores ps-estruturalistas. Essa busca por um modo especfico de analisar o texto literrio perduraria at os anos setenta desse mesmo sculo. A reao ao mtodo lingstico condenaria o seu apego intransitivo ao texto, elidindo preocupaes contextuais de suas anlises, que impediria o alcance aprofundado do(s) sentido(s) da obra. Da se apresentar como necessrio o concurso de outros mtodos-disciplinas, particularmente a semitica, a filologia e os mtodos de base antropolgica, psicanaltica e histrica, bem como sociolgica este compreendendo inclusive as crticas existencialista, marxista, e a esttica da recepo. No se pode deixar de considerar o alerta dos reducionistas: os estudos literrios so um terreno frtil para a proliferao de mtodos vrios, o que tem suscitado muitas leviandades epistemolgicas. Mas o que hoje se impe uma tendncia que vem se destacando e se sistematizando a partir da j referida dcada de 80: a interdisciplinaridade, ou, mais atualmente, pluri-, multi- e transdisciplinaridade. Nela, mtodos e disciplinas variadas colaboram para o exame do texto literrio, polissmico por excelncia. Seriam os chamados estudos culturais, de origem anglo-norte-americana, a mais notria exemplificao desses estudos, combinando relativismo cultural com absolutismo tico, embora de incio se tenha caracterizado por um certo nimo contestador dos valores tidos por hegemnicos, conforme 37

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salienta Roberto Aczelo de Souza (2005)5. Como assinala ainda este especialista, a asceno das idias ps-modernas teria como resultado
a ampliao do corpus dos estudos literrios para alm das obras cannicas, a concepo do texto como sintoma de identidades (sobretudo de gnero, de etnia e de orientao sexual) mltiplas, volteis e fragmentrias, a renncia s sistematizaes, a transgresso dos limites entre disciplinas por via de composies transdisciplinares, alm de uma drstica relativizao de valores e uma espcie de dessubstancializao do mundo, que mais no seria do que um conjunto contigente de signos convencionais (SOUZA, 2004, p. 39).

Voltando questo da aproximao entre os estudos literrios e os historiogrficos nessa perspectivao cultural, concretizados em dissertaes de Mestrado e teses de Doutorado produzidos durante ou aps os anos 80 do sculo XX, dentre os muitos exemplos que poderamos apresentar, escolhemos os seguintes: 1) A virgem e os mouros nas cantigas de Santa Maria dissertao de Mestrado (de Fransmarina L. Assuno, orientada por ngela Vaz Leo no PPGLL da PUCMinas, 2002), que busca demonstrar, atravs da leitura das cantigas de milagres do cancioneiro religioso [mariano] de Afonso X, o Sbio, que, embora habitada por trs povos diferentes cristos, judeus e muulmanos , a Pennsula Ibrica proporcionou, no sculo XIII, condies de convivncia e tolerncia, que ensejaram um sincretismo religioso (MACEDO, 2003, p. 37). 2) Navegatio Sancti Brandani Abbatis: tempo, espao Outro Mundo e peregrinao no relato da viagem de So Brando terra repromissionis dissertao de Mestrado (de Wanessa Colares sfora, orientada por Hilrio Franco Jnior no PPGH da USP, 2002), que investiga o texto de So Brando (sculo X), partindo de quatro categorias de anlise as concepes de tempo, espao, Outro Mundo e peregrinao. O objetivo traar o enquadramento de idias e sentimentos em que se encontra o texto, bem como evidenciar o papel de sua linguagem, construo e organizao formal na transmisso de significados entendidos em relao com os cdigos culturais que interferiram na elaborao da narrativa (MACEDO, 2003, p. 36-37). Qual dessas duas dissertaes seria mais especficamente da rea de Letras?... Sabemos que de h muito caiu por terra a distino radical texto historiogrfico / texto literrio assentada na oposio entre a suposta verdade das fontes estritamente documentais e a mentira, a inveno das fontes artsticas. Sendo o texto literrio considerado hoje um documento-monumento, no seria pertinente vermos no corpus escolhidos para anlise o indicador da especificidade do trabalho, ambos, alis, ancorados em textos hagiogrficos lato sensu, profundamente contaminados pelas lendas e outras produes de status semelhante. Consideremos o texto literrio enquanto construo do imaginrio,
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preocupado, enquanto arte, sobretudo com ser fico, entendida no seu sentido etimolgico, do latim fictione-, ato de modelar, formao, criao, ao qual foi acrescentado o sentido figurado, ato de fingir, fico; suposio, hiptese ( MACHADO, 1989, v. 3, p. 43). Parece-nos que a dissertao que mais se preocuparia com os aspectos formais da composio do discurso seria a segunda, o que a credenciaria a ser uma dissertao da rea de Letras. O que no corresponde realidade, pois se trata de um trabalho historiogrfico. J a primeira dissertao, esta sim, da rea de Letras, no destaca a preocupao com o texto enquanto criao. O que no significa que esteja fora dos pressupostos metodolgicos para o exame do texto literrio, nos quais se incluem a abordagem temtica textual/contextual. Por outro lado, sabemos que os historiadores dos Annales, desde os seus primrdios, como March Bloch e Lucien Febvre, j consideravam os estudos lingsticos como importantes auxiliares da historiografia. E a perspectiva hermenutica continua a vigorar nos estudos das reas em questo. Seria ento a especificidade de cada rea marcada apenas pela predominncia do enfoque no texto enquanto documento ou enquanto monumento? Vejamos ainda mais alguns exemplos, dos muitos que se arrolam no citado Catlogo: 1) As cantigas de Santa Maria; um estilo gtico na lrica ibrica tese de Doutorado de Bernardo Monteiro de Castro, orientada por ngela Vaz Leo no PPGL da PUCMinas, 2002): Considerando o estilo gtico como uma forma nova de apresentar o espao, o tempo, Deus, a natureza e o si mesmo, a tese busca estudar as Cantigas de Santa Maria de D. Afonso X, o Sbio, como uma obra literria gtica (MACEDO, 2003, p. 52). 2) A mulher e o discurso popular em Gil Vicente dissertao de Mestrado (de Maria Cristina Souza Brito, orientada por Maria do Amparo Tavares Maleval no PPGL da UFF, 1993) que constitui um estudo da condio da mulher do povo que aparece na dramaturgia de Gil Vicente, sobretudo na Farsa de Ins Pereira. Para isso, avaliam-se manifestaes da cultura popular medieval presentes no discurso das personagens, tais como ditos populares e provrbios (MACEDO, 2003, p. 47). 3) A cena admoestatria: Gil Vicente e a poesia poltica de corte na Baixa Idade Mdia tese de Doutorado (de Alexandre Soares Carneiro, orientada por Antnio Alcyr Bernardz Pcora, no IEL da UNICAMP, 1997) que um estudo do modo de constituio de significados polticos na obra de Gil Vicente, observando a instituio monrquica. Para tanto, consideram-se as referncias de que se nutre a obra: por um lado, a importncia da cultura do perodo, de uma reflexo de natureza tico-poltica; por outro, a recuperao inventiva dos temas, modelos e lugares-comuns da poesia poltica da Baixa Idade Mdia operada pelo autor (MACEDO, 2003, p. 51). 4) A rvore imperial: um espelho de prncipes na obra de Ramon Llull (1232?-1316?) tese de Doutorado (de Ricardo Luiz Silveira da Costa, orientada por Guilherme Pereira das Neves, no PPGH da UFF) que realiza anlise e interpretao da obra denominada rvore imperial, escrita por Ramon Llull, inserida no stimo captulo do tratado rvore da cincia (1295-1296). Adotando a hermenutica como metodologia, o estudo propes 39

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a idia de que a rvore imperial era um espelho de prncipes de cunho reformador e moralista, um programa social de conduta tica destinado ao rei cristo (MACEDO, 2003, p. 56). Novamente poderamos confundir as reas em que esses trabalhos se inscrevem, sendo apenas o ltimo produzido no mbito de um Programa de Ps-graduao em Histria, mas lanando mo do mtodo hermenutico, assentado na interpretao do sentido das palavras. Portanto, a questo inicial permanece sem resposta, uma vez que trabalhos acadmicos das duas disciplinas, Letras e Histria, tendem a se confundir. Quais sero as conseqncias futuras deste fato outra pergunta irrespondvel. Como falamos anteriormente, tambm vrios projetos de pesquisa dos membros do GT de Estudos Medievais da ANPOLL realizam estudos interdisciplinares. No I Encontro do GT de Estudos Medievais, que se realizou no Instituto de Letras da UERJ de 28 a 30 de novembro de 2005, foram justamente debatidos os mtodos de exame do texto medieval na rea de Letras. Inclusive, em mesa-redonda dialogaram professores-pesquisadores das reas de Letras e Histria, Roberto Aczelo de Souza, da UERJ, e Mrio Jorge da Motta Bastos, da UFF, respectivamente. E nele foi lanando o livro Maravilhas de So Tiago. Narrativas do Lber Sancti Jacobi (Codex Calixtinus (MALEVAL, 2005), Trata-se de uma obra que tanto serve ao exame da narrativa hagiogrfica por um historiador quanto por um crtico literrio, e que apresenta estudo introdutrio de feio muito mais historiogrfica que literria, embora a autora seja da rea de Letras. Para terminar, gostaria de ressaltar o pioneiro papel da UFRJ na aproximao de docentes das duas reas em seu Programa de Psgraduao em Histria. Nem podemos nos esquecer que aos seus quadros pertenceu a Profa. Dra. Maria Elisabeth Graa de Vasconcellos, oriunda do Curso de Letras, setor de Literatura Portuguesa. Deixou um fecundo rastro de mais de uma dezena de trabalhos terminais de Ps-Graduao, que orientou. Essa prtica continua ainda hoje, quando o referido Programa inclui em seu corpo docente o Prof. Dr. lvaro Alfredo Bragana Jr. Oxal outras instituies tivessem a mesma sabedoria, para que pudssemos atuar interdisciplinarmente de forma mais eficaz e proveitosa.
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SOBRE OS ESTUDOS MEDIEVAIS NA REA DE LETRAS (NO BRASIL) LEO, ngela Vaz. As cantigas de Santa Maria na PUC Minas (Belo Horizonte). In MALEVAL, Maria do Amparo T. (Org.) Estudos galegos 5. Niteri: EdUFF, 2004, p. 309-317. MACEDO, Jos Rivair de (Org.). Os estudos medievais no Brasil. Catlogo de dissertaes e teses: Filosofia, Histria, Letras (1990-2002). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. MACHADO, Jos Pedro. Dicionrio etimolgico da lngua portuguesa. 5. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1989. Vol. III. MAGNE, Augusto. A demanda do Santo Graal. Rio de Janeiro: MEC / INL, 1944. ____. ____. 2. ed. revista e ampliada, com fac-smile do cdice 2594 da Biblioteca Nacional de Viena. Rio de Janeiro: MEC / INL, 1955-1970 - 2 volumes de texto e 1 volume do glossrio inconcluso (letras A a D), publicado em 1967. ____. Boosco deleitoso solitrio. V. I. Rio de Janeiro: MEC / INL, 1950. ____. Castelo perigoso. Revista Filolgica, V. IV, p 15, 1942. ____. ____. n. 18, 1942. ____. ____. Revista Verbum, n. 2, 1945 ____. ____. n. 3, 1946. MALER, Bertil. Orto do Esposo. V. I texto crtico; V. II, comentrios. Rio de Janeiro: MEC / INL, 1956. ____. ____. V. III - correes dos vols. I e II, estudos das fontes e do estado da lngua, glossrio, lista dos livros citados e ndice geral. Estocolmo. Universidade, 1964. MALEVAL, Maria do Amparo T. Rastros de Eva no imaginrio ibrico (sculos XII a XVI). Santiago de Compostela: Laiovento, 1995. ____. Poesia medieval no Brasil. Rio de Janeiro: Agora da Ilha, 2002. ____. Maravilhas de So Tiago. Narrativas do Liber Sancti Jacobi (Codex Calixtinus). Niteri: EdUFF, 2005. MEGALE, Heitor. A demanda do Santo Graal. Texto modernizado. So Paulo: T. A Querirz Ed / EDUSP, 1988. MOISS, Massaud. A novela de cavalaria no Quinhentismo portugus. O Memorial das proezas da segunda Tvola Redonda, de Jorge Ferreira de Vasconcelos. So Paulo: FFCL-USP, Boletim 13, Literatura Portuguesa, 1957. ____. As estticas literrias em Portugal. Lisboa: Caminho, 1997. V. I: Sculos XIV a XVIII. MONGELLI, Lnia Mrcia de M., VIEIRA, Yara Frateschi. (Dir.) A esttica medieval. Cotia: bis, 2003. MONGELLI, Lnia Mrcia de M. Por quem peregrinam os cavaleiros de Artur. Cotia: bis, 1995. SILVA, Rosa Virgnia Mattos e. Estruturas trecentistas. Elementos para uma gramtica do portugus arcaico. Lisboa: IN/CM, 1989. SILVA NETO, Serafim. Textos medievais portugueses e seus problemas. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1955. ____. A Bblia medieval portuguesa. Rio de Janeiro: MEC / INL, 1958. ____. A mais antiga verso conhecida da Regra de So Bento. Revista Brasileira de Filologia, n. 5, p. 21-46. 1959-1960. SILVEIRA, Souza da. Dois Autos de Gil Vicente o da Mofina Mendes e o da Alma, 3 ed. acrescida com o fac-smile dos autos da edio prncipe de 1562. Estudo prvio de Cleonice Berardinelli e Prefcio de Maximiano de Carvalho e Silva. Rio de Janeiro: MEC / Fundao Casa de Rui Barbosa, 1973. SOUZA, Roberto Aczelo Quelha de. Teoria da literatura. 9 ed. So Paulo: tica, 2004.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS ____. A questo do mtodo nos estudos literrios. Conferncia indita pronunciada no I Encontro do GT de Estudos Medievais da ANPOLL. Rio de Janeiro, UERJ, 2005. Mimeo. SPINA, Segismundo. Do formalismo esttico trovadoresco. So Paulo: FFCl / USP, 1966. ____. As cantigas de Pero Mafaldo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. ____. A lrica trovadoresca. So Paulo: EDUSP, 1991. VEIGA, Albino de Bem. Virgeu de consolaon. Salvador: UFBa, 1959. VIEIRA, Yara Frateschi. Em cas Dona Maior. Os trovadores e a corte senorial galega no sculo XIII. Santiago de Compostela: Laiovento, 1999. _______(Org.). Glosas marginais ao Cancioneiro medieval portugus de Carolina Michaelis de Vasconcelos. Coimbra: Universidade, Santiago de Compostela: USC, Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. WELLEK, Ren, WARREN, Austin. Teoria da literatura. Lisboa: Europa-Amrica, 1962. WOENSEL, Maurice van. Carmina Burana: canes de Beuern. Ed. bilnge, com introduo e notas. Apresentao de Segismundo Spina. So Paulo: Ars Poetica, 1994. ____. Simbolismo animal na Idade Mdia: os bestirios um safri literrio procura de animais fabulosos. Joo Pessoa: Ed. Universitria UFPB, 2001. ____. VIANA, Chico. Poesia medieval ontem e hoje. Joo Pessoa: CCHLA UFPB, 1998. Notas 1 A ABREM tem publicado os seguintes ttulos: uma revista, Signum, anual, com sete nmeros publicados; um jornal semestral virtual, anteriormente impresso; Atas dos 5 (cinco) Encontros Internacionais de Estudos Medievais j realizados; e dois importantes livros coletivos: Fontes primrias da Idade Mdia. Sculos V-XV (MONGELLI, 1999); e o j referido Os estudos medievais no Brasil. Catlogo de dissertaes e teses. Filosofia, Histria, Letras (1990-2002) (MACEDO, 2003). 2 J foram realizados seis Encontros Internacionais da ABREM: em 1995, na USP; em 1997, na UFRGS; em 1999, na UERJ; em 2001, na PUC Minas; em 2003, na UFBa; em 2005, na UEL. O stimo Encontro dever ser realizado em 2007, na UFC. Alm desses Encontros, vm sendo oferecidos cursos semestrais de extenso, abertos cumunidade. 3 A criao da ABREM foi projetada em 1995 e oficializada, juridicamente, em 1996. 4 Dentre elas, podemos citar: Boosco deleitoso solitrio, vol. I (1950); Castelo perigoso (1942- 1945), etc. 5 Em texto indito da conferncia A questo do mtodo nos estudos literrios, proferida no I Encontro do GT de Estudos Medievais da ANPOLL, realizado no Instituto de Letras da UERJ de 28 a 30/11/2005. 6 A bibliografia aqui referida se restringiu a apenas algumas obras dos autores arrolados, no mximo trs ttulos, por motivo da necessria limitao de pginas desta publicao.

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Panorama da msica medieval no Brasil


Lenora Pinto Mendes*

eviver a msica medieval parte de um movimento de resgate da chamada msica antiga. Esse movimento, desde o seu incio difunde a idia de reviver a msica de outras pocas com instrumentos de poca e com o estilo prprio de cada poca. O termo ingls Early Music foi traduzido em muitas lnguas (musique ancienne, alte musike etc.) A traduo portuguesa Msica Antiga deixa margem para confuses, pois em histria remete ao perodo da antiguidade clssica o que certamente no consiste na msica que se busca resgatar uma vez que a msica da Antiguidade sobreviveu apenas em poucos fragmentos sem indicao de ritmo ou altura precisa de notas. O movimento de resgate da msica antiga tem por objeto de estudo a msica medieval, renascentista, barroca e mesmo o do perodo clssico. O pioneiro deste movimento foi Arnald Dolmetsch que nasceu na Frana em 1858, numa famlia de msicos e construtores de instrumentos. Em 1878 passou a viver em Londres (CAMPBELL, 1995). Em 1889, quando procurava msicas para viola damore na Britsh Library encontrou as fantasias inglesas para viola da gamba. Comeou ento a adquirir e restaurar instrumentos antigos os quais tocou com sua famlia e alunos. Durante o ano de 1890 organizou concertos em sua prpria casa utilizando instrumentos antigos e sempre trazia novas descobertas de msicas tiradas de manuscritos ou de edies antigas. Depois de restaurar muitos instrumentos antigos Dolmetsch comeou a fabric-los. Construiu seu primeiro alade em 1893, um clavicrdio em 1894 e um cravo em 1896. Em 1917 aps perder uma flauta doce barroca Bressan, original, comeou a construir flautas tambm sob uma especificao barroca. Em 1926 j tinha reconstrudo toda uma famlia de flautas doces (CAMPBELL, 1980, vol. 5). A partir de Dolmetsch o movimento se espalhou para a Europa e tambm para a Amrica iniciando pelos Estados Unidos onde era admirado e respeitado. At ento, porm, no se falava em msica medieval, o repertrio difundido por Dolmetsch consistia em msicas do renascimento e barroco. A primeira notcia que temos de uma apresentao envolvendo msica da Idade Mdia aconteceu nos Estados Unidos em 1958 quando o New York Pro Msica, dirigido por Noah Greemberg, colocou no palco o drama litrgico medieval The Play of Daniel (STEINBERG, 1980, vol. 7). Depois da morte
Pesquisadora da Universidade Federal Fluminense.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

de Noah Greenberg outros grupos surgiram entre eles o New York Consort of Viols, dirigido por Judith Davidoff e Music for a While dirigido por La Noe Davenport. Esses dois importantes msicos e professores, exintegrantes do New York Pro Musica, iniciaram no Sarah Lawrence College um programa em nvel de mestrado que oferecia especializao em msica medieval e renascentista. No Brasil o movimento de resgate da msica antiga comeou na dcada de 40 do sculo XX com a vinda de msicos europeus fugidos da segunda guerra. Ao chegarem ao Brasil comearam a formar grupos musicais dedicados ao repertrio do passado. importante notar, no entanto que a msica medieval tambm no fazia parte dos programas destes grupos. Dentre os mais importantes devo citar o Conjunto de Msica Antiga da Radio MEC, dirigido por Borislav Tschorbov e o Conjunto Roberto de Regina, dirigido pelo prprio. Os primeiros grupos, que temos conhecimento que comearam a utilizar o repertrio medieval aqui no Brasil foram a Banda Antiqua e o Quadro Cervantes (no Rio) e o conjunto Musikantiga de So Paulo (AUGUSTIN, 1999, p. 42-55). Devido ao difcil acesso a instrumentos prprios, esses grupos ainda utilizavam instrumentos renascentistas (e at mesmo barrocos!) para a interpretao da msica medieval. Na dcada de 80 comearam a surgir no Brasil outros conjuntos musicais que comearam a se especializar no repertrio medieval desta vez com instrumentos mais adequados. Entre os mais importantes devo citar inicialmente o Conjunto de Msica Antiga de Curitiba, dirigido por Roberto de Regina, seguido pelo Studium Musicae tambm em Curitiba, o Conjunto de Cmara de Porto Alegre e o Msica Antiga da UFF. O Msica Antiga da UFF, fundado em 1981, desde o seu incio tem se dedicado ao repertrio medieval e renascentista. Fiel ao movimento de resgate da Msica Antiga, se utiliza de instrumentos de poca que na verdade so cpias de instrumentos antigos. No caso dos instrumentos medievais em que nenhum instrumento sobreviveu, essas cpias so feitas baseadas na iconografia (sendo o manuscrito das Cantigas de Santa Maria uma importante fonte de informao da variedade de instrumentos utilizados na Idade Mdia) e em prticos de igrejas (o Prtico da Glria da Catedral de Santiago de Compostela tem sido objeto de estudos pela variedade de instrumentos de cordas que aparece nas mos dos ancios do apocalipse). Em 1987 trs de seus integrantes foram para os Estados Unidos cursar o mestrado no Sarah Lawrence College. L tiveram um contato bem mais profundo com o repertrio medieval e inclusive com o instrumental prprio para a msica deste perodo. Instrumentos foram adquiridos, msicas, incluindo o rico repertrio das Cantigas de Santa Maria que passou a fazer parte (e no deixou mais) dos programas desenvolvidos pelo Msica Antiga da UFF. Em 1997, com o patrocnio da Xunta da Galicia, atravs do Ncleo de Estudos Galegos da UFF, dirigido pela professora Maria do Amparo Maleval, lanam o primeiro CD contendo msicas medievais intitulado Cnticos de Amor e Louvor. Nele esto gravadas as sete cantigas de amigo do trovador galego portugus Martim Codax alm do prlogo e de cinco cantigas de louvor de Santa Maria. Em 1999 tambm com o patrocnio da Xunta da Galicia, desta vez atravs do Programa de Estudos Galegos
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PANORAMA DA MSICA MEDIEVAL NO BRASIL

da UERJ, tambm dirigido pela professora Maria do Amparo, gravam o CD Annua Gaudia, com msicas medievais do Caminho de Santiago de Compostela. O Msica Antiga da UFF gravou ainda mais um CD com msicas medievais - A Chantar, com msicas atribudas mulheres trovadoras alm de danas medievais. Quanto ao aspecto da formao acadmica at hoje as dificuldades so muitas, pois praticamente no existem cursos de formao em msica medieval. Em So Paulo e no Sul existem alguns cursos de flauta doce em nvel de graduao onde se estuda o repertrio barroco e talvez um pouco do renascentista. A msica medieval, porm, ainda no foi contemplada pelas universidades e escolas de msica do Brasil. No entanto desde o incio da dcada de 80 cursos tm sido oferecidos em festivais de frias inicialmente em Curitiba, depois no Rio de Janeiro e em Juiz de Fora. Um convnio com a AFAA tem proporcionado a vinda de muitos professores da Frana, especializados no repertrio medieval para esses cursos de frias, suprindo um pouco a ausncia de cursos oficiais. Entre os mais importantes que vieram ao Brasil citamos Pierre Hamon do grupo francs A la Francesca e Marcel Perez do grupo medieval Ensemble Organum. A partir desses cursos, outros grupos surgiram aqui no Brasil que se dedicam ao repertrio medieval ente eles devo citar o ATempo cujos integrantes se especializaram na Frana. O repertrio medieval sobreviveu em diversos manuscritos. A notao utilizada foi a chamada notao quadrada ou gregoriana que at final do sculo XIII ainda no indicava o ritmo das notas. Ao final do sculo XIII surgiram alguns tratados que buscavam estipular regras rtmicas para esta notao. Dentre os mais importantes citamos o tratado de Franco de Colnia e o de Johannes de Garlandia. Ao interpretar, porm um manuscrito de uma Cantiga de Santa Maria ou das Cantigas de Amigo de Martin Codax no se pode falar de preciso rtmica. A leitura musical deste repertrio simples do ponto de vista meldico, pois uma das grandes invenes medievais foi justamente a pauta musical inventada no sculo XI pelo monge Guido DArezzo. Quanto ao ritmo as incertezas so muitas o que leva muitos musiclogos a deixar de lado esse repertrio por consider-lo corrupto e ilegvel. Grande parte do repertrio medieval j recebeu algum tipo de edio graas a um enorme esforo musicolgico ocorrido no incio do sculo XX (KERMAN, 1985, p.56). As Cantigas de Santa Maria foram editadas em sua totalidade pelo musiclogo catalo Higino Angls entre os anos de 1943 e 1964 (ANGLS, 1943), as Cantigas de Amigo de Martin Codax tambm receberam edio do musiclogo portugus Manuel Pedro Ferreira em 1986 (FERREIRA, 1986) mas ao interpretarmos esse repertrio no podemos abrir mo de uma consulta ao fac-smile j que as interpretaes rtmicas no so precisas e o que fazemos. Levando em conta as regras estabelecidas por Franco de Colnia e Johannes de Garlandia, procuramos dar uma interpretao rtmica que, ao nosso ver seria a mais indicada. Ultimamente tm surgidos no Brasil grupos musicais que buscam estabelecer algum tipo de ligao da Msica Antiga com a msica brasileira. Esta tendncia, devo dizer, tambm no inveno nossa. Pelo menos nos Estados Unidos posso afirmar que esse tipo de movimento j existia na dcada 45

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

de 80 e era chamado de crossing over. O ltimo CD gravado pelo Msica Antiga em 2004, busca mostrar uma srie de confluncias entre a msica da Idade Mdia e a msica tradicional do Brasil. No CD Medievo-Nordeste foram gravadas Cantigas de Santa Maria e canes sefaraditas ao lado de romances e canes recolhidos no nordeste e centro oeste do Brasil. H algum tempo j vnhamos recolhendo msicas do folclore brasileiro que de alguma maneira traziam na letra ou na msica traos tipicamente medievais e vice-versa, msicas medievais que de alguma maneira traziam na letra ou na msica caractersticas encontradas na msica brasileira. Numa aldeia do litoral do Rio Grande do Norte, mulheres de pescadores cantam romances que falam de reis, prncipes e princesas. A questo da longa durao das estruturas mentais tem sido abordada por diversos historiadores da Nova Histria. Michel Vovelle, em seu livro Ideologias e Mentalidades coloca a mentalidade como um campo privilegiado da longa durao e esclarece que os traos de um comportamento perduram, com inrcia real at nossos dias, quando as prprias condies iniciais desaparecem (VOVELLE, 2004, p. 271 e 289). No Brasil existem alguns estudos que tentam relacionar a cantoria nordestina ao trovadorismo medieval. Dentre eles citaria o artigo intitulado Msica popular brasileira a cantoria: uma arte com origens medievais de Yvonne de Athaide Grubenmann editado nas atas do V Colquio Internacional de Estudos Luso-brasileiros, Coimbra 1966 e outros mais recentes tais como o livro de Elba Braga Ramalho intitulado Cantoria Nordestina: msica e palavra editado em 2000. Quanto ao aspecto musical a professora Ermelinda Paz, da UFRJ abordou em seu livro O modalismo na msica Brasileira a questo da origem europia dos modos utilizados na msica folclrica brasileira (PAZ, sem data). Faz um levantamento dos modos medievais presentes na msica tradicional do Brasil e expe algumas opinies de importantes estudiosos e compositores brasileiros; uns concordando com a origem medieval destes modos e outros discordando e colocando outras hipteses tais como a possibilidade de influncia rabe ou uma suposta inveno nacional. Acredito que a dificuldade dos musiclogos brasileiros em admitirem uma influncia medieval na msica brasileira modal exista por falta de conhecimento do universo, arte e msica medievais, principalmente da Pennsula Ibrica que nos influenciou diretamente. O fato que ao estudar o repertrio das Cantigas de Santa Maria alm de outros repertrios trovadorescos, e tambm o cancioneiro sefaradita, vemos muitos traos, tanto musicais quanto textuais, que permaneceram aqui seja na msica, seja nas histrias cantadas nos romances ou nos cordis. No CD Medievo Nordeste trazemos um pouco destas msicas e histrias mostrando que a Idade mdia est mais perto de ns do que costumamos pensar.
Bibliografia ANGLS, Higino. La msica de las cantigas de Santa Maria del Rey Alfonso X El Sabio. Barcelona: Biblioteca Central, 1943. V. II - transcripcin musical. AUGUSTIN, Kristina. Um olhar sobre a msica antiga. So Paulo: Imprensa da F, 1999. CAMPBELL, Margaret. Authenticity reborn: Dolmetsch the violinist. The Strad, 46

PANORAMA DA MSICA MEDIEVAL NO BRASIL maio, 1995. ___. Dolmetsch. In: The New Grove Dictionary of Music an Musician. London: Macmillan Publishers Limited, 1980. V. 5. FERREIRA, Manuel Pedro. O som de Martin Codax. Lisboa: Imprensa NacionalCasa da Moeda, 1986. KERMAN, Joseph. Musicologia. So Paulo: Martin Fontes, 1985. STEINBERG, Michael. Greemberg, Noah. In: The New Grove Dictionary of Music an Musician. London: Macmillan Publishers Limited, 1980. V. 7. VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. So Paulo: Brasiliense, 2004. PAZ, Ermelinda A. O Modalismo na msica brasileira. Braslia: Cidade Grfica e Editora, s. d.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Realeza e ideologia episcopal em Gregrio de Tours: os Decem Libri Historiarum VI, 46


Marcelo Cndido da Silva

Introduo Em um colquio internacional ocorrido no final dos anos 1980, o historiador alemo K.F. Werner sustentou que o papel de Gregrio de Tours nos trabalhos sobre o perodo franco era excessivo; seria necessrio, segundo ele, retirar a histria franca do controle do bispo de Tours (K.F. Werner, 1989, pp.XIII-XXXI). Essa uma tarefa difcil. Boa parte das informaes disponveis sobre a Glia merovngia, sobretudo no que se refere ao sculo VI, deve-se aos escritos do bispo de Tours. Em uma poca na Glia onde a produo historiogrfica se resumia na maior parte do tempo a crnicas de eventos cujo alcance raramente ultrapassava os limites regionais, Gregrio foi um inovador: com os Decem Libri Historiarum (os Dez Livros de Histria), ele pretendeu escrever uma histria universal. Mas na prpria natureza dessa histria universal que reside a raiz das crticas dos historiadores aos Decem Libri Historiarum: segundo A.H.B. Breukelaar, por exemplo, esse texto constituiria um artefato literrio, um instrumento para o estabelecimento e para a legitimao do poder episcopal na Glia, atravs da qual teria sido expresso o monoplio episcopal sobre o sagrado e sobre as relaes polticas. Em suma, a obra de Gregrio seria um manual destinado a servir e a confortar as posies dos bispos (A.H.B. Breukelaar, 1996, p. 227). Nesse sentido, se os Decem Libri Historiarum apresentam efetivamente uma viso deformada dos eventos com o intuito de demonstrar a retido do posicionamento dos bispos, eles constituiriam apenas um testemunho episcopal da idia de Realeza Crist no final do sculo VI, e no uma fonte para o estudo da monarquia franca nesse mesmo perodo. O objetivo desse trabalho refletir sobre o significado e o alcance dessa obra, tentando identificar na mesma, alm de uma dimenso ideolgica, elementos para o estudo da histria poltica do sculo VI. Para tanto, proceder-se- anlise detalhada do captulo 46 do livro VI dos Decem Libri Historiarum, que descreve a morte do rei Chilperico. O autor Georgius Florentius Gregorius nasceu na cidade de Clermont (atual Clermont-Ferrand, capital do departamento francs da Alvrnia), no dia 30 de
Professor da Universidade de So Paulo/UMR 5648 Lyon 48

REALEZA E IDEOLOGIA EPISCOPAL EM GREGRIO DE TOURS: OS DECEM LIBRI...

novembro de 538, e tornou-se bispo da cidade de Tours em 573. Pertencia a uma famlia de origem senatorial com uma longa tradio de servio ao Imprio e Igreja Catlica. Era parente do ltimo imperador galo-romano, Avitus; seu predecessor no episcopado de Tours era primo de sua me; alm disso, um de seus ancestrais estava entre os primeiros mrtires cristos da Glia, que foram assassinados em Lyon no ano de 177. Graas posio que ocupava no seio da hierarquia eclesistica, Gregrio de Tours foi um espectador privilegiado da sociedade franca; conviveu com muitos dos personagens descritos em sua obra, reis, santos, mrtires. Sua s episcopal era, tambm, o centro do culto a So Martinho (m. 397), o santo padroeiro da dinastia merovngia. Gregrio escreveu vrias obras: os Septem libri miraculorum, dedicados aos milagres de santos; um livro contendo 20 vitae de santos personagens (Liber vitae Patrum); um comentrio dos Salmos (In Psalterii tractatum commentarius); um texto contendo uma descrio das posies das estrelas para orientar os cristos em suas preces litrgicas (De Cursu Stellarum ratio). Ele escreveu tambm uma edio prefaciada das missas de Sidnio Apolinrio; um livro sobre os milagres do Apstolo Andr (Liber de miraculus beati Andrae apostoli) e um outro sobre a Paixo dos sete dormentes de feso (Passio sanctorum Martyrum Septem Dormientium apud Ephesum). Contudo, foi atravs dos Decem Libri Historiarum que ele se tornou conhecido ao longo do perodo medieval e entre os historiadores modernos. A obra Como mostrou M. Heinzelmann, os Decem Libri Historiarum foram ordenados e editados por Gregrio pouco antes de sua morte, em 594 (Heinzelmann, 2001, pp. 96-102). Essa obra, tambm chamada de Histrias, compe-se de 443 captulos distribudos em 10 livros. O primeiro livro, com 48 captulos, comea com a criao da Igreja pelo Cristo (que o autor coloca em paralelo com a Criao do mundo por Deus) e termina com a morte de So Martinho de Tours, em 397. O segundo livro, que comea a abordar mais detalhadamente a histria dos reis francos e da Igreja da Glia, com 43 captulos, se estende desde o advento de Brcio, sucessor de So Martinho, at a morte de Clvis, em 511. Os oito livros restantes tratam dos reinados dos filhos e dos netos de Clvis no perodo compreendido entre 511 e 591. O terceiro livro (37 captulos) se prolonga at a morte de Teodeberto I, em 548. O quarto, e tambm o mais longo pelo nmero de captulos (51), termina com a morte do rei Sigeberto, em 575. A partir do quinto livro, o relato torna-se cada vez mais minucioso. Os livros VI, VII, VIII, IX e X, por exemplo, cobrem um perodo de apenas 11 anos, entre 580 e 591 (M. Cndido da Silva, 2002, pp.137-160). O Livro VI, que ser o objeto deste trabalho, possui 46 captulos e termina com a descrio da morte de Chilperico, ocorrida em 584. Gregrio e Chilperico Mas quem o personagem cuja morte descrita pelo bispo de Tours no captulo acima mencionado? Filho do rei Clotrio I (m.561) e da rainha 49

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Aregonda (c.520-c.580), Chilperico nasceu por volta de 537. Em 561, com a morte de seu pai, herdou o regnum cuja capital era a cidade de Soissons. Aps repudiar sua esposa Audovera (m.580), em 564, Chilperico se casou com Galswinta (m. 564), cuja irm, Brunilda (m.613), tinha esposado o rei franco Sigeberto (m.573) meio-irmo de Chilperico. O assassinato de Galswinta, cuja responsabilidade foi imputada a Chilperico, bem como as desavenas em torno da herana de Clotrio I, desencadearam uma srie de conflitos entre os reis francos que no terminaram com o assassinato de Chilperico, em 584. Entre todos os descendentes de Clvis, Chilperico aquele que dispe da pior reputao entre os historiadores modernos, e isso graas descrio feita pelo bispo de Tours nos Decem Libri Historiarum. G. Tessier, por exemplo, afirma que os sentimentos pessoais de Gregrio podem ter interferido no retrato sem nenhuma indulgncia que esse ltimo estabelece do rei franco, mas acredita que esse retrato corresponde de um modo geral personalidade de Chilperico (G. Tessier, 1964, p.192). As anlises mais recentes de W. Goffart e de M. Heinzelmann, ao chamarem ateno para o contedo ideolgico presente na obra de Gregrio, permitiram que se duvidasse da verossimilhana de alguns aspectos da descrio negativa de Chilperico. No entanto, essas anlises tambm lanaram certo descrdito sobre o papel dos Decem Libri Historiarum na escrita da histria da monarquia franca. Um manual destinado a servir e confortar a posio do episcopado no seria o texto mais seguro e objetivo a partir do qual reconstituir as relaes de poder na Glia da segunda metade do sculo VI. Nas pginas seguintes, buscar-se- discutir os problemas e os limites da utilizao desse texto pelos historiadores. Segue abaixo a integralidade do texto em latim do captulo 46, livro VI dos Decem Libri Historiarum, seguido de uma traduo:
His itaque cum haec praeda pergentibus, Chilpericus, Nero nostri temporis et Herodis, ad villam Calensim, quae distat ab urbe Parisiaca quasi centum stadiis, accedit ibique venationes exercit. Quandam vero die regressus de venatione iam sub obscura nocte, dum de equo susceperitur et unam manu super scapulam pueri reteniret, adveniens quidam eum cultro percutit sub ascellam iteratoque ictu ventrem eius perforat; statimque profluente cupia sanguinis tam per os quam per aditum vulneris, iniquum fudit spiritum. Quam vero malitiam gesserit, superior lectio docet. Nam regiones plurimas sepiuss devastavit atque succendit; de quibus nihil doloris, sed letitia magis habebat, sicut quondam Nero, cum inter incendia palatii tragidias decantaret. Persaepe hominis pro facultatibus eorum eniuste punivit. In cuius tempore pauci quodammodo episcopatum clerici meruerunt. Erat enim gulae deditus, cuius deus venter fuit. Nullumque sibi adserebat esse prudentiorem. Conficitque duos libros, quasi Sidulium meditatus, quorum versiculi debilis nullis pedibus subsistere possunt, in quibus, dum non intellegebat, pro longis sillabas breves posuit et pro breves longas statuebat, et alia opuscula vel ymnus sive missas, quae nulla ratione suscipi possunt. Causas pauperum exosas habebat. Sacerdotes Domini assiduae blasphemabat, nec aliunde magis, dum sacricius esset, 50

REALEZA E IDEOLOGIA EPISCOPAL EM GREGRIO DE TOURS: OS DECEM LIBRI... exercebat ridicola vel iocos quam de eclesiarum episcopis. Illum ferebat levem, alium superbum, illum habundantem, istum luxuoriosum; illum adserebat elatum, hunc tumidum, nullum plus odio quam eclesias sunt translatae; nulli penitus nisi soli episcopi regnant; periet honor noster et translatus est ad episcopus civitatum. Haec agens, adsiduae testamenta, quae in eclesias conscripta erant plerumque disrupit, ipsasque patris sui praeceptiones, potans, quod non remanerit qui voluntatem eius servaret, saepe calcavit. Iam de libidine atque luxoria non potest repperire in cogitatione, quod non perpetrasset in opere, novaquae semper ad ledendum populum ingenia perquaerebat; nam, si quos hoc tempore culpabilis repperisset, oculos eis iobebat erui. Et in praeceptionibus, quas ad iudicis pro suis utilitatibus dirigebat, haec addebat: Si quis praecepta nostra contempserit, oculorum avulsione multetur. Nullum umquam pure dilexit, a nullo dilectus est, ideoque, cum spiritum exalasset, omnes eum reliquerunt sui. Mallulfus autem Silvanectensis episcopus, qui iam tertia die in tenturio resedebat et ipsum videre non poterat, ut eum interemptum audivit, advenit; ablutumque vestimentis melioribus induit, noctem in hymnis deductam, in nave levavit et in basilica sancti Vicenti, quae est Parisius sepelivit, Fredegunde regina in ecclesia derelicta. Enquanto essas pessoas prosseguiam sua rota com seu esplio, Chilperico, o Nero e o Herodes de nosso tempo, vai at a villa de Chelles, que se encontra a cerca de cerca de cem estdios de Paris, e se exerce na caa. Quando um dia regressava da caa sob uma noite obscura, e descia do cavalo apoiando uma mo sobre os ombros de um servo, veio um homem que o atingiu com uma faca sob a axila e com um outro golpe perfurou seu ventre; imediatamente, jorrou sangue pelos ferimentos e sua alma inqua se foi. O mal que fez, o texto que precede o mostra. Devastou e incendiou inmeras regies, e no sentia nenhuma dor por isso, ao contrario, ficava alegre, tal como Nero em outros tempos, que cantava tragdias durante os incndios de seu palcio. Puniu vrios homens de maneira injusta. Em seu tempo, poucos clrigos obtiveram o episcopado. Era um gluto cujo deus era o ventre. Pretendia que ningum era mais sbio do que ele. Comps dois livros, imitao de Sedulius, cujos versos dbeis no podem permanecer de p em sua ignorncia, colocou as silabas breves no lugar das longas e as longas no lugar das breves e opsculos, hinos e missas que no podem ser aceitas sob nenhuma razo. Ele tinha averso aos interesses dos pobres. Blasfemava assiduamente contra os sacerdotes do Senhor, e quando estava entre os seus, nada lhe era mais agradvel do que ridicularizar e pilheriar os bispos das igrejas. Ele dizia que um era desenvolto, o outro vaidoso, um outro excessivo e um outro luxurioso; pretendia que um era altaneiro, o outro orgulhoso; no havia nada que odiasse mais do que as igrejas. Pois em efeito dizia na maior parte do tempo: Eis que nosso fisco permanece pobre, eis que nossas riquezas so transferidas s igrejas; ningum reina mais, somente os bispos; nosso poder (honor) morreu e foi transferido aos bispos das cidades. Enquanto afirmava isso, os testamentos redigidos em benefcio das igrejas eram na maior parte do tempo violados, e ele pisava freqentemente os preceitos de seu pai, pensando que no restava ningum para fazer respeitar suas vontades.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS No que se refere depravao e luxria, no se pode encontrar em pensamento algo que no tenha perpetrado na realidade, e ele buscava sempre com zelo novas formas para incomodar as pessoas; desse modo, se em seu tempo descobrisse culpados, seus olhos eram arrancados. E nos preceitos que dirigia aos juzes para seus prprios interesses, ele acrescentava: Se algum viola nossos preceitos, a pena deve ser ter os olhos arrancados. Ele jamais amou algum de maneira pura e no foi amado por ningum; eis porque, quando exalou seu ltimo suspiro, todos o abandonaram. Mallulfus, bispo de Senlins, que o esperava em vo por uma audincia h trs dias em sua tenda, veio assim que soube de seu assassinato. Aps t-lo lavado, ele o vestiu com suas melhores roupas e, tendo passado a noite a contar hinos, ele o colocou em um navio e o enterrou na Baslica de So Vicente, em Paris, enquanto a rainha Fredegonda permanecia sozinha na catedral.

Na primeira frase, Gregrio faz referncia ao casamento da filha de Chilperico, a princesa Rigonta com o rei visigodo Recaredo, evento descrito por ele no captulo anterior: Enquanto essas pessoas prosseguiam sua rota com seu esplio, Chilperico, o Nero e o Herodes de nosso tempo, vai at a villa de Chelles, que se encontra a cerca de cerca de cem estdios de Paris, e se exerce na caa. As pessoas que ele menciona tinham sido encarregadas por Chilperico de conduzir sua filha at a Espanha. O dote que a princesa leva consigo chamado de esplio, pois no captulo anterior Gregrio descreve como o tesouro pblico e os prprios francos foram dilapidados para constitu-lo. Embora essa acusao j aponte para uma descrio bastante negativa de Chilperico, o mais significativo, nessa frase, a afirmao de que ele o Nero e o Herodes de nosso tempo. evidente que a referncia por parte de um bispo cristo a esses dois personagens no nem um pouco lisonjeira. Contudo, para compreender o sentido que Gregrio d a essa comparao, necessrio observar como ele descreve esses personagens em outras partes de sua obra: Furioso contra eles por que pregavam o Cristo filho de Deus e por que se recusavam a adorar os dolos, Nero fez perecer Pedro sobre a Cruz e Paulo pela espada (Decem Libri Historiarum I, 25). Nero , portanto, o imperador que atacou o culto do Cristo e que mandou assassinar So Pedro e So Paulo. Trata-se de um inimigo da Igreja e, mais particularmente, do Cristo e de seus discpulos. E quanto a Herodes: Herodes, temeroso por sua realeza, e que perseguiu o Cristo-Deus, massacrou todas as crianas pequenas... (Decem Libri Historiarum I, 19). Mais do que o governante cruel que teria mandado matar os recm-nascidos, o que sobressai nesse trecho a imagem de um rei que temia que o Cristo ameaasse sua realeza. No se trata de uma simples coincidncia o fato de que o bispo de Tours associou Chilperico a Nero, o assassino dos Apstolos, e a Herodes, o inimigo da realeza do Cristo. Atravs dessa comparao, bastante provvel que Gregrio tenha pretendido referir-se ao rei como um inimigo dos bispos e como o detentor de uma realeza que era o oposto daquela preconizada pelo Cristo. possvel igualmente que o bispo de Tours tenha tentado mostrar a averso de Chilperico ao episcopado como um signo do
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cime nutrido por esse ltimo em relao Realeza do Cristo, da a comparao com Herodes. O orgulho e a crueldade de Nero e de Herodes servem, nos Decem Libri Historiarum, para sublinhar um trao da personalidade de Chilperico: sua falta de respeito em relao aos bispos e aos conselhos que esses ltimos poderiam lhe oferecer. O texto prossegue com a descrio das circunstncias do assassinato de Chilperico:
Quando um dia regressava da caa sob uma noite obscura, e descia do cavalo apoiando uma mo sobre os ombros de um servo, veio um homem que o atingiu com uma faca sob a axila e com um outro golpe perfurou seu ventre; imediatamente, jorrou sangue pelos ferimentos e sua alma inqua se foi.

A morte aqui aparece como a punio pelos atos perpetrados por esse rei, e que Gregrio afirma ter descrito anteriormente: O mal que fez, o texto que precede o mostra. O bispo de Tours parece, inicialmente, remeter o leitor aos trechos anteriores de sua obra onde aborda os males feitos por esse rei, sem dar a impresso de que vai se prolongar no assunto. No entanto, o captulo 46 constitui um inventrio do reinado de Chilperico: Devastou e incendiou inmeras regies, e no sentia nenhuma dor por isso, ao contrario, ficava alegre, tal como Nero em outros tempos, que cantava tragdias durante os incndios de seu palcio. Na associao com Nero e com os incndios por ele promovidos, fica ntida a filiao tradio crist, muito embora no se possa tambm descartar uma possvel influncia da literatura de origem senatorial no texto gregoriano. De fato, possvel traar alguns paralelos entre o retrato de Chilperico nos Decem Libri Historiarum VI, 46 e o retrato de Nero nos Anais de Tcito. No primeiro texto, Chilperico aparece como aquele que No que se refere depravao e luxria, no se pode encontrar em pensamento algo que no tenha perpetrado na realidade.... Nos Anais, Nero aquele que ...no teria omitido nenhum ato vergonhoso para atingir o mais alto grau de corrupo (Tcito, Anais XV, 37). No se est afirmando aqui que Gregrio tenha sido um leitor de Tcito; no h evidncias nesse sentido. Todavia, preciso reconhecer que alguns dos elementos da construo da imagem negativa de Chilperico parecem diretamente oriundos de uma tradio literria anti-imperial da qual faz parte a obra de Tcito. o caso, por exemplo, da acusao de que Chilperico Era um gluto cujo deus era o ventre, ou ainda de que ele Pretendia que ningum era mais sbio do que ele. O paralelo com os festins promovidos por Nero e com as pretenses literrias do mesmo parece bastante provvel. Por outro lado, pode-se questionar o sentido da comparao de Chilperico com o imperador Nero. Exemplos de maus governantes no deveriam faltar a Gregrio, e mesmo de maus governantes que perseguiram os bispos. A escolha de Nero tem uma outra razo. A chave para essa questo se encontra nas pretenses literrias do rei: 53

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Comps dois livros, imitao de Sedulius, cujos versos dbeis no podem permanecer de p em sua ignorncia, colocou as silabas breves no lugar das longas e as longas no lugar das breves - e opsculos, hinos e missas que no podem ser aceitas sob nenhuma razo.

Nesse trecho, possvel observar que Chilperico buscou introduzir novas letras no alfabeto; ora, o imperador Cludio procedeu da mesma maneira. Fica claro tambm que ao compor hinos e missas, Chilperico interferiu em matria teolgica, de maneira no muito distinta do que fez Justiniano. Atravs desse trecho de seu relato, Gregrio revela um prncipe que tinha como norte de sua ao alguns imperadores romanos e o modelo imperial romano. Ao ridicularizar as ambies literrias e teolgicas desse prncipe, o bispo de Tours d indcios da existncia de uma poltica sistemtica de imitatio imperii (imitao do Imprio). Mas, ao comparar Chilperico a Nero, Gregrio busca mostrar o fracasso dessa poltica. Outro indcio de que o rei franco atuava no sentido de aproximar seu governo dos padres imperiais a meno pelo bispo de Tours da prtica de se arrancar os olhos dos culpados de certos crimes, o que era uma prtica recorrente em Bizncio (M. Reydellet, 1981, p. 419).
...desse modo, se em seu tempo descobrisse culpados, seus olhos eram arrancados. E nos preceitos que dirigia aos juzes para seus prprios interesses, ele acrescentava: Se algum viola nossos preceitos, a pena deve ser ter os olhos arrancados.

Em suma, a referncia a Nero tem a funo, na narrativa de Gregrio, de ridicularizar as pretenses imperiais de Chilperico e tambm de mostr-las sob o prisma da crueldade. uma maneira hbil de desacreditar a poltica de imitatio imperii de seu rival sem, no entanto, atacar a prpria funo imperial. Saliente-se, a ttulo de exemplo, que Tibrio representa para Gregrio o exemplo do bom imperador. No se trata, portanto, de uma indisposio do bispo de Tours para com o Imprio ou com a funo imperial. Esse o primeiro exemplo de que a obra gregoriana, em que pese seu carter de manual do poder episcopal para utilizar a expresso de W. Goffart , pode ser utilizada como fonte para o estudo da monarquia franca, e no apenas para a concepo de poder dos bispos da Glia. Apesar de uma possvel influncia da literatura senatorial, Gregrio busca dar uma conotao especfica crueldade de Chilperico, prxima das preocupaes do episcopado franco: Puniu vrios homens de maneira injusta. Em seu tempo, poucos clrigos obtiveram o episcopado. Alm de se comportar de maneira injusta, e, portanto, contrria quilo que se espera de um bom governante, Chilperico teria nomeado poucos clrigos funo episcopal. A eleio de um bispo na Glia do sculo VI, mesmo quando ocorria segundo as regras cannicas, ou seja, pela eleio do clero e do povo, necessitava da confirmao do rei para ser validada. Faz sentido, portanto, que Chilperico tenha deixado vagas varias ss episcopais. Mas por qual razo? Mais uma vez, o prprio Gregrio quem d indcios de uma possvel resposta:
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REALEZA E IDEOLOGIA EPISCOPAL EM GREGRIO DE TOURS: OS DECEM LIBRI... Ele tinha averso aos interesses dos pobres. Blasfemava assiduamente contra os sacerdotes do Senhor, e quando estava entre os seus, nada lhe era mais agradvel do que ridicularizar e pilheriar os bispos das igrejas. Ele dizia que um era desenvolto, o outro vaidoso, um outro excessivo e um outro luxurioso; pretendia que um era altaneiro, o outro orgulhoso; no havia nada que odiasse mais do que as igrejas. Pois em efeito dizia na maior parte do tempo: Eis que nosso fisco permanece pobre, eis que nossas riquezas so transferidas s igrejas; ningum reina mais, somente os bispos; nosso poder (honor) morreu e foi transferido aos bispos das cidades.

Pode-se supor que Chilperico desconfiava dos bispos que usurpavam as prerrogativas da autoridade real. Era compreensvel que ele tenha praticado a poltica da s episcopal vazia, de maneira a reduzir a influncia dos bispos. De acordo com a descrio de Gregrio, Chilperico no s falava claramente de seus temores em relao ao crescimento da influncia poltica dos bispos, como tambm se queixava de que o episcopado governava em seu lugar e usurpava as riquezas do reino. Pode-se deduzir que o projeto poltico desse rei comportava a reduo da influncia dos bispos nas cidades e, ao mesmo tempo, a recuperao das prerrogativas da realeza e de seus representantes laicos. Mais do que sua ignorncia da literatura, dos dogmas e da mtrica, ou ainda o desrespeito palavra dada, o que torna Chilperico o arqutipo do mau-governante aos olhos de Gregrio sua relao com os bispos (o fato de no escut-los como se devia e de humilh-los), e com a Igreja:
Enquanto afirmava isso, os testamentos redigidos em benefcio das igrejas eram na maior parte do tempo violados, e ele pisava freqentemente os preceitos de seu pai, pensando que no restava ningum para fazer respeitar suas vontades.

Quando Gregrio remarca a vaidade daquele que, segundo ele, acredita ser mais sbio do que qualquer um, ele se refere recusa de Chilperico em ouvir e aceitar os conselhos dos bispos. possvel perceber nas aes desse rei descritas pelo bispo de Tours uma concepo constantiniana do exerccio da autoridade real. ela, alis, a chave para se compreender a oposio do bispo de Tours a Chilperico. As pretenses literrias reforam a imagem de um prncipe cujas referncias eram os imperadores romanos que, como vimos anteriormente, eram tambm prolficos em incurses no domnio da liturgia, da literatura e das questes doutrinrias. Gregrio v nas iniciativas de Chilperico apenas uma impostura, o fruto da ambio desmedida de um rei que teria ousado interferir em domnios reservados aos bispos. Em suma, o fato de que Chilperico quisesse aparecer aos seus sditos como um digno sucessor dos imperadores romanos muito provavelmente no passou despercebido para Gregrio. O contraponto que Gregrio oferece desse que pretendia ser igual aos imperadores o de um rei que, alm de conseguir igualar-se apenas a Nero, governava levando em conta unicamente seus interesses pessoais: Et in 55

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praeceptionibus quas ad iudicis pro suis utilitatibus dirigebat, hac addebat: Si quis praecepta nostra contempserit, oculorum avulsione multetur. A traduo francesa e a traduo inglesa dos Decem Libri Historiarum do sentidos sensivelmente diferentes a essa frase. R. Latouche a traduz da seguinte maneira : et dans les prceptes quil adressait aux juges pour ses affaires il ajoutait cette clause (p. 72); j L. Thorpe prefere: In the instructions wich he issued to judges for the maintenance of his decrees (p. 380). A traduo de R. Latouche a mais adequada, pois com o termo utilitas, em outras partes de seu texto, Gregrio designa assuntos, interesses, e no decretos (Decem Libri Historiarum X, 9, Decem Libri Historiarum X, 19). No mesmo captulo 46, Gregrio afirma que Chilperico tinha em averso os interesses dos pobres (causas paperum exosas habebat). H uma estreita correlao entre essa frase e a idia segundo a qual Chilperico, em suas aes, ...pro suis utilitatibus dirigebat.... Seria normal, na perspectiva do bispo de Tours, que um rei que tinha averso aos interesses dos pobres, se ocupasse, em seus atos de governo, unicamente de seus prprios interesses. Em outros trechos dos Decem Libri Historiarum, Gregrio emprega a expresso utilitas publica (Decem Libri Historiarum IX, 10, Decem Libri Historiarum IX, 20). Ela aparece apenas em situaes envolvendo Childeberto II e Gontro. Para se entender seu sentido, possvel partir da descrio que Gregrio faz de Chilperico. Em primeiro lugar, atravs dos Decem Libri Historiarum VI, 46, o bispo de Tours apresenta ao leitor uma anttese do rei ideal, do rei cristo. Chilperico o rei cruel, que humilha e despreza os bispos e tem averso aos interesses dos pobres. A realeza de Chilperico seria a encarnao de um poder desligado de qualquer obrigao em relao aos pobres e voltado unicamente para a satisfao dos interesses pessoais do rei (suis utilitatibus). Logo, pode-se deduzir que a utilitas publica , para Gregrio, indissocivel da preocupao do governante com os pobres, com a Igreja e com os bispos. Os interesses de Chilperico, aos quais ele atribui uma conotao pessoal, se oporiam utilitas publica que o bom prncipe deve perseguir em seus atos de governo. Quando o bispo de Tours qualifica as motivaes dos atos de Chilperico como estritamente pessoais, ele recusa o complemento pblica a uma utilitas que no levaria em conta os conselhos dos bispos, e que por isso mesmo seria estrangeira a toda considerao de ordem moral. Para Gregrio, toda autoridade que no esteja fundada na preocupao crist pelo interesse dos pobres no possui qualquer dimenso pblica, ou seja, qualquer legitimidade. A descrio das condies da morte de Chilperico o ponto culminante do retrato gregoriano desse rei:
Ele jamais amou algum de maneira pura e no foi amado por ningum; eis porque, quando exalou seu ltimo suspiro, todos o abandonaram. Mallulfus, bispo de Senlins, que o esperava em vo por uma audincia h trs dias em sua tenda, veio assim que soube de seu assassinato. Aps t-lo lavado, ele o vestiu com suas melhores roupas e, tendo passado a noite a contar hinos, ele o colocou em um navio e o enterrou na Baslica de So Vicente, em Paris, enquanto a rainha Fredegonda permanecia sozinha na catedral. 56

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Gregrio mostra ao leitor que aquele que durante toda vida no havia tido a mnima considerao em relao aos bispos e que o demonstrou mesmo nos seus ltimos instantes, obrigando o bispo de Senlins a esperar trs dias por uma audincia acabou encontrando, depois de morto, somente esse bispo para vestir seu cadver e enterr-lo. O evento tem, portanto, um sentido moral e poltico, mais do que simplesmente exemplar: ele demonstra o triunfo do episcopado sobre o seu maior inimigo entre os reis francos. A ttulo de comparao, a morte de Gontro sequer mencionada nos Decem Libri Historiarum. Entretanto, Gregrio tomou conhecimento dela antes de terminar a redao dessa obra, como mostra um trecho dos Septem libri miraculorum dedicado aos milagres de So Martinho (De virtutibus beati Martini episcopi, IV, 37: Tempos depois, aps a morte do gloriosssimo rei Gontro...). Uma possvel explicao para essa omisso, provavelmente deliberada, est no sentido providencial do relato da morte de Chilperico: o assassinato desse rei cruel, inimigo dos bispos e da Igreja, marca, nos Decem Libri Historiarum, a derrota dos opositores da realeza do Cristo, da mesma maneira que a sobrevivncia daquele que Gregrio chama de o bom rei Gontro indica o triunfo dessa realeza. Portanto, em face de um Chilperico cuja morte significa o triunfo moral do episcopado, h Gontro, cuja morte omitida com o mesmo intuito. Alguns autores pem em dvida a autenticidade do relato de Gregrio de Tours sobre Chilperico. Segundo W. Meyer, o fato de que em nenhuma outra parte das Histrias encontra-se uma crtica to acerba de Chilperico como aquela do captulo 46 do livro VI, provaria que esse captulo foi incorporado obra por um outro autor aps a morte de Gregrio de Tours (W. Meyer, 1901, p.310, n.53). Esse ponto de vista parece sedutor, visto que em outro trecho de sua obra Gregrio refere-se a Chilperico da seguinte forma: Todos admiraram a sabedoria e ao mesmo tempo a pacincia do rei (Decem Libri Historiarum V, 49). Contudo, essa afirmao no tem nenhuma implicao no balano final do reinado de Chilperico, que extremamente negativo. Alm disso, no h razo para se colocar em dvida a autenticidade do referido captulo 46. Ele apenas resume e refora a imagem que o bispo de Tours transmite de Chilperico ao longo dos Decem Libri Historiarum. A primeira vez que o rei franco aparece no relato de Gregrio como usurpador e corruptor: Aps os funerais de seu pai, Chilperico tomou possesso de seu tesouro que estava guardado na villa de Berny. Em seguida, ele buscou os francos mais influentes e, tendo-os convencido com presentes, lhes submeteu (Decem Libri Historiarum IV, 22). No episdio de seu casamento com Galswinta, Chilperico descrito como um ganancioso sem escrpulos: Ele a amava muito especialmente pois ela havia trazido consigo um grande dote (Decem Libri Historiarum IV, 28). Gregrio vai alm, sugerindo que Chilperico a teria assassinado: Finalmente, ele fez com que ela fosse estrangulada por um de seus escravos e ela foi encontrada morta em seu leito (Ibid.). Gregrio retrata Chilperico como um governante cruel que no hesitava em prolongar os sofrimentos daqueles que estavam sob seu jugo: O rei 57

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ordenou que ele fosse tratado por mdicos at que fosse curado desses ferimentos para em seguida ser martirizado por um longo suplcio (Decem Libri Historiarum VI, 32). No episdio do julgamento do bispo Pretextatus, acusado de traio, Chilperico mostrado como algum que no possua nenhum respeito pela palavra dada (Decem Libri Historiarum V, 18). A meno sabedoria e pacincia de Chilperico, no captulo 49 do livro V, uma opinio circunscrita a um evento especfico, o posicionamento do rei face s acusaes de traio feitas a Gregrio por Leudastus. Chilperico havia decidido aceitar a declarao de inocncia do bispo de Tours que, todavia, teve de pedir desculpas atravs de um juramento e de missas rezadas em trs altares distintos. Gregrio acrescenta que Se bem que essas medidas fossem contrrias aos cnones, ns as realizamos por considerao ao rei (Decem Libri Historiarum V, 49). De maneira pouco sutil, o que Gregrio sugere que o rei desconhece as regras cannicas. Fica claro, portanto, que o captulo 46 do livro VI est em perfeita consonncia com a imagem que dada de Chilperico ao longo dos Decem Libri Historiarum. A descrio de Chilperico, contida nos Decem Libri Historiarum, explicase mais por razes teolgicas, e mesmo polticas, do que por razes pessoais, em que pese a muito provvel indisposio do bispo de Tours em relao ao rei. As relaes entre um rei que interferia em matrias doutrinrias e litrgicas, e um bispo que era partidrio da independncia do poder eclesistico, e que acreditava que o episcopado tinha conselhos a dar para o exerccio do bom governo, no poderiam ser menos conflituosas. No andino que Gregrio tenha erigido Chilperico em modelo do mau prncipe e Gontro em seu contraponto. A oposio entre essas duas maneiras de tratar o episcopado aparece nas explicaes dadas por Gregrio, no captulo 48 do livro IV, sobre as origens das guerras civis que assolaram a Glia:
Ns nos perguntamos ainda surpresos e estupefatos porque tantos desastres abateram-se sobre esses povos. Mas lembremo-nos do que seus ancestrais fizeram e o que eles perpetram hoje. Aps a predicao dos bispos, as primeiras geraes abandonaram os templos pelas igrejas; agora, saqueiam cotidianamente essas mesmas igrejas. Os antigos veneravam e escutavam de todo seu corao os bispos do Senhor; hoje, no somente no os escutam, como os perseguem. Seus ancestrais enriqueceram monastrios e igrejas, hoje as dilapidam e as demolem.

A resposta de Gregrio questo das origens das guerras civis uma comparao entre os primeiros prncipes merovngios e aqueles que eram seus contemporneos. Nesse texto, Gregrio designa Chilperico, sem, no entanto, cit-lo formalmente. Gregrio prope aqui a incluso do episcopado na vida poltica do Reino dos Francos. Esse modelo de sociedade no era uma criao do bispo de Tours. Descrito pela historiografia alem pelo termo Bischofsherrschaft, ele tem suas razes na Glia, durante a segunda metade do sculo V. Entre seus opositores, encontramos Chilperico, mas tambm alguns bispos que desconfiavam de uma unio excessivamente estreita entre o poder
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REALEZA E IDEOLOGIA EPISCOPAL EM GREGRIO DE TOURS: OS DECEM LIBRI...

temporal e o poder eclesistico (M. Heinzelmann, 1976, p.158). O fato de Gregrio de Tours ter sido o difusor de uma idia de realeza crist coloca o problema do nvel de comprometimento de seu relato: em outras palavras, pode-se questionar at que ponto sua descrio da monarquia franca foi influenciada e at mesmo obscurecida por seus preceitos ideolgicos. No caso afirmativo, seriam os Decem Libri Historiarum uma testemunha confivel da evoluo das relaes de poder no sculo VI? Teria ele tentado, em sua narrativa, concatenar os eventos de modo a mostrar o triunfo de uma certa viso do mundo que era tambm a sua? verdade que sua obra a expresso de uma certa percepo episcopal do mundo em geral e da realeza em particular, na qual os reis so chamados a buscar ajuda dos bispos na administrao dos assuntos pblicos. Todavia, no encontramos nos textos do bispo de Tours um alinhamento incondicional e sem nuances causa episcopal. Ele no cessou de denunciar os crimes e os pecados de certos clrigos, da mesma maneira que no poupou os prncipes, nem mesmo Gontro. Seria redutor ver em Gregrio um autor a servio de uma ideologia. Sua postura face realeza a postura de um clrigo ciente de suas prerrogativas, mas tambm perfeitamente consciente da superioridade dos reis nesse mundo. Ele no pode ser qualificado de defensor de um regime hierocrtico. Os bispos poderiam, segundo ele, estar escuta dos reis, aconselha-los, mas jamais assumir a postura de gerentes do poder. Por outro lado, h na viso de Gregrio limites que um rei, por mais poderoso e santo que fosse, no poderia jamais ultrapassar. Defensor da realeza crist, Gregrio se opunha idia e prtica de uma realeza em que os poderes do rei fossem absolutos. Ele tambm no buscou dissimular a atrao que essa realeza imperial exercia sobre os prncipes merovngios. Alis, a existncia de tais prticas possui uma funo pedaggica em sua obra: mostrar, atravs do choque entre os reis que obedeciam aos preceitos dos bispos e os reis que no os obedeciam, o triunfo dos primeiros. Da mesma maneira, os clrigos, respeitosos face s atribuies temporais do rei, deveriam evitar desobedecer ao rei nesse domnio. Ainda que Gregrio de Tours seja partidrio de uma forma de governo fundada em princpios cristos e orientada pelos conselhos dos bispos, sua narrativa permite observar a existncia de outros projetos polticos, como o da realeza constantiniana. A viso episcopal da realeza que ele exprime vrias vezes no o impede de descrever os conflitos e as contradies no seio da monarquia franca. Sua viso crtica e algumas vezes irnica que parece servir para mostrar o quanto tal ou tal rei estava longe do modelo ideal de soberano resulta em uma descrio do governo merovngio que bastante til ao historiador. Quando Gregrio apresenta o modelo e o anti-modelo do rei cristo ideal, ope a realeza crist realeza constantiniana. Seu estilo marcado pela dicotomia, pela oposio sistemtica entre dois modelos de prncipes, mas no maniquesta. Mesmo quando descreve aquele que considera como o prncipe ideal, Gontro, o bispo de Tours no busca esconder seus erros. , portanto, nos interstcios de um relato primeira vista comprometido com uma viso providencial da histria que se deve buscar os elementos para se reconstituir a historia da monarquia franca. 59

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Bibliografia Fontes GREGRIO DE TOURS. Gregorii episcopi Turonensis historiarum libri X, Monumenta Germaniae Histrica, Scriptores Rerum Merowingicarum, ed. B. Krusch Fasc. I e II, 1937-1942; Fasc. III, Praefatio et Indices, ed. B. Krusch, W. Levison e W. Holtzmann, Hanovre, 1951 [trad. ingl., L. Thorpe, The History of the Francs. Harmondsworth/New York, 1974; trad. franc. R. Latouche, LHistoire des Francs. Paris, 1999 (1a ed. 1963-65)]. GREGRIO DE TOURS. Libri I-IV de virtutibus S. Martini episcopi, MGH, Gregorii episcopi Turonensis miracula et opera minora, ed. B. Krusch, Hanover, 1885, pp. 134-211. TCITO. Annales. Paris, [s. n.] 1998. Livros e artigos BOURGAIN P. e HEINZELMANN. M. Luvre de Grgoire de Tours: la diffusion des manuscrits. In: GAUTHIER. N, GALINI. H. (Org.). Grgoire de Tours et lespace gaulois, Congrs international, Tours, 3-5 novembre 1994, Acts... Tours; [s. n.] 1997. pp. 273-317. BREUKELLAAR. A.H.B. Historiography and episcopal authority in sixht-century, Gaul: the Histories of Gregory Tours interpreted in their historical context. Gttingen; [s. n.] 1994. SILVA. M. Cndido da. Providencialismo e histria poltica nos Decem libri Historiarum, de Gregrio de Tours, Varia Histria, Revista do Departamento de Histria FAFICH/UFMG, n. 28, p. 137-160, 2002. C. Gauvard, A. de Libera, M. Zink. (Dir.) Dictionnaire du Moyen ge. Paris, 2002. GOFFART. W. From Historiae to Historia Francorum and back again : aspects of the contexture history of Gregory of Tours. In: ___. Religion, Culture and Society in the Early Middle Ages. Studies in honor of R.E. Sullivan. Kalamazoo, 1987, p. 55-76. GOFFART. W. The Narrators of barbarian history (A.D. 550-800). Jordanes, Gregory of Tours, Bede and Paul the Deacon. Princeton, 1988. HEINZELMANN. M. Histoire, rois et prophtes. Le rle des lments autobiographiques dans les Histoires de Grgoire de Tours: un guide piscopal lusage du roi chrtien. In: SCHARER. A., SCHEIBELREITER. G. (Ed.). De Tertullien aux Mozarabes, t.1, Antiquit Tardive et christianisme ancien (IIIe-VIe sicles). Paris, 1992, p. 544-545. ___. Grgoire de Tours, pre de lhistoire de France? In: Y.-M. Berc, Ph. Contamine (Dir.), Histoire de la France, historiens de la France. Colloque international, Reims, 4-15 mai 1993. Actes. Paris, 1994, p. 19-45. ___. Gregor von Tours, (538-594): Zehn Bcher Geschichte: Historiographie und Gesellschaftskonzept im 6. Jahrhundert. Darmstadt, 1994 (trad. ingl., C. Carroll, Gregory of Tours: history and society in the sixth century. New York, 2001). MATHISEN. R.W. The Family of Georgius Florentinus Gregorius and the Bishops of Tours. Medievalia et Humanistica, New Series, n. 12, p. 83-95, 1984. MEYER. W. Der Gelegenheitsdichter Fortunatus. Berlin, 1901. Monod. G. Etudes critiques sur les sources de lhistoire mrovingienne, 1re partie, Introduction, Grgoire de Tours, Marius dAvenches. Paris, 1872. REYDELLET. M. La royaut dans la littrature latine de Sidoine Apollinaire Isidore de Sville. Paris, 1981. WERNER. K. F. Faire revivre le souvenir dun pays oubli: La Neustrie. La Neustrie. Les pays au nord de la Loire de 650 850, I, Colloque historique internatonal, Actes... Sigmaringen; Atsma, 1989, p.XIII-XXXI. 60

COMUNICAES

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Utopia e Resistncia: a construo de uma espiritualidade franciscana feminina no sculo XIII


Iracema Andrade de Alencar* Valria Fernandes da Silva**

participao feminina nos mais diferentes movimentos e grupos religiosos sempre foi importante, entretanto, a historiografia, durante dcadas, silenciou sobre a sua presena, invisibilizando as mulheres ou, quando muito, tornando-as meras seguidoras conformadas com sua situao secundria. Quando estudamos o perodo conhecido como Idade Mdia argumentos, como a falta de fontes, surgem como justificativa para que a espiritualidade feminina seja pouco estudada ou deixada em segundo plano. Tendo nos debruado por algum tempo sobre a questo da organizao da Segunda Ordem Franciscana, no podemos de forma nenhuma concordar, seja com o argumento da falta de fontes, seja com a idia de que as mulheres pouco contriburam no processo de surgimento de novas ordens, nos movimentos religiosos ou na construo de novas formas de espiritualidade. Percebemos o caso da constituio da ordem franciscana como emblemtico da ao feminina, pois neste processo elas no foram passivas, nem somente seguidoras, mas co-fundadoras e construtoras da espiritualidade franciscana. Acreditamos que o sculo XIII representa um momento crucial nas Reformas movidas pela Igreja Papal durante a Idade Mdia. Diante da efervescncia religiosa do sculo XII, com a emergncia de uma grande quantidade de movimentos religiosos, era necessrio agir. A ao se deu em vrios nveis, mas, um dos mais significativos, foi a nfase na regulamentao e na obedincia com o intuito de adequ-los aos objetivos estabelecidos pela Cria Papal. Os movimentos religiosos do sculo XII foram marcados por uma busca do seguimento da espiritualidade vivida por Cristo e pelos Apstolos. Este novo modelo de vivncia religiosa pois se trata de uma construo medieval e no um resgate conhecido como vita vera apostlica e se apoiava no trip: pobreza, penitncia e pregao. (VAUCHEZ, 1996, p. 7374). Essa nova forma de vivncia da religio demandava uma Igreja mais prxima dos fiis e uma maior participao dos leigos, homens e mulheres.

Mestranda do Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutoranda do Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade de Braslia.

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Assim, os sculos XII e XIII foram marcados pelo surgimento e desenvolvimento de novas ordens religiosas e, tambm, de grupos que foram considerados herticos, como os Ctaros. exatamente neste contexto de florescimento de uma nova espiritualidade e tentativa de ordenamento por parte da Igreja, que o grupo Franciscano comeou a se estabelecer. Inicialmente, constituiu-se a partir do esforo pessoal de um homem oriundo das camadas urbanas, Francisco de Assis, que abraou os princpios da chamada vita vera apostlica por volta do ano de 1208. (BOLTON, 1983, p. 79-35 e 105-107). Logo atraiu os primeiros seguidores e desejou ter seu movimento reconhecido pela Igreja. Brenda Bolton defende que Inocncio III tinha como objetivo atrair para dentro da Igreja todos os grupos possveis, flexibilizando ao mximo alguns pontos da ortodoxia como forma de impedir que alguns grupos, como o dos Franciscanos, fossem considerados herticos. Entretanto, houve resistncias dentro da prpria Cria Papal, onde alguns cardeais fizeram o possvel para estreitar ao mximo o conceito de ortodoxia, o que resultou na excluso e perseguio de alguns movimentos religiosos, na limitao ao surgimento de novas ordens religiosas e a imposio de regras cannicas e formas de vida aos novos grupos aceitos. Apesar dos antagonismos, o grupo franciscano conseguiu se firmar e se desenvolver, pelo menos no incio, sob a proteo da Igreja Papal. Duas condies, entretanto, foram impostas para a sua existncia: a primeira de que os franciscanos fossem tonsurados; a segunda que todos os membros do grupo deveriam obedecer hierarquia eclesistica reconhecendo Francisco de Assis como seu lder e prestando-lhe juramento, assim como este jurara obedincia Igreja. Atendidas as exigncias, que visavam reforar simbolicamente a submisso s normas da instituio, receberam a permisso para pregar, o que era no sculo XIII, apangio dos sacerdotes (BOLTON, 1983, p. 79-80). Junto com os dominicanos, os franciscanos inauguraram um novo conceito de ordem religiosa que, apesar de regular, era urbana. Esse aspecto associava elementos normalmente separados dentro da tradio monstica ocidental. O modelo antigo girava em torno da leitura, trabalho, meditao, orao, contemplao, j o novo no podia abrir mo de uma atuao no mundo. Por esse motivo, os irmos franciscanos viviam em contato direto com a populao, tendo na pregao uma de suas funes por excelncia. Possivelmente tocada pelos sermes e pelo exemplo de Francisco de Assis, a jovem Clara, moa da nobreza, entrou para o grupo franciscano no ano de 1212. Clara apresentada como a primeira mulher no grupo, mas logo chegaram outras e sua presena e ligao com a comunidade foram evidenciadas pelo testemunho de contemporneos, como o bispo Jacques de Vitry:
As mulheres convivem em alguns hospcios no distantes das cidades; no aceitam doaes, mas vivem do trabalho de suas mos. No entanto se afligem e se perturbam muito com a venerao que lhes tributam clrigos e leigos, por lhes parecer excessiva (VITRY, Carta escrita de Gnova em outubro de 1216, p. 103). 64

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A convivncia direta das religiosas com a comunidade no parecia causar escndalo e, de acordo com as fontes, elas contavam com o apoio direto de Francisco e dos irmos, j que viviam uma vida inspirada no Evangelho.
Desde que, por inspirao divina, vos fizestes filhas e servas do altssimo e sumo Rei, o Pai celestial, e tomastes o Esprito Santo por esposo, optando por uma vida conforme com a perfeio do santo Evangelho, quero eu - o que prometo por mim pessoalmente e por meus irmos - nutrir sempre, a bem de vs, o mesmo diligente cuidado e solicitude como por eles (Forma de vida para as irms de Santa Clara, p. 103).

De Vitry vai automaticamente aproximar, na sua narrativa, as franciscanas de outras santas mulheres por ele bem conhecidas, as beguinas. As beguinas eram mulheres leigas que organizaram comunidades religiosas principalmente no Norte da Europa. Impelidas a viver uma vida espiritual de acordo com os moldes da vita vera apostolica, muitas mulheres no conseguiam entrar para ordens religiosas j estabelecidas na poca pelas mais diversas razes. As casas femininas existiam em menor nmero que as masculinas, algumas restritas s mulheres da nobreza e a entrada na comunidade geralmente exigia um dote, o que exclua as mais pobres. Alm disso, muitas comunidades de mulheres s tinham condies de abrigar um nmero reduzido de irms, pois muitos conventos no possuam nem espao, nem fontes de renda constantes, e ainda tinham que lidar com a resistncia e ingerncia da Igreja e dos vrios patronos. Outras mulheres desejavam viver a sua espiritualidade em moldes diferentes dos tradicionais e rejeitavam uma vida monstica ou conventual, assim, comearam a se formar as comunidades de beguinas. Nessas comunidades as mulheres desenvolviam laos de fraternidade entre si, dedicavam-se caridade, aos trabalhos manuais e, em alguns casos, educao. Havia comunidades de beguinos, mas esses tiveram muito menor ateno do que as mulheres que, no incio, louvadas pela sua piedade, terminaram sendo acusadas e perseguidas por heresia (PETROFF, 1986, p. 171-178). A aproximao perigosa entre a vida das novas religiosas com a de outras, que j atraam olhares de desaprovao de alguns setores da Cpula da Igreja, vai acelerar o processo regulamentao das mulheres franciscanas. Assim, a Cria Papal buscou, a todo custo, normatizar a vida das mulheres da Ordem Franciscana. Esse processo foi feito s custas de uma beneditizao da vida feminina dentro do grupo franciscano (ROTZETTER, 1993, p. 111112). Tal tentativa acentuou-se, a partir da ao do Cardeal Hugolino, posteriormente, do Papa Gregrio IX, homem preocupado com a normatizao da vida religiosa feminina. Falamos em tentativa, porque as mulheres resistiram no intuito de permanecerem dentro do grupo franciscano, mesmo quando os prprios irmos no viam com grande entusiasmo a existncia de um ramo feminino. 65

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Para a Cpula da Igreja algo parecia evidente: todas as mulheres religiosas deveriam enquadrar-se em um nico modelo de vida religiosa. Obviamente, o projeto de vita vera apostolica do papado no contemplava a proximidade e a convivncia entre homens e mulheres, nem to pouco apoiava o surgimento de movimentos e ordens que no restringissem os espao de atuao feminina contemplao e orao. At porque, a primeira e grande exigncia s mulheres religiosas no sculo XIII foi a clausura compulsria:
Portanto obrigadas a amar acima de tudo o seu Esposo, que ama os que o amam e os faz co-herdeiros, devem deleitar-se s nele, de tal maneira que jamais possa separ-las coisa alguma de seu amor. Para isso, vocs se encerraram no claustro por inspirao divina e renunciaram vantajosamente ao mundo, a fim de abraar vosso esposo com um amor incorruptvel (...) Confiamos e esperamos que essas coisas, se vocs pensarem com ateno e diligncia, parecem amargas agora mas vo ser saudavelmente doces (...) E vocs se gloriaro de ter sofrido alguma coisa por Cristo que por ns suportou o sofrimento de uma morte vergonhosa. (GREGRIO IX, Carta do Papa Gregrio IX a Santa Clara e s Irms, p. 217)

Essa postura da Cpula Papal no pode ser vista de maneira dissociada dos discursos sobre a mulher que circulavam naquele momento, pois, como nos diz a historiadora Brenda Bolton, haveria um movimento, dentro e fora da Igreja, sculo XIII, que visava a limitao da atuao feminina. Isso poderia ser percebido tanto na excluso de mulheres das antigas ordens mistas, na restrio na criao de novas casas femininas, da resistncia de algumas ordens em reconhecer como suas as casas femininas, outrora agregadas sem maiores problemas, e na tentativa de excluir as abadessas dos captulos. (BOLTON, Brenda, 1983, p. 93-102) Outro fator que deve ser levado em conta a questo da heresia. Grupos como o dos Valdenses e dos Ctaros, por exemplo, permitiam que as mulheres exercessem papis que lhes eram negados dentro da ortodoxia (MCLAUGHLIN, 1976, p. 58-74). O incmodo causado por estes grupos pode ser percebido no esforo por parte da Igreja no s em estabelecer o lugar da mulher, mas, tambm, em regulamentar certas prticas que, em sculos anteriores, no despertavam interesse to acentuado, como a pregao e a ministrao dos sacramentos. Logo, para serem aceitas, as ordens novas deveriam respeitar os rgidos critrios de distino de campos de atuao no s de leigos e religiosos, mas, tambm, de homens e mulheres estabelecidos pela Instituio Eclesistica. (RAMING, 1976, p. 50-57) Dessa forma, no seria possvel ao grupo franciscano ficar alheio ao processo, tanto que a necessidade de manter distncia das mulheres, mesmo as religiosas, vai ser claramente expresso dentro da regra franciscana: Ordeno severamente a todos os meus irmos que no tenham familiaridade nem relaes suspeitas com mulheres, nem entrem em mosteiros de freiras, exceto aqueles que tem licena especial da santa S Apostlica. (REGRA FRANCISCANA, p. 138) Como se v, a regra, aprovada canonicamente pelas autoridades eclesisticas, j apontava para a separao entre homens
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e mulheres na prtica religiosa. O ltimo fator que devemos ressaltar que o sculo XIII foi marcado pelo resgate da tradio aristotlica. No estamos dizendo com isso que Aristteles esteve esquecido nos sculos anteriores, mas, sim, que este filsofo tornou-se uma das bases do pensamento universitrio medieval e que sua releitura e Cristianizao ir fornecer respaldo consolidao das distines entre homens e mulheres nos mais diversos campos, na maioria das vezes em detrimento da liberdade, autoridade e autonomia femininas. Dentro da tradio aristotlica, a mulher seria encarada como um macho gorado, defeituoso, sendo inferior e subordinado dentro da ordem natural do mundo (BORRESEN, 1976, p. 21) . Nesse sentido, deveria estar sob custdia masculina para que no pudesse causar mal nem a si, nem aos outros. (CASAGRANDE, 1990, p. 98-141) Mas como as franciscanas reagiram s imposies da Cpula da Igreja? O que podemos inferir pelas fontes, hagiografias, cartas, regras e formas de vida, o processo de canonizao de Clara de Assis que se ligam principalmente aos primeiros anos do protomosteiro de So Damio, que no houve o assujeitamento, tampouco a revolta direta. A submisso hierarquia da Igreja era o ponto de partida para a sobrevivncia do grupo, mas a normatizao sempre era negociada. Assim, se a clausura era um empecilho ao exerccio pleno da vita vera apostolica, a pobreza tanto das irms quanto dos mosteiros passou a ser a grande bandeira. Tal situao fica bem expressa na Legenda de Santa Clara de autoria de Toms de Celano:
O senhor papa Gregrio, de feliz memria, digno de venerao pelos mritos pessoais e mais ainda pelo cargo, amava com especial afeto paterno a nossa santa. Quando tentou convenc-la a aceitar algumas propriedades que oferecia com liberdade pelas circunstncias e perigos dos tempos, ela resistiu com nimo fortssimo e no concordou absolutamente. Respondeu o Papa: Se temes pelo voto, ns te desligamos do voto, mas ela disse: Pai santo, por preo algum quero ser dispensada de seguir Cristo para sempre.(Legenda de Santa Clara, p. 39)

A associao entre a pobreza e o seguimento de Jesus Cristo vai aparecer fortemente nos escritos de Clara, demonstrando o apego a certos pontos que dariam coeso vivncia franciscana. Se no podem pregar, as mulheres deveriam pelo menos ter o direito pobreza, que as aproximaria do esposo celeste. Esse desejo asctico no colocava em risco ortodoxia e ao mesmo tempo minava as imposies da Cpula Papal sobre a vivncia religiosa franciscana. Foi dessa maneira que as franciscanas submetidas s regras no-franciscanas conseguiram que o papado renovasse o chamado Privilgio da Pobreza:
(...) assim sejam obrigadas at o fim aquelas que vo me suceder no ofcio a observar e fazer observar sua santa pobreza com o auxlio de Deus. Para maior segurana, tive a preocupao de conseguir do

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS senhor papa Inocncio, em cujo tempo comeamos e de seus sucessores, que corroborassem com os seus privilgios a nossa profisso da santssima pobreza, que prometemos ao Senhor e ao nosso bem-aventurado pai (Francisco) (...) (Testamento de Santa Clara, p. 193-194)

A questo da clausura tambm gerou forte resistncia e a alternncia das formas de vida papais nos primeiros anos do mosteiro de So Damio. Atreladas ao uso formal da Regra Beneditina, elas enfatizavam acima de tudo clausura, manifesta tanto no isolamento em relao ao mundo quanto no silncio que diminua s trocas fraternas entre as irms. Alm disso, tais preocupaes com a vida religiosa feminina se faziam sentir em outros documentos da emitidos pela Cpula da Igreja, como a bula Quo Elonganti, que proibia que os frades visitassem os mosteiros de freiras. Tal documento, que visava segregar ainda mais as irms e desvencilhar o ramo masculino da necessidade de prestar auxlio espiritual s suas irms, ser recebida, de acordo com as fontes, de maneira exemplar:
Uma vez, o papa Gregrio proibiu qualquer frade de ir sem sua licena aos mosteiros das senhoras. A piedosa madre, doendo-se porque ia ser mais raro para as Irms o manjar da doutrina sagrada, gemeu: Tirenos tambm os outros frades, j que nos privou dos que davam o alimento de vida. E devolveu ao ministro na mesma hora todos os irmos, pois no queria esmoleres para buscar po do corpo, se j no tinha esmoleres para o po do esprito. Quando soube disso, o papa Gregrio deixou imediatamente a proibio nas mos do ministro geral. (Legenda de Santa Clara, p. 49)

A reao poltica em forma de jejum e que pode ser compreendido como uma greve de fome provocou o recuo do Papado, mostrando que todas as decises poderiam ser revistas e que o poder da Igreja no era de forma nenhuma absoluto e impositivo. As negociaes e resistncias vo marcar a vida das primeiras franciscanas. No se negavam a obedecer, mas no se eximiam de recorrer autoridade do fundador da Ordem, Francisco, ou fidelidade Virgem Maria, a me pobre, e de Jesus Cristo, o esposo, para justificarem suas aspiraes pobreza, seu rigor penitencial e a necessidade de no serem retiradas do grupo franciscano. Dentro das condies de possibilidade oferecidas s mulheres de seu tempo, Clara e suas irms foram construindo a sua vivncia religiosa e flexibilizando aquilo que primeira vista parecia impossvel de mudar. A primeira grande vitria que confirmou que as mulheres de So Damio deveriam ser consideradas franciscanas foi a permisso para que professassem a Regra Franciscana.1 A segunda foi a aceitao da forma de vida escrita por Clara e que deveria substituir as formas de vida papais, sendo usada em conjunto com a Regra Franciscana. Em seu texto, Clara dizia estar seguindo a vontade de Francisco, que j canonizado, dava legitimidade ao seu discurso: A forma de vida das irms pobres que o bem-aventurado Francisco instituiu essa: Observar
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o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obedincia, sem nada de prprio e em castidade (Forma de Vida de Santa Clara, p. 172). Em sua organizao, o texto de Clara se afasta muito das formas de vida papais, primando no s pela nfase na pobreza, mas pela valorizao das relaes fraternas entre as irms, algumas delas vivendo na comunidade desde a sua fundao. Alguns autores apontam mesmo que seu texto seria revestido de uma democracia fraterna que no seria retirada nem da Regra Franciscana, nem das formas de vida anteriores, e que enfatizava o valor da opinio da comunidade das irms mesmo em situaes nas quais a abadessa teria o direito de impor sua vontade (Forma de Vida de Santa Clara, p. 173). Este carter singular da espiritualidade clariana nos permite lanar algumas luzes sobre uma vivncia religiosa certamente diferenciada. Essa diferenciao demonstra que a Igreja Romana, mesmo vivendo um momento de recrudescimento frente diversidade das prticas religiosas presentes na sociedade medieval, no imps a sua vontade sem a possibilidade de negociao. Outro ponto que as mulheres no foram simples receptoras e passivas seguidoras das ordens do Papado, ou mesmo de mentores masculinos. O caso franciscano uma demonstrao de que mesmo nos ambientes aparentemente mais fechados era possvel recriar a vida religiosa e buscar caminhos que no eram necessariamente os oferecidos s mulheres.
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A influncia da tica aristotlica em Agostinho


Leonardo Almada

mbora no seja comum procurar em Aristteles antecedentes para a viso agostiniana do mal como problema filosfico, h quem o tenha feito. De acordo com QUADRI, a teoria agostiniana do erro uma das mais vigorosas afirmaes da filosofia antiga e tem precedente na teoria da vontade, exposta na tica a Nicmaco, na qual assevera, entre outras coisas, que a maldade leva ao erro nos princpios prticos (apud CAPNAGA, 1994, p. 432). De fato, assim como na filosofia de Ccero e, conseqentemente, na de Agostinho, as relaes entre ao moral (virtude), sabedoria, felicidade e incontinncia, so os pontos centrais do pensamento tico de Aristteles. E, ainda que pudssemos alegar que essas questes no sejam, originariamente, aristotlicas, haja vista que no foram alheias a Plato, o fato que foi o prprio estagirita quem as sistematizou de tal modo, que possibilitou, com isso, que tais problemas ocupem, seja no mundo antigo, medieval e/ou contemporneo, um local privilegiado na histria da filosofia. A sistematizao desses conceitos e de suas relaes, por parte de Aristteles, originou-se da observao de que toda a atividade humana e toda a escolha tendem a algum bem, isto , a algum fim desejvel. E, no que diz respeito finalidade, ou meta, da poltica, dentro da qual o homem se realiza enquanto sujeito das aes morais, Aristteles destaca que h, quase que unanimemente, o reconhecimento de que a felicidade (eudaimona) , dentre tudo o que ela pode realizar, o bem supremo, ou o fim dessa atividade: [sobre isso] quase todos esto de acordo, pois tanto o vulgo como os cultos dizem que a felicidade, e pensam que viver bem e agir bem o mesmo que ser feliz (Et. Nic. I, 4 1095a, 15-20). Isso se justifica na medida em que a felicidade um bem, no bojo da existncia e da moral humana, que est acima de todos os outros, ou melhor, o bem mais perfeito e, por isso, um fim em si mesmo, perfeito e suficiente. Aristteles credita felicidade essa posio porque tem de, necessariamente, considerar um bem suficiente e necessrio o que por si s faz desejvel a vida e no necessita de nada, e cremos que tal a felicidade. o mais desejvel de tudo, sem necessidade de acrescentar nada [...] a felicidade algo perfeito e suficiente, j que o fim de todos os atos (idem: I, 7, 1097b,

Doutorando do Programa de Ps-graduao em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 70

A INFLUNCIA DA TICA ARISTOTLICA EM AGOSTINHO

10-20). Desse modo, ela se difere dos demais bens, que sempre se buscam por outra coisa, isto , objetivando um outro fim:1
Tal parece ser, sobretudo, a felicidade, pois a escolhemos por ela mesma e nunca por outra coisa, ainda que as honras, o prazer, a inteligncia e toda virtude, os desejamos em verdade [...] mas tambm as desejamos por causa da felicidade, pois pensamos que graas a elas seremos felizes. Em troca, ningum busca a felicidade por essas coisas, nem em geral por nenhuma outra (ibidem).

No entanto, h, entre os homens, diferentes modos de conceber a felicidade, os quais devem ser buscados, em ltima instncia, nos diversos modos de vida em que eles se inserem. Entre estes, os vulgos e os mais grosseiros os identificam (o bem e a felicidade) com o prazer e, por isso, amam a vida voluptuosa (idem: I, 5, 1095 b, 15). Os vulgos e os grosseiros, ou melhor, os que se caracterizam por uma vida dedicada busca dos prazeres corporais, so aqueles que no fazem um bom uso da razo, j que, neles, o que h de superior e divino relegado em prol dos mandos dos apetites, tornando-os, com isto, escravos de si. E essa escravido, que ontolgica, os impossibilita que, de fato, se formem entes morais, ou homens continentes, haja vista que, se so incontinentes, so arrastados pelas paixes. E, se so incontinentes, no podem ser considerados na medida em que dominados pelas paixes homens virtuosos. A concepo de que uma vida jamais poder ser considerada ditosa quando as funes corporais so primazes em relao s racionais, no s refletir, como podemos consider-la uma questo central no pensamento de Agostinho:
No de estranhar que os homens desventurados no alcancem o que querem, isto , uma vida bem aventurada, j que, por sua vez, no querem o que o inseparvel, e sem o qual ningum se faz digno dela e ningum a consegue, a saber, o viver segundo a razo (De lib. arb. I, XIV, 30; grifos acrescentados).

Por conseguinte, uma vida feliz s se materializa, e s possvel, naquele que exerce, retamente, a funo que lhe prpria enquanto ser racional.2 O viver, atributo inexorvel daqueles que pertencem ao mundo natural, no pode ser concebido, de fato, como a funo que prpria do homem, haja vista que o homem, a, no se distingue nem mesmo das plantas. Do mesmo modo, a funo que prpria do homem no pode ser buscada na vida corporal, ou seja, na esfera dos sentidos, haja vista que, nesse reino, o homem no pode se diferenciar, da mesma maneira, dos animais. Por excluso desses dois, chega-se evidncia que a funo prpria do homem uma atividade [...] do ente que tem razo (Et. Nic. I, 7, 1098a, 5); por conseguinte, se, ento, a funo prpria do homem uma atividade da alma segundo a razo, o que implica a razo, e se, por outra parte, dizemos que essa funo prpria do homem, e do homem bom (ibidem), a funo do homem que o leva a uma vida feliz , necessariamente, uma atividade da alma conforme 71

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a virtude, mas a virtude mais perfeita. Em outra obra, Aristteles destaca que a funo da alma :
Fazer viver, e que isso consiste em um uso e um estar desperto (pois o sono uma espcie de inatividade e de repouso); por conseguinte, j que a funo da alma e de sua virtude , necessariamente, uma e idntica, a funo da virtude ser uma vida boa. Este, ento, o bem perfeito que, como dissemos, a felicidade (Et. Eud. II, 1, 1219a, 20-25).

Mas, para isso, urge a necessidade de pautar-se, em suas aes morais, pelos princpios mais sublimes da razo, o que implica estar para alm do puro viver e da submisso esfera dos sentidos corporais: o bem do homem uma atividade da alma de acordo com a virtude (Et. Nic. I, 7, 1098a, 15). Se a funo que prpria do homem no diz respeito ao homem em seu estado natural, advm, da, a concluso de que uma vida continente, virtuosa e feliz, exclusividade daquele em que a razo no , em momento algum, subjugada pelos mandos das paixes. Agostinho, em consonncia com Aristteles, afirma que:
No evidente que, quanto fora e outras habilidades corporais, o homem facilmente ultrapassado por certo nmero de animais? Assim sendo, qual , pois, o princpio que constitui a excelncia do homem, de modo que animal algum consiga exercer sobre ele sua fora, ao passo que o homem exerce seu poder sobre muitos deles? No ser aquilo que se costuma denominar razo ou inteligncia? (De lib. arb. I, VII, 16).

Descoberto isso, a tica de Aristteles dever dirigir-se para o exame das aes virtuosas, porquanto a sua preocupao com a formao do ente moral, o que justifica a nfase que o estagirita concedeu significao prtica da filosofia. Mas, para que possamos compreender com exatido o tema das aes virtuosas, devemos relembrar, em primeiro lugar, que, para Aristteles, tanto a virtude quanto os vcios esto em poder do homem. Segue-se da a impossibilidade de, no mundo do esprito, como ficar mais claro em Agostinho e Kant, insinuar quaisquer argumentos que firam o princpio de que o homem autnomo e responsvel por seus prprios atos:
Sempre que est em nosso poder o fazer, est tambm o no fazer, e sempre que est em nosso poder o no, est o sim, de modo que, se est em nosso poder o agir quando belo, o estar tambm quando vergonhoso, e se est em nosso poder o no agir quando belo, o estar, assim mesmo, para agir quando vergonhoso. E se est em nosso poder fazer o belo e o vergonhoso e, igualmente, o no fazlo, e nisto radica o ser bons ou maus, estar em nosso poder o ser virtuoso ou vicioso (Et. Nic. III, 5, 1113b, 5-15).

Sendo assim, voluntariamente que os homens so virtuosos ou continentes, bem como voluntariamente que esses mesmos homens podem ser viciosos ou incontinentes.3 Desse modo, o infeliz, ainda que no queira a
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desventura, como ningum o quer, o voluntariamente, visto que, da vontade pervertida, ou da incontinncia, segue-se, e no pode ser de outro modo, a infelicidade. A idia aristotlica de que, da voluntariedade da ao moral, se segue o merecimento de uma vida ditosa ou miservel naqueles que, respectivamente, so virtuosos ou no, representar uma das preocupaes fundamentais de Agostinho:
Temos dito que os homens se fazem dignos de uma vida feliz por sua prpria vontade, e que tambm por sua vontade se fazem merecedores de uma vida miservel, e to eficazmente que em um e em outro caso recebem o seu merecido [...]. Como se explica que os que vivem uma vida miservel o faam por sua prpria vontade, sendo que ningum quer viver miseravelmente? [...] Com efeito, os que so ditosos, e para s-lo preciso que tambm sejam bons, no o so precisamente porque querem viver uma vida ditosa, pois isto os maus tambm o querem, seno porque tm querido viver bem ou retamente, coisa que no o querem os maus (De lib. arb. I, XIV, 30).

Isso s compreensvel, no pensamento agostiniano, de posse da certeza de que o vicioso, como o incontinente, isto , aqueles que atendem, voluntariamente, aos vcios, no se submetem, em suas aes, quela lei eterna, a cuja considerao j tempo que voltemos, a saber, que da parte da vontade est o mrito, e que o prmio e o castigo consistem na bemaventurana e na desventura (ibidem). Esta concluso de Agostinho remonta, mais uma vez, ao pensamento de Aristteles. E a partir desse axioma que o estagirita, assim como Agostinho, poder acrescentar que, na medida em que o mal agir voluntrio, fica-se justificada, indubitavelmente, a existncia e a utilidade da punio e dos louvores. Com efeito, se o ato humano, pelo qual os homens podem ser felizes ou no, voluntrio, segue-se, em conseqncia, a idia de que o agir moral pressupe a responsabilidade e a autonomia. E, sem esta suposio, no seria possvel o estabelecimento de qualquer doutrina moral. Para evitar esse problema, Aristteles afirma que:
Tudo isso parece estar confirmado, tanto pelos indivduos em particular, como pelos prprios legisladores: efetivamente, eles castigam e tomam represlias dos que tm cometido ms aes sem ter sido levados pela fora ou pela ignorncia de que eles mesmos no so responsveis, e, em troca, honram aos que fazem o bem, para estimular a estes e impedir a ao dos outros. E, certamente, nada nos exorta a fazer o que no depende de ns nem voluntrio [...] (Et. Nic. III, 5, 1113b, 20-25).

A idia de que os atos morais so autnomos ocupou uma posio central na obra de Ccero e, por extenso, na obra de Agostinho, assim como na filosofia moderna, a exemplo de Kant. Tanto Ccero quanto Agostinho, no que convergem com Aristteles, concordam que, se no h responsabilidade pelos atos humanos, em vo se fazem leis, em vo se recorre a repreenses, louvores, vituprios e exortaes. Sem justia alguma 73

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

os bons recebem prmios, e os maus, suplcios (De civ. Dei V, IX, 2). Agostinho, imbudo da perspectiva ciceroniana e, indiretamente, da aristotlica, frente constatao da responsabilidade, ou da voluntariedade dos atos humanos, destaca que, por isso mesmo, no em vo que se fazem leis, que se recorre a repreenses, exortaes, louvores e vituprios. Em outra obra, Agostinho nos lembra, com maior preciso, que:
Se o defeito que chamamos pecado assalta-se, como uma febre, contra a vontade de algum, com razo pareceria injusta a pena que acompanha o pecador, e recebe o nome de condenao. No entanto, at tal ponto o pecado um mal voluntrio, que de nenhum modo seria pecado se no tivesse seu princpio na vontade: esta afirmao goza de tal evidncia, que sobre ela esto de acordo os poucos sbios e os muitos ignorantes que h no mundo (De vera rel. XIV, 27).

E so justamente as aes virtuosas e as viciosas que distingue aqueles para os quais se dirigem os elogios, daqueles que, por sua vez, so merecedores da repreenso e do castigo. por isso que Aristteles destaca o vcio e a incontinncia como algumas das principais disposies, ou inclinaes morais que devem ser evitadas na formao do ente moral (cf. Et. Nic. VII, 1, 1145a, 15). O homem incontinente aquele que busca os prazeres excessivos - e, por sua vez, evita as dores da pobreza, a fome, a sede, o calor, o frio, e toda sensaes penosas do tato e do gosto - e isso no por escolha deliberada, seno contrariando ela e sua razo (idem: VII, 4, 1148a, 5). O incontinente, ao contrrio do que tem o domnio sobre si mesmo por meio da razo e que, por isso, continente, aquele que, em decorrncia da subservincia aos mandos das paixes, no consegue exercer o controle sobre seus apetites. Assim sendo, o incontinente, bem como o licencioso, aquele que sempre age contra a reta razo. No entanto, deve-se ressaltar que o incontinente no como o licencioso, visto que, ainda que a paixo o domine e o faa agir contra sua reta razo, ele jamais deixar de se convencer de que no deve seguir tais prazeres desenfreadamente.4 Dessa assero se seguem alguns outros pontos fundamentais: (i) o incontinente age voluntariamente, na medida em que o ato voluntrio pressuposto de qualquer filosofia moral; (ii) mas a sua escolha, diferentemente da do licencioso, boa, de modo que s mal pela metade e, finalmente (iii) no injusto, pois no pe embustes (idem: VII, 10, 1152a,15). Todavia, ainda que seja melhor do que o licencioso, o incontinente incapaz de ater-se ao que ele mesmo delibera, haja vista que permanece indiferente entre os contrrios. Por conseguinte, o que distingue o continente do incontinente o atender ou no s suas resolues, que, em si mesmas, so boas.5 Tendo isso em vista, o incontinente se parece com uma cidade que decreta tudo o que se deve decretar e que tem boas leis, mas no usa nenhuma delas. O licencioso, em troca, semelhante a uma cidade que faz uso das leis, mas das ms (ibidem). Em outra passagem, Aristteles destaca que, o que separa o incontinente do licencioso o fato de que ambos perseguem os prazeres corporais, mas o dissoluto cr que deve faz-lo e o incontinente no (idem: VII, 9, 1152a, 5). E era exatamente desse modo que Agostinho, no livro VIII das
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Confisses, descreve o estado em que se encontrava, posto que, ainda que os desejos naturais exercessem primazia em seu esprito, desejava, ardentemente, romper com essa supremacia, pois acreditava que no deveria seguir, dissolutamente, tais prazeres. E era essa incontinncia que o fazia agir contra as boas leis que sua razo no mais ignorava: assim tambm tinha eu como certo ser melhor entregar-me ao teu amor do que ceder minha concupiscncia; mas aquilo agradava-me e vencia, isto sabia-me bem e amarrava-me (Conf. VIII, V, 12). De fato, as paixes derivam, em ltima instncia, de fatores naturais que se consolidam em mecanismo. J a felicidade, na medida em que resulta de uma vida virtuosa, uma conquista, e exige, por isso mesmo, firmeza moral e superao do mecanismo do hbito: a felicidade no um modo de ser, pois de outra maneira poderia pertencer tambm ao homem que passa a vida dormindo ou vivera como uma planta, ou ao homem que sofrera as maiores desgraas (t. Nic. X, 6, 1176 a-b). Da afirmarmos, com eles, que a felicidade no alcanada por meio de uma submisso e que, por isso, depende de uma atividade que prpria do ente moral:
A felicidade no necessita de nada, seno que se baste a si mesma, e as atividades que se escolhem por si mesmas so aquelas das quais no se busca nada fora da mesma atividade. Tais parecem ser as aes de acordo com a virtude. Pois o fazer o que nobre e bom algo desejado por si mesmo (ibidem).

Tendo em vista que a vida feliz uma conquista, resultante de um esforo, e jamais da diverso, ou da submisso aos prazeres corporais, Aristteles afirmou que feliz se considera que a vida conforme a virtude, e esta vida tem lugar no esforo, no na diverso [...] porque a felicidade no est em tais passatempos, mas nas atividades conforme a virtude (idem: X, 6, 1177a, 5-10). Como j havamos mostrado em Ccero, para Aristteles a felicidade no se concretizar naqueles que vivem como querem. Por conseguinte, do fato de se conseguir alguma coisa, no se segue, em hiptese alguma, uma vida feliz, porquanto esse objeto pode ser algo que no convm, especialmente o excesso de prazeres corporais. E dessa idia que provm o pensamento ciceroniano, tal qual rememorado e assimilado, por Agostinho (cf. De beat. vit. 2, 10): Dessa forma, compreende-se o porqu de o licencioso divergir do homem virtuoso acerca do que entende por felicidade. Com efeito, as coisas que so realmente valiosas e agradveis so as que aparecem como tais, mas conforme o parmetro do homem virtuoso. Portanto, a atividade prefervel para cada homem ser, ento, a que est de acordo com o seu prprio modo do ser, e para o homem bom ser a atividade de acordo com a virtude (t. Nic. X, 6, 1176b, 25). E, se a felicidade perfeita uma atividade de acordo com a virtude, necessrio que seja uma atividade conforme a virtude mais perfeita, mais elevada. Destarte, necessrio que essa atividade, por sua vez, se d, unicamente, em funo do que h de mais nobre no homem o intelecto. Aristteles concluir, enfim, que atividade mais elevada , sem dvida, a atividade contemplativa, j que inerente queles nos quais o que h de 75

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superior domina a primazia dos apetites:


Se esta o intelecto, ou qualquer outra faculdade que, por natureza, parece governar e dirigir, e possuir o conhecimento das coisas belas e divinas, e se esta faculdade ela mesma divina como sendo a parte mais divina que h em ns, a felicidade perfeita ser a atividade desta faculdade em conformidade com a virtude que lhe prpria [...] esta atividade terica [contemplativa]. A mais agradvel de todas as atividades em conformidade com a virtude , segundo a opinio comum, a sabedoria (idem: X, 7, 1177a, 15-20).

Foi esse princpio aristotlico que fez Agostinho compreender, com clareza, o percurso necessrio para que pudesse realizar o seu ideal, a saber, o de se formar um ente moral, continente. De fato, tornou-se lhe evidente que s aquele que governa os movimentos irracionais da alma [...] que se pode dizer que domina [...] o que deve dominar, e domina em virtude daquela lei que dissemos que era a lei eterna (De lib. arb. I, VIII, 18). Desde o momento em que travou contato com Ccero, a aspirao que se esboava em Agostinho era a de conformar-se, em suas aes morais, a uma norma reta de alcance geral, o que implicava viver segundo os princpios da razo:
Ag. - Que temos corpo evidente, e tambm uma alma que anima o corpo e causa de seu desenvolvimento vegetal; dos elementos que vemos tm tambm as bestas; mas temos, ademais, um terceiro elemento, que vem a ser como a cabea ou os olhos de nossa alma, ou algo assim, se h algo que podemos aplicar com mais propriedade razo e inteligncia, e que no tm as bestas. Pela qual te rogo que vejas se podes encontrar na natureza do homem algo mais excelente que a razo. Ev. - No encontro absolutamente nada melhor (idem: II, VI, 14; grifos acrescentados).

Entendido o carter formal da relao, via Ccero, entre a tica de Aristteles e o pensamento de Agostinho, possvel afirmarmos que esta no se restringe, de forma alguma, a essas categorias. Mais que isso, alm de no se restringir ao carter especulativo dos temas filosficos, estendese, outrossim, ao que compreendemos por atitude filosfica, em sua significao prtica, e enquanto tem por fim a formao do ente moral. Segundo igo (2000, p.78):
As numerosas anlises verbais que achamos na tica de Aristteles, mostram uma inteno metodolgica. Efetivamente, como construir uma teoria do agir humano? Como aplicar s aes do homem o qualificativo de boa ou m? Onde encontrar o contraste ante o que possa calibrar-se o valor de nossos atos? A experincia nos brinda o material para tentar responder a essas perguntas. E a experincia nos oferece, sobretudo, como linguagem, mas essa linguagem no surge somente do reflexo terico dos comportamentos [...]. Toda tica se funda no somente em pressupostos tericos, mas em pressupostos prticos. 76

A INFLUNCIA DA TICA ARISTOTLICA EM AGOSTINHO

Essa afirmao origina-se, explicitamente, de uma passagem da tica, quando Aristteles afirma que assim, posto que o presente estudo no terico como os outros (pois investigamos no para saber o que a virtude, mas para ser bons, j que de outro modo nenhum benefcio tiraramos dela), devemos examinar o relativo s aes [...] (Et. Nic. II, 2, 1103b, 25). E essa perspectiva de Aristteles, marcada pela ateno significao prtica da filosofia, que ir caracterizar sobremaneira o pensamento de Agostinho, os sermes de Vieira, a doutrina cartesiana do erro e da indiferena em funo da estrutura ontolgica humana e, igualmente, a filosofia kantiana. Por isso, essa tradio que credita filosofia uma significao eminentemente prtica, e que comparticipada pelos autores mencionados acima, entre inmeros outros, que poder contribuir para a nossa viso do problema enquanto problema filosfico.
Bibliografia AGUSTN, San. De la vida feliz. In: Obras completas de San Agustn. Trad., introd. y notas de Victorino Capanaga. Edicin bilinge. 6a ed. Madrid: La Editorial Catlica/ BAC, 1994, v.1. p.537-588. ___. Del libre albedro. In: Obras completas de San Agustn. Trad., introd. y notas de Evaristo Seijas. Edicin bilinge. Madrid: La Editorial Catlica/BAC, 1951, v.3. p.237- 521. ___. La Ciudad de Dios. In: Obras completas de San Augustn. Trad., introd. y notas de Jose Moran. Edicin bilinge. 2 ed. Madrid: La Editorial Catlica/BAC, 1965, v.16-17. ARISTTELES. tica Nicomquea. Introd. por Emilio Lled igo. Traduc. y notas por Julio Pall Bonet. 5 reimpresin. Madrid: Gredos, 2000. v. 89. p. 130-408. ___. tica Eudemia. Introd. por Emilio Lled igo. Traduc. y notas por Julio Pall Bonet. 5 reimpresin. Madrid: Gredos, 2000. v. 89. p. 409-546. PLATO. A Repblica. Introd, trad. e notas de Maria Helena da Rocha Ferreira. 9 ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2001. CAPNAGA, Victorino. Introduccin general. In: Obras completas de San Agustn. Trad., introd. y notas de Victorino Capanaga. Edicin bilinge. 6 ed. Madrid: La Editorial Catlica/BAC, 1994, v.1. p.3-294. IGO, Emilio Lled. Introduccin. In: ARISTTELES. tica Nicomquea. Introd. por Emilio Lled igo. Traduc. y notas por Julio Pall Bonet. 5 reimpresin. Madrid: Gredos, 2000. v.89. p. 1- 122. Notas 1 Aristteles destaca que toda arte e toda investigao e, igualmente, toda ao e livre escolha parecem tender a algum bem; por isto se tem manifestado, com razo, que o bem aquilo a que todas as coisas tendem [...] mas como h muitas aes, artes e cincias, muitos so tambm os fins (Et. Nic. I, 1 1094a, 1). Os bens de cada coisa, por sua vez, so aquilo pelo qual se fazem essas mesmas coisas. O bem da medicina a sade, assim como o da estratgia a vitria, da arquitetura, a casa, etc. Tudo o quanto se faz, movido pela busca de um determinado fim, que inerente quela arte ou cincia. Se, porventura, houver um bem que se busca por si mesmo o chamamos mais perfeito que ao que se busca por outra coisa, e ao que nunca se escolhe por causa de outra coisa, o consideramos mais perfeito que aos que se escolhem, seja por si mesmos, seja por outra coisa. Simplesmente, chamamos perfeito ao que sempre se escolhe por si mesmo e nunca por outra coisa (idem: I, 7, 1097a, 30).

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Segundo Aristteles, tudo o que h, desde uma manta, at a alma humana, tem uma funo e um uso. A funo de cada coisa o seu fim. E o fim o que h de melhor e ltimo, na medida em que a causa pela qual existem todas as demais coisas. Por isso, transparece a superioridade da funo sobre o modo do ser e a disposio. No entanto, a palavra funo se diz em duas acepes: em certos casos, com efeito, a funo algo distinto do uso; por exemplo, a funo da arquitetura uma casa, no o ato de construir; da medicina, a sade, no a ao de curar ou sanar; em troca, em outros casos, o uso a funo; por exemplo, a funo da viso o ato de ver, e da cincia matemtica, a contemplao. Da que, nos casos nos quais o uso a funo, o uso seja, necessariamente, melhor que o modo do ser (Et. Eud. II, 1, 1219a, 10-15). 3 Segundo Aristteles, ainda que todos os atos morais, tanto os virtuosos quanto os viciosos, sejam atos voluntrios, somente o homem virtuoso pode, de fato, escolher. Desse modo, as atitudes viciosas so voluntrias, mas jamais podero ser consideradas como atos de escolha: havendo definido o voluntrio e o involuntrio, devemos tratar agora da escolha, a que parece ser mais apropriada virtude [...]. evidente que a escolha algo voluntrio, mas no o mesmo que isso, dado que o voluntrio tem maior e xtenso; pois, do voluntrio participam tambm as crianas e outros animais, mas no da escolha, e s aes feitas impulsivamente chamamos voluntrias, mas no escolhidas. [...] o homem incontinente atua por apetite, mas no por escolha; o continente, ao contrrio, atua escolhendo, e no por apetite. Ademais, o apetite contrrio escolha, mas no o apetite ao apetite (Et. Nic. III, 2, 1111b, 5). Isso porque, a escolha um princpio de ao moral, ou um desejo deliberado acerca do que se sabe ser, realmente, bom. Fora dos limites do entendimento, no pode haver mais que uma mera opinio. Segue-se da que sem intelecto, sem reflexo e sem disposio tica no h escolha, pois o bem agir e seu contrrio no podem existir sem reflexo e sem carter. (idem: IV, 2, 1139a, 30). 4 Esse ponto bastante esclarecedor no que diz respeito ao rompimento, por parte de Aristteles, com o pensamento moral de Plato. Segundo o estagirita, alguns dizem que isso impossvel, se se tem conhecimento: pois, como Scrates pensava, seria absurdo que, existindo o conhecimento, outra coisa o dominara e arrastara como a um escravo. Scrates, com efeito, combatia a qualquer preo esta teoria, e sustentava que no h incontinncia, porque nada age contra o melhor o sabendo, seno por ignorncia (Et. Nic. VII, 2, 1145b, 25). Em um outro momento, destaca que o mesmo homem jamais poder ser, ao mesmo tempo, prudente e incontinente. Isso porque, o homem prudente no s por saber, mas por ser capaz de agir, e o incontinente no capaz de agir (idem: VII, 10, 1152a, 10; grifos acrescentados). Em PLATO, a idia de que, do conhecimento do Bem segue-se, necessariamente, a virtude, o reflexo de sua concepo ticopoltica do saber filosfico, tal qual estabelecida na Repblica: pois, segundo entendo, no limite do cognoscvel que se avista, a custo, a idia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela para todos a causa de quanto h de justo e belo; que, no mundo visvel, foi ela que criou a luz, da qual senhora; e que, no mundo inteligvel, ela a senhora da verdade e da inteligncia, e que preciso v-la para ser sensato na vida particular e pblica (Rep. VII, 517 b-c; grifos acrescentados). 5 Ainda que, num primeiro momento, se possa confundir o continente com o moderado, h, entre eles, diferenas especficas. certo que, tanto um quanto outro, so tais que no fazem nada contrrio razo por causa dos prazeres corporais (t. Nic. VII, 9, 1151b, 35). Contudo, o continente, no que diverge com o moderado, tem maus apetites, ou ms disposies. O moderado de tal ndole que jamais poderia sentir qualquer prazer em aes que contrariem os princpios racionais. J o continente pode senti-los, mesmo que no se deixe arrastar, em momento algum, por tais prazeres corporais. 78
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A legenda de So Jorge e a santidade cavaleiresca: algumas reflexes


Bruno Gonalves lvaro* Quando no ano de 2005, passamos a colaborar com o Projeto Coletivo Hagiografia e Histria, coordenado pela Prof Dr Andria Frazo, demos incio tambm ao nosso projeto de pesquisa, que visa identificar a presena de elementos do ideal cavaleiresco em algumas hagiografias por ns analisadas. Para o incio destas anlises, temos utilizado como fonte a Legenda urea, escrita no sculo XIII pelo dominicano Jacopo de Varazze. Nosso intuito neste texto compartilhar alguns questionamentos que surgiram a partir destes primeiros estudos e que nos levaram a encontrar elementos, que, em princpio, podem ser considerados desviantes e que muitas vezes so ofuscados pela predominncia do tema martrio na Legenda urea. Apresentaremos apenas uma das muitas variveis que temos encontrado no decorrer da pesquisa. Daremos nfase tambm as dificuldades que temos enfrentado para fazer um levantamento bibliogrfico sobre a nossa temtica, que tem como proposta a elaborao de um conceito e uma possvel anlise comparativa entre a literatura hagiogrfica e a literatura corts. A Legenda de So Jorge: uma santidade cavaleiresca? A Legenda urea constitui-se como uma compilao de vidas de santos com um carter extremamente pedaggico, j que tudo indica que a mesma foi escrita por Jacopo de Varazze para servir como base para os sermes de seus companheiros de ofcio. A obra apresentada como uma compilao, porm trabalhamos com a hiptese de que o hagigrafo possa ter dado novos ares as vidas dos santos descritas. No caso da vida de So Jorge, Jacopo de Varazze nos d a entender que a mesma uma juno de alguns relatos, opinies de autores e discrepncias sobre o provvel perodo e a possvel localizao do martrio do santo. Quase no final da narrativa da hagiografia cita um prefcio,1 composto por Ambrsio; um sermo de Gregrio de Tours, que trata das relquias de So Jorge; e por fim, a Histria de Antioquia, que narra duas aparies do santo. Acreditamos que Jacopo de Varazze, ao narrar a vida de So Jorge, tinha como principal intuito demonstrar a converso dos infiis atravs das
Graduado em Histria pela Faculdades Integradas Simonsen.

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atitudes desse nobre cavaleiro e exaltar mais uma vez a questo do martrio pela f. Contudo, todas as vezes que lemos este texto, perguntamos-nos se os atos e as falas atribudas a So Jorge no relato so resqucios de elementos do ideal cavaleiresco. H implcita, nesta narrativa, o que poderamos denominar santidade cavaleiresca? Dividimos a vida de So Jorge em duas partes: a primeira apresenta o santo ainda como cavaleiro, seguindo o cdigo de cavalaria. Este cdigo resumido pelo historiador Michel Pastoureau em trs princpios: fidelidade palavra dada e lealdade perante todos; generosidade, proteo e assistncia aos que precisam; obedincia Igreja, defesa de seus ministros e de seus bens (PASTOUREAU, 1989, p. 48). J na segunda parte, vemos So Jorge abandonando seus trajes militares e se entregando somente pregao, e, por fim, alcana o martrio e o reconhecimento de sua santificao. Vamos nos ater primeira parte do texto para discutir a presena do ideal cavaleiresco na narrativa e depois lanar a questo da possibilidade de uma santidade cavaleiresca na Legenda urea. Em resumo, a situao exposta pelo narrador para a ao de Jorge, ainda no denominado como santo, o drama vivido pela cidade de Silena, que era constantemente atacada por um drago. Para acalmar o monstro, foi institudo que fossem sacrificadas ovelhas, porm, em um determinado momento, elas se tornaram escassas. O conselho municipal decidiu ento que entregariam uma ovelha e um humano, sendo sorteado entre rapazes e moas, sem excetuar ningum. Com o passar do tempo, tambm faltou gente e o sorteio acabou designando a nica filha do rei para ser entregue ao drago. no lago para onde se dirigiu a dama que se desenrola toda a trama:
O bem-aventurado Jorge passava casualmente por l, e vendo-a chorar perguntou a razo. Ela respondeu: Bom rapaz, monte depressa em seu cavalo e fuja, se no quiser morrer como eu. Jorge: No tenha medo, minha filha, e diga-me o que toda aquela gente est esperando ver. Ela: Vejo que voc bom rapaz, de corao generoso, mas quer morrer comigo? Fuja! Depressa!. Jorge replicou: No irei embora antes que me conte o que est acontecendo. Depois que a moa explicou tudo, Jorge disse: Minha filha, nada tema, porque, em nome de Cristo, vou ajud-la. Ela replicou: Voc um bom cavaleiro, mas salve-se imediatamente, no perea comigo! Basta que eu morra sozinha, porque voc no poderia me livrar e pereceramos juntos. (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p. 366, 367).

Nestes dilogos observamos que a figura do bom cavaleiro presente em todos os momentos. Podemos ver o cuidado que o narrador tem em exprimir, nas falas de Jorge, a preocupao em tentar ajudar a dama. Mas o elemento ureo deste bom cavaleiro est na definio de por quem e em nome de quem ele luta: para exaltar o nome de Cristo que o cavaleiro Jorge vai ajudar a dama e o reino atormentado pelo drago. Vejamos o decorrer da narrativa:

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A LEGENDA DE SO JORGE E A SANTIDADE CAVALEIRESCA: ALGUMAS REFLEXES Enquanto conversavam, o drago ps a cabea para fora do lago e foi se aproximando. Toda trmula, a moa falou: Fuja, meu bom senhor, fuja depressa. Jorge montou imediatamente em seu cavalo, protegeu-se com o sinal-da-cruz, e com audcia atacou o drago que avanava em sua direo. Brandindo a lana com vigor, recomendouse a Deus, atingiu o monstro com fora, jogando-o ao cho, e disse moa: Coloque sem medo seu cinto no pescoo do drago, minha filha. Ela assim o fez e o drago seguiu-a como um cozinho muito manso. (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p. 267).

O combate contra o drago tambm um exemplo do que era a cavalaria nos sculos XII e XIII em termos de forma de combate. E podemos abrir aqui um parntesis para discutirmos a arma utilizada por Jorge no primeiro contato direto com o drago: a lana, que uma arma de estocada. Segundo alguns historiadores, a lana media cerca de trs metros e pesava aproximadamente de dois a cinco quilos. difcil imaginarmos a lana como uma arma destinada a transpassar o adversrio, mas a cavalaria a utilizou muito, pois quando no matava o oponente, acabava jogando-o no cho durante as justas2. Talvez por isso Jorge descrito atacando o drago no primeiro momento com esta arma e no com outra, j que, como veremos a seguir, havia objetivos mais especficos que simplesmente matar o drago e salvar a dama:
Quando ela chegou cidade, vendo aquilo todo o povo ps-se a fugir gritando: Ai de ns, logo todos vamos morrer!. Mas o beato Jorge disse-lhes: Nada temam, o Senhor me enviou para que eu os libertasse das desgraas causadas por esse drago. Creiam em Cristo e recebam o batismo, que eu matarei o drago. Ento o rei e todo o povo foram batizados e o bem-aventurado Jorge desembainhou a espada e matou o drago, ordenando depois que o levassem para fora da cidade. Quatro pares de bois arrastaram-no para campo aberto. Nesse dia 20 mil homens foram batizados, sem contar crianas e mulheres. (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p. 367).

O drago nos parece ser uma figura presente na narrativa para convencer os pagos a se converterem f crist e demonstrar o herosmo perfeito do beato Jorge. Isto fica claro quando o mesmo mostra ao povo por quem e para qu foi enviado e informa que se passassem a crer em Cristo e recebessem o batismo o drago seria morto. Vemos Jorge matar o drago utilizando sua espada, que a arma do cavaleiro por excelncia (PASTOUREAU, 1989, p. 113). Dentro da sociedade cavaleiresca e em seus ideais, a espada constantemente objeto de toda uma liturgia. Ela considerada tambm a mais nobre das armas e um smbolo da justia e da autoridade exercida pelos cavaleiros. No pargrafo final desta primeira parte da narrativa sobre a vida do beato Jorge, que o apresenta mais como um modelo de cavaleiro a ser seguido do que propriamente como um santo, podemos observar mais caractersticas que nos remete ao ideal cavaleiresco: 81

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS (...). O rei ofereceu ao bem-aventurado Jorge imensa quantidade de dinheiro, mas ele no aceitou e mandou do-la aos pobres. Jorge deu ento ao rei quatro breves conselhos: cuidar das igrejas de Deus, honrar aos padres, ouvir com ateno o oficio divino e nunca esquecer os pobres. A seguir beijou o rei e foi embora. (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p.367).

Os quatro conselhos que Jorge d ao rei constituem-se presentes no ideal cavaleiresco. Era atribuda Cavalaria a responsabilidade de proteger os indefesos, aqueles que no possuam armas. interessante observar que estes breves conselhos dados pelo beato esto bem prximos dos conselhos dados pelos clrigos aos prprios cavaleiros! A Santidade Cavaleiresca Um dos itens ao qual temos dispensado maior ateno a construo do conceito que temos denominado de santidade cavaleiresca, que identificamos como uma juno de influncias entre elementos provenientes dos universos eclesisticos e laicos. Para tanto, selecionamos para estudo a vida de certos santos, que so apresentados carregados de atributos guerreiros, como So Miguel, So Mercrio, So Longino, So Jorge, etc. Temos trabalhado a santidade cavaleiresca a partir da definio do que entendemos por ideal cavaleiresco e santidade. O ideal cavaleiresco difcil de se definir, j que possui vrias facetas. Est carregado de conotaes religiosas, honorficas e ticas. Assim, o cavaleiro ideal , ao mesmo tempo, corts, um defensor da f, dos fracos e indefesos, um heri por excelncia. J a santidade ns definimos como a qualidade presente em algumas pessoas para que atuem como mediadoras entre o natural e o sobrenatural. A partir do que o filsofo Michel Foucault definiu como anlise arqueolgica (FOUCAULT, 2004, p. 157)3, identificamos que no sculo XIII constituiu-se um arquivo da literatura cavaleiresca desenvolvida no sculo anterior, que implicou na recriao de enredos literrios mais especficos. Acreditamos que a ao arqueolgica fez-se presente na narrativa da vida de So Jorge por Varazze, que apresentado com caractersticas que o aproximam do ideal de cavaleiro oriundo do sculo XII. A partir destas reflexes a segunda parte da vida de So Jorge utilizada para discutirmos a possibilidade do que chamamos de santidade cavaleiresca. Pois sentimos uma certa resistncia por parte do hagigrafo em retratar Jorge como um santo enquanto ainda atuava como cavaleiro, porm este estereotipo de santo-guerreiro ou cavaleiro-santo se mitifica e se prolonga por toda Idade Mdia chegando at os nossos dias. Jacopo de Varazze s passa a considerar a santidade de Jorge quando este trocou as vestes militares pelas dos cristos e passou a viver entre eles (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p. 368). a partir deste momento que a forma apocopada da palavra santo, so, comea a aparecer junto ao nome Jorge na narrativa. At ento Varazze s se refere a So Jorge com as denominaes de bem-aventurado, bom rapaz, bom senhor, beato,
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A LEGENDA DE SO JORGE E A SANTIDADE CAVALEIRESCA: ALGUMAS REFLEXES

fidelssimo guerreiro de Deus, feliz e nclito paladino do Senhor, comandante dos cristos (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p. 366-370), adjetivos que poderiam ser associadas a um cavaleiro que cavalgava nas estepes dos campos medievais. Isto nos permite inferir que mesmo sendo o maior intuito de So Jorge, ao ajudar a dama e o reino em perigo, exaltar o nome de Cristo, ele no era ainda considerado um santo dentro do contexto da estria que nos apresentada. Defendemos a hiptese de que a santidade cavaleiresca foi construda no perodo, a despeito das resistncias de Varazze. A forma como So Jorge descrito, com caractersticas de um cavaleiro medieval, provavelmente chamou muita ateno da Sociedade Cavaleiresca que, por sua vez, necessitava de um santo prximo s suas expectativas guerreiras. Os clrigos, conscientes disto, no se opuseram a tal identificao, mesmo considerando, segundo o que informa o prprio Jacopo de Varazze na sua introduo vida de So Jorge, que sua legenda fora considerada apcrifa pelo conclio de Nicia devido s discrepncias entre os relatos (JACOPO DE VARAZZE, 2003, p. 365). Sugerimos, ento, que h o delineamento de uma santidade cavaleiresca na Legenda urea, mesmo com a resistncia por parte do hagigrafo. Esta hiptese est fundamentada numa srie de transformaes sociais no seio da Idade Mdia, que ajudaram a elevar So Jorge ao smbolo de toda uma cavalaria dedicada a luta contra os infiis, comprometida a proteger o Cristianismo e os mais fracos. Mesmo que essa imagem no tenha partido diretamente da Igreja, refletiu-se nas Cruzadas. Consideramos, ento, que a imagem do cavaleiro-santo ou santo-guerreiro, nos moldes militares da palavra, foi construda pela Cavalaria e apreendida pela Igreja. Dificuldades na construo da pesquisa Iremos agora expor algumas dificuldades que temos encontrado no decorrer da pesquisa. Julgamos pertinentes coment-las, j que esto extremamente amarradas a forma como temos comeado a desenvolver nossas reflexes para o incio do nosso trabalho. Uma das dificuldades que temos enfrentado a ausncia de obras historiogrficas que nos dem embasamento para trabalhar com tal temtica, com suas possveis variveis e que nos auxiliem a encontrar respostas cabveis aos nossos questionamentos.4 No encontramos, at o momento, nenhuma referncia de historiadores que trabalharam com pelo menos uma certa proximidade temtica da nossa, ou seja, analisar nas hagiografias caractersticas do pensamento e atitude cavaleiresca do perodo medieval comparando a outros enredos literrios, como o das canes de gesta, por exemplo. Quanto s obras sobre o dominicano Jacopo de Varazze, no mbito da historiografia medieval produzida no Brasil, so poucas. Temos como exemplos de trabalhos sobre Jacopo de Varazze e sua Legenda urea, a tima dissertao de mestrado da Prof. Carolina Fortes,5 que dedica alguns captulos extremamente interessantes sobre os fatos que cercam a vida e a composio de sua obra e tem sido para ns uma importante referncia 83

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

sobre o assunto; alguns artigos publicados em peridicos e livros, para citar como exemplo, A Outra Face dos Santos: Os Milagres Punitivos na Legenda urea do Prof. Hilrio Franco Jr..6 Estas pesquisas e outras no citadas esto nos dando uma tima base sobre a importncia da Legenda urea no sculo XIII, porm cada trabalho, como possvel observar graas aos seus ttulos, tem seu corte temtico bem distinto do nosso. Como ressaltamos anteriormente, no tivemos ainda a oportunidade de contato com trabalhos mais especficos e relacionados ao nosso tema. Isto pode ser encarado de uma forma positiva, j que se percebe uma certa lacuna historiogrfica sobre o assunto. Porm tambm negativo, pois no temos um referencial que ajude a nos desenvolvermos com mais segurana. J sobre o ideal cavaleiresco e a prpria cavalaria temos algumas referncias mais concisas, bem representadas por historiadores como: Georges Duby, Franco Cardini e Jean Flori, que em algum momento de suas anlises histricas reservaram um certo espao a Sociedade Cavaleiresca e aos mitos que a envolvem. Citamos tambm o interessante livro do franciscano Vitrio Mazzuco, que analisa a presena de elementos cavaleirescos na personalidade e espiritualidade de Francisco de Assis 8, mas que segue uma linha bem diferente da nossa, pois se trata muito mais de um texto de espiritualidade, no uma reflexo histrica. Porm foi uma importante leitura sugerida por nossa orientadora para comearmos a dar incio as nossas reflexes sobre o tema. No tivemos a pretenso de apresentar respostas com este texto, mas compartilhar nossas primeiras reflexes sobre elementos que fazem parte da temtica que nos propomos a pesquisar. Com esta sntese do que tem sido o incio do nosso trabalho temos a esperana de receber crticas e trocar informaes que possam nos ajudar a encontrar novos caminhos e sanar diversas dvidas que surgem a partir de cada nova leitura sobre o assunto.
Bibliografia Texto medieval impresso JACOPO DE VARAZZE. A Legenda urea: vidas de santos.Traduo do latim, apresentao, notas e seleo iconogrfica por Hilrio Franco Jr. So Paulo: Companhia das Letras, 2003. Bibliografia especfica CARDINI, Franco. O Guerreiro e o Cavaleiro. In: LE GOFF, Jacques (Dir.). O Homem Medieval. Lisboa: Presena, 1989, p. 57-78. DUBY, Georges. A Sociedade Cavaleiresca. So Paulo: Martins Fontes, 1989. ___. As Trs Ordens ou o Imaginrio do Feudalismo. Lisboa: Estampa, 1982. ___. Guilherme Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1995. ___. O Domingo de Bouvines, 27 de Julho de 1214. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. FLORI, Jean. La Caballera. Madrid: Alianza Editorial, S. A., 2001. ___. Cavalaria. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. Vol. I. Bauru/ So Paulo: Edusc/ Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 185-199. 84

A LEGENDA DE SO JORGE E A SANTIDADE CAVALEIRESCA: ALGUMAS REFLEXES FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2004. GAJANO, Sofia Boesch. Santidade. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. Bauru/ So Paulo: Edusc/ Imprensa Oficial do Estado, 2002. V. II. p. 449-463. GUENE, Bernard. Corte. In: LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. Bauru/ So Paulo: Edusc/ Imprensa Oficial do Estado, 2002. V. I. p. 269-281. PASTOUREAU, Michel. No Tempo dos Cavaleiros da Tvola Redonda (Frana e Inglaterra, Sculos XII e XIII). So Paulo: Companhia das Letras/ Crculo do Livro, 1989. Notas Introduo ao cnone da missa, no prembulo consagrao. 2 Sobre as justas e os torneios existem dois trabalhos muito interessantes que reservam, em algum momento, espao ao assunto: DUBY, Georges. Guilherme Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1995; ___. O Domingo de Bouvines, 27 de julho de 1214. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. 3 Foucault em seu livro A Arqueologia do Saber chama ateno para as diferenciaes de sua proposta para a Histria das Idias. Ver esses pontos de separao e sua definio para anlise arqueolgica nas pginas 157 e 158. 4 Neste sentido a orientao da Prof Dra. Andria Frazo e o auxilio do Programa de Estudos Medievais da UFRJ tem sido fundamental para o desenvolvimento da nossa pesquisa, disponibilizando material e excelente orientao. 5 Cf. FORTES, Carolina Coelho. Os atributos Masculinos das Santas na Legenda urea: os casos de Maria e Madalena. Dissertao de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS/ PPGHIS, 2003. Esta obra no se direcionou a analisar a vida de Jacopo de Varazze, mas tem captulos essenciais para quem quer trabalhar com a Legenda urea. 6 Cf. FRANCO JR., Hilrio. A Eva Barbada. Ensaios de Mitologia Medieval. So Paulo: Edusp, 1996. 7 Cf. MAZZUCO, Vitrio. Francisco de Assis e o Modelo de Amor CortsCavaleiresco. Petrpolis, RJ: Vozes, 1994.
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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Duelo de la virgen de Gonzalo de Berceo: algumas questes


Guilherme Antunes Jnior*

Introduo ste curto ensaio tem diversos objetivos. Logo, alerto ao leitor, que este trabalho introdutrio, pois aqui comeo meus estudos berceanos, tanto do poeta quanto de sua obra. Portanto limito-me a apresentar a obra do escritor riojano Gonzalo de Berceo intitulada Aqui Escominza el Duelo que Fiz la Virgen Maria el Dia de la Pasion de su Fijo Jesucristo, ou, como mais conhecida, o Duelo de la Virgen. A opo por essa obra em particular se d pelo fato dela ter sido pouco estudada em comparao com as de carter hagiogrfico do autor, tanto nos campos literrio e historiogrfico. Tambm queremos problematizar este objeto de pesquisa, propondo debates. Este poema de Berceo, de duzentas e dez estrofes, pode ser analisado de diversas formas, pois, ao longo de sua narrativa, diversos temas so abordados pelo poeta, como o anti-semitismo, o culto mariano, o antimaometismo, etc., nem todos abordveis nesse trabalho. Por isso, nosso exerccio de reflexo deve ser mais crtico, sobretudo porque o tempo histrico nos oblitera as intencionalidades do autor e de seu contexto. Assim sendo, nosso trabalho se estruturar da seguinte forma. Vamos apontar alguns dos principais pontos de vista acerca do autor e sua obra. H muito se discute questes quanto autoria dos poemas berceanos em comparao a outros, principalmente os com proximidade temporal, tcnica e lingstica, como o Libro de Alexandre, atribudo a ele (DOMNGUEZ, 1990, p. 21), mas nos concentraremos apenas no Duelo por questes de limitao do artigo. Tambm vamos tratar de alguns elementos que estruturam o Duelo de la Virgen e quais teriam sido as fontes de Berceo, como a obra de Bernard de Claraval e a prpria Bblia. Outros temas importantes que aponto: a lngua vernacular adotada; a datao da obra; o contexto scio-cultural de La Rioja, regio em que viveu e produziu Berceo. Vale ainda destacar dois pontos imprescindveis: a mariologia, que intitula este ensaio, e a chamada cntica de Eya-velar, liturgia dedicada aos mortos e muito controversa, aparecendo no Duelo de la Virgen em treze estrofes. Finalizando, atribuo este pequeno trabalho ao esforo coletivo do Programa de Estudos Medievais da UFRJ, que busca formar e qualificar

Graduando em Histria na Universidade Federal do Rio de Janeiro. 86

DUELO DE LA VIRGEN DE GONZALO DE BERCEO: ALGUMAS QUESTES

pesquisadores e ampliar os estudos acerca do medievo, onde muito se fez e muito h por fazer. La Rioja e seu preste Conhecemos Berceo atravs de algumas fontes que direta ou indiretamente o mencionam. Trabalharemos com os documentos notariais de San Milln. Segundo Brian Dutton, Berceo teria nascido em 1196 (DUTTON, 1978, pp 265-267) e teria sido notrio1 do mosteiro de San Milln. Para o mesmo autor e outros (PALAEZ, 1981; CONCHA, 1992; RODRGUEZ, 1995), o poeta riojano cursou a Universidade de Palencia, possivelmente entre 1223 e 1226 ou 1227. Miguel I. Rodriguez afirma que Berceo era um poeta de formao europia (RODRIGUEZ, 1995, P 39), isto , o trnsito de textos vindos do alm-Pirineos eram absorvidos em San Milln, logo contribuindo para sua literatura. Localizar Berceo em seu espao, para ns, imprescindvel. Assim, destacaremos alguns pontos sobre La Rioja. Geograficamente ela se localiza no centro-norte da Pennsula Ibrica. Aps 1076 passou a compor o reino de Castela2, tornando-se ento terra fronteiria com Navarra. Ali se localizava uma importante rota de passagem econmica e cultural: o caminho francs de Santiago de Compostela. Estando o mosteiro de San Milln de la Cogolla prximo localidade de Berceo, desde a infncia o poeta riojano manteve relaes com aquele mosteiro. Mas ele no se tornou monge, mas seguiu a carreira de clrigo secular. Vale destacar que essa linha entre seculares e regulares poderia ser muito tnue. Para Miguel I. Rodriguz, Berceo era (...) um preste3 com liberdade de movimento (...) (RODRIGUEZ, 1995, P 36). Com esses dados, vejamos agora mais de perto nosso objeto. Sobre o Duelo de la Virgen Dois cdices medievais da obra Duelo, que foram conservados no monastrio de San Milln de la Gogolla (ms. en cuarto, Q y ms., en folio, F), desapareceram em princpios do sculo XIX. Assim, o texto Duelo de la Virgen foi preservado atravs da edio de Toms A. Sanchez (1779) e pela cpia que fez Ibarreta entre 1774 e 1779 (ms. I). Recentemente descobriu-se outra cpia do sculo XVIII, feita por ordem de Fr. Diego de Macolaeta entre 1741 e 1752 e que se encontra na Biblioteca Nacional de Madrid (ms. 13149, M) (ORDUNA, 1992, In: GONZALO DE BERCEO. Obra Completa. p. 799-802.) Duelo de la Virgen foi escrito entre 1236 a 1246 (RODRGUEZ, 1995, p. 25) e se estrutura da mesma forma que as outras obras do autor. Vejamos o que afirma Andria C. L. F. Silva sobre a forma estilstica de tais poemas:
Estas obras esto redigidas em castelhano, tomando por base fontes escritas especialmente em latinas. Esto organizadas em estrofes de quatro versos de quatorze slabas, divididos em hemistquios4 simtricos, com acento rtmico na sexta slaba e rima consoante, conhecidas como cuaderna via ou tetrsforo alexandrino. Nestes poemas foram utilizadas inmeras tcnicas literrias recomendadas pelos retricos medievais,

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS tais como a tipologia, a metfora, a smile e a anfora. Estes textos tambm desvelam que o autor possua conhecimentos musicais, bblicos, doutrinrios, jurdicos e hagiogrficos (SILVA, 2001, p. 33).

Vejamos a primeira estrofe de Duelo:


En el preioso De qui nasi al mundo Si ella me guiasse Querria del su duelo de la Sancta Reyna, salut e meleina, por la graia divina, componer una rima.

Assim, temos uma narrativa linearizada e ritmada. Ao longo das estrofes, encontramos uma histria, narrada com comeo, meio e fim. O poema possui duzentas e dez estrofes com quatro versos hemistquios, sendo treze com apenas dois, a Eya-Velar, que trataremos mais tarde. Vrios autores compararam algumas obras de Berceo com o teatro medieval litrgico (CATALN, 1965). H, no Duelo de la Virgen, um o narrador que o prprio autor e os seus personagens, nesse caso, So Bernardo de Claraval, Jesus Cristo e a Virgem Maria encenando o drama da Paixo de Cristo. Alm dessa trade, somam-se outros secundrios, como soldados romanos (estrofes 178-90), mouros e judeus (estrofe 30), por exemplo. No tocante ao pblico, para alguns autores, como Jess M. Palaez, Berceo escrevia para o povo, era escrito popular (PALAEZ, 1981, p 113). O fato de ele ter optado pelo idioma vernacular, castelhano, no significa que essa posio defendida por Palaez no possa ser questionada. Frazo da Silva discorda dessa perspectiva (SILVA, 2001, p. 32). Para ela, Berceo escrevia sobretudo para seus pares, e, inclusive, ele poderia ter sido contratado pelo mosteiro de San Milln para compor poemas e assim glorificar a instituio, devido a um decrscimo de doaes, entre outros fatores. Os estudos sobre os elementos bblicos em toda a obra de Berceo so extremamente relevantes para as atuais investigaes acerca de suas composies. Para Juan A. R. Dominguz, o conhecimento bblico berceano no passa apenas pela leitura do texto original; ele pode ter sido proveniente de uma obra litrgica, por exemplo (DOMINGUZ, 1990, p 11). O mesmo autor acrescenta que em San Milln havia um nico exemplar da Bblia, alis, de luxo, a de Quisio. Berceo deve ter consultado-a, porm isso no significa que o poeta fosse um telogo, strictu sensu, muito menos um simples trovador que usou passagens bblicas alegoricamente. No Duelo de la Virgen h referncias aos evangelhos de Marcos e de Mateus, mas suas especulaes teolgicas tm mais carter litrgico e apontamentos especficos, como a prpria Paixo, Ressurreio, a Anunciao, a Ascenso de Jesus, etc. Isso nos faz pensar numa multiplicidade de vises e apreenses dos clrigos acerca do cristianismo e suas prticas, onde as divises no seio da Igreja aparecem, se tomarmos Berceo como exemplo, mais abrangentes e variveis e no apenas tipificadas entre aqueles que produzem/ensinam. A Mariologia no centro da obra O Duelo de la Virgen seria um poema, com toda extenso que o
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DUELO DE LA VIRGEN DE GONZALO DE BERCEO: ALGUMAS QUESTES

conhecemos, com sua estruturao mtrica, seus elementos litrgicos, uma obra sobre a Paixo de Cristo ou sobre o sofrimento de Maria? Creio que um ponto contempla o outro, entretanto a questo no se fecha simplesmente. Para Juan A. R. Dominguez, o santo possui trs virtudes reconhecveis: o martrio, suas relquias e os milagres (DOMINGUZ, 1990, p 63). Maria no possui nenhum desses atributos narrados nos evangelhos. justamente ai que a obra de So Bernardo de Claraval5 relida e repensada pelos clrigos no medievo. Em um texto atribudo a ele, Tractus Beati Bernhadi de Planctu Beate Mariae Virginis, eleva Maria a uma categoria santificadora. No sculo XII aparecem as primeiras colees de milagres atribudos Virgem e o prprio So Bernardo cunha o ttulo mariano de Nossa Senhora. Para J. Saugnieux, Berceo conhece a obra e o pensamento de Bernardo. Ento, o Duelo de la Virgen no seria outra coisa, a no ser um dilogo entre Berceo e o clrigo de Claraval. J para Miguel I. Rodriguz, Bernardo defende a maternidade divina da Virgem, na condio de me de Deus, sua imaculada concepo e, sobretudo, sua colaborao no processo de Salvao (RODRIGUZ, 1995, p 65). J na obra de Berceo, o que notamos algo mais, uma relao recproca, na dor, entre Cristo e Maria. Assim, estaramos admitindo certo equilbrio entre ambos? Talvez. O tema controverso entre os especialistas. Victor G. de La Concha, por exemplo, tem defendido que houve uma maior humanizao, tanto de Cristo quanto de Maria, a partir do sculo XII, que ficaria expressada no Duelo de la Virgem (CONCHA, 1974, 36). Vejamos a estrofe 128:
Quando a vos de muerte Fijo, a mi debiedes Que de vos non vidiese Fijo en esto solo non queriedes guardar, delante vos levar, io tan manno pesar: vos he porque reptar.

Aos ps da cruz, como narra o evangelho de Joo, Maria sente a dor, no sentido fsico, pela morte eminente de seu filho. Mas o mesmo autor chama nossa ateno para relao entre a dor sofrida e a salvao a que serve (Concha, 1974, pp). Mesmo sendo um drama humano, a dor de Maria distinta ao ver seu filho morrer, da ela ser considerada a redentora da humanidade:
Nin vieio nin manebo, Non sufri tal laerio Ca io fui biscocha, La pena de Maria ni muger maridada nin muri tan lanzdrada, et fui bisassada: nunqua serie asmada.

Berceo, nestes versos, prope que nem o homem (viejo; mancebo) nem uma mulher comum (maridada) suportariam tal sensao de dor, ou seja, dbio o papel do marianismo na obra de Berceo. Dbio porque os planos humano e divino se misturam. Algumas pistas dessa contradio podem estar no culto mariano praticado em La Rioja. Vejamos alguns pontos. H indcios que o culto mariano estava presente no entorno de La 89

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Rioja, em Njera e Valvanera. Para Miguel I. Rodriguz, h a confluncia da tradio mariana de San Ildelfonso6, prpria da Pennsula, e a teologia mariana de So Bernardo, trazida do outro lado dos Pirineos (RODRIGUZ, 1995, p 65). Ento, temos um dilogo bastante intenso, para alguns autores, entre o contexto mariolgico e a produo cultural, que teria influenciado Berceo. Em San Milln, h testemunhos do culto mariano desde o sculo XI e dentro da liturgia mozrabe que ele ganha mais fora. Concha afirma que o romanceamento do marianismo tenha sido operado sobre diversos materiais (CONCHA, 1974, 36); inclusive ele admite as permanncias hispnicas, mesmo que a Igreja, com sua tradio, tenha tido a inteno de suplantar tais ritos. Num outro ponto de vista, Pelaez acha difcil tal afirmao. O monastrio de Silos, ao qual Berceo tambm estava ligado, era fortemente vinculado aos monges beneditinos de Cluny, principais propagadores da liturgia romana (PALAEZ, 1981, p 117). O autor atribui a mariologia de Berceo, mais prxima a de Bernardo, com essa mesma perspectiva: Silos se constitua como difusor do romanismo cristo, sendo portanto mais aberto s correntes teolgicas vidas do alm-Pirineos. De qualquer forma, o Duelo de la Virgen centraliza-se nos gestos de Maria. Em diversas passagens do poema, temos uma Maria que desmaia, chora, recente-se, e principalmente, sente a dor de me, a dor da perda. Como esse trecho ao p da cruz:
Fijo, quando naiestes Nin sent puntas malas Quando traen los ninnos En Egipto andabamos nunqua sent dolores, nin otros desabores: los falsos traydores, commo grandes sennores.

O cntico de Eya-Velar: uma discusso O desfecho do Duelo de la Virgen representado por uma cntica de veladores que h tempos palco de numerosas discusses. Os manuscritos dessa passagem, em especfico, s conhecemos atravs de uma cpia preservada pelo mester Ibarreta, encontrada no monastrio de Santo Domingo de Silos, em Burgo (DUTTON, 1974, p 250). No poema, os judeus temem que os apstolos de Cristo roubem seu corpo e pedem para que os soldados romanos vigiem o Crucificado. Comeam, ento, a entoar um cntico para, entorno do sepulcro, no dormirem. Eis que interessante reproduzir aqui a Eya-Velar presente na obra:
178. Eya velar, eya velar, eya velar. Velat aliama de los iudios, eya velar: Que non vos furten el Fijo de Dios, eya velar. 179. Ca furtarvoslo querran, eya velar: Andres e Peidro et Iohan, eya velar. 180. Non sabedes tanto descanto, eya velar: Que salgades de so el canto, eya velar. 90

DUELO DE LA VIRGEN DE GONZALO DE BERCEO: ALGUMAS QUESTES 181. Todos son ladroniellos, eya velar: Que assechan por los pestiellos, eya velar. 182. Vuestra lengua tan palabrera, eya velar: A vos dado mala carrera, eya velar. 183. Todos son omnes plegadizos, eya velar: Rioaduchos mescladizos, eya velar. 184. Vuestra lengua sin recabdo, eya velar: Por mal cabo vos a echado, eya velar. 185. Non sabedes tanto de enganno, eya velar: Que salgades ende este anno, eya velar. 186. Non sabedes tanta razon, eya velar. Que salgades de la prision, eya velar. 187. Tomaseio a Matheo, eya velar: De furtarlo han grant deseo, eya velar. 188. El disipulo lo vendi, eya velar: El Maestro non lo entendi, eya velar. 189. Don Fhilipo, Simon e Iudas, eya velar: Por furtar buscan ayudas, eya velar.

O interessante que com ela h uma quebra na estrutura narrativa do poema, isto , o que antes eram versos em cuaderna via, agora temos treze estrofes de paralelismos aparentemente em coro. Diversos trabalhos sugeriram uma reorganizao desse trecho, considerando preposies de carter mltiplos. Na verdade, a maioria desses autores no procurou explorar, pelo menos de forma consistente, os aspectos sociais e as prticas culturais que permitiram o poeta riojano acrescentar uma viglia litrgica no relato. De qualquer forma, isso no desqualifica aquelas obras. Humberto L. Morales, por exemplo, da Universidade de Porto Rico, citando uma eminente pesquisadora, Sor Francis Gormly, aponta para idia que a influncia do trabalho de So Bernardo, o Planctus, termina na estrofe 155. Em seguida, todo o restante do poema um desenvolvimento livre do evangelho de So Mateus, aludindo ao teatro dramtico peninsular da poca (MORALES, 1978, p. 269). Morales critica este ponto de vista alegando, entre outros fatores, que dentre diversos dramas litrgicos da poca, somente o de Berceo reproduz a cena bblica dos soldados veladores. Enfim, outros autores renomados (Spitzer, 1950; Lapas, 1929; Trend, 1951) tambm propuseram mudanas baseadas em sons musicais, cnticos medievais, ao nmero 13 que representaria Cristo e seus apstolos, e, tambm no fato de toda obra conter erros de organizaes, como nos diz B. Dutton citando Spitzer (DUTTON, 1974, 251). De qualquer forma, a Eya-Velar interessante para discusses acerca dos diversos recursos literrios ou 91

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simblicos presentes no cotidiano, popular ou litrgico, na poca de Berceo, e que certamente foram apropriados, ou apreendidos, para maior enriquecimento e louvao da Paixo. Concluso A fascinante obra de Gonzalo de Berceo nos faz pensar como dialogavam os diversos campos do conhecimento no medievo. Se admitirmos que o poeta em La Rioja leu So Bernardo para estruturar sua obra, em especial Duelo de la Virgen, admitimos tambm uma enorme complexidade de relaes nos campos teolgico, culturais, literrios, etc. Miguel I. Rodrguez aponta para o trnsito de vrios mestres alm do espao geogrfico riojano (RODRGUEZ, 1995, p 39), como tambm a mo de duas vias, isto , alunos que iam estudar no alm-Pirineos. Nesta obra especfica, o Duelo, pretendemos projetar um olhar especial sobre as construes de gnero, mesmo que aqui no tenhamos focado diretamente nessa perspectiva, por razes de espao textual. Porm, observamos atentamente, que no corpo da obra, ao masculino e ao feminino, representados por figuras mltiplas, so atribudas papis especficos para composio do drama, lembrando que essa definio de papis elaborada por Berceo, obviamente sob a perspectiva do masculino. Mas, para melhor problematizao desse ponto de vista, esperaremos outro artigo.
Bibliografia CONCHA, Victor Garcia de la. La Mariologa em Gonzalo de Berceo. In: GONZALO DE BERCEO. Obra Completa. Madrid: Espalsa - Calpe, 1992. DOMINGUEZ, Juan Antonio Ruiz. La Historia de la Salvacin em las Obras de Gonzalo de Berceo. Logroo: Instituto de Estdios Riojanos, 1990. DUTTON, Brian. Berceos Watch-Song Eya Velar. Modern Language Notes, n. 89. p 250-259, 1974. FRADEJAS, Jos. Uma opinin mas sobre la Cantica Eya Velar. In: GARCA TURZA, Cludio (Org). Jornadas de Estdios Berceanos, 2, Actas... Logroo: Instituto de Estdios Riojanos, 1978. p 29-41. RODRGUEZ, Miguel Ibaez. Gonzalo de Berceo y las Literaturas Transpirenaicas: Lectura Corts de su Obra Mariana. Logoo: Consejera de Cultura, Deportes y Juventud, 1995. MORALES, Humberto Lpez. El Eya Velar y el Teatro Medieval Castellano. In: GARCA TURZA, Cludio (Org). Jornadas de Estdios Berceanos, 2, Actas... Logroo: Instituto de Estdios Riojanos, 1978. pp 269-276. GONZALO DE BERCEO. Obra Completa. Madrid: Espasa-Calpe, 1992. PALAEZ, Jess Menendez. La Tradicin Mariolgica en Berceo. In: GARCA TURZA, Cludio (Org). Jornadas de Estdios Berceanos, 3, Actas... Logroo: Instituto de Estdios Riojanos, 1978. pp 113-127. SILVA, Andria Lopes Frazo da. Reflexes sobre a Educao Clerical no Reino de Castela Durante o Medievo. Plures Humanidades, n.2 , p 27-45, 2002. RUCQUOI, Adeline, Histoire mdivale de la Pninsule ibrique, Paris, Le Seuil: Points Histoire, 1993.

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DUELO DE LA VIRGEN DE GONZALO DE BERCEO: ALGUMAS QUESTES Notas 1 Do latim notarius; funcionrio pblico autorizado para dar f ou garantia de certos documentos (Dicionrio Houaiss Eletrnico). 2 Sancho VI, o Sbio, ocupa parte de La Rioja em 1163, mas em 1176 torna-se definitivamente territrio castelhano. 3 Prefte ou preste, proveniente do latim presbyter, era o ttulo dado, em castelhano, do sculo XII ao XV, para o sacerdote que celebrava a missa cantada assistido pelo dicono e subdicono, pregava e realizava o sacramento da extrema-uno (Martin Alonso, 1986, T. 2, p. 1519). 4 Do lat. hemistichum,i hemistquio, metade do verso, do gr. hmistkhion,ou id.; ver hemi- e-stquio; f.hist. 1713 hemistichio. Cada uma das metades (iguais ou desiguais) em que a cesura (pausa) divide o verso, especialmente o verso alexandrino (Dicionrio Houaiss Eletrnico). 5 San Bernard de Clairevaux (10902-1153). Abade do monastrio de Claraval at 1153. Em suas, admite-se a virgindade de Maria. 6 Bispo de Toledo (607-667). Atravs de vrias obras como Elogium, Vita Sancti Hildenfonsi, De Viriginitate Mariae, conhece-se este clrigo dedicado difuso do culto mariano e da virgindade de Maria, que ganhara muita fora na Pennsula (RODRIGUZ, 1995, p 64).

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Cister, o mosteiro santo (sculos XI-XII)


Monique da Silva Cabral

s sculos XI e XII foram marcados por profundas transformaes nos mais diversos nveis da civilizao do Ocidente Medieval. Alguns autores chegam a afirmar que esse perodo foi, sem dvida, o mais marcante para a Europa medieval, e Duby o define em apenas duas palavras: grande progresso. Grandes transformaes, por exemplo, no mbito econmico. Novas tcnicas artesanais e agrcolas aumentavam a produo de alimentos. Com o uso da charrua, as terras eram mais bem aproveitadas, entre outras melhorias. Ocorria tambm um aumento demogrfico considervel. Dados mostram que a populao triplicou entre os sculos X e XIV. Alm disso, ocorreu uma expanso das reas cultivveis, desbravamento de novas terras e alargamento das fronteiras da Cristandade Ocidental. (LE GOFF, 1983, p.87). Mesmo sendo um mundo ainda predominantemente rural, identificamos tambm um outro fenmeno: a revitalizao das cidades como locais estratgicos de trocas comerciais e de ativas relaes mercantis. Nelas tambm aparecem novos grupos sociais, surgidos da emergncia da vida citadina. Ainda possvel falar, por conta disso, de uma revoluo comercial que, partindo da Itlia, se expandiu por outras regies da Europa, chegando a ser comparada, com reservas, revoluo industrial do sculo XIX.(VAUCHEZ, 1995, p. 65). Foi nessas cidades que apareceu, inclusive, um novo modelo arquitetnico de igreja: as catedrais, com um novo estilo, o gtico em substituio ao estilo romnico, tradicional nas igrejas das reas rurais. De uma maneira geral, era a Cristandade que, aps um longo perodo de retrao, por conta de crises e dificuldades enfrentadas anteriormente, finalmente se expandia e tornava cada vez mais possvel seu projeto de universalidade. Nesse processo de desenvolvimento e crescimento da Cristandade o papel da Igreja foi de crucial importncia como financiadora na construo de um patrimnio sagrado invejvel. Foi ela a responsvel pelo surgimento de dezenas de novos santurios no cenrio medieval, levando o cronista Raoul Glaber a atestar que: ...era o prprio mundo a sacudir-se para se libertar da vetustez e a cobrir-se, em todas as suas partes, de um branco manto de igrejas.(LE GOFF, 1983, p.87) Portanto, o que vemos uma Igreja adaptada evoluo geral da

Graduanda em Histria na Universidade Federal Fluminense.

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CISTER, O MOSTEIRO SANTO (SCULOS XI-XII)

sociedade, dando sua contribuio para o arranque do Ocidente. Mas essa colaborao incitou a um apego cada vez maior riqueza e ao dinheiro, gerando inquietaes acerca do prprio evangelho, quando foi questionada a difcil entrada de um rico no cu. Pensando nisso, foi ento introduzida, segundo Le Goff, uma vlvula de escape ideolgica: a apologia da pobreza. Foi em nome dela que reformas foram promovidas, tendo como objetivo alcanar modos de aproximao cada vez mais concordantes com aquilo que seria a simplicidade de vida sugerida pelo prprio Cristo. No h como tratar desse movimento de renovao espiritual do final do sculo XI sem voltar um pouco mais no tempo e lembrar das primeiras reformas, iniciadas por Cluny ainda no sculo X. Dessa forma, possvel esboar de forma mais clara o contexto em que nasceu a ordem cisterciense, no sem antes abordar o aparecimento do monaquismo como expresso espiritual no Ocidente, j que o tema trata diretamente deste assunto. Originalmente, este modo de vida surgiu no Oriente, e os desertos eram locais de refgio por excelncia. O prprio nome monge (do latim = monachus) j denota sua caracterstica principal: aquele que vive s. O monaquismo no especfico do cristianismo, outras religies tambm adotaram este estilo de vida. Mas o monaquismo cristo guarda algumas particularidades. Ele surge no Ocidente por volta do ano 270, com a retirada de Santo Anto (ou Antnio) para o deserto. Com o Edito de Milo, em 313, a perseguio aos cristos diminuiu e os cristos mais fervorosos, que antes viam no martrio o caminho para a santidade, encontraram outra forma de perfeio: o ascetismo por recusa do mundo, despojamento da riqueza e purificao da alma. Anto foi, portanto, o primeiro eremita cristo a escolher este caminho. O eremitismo foi assim considerado a forma mais rigorosa de monaquismo. Mas ao lado do eremitismo, uma outra forma de monaquismo se desenvolveu, o cenobitismo (cenobia, do grego koinos = comunidade). O seu primeiro representante foi So Pacmio, que inclusive redigiu a primeira regra para uma comunidade monstica que unia trabalho, orao e disciplina. Da surgiria mais tarde o nome abade (abb), que significa pai, aquele que est frente da abadia, o responsvel pelo rebanho dentro da comunidade monstica. O desenvolvimento do monaquismo propriamente no Ocidente comeou no sculo IV, com Santo Ambrsio, bispo de Milo. Mas o papel mais importante foi, sem dvida, desempenhado por So Bento de Nrsia (480-547), considerado o patriarca dos monges (DELUMEAU, 2000, p.180) da cristandade latina. Bento foi o autor da regra mais clebre, a regra beneditina, que prope um equilbrio entre trabalho e orao, que preza pelo amor fraterno, a pobreza individual e a obedincia, alm da eleio de um abade por toda a comunidade. A regra de So Bento, na verdade, foi sendo constituda ao longo dos sculos VII-VIII, e foi ela a inspiradora da maior parte das ordens monsticas do Ocidente, inclusive Cluny e Cister. Cada vez mais a regra foi sendo adaptada e modificada conforme as necessidades de cada local e poca. Mesmo assim, a idia inicial e o seu valor como regra permaneceram indiscutveis. Os sculos X e XI representaram um perodo de importantes mudanas 95

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no que diz respeito as instituies eclesisticas e tambm espiritualidade medieval. Pode-se dizer que essa poca foi marcada pela crescente influncia da espiritualidade monstica sobre a Cristandade de um modo geral. O processo de secularizao da Igreja, que vinha ocorrendo desde os tempos carolngios, se acelerou com a ascenso do feudalismo. Cada vez mais, o patrimnio eclesistico foi sendo dilacerado e a corrupo dos prelados mais gritante. No havia mais uma clara distino entre um clrigo e um leigo, no que dizia respeito a seu modo de vida. Em suma, um movimento geral de perda do referencial daquilo que a Igreja deveria representar no seio do cristianismo ocidental: o caminho para a salvao das almas dos seus fiis. Os mosteiros no ficaram imunes a essas ameaas de corrupo dos representantes tanto leigos quanto eclesisticos. Tambm entraram em processo de decadncia, muito devido explorao de seus abades. Ainda assim, foi o monaquismo que melhor resistiu essa crise e no s resistiu como reverteu a situao a seu favor. Abadias como Saint-Gall e Monte Cassino conseguiram manter uma observncia regular. Mas o grande destaque neste processo de reao e reforma foi o mosteiro de Cluny, fundado em 909, na Borgonha. A partir dele foi possvel iniciar um movimento de renovao tanto institucional como espiritual da Igreja medieval. Destaco aqui uma observao feita por Vauchez, em que lembra a origem desses movimentos. Segundo o autor, diferentemente da poca carolngia em que esse tipo de reforma partia do poder central, desta vez, o desejo de uma volta ao antigo fervor no foi conseqncia de um programa administrativo de reorganizao, mas a expresso das aspiraes profundas da sociedade monstica a uma renovao espiritual. (VAUCHEZ, 1995, p.32). Era reconhecida e admirada pelos cristos da poca a dignidade da vida monstica e sua superioridade em relao s outras etapas da vida. Por isso era comum ver a iniciativa de muitos leigos em construir mosteiros ou, pelo menos, incentiv-los e contribuir para sua manuteno. Essa espiritualidade monstica baseava-se essencialmente na Regra de So Bento. O conjunto da prtica dessa regra, apesar de muito coeso, no deixava de apresentar certa flexibilidade e at mesmo uma relativa diversidade de uma abadia para outra. Mas a regra permanecia como referncia intocvel daquele modelo de vida religioso adotado pela maioria dos monges ocidentais. Foi em nome dessa regra, inclusive, que uma das mais fortes campanhas foi propagada: a do desprezo pelas coisas do mundo, como a riqueza e o luxo, por exemplo. O sculo XI foi, sem dvida, o sculo da orao e da luta contra as foras do mal. Encarando a vida monstica como a forma autntica da experincia crist no mundo, j que este era todo submerso no pecado e cheio de iluses, era melhor renunciar vida mundana e viver no claustro e na recusa. Ou antes, como eles mesmo pregavam, o melhor era ser um peregrino, um estrangeiro na terra. Somente a paz do claustro poderia dar ao monge a tranqilidade necessria para viver uma vida santificada, longe das preocupaes e ocupaes da vida secular. Este entendimento do mundo como um lugar essencialmente de pecado e perdio estava muito ligado s interpretaes feitas pelos monges
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do Evangelho de Joo. A condenao do mundo pelo apstolo foi assimilada, pelos seus leitores em questo, como um julgamento negativo da criao divina. Dessa forma, a espiritualidade monstica do sculo XI entendia o mundo como um lugar onde tudo pendia para o mal, lugar de degradao por excelncia, projetando este mesmo mal para fora do homem e situandoo nas coisas. Ou seja, o homem no era o pecado, ele poderia sim entrar em pecado apropriando-se das coisas pertencentes ao mundo. Convm lembrar em que contexto esta luta contra o mundo e a pregao em favor da pobreza e da simplicidade foram vinculadas. Esse tipo de julgamento do mundo como um lugar desprezvel, deveu-se a uma atmosfera contaminada pela simonia, que rondava as instituies eclesisticas da poca. Essa peste corroa os prelados de todos os nveis. Como bem destacou o cronista do ano mil, Raoul Glaber ...converteram o dom gratuito e venervel do Cristo Senhor Todo-poderoso, num trfico de cupidez. (DUBY, 1980, p.112). Toda sorte de corrupo estava, portanto, lanada no seio da Igreja de Cristo. Venda de salvao, compra de penitncias, entre outras calamidades, foram praticadas. Alm do mais, havia tambm uma luta travada contra as foras seculares, de maneira a tentar libertar as coisas de Deus do domnio leigo. Considerando esse conjunto de fatores, no de se espantar que houvesse algum tipo de reao por parte daqueles que ainda resguardavam em si a pureza da regra e o sentimento de serem os responsveis pelo bem e pela ordem na terra. Por conta, tambm, de todo o progresso material alcanado pela sociedade medieval do sculo XI e incio do XII, suas manifestaes no tardaram a serem sentidas no mbito espiritual, principalmente em se tratando de uma sociedade que entendia o sagrado como algo vinculado s questes cotidianas. Mas os primeiros movimentos de reforma, iniciado especialmente por Cluny, ainda no sculo X, vieram a sofrer uma espcie de simbiose com as questes seculares. A inevitvel convivncia entre leigos e clrigos fez com que, ao final do sculo XI, a esfera religiosa estivesse novamente entregue cupidez dos homens de Deus. Muitos monges enriqueceram, outros contriburam para preencher as cadeiras no Papado, muitos inclusive se tornaram Papas importantes. O projeto inicial de reformas institucionais aos poucos foi caindo numa espcie de rotina, no tanto por conta de uma mentalidade usurpadora, mas tambm por conta de um mundo em plena transformao, ao qual a espiritualidade e a teologia se mostraram inadaptadas. O contato com novas reas, que foram sendo conquistadas pelos movimentos cruzadsticos, contriburam para novas trocas, especialmente culturais. Cada vez mais as influncias exteriores atuavam no campo espiritual. Diante de tantas questes e tantas novidades, produziu-se a inquietude de muitos em relao aos caminhos que as coisas sagradas estavam tomando. Foi particularmente a partir dos anos de 1080 que ocorreu um movimento conhecido como retorno s fontes, ou seja, um desejo de viver melhor a f. Este retorno s fontes traduzia uma vontade de encontrar no passado, isto , na poca dos apstolos e dos mrtires, a verdadeira perfeio. A Igreja romana no ficou de fora: acreditava-se que, cada vez mais afastada 97

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daquela poca, a igreja tenderia a enfraquecer-se. Inserido neste contexto, o mosteiro cisterciense apresenta-se como mais um defensor de uma regra beneditina mais pura, autntica e vivida em sua plenitude, regra esta que teria sido obscurecida e deturpada por outras ordens, inclusive por Cluny, segundo seus crticos. Obviamente, aquilo que foi conquistado pela reforma cluniacense manteve-se, que foi exatamente o desligamento das ordens monsticas do domnio leigo. Foi a reforma de Cluny que conquistou para as abadias, o direito de ligarem-se diretamente ao Papado. Por outro lado, os valores espirituais do incio da reforma cluniacense foram caindo em desuso. As dificuldades existentes na ordem, como a autoridade excessiva do abade e a riqueza da abadia, tornaram-se latentes e no tardaram a surgir as crticas. Portanto, impe-se a necessidade de uma nova onda de reformas que surge no cenrio religioso medieval, reforma esta to ou mais importante quanto a do sculo XVI, guardadas suas devidas razes e propores. (BOLTON, 1983, p.13). Mas dessa vez, a nfase da reforma estava na alma, ou seja, nas questes propriamente ligadas ao modo de vida dos cristos. A recusa do mundo j no era o caminho mais eficaz para solucionar os problemas de uma Cristandade enferma; o caminho era ingressar neste mundo de forma evanglica. Algo como estar no mundo, mas no ser do mundo. Fazer a diferena, mostrar a verdade divina atravs do exemplo de Cristo e de seus apstolos. O ato de imitar o Cristo era sem dvida o modelo mais apropriado, pregar no mundo preparando o caminho para a salvao de todos. Essa foi a reao que se ops crise religiosa que o sculo XII estava passando. Esse modelo conhecido como vita apostolica, imitao do Cristo e de seus apstolo, implicava uma ao direta e ativa no mundo, ou seja, a orao e a pregao deveriam ser feitas em pblico em contato direto com os fiis. Ademais, a pregao deveria ainda ser cada vez mais simples e vivenciada no dia-a-dia. Certamente que este modelo no se encaixava com o ideal de monstico de isolamento em relao ao mundo. Desse modo, para se adaptarem a esses novos tempos, os monges, que seguiam constituindo o exemplo mais valioso da vida religiosa, comearam a divulgar um discurso forte que propagava o modo de vida monstico como o intermedirio mais eficiente entre Deus e os cristos. Atravs de suas oraes era possvel obter a salvao para quem estivesse necessitado. Portanto, os monges, numa reao crise do sculo XII, transformaram seu modelo de vida no modelo mais original de austeridade, pobreza voluntria, os pauperes Christi e desse modo deram um flego a mais na espiritualidade medieval do perodo em questo. Assim surgia uma nova espiritualidade no cenrio cristo do sculo XII. Foi a partir do final do sculo XI e do inicio do sculo XII que essa nova mentalidade se desenvolveu. A emergncia da nova espiritualidade medieval foi sem dvida uma das conseqncias diretas dessas tantas rupturas e mutaes ocorridas no cenrio das relaes humanas na Idade Mdia Central. Mas necessrio atentar para o fato de que, mesmo com as novas formas de viver o monaquismo, as antigas expresses de vida monstica no deixaram de existir. Pelo contrrio, se o monaquismo ocidental
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manteve-se forte, foi justamente por permitir que coexistissem, em casas diferentes, formas velhas e novas de expresso religiosa. A partir das fontes utilizadas, possvel registrar qual foi o projeto de Cister no momento de sua fundao. A proposta era a de uma renovao espiritual tendo como ponto de partida uma interpretao mais fiel da Regra de So Bento. Tendo a regra como referncia principal, os cistercienses tomaram para si a responsabilidade de serem os guias espirituais da verdadeira mensagem do Cristo na terra. Cister nasceu de uma dissidncia ocorrida no interior do mosteiro de Molesme, que fazia parte do contexto apontado anteriormente de mudanas e adaptaes em um mundo em plena transformao. O conflito entre alguns monges no interior de Molesme foi por conta de desacordos com relao interpretao da Regra de So Bento. Os monges entendiam a regra como algo a ser interpretado segundo as necessidades de cada lugar, e no para ser levada a cabo como um conjunto unvoco de determinaes. A partir dessas complicaes foi que um pequeno grupo de monges, acreditando que a regra deveria ser entendida com mais fidelidade, resolveram emigrar para outro local onde pudessem viver a regra na sua mais pura interpretao pois, segundo eles, no haveria compatibilidade entre esta proposta e a vida no mosteiro de Molesme. A nfase que este trabalho se prope a dar justamente na trajetria percorrida por estes monges ao sarem de Molesme. Uma vez imbudos do ideal de fundarem um mosteiro no qual a pureza da regra fosse vivenciada, as fontes que narram a fundao de Cister mostram o quanto latente a associao entre estes homens que emigraram de Molesme e a trajetria de vida de um santo medieval. Os passos seguidos por eles confundem-se com os passos que freqentemente so associados vida dos santos. A retirada do mundo, a peregrinao, o martrio, o testemunho so alguns dos momentos registrados nas fontes de Cister. Uma das fontes que utilizo intitula-se Exrdio de Cister (Exordium Parvum), que narra as origens do Mosteiro de Cister. Este documento foi, possivelmente, escrito por volta do ano 1119, ou seja, cerca de 20 anos aps sua fundao. A sua autoria atribuda ao abade Estevo Harding, segundo abade de Cister. Este relato considerado, dentro da tipologia das fontes, como um documento de natureza legislativa. J as outras duas fontes que sero utilizadas fazem parte de uma coletnea de documentos considerados literrios. A primeira de Guilherme de Malmesbery (monge beneditino ingls), escrita possivelmente entre 1122 e 1123, e que faz parte de uma obra maior chamada Gesta dos Reis da Inglaterra. A outra fonte de autoria de Oderic Vital, que tambm faz parte de uma obra maior intitulada Histria Eclesistica. Nela, Oderic Vital dedica um captulo (o qual faz parte da minha anlise) s novas ordens monsticas, entre elas a de Cister. Narra tambm seus incios, assim como o relato dos monges de Molesme poca do cisma entre estes e os futuros fundadores do Mosteiro de Cister. A provvel data da redao deste documento de 1134 1135, ou seja, trinta e sete anos aps a fundao do mosteiro. A anlise das fontes visa estabelecer um certo perfil do santo, que 99

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seja possvel para a compreenso da trajetria de fundao de Cister. Para tanto, proponho-me a elencar alguns passos para a santidade do mosteiro, que as prprias fontes me sugerem ao relatar momentos que se assemelham aos que foram vividos por aqueles considerados santos. O objetivo final seria o de estabelecer uma idia do mosteiro como um santo coletivo. O artigo O Santo, de Andre Vauchez, servir de apoio no que diz respeito ao estudo sobre o santo e a santidade ao longo da Idade Mdia at o sculo XV. A histria da fundao de Cister marcada, logo de incio, por uma ruptura com a ordem vigente. Roberto, ento abade de Molesme, prope que aquele mosteiro voltasse a viver a Regra de So Bento como esta era na sua essncia.
Proponho pois que pratiquemos a Regra de S. Bento em sua totalidade. (..) E assim no poupemos energias para correr com fervor em busca do Cristo. Seguindo as pegadas de nossos Pais. (OS CISTERCIENSES, 1987, p.229)

Mas, como j foi apontado, no houve uma negociao entre os monges para entrarem em um acordo. Sendo assim, eles partem para fundar um outro mosteiro.
(...) o abade, igualmente firme de seu lado, acabou por se separar deles em companhia de doze monges que pensavam como ele. Durante muito tempo andou procura de um lugar que lhe parecesse adequado. (OS CISTERCIENSES, 1987, p.239 )

Portanto, o primeiro passo para a santidade j fora dado por aqueles homens: a ruptura com o sculo (entendido neste contexto como o prprio mosteiro de Molesme). Na passagem acima j se pode delinear um segundo momento no processo de santidade: a peregrinatio. Essa idia de peregrinao extremamente comum na vida de qualquer santo, j que este um mrtir (testemunha, em grego) em potencial. O cristo aquele que renuncia a tudo para seguir o Cristo (sequela Christi), um peregrino, ou, na linguagem medieval, viator. justamente esta idia que Cister prega, a do modelo do Cristo, a imitao dele, o estar no mundo mas no ser do mundo. Isso implicava tambm num total desapego de bens materiais. O santo um estrangeiro (xenos, peregrinus) neste mundo, ele um cristo em sua representao maior e mais bem sucedida. A peregrinao um momento em que ele pode vivenciar privaes, tentaes e toda sorte de perigos, que coloca prova o verdadeiro cristo, no nosso caso, o santo.
(..) .dirigiu-se com entusiasmo a uma solido chamada Cister (...); os homens de Deus compreenderam que aquele local era tanto mais propcio ao gnero da vida monstica que haviam concebido e em razo da qual ali estavam, quanto mais desprezvel e inacessvel parecia s pessoas do mundo. (OS CISTERCIENSES, 1987, p.39)

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Prosseguindo na anlise, outro passo nos evidenciado: o testemunho. Ele torna o santo legtimo, verdadeiro, com autoridade. No caso do mosteiro de Cister o testemunho apresentado foi de elevada importncia para auferir-lhe uma autoridade ainda maior, pois colaborou para que o Papa lhes concedesse um pedido. Trata-se de uma carta de recomendao que dois representantes religiosos escrevem ao Papa, a pedido do abade Alberico (primeiro abade de Cister), solicitando a proteo papal para o Novo Mosteiro. Nesta carta os dois cardeais, citados anteriormente, testificam a seriedade e a autenticidade com que os monges em Cister vivem a Regra de So Bento.
(...) permaneam conformados perpetuidade por um privilgio de vossa autoridade. Ns os vimos com nossos prprios olhos e damos testemunho da autenticidade de sua vida monstica. (OS CISTERCIENSES, 1987, p.51)

Atravs do testemunho, inclusive, que se divulga a existncia de um santo. Por isso tamanha a importncia do testemunho para os monges de Cister. Mais um elemento tratado nas fontes nos ajuda a delinear este quadro da santidade em Cister. O martrio entra no contexto como um complemento peregrinao. Na verdade, o primeiro est presente no segundo. Mas o contrrio nem sempre acontece. Nos documentos de Cister, ficam explcitos dois momentos cruciais para os cistercienses. Por que cruciais? Porque acredito terem sido momentos em que, possivelmente, eles se sentiram ameaados e inseguros quanto ao futuro da ordem. A funo do martrio na vida de um santo justamente de prov-lo. Colocar no seu caminho obstculos, para que assim Deus possa se certificar se o candidato a santo digno ou no do ttulo. O primeiro momento foi aquele em que os monges de Molesme reivindicam a volta do abade Roberto. Apesar da tnica do discurso tentar nos passar que eles no se abalaram, nem mesmo sentiram pela volta dele, notvel uma preocupao com o futuro do mosteiro dali em diante. Tanto verdade que a primeira providncia que o primeiro abade, depois de Roberto, toma o de procurar conseguir para aquele Novo Mosteiro a proteo papal.
(...) imediatamente previu as tempestades e tribulaes que se poderiam abater sobre a casa que lhe fora confiada, e a abalar gravemente (...) enviou dois monges, Joo e Iboldo, a Roma, para pedir ao senhor Papa Pascal, em seu nome, que colocasse sua Igreja sob proteo apostlica(...).(OS CISTERCIENSES, 1987, p.49)

Mediante esta proteo, Cister estaria livre de qualquer ataque, fosse leigo ou eclesistico. Tendo conquistado esta benesse do Papa, um segundo momento crucial surge. Este parece ter sido um momento de fato preocupante para aqueles que ainda perseveravam no Novo Mosteiro. Estevo Harding dedicou um captulo, no Exrdio de Cister, para narrar 101

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

aquilo que levou como ttulo A tristeza deles: Uma certa tristeza se abateu sobre aquele homem de Deus,... e seus companheiros: era raro que algum, naqueles dias, viesse se juntar a eles para os imitar (...)(OS CISTERCIENSES, 1987, p.63) Mas a providncia divina no deixaria de intervir em favor dos seus. Isso fica muito claro uma vez que Estevo Harding fez questo de registrar a graa que lhes foi concedida.
A graa de Deus, entretanto, enviou de uma s vez para aquela Igreja um nmero to grande de clrigos instrudos e de nobres, de leigos que eram poderosos no mundo e nobres igualmente, que num dado momento foram contados trinta candidatos(...) E comearam assim a alegrar e a consolidar aquela Igreja, de maneira admirvel. (OS CISTERCIENSES, 1987, p.67)

Por meio desta passagem possvel elencar o ltimo passo da santidade: a recompensa. Mas h que se ressaltar que este trecho foi inserido no Exrdio com o claro intuito de mostrar que, mesmo diante desta dificuldade, o mosteiro foi vitorioso, j que este documento foi escrito cerca de vinte anos aps a fundao de Cister, quando esta j era uma referncia no meio monstico reformado. Por isso eles quiseram mostrar o quanto a providncia divina foi justa com aqueles que foram, desde o incio fiis regra e ao seu ideal de pureza. Portanto, h de se ter cuidado ao analisar esta fonte, pois ela descarta qualquer possibilidade de sucesso vinculado, por exemplo, a uma organizao extremamente rigorosa e tambm inovadora para a sociedade monstica do sculo XII, na qual o trabalho dos irmos conversos teria gerado grande riqueza para o mosteiro. Uma das principais causas seria justamente a organizao e no foi a toa que Cister foi considerada a primeira verdadeira ordem monstica da Igreja. (BOLTON, 1983, p. 54).
Bibliografia Bibliografia especfica BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa, Edies 70, 1983. DELUMEAU, Jean. O Monaquismo. In: ___. De religies e de homens. So Paulo: Loyola, 2000. p. 177-184. DUBY, Georges. O Ano Mil. Lisboa: Edies 70, 1980. LE GOFF, Jacques. A Civilizao do Ocidente Medieval. Lisboa, Estampa, 1983. V. 1. VAUCHEZ, Andre. A Espiritualidade na Idade Mdia Ocidental sculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. ___. O Santo. In: LE GOFF, Jacques. O homem medieval. Lisboa: Presena, 1989. p.209-230. Fonte impressa Os Cistercienses: Documentos Primitivos / introduo e bibliografia Irmo Franois de Place; traduo brasileira Irineu Guimares. So Paulo: Musa; Rio de Janeiro: Lumen Christi Mosteiro de So Bento, 1987. Edio bilinge latim-portugus. (p. 35-67, 197211 e 223-245) 102

O Movimento Priscilianista no sculo IV


Jaqueline de Calazans

sculo IV foi cenrio de uma nova etapa no cristianismo na Pennsula Ibrica, este ento religio oficial do Imprio Romano. Contudo, o esforo de unificao em torno de uma ortodoxia enfrentou o aparecimento de movimentos que buscavam resgatar os ideais do cristianismo primitivo, atravs de um ascetismo rigoroso. No perodo analisado, o ascetismo expresso pela continncia sexual e rigor quanto alimentao foram o caminho escolhido por grupos de cristos para atingir a perfeio espiritual dos mrtires da igreja primitiva. Com o cristianismo passando a ser a religio oficial do Imprio, o Estado passou a intervir nos assuntos religiosos, at mesmo nas questes doutrinrias (LITTLE, 2002, p. 225). Dentre as mltiplas possibilidades de compreenso do ideal asctico, destaca-se a reao ao processo de institucionalizao da Igreja. Para muitos destes fiis, o martrio foi substitudo pelo isolamento e rigor moral como forma de buscar uma unio mais perfeita com Deus (LITTLE, 2002, p. 227). Segundo o historiador espanhol Teodoro Gonzlez, o desejo de se chegar perfeio espiritual pela fuga do mundo - expressa no isolamento - fez surgir a vida monstica como a forma mais adequada de vida crist (GONZLEZ, 1979, p. 613). A Hispania no foi uma exceo. Entretanto, cabe destacar que a opo pelo isolamento, abstinncia sexual e jejuns sistemticos no foi aceita rapidamente pela ortodoxia catlica. No Conclio de Zaragoza (380), que apareceram os primeiros indcios que mostravam a preocupao da hierarquia eclesistica s prticas ascticas dos monges e ascetas. Algumas razes so apontadas pela historiografia para explicar as resolues contrrias aos ascetas encontradas nos cnones do Conclio de Zaragoza. Segundo Teodoro Gonzlez, a primeira seria o temor com a possvel desorganizao das estruturas eclesisticas, j que clrigos estariam abandonando seus ofcios para se tornarem monges. A hierarquia eclesistica tambm receava o poder carismtico que estes leigos poderiam exercer sobre a populao (GONZLEZ, 1979, p. 623). A condenao s prticas ascticas pelos cnones do Conclio de Zaragoza acabou, para o autor, por

Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

revelar a proximidade entre o ascetismo dos monges e a heresia priscilianista. Desta forma, neste trabalho buscaremos, atravs da anlise das Atas dos Conclios de Zaragoza, I Toledo (VIVES, 1963), e dos escritos atribudos a Prisciliano (SEGURA RAMOS, 1975), caracterizar o movimento priscilianista em sua primeira fase. Conclio de Zaragoza Embora existam controvrsias acerca da data da realizao do Conclio de Zaragoza, a opinio mais consensual da historiografia fixa a celebrao deste em outubro do ano de 380 (RAMOS LISSON, 1986, p. 69). As Atas do referido snodo nos revelam os nomes dos doze bispos presentes. A ausncia dos nomes dos bispos Instncio e Salviano e mesmo de Prisciliano, estes acusados de prticas heterodoxas, pode ser interpretada como uma forma de no serem culpabilizados das acusaes de heresia. Refletindo no mesmo sentido, podemos tambm compreender a ausncia como uma ao estratgica dos priscilianistas. Pelo conhecimento das regras do campo religioso, sabiam que sua ausncia impediria uma acusao nominal ao movimento (RAMOS LISSON, 1986, p. 69). Feitas as primeiras consideraes sobre a abertura do conclio, passamos a anlise dos artigos em que buscaremos indcios que nos auxiliem na caracterizao do movimento.1 O I cnone delibera:
I. Que las mujeres fieles no se mezclan en los grupos de otros hombres que no sean sus maridos. Que todas las mujeres de la Iglesia catlica y bautizadas no asistan a las lecciones y reuniones de otros hombres que no sean sus maridos. Y que ellas no se junten entre si con objeto de aprender o ensear, porque as lo ordena el Apstol. Todos los obispos dijeron: Sean anatema todos aquellos que no observen esta prescripcin del concilio (CZ, I, p.16).

A disposio expressa no cnone relaciona-se ao desejo de coibir a capacidade de cooptar mulheres atribuda a Prisciliano como um mecanismo de evitar a grande adeso de mulheres jovens ao movimento (RAMOS LISSON, 1986, p. 73). Fernndez Caton levanta a hiptese de que este artigo seria uma forma de por fim prtica dos priscilianistas de se reunirem fora das igrejas em encontros que eram tidos como imorais (CATON, 1962, p. 82). Embora no seja nosso objetivo analisar o carter destas reunies, podemos concluir que no movimento priscilianista homens, mulheres e leigos pareciam partilhar do mesmo espao, dentro dos ritos litrgicos j que s mulheres era permitido aprender as sagradas escrituras, e tambm ensin-las. Dessa forma, percebemos que naquele momento havia no campo religioso uma disputa em relao a quem poderia aprender e ensinar, ou melhor, ter acesso aos produtos culturais e simblicos da Igreja. Acerca do II cnone, este diz:
II. Que nadie ayune los domingos ni si ausente de la iglesia en tiempo de Cuaresma. 104

O MOVIMENTO PRISCILIANISTA NO SCULO IV Adems ley: Nadie ayune en domingo en atencin al da o por persuasin de otro, o por supersticin, y en Cuaresma no falte a la iglesia. Ni se escondan en lo ms apartado de su casa o de los montes aquellos que perseveran en estas creencias, sino que sigan el ejemplo de los obispos y no acudan a las haciendas ajenas, para celebrar reuniones. Todos los obispos dijeron: Sea anatema quien esto hiciere (CZ, II, p. 16).

Este cnone estabelece mais de uma proibio. Em primeiro lugar busca coibir a prtica do jejum aos domingos. Da referncia feita s crenas podemos depreender que o jejum dominical tinha por possveis causas a superstio ou ainda a persuaso de outros. Dessa forma, podemos identificar este cnone como um reflexo de um elemento em questo para o estabelecimento da ortodoxia, que se configura na tentativa de monopolizar a regulamentao dos jejuns, e assim, por desdobramento, as prticas que se relacionam ao ascetismo. A segunda proibio refere-se ao hbito dos priscilianistas de se afastar-se dos ncleos urbanos e dos templos, em especial perto dos dias das festas religiosas, para reunirem-se em conventculos em fazendas e montes. Esta proibio pode ser compreendida como uma forma de delimitar os locais de cultos, buscando estabelecer a ecclesia como nico espao permitido ao culto. O antema referente ao III cnone se refere prtica atribuda aos priscilianistas de no comungarem na Igreja. Este sentencia:
III. Que aquel que reciba la Eucarista y no la consuma all mismo sea anatema. Adems ley: Si se probare que alguno no consumi en la iglesia la gracia de la Eucarista que all recibi, sea anatomizado para siempre. Todos los obispos dijeron: As sea (CZ, III, p. 17).

Segundo Fernndez Caton, uma das razes para esta determinao a crena de que na eucaristia estava presente o corpo de Jesus, e conforme a doutrina dos priscilianistas de abster-se de carne; eles deveriam evit-la (CATON, 1962, p. 101). Domingos Ramos-Lisson aponta ainda para o contedo maniquesta da prtica de no consumir a eucaristia. Segundo o autor, j que acreditavam que a carne era matria impura e mesmo perversa, estes evitavam-na. Para nossa anlise, mais importante do que explicarmos as razes que levaram atribuio desta prtica aos priscilianistas buscarmos compreender as implicaes trazidas pela acusao de maniquesmo, e como estas contriburam para colocar em risco o capital simblico acumulado por Prisciliano. Com o cristianismo sendo a religio oficial do Imprio Romano, a heresia tornava-se tambm um crime contra a ordem romana. Assim, esta acusao no teve efeito somente no campo religioso, mas trouxe tambm conseqncias polticas que contriburam para a condenao de Prisciliano em 385. A luta por posies dentro da hierarquia eclesistica pode ser depreendida da resoluo que aparece no VII cnone de Zaragoza. Este diz: 105

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS VII. Que nadie se llame doctor, sin tener este titulo. Adems se ley: Que ninguno se atribuya el titulo de doctor, fuera de aquellas personas a quienes fuere conferido, segn lo dispuesto. Todos los obispos dijeron: Hgase asi (CZ, VII, p. 17-18).

Este cnone evidencia a tentativa de consolidao da hierarquia do campo religioso, pela restrio de acesso aos leigos. A historiadora Juliana Cabrera destaca que Prisciliano ainda secular, no momento da realizao do Conclio de Zaragoza, reivindicava o direito de todos, permitindo-se o ttulo de doctor, mesmo sem pertencer ainda ao clero (CABRERA, 1983, p. 25-26). Conclio Toledo I O I Conclio de Toledo foi celebrado na cidade de Toledo no ano de 400, com assistncia de dezenove bispos. Na abertura das atas encontramos a seguinte afirmativa relativa aos bispos: () que so los mismos que en otras actas
promulgaron la sentencia contra los seguidores de Prisciliano y los folletos herticos compuestos por ste. (CT, p. 19).

Ainda existe uma outra afirmativa, esta, feita pelo bispo Patruino que diz:
Porque cada uno de nosotros hemos empezado a obrar de distinta manera en otras iglesias, y de aqu se han originado escndalos que casi rayan en verdaderos cismas, si os agrada a todos vosotros decretemos lo que ha de hacerse por todos los obispos al ordenar a los clrigos (CT, p. 19).

O destaque dado s duas afirmaes deve-se importncia destas para a configurao do conclio de Toledo I, como um snodo de contedo antipriscilianista. Diferentemente de Zaragoza I, no qual no so feitas referncias diretas ao movimento, este, realizado aps a morte de Prisciliano em 385, deixa claro os problemas enfrentados pela ortodoxia aps o julgamento de Trveris. Este fato evidencia a desestruturao do campo religioso e a inteno da ortodoxia de por fim ao movimento. Alguns de seus artigos de ordem geral apresentam as mesmas preocupaes do de Zaragoza I, como o VI cnone que determina:
VI. Que la joven religiosa no tenga familiaridad con los varones. Tambin se estableci que la joven consagrada a Dios no tenga familiaridad con varn religioso, ni con cualquier otro seglar, sobre todo si no es pariente suyo, ni asista sola a convites a no ser que se hallen presentes ancianos o personas honradas, o viudas y mujeres honestas, y donde cualquier religioso pueda asistir honestamente al convite en presencia de muchos. Y respecto de los lectores, mandamos que no deben ser admitidas en las casas de stos, ni aun de visita, a no ser que sea hermana suya consangunea o uterina (CT, IV, p. 21).

Novamente aparece a interdio s mulheres de conviverem com homens que no sejam seus parentes, bem como de participarem de encontros aos
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O MOVIMENTO PRISCILIANISTA NO SCULO IV

quais no possam estar presentes religiosos. Esta proibio pretende ratificar a inteno de delimitar o espao das mulheres, diferentemente da que se encontrava no priscilianismo (BARBERO DE AGUILERA, 1992, p. 88), buscando uma estruturao do campo religioso mais favorvel hierarquia eclesistica. Acerca da questo trinitria e cristolgica versam a maior parte dos dezoito cnones antipriscilianistas. Dentre os antemas referentes Trindade e aos questionamentos sobre a natureza e substncia divina, destacamos:
I. Se alguno dijere o creyere que este mundo y todas as cosas no fueron hechas por Dios Omnipotente, sea anatema. II. Si alguno dijere o creyere que Dios Padre es el mismo Hijo o el Parclito, sea anatema. III. Se alguno dijere o creyere que Dios Hijo es el mismo Padre o el Parclito, sea anatema. IV. Si alguno dijere o creyere que el Parclito es el Padre o el Hijo, sea anatema. (CT, I, II, III, IV, p. 72).

O problema acerca da Trindade e da natureza de Cristo no uma questo do sculo IV. Segundo Ramos-Lisson, desde o Conclio de Elvira que a ortodoxia buscava salvar a unicidade de Deus, contra heresias como o arianismo, entre outras (RAMOS LISSON, 1986, p. 91). A acusao feita aos priscilianistas de difundirem ensinamentos heterodoxos sobre a natureza de Cristo e da Trindade, leva-nos a concluir que estas questes permaneciam como foco de disputas naquele momento. A partir do artigo XV encontramos deliberaes que nos possibilitam apreender outras caractersticas do movimento. O cnone XV sentencia: Si alguno juzga que debe creerse en la astrologa o en las matemticas, sea anatema. (CT, XV, p. 28). A relao estabelecida neste cnone entre as prticas associadas astrologia remete-nos a acusao imputada a Prisciliano de conhecimentos relacionados astrologia e magia. Ruy de Oliveira Andrade Filho chama a ateno para o fato de que para sobrepor-se ao complexo mitolgico grecoromano, cultos orientais, supersties, etc., o cristianismo encaminhava a idia das prticas pags como um conjunto sob o patronato do mal. Neste perodo, o cristianismo considerava sob a mesma rubrica a idolatria, a magia e a heresia. Da a apresentao de Prisciliano como um conhecedor e praticante de magia (ANDRADE FILHO, 1995, p. 52). Podemos ainda compreender esta acusao de prticas relacionadas magia atribuda a Prisciliano dentro de um esforo da hierarquia eclesistica de controle e monoplio da manipulao do elemento mgico. Os dois prximos cnones destacados revelam outra caracterstica do priscilianismo, que se contrapunha ao estabelecido pela ortodoxia. Estes dizem:
XVI. Si alguno dijere o creyere que los matrimonios de los hombres que se reputan lcitos segn la ley divina, son execrables, sea anatema. XVII. Si alguno dijere o creyere que debe uno abstenerse de las

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS carnes aves o de los animales que nos han sido dados para alimento, no por mortificar el cuerpo, sino por execrables, sea anatema (CT, XVI e XVII, p. 28).

Nestes artigos vemos caracterizado o ascetismo rigoroso de Prisciliano e de seus seguidores. Podemos perceber que o ascetismo pregado pelos priscilianistas constrangia grande parte do episcopado peninsular. Este se caracterizava pelo vegetarianismo e pela condenao ao matrimnio e procriao O historiador Henry Chadwick revela que na regio da Hispania alguns bispos e outros membros do clero no guardavam as regras da castidade estabelecidas no Conclio de Elvira (CHADWICK, 1978, p. 20). O ltimo trecho destacado das atas de Toledo I o destinado s condenaes e sentenas dadas aos bispos acusados de seguirem os ensinamentos de Prisciliano. Embora apaream nas determinaes uma inteno conciliatria expressa no perdo dado aos bispos que abjuraram da heresia, o trecho que nos chama a ateno destaca os conflitos instalados dentro do campo religioso. Este diz: Herenas prefiri ms bien seguir a sus clrigos, los cuales espontneamente, sin ser preguntados, haban aclamado a Prisciliano como catlico y santo mrtir, u el mismo dijo que haba sido catlico hasta el final y que haba padecido la persecucin de parte de los obispos (CT, p. 31) Este ltimo trecho deixa claro que mesmo com a perda de poder simblico em virtude da morte de seu lder, isto no significou o abandono por parte dos priscilianistas do campo religioso no sculo V. Tratados de Prisciliano Os escritos atribudos a Prisciliano foram publicados pela primeira vez na obra de G. SCHEPSS, Priscilliani quae supersunt (G. SCHEPSS, 1889). Os escritos formam um conjunto heterogneo que rene tanto escritos apologticos (I-III) como homilias sobre vrios temas (IV-XI). Embora a autoria de todos os escritos por parte de Prisciliano no seja consenso na historiografia, no existem dvidas que estes escritos sejam priscilianistas, e que pelo menos o I, II e III so de sua poca (ESCRIBANO PANO, 1988, p. 113). O I tratado foi denominado por Schepss pelo nome de Liber Apologeticus em virtude de seu carter interno. O segundo recebeu o nome de Liber ad Damasum por conta do final do livro anterior, o mesmo acontecendo com o terceiro chamado de Liber De fide de apocryphis. Os trs primeiros tratados formam um conjunto que pode ser considerado independente dos demais, visto que esto estreitamente relacionados aos problemas enfrentados pelos priscilianistas com as autoridades eclesisticas em fins do sculo IV (CHADWICK, 1978, p. 95). Assim, dentre o conjunto dos dez tratados sero alvo de nossa anlise o Libro Apologtico, Lbro al obispo Damaso e Libro sobre la f y los apocrifos, que se encontram reunidos na obra de Bartolom Segura Ramos, Prisciliano: tratados y cnones (SEGURA RAMOS, 1975, p. 33-112). O significado destes escritos em nossa anlise funda-se na insero de Prisciliano como produtor de bens simblicos (BOURDIEU, 1989, p. 12108

O MOVIMENTO PRISCILIANISTA NO SCULO IV

13). Consideramos que Prisciliano, como ocupante de relativo reconhecimento no campo, teria acumulado capital simblico com a suposta produo de obras de carter teolgico. No tratado I, o Livro Apologtico, o autor faz uma extensa defesa da ortodoxia de seu grupo, com o sentido de ver ao clero o quo falsas so as acusaes que lhes imputavam. De forma indireta, afirma sua ortodoxia condenando os hereges. Sobre as questes trinitria e cristolgica, Prisciliano escreve:
Pues, Quin hay que, leyendo las Escrituras, y creyendoen una sola fe, un solo bautismo y un solo Dios(Eph. 4,5,6) no condene los necios dogmas de los herejes, quienes, al querer comparar lo divino con lo humano, separan la sustancia unida en la virtud de Dios y disgregan la grandeza de Cristo, venerable en la triple fuente de la Iglesia,()Pues El es quien fue, quien es y quien siempre ser, y, visto por los siglosel verbo se hizo carne y habit entre nosotros(SEGURA RAMOS, 1975, p. 36-37).

Neste trecho destacado, percebemos a inteno de firmar sua posio ortodoxa em relao s questes anteriormente mencionadas. Prisciliano busca, assim, defender-se das acusaes que lhe eram atribudas, de que pregava contra a Trindade ensinando que Cristo era inascvel. Nosso ponto de vista de que a tentativa de culpabilizar Prisciliano visava sua excluso do campo religioso. Novamente em seu segundo II Tratado, Libro al obispo Damaso, Prisciliano reprova as heresias dizendo: Pues quin puede con odos catlicos creer el crimen de la hereja arriana, el crimen de aquellos que dividen lo uno y que, al pretender que los dioses son muchos, manchan la luz del sermn proftico (SEGURA RAMOS, 1975, p. 56) O Libro al obispo Damaso considerado pelos historiadores como um manifesto coletivo dos que compartilhavam dos ideais de Prisciliano. Este mostra, na forma de narrativa, os principais acontecimentos desde o momento em que apareceram as primeiras acusaes do bispo Idacio, at o momento que Prisciliano, em companhia dos bispos Instancio e Salviano, encaminharamse a Roma, no sentido de defenderem-se das acusaes junto ao papa Damaso, a quem se destina a obra (SEGURA RAMOS, 1975, p. 53-61). Ainda no Libro ao obispo Damaso, Prisciliano justifica ao papa sua ausncia no conclio de Zaragoza, dizendo que contra ele no havia nenhuma prvia acusao. Este afirma que:
As pues, cuando vivamos en esta verdad de la fe y en esta sencillez, regres Idacio del Snodo de Zaragoza, no por tanto nada contra nosotros, como es natural, puesto que se haba despedido de nosotros cuando comulgbamos con l en nuestras iglesias y cuando nadie nos haba condenado, ni siquiera ausentes, previa acusacin (SEGURA RAMOS, 1975, p. 57).

A partir desta justificativa, podemos verificar que a dinmica do campo 109

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

religioso naquele momento constitua-se em torno da disputa entre parte do episcopado que apoiava Prisciliano e os que corroboraram as acusaes feitas pelo bispo Idacio. A ltima parte dos escritos atribudos a Prisciliano que analisaremos encontra-se no Libro sobre la f y los apcrifos. Neste terceiro Tratado, o autor ocupa-se fundamentalmente de defender a leitura e o estudo dos livros apcrifos. O autor questiona os critrios de seleo do cnone, chamando a ateno que a fixao de um nmero de livros como cannicos resulta da iniciativa humana. Deste Tratado destacamos:
Quin ha odo que se haya puesto en el canon alguna vez la profeca de Jacob? Si Tobas los ha ledo y mereci el testimonio de profeca en el canon por qu lo que reconcede a aqul en testimonio de virtud merecida, se toma en otros como ocasin de una justa condena? Por lo tanto, que nos perdone cada cual si preferimos ser condenados junto con los profetas de Dios a condenar las cosas de la religin junto con aquellos que las miran con recelo. () Desde luego, no se puede condenar un libro cuyo testimonio cumple la fe de la palabra cannica ni se puede, como si se tratara de caprichos en un banquete, elegir una cosa y rechazar otra (SEGURA RAMOS, 1975, p. 65)

Segundo o historiador Menndez Pelayo, para Prisciliano o cnone no deveria estar restrito aos textos reconhecidos pela hierarquia da Igreja, j que, em sua concepo, sendo revelaes divinas, no estaria a cargo dos homens selecionar os livros que poderiam ser objeto de leitura e estudo pelos cristos (MENNDEZ PELAYO, 1965, p. 193). Sobre isto Prisciliano escreve: La Escritura de Dios es una cosa slida, verdadera, no elegida por el hombre, sino por Dios entregada al hombre (SEGURA RAMOS, 1975, p. 67) Embora, nossa anlise no tenha pretendido discutir os aspectos teolgicos e doutrinrios da problemtica referentes ao estabelecimento do cnone, os ltimos fragmentos destacados possibilitam caracterizar este tema como um elemento importante para a consolidao da ortodoxia. Compreendemos assim, que o monoplio dos profissionais eclesisticos sobre a produo de bens simblicos, no caso o cnone, imps a dinmica e a hierarquia de posies no campo religioso. As lutas internas da Igreja giravam em torno de questes como, a participao de mulheres nos rituais religiosos, a regulamentao das prticas ascticas, a delimitao dos espaos de culto e o monoplio da magia. Dessa forma, conclumos que o priscilianismo no final do sculo IV e incio do sculo V configurou-se como um elemento fomentador e crucial para a compreenso das disputas dentro do campo religioso daquele perodo.
Bibliografia ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. Ensaio sobre a religiosidade popular na Hispania do sculo IV: O conclio de Elvira. Amricas, n 2, p. 30-58, 1995. BARBERO DE AGUILERA, Abilio. La Sociedad Visigoda y su Entorno Historico. Madrid: Siglo XXI, 1992. 110

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

As ordenaes de D. Duarte e o perfil do estado portugus


Joo Cerineu Leite de Carvalho

autoridade e soberania portuguesas foram postas em prtica atravs da definio e aplicao de normas jurdicas em um territrio que se definiu com o passar do tempo. A regio onde se formou e consolidou Portugal teve por habitantes uma multiplicidade de povos que contriburam para a gerao da cultura partilhada por aqueles que constituram o pas em sua independncia. Isso quer dizer que a cultura portuguesa uma herana constituda de suas predecessoras desde a ascenso de Afonso Henriques em 1128. Iniciado com a independncia nacional, o direito portugus se configura em uma continuao de tradies jurdicas do territrio em que veio a se estabelecer o reino de Portugal. O que propomos neste artigo , atravs da histria do direito, destacar o momento em que o reino de Portugal comea a passar por um processo em que suas instituies sofrem modificaes que apontam para um aperfeioamento administrativo a medida em que o perodo da expanso ultramarina se intensifica (sculos XV-XVI). O enfoque sobre as instituies jurdicas portuguesas tem como objetivo demonstrar que o direito existe como uma estrutura histrica e produzido em sociedade. Com efeito, a estrutura jurdica do Estado portugus pde ser vista como um mecanismo social, uma vez que mantm um forte vnculo com o ambiente no qual ela produzida. Portanto, torna-se necessrio ressaltar que indispensvel o cuidado em no desligar a evoluo do direito de um povo que esteja sendo estudado da evoluo histrica do mesmo, j que partimos do princpio de que o direito no um produto arbitrrio das vontades, mas uma resposta s necessidades sentidas pela comunidade tal como so manifestadas pelos interessados e interpretadas pelos governantes. (CAETANO, 2000, p. 27) Negando qualquer teoria da modernizao, na qual o direito se encaixaria em um padro universal de evoluo, dizemos que o papel da regulao jurdica no depende das caractersticas intrnsecas das normas jurdicas, mas do papel que lhes assignado por outros sistemas normativos que formam seu contexto. (HESPANHA, 1997, p. 12) Afirmamos no ser possvel determinar um desenvolvimento linear na produo do direito, que no h sempre um aperfeioamento positivo de uma estrutura jurdica em relao a sua antecessora.

Graduado em Histria pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

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E se ligarmos a produo do direito, de alguma forma, existncia de um Estado pois ele que cada vez mais detm a autoridade sobre a normatizao jurdica (em especial no momento que destacamos) preciso, ao mesmo tempo, fugir da idia de estadualismo. Nos parece bem mais coerente olhar a normatizao social como um processo efetuado em mltiplos nveis do que atribuir todo o crdito de sua criao ao Estado. Isso se torna de extrema importncia se formos considerar o perodo da baixa Idade Mdia e princpio da Idade Moderna, no qual nos concentramos. Justamente por essa pluralidade existir que o Estado criaria mecanismos capazes, rivalizando com as outras foras, de subjug-las e ampliar o controle sobre a vida das pessoas. Atravs da anlise da Justia nas Ordenaes de D. Duarte (1436) e das Ordenaes Manuelinas (1521), tentamos traar o perfil institucional do Estado Portugus em um momento crucial de sua histria, quando este se torna uma poderosa potncia martima e comercial, estendendo seu imprio desde o Oceano ndico (passando por Macau, Calicute, entre outros) at a costa americana no Atlntico Sul. Pudemos perceber uma tentativa de organizar e regularizar a aplicao de Justia atravs do incio da publicao escrita das leis judiciais e da conseguinte publicao de compilaes. Tal processo de compilao iniciado com D. Duarte (rei entre 1433 e 1448) e mais tarde levado adiante por D. Manuel (1495-1521) demonstrava a necessidade do imprio ultramarino em se organizar frente a sua grandeza. Ambas as compilaes so marcos da influncia do direito romano sobre o Direito Portugus, e representavam a vontade do rei de que sua soberania deveria ser conhecida e cumprida como determinado. O que apresentaremos a seguir uma pequena anlise das Ordenaes de D. Duarte, compilao produzida no sculo XV, cerca de vinte anos aps a conquista lusitana de Ceuta, no atual Marrocos, apontado como marco inicial da expanso martima portuguesa concluda no sculo seguinte. As leis que conhecemos do Portugal medieval s nos vm tona a partir de compilaes tardo-medievais. As principais fontes utilizadas pela historiografia que visam reconstituir a legislao medieval so o produto da atividade de juzes ligados Corte Livro das Leis e Posturas, Ordenaes , ou administrao local Foros municipais. De acordo com o que afirma Antnio Manuel Hespanha, podemos situar 250 leis desde o surgimento do reino portugus at o sculo XIII, 220 entre 1248 ascenso de D. Afonso III e 1279, e apenas 150 no que corresponderia aos sculos XIV e XV. Tal estatstica, contudo, no muito precisa uma vez que muitos desses textos legislativos no esto datados. Desse conjunto legislativo podemos destacar as determinaes rgias no curso do seu poder imperial referentes represso ao crime, visando a manuteno da paz atravs de leis penais e erradicao da vindicta , disposies do rei sobre os reguengos e ofcios reais, disposies da corte e normas de deciso do tribunal da corte em muitos casos preceitos doutrinais ou costumeiros, mas normalmente uma deciso real. No que diz respeito s Ordenaes do reino, que se inserem nessa 113

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produo, sabe-se que cobriam a normatizao administrativa tanto local quanto central, sendo seu principal domnio a regulamentao da justia da maneira como era ento definida: mais voltada para o mbito administrativo, e no para o domnio fiscal-financeiro. De uma maneira geral, as Ordenaes de D. Duarte obedecem a um critrio cronolgico em sua sistematizao. So constitudas de leis escritas desde D. Afonso II at o prprio D. Duarte. Interessante notar que o maior volume de leis se concentra em trs reinados de D. Afonso III, D. Dinis e D. Afonso IV , e que a produo relativa aos reis da dinastia de Avis reduzido em comparao maioria de seus antecessores (em especial aos trs citados). D. Duarte aparece com menos ordenaes do que seu pai, D. Joo, provavelmente um reflexo da curta durao de seu reinado (o que no atrapalhou sua participao desde cedo nos assuntos de Estado). Nesse recorte, portanto, nos encontraremos na passagem de quase um sculo aps o incio do primeiro momento do que Caetano definiu como Consolidao do Estado. Destacaremos antes, contudo, duas ordenaes referentes D. Dinis. A maioria das leis contidas nas Ordenaes havia sido redigida muito tempo antes do reinado de D. Duarte. Em razo disso, o critrio usado pelos copistas dos manuscritos originais parece ter sido o de se manter fiel aos contedos e de uma liberdade adaptadora (aos usos da poca e do copista) quanto forma. Por forma entenda-se a grafia, a ortografia e, em parte, a gramtica; que eram, naturalmente, modernizadas (ALBUQUERQUE; NUNES, 1988, p. XXXI) Comecemos pela ordenao redigida por D. Dinis em 1 de Julho de 1320, que representa a afirmao do rei como autoridade mxima nos assuntos relacionados justia. Na lei que determina que ningum apele para outra pessoa que no o rei, D. Dinis se dirige a todos os meestres Priores abades comendadores E aluazijs E Juizes E alcajdes E Justias E conelhos E a todalos outros que ouuerem a Julgar preitos (ALBUQUERQUE; NUNES, 1988, p. 165) em Portugal. Ou seja, a todos os que, de alguma maneira esto envolvidos com a aplicao de justia no reino. Aps constatar que muitos estavam julgando sem sua permisso, consultando seu irmo futuro Afonso IV , seu conselho e sobrejuzes, decide que todo-los de meus rregnos que apelarem dos Juizes ou aluazijs ou dalcaides ou de Justias ou doutros que os Julgarem que apelem primeiro pera mym E pera minha Corte E nom apelem pera outro nenhuum. (p. 165-166) Afirma-se assim, que o poder de julgar emana nica e exclusivamente do rei, que, como a cabea do corpo poltico, era comparado com Cristo, a cabea do corpo mstico da Igreja. A funo justia centralizada, o que podemos confirmar em sua ltima afirmao, de que nem-huum nom seja ousado de sse chamar ssobreJuiz nem meirjnho nem usar ende do oficio se nom for meu E per meu mandado. (p. 166) Na ordenao de D. Dinis intitulada Como Ell rrey manda aos Juizes que faam Justia (p. 190) , de 3 de Julho de 1341, o rei diz, aps constatar que os alcaides, juzes, meirinhos, etc. no vinham julgando de maneira correta, que caso no o fizessem, seriam punidos: aquell que per Justia mjnguar eu lhe
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darei aquella mesma pena que decyam auer aquelles que a Justia mereem em seuos corpos em que a uos mando fazedes. (p. 190) Uma repreenso, portanto, queles que no praticavam a merc concedida pelo rei de maneira correta. O juiz mximo na terra, o monarca, zela pela boa conduo da frao de si que fora delegada a esses oficiais, especificando a maneira como devem ser tratados os criminosos ordenando que o julgamento fosse feito sempre na vila onde o crime fora cometido , a fim de apurar mais facilmente a verdade nas acusaes. E esto fao porque entendo que seruio de deus E meu he notadamente temos aqui a doutrina das instituies jurdicas como uma ddiva divina E por uoso proueito E mais guardamento de uosos dapnos em asy comprir Justia. (p. 190) Olhando agora para as ordenaes referentes D. Afonso IV, irmo de seu antecessor, que subira ao trono em 1325, percebemos, infelizmente que essas no possuem data especificando quando foram colocadas em vigor. Isso, na verdade, no nos atrapalha tanto, pois nossa maior preocupao se concentra na sua aplicao aps o primeiro quarto do sculo XV. Fica estabelecida, portanto, a margem que vai desde 1325 at o fim do reinado de Afonso IV (1357) como o perodo em que as ordenaes a seguir foram provavelmente redigidas. Logo na hordenaom primeira que esse Rey pos em sas audiains em rrazom dos ouujdores E sobreJuizes de sa corte (p. 310) encontramos, mais uma vez, o discurso que visa reafirmar a autoridade do rei nas questes judiciais, como vigrio de Deus e mantenedor da ordem na terra. Nesta, afirma-se que os reis so
postos cada huum em seu rregno em lugar de deus sobre sas Jentes pera as manterem Justia E com uerdade E dar a cada huum o seu direito (...) porque el Rey he hum que deue fazer Justia E em ell Jaz deuem seer huus com ell dessy porque he cabea do seu Regno./ (p. 310-311)

Sua posio de cabea de um corpo que deve ser mantido so o coloca com a responsabilidade de ficar frente de todas as justias do reino, de preferncia aplicando-a da maneira mais dinmica possvel, fornecendo esse servio a todos aqueles sditos que viessem demandar direito. Um pouco mais adiante, reconhecendo o duro trabalho que para si e para sua corte fazer direito, o rei manda pollos homens boos sobreJuizes E ouujdores que esto ouuerom de fazer em tempo de nosso padre a que deus perdooe E a agora ho ham de fazer por nos. (p. 311) Ou seja, o rei delega o poder de julgar a esses funcionrios, que deveriam, de acordo com a mesma ordenao, aprender o ofcio e exerc-lo de maneira justa, sem causar danos e estragos s partes envolvidas nos feitos que presidissem, fazendo com que transcorressem sempre de maneira rpida. Em razo dessa preocupao em dinamizar os processos jurdicos podemos encontrar a ordenao intitulada Como hi nom aJa mais de tres audiancias. (p. 312) Nesta, o rei determina o nmero mximo de audincias que cada caso, visando tolher E escusar esta delonga. (p. 312) na 115

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determinao da sentena dos julgamentos. Em primeira instncia o julgamento feito por um sobrejuiz, auxiliado por trs ouvidores. Caso queira fazer-se apelao, ser feita para esses ouvidores, que podero revogar ou confirmar a sentena do sobrejuiz. No est muito clara a maneira como se daria a terceira audincia, mas nos parece que esta feita em apelao direta ao rei: sse as partes ouuerem sospeito o sobreJuiz ou alguum dos ouujdores uenham a nos quando na cassa formos. (p. 313) Neste caso o procedimento se constitui na troca do sobreJuiz e manuteno dos advogados, procuradores e escrives. importante notar a preocupao em detalhar cada procedimento, o nmero de oficiais envolvidos, e suas funes especificas em cada etapa do procedimento, para que uma das principais atribuies rgias fosse executada de uma forma to infalvel quanto este escolhido de Deus faria em pessoa. Tal tendncia aponta para a organizao da justia como uma instncia privilegiada na administrao do Estado portugus. As Ordenaes de D. Duarte, com efeito, se mostram realmente como uma grande compilao de leis publicadas com o passar dos sculos, parecendo ser sua mais efetiva observncia de grande interesse a este monarca no processo de reafirmao de seu poder, ainda que estas no constitussem o nico conjunto de leis publicado. Mas importante observar que esse esforo se resume menos a uma reforma legislativa do que tentativa de que antigas leis fossem observadas. verdade que o prprio D. Duarte produzira algumas leis, mas em nmero reduzido se comparadas produo dos trs monarcas citados anteriormente. Sua preocupao parece realmente demonstrar a fora que a palavra dos reis tm, ao adotar e reforar aquilo que determinaram. Suas intenes de centralizao, mesmo que pouco efetivas em diversas ocasies, demonstram vontade em fazer do rei muito mais do que um senhor entre senhores. E sim constitu-lo em autoridade mxima, de onde emanam as leis e que espera que estas sejam cumpridas em benefcio de sua funo de mantenedor da ordem e da paz. O poder do monarca portugus era exercido nos primrdios do reino, de uma forma geral, da mesma maneira que o dos senhores feudais. O rei de Portugal, portanto, seria mais um bellatore, uma das trs ordens com responsabilidades especficas de acordo com uma organizao universal de origem divina, gozando primordialmente de uma face de chefe guerreiro. Tentamos aproximar o poder rgio portugus da dominao tradicional de estrutura estamental formulada por Weber. Nesta, apesar do rei apresentar certa igualdade com os outros senhores, tinha seu devido destaque como lder de um povo e, por isso, era detentor do poder absoluto, estando frente de uma estrutura administrativa. Mas, como tambm j observamos, isso no implica, obrigatoriamente, na centralidade do poder, uma vez que este corpo administrativo era composto por pessoas relacionadas com o monarca atravs de fidelidade que era regulada pela honra e pela cesso patrimonial de jurisdies. Falar em estadualismo, neste caso, se configura em um claro erro. Isso quer dizer que o monarca apesar de ter o reino sob seu domnio,
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no exercia, efetivamente, sua autoridade em todo o territrio em questo. Ele acaba partilhando-a com um corpo administrativo composto de um segmento privilegiado de sditos, ou mesmo se colocando de forma complacente existncia de direitos rsticos paralelos, desde que no agredissem o que estava estabelecido na normatizao oficial. O rei portugus e de maneira geral os reis da Cristandade pode ser considerado, no s uma estrutura poltica em si, mas com o passar do tempo a mais importante delas. Sua posio de senhor entre outros senhores, primus inter pares, comea a se modificar desde D. Afonso III (1248-1279), e, acentuadamente, desde a crise dos anos 1383 a 1385. Tal transformao foi levada adiante atravs da multiplicao de medidas fiscais, administrativas, militares, legislativas e judiciais. Se considerarmos o Estado como uma sociedade poltica com uma unidade permanente e estabilidade geogrfica resistentes ao tempo, instituies aceitas pela coletividade e a existncia de uma autoridade suprema qual todos estariam subordinados, Portugal se tornava um Estado. E caber sua principal estrutura, o rei, increment-lo atravs dos poderes que competem soberania: executar leis e polticas, controlar o fisco, decidir acerca da guerra e da paz, legislar, e julgar. Portanto, sob o efeito, dentre outras coisas, da recepo da tradio romanstica do direito na Cristandade baixo-medieval, podemos apontar uma mudana sensvel na maneira como a coroa se coloca em relao queles que esto em seu territrio. Ela vai se infiltrando nos sistemas normativos sempre visando tomar para si o controle destes. Comea a se organizar de maneira que o corpo administrativo age ou deveria, sofrendo presses do rei para tal menos por vontade prpria e mais por vontade da ius commune, e que era controlada pelo monarca, o nico legislador do reino, ainda que ele mesmo, de uma maneira geral, tivesse de se submeter prpria legislao. O que vislumbramos enquanto Portugal vai se aproximando da Modernidade, com a aparente necessidade de uma melhor organizao interna uma vez que aspira conquistar domnios ultramarinos , uma tendncia a abandonar a estrutura estamental em favor de uma dominao voltada para uma organizao que tendia racionalizao. Portugal j tem, na segunda dcada do sculo XVI, domnio sobre a costa ocidental da frica, sobre o que viria a se tornar o Brasil, alm de diversas feitorias estabelecidas na sia. E parecia se tornar impraticvel sustentar tantos membros sem uma melhor organizao na sua cabea. E tal fato parece se constatar antes dessa multiplicidade de domnios. A proximidade da confeco das Ordenaes de D. Duarte com a conquista de Ceuta (1415) no seja talvez uma simples coincidncia. A reunio de leis em um livro oficial e pblico (visando amenizar a ainda fortssima influncia dos poderes particularistas na vida poltica do reino) parece ser uma resposta do monarca portugus, no campo jurdico, aos reflexos trazidos por essa novidade considervel no exerccio de sua autoridade. Atravs da anlise da Justia nas Ordenaes de D. Duarte podemos apont-las como a configurao inaugural da multiplicao de mecanismos que 117

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tm como objetivo principal promover a centralidade do monarca lusitano no controle de seu reino. No podemos afirmar, com toda certeza, a gnese de um tipo de administrao burocratizada nos moldes da dominao legal weberiana. Podemos indicar que a principal realizao dessa iniciativa rgia , portanto, a abertura de novas perspectivas para o desenvolvimento do direito em Portugal. Perspectivas essas que se abrem muito mais se analisarmos a compilao de quase cem anos depois, confeccionadas em cinco volumes sob o nome do monarca D. Manuel. Podemos concluir dessa postura do rei no campo jurdico uma tentativa de amenizar a ainda fortssima influncia dos poderes particularistas na vida poltica do reino portugus. Portugal ainda passaria por muitas vicissitudes at atingir uma centralizao poltica efetiva, na segunda metade do sculo XVIII.
Bibliografia ALBUQUERQUE, Martim de; NUNES, Eduardo Borges. Ordenaes Del-Rei Dom Duarte. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1988. BOXER, Charles Ralph. O Imprio Martimo Portugus: 1415-1825. So Paulo SP: Companhia das Letras, 2002. CAETANO, Marcello. Histria do direito portugus (sc.s XII-XVI). Seguida de Subsdios para a histria das fontes do direito em Portugal no sc. XVI. Lisboa: Verbo, 2000. GILISSEN, John. Introduo histrica do direito. Lisboa: Ed. Calouste Gulbenkian, 2001. HESPANHA, A. M. Panorama da cultura jurdica Europia. Lisboa: EuropaAmrica, 1997.

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O discurso de controle da Igreja no sculo XIII


Fabrcia A. T. de Carvalho* A Igreja de Roma sacralizou o casamento e a confisso no IV Conclio de Latro, em 1215, promovendo sua disseminao pelo ocidente medieval. Estes dois sacramentos estavam inseridos na prtica discursiva de controle que foi empreendida pela Igreja na tentativa de controlar os fiis. Observaremos, no texto que segue e a partir da anlise de discurso, como a Igreja elaborava suas estratgias de controle. No sculo XIII, de acordo com o historiador Andr Vauchez, a partir do movimento de Reforma iniciado com Gregrio VII, ainda no sculo XI, ocorreu uma mudana na concepo de santidade presente nos textos hagiogrficos.1 Esta alterao estaria, de algum modo, vinculado com o processo de canonizao papal e evangelizao dos fiis. Propunha-se um modelo de santidade que poderia ser imitado pelos ouvintes das hagiografias, assim aquele que ouvisse ou lesse sobre um processo de arrependimento e salvao procuraria imit-lo, segui-lo. (VAUCHEZ, 1991, p. 168). A Vida de Santa Maria Egipcaca2, poema hagiogrfico castelhano escrito no sculo XIII encontrava-se neste contexto. E foi com este texto que trabalhamos na pesquisa que realizamos durante o curso de mestrado.3 A hiptese que defendemos era que seria possvel afirmar que a SME, sendo um discurso que carrega os enunciados das diretrizes papais, expressas no texto cannico do IV Conclio de Latro, incorporou e propagou entre os castelhanos, ao lado dos textos lateranenses, o sacramento da confisso, que tinha por fim ltimo controlar a vida do fiel, mais especificamente a mulher. No nos importava analisar se os objetivos desta obra foram efetivamente alcanados, mas destacar que tais diretrizes foram materializadas em diversos discursos e enunciados, como na SME. E acrescentamos: como este sacramento aparecia no texto hagiogrfico em estudo sempre vinculado ao pecado carnal por excelncia, a luxria, acreditamos que este texto apresentava, estratgias que deveriam ser utilizadas para regrar e tutelar as mulheres - agentes privilegiadas da luxria, segundo a viso dos eclesisticos medievais - atravs de toda uma regulao de sua vida, sobretudo no tocante s relaes sexuais. A SME, por ser uma hagiografia e, como tal, pertencendo instituio legitimada que era a Igreja, possui, portanto, as prerrogativas de um veculo portador dos enunciados de verdade desta ltima, e que so fundamentais
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Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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para sua estratgia de manuteno do poder. Na anlise do discurso que empreendemos, buscamos observar como a presena do sacramento da confisso tem a inteno de formar os fiis. Mas nesta obra os fiis assumem perfis mais especficos: trata-se das mulheres. Assim, esse sacramento, nesta obra, serve como uma forma de tutelamento das mulheres. Nossa pesquisa possui, portanto, um objetivo duplo: verificar como o sacramento da confisso est presente na SME, relacionando com a formao do fiel; e examinar sua aplicao no controle de um subgrupo de fiis, as mulheres. Nosso quadro terico-metodolgico est calcado nas idias de Michel Foucault. A seguir, apresentaremos os conceitos deste autor adotados na pesquisa. O discurso , segundo Foucault, um conjunto de saberes que desejam tornar-se poder, mas para isso necessrio que sejam expressos, preciso ganhar forma, textual e/ou verbal. Essas expresses do discurso so as enunciaes. No sculo XIII temos alguns discursos que, na maioria das vezes, foram construdos pelos intelectuais da Igreja como, por exemplo, as novas consideraes a respeito dos sacramentos; as novas idias sobre a casustica; os novos cnones oriundos dos conclios e snodos; e temos tambm aqueles que nem sempre foram elaborados por aqueles intelectuais, mas que esto inseridos no mesmo contexto discursivo, so as hagiografias. Essas configuramse mais que simplesmente em vida de santo. Elas so a memria do prprio cristianismo, na medida em que preservam, resgatam e difundem suas teses. Cada hagiografia, para alcanar seu objetivo, foi transformada em enunciados e em enunciaes. Estas enunciaes aconteciam no momento da leitura do texto ou mesmo durante um sermo. A enunciao o momento no qual o discurso , recebido/ enviado/ materializado, no importando que forma ele tenha. Mas ela depende de um elemento fundamental para existir, que o enunciado. O enunciado , muitas vezes, o eixo do discurso, pois a idia central e pode ter muitas formas. Muitas vezes ele apresenta uma idia complexa, em outras apenas uma palavra, ou pode ser as duas coisas: uma palavra que expe uma idia complexa. Aps esta breve apresentao dos conceitos propostos por Michel Foucault que nortearam a nossa pesquisa, estaremos apresentando, de forma mais detalhada, os elementos que compem a anlise de discurso: o discurso, o enunciado, a enunciao, o saber, o poder, o autor e o annimo e a formao discursiva. Para facilitar o entendimento, optamos por apresent-los separadamente. Ainda no sculo VIII, o relato da Vida de Maria Egipcaca passou a ser considerado como uma hagiografia. Escrita tanto em prosa quanto em verso, esta narrativa considerada por ns como um discurso e como tal possui normas de formao e acontecimento. O discurso o registro histrico de uma sociedade, algo dotado de materialidade scio-histrica. Segundo Michel Foucault,
[...] em toda sociedade a produo do discurso ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e 120

O DISCURSO DE CONTROLE DA IGREJA NO SCULO XIII perigos, dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel materialidade. (FOUCAULT, 2000, p.56.)

O discurso , por excelncia, o local no qual se manifestam os meios ou as tentativas de controle, sendo ele mesmo uma dessas formas. Durante a Idade Mdia a inteno de controlar e tutelar as mulheres foi construda, sobretudo, pelos intelectuais da Igreja, detentores do saber, pois no discurso que saber e poder se articulam. No nosso caso, essa construo discursiva atribuda a Igreja. Para empreender a anlise de um discurso deve-se antes considerlo como um elemento constituinte de uma srie; deve-se considerar e conhecer tambm a regularidade dos fenmenos, isto , dos eventos que esto em curso durante a elaborao deste discurso, e os limites de probabilidade de sua emergncia. Desta forma, ele uma prtica que obedece a regras de formao, de existncia, de coexistncia e a sistema de funcionamentos. (FOUCAULT, 2000, p.56) O discurso deve ser estudado no prprio sistema no qual foi institucionalizado, assim como deve-se verificar o conjunto de condies que proporcionaram sua emergncia e sua ligao com outros discursos. Nessa ligao que um determinado discurso estabelece com outros preciso tambm analisar de que forma eles se juntam em conjuntos estatutrios e quais funes exercem, bem como esquadrinhar os princpios que os guiam e de que maneira so introduzidos nas condutas e nas prticas cotidianas. (FOUCAULT, 1994, p.708) por isso que necessrio enxerg-lo no momento em que ele acontece, durante o perodo em que pode ser conhecido, reconhecido e transformado, ou seja, preciso trat-lo em sua prpria instncia de aparecimento, no jogo onde vai atuar, mostrando porque ele no poderia ser diferente do que , e por que motivo ele ocupa dentre e entre todos os outros discursos, o lugar que nenhum outro poderia ocupar, tornando-o nico, individual. (FOUCAULT, 1994, p.705-707) Outra instncia fundamental do discurso a noo de que ele estratgico, ou seja, de que ele faz parte de um jogo estratgico que pressupe ao e reao, e no qual a dominao encontra resistncia, precisando por isso estar sempre se reformulando. (DELEUZE, 1992, p.123) Quando analisamos um discurso precisamos investigar sua formao discursiva estando atentos enunciao e ao enunciado. Entendemos a SME como uma enunciao. Trata-se de uma obra nica: seus enunciados no iro se repetir da mesma forma em outro texto. relevante a informao de que a histria de Santa Maria Egipcaca possui vrias verses, mas nenhuma obra igual a esta. Para exemplificar, basta lembrar que na Pennsula Ibrica encontramos duas verses desta histria em castelhano, uma do sculo XIII e outra do sculo XIV. A primeira, com a qual trabalhamos, foi escrita em verso, sendo que o eixo de sua narrativa Maria Egipcaca. A segunda verso foi escrita em prosa, mas o centro da histria o monge Zzimo. A enunciao tende a singularizar o discurso, pois no se repete, enquanto que o enunciado, alm de ter modalidades particulares de 121

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existncia, faz o discurso aparecer, tornando-o material, podendo ser repetido. O objeto-referente aqui a confisso, e justamente por poder ser repetida, adquirir outras formas, como expressar a idia sem utilizar propriamente o vocbulo, que ela o enunciado. (DELEUZE, 1992, p.122) A repetio do enunciado, por meio das enunciaes, vai depender do lugar de onde este pronunciado, podendo inclusive, em funo do contexto, assumir um significado diferente. (BRANDO, 2000, p.31 ) No nosso caso, a enunciao a prpria SME, pois no se repete. A enunciao a inaugurao do discurso, ou seja, a cada vez que ele for pronunciado ou lido silenciosamente estar sendo inaugurado. A SME uma enunciao da histria da vida de Maria Egipcaca e como tal nica. O enunciado compe, d forma ao discurso, estando sempre, em contato com enunciados que o precederam; podendo ser repetido, transformado ou reativado, porm, nico como qualquer outro acontecimento. (FOUCAULT, 1997, p.28; 90) Assim, o enunciado da confisso na SME pode assumir algumas formas, s vezes aparecendo em uma construo frasal, s vezes aparecendo na forma de uma orao. Como nunca poderemos alcanar o efeito produzido imediatamente pelos enunciados que ela carrega como discurso que , estaremos apenas trabalhando com os enunciados que a constitui, como eles se formam, como entram em contato com outros, que formas assumem, como se constituem como saber e poder, e como entram no jogo estratgico. por isso que a anlise da formao discursiva deve compreender o enunciado em sua enunciao e no momento no qual o discurso foi elaborado e materializado, pois ele, o enunciado, pode ser composto por um gesto ou por uma fala, mas a partir do momento em que inscrito em um livro, em um manuscrito ou em uma escultura, ele abre para si mesmo a existncia permanente na memria material. O que rege a materialidade de um enunciado , certamente, a instituio e no somente sua localizao espao-temporal, at porque o discurso, entendido como composio de enunciados, diacrnico, na medida em que est sempre presente e em contato com enunciados anteriores e posteriores. (FOUCAULT, 1997, p.135-136; 226) O enunciado tudo que inscrito na superfcie, em um local visvel. Deve-se, ento instituir a anlise na superfcie, daquilo que est visvel, mas s faz sentido, ou melhor, s possvel de enxergar quanto exposto luz de sua prpria constituio, no instante de sua emergncia e das relaes de foras que compem o campo de possibilidades em que ele surge. As relaes de fora compem-se das aes e relaes entre saber e poder. (DELEUZE, 1992, p.115) O saber composto de formas visveis e que podem ser enunciadas, enquanto o poder composto de foras que se interrelacionam. O saber tenta penetrar, entranhar. J o poder tenta controlar, apropriar, passando ou por baixo ou por entre as formas de saber. So duas instncias diferentes, mas inseparveis. Assim, o domnio do saber formado por regras codificadas, que so relaes entre as formas de saber. O poder, por sua vez, composto pelas regras coercitivas, que so as relaes da fora com outras foras, tanto que tido como microfsico.
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O DISCURSO DE CONTROLE DA IGREJA NO SCULO XIII

(DELEUZE, 1992, p.115) E por agir em relao e com outras foras, o poder incita, induz a produo do saber que permitir sua permanente renovao. Para Foucault, por sua capacidade de produo que o poder aceito, pois alm de produzir saber, prazer, tambm produz discurso. (FOUCAULT, 1993, p.8) Tambm preciso atentar para o fato de que a funo do discurso na relao saber/poder ocorre no cotidiano, sendo a reproduzido, reformulado ou retomado, sem perder sua legitimidade. Como exemplo, poderamos citar os textos religiosos (inclumos a as hagiografias), os jurdicos e os cientficos. Assim, o discurso considerado como uma prtica vinda da formao de saber ou saberes e que se articula com outras prticas que no so necessariamente discursivas, mas que esto sob a influncia deste discurso. O discurso, segundo Foucault, seria o lugar no qual saber e poder estariam articulados e articulando-se num contnuo. Este lugar de onde se fala deve ser reconhecido institucionalmente, tornando-se verdadeiro e legtimo. O discurso que nasce deste lugar reconhecido veicula saber e permite a gerao de poder. A produo deste discurso gerador de poder no aleatria, pelo contrrio, ela metodicamente controlada, escolhida, formulada, distribuda e redistribuda atravs de procedimentos estratgicos que assegurem a proeminncia deste poder, ainda que para isso seja preciso excluir e interditar. Saber e poder esto presentes e articulando-se continuamente como prtica discursiva sobre, por exemplo, a sexualidade. Na relao estabelecida entre confessor e penitente est formalizada uma relao de saber-poder, pois a carne, entendida como sexualidade, que o alvo, ela que deve ser controlada atravs do discurso veiculado pelo confessor. E como o discurso no esttico nem polarizado, o saber-poder lana mo de outros objetos/ referentes4 para alcanar sua finalidade, pois no basta dizer que no permitido, preciso justificar porque no permitido. O saber no um conjunto de conhecimentos, pois se fosse haveria a possibilidade de dizer se so verdadeiros ou falsos, coerentes ou no. O saber formado pelo conjunto de elementos objetos ou referentes (que so a mesma coisa que enunciado, para Foucault) , que pertencem a uma mesma positividade no espao da formao discursiva, ou seja, so enunciados que podem ser individualizados. Assim, o enunciado acerca da confisso ir compor um saber na medida em que pode ser localizado no perodo histrico de sua emergncia, atravs de suas transformaes e dos discursos com que trava contato e se vincula. preciso lembrar que a sociedade no composta apenas por um tipo nico de poder. Nela os poderes se sobrepem, so ligados por interesses e desejos que permeiam o corpo social e necessrio recordar, sobretudo, que os mecanismos culturais tambm so expostos s regras coercitivas do poder. (FOUCAULT, 1994, p.183-187) E este est presente em todos os lugares e isso no significa que ele consiga abarcar tudo, mas sim que advm de todos os lados e produzido a cada instante na relao que estabelece com outros poderes. Dirigindo o enfoque para a sexualidade, observa-se a construo da lei do corpo regrado, controlado por seus instintos 123

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sexuais, atravs do mito da Queda e do desejo como sendo sexual. Por circular entre as formas de saber, o poder mostra-se muitas vezes como regional, localizado, tendo uma funo que especfica do local no qual est atuando, produzindo. nesse espao que as tcnicas disciplinadoras so empreendidas, seja controlando sua conduta e comportamento, seja dizendo como se conduzir e comportar. Nessas tcnicas encontramos a confisso desde o momento em que instituda como parte da tecnologia eclesistica de formao e controle dos fiis. Seria uma tecnologia individualizante do poder que tem por objetivos vigiar, controlar os indivduos, seus corpos e sua sexualidade. Assim, o sexo torna-se instrumento de disciplinizao. Atravs do argumento de controlar os pecados que esto ligados ao sexo e o prprio sexo, controla-se o indivduo. No podemos esquecer que o fiel em questo aqui , sobretudo, a mulher, que considerada pelos medievais, notadamente os eclesisticos, como um ser fraco e dominado pela luxria. Por isso, controlar a mulher torna-se vital. Porm, a SME tambm busca controlar os homens, que eram vistos como os responsveis diretos pelas mulheres. No podemos esquecer que a questo do controle e dominao da mulher foi transposto para os textos sejam os cnones ou a SME - por algum. A forma como estes discursos sobre os sacramentos sobretudo a confisso - foram apresentados permitiu discusses nas quais tanto um juglar quanto um clrigo jovem foram apresentados como possveis autores. Para Michel Foucault, cada poca permite dizer tudo que possvel ser dito, assim como permite ver o que possvel ser visto, ou seja, cada poca tem sua prpria viso a respeito de um dado assunto ou age de acordo com seu instrumental. Em um dado perodo histrico as formaes lingsticas que compem um discurso permitem construes que atualmente muitos ainda querem analisar por baixo, ver o que est por trs da mensagem, seja ela qual for, que ele apresenta. (FOUCAULT, 2000, p.68-69) Era alcanar a mensagem implcita que o texto trazia, o que tinha sido dito sem s-lo. Entretanto, Foucault prope que se observe o texto como um conjunto de elementos, de formaes lingsticas palavras, construes de narrativa, prosa ou poesia, que muitas vezes aparecem como enunciados que no faziam parte do esquema pr-estabelecido pelo autor quando escreveu tal texto, mas que aparecem em funo do perodo histrico em que o discurso est localizado, em que emerge. O autor tambm escreve o que pode ser escrito, e aqui se insere a questo do annimo. O annimo entendido como ausncia de uma marca que identifica o texto, que seria o nome do autor. Entretanto, preciso lembrar que a importncia de um texto estar vinculado a um nome uma criao do campo literrio do sculo XIX. (RABINOW, 2002, p. 48-49) O nome passa a conferir legitimidade a um texto e a fama de seu autor garante sua aceitao. Mas na Idade Mdia no era assim. No havia necessidade e isso no quer dizer que no havia nomes assinando textos de um autor para legitimar. Como muitos textos recorriam a obras ou a outros textos antigos, o fato de sua fonte estar no passado j bastava para legitimar, pois fazia parte da tradio. E no perodo medieval esta tradio referia-se aos textos patrsticos e Bblia.
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A marca do autor esvaziada quando se entende que o que escrito est inserido no campo das possibilidades estratgicas, compondo uma formao discursiva. Assim, tanto o autor quanto o annimo no estariam produzindo nada que no fosse ou estivesse dentro de seu campo de emergncia, dentro de um conjunto de discursos. E isso no cai no determinismo na medida em que at mesmo as possveis tticas, subjetivaes ou dobras, esto ligadas ao perodo em que aparecem, pois cada uma corresponde a um tipo de tentativa de apropriao do poder e de entranhamento de saber. (DELEUZE, 2001, p. 25) Como vimos, uma das obrigaes metodolgicas fundamentais ao se trabalhar um discurso recoloc-lo em seu contexto, para que a anlise empreendida no seja realizada equivocadamente. Deve-se deixar claro a relao que o discurso estabelece com outros discursos e com a sua conjuntura de realizao. E mais: recolocando-o no seu espao fsico e intelectual originrio, poder-se-ia ver suas fontes e influncias, localizando a tradio da qual buscou seus modelos, tornando-se, ento, parte integrante desta mesma linha. Desta forma estaremos individualizando o discurso, posto que ele poder apresentar um sistema analgico prprio, independente. Entretanto, tal discurso no deve parecer isolado, pois sua construo no foi aleatria, mas sim metodicamente elaborada, e seu fim certamente no foi nico, mas mltiplo. Seguindo este ponto de vista, caberia ao historiador rastrear a coerncia contextual e analgica do dito discurso, em sua prpria ordem de existncia, o que oferece os caminhos para seus significados. Tal o caso da Vida de Santa Maria Egipcaca. Em um primeiro momento pode parecer que tal proposta de anlise seja maniquesta e esteja aceitando a influncia e o olhar panptico da Igreja. Mas no o caso. O que fizemos durante a pesquisa foi rastrear um momento, um perodo, no qual mais um discurso, expresso em um enunciado e veiculado pela enunciao da SME, procurara ganhar espao. Era mais uma tentativa entre tantas outras que estavam acontecendo no mesmo momento e que pelo que estamos apresentando, continuaram a ser reelaboradas pela instituio eclesistica nos sculos seguintes.
Bibliografia BRANDO, Helena H. N. Introduo Anlise do Discurso. So Paulo: Unicamp, 2000. DELEUZE, Gilles. A Dobra Leibniz e o Barroco. So Paulo: Papirus, 2001. ___. Conversaes. Rio de Janeiro: 34, 1992. FOUCAULT, Michel. Microfsica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993. ___. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997. ___. A ordem do discurso. So Paulo: Loyola, 2000. ___. Histria da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. ___. Les Mailles du Pouvoir. In: DEFERT, Daniel et EWALD, Franois. (Dir.). Dits et crits. Paris: Gallimard, 1994. T. IV, p. 183-187. ___. Quest-ce quun Auteur ? In: DEFERT, Daniel et EWALD, Franois. (Dir.). Dits et crits. Paris: Gallimard, 1994. T. I. p. 432-465. ___. Sur lArcheologie des Sciences. Rponse au Cercle dEpistmologie. In:

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS DEFERT, Daniel et EWALD, Franois. (Dir.). Dits et crits. Paris: Gallimard, 1994. T. I. p. 723+725. RABINOW, Paul. Sujeito e Governabilidade: Elementos do Trabalho de Michel Foucault. In: ___. Antropologia da Razo. Ensaios de Paul Rabinow. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2002. p. 322-353. Notas Optamos por denominar o movimento reformista empreendido por Gregrio VII de Reforma Gregoriana, conforme o faz Brenda Bolton. 2 A partir de agora sempre que nos referirmos a Vida de Santa Maria Egipcaca faremos uso da sigla SME. Este poema annimo e atualmente encontra-se guardado na Biblioteca do Mosteiro do Escorial, Espanha, sob o cdice k.III.4. 3 O curso de mestrado que fizemos foi realizado no Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da UFRJ. Defendemos a dissertao, fruto da pesquisa sobre a Vida de Santa Maria Egpciaca e do IV Conclio de Latro, em agosto de 2004. 4 O objeto/referente que estamos tratando aqui a confisso.
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O medievo embutido - breve olhar sobre o uso de alegorias cavaleirescas nas histrias em quadrinhos
Carlos Manoel de Hollanda Cavalcanti

Introduo e esmiuarmos algumas das mais conhecidas criaes das histrias em quadrinhos do sculo XX em busca de representaes alusivas Idade Mdia, no ser difcil encontrar entre elas o Prncipe Valente (Prince Valiant, de 1937), de Hal Foster. Este, um personagem situado pelo autor no sculo V, mas com trajes e cdigo cavaleiresco baseados na literatura corts e em contos arturianos dos sculos XII e XIII, talvez seja o mais bvio de todos os seus colegas de papel e tinta no uso de elementos medievais em seu contexto interno, mormente em se tratando da cavalaria. Apesar disso, nosso Prncipe no foi nem o nico heri das HQs a ser brindado pela herana cultural medieval do Ocidente. Em vrios outros personagens, sobretudo aqueles das HQs de aventura e, mais intensamente, os super-heris, expresses do imaginrio presente na literatura da Idade Mdia Central e da Baixa Idade Mdia sobre proezas cavaleirescas esto muito presentes, embora sutil e disfaradamente quase como (na ausncia de um termo mais apropriado) mensagens subliminares1. Desde o Batman, atualmente tambm conhecido como O Cavaleiro das Trevas, at o Fantasma (Phantom), de Lee Falk, passando pelo Homem de Ferro (Iron Man), de Stan Lee, pelo Capito Amrica (Captain America) e, igualmente, por detalhes do primeiro filme da nova srie do Homem-Aranha (Spider-Man), de Sam Raimi, podem ser detectadas vrias maneiras de aludir a certos traos tpicos tanto da literatura corts quanto do cdigo da cavalaria de Ramn Llull2. Igualmente, quando o roteiro dessas histrias no diretamente permeado por valores inspirados nos das ordens de cavalaria, as imagens remetem sutil ou diretamente ao esteretipo herico do cavaleiro, conforme ser demonstrado adiante. As bases tericas, nesta anlise, movem-se interdisciplinarmente. Parte dela remete contemporaneidade, haja vista o uso de fontes provenientes da Indstria Cultural, em Edgar Morin, com seu estudo sobre a Cultura de Massa e a insero de mitos, mitologias, topoi literrios calcados em expresses

Mestrando do Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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medievais, entre outras apropriaes levadas a cabo em cada produo visando o alcance mximo de pblico. Isso se daria mediante um processo de simplificao, modernizao, maniqueizao e atualizao (MORIN, 1981, p. 54), ao adaptar modelos originais, contemporneos ou antigos e medievais, aos gostos e costumes da maioria das pessoas nas sociedades industrializadas (o que j denuncia o quanto o imaginrio das sociedades ocidentais hodiernas recebe influncia do mundo antigo e do medievo). Uma outra parte concentrase em estudos de medievalistas, como Jacques Le Goff , no que tange ao imaginrio medieval, contando tambm com Georges Duby, e Alain Demurger, tendo estes ltimos papel preponderante no desenvolvimento de uma viso detalhada a respeito das ordens de cavalaria e, sobretudo, dos costumes e cdigos cavaleirescos. Leva-se ainda em conta, estudos semiticos como os de Umberto Eco, em que o autor trabalha a dimenso sociolgica dos quadrinhos, e os diretamente envolvidos com as HQs, em Antnio Luis Cagnin, Leo Bogart e Scott McCloud.3 Lembrando que as referncias iconogrficas aqui includas sero analisadas apenas enquanto elementos que denunciam a utilizao direta ou indireta de tipos que remetem Idade Mdia, vamos, pois, ao tema principal, que so as demonstraes. Cavaleiros das trevas, catedrais e castelos Entre as referidas maneiras indiretas de focalizar o tema cavaleiresco nos quadrinhos, est, como j mencionado anteriormente, o famoso, e ainda muito atual, Batman, criado em 1939. Ele que desde os anos 1980, vem sendo conhecido como O Cavaleiro das Trevas devido principalmente obra de Frank Miller de mesmo ttulo (DC Comics, 1986), vinha, desde sua origem, trazendo algumas aluses e formas subliminares de representaes medievais. O heri vive numa cidade chamada Gotham City, que sem muito esforo revela um parentesco entre o nome e o termo gtico. A cidade, algumas vezes, chega a ser representada, nos quadrinhos ou no cinema, com linhas longilneas e pontiagudas, lembrando torres de catedrais do sculo XIII vistas ao longe. No bastasse isso, a manso Wayne comumente desenhada ou filmada mostrando ser uma espcie de castelo (ver figura 1), com ameias em suas muradas, com sales guardados por armaduras e armas, bem como com passagens secretas. O cavaleiro das trevas tem um escudeiro, na figura de Robin, seu aprendiz e salvador nas horas mais crticas. um verdadeiro senhor de terras, j que a manso no fica no meio da cidade e sim numa propriedade afastada, com campos ao redor. Apesar de ser muito rico e de ser dono das Indstrias Wayne, no se definiu at o ltimo filme, Batman Begins4, qual era exatamente a atividade de suas empresas, fazendo com que sua providencial generosidade doando bens, auxiliando seus empregados ficasse ainda mais semelhante conduta do bom cavaleiro, segundo o cdigo e as virtudes desejveis a um, segundo a acepo luliana. Ricardo da Costa subdivide essas virtudes e suas caractersticas em duas tabelas, reproduzidas a seguir:

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O MEDIEVO EMBUTIDO BREVE OLHAR SOBRE O USO DE ALEGORIAS CAVALEIRESCAS...

As Virtudes Teologais e suas qualidades no Livro da Ordem de Cavalaria

(COSTA, http://www.ricardocosta.com/pub/cavaperf2.htm, p. 7 ltimo acesso em 29/09/2005)

As Virtudes Cardeais, suas qualidades e os Vcios (os Sete Pecados Capitais) no Livro da Ordem de Cavalaria

(COSTA, http://www.ricardocosta.com/pub/cavaperf2.htm, p. 8 ltimo acesso em 29/09/2005)

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Apesar de ser bastante claro o fato de a constituio do personagem no incluir uma filiao religiosa direta (exceto em se tratando daquelas em que o mesmo situado no que seus autores denominam realidade alternativa), igualmente visvel nas histrias em que Bruce Wayne, seu alter-ego, faz caridade, uma relao, ainda que indireta, com uma das virtudes do primeiro quadro. Isso sem contar as demais, mais facilmente detectveis nas tramas, como sua prudncia, seus ideais (contemporneos) de justia, seu combate (Fortaleza) s foras caticas do Asilo Arkham*, representando, entre outras coisas, os pecados capitais; foras estas que podem ser vistas em aes do protagonista ao longo de vrias de suas sries. Como foi dito antes, as obras destinadas Cultura de Massa empregam e integram traos de vrios campos literrios, histricos e culturais em seus constructos, mesmo no o fazendo de modo totalmente fiel aos originais nos quais se inspiram. No poderia ser diferente com o Morcego. No bastasse isso, o pior inimigo do Batman literalmente o bobo da corte, isto , o Coringa (sic) ou The Jocker, cujo carto de visitas a carta de baralho com seu respectivo nome. Por fim, o Batman tambm , como seus colegas de profisso, um instaurador da ordem sobre o caos, que em seu contexto a criminalidade em Gotham acima das foras policiais comuns.
FIGURA 1

Capas de publicaes originais com o ttulo Dark Knight. A primeira uma republicao, nos anos 90, da srie de 1986, de Frank Miller, pela DC Comics. A segunda aproveita o ttulo que remete cavalaria medieval e mostra uma histria em realidade alternativa, da srie Elseworlds, da mesma editora DC, na corte do Rei Artur (de Bob Layton e Dick Giordano - 1998).

Sanatrio-priso onde seus inimigos enlouquecidos ficam internados aps capturados. Contudo, eles sempre fogem e aterrorizam a cidade at que o heri os tranque novamente. 130

O MEDIEVO EMBUTIDO BREVE OLHAR SOBRE O USO DE ALEGORIAS CAVALEIRESCAS... No filme Batman, o primeiro da srie filmada por Tim Burton, lanado em 1989 pela Warner Bros, da esquerda para a direita: a Catedral de Gotham e a Manso Wayne, com suas ameias e jeito de castelo.

As figuras a seguir, bem como seus comentrios nas legendas, apontam algumas das maneiras dissimuladas ou associveis a formas tipicamente medievais de representao visual, arquitetnica, de vesturio etc.
FIGURA 2 Superman (de 1938) e sua Fortaleza da Solido alm do braso caracterstico em forma de S, da capa e do epteto de Homem de Ao (que no deixa de lembrar o fato de que um cavaleiro de armadura metaforicamente tambm o seria) este desenho da revista Superman, da DC Comics, de 1940 marcante pelas linhas arranjadas de modo que lembre simultaneamente formas aerodinmicas e um tmpano de uma catedral gtica. O Superman traz consigo uma srie de aluses a mitologias sobre deuses ou semideuses solares (ele recebe seus poderes do sol amarelo) ou sutis referncias a textos bblicos, ao apresentar-se como algum que literalmente teria vindo do cu, numa manjedoura hi-tech, que tanto pode sugerir o Cristo quanto Moiss em sua adoo na cestinha que boiava no Nilo (afinal seus criadores eram Jerry Siegel e Joe Shuster, ambos judeus porm, muito provavelmente cientes do potencial de assimilao do personagem por um pblico influenciado pela tradio judaico-crist), enfim, um salvador que veio do cu.

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FIGURA 3

Fantasma (Phantom - 1936) aqui em publicao do King Features Syndicate, em duas histrias diferentes publicadas em 1985. No contexto geral do personagem constam a idia de linhagem e dinastia, os anis de poder (como o de Lancelote, que o permitia, em O cavaleiro da carreta de Chretin de Troyes, perceber o que era ou no magia, oi, ainda, os anis histricos, como dos reis de Inglaterra e Frana, onde as crenas populares diziam ter o poder de curar escrfulas, segundo Marc Bloch). O Fantasma usa uma roupa especial que cobre at a cabea e cujo formato lembra uma cota de malha junto com a coifa. Sendo tambm senhor de terras, tem seus sditos e protegidos entre os pigmeus Bandar e instaura a lei entre as tribos vizinhas. Na imagem da esquerda, o primeiro Fantasma, vestindo uma armadura e sendo sagrado cavaleiro tendo ao fundo a cruz da Ordem dos Cavaleiros Teutnicos.

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O MEDIEVO EMBUTIDO BREVE OLHAR SOBRE O USO DE ALEGORIAS CAVALEIRESCAS... FIGURA 4 Capito Amrica (Captain America - 1941) seu escudo original, na capa da primeira edio (no comic book Captain America # 1, maro de 1941) tinha forma similar de diversas ordens de cavalaria. S posteriormente passou a ser circular como o atual. Seu braso a bandeira dos EUA estampada no prprio uniforme. Este ltimo, no original, feito de cota de malha, embora atualmente o personagem seja desenhado usando uma armadura de escamas. O escudeiro Bucky Barnes, que assume, no exrcito, uma funo prxima de Robin, para o Batman.

FIGURAS 5 As figuras 5 e 6 provm de, HomemAranha (Spider-man), no primeiro filme** da srie dirigida por Sam Raimi (Columbia Pictures, 2002), salvando a donzela Mary Jane, que havia sido ameaada por um drago (o Duende Verde Green Goblin , caracterizado com uma armadura que lembra o corpo de um rptil, sobrevoando Nova Iorque em asas de formato tpico e disparando projteis explosivos o drago que cospe fogo). No cenrio da figura 5, a catedral de Saint Patrick, construda em estilo gtico, por onde balana o heri com sua acompanhante na teia. Na parte inferior da figura 6, a cobertura de Norman Osborn, alterego do Duende Verde, cujos muros so ameias de castelo e cujo interior (no segundo filme isso fica claro) contm passagens secretas (quando ** A composiodo filme um tanto diferente Harry Osborn, seu filho, descobre da dos quadrinhos, onde os elementos que por trs do espelho do salo passveis de comparao com o medievo no principal h um corredor que leva ao so to evidentes. esconderijo do Duende.

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FIGURAS 6

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Consideraes finais O que foi demonstrado aqui a ponta de um iceberg que oferece muitas possibilidades analticas e requer espaos bem maiores para um bom detalhamento das mesmas. Uma das vrias razes de estabelecer esse vnculo entre a literatura corts e lendas ou mitos antigos com os quadrinhos o fato de que tais narrativas no apenas permeiam nosso imaginrio, como tambm tm, entre si, caractersticas em comum, sobretudo se estivermos pensando em recursos literrios usados na promoo/estmulo de comportamentos condizentes com os interesses de seus produtores ou dos que sobre eles exercem influncia (financeira, social, religiosa etc.). Mas talvez o mais importante seja a manuteno ou reinsero de representaes medievais, ainda que de forma sutil ou embutida em obras contemporneas. A alta receptividade do pblico a esses elementos um indcio de que apesar dos avanos tecnolgicos e das revolues polticas e ideolgicas, ainda temos muito de medieval em nosso imaginrio e em nossa concepo de figuras hericas.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS de Azambuja. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994. Referncias na internet Site do prof. Dr. Ricardo da Costa, sobre histria medieval, contendo tradues, artigos, links e pesquisas: http://www.ricardocosta.com/ Notas 1 Embora estejamos usando o termo, aqui no adotamos o conceito de mensagem subliminar. Em nosso trabalho vm sendo realizadas anlises sobre a questo da presena sutil de alegorias medievais a partir das apropriaes e adaptaes, de diversos tipos de literatura que bebem de fontes como, por exemplo, a literatura corts, e a literatura oral, nos termos de Jess Martin-Barbero. Da mesma forma, tem sido dada maior ateno ao conceito de schemata, de Ernst Hans Gombrich, no que tange ao processo que leva autores, seja visualmente, seja textualmente, a representar personagens, entre situaes e outras expresses, segundo um padro que com o tempo vai sendo modificado, embora mantenha traos de representaes anteriores, coisa que os dota de potencial para serem reconhecidos como tais (exemplo: vikings, com as schemata inspiradas nas representaes do sculo XIX, com elmos ornados com chifres, asas etc. aps a fixao desse esteretipo, tornou-se lugar-comum entender como viking, por exemplo, um homem desenhado dessa forma e no de qualquer outra -, mediante a estereotipagem com a qual habitualmente so representados. 2 O texto completo e traduzido encontra-se na Internet, no site do prof. Dr. Ricardo da Costa, sobre histria medieval, contendo tradues, artigos, links e pesquisas: http://www.ricardocosta.com/ 3 Esses autores e suas vises esto includos noutro estudo maior que envolve tericos de igual importncia, mas cujos aportes remetem a um conjunto de temas que fogem ligeiramente aos objetivos do presente trabalho. Entre esses autores, encontram-se Pierre Bourdieu, em seus estudos sobre a Dominao masculina, Peter Burke, oferecendo uma metodologia e um corpo terico para a anlise de imagens, Raphael Patai e Junito de Souza Brando, no estudo sobre mitologia greco-romana e suas implicaes no mundo cont emporneo, bem como Richard Slotkin, quanto ao mito do heri desbravador da fronteira nos EUA, to presente na formulao dos heris das HQs. Sob a perspectiva civilizacional que o carter dos heris assume nas estruturas narrativas (categorias isotpicas) dos quadrinhos super-herosticos, a referncia ao Processo civilizador de Norbert Elias fundamental, sobretudo quando disserta sobre A transformao de guerreiros em cortesos (ELIAS, 1993, p. 215). H muito do mito do heri solar que instaura ordem onde havia caos na perspectiva literria dos romances corteses e a figura ideal do cavaleiro, como ex-brbaro e guerreiro moldado segundo valores sociopolticos e culturais especficos, funciona como um dos principais cones ocidentais desse processo civilizador. Todos os nomes citados encontram-se indicados nas referncias bibliogrficas devido a constiturem uma contribuio basilar para o tipo de estudo do qual este artigo faz parte. 4 Do diretor Christopher Nolan, em 2005, pela Warner Bros.

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Consideraes acerca da ao do episcopado peninsular no processo de consolidao da identidade godo-crist no sculo VII
Rita de Cssia Damil Diniz

as pginas seguintes buscaremos ressaltar trs dos aspectos fundamentais do processo de formulao de um projeto poltico-ideolgico para o reino visigodo no perodo posterior a converso ortodoxia, projeto este que teve como principal idealizador o alto clero peninsular. Sendo assim, abordaremos a consolidao de um habitus eclesistico, a construo da idia de nao e de realeza visigodas como questes essenciais estruturao de uma nova rede de relaes sociais que se cristaliza na sociedade visigoda a partir do sculo VII. Desde o sculo VI, podemos verificar, por parte do episcopado ortodoxo peninsular1, uma relativa independncia em relao sede romana e uma tnue aproximao com a monarquia visigoda. Influenciada por este panorama, teramos no perodo ps-converso a configurao de uma vigorosa estrutura eclesistica, marcada por uma ntima relao com a monarquia e estabelecida sobre um esforo de uniformizao litrgica e de disciplinamento de seu clero, assim como do resto da sociedade. Ainda que professando a ortodoxia marca essencial da insero na Igreja Universal o episcopado peninsular consciente de suas especificidades conjunturais. Esta condio gera, entre outros aspectos, uma acentuada preocupao com o fortalecimento institucional dentro do consolidado espao poltico-geogrfico visigodo e junto ao governo e uma relativa independncia religiosa em relao a Roma, traos caractersticos de um fenmeno que parte da historiografia espanhola convencionou denominar como o surgimento de uma Igreja Nacional (GARCIA MORENO, 1989). Considerando como caractersticas cruciais deste fenmeno o crescente fortalecimento poltico do episcopado e a ampliao do evento conciliar2 como espao de produo e circulao de um discurso polticoideolgico que se prope hegemnico, faremos uma breve reflexo acerca da atuao episcopal ps-conclio de Toledo III3 e sua influncia nos esquemas de organizao e classificao da sociedade visigoda. Realizada com o objetivo de discutir questes pertinentes f ou de interesse comum, a atividade conciliar acabou apresentando-se como o espao

Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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de produo ideolgica decorrente da interao entre interesses monrquicos e eclesisticos.4 Ocorrendo em duas instncias, os eventos conciliares ratificaram a ao eclesistica tanto na cpula de poder como em seus prolongamentos administrativos. Assim, temos a atuao episcopal em discusses referentes a assuntos religiosos e na definio dos parmetros de conduo do reino nas ditas assemblias conciliares gerais ou nacionais, e sua participao em assuntos administrativos como a fixao da carga tributria e a funo de fiscalizao dos demais agentes administrativos e religiosos, de carter local, nas assemblias conciliares provinciais. Embutidas no discurso conciliar, aes de carter poltico-ideolgico evidenciam, como essencial objetivo, a consolidao de uma estrutura de organizao social, ou melhor, uma representao/ideologia, que deveria, por meio da atuao de um slido aparelho executivo, ser inculcado como parmetro bsico construo de uma auto-imagem social. Isso, em outras palavras, corresponderia garantia sobre o monoplio das formas de pensar e agir naquela sociedade por parte do episcopado. Este esforo de enquadramento instituiu-se em duas instncias, uma interna, referente prpria organizao institucional, e outra externa, que corresponde a imposio aos demais agentes da viso de mundo idealizada por esta instituio. Neste contexto, insere-se a discusso acerca da uniformizao litrgica que aborda, paralelamente, aspectos como a padronizao do aparato ritualstico ortodoxo, ao que visa desqualificar possveis permanncias dos ritos arianos, e a valorizao de uma identidade institucional prpria, por intermdio das especificidades da apreenso peninsular deste tipo de manifestao religiosa. Temos ainda, em uma lgica de exteriorizao ou cooptao, o disciplinamento do clero apresentando-se como uma condio fundamental circulao do discurso da ortodoxia. Um clero coeso e qualificado pea chave para o sucesso no processo de inculcao, visto que tal situao depende diretamente da naturalizao e do reconhecimento prtico da autoridade destes agentes. De uma forma ou de outra, fica evidente o esforo de manuteno da hegemonia do discurso da ortodoxia no campo religioso por meio, sobretudo, da consolidao de um habitus 5eclesistico, ou seja, dos parmetros bsicos de estruturao da relao da Igreja com o resto da sociedade. Alicerado em valores morais cristos, o episcopado peninsular passa a definir, paulatinamente, diferentes papis e atribuies para os variados agentes/ grupos daquela sociedade. Este novo panorama beneficia, de forma evidente, ao alto clero e aos agentes mais diretamente a ele ligados, visto que garante uma posio de tutela sobre toda a gens gothorum. Conseqentemente, temos a alta hierarquia eclesistica tomando para si a funo de nico e grande interlocutor entre os diferentes agentes sociais. Diluda neste contexto de construo de identidade/alteridade, a produo conciliar apresenta-se como um indcio significativo de processos como o de fortalecimento da identificao gentlica, e o de idealizao de uma teoria poltica visigoda ou seja, a constituio de um habitus poltico, uma construo ideolgica, a partir da qual so definidas algumas regras da dinmica scio138

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poltica que buscaria, como fim ltimo, a estabilidade do reino. A configurao de uma idia de nao comea a emergir, sobretudo, atravs do trabalho historiogrfico do bispo Isidoro de Sevilha6 que busca legitimidade genealgica e cronolgica ao Reino Visigodo, colocando-o acima dos demais germanos, numa posio equivalente a dos romanos (GARCIA MORENO, 1989, p. 317). Neste sentido, tambm devemos considerar a forte relao entre a forja da idia de soberania visigoda e a preocupao com a legitimidade do reino frente presena, logo ameaa, bizantina e franca na pennsula (THOMPSON, 1971, p. 188-192). Corroborando esta idia temos, por ocasio da realizao do conclio de Toledo IV (633), a instituio definitiva, da soberania visigoda sobre laos de fidelidade expressos por meio do compromisso de todos os sditos em favor do povo, da ptria e do rei dos godos.7 De forma concomitante, as menes conciliares a respeito de povo e ptria dos godos sinalizam uma profunda correspondncia do reino com o espao peninsular, idia que complementada pelo reconhecimento da ptria Hispana como patrimnio e territrio prprio do rei e da nao dos godos.8 Todavia, a consolidao de uma identidade goda no estaria completa sem a definio do perfil monrquico, ncleo de poder poltico daquela sociedade. Assim, o novo ideal de realeza,9 que antes de tudo apreendido como ddiva divina, emerge como o resultado da insero de um componente de sacralidade herdado da tradio romano-crist no modelo germnico de monarquia de base essencialmente blica. Personificando as virtudes divinas, o monarca visigodo tem como funo principal a promoo do bem comum, ou seja, da sade de seus sditos com base em duas prerrogativas: a justia e a misericrdia. Utilizando-se da tpica analogia entre a sociedade e o corpo, o episcopado peninsular ressalta as funes sociais da Igreja e da monarquia que, neste esquema, ocupariam posies de comando correspondentes a da cabea e da alma dimenses responsveis pelo gerenciamento de todo o corpo.10 Servindo ao interesse de toda a coletividade, o monarca um administrador com respaldo divino, a cabea de um corpo pblico cuja inteligncia provem da alma. Como tal, o soberano tem por obrigao no s defender o reino, como tambm a ortodoxia, tornando-se, desta forma, um defensores fidei. Essa nova concepo de monarquia ratifica uma aliana entre o poder secular e o espiritual. Intervenes reais no campo religioso e eclesisticas em assuntos civis devem ser tomadas como uma expresso da colaborao na execuo dos interesses de ambos os atores. No obstante, no podemos desconsiderar que a simbitica relao entre episcopado e Monarquia no embute uma certa discordncia do alto clero no que tange as aes reais. Esta simbiose, de forma mais ampla, abre espao a uma normatizao que visa compatibilizar os interesses estritamente polticos aos ideais cristos, ampliando o raio de ao dos agentes eclesisticos no campo poltico. Sendo assim, interessante destacarmos que a mesma gratia Dei 139

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que legitima o poder monrquico tambm possibilita mecanismos alternativos de sucesso poltica, sem, todavia, colocar em risco a confortvel situao do episcopado neste campo. Se Deus cuida do destino do monarca, o fracasso deste deve ser apreendido como um sinal da desaprovao divina, ou um castigo para a sua m conduta. Em outros termos, uma rebelio bem sucedida deve contar com o aval divino e com a legitimao da Igreja, visto que expressa a providncia divina (ANDRADE FILHO, 1997). Esta dinmica no campo poltico indica, entre outros aspectos, a plasticidade da posio episcopal nesta sociedade. De maneira contraditria, o episcopado peninsular institui o carter eletivo e estatal da dignidade rgia, promovendo uma separao entre os bens pblicos e privados do monarca, ao passo que no descarta o papel de eventual porta voz da aristocracia. Por meio, sobretudo, do discurso eclesistico, a simbitica aliana entre episcopado e monarquia, buscou a promoo de instrumentos que dessem conta do crescente quadro de instabilidade scio-poltica em um contexto marcado pelo acirramento das relaes de dependncia decorrente do crescente empobrecimento das camadas mdia e baixa da populao pelo fortalecimento da aristocracia latifundiria, pelo aumento do poder poltico do episcopado e pelo esforo centralizador da monarquia. Investindo, cada vez mais, na concentrao das funes de maior relevncia na dinmica social, o episcopado segue redefinindo os demais agentes e papis, ou seja, quem deve fazer o que e para quem. Desta forma, ele garantiu uma posio estratgica de interlocuo entre os variados grupos sociais atravs da construo de uma complexa rede de dependncia que camuflava relaes de poder e explorao sob um discurso de solidariedade pautado na afetividade, no compromisso e no carisma. Ao definir os papis direitos e obrigaes dos diferentes agentes sociais, o episcopado peninsular ratifica as bases de organizao das relaes de poder verticais entre agentes diferenciados e horizontais entre agentes similares em supostos laos de solidariedade que visam, em ltima instncia a estabilidade poltica. Percebemos, assim, que a insero do Reino Visigodo em uma societas fidelium Chisti11 implica na constituio de normas de conduta para toda a sociedade, ou seja, vislumbramos os contornos de uma intrincada rede de relaes que, perpassando os mais variados campos, ou reas de interesse, da sociedade visigoda, contribui, de forma fundamental, construo de sua auto-imagem, em especial no que se refere aos seus esquemas internos de classificao.
Bibliografia CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS. Jos Vives (Org.). Barcelona-Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Cientficas/Instituto Enrique Flrez, 1963. ANDRADE FILHO, R. O. Imagem e reflexo. Religiosidade e monarquia no reino visigodo de Toledo (sculos VI e VII). So Paulo, 1997. Tese de Doutorado em Histria. Universidade de So Paulo. 140

SANTA EUGNIA E IRMO EUGNIO: IDENTIDADES DE GNERO NA LEGENDA UREA BASTOS, Mrio Jorge da Motta. Igreja, religio e sociedade senhorial na pennsula Ibrica (sculos IV/VIII). In: SILVA, Andria C. L. & SILVA, Leila R. (Org.) Semana de Estudos Medievais, 4, maio de 2003. Atas.... Rio de Janeiro: PEM/UFRJ, p.122127, 2004. BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Rio de Janeiro: Bertrand, 2001. ____. Razes prticas: sobre a teoria da ao. Campinas: Papirus, 1996. DINIZ, Rita de Cssia D. A problemtica da Assistncia na sociedade visigoda nos sculos VI e VII: um estudo comparativo dos modelos assistenciais masoniano e isidoriano. Rio de Janeiro. Dissertao de Mestrado em Histria. Universidade federal do Rio de Janeiro. GARCIA MORENO, L. Historia de Espaa Visigoda. Madrid: Ctedra, 1989. KING, P. D. Derecho y sociedad en el reino visigodo. Madrid: Alianza, 1981. ORLANDIS, J. La Iglesia en la Espaa visigtica y medieval. Pamplona: Instituto de Historias Simancas, 1992. SILVA, Leila R. Algumas consideraes acerca do poder episcopal nos centros urbanos hispnicos sc. V ao VIII. Histria: questes e debates. Instituies e poder no medievo. Curitiba: PPGH/ed. UFPR, n. 37, p. 67-84, jul-dez. 2002. THOMPSON, E. A. Los godos en Espaa. Madrid: Alianza, 1971. Notas 1 No adotaremos o termo Igreja Nacional, amplamente utilizado pela historiografia espanhola, por considerarmos que seu componente ufanista d margem anacronismos. Optamos, desta forma, pela utilizao do termo episcopado peninsular que, em nossa opinio, representa de maneira mais acertada as condies de estruturao e configurao da ortodoxia no espao peninsular. 2 Assemblias conciliares so reunies de prelados em que so discutidos assuntos relativos a f, doutrina e disciplina. 3 O conclio de Toledo III, realizado em 589, tem como objetivo principal a ratificao da converso do monarca Recaredo ortodoxia (e, supostamente, de todo o reino visigodo) e sua legitimao no trono. A partir de ento, a participao monrquica torna-se efetiva nestes eventos, cabendo ao prprio soberano a convocao dos conclios gerais. 4 Esta situao manifestada, de forma explcita, no cnone II do conclio de Toledo IV pela idia de uma F, uma Igreja, um Reino. Cf.: Conclios visigticos e hispanoromanos. Jos Vives. Barcelona-Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Cientficas/Instituto Enrique Flrez, 1963. p. 188. 5 Este conceito corresponde as possibilidades de apreenso da realidade e ao prtica especficas de determinado grupo social. Foi desenvolvida pelo socilogo francs Pierre Bourdieu em sua Teoria da Ao Prtica, alicerce terico de nossa pesquisa. Cf: BOURDIEU, P. O poder simblico. Rio de Janeiro: Bertrand, 2001; ___. Razes prticas: sobre a teoria da ao. Campinas: Papirus, 1996. 6 Isidoro de Sevilha (?- 633) foi o maior pensador eclesistico de seu tempo. Tambm foi o principal articulador da relao de simbiose entre a monarquia visigoda e o episcopado peninsular aps a converso. 7 Conclio de Toledo IV, cnone LXXV: De commoitione plebis ne in prncipes delinquatur. (...) Sacrilegium quippe esse, si violetur a gentibus regum suorum promissa fides, quia non solum in eis fit pacti transgressio, sed et in deum. (...) Quiquumque igitur a nobis vel totius Spaniae populis qualibet coniuratione vel studio sacramentum fidei suae, quod patriae gentisque Gothorum statu vel observatione regiae salutis pollicitus est, temtaverit aut regem nece adtrectaverit aut potestatem regni (...) anathema sit in conspectu Dei Patris et angelo rum, atque ab ecclesia catholica quam periurio profanaverit.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Estes aspectos so indicados por Garcia Moreno, como indcios de um protonacionalismo. GARCIA MORENO, L. A. op. cit, p 319-320. 9 Este modelo de realeza - verificado por autores como GARCIA MORENO, op. cit; ORLANDIS, J. La iglesiaen la Espaa visigtica y medieval Pamplona:Instituto de Historias Simancas, 1992; KING. P. D. Derecho y sociedad em el reino visigodo. Madrid: Alianza, 1981, tem como base o supracitado cnone LXXV do conclio de Toledo IV que, sobre este aspecto, prescreve: (...) te quoque praesentem regem futurosque aetatum sequentium prncipes humilitate qua debemus deposcimus, ut moderati et mites erga subiectus existentes cum iustitia et pietate populos a Deo vobis creditos regatis, bonamque vicissitudinem, qui vos constituit largiotori Christo respondeatis, regnantes in humilitate cordis cum studio bonae actionis. 10 Como nos ressalta ANDRADE FILHO, em sua tese de doutoramento, o bispo Isidoro de Sevilha constri uma cosmologia em que o mundo seria, para a sociedade crist, uma constante revelao. Pautado nos evangelistas Paulo e, sobretudo, Joo, o bispo sevilhano desenvolve uma viso holstica do homem, na qual corpo e alma se completam; sendo o corpo responsvel pelas aes, e a alma pela inteligncia que provem de Deus. Fazendo uma analogia, a sociedade crist , para aquele autor, o reflexo da unio entre um corpo o reino e uma alma a Igreja porm, at mesmo este corpo possui partes mais adequadas as funes relativas a materializao ou expresso desta inteligncia, ou seja, a especificidade da cabea o monarca. Da a responsabilidade da cabea/alma na tarefa de apreenso da revelao (mundo) para todo o corpo. Para maiores esclarecimentos sobre tal aspecto consulte, como j indicado, ANDRADE FILHO, Ruy de O. Imagem e reflexo. Religiosidade e monarquia no reino Visigodo de Toledo (sculos VI e VII). So Paulo, 1997. Tese (Doutorado em Histria) Universidade de So Paulo. Captulo IV. 11 Atravs da apropriao da cultura pag, o cristianismo consolida-se na pennsula evitando prejuzos doutrinais e confrontos diretos. Pautado na idia de prodgio pago, o cristianismo molda sua relao de tutela entre os homens e a divindade.
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Mercadores-banqueiros e cambistas no Portugal dos sculos XIV e XV: reflexes e consideraes acerca de uma proposta de trabalho
Rodrigo da Costa Dominguez* Esse trabalho resultado de um desejo de investigao acerca do cmbio, da atividade cambista, dos negcios relacionados ao comrcio e das finanas em Portugal nos sculos XIV e XV. Desejo esse despertado pela realizao de um resumo acerca de um artigo que tratava do assunto, mas relacionado atividade cambista na Valncia medieval (IGUAL LUIS, 2000, p. 105-138), trabalho esse desenvolvido para a disciplina Sociedades Urbanas, no mbito do Curso Integrado de Estudos Ps-Graduados em Histria Medieval e do Renascimento. A idia deste ensaio analisar brevemente alguma bibliografia e documentao existente sobre esse tema, em funo da grande dificuldade da busca por fontes, e levantar questionamentos com base nessa mesma documentao, percebendo os pormenores da dificuldade de se trabalhar com as mesmas e, numa perspectiva mais modesta, tentar facilitar ou contribuir para os estudos que se seguiro nessa mesma rea afim. A proposta de trabalho para uma possvel tese , nas palavras do medievalista belga Henri Pirenne, uma pequena tentativa na rea da Histria social do capitalismo; propor uma ilustrao do homem de negcios em Portugal, em especial no Porto e em Lisboa, e tirar concluses acerca do seu modus vivendi e das consequncias e relaes de suas atividades para com a economia portuguesa, assim como lanar questionamentos futuros acerca do tema e das eventuais relaes causa-efeito nos grandes descobrimentos e demais fatos polticos portugueses no transcorrer do perodo. Em termos de metodologia e definies para a organizao do estudo, optou-se por definir Lisboa e o Porto como base para a investigao, uma vez que so centros urbanos de grande destaque em Portugal poca tratada (MARQUES, 1987, p. 150; MARQUES, 1959, p. 100), assim como centros comerciais de grande relevncia, onde a circulao monetria seria muito provavelmente maior, em funo de serem os dois grandes portos internacionais de Portugal, sem deixar de considerar o fato de os dois stios em questo possurem, em funcionamento, durante muito tempo, casas para a confeco dos numerrios lusos a Casa da Moeda , assim como no
*Graduado em Histria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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domnio portugus em Ceuta, em territrio magrebino. A periodizao escolhida para se fazer este estudo, em princpio, seriam os sculos XIII, XIV e XV, de acordo com a proposta original. Mas, analisando a situao e as fontes que se apresentam, decidiu-se por fazer um recorte um pouco menor, tratando somente dos perodos trecentista (fins do sculo, aps a ascenso de D.Joo I ao trono portugus) e quatrocentista, at o fim do reinado de D. Duarte, em 1438. Por volta de 1385, j sob os auspcios da Dinastia de Avis, enfrentavase um perodo de sria crise monetria em Portugal, em funo da grave desvalorizao do numerrio luso. Vrias moedas foram criadas para, primeiramente, fazer os pagamentos aos funcionrios reais e de demais despesas do reino e, tambm, num segundo momento, para financiar as expedies martimas, em particular a conquista de Ceuta, em 1415. Sabe-se que, neste momento, a quebra da moeda foi efetuada vrias vezes, no intuito de produzir riqueza, ainda que de maneira artificial, para tentar solucionar o problema da captao de recursos para tal finalidade e para financiar as guerras com Castela. Neste sentido no se torna nenhum absurdo afirmar que h relao entre as quebras de moeda e as finanas pblicas (GODINHO, 1963, p. 121-122). Em contrapartida, o mesmo perodo tambm visto como uma poca de recuperao econmica de Portugal, solidificando as bases do perodo expansionista luso, com o incremento do comrio portugus. Citando uma das estudiosas do tema, todos ns sabemos e a documentao o comprova, que D. Joo I incrementou no s o comrcio interno mas tambm o externo. (TAVARES, 1974, p. 32). As relaes comerciais eram das mais variadas e com parceiros muitos, desde a compra de produtos com a regio de Flandres, Inglaterra, Frana, Castela e outros (MARQUES, 1987, p.152-153) at as negociaes com a regio hansetica (MARQUES, 1959, p.103-104). Visto isso, percebe-se forte movimentao financeira no Portugal do 1300 e do 1400, s vsperas do processo de expanso ultramarina. Com essa considervel circulao de riqueza e, consequentemente, de vrios tipos de numerrios, assim como uma boa movimentao de mercadorias, com grandes fluxos de comrcio, polarizados substancialmente em Lisboa e no Porto, cria-se o cenrio ideal para a atividade cambista em territrio luso, alm de condies altamente favorveis para o incio do processo das grandes descobertas. A grande questo a ser levantada e tese a ser defendida, diante deste ponto de visa, de estabelecer uma conexo: estaria a atividade cambista e de usureiro ligada atividade mercantil? Seria possvel a existncia do mercador-banqueiro? H autores que j utilizam este mesmo termo, como o Professor John Day. No entanto, neste sentido, existem vrias questes por analisar. Verifica-se, mediante algumas pesquisas feitas e algumas leituras desenvolvidas, que realmente pode haver esta conexo, esta comunho de interesses entre as atividades (FOURQUIN, 1997, p. 276; GUREVIC, 1989, p. 168), o que abre algumas perspectivas para que o mesmo possa ter acontecido em Portugal. Pelo menos, no que diz respeito atividade de
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prestamista, sabe-se da existncia de italianos em Lisboa, no sculo XIV, exercendo o ofcio (MARQUES, 1959, p. 206). Neste momento de crise, no transcorrer dos sculos XIV e XV, a situao financeira, grosso modo, catica no somente em territrio portugus como em toda a Europa Ocidental. Diante deste ponto de vista, para o senhorio, em funo de uma completa falta de liquidez de seus rendimentos, o destino havia lhes pregado uma pea. A peste negra atacava sem piedade os campos e ncleos urbanos e ceifava grande parte das vidas dos trabalhadores, fazendo com que o preo da mo-de-obra ficasse mais caro. Sua situao era crtica, sem lhes permitir qualquer tipo de socorro entre os pares, com o declnio das respectivas rendas (FOURQUIN, 1997, p. 348). A falta de metais preciosos, assim como as constantes quebras de moeda e o processo de entesouramento do pouco de moeda circulante, a qual nestas alturas , em boa parte, vinda de fora, formam um cenrio completamente negro no que diz respeito questo do crdito. Partindo destes pressupostos, a figura do mercador seria, talvez, a nica que disporia de uma situao favorvel de fcil liquidez para gerar recursos, os quais poderiam ser aproveitados em atividades financeiras de emprstimos, trocas de moedas e demais atividades afins diretamente relacionadas. Poderia tal atividade ser desenvolvida por artesos? Talvez, dependendo do tipo de ofcio desempenhado e da relao custo-benefcio envolvida em sua ocupao (MARQUES, 1987, p. 118-119). De acordo com o argumento citado acima, os mercadores tambm no teriam tal possibilidade, pois tambm teriam despesas a que fazer frente. Entretando, no caso dos mesteirais, estamos tratando ainda de uma produo artesanal, que em alguns casos apenas rendia o suficiente para a subsistncia. No caso dos mercadores, a quantidade, a organizao e a complexidade da rede que interliga estes, somada ao fato de que em muitos casos trata-se de quantidades favorveis, ou seja, o transporte de grandes quantidades minimiza os custos, isto poderia proporcionar um cenrio favorvel acumulao de capital para os mercadores, de modo que estes poderiam, em algum momento, ter a oportunidade de acumular capitais e, porventura, vir a conceder emprstimo ou qualquer outra forma de crdito, quando e como achassem por bem o fazer. Entretanto, faz-se necessrio algumas consideraes: sob este ponto de vista, h que se fazer a distino entre o pequeno e o grande (IGUAL LUIS, 2000, p. 105-106), ou seja: o mesmo que efetua emprstimos para as pessoas sob circunstncias que poderamos considerar como de dia-adia comida, vesturio, necessidades bsicas , certamente no deve ser o mesmo que emprestava grandes somas aos monarcas (GARCA MARSILLA, 2002, p. 47-48), concedendo altas somas para dotes de casamentos, constituio de exrcitos, efetuao de negcios entre reinos, dentre outras atividades. Por mais elementar que possa parecer, h vrios aspectos a se considerar quando tratamos desta questo da atividade creditcia. Outro tem ainda por se considerar o emprstimo rural, concedido ao campons, e 145

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todas as suas nuances a negociao antecipada de colheitas, quitaes de dvidas e o urbano, o qual abrangeria as atividades mercantis, artesanais e demais situaes de pequeno porte, fossem elas pessoais ou no. No que diz respeito aos cambistas propriamente ditos, em boa parte seriam eles, na prtica, pessoas vindas de famlias de mercadores que obtiveram xito na funo (cf. RAU, 1956) e que agora deixam de lado a sua ocupao inicial (o comrcio) e passam a se ocupar de tarefas bancrias, que pela sua prpria natureza outorgavam-lhes uma certa capacidade de controle sobre o mundo urbano. Existiam uma srie de procedimentos acerca da profisso de cambista. Sabia-se, por exemplo que, com relao aos metais, existiam limitaes sobre a forma de sua circulao. Havia, tambm, dificuldades em possuir e negociar com todas as espcies de moedas e metais, pela quantidade de numerrio em circulao (MARQUES, 1980, p. 215-216); outro aspecto de suma importncia o processo de formao do mercador-banqueiro. Tem-se notcia de vrios manuais de conduta para melhor formar aquele que desejava seguir caminho na profisso. H registros de alguns autores acerca destes procedimentos de formao (DAY, 1994, p. 194-195; CASADO ALONSO, 2003, p. 75; GUREVIC, 1989, p. 166-167). H alguns bons indcios de que a atividade existiu em territrio portugus, assim como de que eram pessoas distintas, no s no aspecto financeiro, mas tambm em termos de diferenciao no meio social medieval. O simples manuseio e o dia-a-dia com metais e moedas certamente faziam da figura do cambista uma figura importante, de destaque ou, ao menos, no igual aos demais. No tocante ao regimento da funo, conseguimos alguns indcios mediante a procura no Livro das Posturas Antigas de Lisboa, editado pela Cmara Municipal de Lisboa no ano de 1974, com coletneas de legislaes antigas referentes a vrios tens, dentre eles, o de caynbador, registrado pelas Pusturas das fianas, de 6 de maio de 1340 (C.M.L, 1974, p. 138139). Este pequeno indcio trata das taxas pagas para o estabelecimento do negcio na cidade, ou seja, na prtica, era uma taxa de matrcula, uma cauo. Alm desta fonte, a ser trabalhados ainda existem as atas de vereao as chamadas vereaes da Cmara Municipal do Porto, os documentos do Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Lisboa, assim como as chancelarias rgias e as crnicas dos reinados, elaboradas por Ferno Lopes e Rui de Pina, cronistas-rgios nos reinados de D. Pedro I, D. Fernando, D. Joo I e D. Duarte, respectivamente, alm de coletneas de documentos nas obras Descobrimentos Portugueses e Monumenta Henricina. O cotidiano dos mercadores-banqueiros e dos cambistas algo mais complexo. Onde haveriam de se estabelecer? Ao que tudo indica, h fortes possibilidades de a Rua Nova dos Mercadores ter exercido este papel acolhedor, rua essa destruda pelo Grande Terremoto de 1755, no caso especfico de Lisboa (CASADO ALONSO, 2003, p. 124). At agora, no h como se pronunciar acerca da existncia dos taulas de canvi (IGUAL LUS, 2000, p. 106) em territrio portugus. Seria a vida destes mais
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confortvel perante o restante da populao? Neste sentido, muito provavelmente. As somas comportadas, tanto em emprstimos como em lucros, no nos fazem pensar o contrrio. Sua estrutura familiar como seria? Tudo leva a crer que seria algo interessante de se questionar, dada a grande quantidade de negociantes que transmitem as funes para os filhos, preparando-os desde cedo para tal (GUREVIC, 1989, p. 178-179). Famlia esta que, normalmente, era a primeira opo de busca por socorro financeiro, por solidariedade (GARCA MARSILLA, 2002, p. 51-52). Os lucros obtidos gerariam algum tipo de conflito social? Provavelmente sim. As altas taxas cobradas pelos prestamistas eram um grande motivador de tenses em demasia. Neste sentido, os italianos, em especial os genoveses, no gozavam de grande estima por parte dos populares e at mesmo dos poderes maiores (DAY, 1994, p. 241; GUREVIC, 1989, p. 169-170 e 176). Certamente h muito mais o que se questionar, dadas as mltiplas possibilidades de abordagem. O papel da Igreja neste contexto tambm de suma importncia, tendo em vista as limitaes acerca da prtica da usura e do lucro exacerbado, o que no impediu o desenvolvimento desta atividade (FOURQUIN, 1997, p. 282283), assim como tambm h registro de alguns membros do prprio clero tambm chegarem a se arriscar neste campo (BRAUDEL, 1992, p. 36). Alm do aspecto do desempenhar das funes, h que se ressaltar o conflito pelo qual a cristandade passa neste momento. Sabe-se que o mercado e o desenvolvimento dos negcios, tanto do comrcio quanto do cmbio, so algo intrnseco de uma sociedade ocidental que comea a caminhar de maneira mais intensa na trilha do capitalismo. As doutrinas cannicas neste sentido flexibilizavam-se de modo a buscar uma rpida adaptao nova realidade que surge no alvorecer dos tempos modernos (FOURQUIN, 1997, p. 282-283). A relao com os poderes centrais tambm de vital importncia para o desenvolvimento desta ocupao. Sob este prisma, h de se considerar a necessidade de uma boa relao entre o monarca e a classe mercantilbanqueira. No caso de D. Joo I, esta relao intensa, dada a sua origem, apesar das vrias intervenes rgias no cmbio e na reordenao financeira. Soma-se a isto a necessidade real em casos de guerras e conflitos. A coroa tem como possibilidade a quebra do numerrio para fazer face s despesas nestas situaes. Entretanto, isto afeta a boa relao entre as partes. Havia que se considerar outras possibilidades: trazer esta nova classe para o seio da corte, de modo a poder contar com os seus prstimos em termos pessoais e monetrios (GUREVIC, 1989, p. 177; DAY, 1994, p. 204). Em alguns casos, a concesso de privilgios pode, necessariamente, estar relacionada com a rea de atividade comercial daquele que concede o prstimo, at mesmo porque no fazia sentido que fosse de outra forma, pois assim teria a possibilidade da expanso dos lucros e, consequentemente, a liquidez de seus proventos, ou seja, sua capacidade de concesso de emprstimos torna-se-a ainda maior. Um outro aspecto a ser analisado a origem daqueles que exerciam a funo no s de mercador como tambm de prestamista e usureiro. 147

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sabido, e j mencionado anteriormente, da questo religiosa. Apesar das tentativas de adaptao, a Igreja ainda tinha vozes contrrias ao lucro e queles que insistiam em desempenhar tais funes (GUREVIC, 1989, p. 168). Neste sentido, abre-se as portas aos judeus. esta comunidade devida boa parte do processo de desenvolvimento das atividades financeiras e comerciais. Sua relao com as questes monetrias e de negcios , juntamente com os italianos, uma relao de intensa dedicao (BRAUDEL, 1992, p. 130-135). Entretanto, necessrio desconstruir o mito do usureiro unica e exclusivamente judeu, dada a oferta de outras possibilidades (FOURQUIN, 1997, p. 275; DAY, 1994, p. 203-204; CARRASCO PEREZ, 2000, p. 404). Diante deste grande panorama, as muitas e interminveis questes intrnsecas da funo e do cotidiano deste mecanismo de tamanha importncia para o desenvolvimento do comrcio e, em grande parte, para o desenvolvimento dos centros urbanos, so algo que ficar para se tentar responder no estudo maior que se seguir (a dissertao de mestrado propriamente dita). No se tem certeza se conseguiremos, mas tentaremos da melhor maneira possvel seno responder, ao menos fornecer pistas e alguma base para que aqueles que vierem em seguida possam prosseguir esses estudos e continuar o fazer da histria econmica portuguesa, que um campo enorme e altamente convidativo a ser desbravado, seja pelos prprios portugueses como por qualquer outra pessoa.
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Santa Eugnia e Irmo Eugnio: identidades de gnero na Legenda urea


Priscila Gonsalez Falci

Introduo este artigo, apresentaremos as concluses parciais de parte da pesquisa individual1 com a anlise do relato da vida de Santa Eugnia, retirado da Legenda urea. Nossa pesquisa foi construda a partir da reflexo terica relacionada perspectiva de Histria de Gnero e de leituras de obras a cerca da santidade, hagiografias e Ordens Mendicantes, encaminhadas durante o desenvolvimento do subprojeto2 responsvel pelo levantamento e inventrio dos dados a respeito das hagiografias produzidas entre os sculos XI e XIII, do qual sou uma das pesquisadoras. Neste sentido, escolhemos a Legenda urea, elaborada entre 1253 e 1270, de cujos objetivos podemos destacar: destinava-se s leituras litrgicas nos conventos dominicanos, s leituras particulares como obra de edificao e como fonte de consulta para o preparo dos irmos pregadores. Seu compilador foi Tiago de Vorgine, nascido na cidade de Varazze em 1226, que ingressou na Ordem Dominicana com, aproximadamente, dezoito anos. Partindo destas reflexes, nossa pesquisa comeou com a leitura exploratria de toda obra, sendo registradas as informaes de interesse. Com base nestes dados, retornamos a algumas vitae da Legenda urea, para releitura e seleo mais apurada. No fim, escolhemos dois santos, Santo Ambrsio (p.355/364) e Santa Eugnia (p.763/766), que foram analisados a partir da montagem de dois quadros de leituras, com informaes mais detalhadas e diretamente relacionadas pesquisa. Durante estes processos, formulamos as questes centrais de nossa pesquisa: compreender como so realizadas as construes de gnero nestas narrativas e quais as relaes destas com a construo da santidade. Essa a proposta norteadora de nossa comunicao, centralizada nas construes de identidade de gnero feitas no relato de Santa Eugnia e possveis relaes com a construo de sua santidade.

Pressupostos tericos Inicialmente, fundamental esclarecermos nossa postura em relao pesquisa histrica, estabelecendo nossos pressupostos tericos e o conceito

Graduanda em Histria na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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identidade utilizado. Como j foi colocado, o nosso trabalho surgiu a partir de reflexes tericas sobre os Estudos de Gnero, especificamente, segundo os pressupostos defendidos por Jane Flax e Joan Scott. As autoras defendem que o paradigma identificado como ps-moderno condio sine qua non para guiar os estudos de gnero. Questionam, portanto, o aspecto racional e objetivo da cincia, negam sistemas explicativos gerais, no aceitam categorias como homem, mulher, feminino, masculino nem dicotomias como, por exemplo, natureza-cultura, mulherhomem fixas e universais, descartam os aspectos naturalizados oriundos da lgica biolgica. Nesta lgica, questionamos e propomos a desconstruo/ construo de determinados conceitos que no so naturais, ou estveis, ou no-histricos. Com o interesse na percepo e na anlise dos processos de significao e construo dos gneros, a base terica da pesquisa encontra-se na compreenso de gnero de Joan Scott. A autora, profundamente influenciada por Foucault, afirma que gnero o saber a respeito das diferenas sexuais. Scott utiliza o conceito saber, aplicando, segundo o filsofo, como a compreenso produzida pelas culturas e sociedades sobre as relaes humanas (SCOTT, 1990, p.12). Essa produo do saber encontra-se no social, assim consideramos que gnero e suas implicaes possuem uma perspectiva marcadamente politizada. As construes de gnero e sexo envolvem escolhas, interesses e relaes de poder. Defendemos, portanto, que gnero antecede o biolgico, ou seja, que qualquer olhar sobre o natural cultural. No estamos com isso negando a materialidade do corpo, mas defendendo que ele no puramente biolgico. No artigo O corpo e a reproduo da feminilidade: uma apropriao feminista de Foucault, a filsofa Susan Bordo argumenta os conceitos corpo inteligvel e corpo prtico, a partir das concepes culturais construdas a cerca dos corpos. Segundo Bordo, atravs de discursos filosficos, cientficos e estticos, o corpo ganha sentido, tornando-se inteligvel. E esses mesmos discursos podem funcionar como regras e regulamentos prticos, que condicionam o corpo, adaptando-os socialmente, tornando-os teis. Encontramos hiptese semelhante no antroplogo Jos Carlos Rodrigues, no livro Tabu do corpo, no qual defende que cada cultura atribui significados especficos aos comportamentos e/ ou elementos relacionados materialidade orgnica, alm de inibir ou exaltar impulsos instintivos. A constncia de determinados discursos e representaes do corpo acaba internalizando-os e tornando-os parte do controle e da disciplina pessoal do corpo. Assim, normas e regras sobre o corpo so apresentadas como naturais. O historiador Roy Porter argumenta que o corpo no pode ser tratado pelo historiador, simplesmente como biolgico, mas deve ser encarado como mediado por sistemas de sinais culturais (PORTER, 1992, p. 308). Portanto, assumimos para nossa pesquisa que no corpo e atravs dele que se inscrevem elementos de determinada cultura, inclusive os de gnero. Os corpos das mulheres e os corpos dos homens no so obrigatoriamente imbudos dos mesmos smbolos e significados, so historicamente construdos e especficos. Por possuir 151

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historicidade, o corpo e seus limites so flexveis.3 No existe uma materialidade orgnica inteligvel fora de uma perspectiva cultural. Nossa perspectiva dos estudos de gnero no descarta a materialidade orgnica na fabricao de sentidos. O corpo um dos lugares onde se travam lutas de poder genderificadas. Neste sentido, o entendimento dos homens e das mulheres das suas especificidades corpreas4 fruto de relaes de gnero pr-existentes. Toda a construo sobre uma dada viso de gnero realizada e mantida sobre um determinado grupo de indivduos e em um determinado momento e espao. Assim, as relaes de gnero esto presentes em todos os aspectos da experincia humana, sendo constituintes dela. A categoria gnero toca nas relaes entre sexos diferentes, entre indivduos do mesmo sexo, a construo das identidades e sexualidades individuais e coletivas, abragendo um complexo conjunto de relaes sociais. Todos esses elementos esto presentes na construo dos significados, variantes no tempo e espao, dos gneros e dos sexos. Eles estabelecem os efeitos de serem atribudos a uma ou outra categoria dentro das prticas sociais concretas, como por exemplo, a construo da identidade ou a insero nas relaes de poder. Partindo desses pressupostos, estudamos o captulo referente aos Santos Proto e Jacinto, no qual se encontra a narrativa da vida de Santa Eugnia. Durante nossa anlise, percebemos um processo de construo de duas identidades diferentes de gnero associadas santa. importante explicitarmos o emprego do conceito identidade no nosso trabalho. No artigo Identidade e diferena: introduo terica e conceitual, Kathryn Woodward analisa o conceito de identidade na perspectiva dos estudos culturais. A autora afirma que a identidade obrigatoriamente relacional, ou seja, sua construo realizada atravs da delimitao abstrata e simblica de diferenas. Para existir, uma identidade precisa de outra, externa e distinta dela. A relao entre diferentes identidades construda culturalmente e sua percepo depende das escolhas realizadas. No entanto, ao marcamos determinadas diferenas, obscurecemos outras.5 Um outro elemento base da construo de identidade a identificao. Woodward afirma que a identificao resulta de aparentes similaridades, nas quais no h conscincia da diferena. Em suma, a identidade resultante de um flexvel jogo de delimitar, manter e questionar diferenas e similaridades. Nesse sentido, a construo e a manuteno de identidade vinculamse a dois processos distintos e concomitantes; o social e o simblico. Segundo Woodward, a marcao simblica o meio pelo qual damos sentido a prticas e as relaes sociais, (...). por meio da diferenciao social que essas classificaes da diferena so vividas nas relaes sociais (WOODWARD, 2000, p.14). Nesta lgica, as diferenciaes extravasam o simblico, sendo percebidas nas relaes do indivduo com seus pertences e nas suas prticas sociais. Em nossa perspectiva, algumas ressalvas so necessrias. A primeira que a identidade, a sexualidade, o gnero, o sexo e o corpo no esto
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obrigatoriamente interligados, um no determinante de outro. Por enquadrarse em processos de significao, a relao entre essas categorias culturalmente varivel e historicamente especfica. Assim, estamos preocupados com processos de significao, os sistemas simblicos, as relaes sociais e as de poder imputadas nelas. Partindo dessas reflexes, nosso estudo sobre a Santa Eugnia centralizou-se nas construes de identidade dela como Eugnia e como irmo Eugnio, seguindo a ordem em que as informaes aparecem no captulo da Legenda urea. Santa Eugnia: duas identidades de gnero? Ao comearmos nossa leitura do captulo Santos Proto e Jacinto temos a impresso de que leremos sobre a vida dos santos, contudo a narrativa centraliza-se na vida de Eugnia, exceto no ltimo pargrafo. Essa organizao o primeiro ponto curioso sobre este captulo, afinal por que a Santa Eugnia no a personagem ttulo apesar de ser o centro da narrao? O captulo comea com uma sucinta introduo dos personagens Proto e Jacinto, companheiros e domsticos de Eugnia, filha de Felipe, prefeito da Alexandria. Somos apresentados a trs estudiosos da filosofia, destacados por terem atingido perfeio em todas letras e artes liberais, completos em todos os conhecimentos. A narrao continua com uma mudana na qualidade do saber de Eugnia. Tiago de Vorgine destaca que a alma dela comea a tornar-se crist, aps chegar em suas mos6 a doutrina de Paulo. Em outro episdio, aps Eugnia ouvir um canto cristo,7 ela desqualifica todos os argumentos dos filsofos estudados Aristteles, Plato e Scrates e todos os cantos dos poetas diante de tais palavras. E complementa: o poder me concede a designao usurpada de senhora, enquanto a sabedoria faz de mim na verdade uma irm de vocs. Portanto, sejamos irmos e sigamos Cristo(VORGINE, 2002, p.763.). Assim, o personagem define sua identificao aos companheiros como crist, ao negar a diferena social que lhe era atribuda. Aps Proto e Jacinto concordarem com a proposta de viverem como irmos, ela traveste-se com roupas de homem e os trs seguem para um mosteiro distante. No texto, h o destaque para o prior deste mosteiro, Heleno, que no aceitava entrada de nenhuma mulher. Essas escolhas da personagem Eugnia marcam o incio do processo genderificao de sua identidade. No trecho a seguir, temos a percepo da identidade de gnero da personagem atravs de duas perspectivas:
Eugnia foi at Heleno e disse ser homem, ao que ele respondeu Est certo voc dizer que homem, pois embora mulher age de forma viril. De fato, a condio dela tinha sido revelada a ele por Deus. Junto com Proto e Jacinto, ela recebeu o hbito monacal e se fez chamar por todos de irmo Eugnio (Idem, p.764).

Desta passagem, argumentamos que apresentao da personagem como homem e no como Eugnio, faz parte do processo de construo da identidade de gnero. A personagem no apenas uma mulher usando 153

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trajes masculinos, eles fazem parte da delimitao simblica que ela realiza com a identificao ao homem. Em segundo lugar, ela identificada por Heleno como homem por agir de forma viril. Seu comportamento ou sua performance ganha um relevo maior por Heleno j saber da condio dela, em ser biologicamente identificada a uma mulher. No entanto, se a associao de seu corpo ao feminino no influencia na atribuio do prior de uma identidade masculina, qual seria o papel do corpo na construo da identidade de gnero de Eugnia? Nessa questo, concordamos, em parte, com a anlise sobre o travestismo feminino feita por Peggy MacCraken no artigo The Boy who was a girl: reading gender in the Roman de Silence. A autora prope que nos romances medievais com personagens travestidas, a primazia do corpo na determinao do gnero desafiada. O gnero construdo atravs da performace e das vestimentas. MacCraken afirma que as travestidas dos romaces possuriam um gnero ambguo; ou seja, elas possuem uma performace convincente como homens, mas so anatomicamente identificadas como mulheres. Essa ambiguidade defendida pela autora, argumentando que aps o corpo da travestida ser revelado e identificado como mulher, ele ganharia significado e requisitaria uma nova genderificao, realinhando-se com o gnero. A argumentao da autora assemelha-se ao caso de Eugnia, porm, defendemos que seu gnero no dubio, como as travestidas analisadas por MacCraken, e sim, dual. A Eugnia so imputadas duas identidades8 de gnero. Essa dualidade9 est presente nas palavras de Heleno, que no nega uma atribuio de gnero calcada no corpo anatmico.10 No entanto, o prior, de certa forma, valoriza a outra, resultado de processos simblico e social. Nesse sentido, a identidade de Eugnia como homem, construda atravs da confluncia de suas vestimentas com sua performace, assumida por ela e percebida por terceiros, no afetada pelo seu corpo. At este momento da narrativa, a significao dada ao corpo de Eugnia no acarretou em sua rengederificao, sendo assim so construdas e mantidas duas identidades de gnero. A construo da identidade masculina , aparentemente, apresentada por etapas: as vestimentas; a identificao de Eugnia como homem; o reconhecimento de Heleno; o comportamento viril; o recebimento do hbito monacal, junto a Proto e Jacinto; e, em ltimo lugar, a mudana do nome. O antroplogo Jos Carlos Rodrigues, no livro Tabu do corpo, trabalha a associao do nome quele que o porta, como sendo parte constitutiva da identidade social da pessoa (RODRIGUES, 1986, p.55). No caso do gnero, MacCraken fornece destaque determinante ao nome ao argumentar que Roman de Silence por ter o nome modificado pelo pai tem seu gnero e sua performance definidos. Nossa pesquisa no adota o papel do nome de forma to radical. Para ns, ele um elemento fundamental na genderificao de Eugnia, ao fazer com que todos a chamem de Eugnio. A mudana no nome a afirmao e confirmao da construo do irmo Eugnio. Eugnia Eugnio. Nesse sentido, consideramos que a entrada de Eugnia como o irmo
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Eugnio produz reaes, como ela ter sido colocada frente do mosteiro, aps o falecimento do prior. Outra, mais detalhada na obra, o despertar do amor e do desejo de uma mulher nobre, chamada Melania. Na passagem em que os sentimentos de Melania so relatados, destaca-se a dualidade presente em Eugnia; a mulher,11 julgando que o irmo Eugnio fosse homem, visitava-o com freqncia (...) (VARAZZE, p.764). Assim, Tiago de Vorgine coloca a identidade masculina ao usar irmo Eugnio, mas no descarta a existncia da feminina. A personagem Melania atrai Eugnia at sua casa, fingindo estar doente e tenta ter relaes sexuais com a personagem. Rejeitada, ela presta queixa ao prefeito Filipe sobre um cristo que tentara violent-la. O relato do julgamento aponta que os escravos por ela instrudos, mentem, confirmando as falsas acusaes. Eugnia, diante disso, fala:
O tempo de calar passou e o tempo de falar chegou. No quero que uma impudica imponha um crime aos escravos de Cristo, nem que seja glorificada na falcia. A fim de que a verdade supere a mentira e a sabedoria vena a malcia, vou mostrar a verdade. No o fao para minha prpria vaidade, mas para a glria de Deus. (Idem, p. 765).

Aps seu pronunciamento, ela rasga sua tnica da cabea a cintura, mostrando a todos que era mulher. Ela revela ser Eugnia, filha do prefeito, sendo reconhecida pela famlia. Tiago de Vorgine coloca que Eugnia transforma-se e com vestes douradas elevada ao cu.12 O que simbolizaria essa transformao? Eugnia deixara de ser Eugnio? Se considerarmos que at o fim do captulo, Tiago de Vorgine utiliza apenas forma feminina para nomear a personagem, poderamos supor que sim. No entanto, os demais elementos da construo da identidade masculina de Eugnia no so obliterados. Ficamos com a dvida; as duas identidades continuaram convivendo, sendo que com a feminina em destaque? E por que? E em que sentido isso influencia na construo da santidade de Eugnia? Essas questes ajudaram na compreenso da transformao anterior da personagem. Analisando cada elemento da mudana, conclumos que ela representaria a santificao de Eugnia e o afastamento das coisas terrenas, inclusive das construes de identidade de gnero, masculina e feminina. Tiago de Vorgine constri outra identidade, outro estatuto, a de santa. Os eventos que se suscedem na narrativa tambm indicariam a santidade da personagem. Se, por um lado, Eugnia converte toda sua famlia, por outro, Melania e os seus foram consumidos por um fogo que veio dos cus. O relato de seu martrio tambm muito curioso. O Imperador manda martirizar Eugnia por temer novas converses. A ela so impostas duas penas amarrada a uma pedra e jogada no Tibre, e jogada dentro de uma fornalha das quais nada sofre. Por ltimo, trancada em um crcere. Aps dez dias, irradiando luz, o Salvador aparece, d-lhe um pedao de po, e anuncia a Eugnia o dia de sua morte. Segundo a pesquisadora Nri de Almeida Souza, no artigo Hipteses sobre a natureza da santidade: o Santo, o 155

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Heri e a Morte, este encadeamento de fenmenos constitui um cdigo sensorial definidor de uma santidade. Assim, Tiago de Vorgine rompe com o terreno, ao narrar acontecimentos relacionados ao divino capacidade de realizar milagres e suscitar efeitos purificadores. A personagem Eugnia passa a existir entre o natural e o sobrenatural. As identidades de gnero so submetidas a da santidade. Concluses parciais Durante a narrativa da vida de Eugnia, argumentamos que duas identidades de gnero so construdas, uma feminina, como Eugnia, e uma masculina, como irmo Eugnio. Contudo, no final do captulo, aps a personagem ser transformada e elevada ao Cu, defendemos que comea outra construo de identidade ligada a sua santidade. A partir deste ponto, como analisamos, Tiago de Vorgine centraliza-se em episdios ligados ao divino, ao sobrenatural. Como no h indicaes da excluso das outras identidades, conclumos que Tiago de Vorgine no ignora a presena do gnero, mas o obscurece ao ressaltar a santidade. Supomos que Eugnia poderia estar aperfeioando-se ao assumir a identidade masculina e ser reconhecida como tal. Neste sentido, o trajeto percorrido pela personagem teria proporcionado a santificao de Eugnia em vida. Contudo, devido a nossa pesquisa estar em desenvolvimento, o fato de Eugnia no ser personagem-ttulo do captulo permanece sem compreenso. Tal questionamento poder ser respondido com a continuao de nossa pesquisa, possibilitando uma compreenso mais aprofundada da influncia do gnero na construo da santidade focalizando-nos na vida do santo com determinada identidade de gnero e o resultado com sua santificao.
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"Todos os deuses dos gentios so demnios, foi o Senhor que fez os cus (VORGINE., 2002, 763) 8 Estamos partindo do pressuposto da identidade ser construda atravs da identificao e da diferena, mas por duas perspectivas, a do indivduo e a externa a ele. Neste caso, Eugnia no se identifica ao feminino, mas identificada a este por Heleno. Assim, a identidade de gnero da Eugnia como mulher construda de fora, uma atribuio devida a leituras sobre seu corpo. 9 Cabe ressaltarmos que a dualidade dessas identidades aparece durante o texto nas formas como o autor chama a personagem, ora de Eugnia, ora de Eugnio. No nosso artigo, utilizaremos apenas o nome Eugnia. 10 Ressaltamos que a construo da identidade feminina no foi feita por Eugnia, mas, pela viso que Heleno tem, que revela sua condio. 11 Referindo-se a personagem Melania. 12 Eugnia transformou-se, e coberta de vestes douradas foi elevada para o Cu, de onde veio um fogo que consumiu Melania e os seus (VARAZZE, 2002, p.765)

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Mitologia clssica e cristianismo: miniaturas de um manuscrito medieval das metamorfoses de ovdio


Elza Heloisa Filgueiras*

Introduo uitas vezes associa-se apenas ao Renascimento o interesse pela filosofia e pela mitologia clssicas, mas j h algumas dcadas os estudiosos vm demonstrando como essa idia no se sustenta. Hilrio Franco Jr. sublinha mesmo como foi justamente atravs da Idade Mdia que os homens do Renascimento tomaram conhecimento, em grande parte, da herana antiga (FRANCO JR., 2001, p.156). Especificamente no campo das artes, Erwin Panofsky seguindo de certa forma os passos de Aby Warburg preocupouse em demonstrar a presena de elementos pagos, clssicos na arte medieval (PANOFSKY , 1979). De fato, desde o sculo XII a cultura medieval j mostrava um forte interesse por esses temas. Prova disso a grande popularidade de manuscritos de obras clssicas, e dentre elas particularmente as de Ovdio, especificamente as Metamorfoses, uma compilao de fbulas mitolgicas. Tal popularidade levou os estudiosos a chamarem mesmo o perodo compreendido entre os sculos XII e XIV de aetas ovidiana. importante destacar que essas obras no se encontravam em uma posio marginal em relao s idias crists. Bem ao contrrio, tratava-se de obras copiadas e encomendadas por religiosos eruditos da poca. Uma verso, particularmente, das Metamorfoses chegou a gozar de grande prestgio a partir do sculo XIV: o chamado Ovdio moralizado (Ovide moralis), uma verso comentada das Metamorfoses, em que as fbulas eram explicadas de acordo com as idias crists, e serviam de material para a confeco de sermes. Por trs dessa iniciativa, estava uma idia cara Idade Mdia, de que a verdade divina havia sido revelada por Deus mesmo antes da Encarnao e do advento do cristianismo: Deus havia falado tambm atravs de alguns pagos, e cabia aos intelectuais da Igreja decifrar essas palavras. E Ovdio seria um desses autores. No campo da literatura, muitos estudiosos vm se dedicando a estudar esse processo de reelaborao, de cristianizao da mitologia clssica nos

Graduanda em Artes Plsticas na Universidade Federal do Esprito Santo.

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manuscritos de Ovdio. Mas no campo das imagens estudos deste tipo ainda no so freqentes no Brasil. Sendo assim, propomo-nos aqui a estudar um manuscrito iluminado flamengo de autoria desconhecida, do sculo XV, das Metamorfoses de Ovdio pertencente Biblioteca Nacional de Frana (BNF Fr 137), e perceber como em algumas de suas 137 imagens (distribudas em 235 flios) a mitologia clssica retrabalhada e aproximada da tradio e dos ideais cristos. Selecionamos como objeto da pesquisa apenas seis imagens considerando as limitaes que marcam um trabalho de iniciao cientfica tendo sido utilizado como critrio de seleo a escolha de imagens onde as relaes entre os aspectos mticos pagos e o cristianismo eram mais evidentes. So elas: Nascimento de Jpiter do flio 3 verso; Combate entre Febus e Pton, flio 8; Febus e Faeton, do flio 13; Juno no inferno, flio 53 verso; Pigmalio rogando Vnus, flio 136; alm da primeira, que tem por tema a Criao, no flio 1, e que ser analisada nesta comunicao. Contexto O manuscrito foi produzido em Flandres do sculo XV, territrio que hoje corresponde aos Pases Baixos. Desde o sculo XIII havia um movimento de secularizao dos saberes que progrediu em setores como a pintura das miniaturas. Essa prtica j no se restringia aos monges reclusos em mosteiros, mas estendeu-se aos leigos. No caso do manuscrito que estudamos, se tratava de um trabalho annimo, o que no incomum na poca, at porque as idias de autoria e de arte so posteriores. Na Idade Mdia a pintura, a escultura, mosaico, os vitrais, dentre outras prticas que estudamos hoje em livros de Histria da Arte, eram tidas apenas como um artesanato. Durante o sculo XV, na Itlia, j florescia o Renascimento, mas no norte da Europa, nosso foco de estudo, esse termo ainda no se aplica. Alguns historiadores classificam como gtico tardio ao tratar, por exemplo, da pintura flamenga desse perodo. a poca dos irmos Van Eyck (c. 1395-1441) e de Robert Campin (1377/1378-1444). So herdeiros e ao mesmo tempo crticos do que se chamou de estilo internacional, buscando uma representao mais naturalista e um detalhamento maior dos objetos representados. O desenvolvimento da tcnica de fabricar tintas tendo como aglutinante o leo possibilitou efeitos pictricos antes impossveis com a tmpera a ovo, como a transparncia. Percebe-se na pintura do perodo uma transformao no modo de olhar a pintura e da pintura. Em perodos anteriores, podia-se localizar uma pessoa no espao pictrico e determinar o seu tamanho levando mais em considerao sua escala de importncia. No sculo XV j h um direcionamento para a perspectiva linear, nem sempre total, mas muitas vezes parcial. Iniciam-se os primeiros passos a certo sentido albertiano de janela da realidade, e tambm uma profuso dos retratos. Porm essas mudanas no ocorreram de forma repentina, e muito podemos identificar nessas imagens da carga simblica que a mentalidade medieval evidenciava e tambm de suas atitudes formais.
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No caso do manuscrito que estudamos isso bastante perceptvel. A influncia francesa bastante forte, e podemos classific-lo como sendo uma obra do gtico internacional, estilo que marcou grande parte da Europa entre os anos de 1370 e 1430, aproximadamente. O nome desse estilo deriva de seu carter cosmopolita, desenvolvido em ambientes aristocrticos, com marcado gosto pelo luxo, pelo refinamento. Quanto ao contedo iconogrfico, observamos ainda a presena da releitura medieval crist da mitologia clssica, como veremos mais adiante. Ovdio e as Metamorfoses Pblio Ovdio Naso (c. 43 a.C. - c.17 d.C.) nasceu em Sulmo, atual Sulmona, em Abruzos, Itlia. Comeou a publicar em 20 a.C., com Os Amores. Entre os anos 2 e 8 da era crist escreveu Os Fastos e As Metamorfoses. At quando este exilado em Tomos (posteriormente Constana, na Romnia, local aonde viria a morrer) continuou a escrever, resultando desse perodo as obras Tristes e Epstolas do Ponto. As Metamorfoses um poema em quinze livros, que compreende em mais de 12.000 versos a narrao de 246 fbulas. A obra tem esse nome porque trata das transformaes sofridas desde a criao mtica do Universo, dos minerais, dos vegetais, dos deuses e dos homens at o destino de Jlio Csar, numa ordem cronolgica. Essas transformaes tm carter etiolgico, isto , estudam a origem dos seres e, alm disso, de uma forma conecta s fbulas mitolgicas greco-romanas. Tambm retratam um pouco da Roma daquele perodo em seus aspectos religiosos, morais e polticos. Neste trabalho destacamos dois captulos, cujos subttulos na traduo em portugus que dispomos so: Origem do mundo e O homem (OVDIO, 1983). interessante notar a semelhana destes com o primeiro livro da Bblia, o Gnesis. E a esses dois captulos que a primeira miniatura do manuscrito BNF Fr 137 faz referncia.

Imagem do flio 1 recto


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Essa primeira imagem do manuscrito se destaca por seu tamanho, j que faz parte do pequeno grupo de imagens que ocupam a pgina quase na sua totalidade. A imagem tambm chama a ateno por sua complexidade de smbolos e formas. uma das poucas subdivididas em cenas mltiplas, o que nos leva a questionar se juntas, essas partes podem formar uma unidade significante, j que esse pensamento de um sentido total pode recair num anacronismo. As margens do flio so cobertas de motivos ornamentais fitomrficos, policromados, e padres pontilhados, como era comum no sculo XV. Entre essas margens e a imagem e o texto h uma moldura fina, amarronzada. No interior da imagem h uma subdiviso em trs grandes partes, que apresentam cenas distintas. A diviso realizada por uma forma em T deitada, que parece sobressair da imagem, como se estivesse em relevo. As trs cenas principais so: no alto esquerda, uma espcie de fronto dourado ornamentado; abaixo, esquerda, um homem em plpito, diante de um livro aberto, com um ovo na mo e falando a um grupo de outros homens, sobre um fundo azul com ornamentaes; e do lado direito h cinco cenas: o retngulo dividido em quatro partes e no seu centro h um homem, sobreposto a estas. No alto esquerda, h a representao de um cu cheio de estrelas e pssaros, e parte de uma construo gtica toda pintada de branco; no alto direita h um pssaro sobre um semi-crculo em chamas; abaixo esquerda h gua com peixes; e por fim, abaixo e direita, h terra firme, em uma representao com certa perspectiva, com rvores, animais e um homem nu e barbado, ajoelhado em orao. Ele est voltado para o homem no centro dessa parte da imagem, sobreposto a essas quatro cenas, como numa massa folheada1 e j fora do padro de perspectiva. Ele tem as mos postas e possui uma aurola cruciforme radiante. Abaixo desse conjunto de imagens encontra-se o texto, com iniciais decoradas, em francs antigo. Os ornamentos das bordas e do fronto da primeira imagem dentro da subdiviso podem sugerir um enaltecimento do tema representado as cenas abaixo e ao lado, conforme comparamos com a anlise de Jean-Claude Bonne das espirais que formam o corpo do Cristo na crucificao de Athlone, placa de bronze irlandesa datada provavelmente do sculo VIII (BONNE, 1996, p. 229-231). A idia de tornar gloriosa a cena reforada no fronto, enquanto pintado com cor de ouro, de modo que h uma transferncia da valiosidade do metal para o objeto. No por acaso, dado o valor do fronto, abaixo dessa forma arquitetural, que apesar de subdividida transmite a idia de continuao da construo, encontramos um dos principais temas desta imagem. Trata-se de uma representao do poeta Ovdio, autor da obra que se inicia. De acordo com os conservadores da BNF, tal cena mostraria Ovdio comparando o Universo a um ovo. Essa interpretao necessita ser melhor examinada, e sublinhamos seu carter hipottico, j que h vrios autores que defendem que uma imagem pode ser vista de vrias maneiras e sua visualizao no pode ser comparada leitura textual.2 Ovdio tem diante de si um livro aberto, o que pode estar repleto de
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significaes. Esse livro pode ser ao mesmo tempo o texto em latim das Metamorfoses e o prprio Ovdio moralizado e at mesmo a bblia j que o contexto de cristianizao. Maria Cristina Pereira comenta sobre essa possibilidade de ambivalncia que as imagens podem trazer, dando como exemplo a obra de Francesco Maffei, que traria uma Judite-Salom (PEREIRA, 2004). Quanto interpretao avanada pelos conservadores da BNF, de que se trataria da comparao do Universo a um ovo, pesquisamos em uma traduo das Metamorfoses em portugus (OVDIO, 1983) e em uma francesa (OVIDE, 1806) e no encontramos nenhuma referncia a um ovo. Tendo em vista o estgio inicial desta pesquisa, ainda no podemos nem confirm-la nem refut-la. Mas sabemos que essa comparao seria possvel na poca, j que desde Pitgoras (c. 572 - 497 a.C.) conhecia-se a esfericidade da Terra. Carlos Fontes fala da filosofia da Baixa Idade Mdia e sua mentalidade a respeito do conhecimento herdado da Antiguidade, e comenta que alguns pensadores, baseados em passagens bblicas, contestavam a esfericidade da terra, mas que ela acabou aceita, mesmo com restries (http:// afilosofia.no.sapo.pt/cienciamedieval.htm). Sabemos que no contexto do manuscrito que estudamos os estudiosos j aceitavam a esfericidade da Terra, informao utilizada e sua descoberta atribuda popularmente a Cristvo Colombo (1451- 1506). Pensamos tambm na hiptese da comparao ter paralelamente um sentido simblico, j que para o pensamento medieval uma coisa aparente se relacionava a uma oculta, no alm. Havia a correspondncia de Coisas com Idias (LE GOFF, 2002, p. 497). Em algumas culturas pags, como afirma Heinz-Mohr, o ovo era smbolo do mundo das plantas e dos animais que renascem para a vida (HEINZ-MOHR, 1994, p. 269). Nesse sentido de re-nascimento, aproxima-se da noo de ressurreio que adquiriu posteriormente nas festas da pscoa, segundo o mesmo autor, por causa da semelhana de Cristo irrompendo o sepulcro com a maneira como nascem os pintinhos (Ibidem). Alm disso, se tomar o ovo no sentido de esfera, h que se lembrar que essa era uma forma considerada perfeita assim como o universo criado por Deus. Quanto s quatro imagens da direita, do cu, do fogo, da gua e da terra, acreditamos se tratar da referncia aos quatro elementos: ar, fogo, gua e terra, aos quais se atribua natureza de tudo que existia na Antiguidade (OVDIO, 1983, p. 21). Essas imagens parecem contar a histria em comum que h no livro Gnesis da Bblia crist (Gn, 1 e 2) e na Origem do Mundo narrada pelo poeta Ovdio (OVDIO, 1983, p. 11-13). Em ambas havia um caos que organizado por um ser superior que na imagem, acreditamos ser a figura com aurola so separadas as guas da terra e criados os astros, em seguida os animais e, por ltimo, o homem que deve domin-los: Ento Deus disse: Faamos o homem nossa imagem e semelhana. Que ele domine os peixes do mar, as aves do cu, os animais domsticos, todas as feras e todos os rpteis que rastejam sobre a terra. (Gn, 1: 26). Chamamos a ateno para o fato de que tanto na Bblia como nas Metamorfoses de Ovdio o homem 163

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feito imagem do deus cristo no primeiro caso e dos deuses pagos no segundo. O homem representado no elemento terra pode ser Ado da concepo crist, j que representado junto a pequenos animais ao fundo. Precisamos investigar melhor se esse simbolismo no traz uma idia ambivalente de homem e tambm do Cristo. Concluses Existem outros elementos nesta imagem que merecem devida ateno, como o pssaro que aparece sobre o fogo e a construo gtica, que sero melhor investigados no progresso dessa pesquisa, ainda em fase inicial. Nesse momento nos ativemos ao que nos pareceu serem questes primordiais na imagem, isto , sem a pretenso de esgotar suas possibilidades de anlise. Nesse sentido, digno de nota o fato de que a primeira imagem de um manuscrito de um texto em princpio pago traga a representao no s de imagens que lembrem a Gnesis crist, mas que a prpria personagem central, posta em evidncia, em primeiro plano, seja a de Deus, figurado como Cristo. Vemos, assim, um exemplo tardio daquilo que o cristianismo j vinha, desde seu princpio histrico, fazendo, ao ampliar seus campos filosficos e culturais de forma a incorporar as culturas pags, agregando assim, os seguidores dessas tradies mais antigas. Trata-se, no caso da retomada clssica do final da Idade Mdia, de um campo pouco explorado pelos estudos das imagens medievais no Brasil, por isso, acreditamos que nosso trabalho mais lanar questionamentos do que respostas. Porm, num sentido mais amplo, essa pesquisa pretende se somar quelas que mostram que a Idade Mdia no foi apenas um perodo intermedirio entre a Antiguidade e o Renascimento, pocas do conhecimento dito ureo, mas que no seu seio tambm estavam as sementes culturais da civilizao ocidental.
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MITOLOGIA CLSSICA E CRISTIANISMO: MINIATURAS DE UM MANUSCRITO MEDIEVAL... OVIDE. Les mtamorphoses. Traduction de G.T. Villenave. dition du groupe Ebooks libres et gratuits, 1806. Disponvel em <http://www.ebooksgratuits.com/ ebooks.php> Acesso em 16/09/2005. OVDIO. As metamorfoses. Traduo de David Jardim Jnior. [s/l]: Ed. Tecnoprint S.A., 1983. (Coleo Universidade de bolso). PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. 2 ed. So Paulo: Perspectiva, 1979. PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz. La mytologie classique dans lart mdival. SaintPierre-de-Salerne: Grard Monfort, 1990. PEREIRA, M. Cristina C. L. Uma arqueologia da histria das imagens. In: Seminrio: A importncia da teoria para a produo artstica e cultural, 2004, Vitria. Disponvel em <http://www.tempodecritica.com/link020122.htm> Acesso em 24/03/2006. RIBMONT, Bernard. LOvide moralis et la tradition encyclopdique mdivale. Une approche gnrique comparative. Cahiers de recherches mdivales (XIIIe XVe sicles), n. 9. p. 13-25, 2002. <http://www.pitoresco.com.br/flamenga/flandres.htm> Acesso em 10/09/2005. <http://astro.if.ufrgs.br/antiga/antiga.htm> Acesso em 18/09/2005 <http://afilosofia.no.sapo.pt/cienciamedieval.htm> Acesso em 18/09/2005 <http://gallica.bnf.fr/scripts/Notice.php?O=08100128> Acesso em 18/09/2005. Notas 1 O termo muito utilizado por nossa orientadora para explicar o pensamento de construo de imagens medieval. 2 Pierre Francastel e Louis Marin so alguns desses nomes.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Maria Madalena e a Ordem Dominicana no sculo XIII: um caso de inverso simblica de gnero
Carolina Coelho Fortes

ste trabalho tem por objetivo discutir um dos aspectos do culto Maria Madalena na Idade Mdia: sua relao com as Ordens Mendicantes e, em especial, com os frades pregadores. Madalena ser adotada como patrona das ordens mendicantes, principalmente porque um smbolo de unio entre a vida ativa e a vida contemplativa, sendo esta fuso o ideal de vida tanto para franciscanos quanto para dominicanos. No vocabulrio metafrico medieval, Marta e Maria eram tipos simblicos h muito estabelecidos que representavam, respectivamente, a vida ativa e a vida contemplativa. Marta representava a vida ativa de engajamento profundo com o mundo, enquanto Maria simbolizava a vida contemplativa, a vida que comeava com contemplao, mas aspirava comunho mstica com Deus (JANSEN, 2000. p. 49). Essas duas figuras so emblemticas para as Ordens Mendicantes, pois desde o seu incio foram caracterizadas por aquelas mulheres. Embora a Madalena apostlica dos frades fora construda para consumo pblico e disseminada em sermes, a nova imagem da santa que uniu os dois tipos de vida tornar-se-ia o paradigma para formar uma identidade mendicante na Baixa Idade Mdia. Pois os mendicantes consideravam o seu tipo de vida, a vida mista, o que melhor representava as especificidades de sua misso.1 Um ttulo muito usado pelos mendicantes em relao Madalena o de Apstola dos Apstolos, que fora dado a Madalena somente na Baixa Idade Mdia.2 um ttulo inspirado nas Escrituras, embora no se encontre ali. Os evangelhos identificam Maria Madalena com a primeira testemunha da Ressurreio a quem Cristo confia o anncio das boas novas para os apstolos. O ttulo, porm, ser registrado somente a partir do sculo XII (JANSEN, 2000, p. 19). No entanto, a tradio crist insiste na proibio da pregao feita por mulheres. Na Suma Teolgica, Toms de Aquino demonstra um argumento contra o testemunho das mulheres sobre a Ressurreio, afirmando que o testemunho tornado pblico atravs da pregao e esta no funo da mulher. Paulo e Ambrsio so as autoridades utilizadas em sua argumentao, assim como utilizada tambm a tradio legal romana que legisla contra as mulheres darem testemunho pblico

Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Histria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 166

MARIA MADALENA E A ORDEM DOMINICANA NO SCULO XIII: UM CASO DE...

(TOMS DE AQUINO, Internet). A questo da pregao feminina foi bastante discutida entre os mendicantes. Muitos deles acreditavam que santas como Maria Madalena, Catarina de Alexandria, Lcia e Ceclia, mrtires cujas vidas Jacopo de Varazze relatou,3 pregaram por disposio divina, e em circunstncias extraordinrias, por ser a Igreja primitiva privada de pregadores. A lgica do argumento era a seguinte: porque sua autorizao vinha do Esprito Santo essas mulheres haviam sido isentas da proibio paulina. Como seria de se esperar, os manuais de pregadores proibiam as mulheres de pregar. Humberto de Romans indica, em seu de Eruditione Praedicatorum, quatro razes para banir as mulheres do plpito: falta s mulheres razo, esto constrangidas por uma condio de sujeio, a pregao feminina poderia provocar desejos luxuriosos e, enfim, em memria da insensatez da primeira mulher, pois ela havia ensinado apenas uma vez e subvertido todo o mundo (BRETT, 1984, p. 56). A preocupao com a heresia (e a crena de que as mulheres dessas seitas pregavam) introduziu o assunto da pregao das mulheres no debate acadmico. Assim, a querela sobre a carreira apostlica de Maria Madalena no era apenas um problema acadmico, mas foi formulado como resposta aos ensinamentos herticos do perodo. A Ordem Dominicana, fundada sobre os pilares da erudio e da misso doutrinal, mostrava devoo particular a Madalena e a Catarina de Alexandria, santas intelectuais pregadoras cujas vidas revelam similaridades com seu prprio conceito de misso. Dado que a Ordem dos Pregadores via algo dela mesma em Maria Madalena, podemos entender porque em 1297, no Captulo Geral de Veneza, a Ordem proclamou Maria Madalena sua patrona (BONNIWELL, 1975, p. 220.).4 interessante notar que Eudes de Chateauroux,5 segundo o que nos relata Jansen (JANSEN, 2000, p.82-4), em um sermo dedicado Madalena, representa as freiras cistercienses como amazonas mulheres viris uma forma de representao que os escritores da Idade Mdia empregavam freqentemente para descrever mulheres santas. Como mostrou Caroline Bynum, escritores homens, com freqncia, empregavam a linguagem da inverso de gnero para descrever a espiritualidade feminina, porm mais freqentemente fizeram isso nas descries de suas prprias vidas interiores (BYNUM, 1982, p. 110-169). Seguindo esta lgica, Jansen sugere que as ordens mendicantes, esforando-se em se distanciar daquilo que eles viam como a decadncia das ordens religiosas estabelecidas, empregavam estratgias narrativas de reverso simblica de gnero que serviam para realar as diferenas entre eles prprios e a hierarquia eclesistica. Significativamente a diferena era do gnero feminino. Muitas das virtudes mendicantes como a pobreza, a humildade, e a obedincia eram qualidades que a sociedade medieval j h muito tempo associava com o sexo feminino.6 Jansen defende a tese de que Domingos e seus pregadores seriam humildes, pobres, e obedientes, para se estabelecerem como um anti-tipo feminino diante da Igreja masculina. Atravs da linguagem e do processo de inverso simblica, Domingos fundou um sistema para renunciar ao poder, 167

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prestgio, e autoridade, ao mesmo tempo em que articulava as virtudes da pobreza e humildade. A desautorizao simblica permitiu aos mendicantes construir uma identidade, de gnero feminino, que era em si uma crtica poderosa Igreja institucional rica e masculinizada representada por So Pedro. No era irrelevante que o infiel Pedro havia negado a Cristo trs vezes. Maria Madalena, por outro lado, havia sido a incorporao da fidelidade ao Senhor, quando somente ela permaneceu chorando em sua tumba. Os mendicantes identificavam-se particularmente com ela como amada de Cristo e discpula mais fiel, identidade que se fortalecia com o ttulo de Apstola dos apstolos. Os frades identificados com Madalena apresentavam um desafio claro autoridade institucional de Pedro. Os frades acharam uma maneira de incorporar a eles, e a sua autoridade marcadamente carismtica (e feminina), ao corpo da Igreja enquanto simultaneamente permaneciam separados: a soluo era um juramento de obedincia hierarquia daquela instituio. A submisso humilde, um gesto feminino representado pela submisso de Maria Madalena a Jesus na casa do fariseu, era a chave. Os frades, atravs da inverso simblica de gnero, foram capazes de se distanciar da hierarquia enquanto permaneciam obedientes autoridade masculina da Igreja. Embora os mendicantes no fizessem o voto de estabilidade, desejavam ser conhecidos por sua perseverana, outra qualidade personificada pela fiel Madalena. As Ordens Mendicantes eram dedicadas fundao de conventos contemplativos em honra de Madalena.7 Apenas na diocese de Spoleto onze conventos associados a tais ordens foram dedicados a Maria Madalena durante os sculos XIII e XIV. Nenhuma outra santa, nem mesmo a Virgem Maria, recebia tantas honras na terra.8 Os pregadores pretendiam que a Madalena contemplativa servisse tanto s freiras enclausuradas quanto s mulheres comuns. Em prol desse fim eles passavam sua sabedoria adquirida atravs da ateno palavra do Senhor. Persuadir certas mulheres a escutar a palavra de Deus no era tarefa fcil, pelo menos de acordo com Humberto de Romans. Segundo ele, algumas mulheres no so devotadas palavra de Deus, ao contrrio, quando esto na igreja apenas falam, oram, ajoelham-se diante das imagens e tomam gua benta. Mas dificilmente so persuadidas a ir uma vez ou outra escutar as pregaes. Para essas mulheres comuns que participavam dos rituais da f sem muita reflexo em seu sentido profundo, Humberto recomendava o exemplo de Madalena que, sentada aos ps de Senhor, escutava suas palavras (HUMBERT DE ROMANS, Apud. JANSE, 2000, p123-4). Assim, os pregadores se voltavam para a imagem de Maria Madalena retratada por Lucas, absorta em escutar e dedicar-se s palavras do Senhor, para promover devoo ao aspecto contemplativo da santa. Havia, no entanto, outra fonte para essa imagem. As legendas tambm transmitiam a imagem da santa contemplativa, mas essa representao diferia marcadamente da encontrada nas Escrituras. Em suas Vidas, Maria Madalena se tornou um tipo de santa do deserto, uma eremita, que retirou-se para o ermo para devotar-se inteiramente contemplao mstica de Deus. A legenda da Madalena eremita, baseada na vida de Maria Egipcaca, comeou a circular na Europa antes da metade do sculo IX. A vida eremtica
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MARIA MADALENA E A ORDEM DOMINICANA NO SCULO XIII: UM CASO DE...

narra que Maria Madalena retirou-se em uma gruta por trinta anos, sem alimentar-se de nada mundano porque recebia alimentos espirituais nas horas cannicas quando os anjos enviados pelo Senhor transportavam-na para o cu, onde era nutrida com substncias divinas. O que fez da figura da Madalena eremtica, reclusa em uma caverna e assistida por anjos, uma figura to atrativa para os pregadores medievais? Como j foi dito, a vida apostlica mista, a vida levada pelos frades, origina-se igualmente na contemplao e na ao. A vida contemplativa era a vida que renovava os frades espiritualmente para que pudessem melhor exercer suas atividades no mundo. Com muita freqncia, entretanto, os deveres de sua misso eram to pesados que no sobrava tempo para tal repouso. O cabelo de Madalena e sua nudez no eram inconseqentes para o sucesso deste motif tanto na literatura quanto nas artes visuais. Desde tempos imemoriais o cabelo feminino solto, livre e descoberto era associado sexualidade. revelador que tanto antes quanto depois de sua converso o atributo fsico mais predominante de Maria Madalena era seu cabelo longo e solto. Quando era uma pecadora da carne, ela entrou na casa dos fariseus, chorou aos ps do Senhor, e os secou com seu cabelo. significativo que no momento de sua converso, seu cabelo o smbolo de seu pecado carnal torna-se o emblema de sua penitncia. De acordo com a lenda, depois de anos de recluso e dura penitncia no deserto, suas roupas haviam se desfeito e seu cabelo havia crescido para cobrir sua nudez. Por um lado, as representaes da nudez de Madalena poderiam ser construdas como sua condio de inocncia e pureza aps a converso. Mas, dado a sua anterior associao com os pecados da carne, as representaes medievais da Madalena nua, coberta por seus cabelos, fazia mais do que invocar imagens da inocncia edmica: elas tambm apontavam para o aspecto sexual de sua nudez, um lembrete de seu passado de pecadora carnal. No deveria nunca ser esquecido que Maria Madalena era conhecida no mundo medieval como a beata peccatrix, a Santa pecadora, um ttulo que simultaneamente evocava o pecado e a santidade. Imagens sugestivas da Madalena nua, eremita e coberta com seus cabelos, funcionavam de forma semelhante. Sua nudez era ao mesmo tempo inocente e sedutora. Seus cabelos serviam como um vu de modstia, mas evocavam tambm a sexualidade feminina. Artistas medievais, seus patronos, pregadores, e moralistas eram todos seduzidos pelo rico paradoxo contido em tal smbolo, que sem dvida contribuiu em fazer da Madalena eremita uma das imagens mais duradouras da Idade Mdia (RAU, 1957 e RODRIGUEZ, 1997, p. 97). Atravs do recurso inverso simblica de gnero os frades mendicantes no s se projetavam, mas eram considerados por outros como novas Madalenas, particularmente no que se refere a sua disposio a serem herdeiros da vida apostlica. Os frades tambm recomendavam Madalena como modelo tanto para o laicato quanto para as freiras. Assim faziam porque se identificavam com a relao especial de Madalena com Cristo, sua misso ativa no mundo, seu afastamento para o misticismo contemplativo, e sua devoo ao Senhor. Todavia, havia limites para tal auto-identificao, pois os frades no se identificavam com todos os aspectos de sua vida. Ora, claro que repudiavam 169

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a vaidade e a sexualidade. Tanto quanto manipulavam a linguagem simblica para se identificar com a Madalena apostlica, tambm usavam a linguagem de gnero para denunciar suas fraquezas. Os frades, assim, usaram tambm a figura simblica de Madalena para atacar a vaidade, a leviandade, e a licenciosidade sexual atribuda a todas as mulheres. Em nome do aperfeioamento social, os pregadores tentavam controlar e subjugar o sexo feminino atravs do smbolo de Maria Madalena. Devemos notar que a inverso simblica de gnero implicava no somente na feminizao dos dominicanos, mas tambm na masculinizao de Madalena. Ou seja, ao mesmo tempo em que, para se contrapor Igreja institucionalizada corrompida, as ordens mendicantes assumem Madalena como smbolo de brandura, feminizando-se, Jacopo de Varazze, um dominicano imbudo do esprito de sua Ordem, reveste Madalena de atributos masculinos. No nosso entender isso ocorre primeiro porque, atravs da masculinizao, d-se mulher capacidade de ser santa. Os atributos femininos so suavizados para que a mulher possa ser mais virtuosa. Alm disso, a masculinizao refora a misso principal dos dominicanos: a pregao. Os sermes madalenianos influenciaram de forma definitiva os hbitos religiosos femininos, enraizaram cada vez mais na cultura religiosa medieval a confisso e a penitncia.9 Inseriu mais ativamente a mulher nos quadros eclesisticos, j que diversas sociedades foram fundadas em nome de Madalena. E, acima de tudo, o exemplo de Maria Madalena constitui uma imagem ideal feminina mais humana que a vigente at ento, a de Maria. Juntas, a Virgem e Maria Madalena, formam um diptico do que o patriarcado cristo v como feminino. A Igreja venera dois ideais do feminino: a virgindade consagrada na Virgem Maria e a sexualidade renegada em Madalena. Por mais santas que ocupem o cortejo celestial de Deus, no se concebe uma santa solteira, independente de suas relaes (ou falta delas) com os homens. O que de fato nos interessa, no entanto e o que pretendamos com essa breve exposio perceber como a figura de Madalena foi utilizada pelos dominicanos do sculo XIII para expressar, e tentar resolver, seus conflitos de identidade. Nesse sentido, a inverso simblica de gnero, ou seja, a associao entre aquela figura feminina e a ordem, composta majoritariamente e, principalmente, pensada e construda por homens, contribuiu para estabelecer uma identidade dominicana diferenciada do clero secular e ao mesmo tempo submissa Cria Romana. Alm disso, Madalena usada para apontar o lugar que os dominicanos em particular votavam s mulheres naquela sociedade. Madalena pregou porque era habitada pelo Esprito Santo. Tal prtica, ento entendida como atributo do masculino, s podia ser desenvolvida por ela por esta ter recebido permisso divina. Desta forma, Madalena foi, sem sombra de dvida, uma figura chave para a principal atividade dominicana: a pregao.
Bibliografia Documentos TOMS DE AQUINO. Summa Theologica. Disponvel na Internet: http://www.newadvent.org/summa/ 170

MARIA MADALENA E A ORDEM DOMINICANA NO SCULO XIII: UM CASO DE... IV CONCLIO DE LATRO. Disponvel na Internet: http://www.fordham.edu/ halsall/basis/lateran4.html IACOPO DA VARAZZE. Legenda Aurea su CD-Rom. Testo latino delledizione critica a cura di Giovanni Paolo Maggioni. Firenze: SISMEL-Galuzzo, 1999. Bibliografia especfica BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983. BONNIWELL, William. A History of the Dominican Liturgy 1215-1945. Nova Iorque: Joseph Wagner, 1975. BRETT, Edward. Humbert of Romans: His Life and Views of Tirtheenth Century Society. Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies, 1984. JANSEN, Katherine Ludwig. The Making of the Magdalen. Preaching and Popular Devotion in the Later Middle Ages. Nova Jersi: Princeton University Press, 2000. RAU, Louis Madeleine. In: Iconographie de lart Chrtien. Paris: Presses Universitaires de France, 1957. Tome II: Iconographie de la Bible, Nouveau Testament. RODRIGUEZ, Manuel Nuez. Casa, Calle, Convento: Iconografa de la mujer bajomedieval. Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, 1997. SAXER, Victor. Le culte de Marie-Madeleine en Occident des origines la fin du moyen-ge. Auxerre-Paris: Publications de la Socit des Fouilles Archologiques et des Monumnets Historiques de lYonne-Librairie Clavreuil, 1959. Notas Sobre a nova necessidade espiritual, a partir do sculo XII, de unio da vita angelica a vita apostolica Cf. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Mdia. Lisboa: Edies 70, 1983. 2 virtualmente impossvel discernir as origens ou provenincia exata da expresso apostolorum apostola. No se encontram quaisquer referncias anteriores ao sculo XII, tempo no qual o ttulo j havia passado a ser corrente. Conseqentemente, suspeitase de que tenha surgido juntamente com a Vita apostolica proveniente de Vzelay que relatava o apostolado de Madalena na Glia. No sculo XIII, os sermes e hagiografias de Maria Madalena usavam o ttulo apostolorum apostola quase reflexivamente para descrever o papel da santa no drama da Ressurreio. O ttulo era usado at por homens como Inocncio III, que no era afeito noo das mulheres dominarem qualquer forma de autoridade sacerdotal. (JANSEN, K. Innocent III: Urbs et Orbis. (no prelo) Este ttulo to presente nos textos medievais que pode ser encontrado nas obras da maioria de autores baixo-medievais. Os compiladores dos legendrios medievais se asseguravam de que aqueles que se utilizassem de seus compndios teriam conscincia deste ttulo honorfico. Em seu compndio de vidas, Bartolomeu de Trento fonte da qual bebeu largamente Jacopo de Varazze resumiu para os pregadores o que ele considerava ser os pontos mais salientes nas vidas individuais dos santos. Bartolomeu entendia o ttulo apostolorum apostola como to importante que em sua breve passagem sobre Madalena, chama a ateno de seus leitores por duas vezes para o fato de que Cristo havia feito dela a apstola dos apstolos. Na verdade, a nota final de seu relato. (BARTOLOMEO DE TRENTO. Epilogus in gesta sanctorum. Ms Biblioteca Apostolica Vaticana. Barberini latim 2300.) 3 A Legenda urea, espcie de suma hagiogrfica escrita na segunda metade do sculo XIII pelo dominicano Jacopo de Varazze nosso documento base para pensar a questo da presena feminina em meio a Ordem dos Pregadores. 4 At ento, a patrona da Ordem havia sido somente Maria. 5 Cardeal da primeira metade do sculo XIII, grande defensor das ordens mendicantes.
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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Alm das virtudes louvadas pelos mendicantes, a cultura medieval demandava que algumas outras estivessem presentes no sexo feminino: a suavidade, a doura e a inocncia. Forjou-se, desta forma, um tipo feminino que veio a ser entendido como carter natural do sexo, e mais virtuoso que o masculino. Nessa regio simblica de dependncia e obedincia as mulheres tinham sua contra-parte: os frades. Naturalmente, os frades, sendo auto-eleitos, tinham uma identidade como grupo que as mulheres no podiam ter, j que a sociedade crist as classificava de acordo com seus pais, maridos e filhos. Mas mulheres e frades partilhavam algo em comum: ambos podiam praticar, sem colocar em risco seu lugar na sociedade, aqueles ideais cristos que por si s negavam a possibilidade de sucesso mundano. Pobreza, humildade e obedincia pressupunham um certo tipo de vida: no podem, como as virtudes teologais da f, esperana e caridade, serem postas em prtica sem que se perceba. Os ideais proclamados pelas ordens mendicantes atacam o corao das leis que fazem com que a sociedade ocidental prospere. 7 Tanto as mulheres quanto os frades devem ser duplamente mais virtuosos do que o resto da cristandade: os frades porque so homens dedicados aos servios divinos e tm como misso tomar conta da espiritualidade e salvao da cristandade; j as mulheres devem ser mais virtuosas que os homens pois so, naturalmente, mais falhas. Assim, para superar esses defeitos, devem ser duas vezes mais empenhadas em suas virtudes do que os homens. 8 As metafricas obras de misericrdia de Maria Madalena por Cristo inspiraram outros a fazer boas obras em seu nome. Victor Saxer mostrou que abrigos sob o patronato de Maria Madalena foram construdos nesse perodo. Sua misso era de assistir aos peregrinos e viajantes. A ordem de So Joo (Hospitalrios) tambm reconhecia Maria Madalena como patrona dos abrigos: na sua sede em Jerusalm eles fundaram um abrigo em seu nome para cuidar das peregrinas. Mais numerosas, entretanto, eram as dedicaes de hospitais feitas a santa.(SAXER, Victor. Le culte de Marie-Madeleine en Occident des origines la fin du moyen-ge. AuxerreParis: Publications de la Socit des Fouilles Archologiques et des Monumnets Historiques de lYonne-Librairie Clavreuil, 1959. p. 213-26.) 8 A personagem de Maria Madalena eclipsou a da Virgem tanto como testemunha da Ressurreio quanto como amiga privilegiada de Cristo durante seu ministrio. Ora, Jesus amava Marta e sua irm e Lzaro (Jo. 11,5), e foi de Maria que disse: Maria, com efeito, escolheu a melhor parte, que no lhe ser tirada (Lc: 10:42). Maria Madalena foi criada a partir de relatos no relacionados imagem de um molde anteriormente concebido pela tradio judaica. Ela se enquadra no tema da mulher dissoluta, presente no Antigo Testamento em personagens como Gomer (Osias: 1:2-3); Jezebel (2 Reis, 9:30-7) e Raab (Josu 2). 9 O IV Conclio de Latro torna a confisso obrigatria.
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Isabela Pinheiro Israel

auto Juiz da Beira considerado pelos especialistas vicentinos como uma farsa, j que essa pea cmica por excelncia e irreverente ao satirizar tipos e costumes da poca. Segundo Antnio Jos Saraiva, no livro Gil Vicente e o fim do teatro medieval (SARAIVA, 1965, p. 96), h duas qualidades diferentes de farsas: as farsas com intrigas e as farsas que se limitam apresentao dos tipos. nessa segunda qualidade que se localiza a obra estudada. Sendo assim, sero analisadas primeiramente as personagens presentes na pea. O juiz (Pro Marques) retrata o homem rstico e analfabeto que alcanou tal cargo por meio da sua unio com Ins Pereira, que sabe ler:
PRO Que ele muito de apertar com juzes de siqueiro1 Ora eu, por no ser paceiro, vim c para me amostrar que sou eu homem inteiro. Ora assi que de maneira minha hspeda2 Ins Pereira (Deus a benza!) sabe ler e quanto me faz mister para eu ir pela carreira. (VICENTE, 1975, p.134; grifamos)

Alm dessa personagem representativa na pea, h na obra personagens divididos em tipos pelo nome de classe, como o escudeiro e o porteiro, por exemplo. E dando um passo frente, nota-se na farsa a preguia, na pessoa do Preguioso; a dana, na pessoa do Bailador, entre outros.
BAILADOR Senhor Juiz, hufa3! eu por bailar Mereo o amo de meu pai, Hufa! e vs me julgai Ou vs haveis de falar Ou vs haveis de bailar. (VICENTE, 1975, p. 139)

Por meio das personagens e suas falas Gil Vicente apresenta diversas crticas sociedade da poca. Uma crtica presente no texto ao luxo encontrado nas sesses palacianas. Gil Vicente ironiza esse fato nas atitudes

Graduanda em Letras na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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do juiz que, por ser um homem do campo e rstico, no valoriza e/ou desconhece os objetos encontrados na Corte:
PRO Ponte ou que cousa esta? No tragais jogo de ver4 que bem haveis de saber que isto presepe de besta5. (VICENTE, 1975, p. 139)

Outra crtica relevante observada na pea a referncia condio dos judeus, que em 1462 foram obrigados a se converterem cristos-novos, atravs da personagem Sapateiro, espanhol expulso de Castela:
SAPATEIRO Quando ramos judios dolor del tiempo pasado ciento y viente y un ducado tenia en ducados mios, sin le hablar un cornado. Morador de Carrion y mercador en Medina casado com Dona Dina nieta de Jacob Zarion maestro mor dAdefina. Aora que soy guayado y negro cristianejo ando-me calzado viejo desnudo, desfarrapado, el mas triste del concejo y por mas postomeria uma hija que tenia tal como cera colada hmbomela alcachuetada. Voyme al Juez todavia6. (VICENTE, 1975, p. 145)

Tambm importante destacar que nas obras vicentinas cada personagem traz consigo caractersticas do ambiente que habita. Esse fato exemplificado nas falas do juiz. Por ser um homem do campo, nota-se o seu linguajar rstico e o seu desconhecimento em relao aos valores da cidade, como exemplificado nessas duas passagens:
PRO Passou-se c um mandado nega por me dar canseira que logo em toda a maneira viesse; e vim empazado bofa7, com fraca esmoleira. (VICENTE, 1975, p. 134)

Alm disso, tambm acentuado o carter do homem do campo, por


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JUZES EM CENA: GIL VICENTE E MARTINS PENA

meio da ingenuidade de Pro Marques que confia em tipos, como o Porteiro (funcionrio judicial) e o Ferreiro, que no decorrer da pea mostram no serem confiveis. Ainda tratando da linguagem, como observa, dentre outros, Maria de Lourdes Saraiva (SARAIVA, 1975, p. 143), nota-se a referncia linguagem popular do sculo XVI na pea, conforme se comprova no exemplo a seguir.
ANA DIAS - ...Que o olho mau8 se meta nele. (VICENTE, 1975, p. 143)

Alm disso, na fala da personagem Amador tambm se evidencia traos da poesia de amor em voga na Corte da poca:
AMADOR Quem enfermo for d Amor como eu continuo sam, faa outros de cristo confesse-se, tome o Senhor, pois tem a morte na mo. E para to prestes partir onde to triste como ando, desejado a pena que est por vir. (VICENTE, 1975, p. 165)

Outro ponto relevante evidenciado por Maria de Lourdes Saraiva nas obras vicentinas: por trs do imenso pitoresco desses tipos humanos est a contestao intelectual de uma sociedade baseada em valores contraditrios e a denncia da hipocrisia que envolve crenas e envenena as instituies (SARAIVA, 1975, p. 18). Essa afirmativa observada em diversas passagens do texto que mostram um juiz boal e despreparado aplicando sentenas paradoxais. Assim tambm o texto apresenta outros traos e valores da sociedade da poca, como o carter patriarcal da vida na provncia. Por exemplo, isso se reflete na fala do Ferreiro, que se coloca, e aos demais, como bons filhos em relao ao juiz:
FERREIRO Estais vs a, Juiz. e ns em p como bons filhos. (VICENTE, 1975, p. 140)

Destaca-se, ainda, o carter coeso do texto, j que o seu desfecho, ilustrado por uma cano popular da poca, resume toda a idia moralizante da farsa, que a oposio de superioridade das serranas em relao s cidads:
Vamos ver as Sintrs, senhores, nossa terra, que o melhor est na serra. As serranas coimbrs e as da serra da Estrela, por mais que ningum se vela, valem mais que as cidads:

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Juzes em cena: Gil Vicente e Martins Pena DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS ATAS so pastoras to lous que a todas fazem guerra, bem desde o curme da serra. (VICENTE, 1975, p. 171-172)

Portanto, a farsa acima analisada tem por principal inteno fazer uma stira social. Nela so evidenciados flagrantes da vida real da poca de Gil Vicente. Por meio de uma srie de quadros compostos por tipos de personagens que retratam essa sociedade, o autor consegue fazer com xito sua crtica (as instituies, tipos sociais e a situao dos judeus) e trazer um carter cmico para o texto. A pea Juiz da Paz da Roa foi a primeira pea escrita por Martins Pena. O texto, ambientado na roa, se desenvolve em apenas um ato, j que as comdias costumam girar em torno de uma situao. A anlise da pea ser iniciada pelas personagens. Estas so agrupadas em famlias de tipos, de acordo com a categoria profissional: juiz de paz, escrivo do juiz e lavrador. Por meio de suas personagens, Martins Pena fixou costumes e caractersticas que tem continuado atravs do tempo e retratam as instituies nacionais (MAGALDI, 1962, p. 40). Com base nessa constatao de Sabato Magaldi, pode-se destacar duas personagens: o juiz de paz e Manuel Joo (o lavrador). O primeiro representa uma crtica instituio e seus representantes, j que o juiz de paz, apesar de exercer um cargo de deciso frente a problemas enfrentados pelo povo da regio, no tem preparo para assumir tal cargo; e o pior que ele tem conscincia desse despreparo:
JUIZ - ...Aqui para ns, que ningum nos ouve, quantos juzes de direito h por essas comarcas que no sabem aonde tm sua mo direita, quanto mais juzes de paz ... E alm disso, cada um faz o que sabe. (PENA, 2002, p. 245)

A segunda personagem caracteriza o tpico roceiro em seu aspecto bronco e rstico. Personagem esse que muitas gargalhadas tm despertado no pblico desde as peas vicentinas:
MANUEL JOO Pois coma laranjas com farinha que no melhor que eu. Esta carne est dura como um couro ... Irra! Um dia destes eu ... Diabo de carne! Hei-de fazer uma plantao ... L se vo os dentes! Deviam ter botado esta carne de molho no corgo ... Que diabo de laranjas to azedas. (PENA, 2002, p. 223)

Outro ponto relevante no auto a linguagem popular expressada pelas personagens. Magaldi aponta esse fato como um elo comum entre Martins Pena e Gil Vicente, pois apenas Gil Vicente havia conseguido semelhante adequao das falas psicologia e ao estado social dos personagens (MAGALDI, 1962, p. 54). Durante toda a pea nota-se referncias a vocbulos que compem o universo lexical brasileiro, como jacuba (PENA, 2002, p. 215) bebida
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feita com gua, farinha de mandioca, acar ou mel, limo e cachaa; burr (PENA, 2002, p. 221) cesto de cip ou de taquara, bojudo e de boca estreita, etc. Tambm observa-se no linguajar das personagens da roa formas populares de linguagem:
ANINHA Abena9, meu pai. (PENA, 2002, p. 220) MANUEL JOO Senhora, a janta10 est pronta. (PENA, 2002, p. 221)

Essa preocupao do autor de, por meio da linguagem, caracterizar o texto no ambiente brasileiro, to forte que a pea encerrada com canes e danas populares na poca a tirana (popular no Brasil no sculo XIX) e o fado (dana popular no sculo XVIII). Seguindo essa idia de carter localista presente na pea, no se pode esquecer de falar do ambiente no qual a comdia se desenrola: o campo, com suas plantaes de caf e mandioca. Martins Pena tambm insere seu texto nos acontecimentos histricos atravessados pelo Brasil na poca, como observou Maria Aparecida Ribeiro (RIBEIRO, 2002, p. 2526): a Guerra dos Farrapos e a questo da escravatura. Outro ponto de destaque na comdia a oposio campo x cidade, tpico clssico na literatura brasileira. A cidade na pea de Martins Pena o Rio de Janeiro, capital do Imprio e sonho do homem do campo que deseja trabalhar e viver neste ambiente de modernizao. o sonho de Aninha (filha de Manuel Joo), que deseja ir aos teatros, s festas da cidade e at possuir as roupas importadas vendidas na capital:
ANINHA Como meu pai vai cidade, no esquea dos sapatos franceses que me prometeu. (PENA, 2002, p. 226)

Tambm nota-se na comdia uma inclinao romntica, pois destacado o amor entre dois jovens (Aninha e Jos) que enfrentam todos os obstculos para se unirem em matrimnio, recusando, assim, os interesses e arranjos paternos e impedindo que Jos seja enviado para a Guerra dos Farrapos:
ANINHA Se ns fugssemos agora para nos casarmos? JOS Lembras muito bem. O vigrio a estas horas est na igreja, e pode fazer-se tudo com brevidade. ANINHA Pois vamos, antes que meu pai venha. JOS Vamos. (saem correndo). (PENA, 2002, p. 241)

Portanto, a comdia de Martins Pena analisada desenrola-se de forma simples, por meio de personagens que espelham a sociedade brasileira da poca. Por sua engenhosidade na criao de tipos to verdadeiramente brasileiros (linguajar, local que habitam, costumes, etc), Martins Pena merece 177

Juzes em cena: Gil Vicente e Martins Pena DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS ATAS

o ttulo de criador da comdia de costumes brasileira. E at hoje seus textos podem ser encenados, pelo trao de atualidade que os formam, despertando assim o reconhecimento e o riso em diversos pblicos de vrias geraes. De maneira mais ampla, ambas as peas fazem uma stira social por meio de esteretipos de personagens. Nelas estas so divididas em tipos, de acordo com a categoria profissional. Em Juiz da Beira de Gil Vicente tem-se o porteiro, o escudeiro, entre outros. Assim como na comdia O Juiz de Paz na Roa h personagens como o escrivo e o lavrador. Alm disso, ambos os textos destacam o tipo do juiz, presente em vrias outras obras literrias, por ser um tipo cmico. Gil Vicente e Martins Pena fazem por meio da figura dessa personagem uma crtica social s instituies e seus representantes, j que mostram juzes despreparados para tal cargo. Outro elo comum entre as duas peas temos a linguagem como reflexo do tipo social e da localidade da qual a personagem provm. Em Juiz da Beira, o juiz Pro Marques representa um homem do campo que possui um linguajar rstico, caracterizando o homem simples da roa. Dessa forma tambm Manuel Joo, personagem do O Juiz de Paz na Roa. Alm das personagens do campo, so expressados nos textos a linguagem popular da poca em que foram escritos. Ponto relevante nas peas a referncia s questes histricas da poca. No texto de Gil Vicente h a questo dos judeus convertidos em cristos-novos e a vida luxuosa na Corte. J na comdia de Martins Pena h referncias ao fim da escravatura e Guerra dos Farrapos. A oposio campo x cidade tambm ganha destaque nos dois textos. Na farsa Juiz da Beira esse contraste evidenciado no desconhecimento do juiz (homem do campo) dos costumes da cidade. Em O Juiz de Paz da Roa esse fato destacado no desejo de Aninha em conhecer a vida na Corte, que acredita ser melhor e com mais distrao que a do campo. O desfecho dos dois textos tambm um elo comum entre eles, pois ambas as peas so encerradas com canes locais, mostrando assim mais um carter de ambientar as peas nos costumes das sociedades das pocas.
Bibliografia MAGALDI, Sabato. Panorama do teatro brasileiro. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1962. MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Gil Vicente. In: MASSAUD, Moisis. (Org) A literatura portuguesa em perspectiva. So Paulo: Atlas, 1992, V. II. p. 170-190. PENA, Martins. O Juiz de Paz da Roa. In: Teatro brasileiro: textos de fundao. Notas de Maria Aparecida Ribeiro. Coimbra: Biblioteca-Arquivo Teatral Francisco Pillado Mayor, 2002. RIBEIRO, Maria Aparecida. Um teatro que queria ser nacional. In: Teatro brasileiro: textos de fundao. Coimbra: Biblioteca-Arquivo Teatral Francisco Pillado Mayor, 2002. SARAIVA, Antnio Jos. Histria da literatura portuguesa. 8 ed. Portugal: Porto, 1975. ___. Gil Vicente e o fim do teatro medieval. 2 ed. Portugal: Europa-Amrica, 1965. SARAIVA, Maria de Lourdes. Introduo. In: VICENTE, Gil. Stiras sociais. Portugal: Publicaes Europa-Amrica, 1975. 178

JUZES EM CENA: GIL VICENTE E MARTINS PENA VICENTE, Gil. Juiz da Beira. In: VICENTE, Gil. Stiras sociais. Trad. e notas Maria de Lourdes Saraiva. Portugal: Europa-Amrica, 1975. Notas 1 Siqueiro = sem estudo. 2 Hospda = esposa. 3 Hufa! Sinal de cansao, pois o Bailador baila enquanto fala. 4 Jogo de ver = objeto luxuoso, que serve para ser contemplado. 5 Presepe de besta = manjedoura. Tratava-se de cadeira rural. 6 Trad. Quando ramos judeus / dor de tempo passado! / cento e vinte e um ducado / tinha em ducados meus / sem lhe falar um cornado. / Morador em Carrion / e mercador em Medina / casado com D. Dina / neta de Jacob Zarion / mestre-mor da cabala. / Agora que sou triste / e desgraado cristozeco / ando de botas rotas / seminu e esfarrapado / e mais triste do concelho. / E para mais desgraa / uma filha que eu tinha / pura e dcil / apanhou-ma por alcoviteira. / Vou pois ao juiz. 7 Bofa = pronncia rstica de com boa f. 8 Olho mau = mau olhado. 9 Abena = forma popular de a beno. 10 Janta = forma popular de jantar.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Leituras sobre o Diabo na Baixa Idade Mdia


Alinde Gadelha Khner

produo deste artigo pde ser realizada a partir de minha pesquisa individual vinculada ao projeto coletivo Hagiografia e Histria, coordenado pela Prof. Dra. Andria C. L. Frazo da Silva junto ao Programa de Estudos Medievais, Laboratrio do IFCS- UFRJ. Este projeto conta com seis eixos temticos: 1) o carter didtico e propagandista das hagiografias; 2) a divulgao de metas e projetos da Igreja Romana; 3) as construes sociais de gnero; 4) os centros de formao intelectual; 5) as prticas e as crenas da religiosidade e 6) o crescimento da espiritualidade leiga. O corte espaotemporal da pesquisa compreende as Pennsulas Ibrica e Itlica dos sculos XI ao XIII. O projeto coletivo completa, em 2005, cinco anos, e a minha entrada na equipe se deu em 2004, atravs de uma bolsa Balco, fornecida pelo CNPq. A tarefa delegada a mim foi o desenvolvimento de uma tipologia das hagiografias. Primeiramente precisei compreender o que uma hagiografia e como o termo foi elaborado. Este foi elaborado no sculo XVII - perodo em que foi fundada a sociedade dos bolandistas, dedicada ao estudo crtico das vidas dos santos (URIBE, 1999, p. 58) - e possui razes gregas (hagios = santo; grafia = escrita). As hagiografias, portanto, referem-se aos feitos ou a elementos relacionados aos cultos dos indivduos considerados santos. Esses indivduos podem ser mrtires, virgens, monges, pecadores arrependidos, eremitas, pregadores, reis, bispos... Os santos, enfim, so indivduos que, no seio da sociedade onde vivem, destacam-se por aes que os aproximam do Divino. Se os santos no tm uma identidade nica podem ser padres, reis e outros tipos acima listados, no de se esperar que as hagiografias sejam escritas de acordo com um modelo definido, nico. So encontrados muitos tipos de narrativas que tm como tema central os santos ou elementos relativos ao seu culto: vidas, martirolgios, martrios, transladaes, entre outros. Sabese que esses so alguns tipos, mas um problema persiste: a partir de que elementos comuns pode-se definir o que uma vida? E como pode-se definir quais so os elementos comuns aos martrios escritos no corte espaotemporal acima mencionado? Um estudo sistematizado ainda no foi realizado com o objetivo de respond-las.

Graduanda em Histria na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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LEITURAS SOBRE O DIABO NA BAIXA IDADE MDIA

Para tentar responder a estas perguntas, esto sendo lidos textos hagiogrficos e textos historiogrficos que tenham como objeto de estudo o gnero hagiogrfico. As narrativas de vidas de santos analisadas at o presente momento majoritariamente so designadas como martrios. A leitura destes textos possibilitou verificar a ocorrncia de embates entre os santos e a figura do Diabo tema a ser desenvolvido na monografia de final de curso, a ser escrita no prximo ano. Como parte da pesquisa da monografia, necessria uma reviso bibliogrfica sobre o tema do Diabo: o que a historiografia tem dito sobre o tema e este o objetivo do presente artigo. No se pretende fazer uma anlise exaustiva da produo historiogrfica que tem como tema o Diabo, pois isso seria praticamente impossvel. Alguns critrios, ento, foram adotados. O primeiro a ser apontado a respeitabilidade que o autor conquistou no meio acadmico. Este critrio pode parecer bvio, mas no caso especfico de um estudo sobre as construes histricas da imagem do Diabo esse aspecto tem que ser especialmente assinalado. Sendo o tema objeto de interesses no apenas acadmicos, mas tambm ocultistas e religiosos, h que se separar essas esferas. No se pretende aqui estudar as representaes do Diabo no sculo XX, ou afirmar ou no a sua existncia. O objetivo do presente trabalho outro e para a obteno do mesmo so necessrias leituras historiogrficas, as mais atualizadas possveis. As obras a serem aqui analisadas no so recentes o copyright mais atualizado de 2000 (MUCHEMBLED, 2001). No entanto, estes textos se configuram como referncias de recentes trabalhos acadmicos que tm o Inimigo como tema. Escolhidos os textos, restava outro critrio de seleo: quais captulos dos livros seriam analisados, j que apenas um dos textos um artigo. Sendo quatro os livros a serem analisados, havia ainda a questo: quais seriam os trechos importantes para a realizao da pesquisa para a monografia? A apresentao dos autores e a anlise dos textos esclarecero a importncia do segundo critrio adotado. Luther Link, o primeiro a ter o texto analisado, professor do departamento de literatura da Universidade Ayoama Gakuin, em Tquio. Seu livro, O Diabo: a mscara sem rosto, foi originalmente publicado em 1995, sendo a traduo brasileira de 1998. A obra analisa a iconografia medieval que tem o Diabo como tema. O perodo escolhido por Luther Link se estende do sculo IX ao XIV. Justifica a escolha de um perodo to longo afirmando que um estudo dessa amplitude se mostrou necessrio, diante da grande especificao dos focos encontrados nas monografias de Histria da Arte.(LINK, 1998, p. 13) O estudo de Link, como um todo, interessante. Dada a especificidade do seu projeto, porm, a seleo de trechos a serem analisados mostrou-se necessria. Para a realizao deste trabalho, foram escolhidos o prefcio, a introduo e o primeiro captulo. Os dois primeiros, por apresentarem a justificativa para tal investigao e os pressupostos terico metodolgicos, o primeiro captulo versa sobre a criao do conceito de Diabo por alguns dos mais influentes e/ou primeiros telogos da Igreja Catlica: Orgenes, Santo Agostinho, So Toms de Aquino. 181

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Para Link, o conhecimento do contexto de uma obra de arte fundamental para entend-la: estranhas interpretaes surgem, segundo o autor, se o contexto descartado numa anlise. Salienta, assim, a importncia das informaes extrnsecas ao objeto de arte para a compreenso do mesmo (LINK, 1998, p. 10). Para ele, no existe uma continuidade da imagem do Diabo ele no uma pessoa. Pode ter muitas mscaras, mas sua essncia uma mscara sem rosto (LINK, 1998, p. 20). O autor considera a pouca exatido de uma imagem do Inimigo fundamental para a Igreja: ele o intruso que no h interesse em definir exatamente, (LINK, 1998, p.21) tornando-o, assim, malevel s necessidades didticoapologticas de cada momento. Outra caracterstica das imagens medievais do Diabo a forma no-real e pessoal de representao do Diabo: a exceo se configura na escultura romnica de 1050 a 1130 (LINK, 1998, p. 20). A partir destas consideraes Link dedica um captulo de seu estudo aos pensamentos dos padres da Igreja dos sculos II ao V dedicando breves palavras tambm aos apologistas alexandrinos helenizados dos sculos III e II a.C. e a So Toms de Aquino. A insero dos primeiros no texto foi realizada para explicar a origem do termo demnio: interpretao do termo dimon platnico. Segundo esta exegese, os demnios so os perversos anjos cados, formulando-se, em conseqncia, a equao deuses pagos = demnios maus = diabos (LINK, 1998, p. 25) aproveitada pelos cristos poucos sculos depois. A teologia crist nunca foi uniformemente elaborada. As teorias elaboradas pela instituio posteriormente consolidada como Igreja Catlica foram em grande parte produzidas a partir do confronto entre interpretaes diferentes. Algumas dessas interpretaes so as teorias dualistas, segundo as quais o mundo um palco de luta entre dois princpios opostos, um Bom e outro Mau. Dois dos telogos mais influentes, Santo Agostinho e So Toms de Aquino, combateram com veemncia essas elaboraes tericas. Santo Agostinho, ao ler Isaas (14, 12) fundindo-o com a leitura do Apocalipse de Joo, formulou a interpretao de que Lcifer foi criado como um ser Bom, mas graas ao livre arbtrio pode escolher seguir o caminho pecaminoso, exegese que, entre outros propsitos, almejava eliminar a teologia dualista. O texto agora analisado um verbete que consta no Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval, organizado por Jacques Le Goff e JeanClaude Schmitt. No tendo disposio um longo espao para discorrer sobre o Diabo na Idade Mdia, Jrme Baschet dividiu a sua produo por temas, analisando brevemente cada um deles. Na introduo, Baschet apresenta os temas a serem explorados. Algumas afirmaes realizadas neste trecho devem ser destacadas. A primeira delas que a literatura apcrifa judaica foi importante para a formao crist da idia de Diabo, mas que a marca decisiva para a teologia crist foi o Novo Testamento (BASCHET, 2002, p.319). A seguir, o autor apresenta a hiptese de que a importncia do Inimigo cresceu de forma global ao longo da Idade Mdia. A sua suposio baseia-se na iconografia medieval com tema demonaco, que se desenvolveu principalmente a partir
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do sculo IX (BASCHET, 2002, p.319). Por fim, Baschet afirma que preciso relacionar a figura o Diabo com o conjunto das realidades sociais e polticas, em particular com os conflitos que agitam as sociedades medievais e nos quais o Diabo desempenha seu papel (BASCHET, 2002, p.320) Baschet fundamenta os seus argumentos a partir de trs fontes principais: textos literrios (religiosos, como hagiografias; ou profanos, como os fabliaux); obras de importantes telogos, como Santo Agostinho; e a iconografia com tema diablico ou com outros temas, mas que tenham o Diabo como personagem. Santo Agostinho, So Toms de Aquino e Pedro Lombardo so os telogos mais citados pelo autor. A concepo agostiniana da ao do Mal no mundo apresentada no tema O prncipe deste mundo, no qual discutida a hiptese de que a teoria de Santo Agostinho obteve ampla aceitao durante toda a Idade Mdia, logrando maior xito num primeiro perodo sua demarcao cronolgica imprecisa neste trecho. Segundo o Bispo de Hipona, o Diabo adquiriu direito sobre a humanidade no momento em que Ado e Eva cederam tentao. A Encarnao diminuiu o poder do Diabo sobre os homens, mas no o eliminou os pecadores continuaram sobre o seu arbtrio. Baschet diz, no seu verbete, que esse pessimismo atravessou dois momentos: o primeiro, em que alcanou maior aceitao e o segundo, em que esta teoria teve menor sucesso, teria sido mais sensvel aos poderes da Encarnao e reabilitao da Criao que aquela determina (BASCHET,2002,p.323). Uma das afirmaes de Toms de Aquino citadas no artigo de Baschet a sua contraposio s teologias dualistas, assunto j tratado neste artigo. Pedro Lombardo citado no tema Diabo e tormento da conscincia, no qual o autor afirma que quaisquer que sejam as discusses historiogrficas s quais pode dar lugar noo de indivduo, essa abordagem legitima-se pela crena de diabos pessoais(BASCHET, 2002, p. 327). Para cada homem, existiria um anjo da guarda e um diabo pessoal. Baschet, no tema Gestos humanos e poderes celestes: Diabo sob controle, desenvolve um assunto para ns muito importante: a contenda travada entre santos e demnios. Os santos so os que mais sofrem ataques do Diabo, e so as contendas mais intensas o Diabo homenageia, assim, a virtude deles e os prova (BASCHET, 2002, p.324). As lutas entre santos e demnios so formas de demonstrao do poder dos primeiros, alm de serem tambm exemplos. A proteo destes homens santificados mostra-se tambm pelas vitrias destes frente aos demnios. Sendo O Opositor das figuras positivas, modera a tendncia politesta do cristianismo medieval, reduzindo a multiplicidade das figuras unidade de um nico combate (BASCHET, 2002, 326). As outras figuras que combatem o Diabo apresentadas no texto so os anjos, a Virgem, Cristo, Deus e a Trindade. Outro autor a trabalhar a questo do embate entre santos e demnios o americano Jeffrey Burton Russel. Professor de Histria da Universidade da Califrnia, escreveu uma quadrilogia com o tema Diabo. Esta srie abrange a demonologia desde o perodo das pr-condies para o surgimento da teoria demonolgica crist (primeiro livro) at a demonologia desenvolvida na Idade 183

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Moderna (quarto livro). O texto aqui analisado o terceiro da quadrilogia, publicado originalmente em 1984, sendo a edio brasileira de 2003. Esta obra abrange o perodo compreendido entre os sculos VI e XIV. Neste trecho, analisaremos dois captulos: Folclore e Lcifer na Arte e na Literatura da Baixa Idade Mdia. Estas so as partes da obra em que Russel analisa assuntos correlatos s hagiografias, quando no as analisa diretamente. No prefcio do terceiro livro, Lcifer: o Diabo na Idade Mdia, Russel diz que a sua filosofia idealista: as idias so importantes em si e o contexto social no qual se levantam menos importante para o entendimento delas do que outra forma qualquer (RUSSEL, 2003, p.11). Defende seu argumento dizendo que as idias sobre o Diabo mudaram ao longo da Idade Mdia, mas no nos seus pontos principais. Para ele, essa pequena mutabilidade de pensamento se deu por conta da consistncia geral da teologia crist da Idade Mdia, a qual pode ser atribuda ao seu relativo isolamento cultural e segurana das novas idias ameaadoras (RUSSEL, 2003, p.12). No captulo Folclore, Russel primeiramente define folclore 1 e religio popular. 2 Para ele, o Diabo apresentado pelo folclore impotente, possivelmente como forma de aliviar a tenso em torno da figura do Maligno (RUSSEL, 2003, p.59). As definies folclricas nunca so to claramente desenvolvidas como as da teologia. A concepo folclrica de maldade no questiona a origem do Mal apenas aponta a sua existncia e as suas formas de se manifestar. A religio popular, por sua vez, apresentaria um Diabo amedrontador, j que os homilistas, atravs do exemplo, almejavam conduzir a populao para o bom caminho. Neste captulo, Russel utiliza como fontes as hagiografias e contos produzidos no perodo por ele destacado (sculos VI a XIV) obras principalmente inglesas e alems.3 As hagiografias, os sermes, etc, - o material por ele chamado de Cristianismo popular citado da mesma forma que as lendas profanas (Rumpelstiltskin, por exemplo), no dada a esta bibliografia uma ateno especial. Os textos so citados para exemplificar os diversos formatos assumidos pelo Diabo e as vrias formas dele agir sobre o mundo e, principalmente, sobre os humanos. Uma relao completa dessas figuras seria interessante, mas fugiria ao objetivo deste artigo. Arte e literatura seguiram, ao invs de conduzir, a teologia do Diabo. Contudo, elas aumentaram dramaticamente e fixaram certos pontos na tradio(RUSSEL, 2003, p.201). Russell inicia o oitavo captulo de sua obra (Lcifer na Arte e na Literatura da Baixa Idade Mdia) com essas duas frases, que apresentam a hiptese principal do captulo. No desenvolvimento do texto, o autor defende outra hiptese: a de que a literatura medieval seguia mais de perto as formulaes teolgicas do que hoje se chama de artes plsticas. A limitao das artes proporcionava esta realidade: como representar um diabo negro num pedao de marfim? Russel afirma que as representaes pictricas do Diabo, ao longo dos sculos, tornaram-se cada vez mais grotescas (o que parece confirmar a orao acima citada). Aps uma breve anlise da arte medieval, Russel discorre sobre a literatura. Os principais documentos utilizados so Os Contos de Canterbury,
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do Chaucer, a Divina Comdia, do Dante, e Piers Plowman, do William Langland. No ignora, contudo, as hagiografias. O autor defende a hiptese de que o Diabo, nas vidas dos santos, mais vvido do que o na produo teolgica da Baixa Idade Mdia. Para ele, os pastores (...) perceberam que aquelas histrias horrveis de fogo no inferno eram impedimentos efetivos para pecar (RUSSEL, 2003, p.206). Russel acredita que as aes dos santos permaneceram as mesmas atravs dos sculos. A concepo medieval de tempo, que tendia a perceber coisas como estticas ao invs de desenvolvidas atravs do tempo, seria a responsvel por tal imutabilidade: todos os tempos eram um na mente de Deus, e todas as coisas e indivduos na terra, manifestaes das idias eternas dele(RUSSEL, 2003, p. 205). Robert Muchembled, o ltimo autor a ter a obra analisada, professor de Histria da Universidade de Paris- XIII e especialista em Idade Moderna. O seu livro, Uma histria do Diabo: sculos XII-XX, foi originalmente publicado em 2000, tendo a edio brasileira chegado s livrarias em 2001. Muchembled, na introduo, diz que para o historiador o importante no a existncia ou no do Diabo, mas a crena na sua existncia. Para o autor, esta crena foi impulsionadora de aes coletivas e individuais. Para ele, o historiador tem p objetivo compreender o que move as sociedades e o que as faz se manterem agregadas (MUCHEMBLED, 2001, p. 8). Muchembled um dos historiadores que adotam o conceito imaginrio coletivo, assim definido por ele: fenmeno coletivo bastante real, produzido pelos mltiplos canais culturais que irrigam uma sociedade (MUCHEMBLED, 2001, p.9). Para Muchembled, a partir do perodo compreendido entre os sculos XII e XV que a teoria aterrorizadora eclesistica sobre o Diabo comea a surtir efeito sobre a populao. Segundo o autor, a imagem popular do Inimigo, at ento, era quase semelhante do homem. O demnio, portanto, podia ser ludibriado e vencido, tal como o homem. A bibliografia utilizada por Muchembled no captulo especfico sobre o perodo compreendido entre os sculos XII e XV basicamente historiogrfica, dado explicvel pela especializao do autor, que Idade Moderna. Os pressupostos terico-metodolgicos do autor so perceptveis ao longo de todo o captulo. Muitas das anlises de Muchembled j foram aqui apresentadas: dos trs autores acima analisados, dois integram a bibliografia bsica do primeiro captulo do Uma Histria do Diabo: Jrme Baschet e Jeffrey Burton Russell. Isso no quer dizer, contudo, que a obra do francs seja intil ao nosso estudo. Uma importante contribuio de Muchembled a sua hiptese sobre a questo da no-uniformidade da imagem do Diabo: para o autor, esta unificao no foi possvel porque o grande nmero de histrias e tradies diferentes em relao ao demonaco impediu a sua concretizao. Segundo Muchembled, a construo teolgica de Lcifer definiu-se muito rapidamente, sem acarretar conseqncias sociais ou culturais de maior amplitude (MUCHEMBLED, 2001, p.20). Esta proposio encontra-se ligada a uma outra, feita a respeito da teoria de Santo Agostinho: a de que a teologia por ele desenvolvida obteve penetrao entre os pensadores, mas chocou-se 185

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com prticas e crenas que obtinham maior penetrao na sociedade. Prticas essas que muitas vezes eram conhecidas e denunciadas pela Igreja, mas a sistematizao dessas denncias s se d a partir do sculo XII (MUCHEMBLED, 2001, p. 21). tambm nesse sculo que as afirmaes teolgicas sobre o Maligno comeam a ser melhor propagadas para a populao. Muchembled afirma que a arte romnica, juntamente com o crescimento das cidades, possibilitou esta disseminao. Diante dessa reviso bibliogrfica, fica ainda a pergunta: qual seria a nossa colaborao para a historiografia? Certamente, um posicionamento em relao s hipteses acima levantadas, um arranjo a ser realizado no momento da escrita da monografia, j com o documento s mos. Mas, a partir das leituras realizadas e dos resultados parciais da minha pesquisa individual (santos versus demnios), que, por sua vez, relaciona-se com a minha pesquisa vinculada ao projeto coletivo Hagiografia e Histria, ouso j algumas concluses iniciais. A primeira delas que a posio de Russell quanto no importncia do contexto para se entender uma idia complicada de se defender. Tendemos, pois, a estar de acordo com os demais autores, que consideram o contexto fundamental para se compreender de forma mais adequada uma determinada idia. Como exemplo deste argumento, pode ser pensado o caso de Santo Agostinho. No h dvidas de que foi um dos telogos mais importantes e influentes da demonologia. A cada momento em que as idias de Santo Agostinho eram reafirmadas por um telogo, a explicao para esta reafirmao certamente melhor encontrada no contexto do telogo em questo, e no em outra forma qualquer. Outro debate interessante a ser destacado a questo da continuidade ou no da imagem do Diabo. Neste ponto, Link e Muchembled apresentam idias opostas. Para Link, a Igreja tinha o dever de no definir exatamente a imagem do Diabo: esta indefinio o tornaria malevel s necessidades de cada momento num contexto, o Inimigo poder ser identificado com os hereges; no outro, com os protestantes. Para Muchembled, a Igreja precisava de uma definio exata, para que a identificao do Inimigo fosse mais imediata. Sua hiptese a de que o momento em que se conseguiu uma uniformidade satisfatria aos desejos da Igreja (fins da Idade Mdia, incio da Idade Moderna) foi o perodo em que as perseguies a todos que contradiziam princpios da Igreja foram mais sistematizadas. Por fim, as palavras desta historiografia aqui analisada sobre a contenda entre santos e demnios. Muchembled no fez consideraes utilizveis por ns, pela sua efemeridade. Link nem sequer as fez. Debrucemo-nos, portanto, no Baschet e no Russell. A afirmativa de Baschet a ser analisada de forma mais cuidadosa a de que o combate das diversas figuras benignas (santos, anjos, a Virgem, etc) com o Diabo modera a tendncia politesta do mundo medieval. Certamente esta hiptese da existncia de uma tendncia politesta a ser moderada deve ser problematizada. Outra hiptese a ser problematizada a de Russell, de que as aes dos santos permanecem as mesmas atravs dos sculos. Pelos resultados parciais de nossos estudos, podemos afirmar que tal
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afirmao complicada de ser realizada, pois o que temos constatado que no existe tal permanncia. Certamente, a futura anlise de um documento especfico possibilitar um posicionamento mais claro especialmente nas questes levantas sobre as relaes entre santos e demnios. As demais questes sero tambm trabalhadas, e outras ainda podero surgir. Este artigo uma demarcao de incio de jornada, muito ainda est para se percorrer.
Bibliografia BASCHET, Jrme. Diabo. In: LE GOFF, Jacques et SCHMITT, Jean-Claude.(Orgs). Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. So Paulo: Imprensa Oficial de So Paulo. Edusc, 2002. 2V. v.1. p. 319-331. LINK, Luther. O Diabo: a mscara sem rosto. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. MUCHEMBLED, Robert. Uma histria do diabo: sculos XII-XX. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001. RUSSEL, Jeffrey Burton. Lcifer: o Diabo na Idade Mdia. So Paulo: Madras, 2003. Notas 1 O folclore surge de um pr-consciente, no autoconsciente nvel de narrao ou prtica e deixa seus rastros em tradies orais que parecem ter sido registradas alguma vez no passado ou fixadas por estudantes modernos. O folclore faz sombra religio popular, mas o posterior mais autoconsciente, deliberado e coerente(Russell,p.59). Religio popular consiste nas convices e prticas das pessoas de simples ou nenhuma cultura, e aparece afetuosamente em literaturas de homilias, de sermes, de exempla (ou frmulas para sermes) de escritores como Gregrio, o Grande, Aelfric e Caesarius de Heisterbach. 2 A bibliografia por ele utilizada principalmente inglesa e alem, o que justifica em parte essa preferncia.

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O uso simblico dos animais na obra Antoniana


Jefferson Eduardo dos Santos Machado

1 Introduo o sculo XIII, a Igreja Romana passou por um momento de profunda ebulio, trazido pela contestao dos seus costumes, que se deu atravs de vrios movimentos herticos, entre eles os Ctaros,1 que se concentraram principalmente ao norte da Pennsula Itlica e ao sul do que chamamos hoje de Frana. Apesar de empregar a violncia, a pregao tambm foi uma arma usada pelos membros da instituio como forma de represso contra tais movimentos.2 Dentre os pregadores, Antnio de Lisboa/Pdua, frade portugus que j era sacerdote ordenado entre os cnegos regrantes de Santo Agostinho, mas que reconheceu o ideal de agostinho sendo vivido com maior intensidade dentro do iderio dos frades menores, destacou-se. Alm de exmio pregador, este frade foi nomeado o primeiro mestre de teologia da Ordem Franciscana. Por isso ele escreveu uma obra que tinha como principal objetivo a preparao dos frades para o ofcio da pregao. Esta obra, intitulada Sermes, apresenta diversas alegorias, sobretudo elementos provenientes dos bestirios medievais. Os bestirios eram muito comuns na Idade Mdia e faziam a associao de animais, como metforas e smbolos, aos princpios dogmticos e morais. Segundo Nilda Guglielmi, una obra pseudocientfica moralizante sobre animales existentes y fantasiosos (AYERRA & GUGLIELMI, 1971, 7). Um dos mais antigos bestirios o Fisilogo, compilao de pseudocincia, no qual so utilizadas descries de animais, aves e at pedras, reais e imaginrios, para ilustrar aspectos do dogma e da moral crists, como, por exemplo, o peixe e o cordeiro como smbolos de Cristo. Em nosso trabalho, adotamos a categoria smbolo dada por Jean Chavalier e Alan Gheerbrant:

todo objeto pode revestir-se de valor simblico, seja ele natural ou abstrato (...), o smbolo no seguramente nem uma alegoria nem um mero smbolo, mas sim uma imagem apropriada para designar, da melhor maneira possvel, a natureza obscuramente pressentida do Mestrando do Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 188

O USO SIMBLICO DOS ANIMAIS NA OBRA ANTONIANA Esprito. Temos que ter em mente que este smbolo possui mais que um sentido artificialmente dado, detendo o essencial e espontneo poder de ressonncia. (...) O Smbolo vai alm de um simples signo ou sinal. Ultrapassa o significado e depende da interpretao que, por sua vez, esta ligada diretamente a predisposio de quem o interpreta ( CHAVALIER & GHEERBRANT, 1992, XXI - XXV).

A partir de um levantamento quantitativo, que apresentamos abaixo, verificamos que Antnio se utiliza abundantemente de imagens provenientes do mundo animal. So 99 animais, reais ou imaginrios, utilizados para apresentar seus ensinamentos. Destes, o elefante um dos animais mais citados na obra Sermes. Desta feita, nas linhas que seguem abaixo, estaremos trabalhando com a simbologia criada em torno do elefante por frei Antnio em sua obra. A tabela est no final do artigo. Para esta nossa anlise estaremos utilizando a verso bilinge latim/ portugus dos Sermes traduzida e organizada por Henrique Pinto Rema, e utilizaremos, a fim de podermos observar a viso medieval sobre o elefante como smbolo, a obra Bestirio Medieval, uma coletnea de trechos de bestirios medievais, que foi compilada e traduzido para o espanhol por Ignacio Malaxecheverria. 2 O Elefante nos bestirios medievais Como informamos acima, optamos por utilizar a obra de Ignacio Malaxecheverria, porque rene, para cada animal que figuravam nos bestirios medievais duas ou mais transcries de escritos medievais diferentes. Segundo o editor de Obras Completas (REMA, 1987) Antnio de Lisboa/ Pdua, ao falar sobre os elefantes baseia-se na obra Polyhistor de Solino. Como Malaxecheverria informa que o Bestirio de Cambridge alm de ser uma amplificao do Fisilogo grego segue as obras de Solino, Santo Ambrsio e Isidoro de Sevilha. Desta feita, iremos trabalhar somente com a descrio das caractersticas dos elefantes constantes na obra latina em prosa conservada na Biblioteca Universitria de Cambridge, para podermos observar coincidncias entre o bestirio e a obra antoniana inclusive na ordem como as caractersticas dadas ao animal so expostas em ambas. Para o Bestirio de Cambridge, o elefante um animal que representa o bem o que o coloca sempre em oposio ao drago que segundo Chevalier e Gheerbrant o smbolo demonaco, e desta forma identifica-se com a serpente como se pode ver no prprio texto (CHAVALIER & GHEERBRANT, 1992, 349). Assim, segundo tal obra, quando a elefanta esta no momento de parir, entra em um lago enquanto,
el padre la vigila mientras est dando a luz, ya que existe un dragn que es enemigo de los elefantes. Adems, si llega a pasar una serpiente, el padre la mata y la pisotea. El elefante tambin es temible para os toros... y sin embargo, los ratones le asustan (Apud MALAXECHEVERRIA, 1986, p. 3-5).

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Outra fundamental caracterstica dos elefantes constantes no Bestirio medieval a castidade3 pois, Nunca discutem a propsito de suas hembras, pues no conocem el adulterio (Apud Malaxecheverria, 1986, 3-5). O bestirio afirma ainda que tal animal carece de deseo de copular o que o coloca como aquele que no praticar a luxuria (Apud Malaxecheverria, 1986, 3-5). Para o bestirio os elefantes tem dificuldade de levantar-se quando caem, por no possurem articulaes nos joelhos, por isso dormiam em p encostados em rvores. Porm quando caiam eram levantados por um elefante menor que por ser importante dentro da manada, apesar de ser menor, nunca era atingido pelas coisas malignas (Apud Malaxecheverria, 1986, 3-5). A obra ainda afirma que os elefantes so to doces, bondosos, protetores, companheiros e fraternos que no so capazes de abandonar qualquer um que precise de ajuda.(Apud Malaxecheverria, 1986, 3-5) 3- O Elefante no Sermonrio Antoniano Em quantos sermes os elefantes figuram? A que elementos doutrinrios e morais eles so associados? Na obra os Sermes, encontramos referncia aos elefantes em quatorze citaes. Todas as referncias so positivas e ilustram aspectos que, na perspectiva de Antnio, so fundamentais na vida dos clrigos e dos fiis leigos. Passamos a apresent-los:
3.1- Fraternidade

No Sermo do Domingo de Pscoa, encontramos: Diz-se que os elefantes, quando travam conflito, tomam grande cuidado dos feridos, pois recebem no meio da manada os cansados e feridos. Recebe tambm tu no meio da tua caridade o prximo cansado e ferido.... Ao fazer meno ao elefante neste trecho, o frade conclama aos cristos, principalmente aos religiosos a serem bondosos, companheiros e caridosos. Pois estes nunca devem deixar os irmos mais fracos e debilitados para trs, condicionando assim a melhora e o descanso destes, espiritualmente doentes e cansados, pela aceitao que estes obtero da comunidade crist.
3.2- Mansido

No Sermo do Quinto Domingo Depois de Pentecostes, Antnio passa a pregar sobre a mansido ao usar as caractersticas que os Bestirios medievais citam quando falam dos elefantes. Para ele,
Semelhantemente os justos so bons e clementes. Trazem, de facto, ao caminho o transviado; aos rebanhos, isto , aos simples, abrem caminhos com a branda e pacfica mo das obras. Atravs deles caminham ilesos; fazem-se guias dos outros pelo seu exemplo e palavra, dispostos a atravessar o rio desta vida rumo a ptria, pe os mais pequenos frente, porque se compadecem, cheios de misericrdia, dos principiantes, que ainda no alcanaram a robustez da santidade....

Podemos observar que sua preocupao girava em torno do


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O USO SIMBLICO DOS ANIMAIS NA OBRA ANTONIANA

convencimento e do acolhimento, daqueles que, por algum motivo, estavam desviados dos rebanhos, no caso, a Instituio Romana. Assim como os elefantes, os membros da Igreja deviam unir-se no caminho da salvao e no se separar em faces e, nesta travessia, as obras, isto , o gesto concreto e a vivncia eram fundamentais. Na perspectiva de Antnio a Igreja precisava mudar, vivendo realmente o que as escrituras pregavam para deixar de ser alvo de crticas dos hereges. Para Antnio, ao utilizarem a mansido para abrir os coraes dos fiis, s suas mensagens, os religiosos iriam convert-los muito mais facilmente.
3.3- Castidade

Assim como o IV Conclio de Latro, Frei Antnio favorvel castidade dos religiosos, que juntamente com a fidelidade matrimonial dos fiis, so para ele importantssimas para o controle da luxria assunto constante de sua pregao.
Acerca da Igreja, entende-se ser ela o trono de Salomo, onde o nosso pacfico reinante se distingue a executar os seus juzos. Com razo se recorda ter sido ele feito de marfim, porque o elefante, a que pertencem estes ossos, pelos sensos avulta entre os quadrpedes. Une-se com temperana fmea e no usa segunda companheira. Isto adapta-se aos pudicos, que pela castidade seguem os preceitos de Cristo. 3.4- Resistncia/firmeza

Agora o fundamental para se entender o papel simblico do elefante na pregao antoniana, o seu carter de resistncia ao mal. Desta Forma, para o frei, ele exemplifica o modelo ideal de fiel e sacerdote, que luta contra o drago/serpente, que nos bestirios medievais ocupam o lugar do demnio. Nesta simbologia eles so sempre inimigos. Uma vez que o drago estava sempre espreita do elefante a fim de desestabiliz-lo.4 Assim como o elefante, o cristo tinha que ser estvel e no cair nas tentaes do demnio, se tornando luxurioso e egosta.
No timo latino, marfim quer dizer elefante. Deve notar-se que entre os elefantes e drages h discrdia contnua. As ciladas preparam-se com a seguinte astcia. As serpentes5ocultam-se junto as veredas, atravs das quais os elefantes costumam vaguear. Deixando passar os da frente, com tal mpeto se lanam aos de trs que os da frente no podem prestar-lhe auxlio. Ligam depois primeiro as patas com ns, a fim de laqueados os joelhos os impeam de andar. Os elefantes, porm, encostam-se s arvores ou aos penedos, para matar as cobras, esmagadas com o peso enorme.

4 Concluso Antnio conhecia, ou possua um exemplar de algum dos muitos bestirios que foram produzidos na Idade mdia, uma cpia da obra Polyhistor de Solino, ou, talvez, o senso comum medieval j havia absorvido estes smbolos, 191

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

que eram usados para expressar-se diante das situaes cotidianas. A partir do emprego de vrios smbolos provenientes do universo animal, o frade portugus buscou combater eficazmente aos males que haviam se instalado no interior da Igreja Romana. Utilizando elementos que faziam parte do imaginrio medieval, ele procurou motivar e sensibilizar aqueles que estavam cometendo deslizes, em relao ao cumprimento do itinerrio evanglico proposto pela instituio. Para ns, o bestirio medieval foi ferramenta fundamental na construo dos Sermes, mesmo que o autor tenha modificado alguns conceitos simblicos. A partir do modelo j construdo pelo imaginrio medieval, Antnio, alm de usar os significados j existentes, vai construir novos significados a fim de conseguir seus objetivo de mestre de teologia e de pregador. Em nossa comunicao ficou bem claro que o smbolo vai alm de qualquer significado j proposto, ele mutvel e pode ser criado a partir das experincias e bagagem de cada grupo social, ou instituio em particular. O que queremos dizer, que apesar de em alguns momentos as caractersticas de determinados smbolos coincidirem em todos os sentidos, pode ser que algum grupo, povo ou instituio encontre no mesmo objeto uma simbologia diferente, para expressar o que sente.
Bibliografia AYERRA, M e GLUGLELMI, N.(Org.) Fisilogo, El Bestirio Medieval. Burnos Aires: EUDUBA, 1971 CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de Smbolos. Rio de Janeiro: Jos Olympo,1992. MACHADO, Jefferson E. dos S. A construo do modelo do Religioso Ideal no discurso de Antnio de Lisboa/Pdua em sua obra Sermes. In: COSTA, Sandro da; SILVA, Andria Cristina Lopes Frazo da e SILVA, Leila Rodrigues da. (Org.) Tradio Monstica e Franciscana. Rio de Janeiro: PEM/ITF, 2003. ____. Antnio de Pdua : um franciscano. In: SILVA, Andria Cristina Lopes Frazo da e SILVA, Leila Rodrigues da. (Orgs.) Semana de Estudos Medievais, 4, maio de 2001, Atas... Rio de Janeiro: PEM/UFRJ, 2001. MALAXECHEVERRIA, Ignacio. Bestirio Medieval. Madrid: Siruela, 1986. REMA, Henrique Pinto. (Org.) Santo Antnio de Lisboa: Obras Completas. Porto: Lello e Irmo, 1997. v-1, v-2. Notas 1 Os ctaros ou albigenses, conhecidos assim por ter sido a cidade de Albi o centro de irradiao desta heresia, tinham como principal linha de pensamento a idia de que tudo o que material e terreno corrompido para o mal, porque tudo isso havia sido criado por um mau antideus. Para o catarismo, ao contrrio dos valdenses, o ideal de pobreza no voluntrio; na verdade, acreditavam que todo o material era diablico, sem distino. Como exemplo desta rejeio ao material, negavam os sacramentos, porque estes estavam unidos a coisas materiais como po, vinho, leo, etc. 2 Face a este crescimento dos ctaros, a Igreja patrocinou a chamada Cruzada Espiritual contra a heresia, na qual se destacaram pregadores como Bernardo de Clairvaux e Domingos de Gusmo. Contudo, com o fracasso de tal empreitada, iniciou-se, em 1208, uma cruzada militar contra tal grupo hertico. Entre 1220 e 1226, 192

O USO SIMBLICO DOS ANIMAIS NA OBRA ANTONIANA houve um momento de trgua da cruzada de cunho militar contra os albigenses. Antnio, assim como outros franciscanos do perodo, aproveitou o momento para implementar uma tentativa de converso dos hereges atravs da palavra, usando esta ferramenta como alternativa de persuaso, ante a violncia que estava sendo empregada at o momento. 3 Segundo o Dicionrio de Smbolos, de Jean Chavalier e Alan Gheerbrant, o elefante simboliza a castidade, se verdade que, segundo Aristteles, enquanto a fmea do elefante est prenhe (dois anos), esse animal no se aproxima dela e nem cobre nenhuma outra fmea e que ele seria at mesmo o vingador do adultrio. (Chavalier-Cheerbrant, 1982, 359) 4 Segundo o mesmo dicionrio, o elefante smbolo de estabilidade e imutabilidade. Op. Cit. 5 Tanto serpente termo como o vocbulo cobra so usados para nomear o drago no bestirio medieval.
Animais Asno Baleia Burro Cabra Cabrito Co Carneiro Camelo Castor Cavalo Coelho Cora Delfim Doninha gua Elefante Gato Gazela Hiena Jumento Leo Lebre Leopardo L b N de citaes 7 1 1 3 4 2 2 3 3 3 1 5 1 1 1 14 1 4 4 9 15 1 5 6 Viso positiva 1 2 2 3 3 5 1 1 1 14 4 5 4 1 Viso ne 7 1 1 4 2 2 1 1 1 4 4 11 5 6

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS


Macaco Morcego nagro Ourio-cacheiro Ovelha Pantera Porco Raposa Rato Rinoceronte Tigre Toupeira Urso Vaca Veado Aves Abutre guia Andorinha Ave de rapina Ave domstica Avestruz Calhandra Capo Caves (nctuas corujas) 2 5 6 4 11 2 1 1 4 5 1 4 9 1 8 4 5 15 5 2 1 10 1 1 2 1 11 2 1 4 4 13 2 1 4 1 1 1 5 6 4 1 1 4 4 1 4 9 1 4 5 2 3 2 6 2

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O USO SIMBLICO DOS ANIMAIS NA OBRA ANTONIANA


Perdiz Pomba Rola spide Basilsco Camaleo Cobra (serpente) Crocodilo Drago Salamandra Serpente Vbora Peixes Abelha Alec Aranha Conchas Escaravelho Escorpio Estelio Gafanhoto Mosca Mirmeleo Pulga R 1 10 7 2 4 2 10 2 7 3 7 2 6 38 2 10 1 3 2 1 3 4 1 1 4 10 7 2 10 2 5 35 2 2 1 1 2 4 2 7 1 7 2 1 3 10 1 1 2 1 2 4 1 1 4

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

De Londres Nottingham e dos burgos Magna Carta


Uma breve triangulao jurdico / fiscal / institucional
Ricardo Mariani

s documentos a serem analisados neste trabalho, do conta de mostrar especificamente duas facetas do panorama ingls dos sculos XII, XIII, considerando aqui duas problemticas base: a questo fiscal da Inglaterra da baixa idade mdia e a questo da representatividade inglesa. Sero utilizadas cartas de liberdade concedidas durante o sculo XII, mais especificamente a carta de Londres de 1131 concedida por Henrique I, originalmente em latim e a carta de liberdade concedida em 1157 cidade de Nottingham, por seu neto Henrique II, tendo tambm o latim como linguagem original. Em ambas as cartas h essencialmente a entrega de concesses que se perpetuam, influenciando diretamente a dinmica de arrecadao de impostos em todo o domnio (i.e: Inglaterra, Normandia), j que exemplo destas, muitas outras cartas seriam diretamente passadas burgos dos senhores da Inglaterra e Normandia. Alm desses dois documentos, utilizamos o texto da magna carta, de 1215, que consta de 63 artigos distintos, redigida durante o reinado do Rei Joo, quase um sculo depois dos dois primeiros documentos. importante comear colocando em pauta as particularidades da organizao administrativo / jurdica inglesa. Tm-se, na Inglaterra, uma organizao derivada no do imprio carolngio como acontece nos reinos do continente, mas sim , uma organizao que parece provir de uma linha baseada nos antigos folk moots germnicos. O que se prope ento um esquema comparativo. As monarquias do continente consistem basicamente de monarquias feudatrias. Encontra-se nas mesmas, o vnculo de feudalidade como alicerce das estruturas do reino (i.e O reino no possui necessariamente fronteiras internas). No esquema ingls, todavia, h toda uma subdiviso feita em shires e hundred courts1 e com base neste tipo de organizao, exclui-se o Reino da Inglaterra do bloco das monarquias feudatrias como estas se propem, pois este esquema anglo-saxo permaneceria como unidade de diviso do reino mesmo aps a conquista de Guilherme I, acrescido do modelo prprio de governo executado pelos senhores da Normandia. Este tipo de diviso implica numa dinmica de controle toda prpria
* Graduando em Histria na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. 196

DE LONDRES NOTTINGHAM E DOS BURGOS MAGNA CARTA

da estrutura plantageneta inglesa. A dinmica dos condados2 exemplificada aqui por Bernard Guene:
Nessas cortes renem-se, em princpio, todos os homens livres. Estes esto, portanto, estreitamente associados vida judiciria e administrativa do condado, alis completamente dominada pela personalidade e atividade do oficial real que recebe o nome de bailio do condado, ou seja, shirereeve ou sheriff. (GUENE, Bernard, 1981, p. 152).

durante o perodo em que se compreendem os documentos aqui utilizados que os Xerifes tm seu auge e seu declnio como agentes da monarquia Inglesa. Esta preponderncia dos Shirereeves parece ser bloqueada gradativamente durante o processo jurdico/ institucional ingls por fatores diretos de liberdades outorgadas, no caso dos burgos, e na esfera maior do condado , por fatores institucionais como por exemplo os eyres de Henrique II , nos quais os juizes vindos de Westminster presidem as sesses da corte do condado no lugar do Xerife. Na Carta de Liberdade da cidade de Londres, concedida em 1131, a delegao do Sheriff aparece como benefcio dado aos habitantes, com efeito:
Os cidados podem apontar como sheriff quem quer que eles desejem dentre eles, e como juiz quem quer que eles desejem dentre eles, para se encarregar de peties da coroa e supervisionar suas condutas.

Corroborando com os dizeres de Guene, que afirma o auge desta estrutura no incio do sculo XII e o inicio de seu declnio j na segunda metade deste mesmo sculo, a apario do sheriff na Carta de Liberdade de Nottingham, concedida em 1157, se limita s saudaes iniciais:
Henrique, Rei da Inglaterra, Duque da Normandia e Aquitania, Conde de Anjou, aos seus arcebispos, bispos, condes, bares, justicares (ou seja, os encarregados da distribuio da justia), xerifes, oficiais e todos seus vassalos leais em toda a Inglaterra, Franceses e Ingleses, saudaes.

As influncias das cartas de liberdade, de uma maneira geral, atingem esferas fiscalistas diretamente jurdicas, alm de institucionais. A carta de Nottingham (1157), apresenta uma preocupao clara em relao s feiras realizadas, o direito coleta de pedgios e ao monoplio da produo de roupas tingidas como observado logo no inicio de seu corpo textual3, e em:
...nem ningum deve manufaturar roupa tingida dentro de um raio de 10 lguas de Nottingham e continua: se qualquer um, seja qual for seu lugar de origem , habitar o burgo de Nottingham por um ano e um dia, durante um tempo de paz sem que ningum o tome como vassalo.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Ningum dever ter qualquer direito de vassalagem sobre ele, depois disto, exceto o Rei...

A manuteno de tais direitos tem efeitos diretos na questo da arrecadao, j que as taxaes concernentes pedgio saem da esfera de monoplio senhorial, sendo concedidas aos prprios burgos. Essa passagem fundamental do direito de arrecadao faz com que a dinmica fiscalista seja aos poucos descentralizada e, observe, redimensionada no caso de Nottingham por intermdio das feiras. mostrado no segundo trecho citado, uma preocupao com novos ocupantes, e o estabelecimento de possveis vassalagens, provavelmente atrados pelo mercado de Nottingham. Leva-se em conta nesta observao, o aumento das atividades mercantis durante o sculo XI e em diante. Fica claro no trecho a seguir a atuao fiscal em relao aos novos burgueses4:
Quem quer que seja, que residir no Burgo, no importa sobre que honorrios esteja, deve contribuir com os burgueses para tallagens e para pagar as dvidas do burgo. Ademais, todos aqueles que vierem ao mercado de Nottingham entre a tarde de sexta e a tarde de sbado no devem ser sujeitos arresto (i.e. apreenso de bens), exceto para pagamento concernente The Kings farm.

A Kings Farm era a soma de um montante pr determinado para taxao anual, ainda que pagamentos pudessem ser feitos em parcelas, baseado em uma estimativa do valor das rendas. Apesar das liberdades dadas aos burgos pelas cartas, uma parte substancial da arrecadao fiscal ainda assegurada. Mesmo quando a cobrana da Taille torna-se mais difcil, identificamos a troca da mesma por uma quantia fixa anual. Com efeito o que ocorre a diminuio das arrecadaes com valores arbitrrios sobre mercadorias do burgo, ou seja: a responsabilidade da arrecadao de fundos passa para o prprio. Quebra-se o monoplio, mas preserva-se a arrecadao. O tipo de paradigma gerado por esta nova dinmica, claramente teria alcance maior que as arrecadaes. A questo representativa tambm deriva do desenvolvimento desta quebra. Caminhando para este lado da questo, importante citar que h uma ligao fundamental entre a carta de liberdade Londrina e a Magna Carta, que faz com que se torne indispensvel o uso da primeira para anlise das bases que fundamentariam a segunda alm de todas as outras cartas essencialmente. muito comum em outras cartas de liberdade, citar as isenes de impostos como sendo anlogas s londrinas.5 i.e. Oxford: And they may have all other customs, liberties, and laws which the community and citizens of London have. Seguem ento, trechos da Carta de Londres de 1131.
Henrique, pela graa de Deus, Rei da Inglaterra e Duque da Normandia...Saiba que eu outorguei aos meus habitantes de Londres, para si mesmos e seus sucessores, que eles possam possuir o xerifado de Londres e Middlesex de mim e de meus sucessores, por uma farm 198

DE LONDRES NOTTINGHAM E DOS BURGOS MAGNA CARTA de 300 totais., continuando: ...Os cidados no devero pleitear alm das muralhas da cidade em qualquer petio. Segue-se ento uma liberao de impostos como scot and lot e Danegeld.

Analisando por pontos, temos primeiro a liberao dos direitos condio do pagamento da Farm, no exemplo de Londres. No uma mudana to simples quanto pareceu ser na curta anlise da carta de Nottingham acima. Informaes importantssimas podem ser encontradas nas outras sentenas. Refiro me aqui : restries s peties reais e liberao de scot and lot. Primeiramente, importante perceber que o imposto citado no somente uma taxao ordinria. Significa principalmente ter uma parcela das obrigaes e responsabilidades de um membro da comunidade e em retorno, compartilhar de privilgios comunais. Alguns historiadores conectaram o status de estar at scot and lot com deteno de propriedade. Isto, no era um pr-requisito (apesar de em algumas cidades isto se tornar mais tarde um pr-requisito para cidadania), mas tornou-se uma preocupao natural que membros da comunidade tivessem propriedades das quais eles pudessem ser destitudos se eles falhassem em pagar suas contribuies. Nota-se que este tipo de pensamento comunal se liga diretamente s liberdades adquiridas pelos burgos atravs das cartas de liberdade. Isto parece reflexo direto da cobrana da Taille ou de sua substituio por uma anloga taxao anual e tambm do pagamento da Kings farm que so taxaes das quais os burgos no se isentam apesar de todas as outras liberaes fiscais. Alm deste detalhe, as peties londrinas so restritas ao mbito do prprio burgo, mudando a dinmica jurdica inglesa. pelo vis desta modificao jurdica que pode-se chegar um incio dos fundamentos de representao inglesa. Este tipo de ao encontrada na carta de Londres , gera a necessidade de eleger pessoas para responder soluo de peties. A essncia do jurdico no era, todavia, a de que ...certos homens deveriam ser eleitos para representar outros, mas sim, a de que algumas pessoas eram colocadas cargo de dar respostas exatas s questes 6 e de serem responsabilizados juridicamente. Isto faz pensar ento atravs de que sentido, alm do jurdico / fiscal, as liberdades estariam ligadas um surgimento do sistema representativo. Estas indagaes nos levam ao um ltimo documento: a Magna Carta. Neste ltimo documento, pode-se observar uma conjuno das questes analisadas em separadas cartas deste trabalho. A Magna Carta uma juno dos vrios direitos distribudos aos burgos durante o sculo XII, e vrios dos seus artigos atendem questes semelhantes. Um dos artigos em questo, probe o levantamento de ditos subsdios (Aids) em todo o reino, sem consentimento geral, exceo de que seja para ...resgate de nossos pares, para tornar nosso filho mais velho um cavaleiro, e, uma vez, para casar nossa filha mais velha...7 O artigo a seguir trata especificamente dos termos em que tal consentimento deve ser efetuado:
Para obter consentimento geral do reino para a tributao de um subsdio (aid)...ns faremos com que os arcebispos, bispos, abades, condes e

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS bares maiores sejam convocados individualmente por carta. Para aqueles que mantm terras diretamente de ns, ns faremos com que convocaes gerais sejam emitidas, atravs dos xerifes e outros oficiais, para se reunirem em um dia fixado ( do qual ao menos um aviso de quarenta dias deve ser dado) e em um lugar fixado. Em todas as cartas de convocao, o motivo das convocaes ser declarado. Quando uma convocao tiver sido emitida, os negcios prescritos para o dia devem proceder de acordo com a resoluo dos presentes, mesmo se nem todos os que foram convocados tiverem comparecido.8

Coloca-se ento, basicamente nesses dois artigos, a questo da representatividade das taxas. possvel observar um carter de mudana que vai aos poucos gerando mecanismos de autogoverno no burgo, culminando em um direito tal que as taxaes passam a ser altamente restritas um consentimento geral, atravs de um sistema que exige a representatividade. Este sistema passa a ser essencialmente praticado nas reas institucionais, pois assim como neste artigo, tratando de fiscalismo, outros dentro da Magna Carta trazem esta caracterstica; vestgio de um futuro direito processual. Um dos artigos capitais de firmao deste sistema o artigo de nmero 62, que trata do esquema de cobrana e policiamento da prpria realeza inglesa:
...ns fizemos todas estas concesses acima mencionadas, desejando que elas gozem de perptua, contnua e slida estabilidade. Ns fazemos e outorgamos elas a seguinte segurana: que o baro, nominalmente, deve eleger em sua defesa vinte e cinco bares do reino, que devem, com toda sua fora, observar, manter e fazer com que sejam observados, a paz e os privilgios que ns outorgamos eles e confirmamos nesta presente carta.

O que se pode perceber ento, a transio de uma representatividade pratica surgida das necessidades diretas dos burgos de se auto regularem em relao suas peties e a coleta de suas taxas. As peties esto limitadas, em muitas cartas de liberdade, ao mbito da cidade. As taxaes por sua vez, se tornaram coletivas, levando o burgo, grosso modo, aproximao de um sistema comunal, quanto ao pagamento de subsdios reais e seu afastamento em relao ao poder senhorial, conforme indicamos no artigo de nmero 40: A ningum venderemos; a ningum negaremos ou protelaremos; direito ou justia. Identificamos um movimento realizado a partir de mudanas comerciais que ocorreram no sculo XI, pois vrias das novas situaes fiscais so geradas pelo surgimento do mercador e de seu papel no comrcio das feiras. Em suma, o mercador errante traz a necessidade de novas regulamentaes, conforme observado no 41 artigo:
Todos os mercadores devem com segurana ir e vir, demorar-se e cruzar a Inglaterra, seja por terra ou por gua, com o propsito de comprar e vender, livres de todas as taxas vis, sujeitos aos direitos e 200

DE LONDRES NOTTINGHAM E DOS BURGOS MAGNA CARTA costumes antigos; exceto em tempos de guerra e se estes forem do reino contra o qual guerra travamos. Se estiverem em nossas terras no incio da guerra, estes devem ser mantidos sem dano seus corpos e seus bens at que seja de conhecimento nosso ou de nosso chefe justicar, como os mercadores de nossa terra, que estaro no momento presentes no mesmo reino, sero tratados. Se os nossos estiverem seguros l, os outros estaro salvos em nossas terras.

Assim esta legislao criou a proteo jurdica do corpo do mercador e de sua mercadoria; a proteo fiscal, pois no taxava abusivamente; e a proteo institucional, porque dada como direito positivo, respeitado pelo rei e pela cidade.
Bibliografia GUENE, Bernard. O Ocidente nos sculos XIV e XV: Os Estados. So Paulo: Pioneira, 1924. LEGOFF, Jacques. O Apogeu da cidade medieval. So Paulo: Martins Fontes, 1992. PIRENNE, Henry. As Cidades na Idade Mdia. Lisboa: Europa Amrica, 1922. LEGOFF, Jacques. Para um novo conceito de idade Mdia. Lisboa: Presena, 1992. GREEN, V. H. H. The Later Plantagenets. London: Edward Arnold LTD,1990. MOSCA, Gaetano e BOUTHOUL, Gaston. Histria das Doutrinas Polticas desde a Antiguidade. Rio de Janeiro: Zahar,1994. STEPHENSON, Carl. Mediaeval Instituitions Selected Essays. New York: Cornell University Press, 1990. CANTOR, Norman F. The Civilization of the middle ages. New York: Harper Perennial, 2002. Notas Condados e Centenas. 2 Countys aps a ascenso normanda apesar dos nomes terem sidos mantidos. A exemplo : Nottinghamshire, Derbyshire dentre outros. 3 Em uma reiterao aos direitos concedidos por Henry I: Know that I have granted, and by this charter confirm, to the burgesses of Nottingham all those free customs which they had in the time of my grandfather, King Henry. Which is to say: tol and theam; infangenetheof; and the collection of tolls as fully as in the borough of Nottingham from Thrumpton as far as Newark, including on all [goods] crossing the Trent, and on the other side of the watercourse beyond Rempston as far as the water of Retford in the north. 4 Nota: A palavra Burgueses utilizada no texto simplesmente para caracterizar habitantes do Burgo. 5 i.e. Oxford: And they may have all other customs, liberties, and laws which the community and citizens of London have. 6 ...certain men were elected to represent others, but merely that certain men were puto n na oath to give true answers to questions. (STEPHENSON, 1990) 7 12 artigo do documento citado. 8 14 artigo do documento citado.
1

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

A condio jurdica da mulher na Castela do sculo XIII: o casamento e o ideal da boa esposa
Rosiane Graa Rigas Martins

Introduo histria das mulheres na Idade Mdia foi, por muito tempo, deixada de lado pelos historiadores. Por isso, desconhecemos em grande parte a verdadeira realidade da mulher dessa poca, cuja situao amplamente variada e oscila segundo a sua condio social, seu mbito cultural e sua etnia. H pouca explorao do tema a condio jurdica feminina nos fueros , nos estudos que tratam do processo de unificao do reino castelhano-leons, razo pela qual nos propomos a estudar a condio jurdica da mulher nesse contexto, considerando tal estudo vlido na medida em que servir como mais uma contribuio para a anlise do universo urbano peninsular, ainda pouco explorado. Esta comunicao visa apresentar em linhas gerais as perspectivas do projeto de pesquisa (PIBIC UGF), intitulado A condio jurdica dos grupos urbanos na Castela do sculo XIII, orientado pela Prof. Ms. Marta Silveira Bejder, no Centro de Cincias Sociais, Humanas e Artes da Universidade Gama Filho. Caracterizada, ao longo da Idade Mdia, por uma grande diversidade populacional, a Pennsula Ibrica era um espao de pluralidade tnica e cultural criando uma realidade urbana extremamente diversificada, tanto nos aspectos culturais, como sociais, econmicos e polticos. Cristos, judeus e muulmanos eram elementos que convergiam entre si, na paz ou na guerra, sendo dotados de vida prpria e conservando os seus costumes, a sua lngua, e seus elementos culturais. Durante o sculo XII houve, em toda a Europa, um crescimento demogrfico contnuo e as cidades castelhanas, bem como as do restante da Europa foram alvo de um grande desenvolvimento urbano. A partir do sc XI, a Reconquista dos territrios que estavam sob domnio dos muulmanos por parte dos reinos cristos, gerou a necessidade da ocupao das terras fronteirias. A poltica de repovoamento das regies fronteirias desenvolvida pelo reino castelhano-leons contribuiu efetivamente para o estabelecimento de vrios ncleos urbanos. No reinado de Afonso VI, tais comunidades organizavam-se em municpios e desfrutavam de estatutos locais de exceo ou Fueros Municipais.

Graduanda em Histria na Universidade Gama Filho.

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A CONDIO JURDICA DA MULHER NA CASTELA DO SCULO XIII: O CASAMENTO...

Em face da diversidade normativa dos territrios reconquistados, a Coroa castelhano-leonesa, sobretudo no sc XIII, empenhou-se em afirmar sua autoridade sobre o poder local elaborando leis que atendessem s necessidades dos diversos habitantes da Pennsula Ibrica. Utilizando-se do direito, os reis Fernando III e posteriormente seu filho, Afonso X, lanaram as bases da hegemonia castelhana na Pennsula Ibrica. (MARTN, 1985, p. 33). Nossa pesquisa tem como objetivos estudar, dentre os diversos grupos sociais que compuseram a populao citadina do reino castelhano-leons e para os quais foi redigido um texto jurdico especfico, o papel social da mulher castelhana, seu carter jurdico e sua contribuio para o crescimento das cidades castelhano-leonesas tendo como aspecto principal o casamento; bem como compreender os discursos polticos e culturais que foram criados pelo poder central com o intuito de buscar fomentar a unidade da populao citadina deste reino. Nesse sentido, utilizamos como fontes em nosso trabalho o Fuero Real e o Cdigo das Sete Partidas sendo que, nesta comunicao, nossa anlise estar centrada no Fuero Real. Ainda que no tenha sido escrita nenhuma fonte especfica sobre a mulher, observa-se que houve sempre uma preocupao e uma inteno em regular o seu papel na sociedade, suas relaes sociais. Na Idade Mdia, pensava-se que:
[...] as mulheres - fisicamente dbeis e moralmente frgeis -, eram seres que precisavam proteger-se dos demais e, principalmente de si mesmas, estando submetidas vigilncia e direo dos homens de sua respectiva condio social. Em todos os nveis da sociedade, a mulher dispe de muito menos liberdade de ao do que o homem. (DUBY; PERROT, 1992, p. 17).

A sociedade esperava que a mulher fosse irrepreensvel em sua conduta, manifestando, a cada momento o controle do seu corpo, encarado pelos homens e religiosos da poca como a principal fonte dos males da carne. Constantemente exposta aos olhares masculinos, no deveria mostrar-se por demais provocante, evitar a maquilagem e a mnima exposio de seu corpo, a fim de no despertar nos homens ao seu redor desejos incontrolveis que poderiam lev-los a protagonizar uma violao. Era a mulher considerada como elemento diablico devendo ser, portanto, controlada, subjugada trazida rdea; feminilidade e beleza representavam um perigo constante para o elemento masculino. Quanto aos demais aspectos morais, aconselhava-se mulher que fosse boa esposa, cuidasse satisfatoriamente da sua casa, dos seus filhos e de seu marido, mesmo que ele fosse cruel, pois por ocasio da sua morte, poderia vir a se arrepender da sua maldade e deixar para ela todos os seus bens. (SILVEIRA, 1995, p. 302). Seja qual for o seu status ou a sua fortuna, o papel principal que se d mulher o de ocupar-se dos membros da famlia a que pertence e de velar pelos bens desse grupo familiar. Tanto os Cnones como as obras jurdicas mencionam a mulher de forma secundria relacionando-a, principalmente, com os aspectos do comportamento humano, especialmente referentes ao matrimnio e atividade 203

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

sexual. No Fuero Real, em especfico, o papel social que se espera do elemento feminino o de uma boa esposa. Perceberemos, a partir das leis que regiam as populaes citadinas do reino castelhano-leons a forma como as mulheres eram vistas pelos grupos dirigentes destas comunidades. No Livro III do Fuero Real, o primeiro ttulo de que trata o do casamento, visto como uma tentativa do reino castelhano-leons de consolidar o seu poder e de ordenar a vida dos seus sditos. O Fuero Real preocupa-se em regular o casamento nos seus aspectos sociais e institucionais, sob as exigncias da Igreja rigorista, na matria, muito precisa, do legitimum matrimonium, do casamento legtimo. (DUBY, 1985, p. 17). O casamento expressa as relaes de poder, ordena as relaes sociais enquanto prtica restrita ao mundo dos reis, dos prncipes e dos cavaleiros.
realmente pela instituio matrimonial, pelas regras que presidem as alianas, pelo modo como so aplicadas tais regras, que as sociedades humanas, at mesmo as que pretendem mais livres e se imbuem da iluso de o ser, governam o seu futuro, tentam-se perpetuar-se na manuteno das suas estruturas [...]. O casamento funda as relaes de parentesco, funda a sociedade no seu todo. (DUBY, 1985, p. 18-19).

Sendo assim, o Fuero Real coloca que aqueles que desejam unir-se em nome de Deus, pera quellas parauoas que manda a Sancta Eygreia [...] (FUERO REAL, Livro III, p. 81), precisam considerar algumas questes prticas: os noivos precisam ser de mesma condio social e a mulher deve casar-se com o consentimento de seus pais. Se a jovem (chamada no Fuero de manceba en cabellos) casar-se sem o consentimento dos pais, perder seu direito herana, a menos que um deles lhe perdoe antes de morrer:
E se ella casar co alguu que n seya conuenauil a ella ne per seu linage seya deserdada [...]. Se manceba en cabellos casar sen consentimeto de seu padre ou de sa madre n parta co seus yrmos a boa de seu padre ne de sa madre fora se lhy perdoare ante que moresse huu delles. (FUERO REAL, Livro III, p. 82)

No cabe mulher, portanto, a deciso sobre com quem deseja casarse embora teoricamente a mesma pudesse manifestar-se sobre o casamento. Isto cabe aos seus pais, irmos ou parentes mais prximos que detm a sua tutela at o enlace, quando ento ela passa tutela de seu esposo. Toda molher uyuuoa pero que aya padre ou madre possasse casar sen mandado delhes se quiser e non aya nenhua pe poren de a desherdaren. (FUERO REAL, Livro III, p. 82). Tambm a mulher que no casar-se at os 30 anos - e que no fuero chamada de manceba escosa en cabellos - sendo o termo escosa definido como o que diz-se da fmea de qualquer animal domstico que deixa de dar leite (MARTNEZ ALMOYNA, [s.d.], p. 483) -, pode faz-lo, posteriormente, sem o consentimento dos seus familiares, desde que com um homem que lhe convenha; caso contrrio, ser deserdada:
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A CONDIO JURDICA DA MULHER NA CASTELA DO SCULO XIII: O CASAMENTO... Se o padre ou a madre ou os yrmos ou outros parentes teuere em seu poder manceba escosa en cabellos e n na casare ata xxx. anos ella depoys se casar sem mandado delles n perca pore tanto que case co ome que lly conuenha. E se ella casar co alguu que n seya conuenauil a ella ne per seu linage seya outrosy deserdada. (FUERO REAL, Livro III, p. 83)

O que hoje veramos como sendo uma certa vantagem da viva e da mulher de 30 sobre a manceba en cabellos era, na verdade, a forma de famlias importantes das cidades aumentarem a sua influncia poltica e econmica casando seus membros. A questo das linhagens era tratada com rigor no Fuero Real. Era expressamente proibido mulher casar-se com um servo; no caso de revelia, se ela vier a alforriar um servo para com ele casar-se, ambos seriam condenados morte: Deffendemos que nenhua molher n casse co seruo nenhuu ne forre seu servo por casar co el. E quem o fezer, moyra, poren, t be el como elha. (FUERO REAL, Livro IV, p. 144) H tambm, no Fuero Real, um ttulo que trata das arras a doao que o marido d esposa em virtude do casamento, sendo a doao que a esposa d ao marido, chamada de dote. Ao contrrio do esposo, que pode fazer uso de seu dote a partir do momento em que o recebe, a mulher s pode utilizar-se das arras a partir dos 25 anos. Antes dessa idade, caso a manceba en cabellos se case, as arras ficam sob a guarda de seus pais, irmos ou parentes mais prximos:
Quando o que casa der arras aa manceba co quem casa se ella n ouuer xxv. anos o padre ou madre non ouuer os yrmos della ou os parentes mays prouicos que ouuer aya este poder. E quando a manceba ueer a ydade de xxv. anos entreguilhy sas arras. (FUERO REAL, Livro III, p. 85)

E estas arras [...] n possa uender ne alhear arras que der a as molher pero que ella outorgarde (FUERO REAL, Livro III, p. 85). O marido ento, teria, sim, a tutela do corpo de sua esposa e dos bens comuns j que os casamentos geralmente se davam atravs do regime de comunho de bens (RUIZ DE LA PEA, 1984, p. 65); mas, de suas arras no, o que nos mostra que houve uma rudimentar igualdade entre homens e mulheres nas questes de herana, de autoridade sobre os filhos do casal e na disposio dos bens comuns entre homens e mulheres: En el casamento el marido, normalmente, daba a su mujer la mitad de sus bienes presentes y futuros. (HILLGARTH, 1979, p. 104). A famlia, por outro lado, jamais deixa de, indiretamente, manter sob si a tutela de sua filha, irm ou parenta mais prxima. mulher, cabe a submisso, primeiro sua famlia, seguindo-se de seu esposo, o que demonstra at que ponto o seu reconhecimento jurdico era puramente terico. A fidelidade era um dos principais deveres da esposa. Em caso de adultrio, o homem quem tem o direito de praticar a justia: Se molher casada fezer adultrio co outro ambos sey en poder do marido que faa delhes o que quiser. Se molher casada fezer adultrio co marido alleo ambos 205

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seyam en poder do marido da molher. (FUERO REAL, Livro IV, p. 139). mulher trada pelo marido, ao contrrio, resta o silncio. Os filhos dos adlteros herdaro seus bens caso a pena de ambos seja de morte e, no caso da mulher ter sido tomada fora, ser absolvida de toda acusao e pena de adultrio. No se fala sobre o adultrio masculino no Fuero Real. Sobre os homens, as leis relacionam-se mais com a sua condio e a sua funo social. Constata-se um tratamento diferenciado, de tipo social, entre o homem e a mulher e tal enfoque responderia a uma realidade social anteriormente existente. Aconselhava-se, ainda, que as mulheres fossem bonitas, pacficas, boas esposas e mes. Concluso Observamos que, durante a consolidao do reino castelhano-leons, o tratamento jurdico dado s mulheres pelos grupos dirigentes da populao citadina no foi feito com a inteno de proteg-las, mas sim de restringir o seu papel social e propagar a sua marginalizao no campo jurdico. Embora a preocupao com o seu enquadramento demonstre que as mesmas interferiam em todos os planos da sociedade: familiar, econmico e at poltico, conforme percebemos durante a anlise do Fuero Real.
Bibliografia Fonte primria AFONSO X, O SBIO. Fuero Real. Lisboa: Instituto para a Alta Cultura, 1946. Bibliografia primria DUBY, Georges. A mulher, o cavaleiro e o padre. Lisboa: Difel, 1985. HILLGARTH, J. N. Los reinos hispnico (1250-1516). Barcelona: Grijalbo, 1979. DUBY, G., e PERROT, M. (Coord.) Historia De Las Mujeres: la Edad Media, huellas, imgenes y palabras. Madrid: Taurus, 1992. MARTN, Jose Luis. Historia de Castilla y Leon: la afirmacin de los Reinos (siglos XI-XIII). Valladolid: Ambito, 1985. ALMOYNA, Julio Martinez. Dicionrio de espanhol-portugus de la Real Academia Gallega. Lisboa: Porto [s.d.]. RUCQUOI, Adeline. Histria Medieval da Pennsula Ibrica. Lisboa: Estampa, 1995. LA PEA, Juan Ignacio Ruiz de. La condicin de la mujer atravs de los ordenamientos juridicos de las Asturias medieval (siglos XII al XIV). In: GRAIO, Cristina. (Org.) Las mujeres en las ciudades medievales. Madrid: Universidad Autonoma de Madrid, 1984. SILVEIRA, Marta de Carvalho. A mulher nas cidades castelhanas na Baixa Idade Mdia. In: Encontro Internacional de Estudos Medievais, I, So Paulo, julho de 1995, Atas... So Paulo: USP/UNICAMP/UNESP, jul 1995, p.301-308. VALDEN, Julio; SALRACH, Jos Maria; SBALO, Javier. Feudalismo y consolidacin de los pueblos hispnicos (siglos XI-XV). Barcelona: Labor, 1980.

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Construindo a realeza. A imagem rgia de D. Joo I na crnica de Ferno Lopes - Portugal sculos XIV - XV
Helena Matheson

pesquisa pretende problematizar a afirmao da realeza atribuda ao Mestre de Avis no contexto da crise poltica que se estabeleceu em Portugal, no final do sculo XIV, entre 1383 e 1385, perodo conhecido por Interregno. Tal conjuntura foi marcada pela transio dinstica com a morte do rei D.Fernando e o fim da Dinastia de Borgonha. Nessa conjuntura, as foras sociais mobilizadas, descontentes com os problemas polticos e sociais do reino, trazem para o cenrio poltico o Mestre de Avis, que assume o trono, aclamado como rei D.Joo I, inaugurando nova Dinastia. Dentre os objetivos desta investigao destaca-se a anlise das estratgias discursivas usadas na construo e na afirmao da imagem da realeza do fundador de Avis, considerando, inclusive, a sua vinculao pelo desenvolvimento da propaganda rgia. O interesse dessa pesquisa destina-se compreenso das atividades polticas e de como se definia o poder na sociedade feudal portuguesa de final dos sculos XIV, que contriburam para a ascenso do Mestre de Avis ao trono, entre 1384 e 1385, Interregno. O trabalho ter como suporte documental, a obra de Ferno Lopes, Crnica de D.Joo I (fonte primria impressa-I Volume) que retrata a ascenso de D.Joo I, ao trono portugus, fundando a Dinastia de Avis. Ser necessrio, delimitar o contexto em que se encontrava Portugal, a partir da sucesso do rei, D.Fernando. Esse monarca era filho do rei D. Pedro I de Borgonha. Com a sua morte, D. Fernando assume o trono tendo apenas 22 anos. O soberano esteve sempre ao lado da nobreza, prestigiando-a atravs de favorecimentos diversos, multiplicando a concesso de vrios ttulos nobilirquicos aos grandes senhores e vassalos. Foi essa nobreza que o apoiou nas diversas aes polticas em que se envolveu. Aventuras guerreiras, sem preparao ou persistncia, colocando-se merc de alianas mal realizadas, ou objetivos a atingir sem planejamento, e que caracterizaram todo o seu reinado. Percebe-se um rei politicamente desastroso para com seu povo e com o seu reino, inbil em relao s diplomacias internas e externas.
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Graduanda em Histria na Universidade Federal Fluminense.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

D. Fernando casa-se com Leonor Teles de Menezes e, a partir de ento, ela se torna cada vez mais influente junto ao rei, manobrando sua interveno poltica nas relaes exteriores e, ao mesmo tempo, tornando-o cada vez mais impopular. Aparentemente, D. Fernando mostra-se incapaz de manter uma administrao forte, e o ambiente poltico interno ressente-se disso, com intrigas constantes na corte. Em 1382, no fim da guerra com Castela, por acordo, Dona Beatriz, a nica filha herdeira da coroa portuguesa casa-se com o rei D. Joo I de Castela. Esta opo significava uma anexao de Portugal e no foi bem recebida pelas diferentes classes sociais. relevante ressaltar que a peste de 1348 atravessou a Europa, dizimou grande parte da populao do continente onde se incluiu Portugal. A falta de mo-de-obra decorrente deste evento abalou os sucessivos tronos aumentando as crises sociais e econmicas que se arrastavam e cresciam pelas dcadas seguintes, atingindo a administrao de D. Fernando. A situao social agravouse com a morte desse monarca, em 22 de outubro de 1383, no momento de eclodir a Revoluo de Lisboa. O quadro poltico estava agonizante; todo o reino, exceo de uma parte da nobreza, estava revoltado. Em todas as aldeias, o povo, especialmente, as camadas pobres, arraya meuda, alm de outros segmentos da sociedade, apoiaram o partido do Mestre de Avis, segundo o cronista Ferno Lopes. (LOPES, Ferno, 1991, p. 93). O perodo conhecido como Interregno tem incio com a questo sucessria do trono, quando Leonor Teles assume a regncia. Embora continuando a cercarse pela grande nobreza, incluindo o Conde Andeiro, Johan Fernamdez _ seu amante, Dona Leonor tentou aproximar-se das camadas do povo, notadamente de Lisboa, prometendo cmara dessa cidade a entrada dos homens bons no conselho rgio, alm de medidas discriminatrias contra os judeus. Havia duas faces, os adversrios e os partidrios de Leonor Teles e do Conde Andeiro. A aclamao de Dona Beatriz e de seu marido, o Rei de Castela, como reis de Portugal, ia causando descontentamentos, em Lisboa, Santarm, Elvas, e em vrias regies. Reascenderam-se as unies de dez anos atrs, ficando, a todos, clara a situao potencial explosiva. (MARQUES, Oliveira, 1987, p. 523). Em dezembro de 1383, Leonor Teles tentou arregimentar foras para resistir frente a seu genro, preparando-se para nova guerra, desejosa do apoio do Mestre de Avis. Contudo, o Mestre e sua gente assassinaram o Conde Andeiro. A revolta que irrompeu em Lisboa e em grande parte do pas destruiu os planos da regente, que pediu apoio ao rei de Castela para retomar a regncia. J com grande parte do reino em plena rebelio, D. Joo I de Castela entrara em Portugal para a guerra. Cavalheiros, vilos da cmara e soldados reunidos em Lisboa apoiaram o Mestre de Avis e a regncia foi-lhe formalmente concedida. Reconhecido como D. Joo I, ele recebe o ttulo de Regedor e Defensor do Reino. A partir da foram se revoltando os principais centros populacionais do pas, como vora, Coimbra, Porto, muitas comarcas, cidades e vilas. Soma-se uma populao ressentida com as conseqncias da crise e a opresso dos poderosos. O Mestre de Avis reestruturou a administrao e preparou o reino para a defesa. Nomeou Joo das Regras, jurista conceituado, como chanceler.
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CONSTRUINDO A REALEZA. A IMAGEM RGIA DE D. JOO I NA CRNICA DE FERNO LOPES...

Organizou um governo de notveis com a participao de representantes do terceiro Estado. Entregou o Alentejo a um jovem nobre, Nuno lvares Pereira. Enviou embaixadas Inglaterra pedindo auxlio. Cunhou moeda prpria e conseguiu avultados emprstimos internos e externos. Ganhou a adeso de antigos adeptos da ex-rainha regente, especialmente quando ela foi afastada e presa pelo rei D. Joo I de Castela, em 1384. Os embates com os castelhanos prosseguiram com a defesa armada e Portugal derrotando os exrcitos do rei de Castela. Este monarca, no entanto, no podia renunciar a Portugal nem aos seus sonhos de hegemonia peninsular sem uma ltima tentativa, no vero de 1385. Perto de Aljubarrota e em batalha campal tradicional, sofreu uma abalada derrota, que aniquilou grande parte de seu exrcito, obrigando-o a fugir de volta para Castela. Portugal obteve a sua independncia confirmada. Perceber o conceito de poltica, entendida como forma de atividade que est intimamente ligada ao de poder, ser importante para nos ajudar a entender o poder como uma relao de domnio estabelecida entre diferentes sujeitos. Na linguagem poltica, destaca-se relao entre governantes e governados, entre soberano e sditos. Ferno Lopes (1380-1460?), cronista de D. Joo I, foi guarda-mor das escrituras da Torre do Tombo, figura mais importante da literatura medieval portuguesa, considerado seu maior historigrafo, aliando a investigao preocupao pela busca da verdade. A sua importncia reside no cuidado em fundamentar a escrita historiogrfica em provas documentais, descrevendo, com mincia, as movimentaes de massas (sobretudo durante as sublevaes de apoio ao Mestre de Avis em Lisboa) e algumas cenas de eventos que registra, incluindo dilogos, o que consegue no s com remisses e testemunhos, mas, tambm, com uma capacidade de manejar a linguagem que coloca a imaginao a servio da verdade, de que acaba por se no excluir. O cronista correu a provncia para buscar informaes, que depois lhe serviram para escrever vrias obras: Crnica de D. Pedro I, Crnica de D. Fernando, Crnica de D. Joo I, Crnica de Cinco Reis de Portugal e Crnicas dos Sete Primeiros reis de Portugal. Sem dvida, percebe-se que os Prncipes no podem passar sem os servios dos historigrafos, que tm a misso de os exaltar e de defender a sua razo. E Ferno Lopes foi contratado e pago por D. Duarte (filho e sucessor de D. Joo I), para escrever sobre os reis portugueses. Os relatos contemplam fatos providencialistas, atos de vingana, assassinatos, guerras, traies e outros aspectos. Espera-se dos cronistas medievais (dos sculos XIV-XV), dois tipos de servios. Primeiro, exaltar os altos feitos dos prncipes e da sua dinastia. Segundo, escrever e transmitir posteridade, sob a forma de relatos verdicos, a histria do passado, sobretudo a vida dos personagens ilustres. Bernard Guen acredita que os homens da Idade Mdia tm uma concepo clara da histria, considerada como um relato simples e verdadeiro. (GUEN, B., 1980, p. 439) Pouco preocupados com os lugares, os historiadores medievais quiseram, sobretudo, abraar todo o desenrolar do 209

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

tempo e o seu fim. S fixaram os fatos realizados por atores eminentes. A Idade Mdia conheceu uma grande variedade de tipos de historiadores: Raoul Glauber, Joinville, Frossard, Ferno Lopes e outros. Guen ressalta tambm, em seu trabalho, tipos de historiadores distintos. O monge, guardio dos manuscritos e dos livros do mosteiro, est preocupado com a verso erudita de seus textos e a preocupao obsessiva da cronologia. O historiador das cortes e das praas, preocupados em conquistar um pblico, contam os feitos dos santos e prncipes, trabalham com a tradio oral. E o historiador de gabinete que tem outro tipo de relato, personagem caracterstico da Baixa Idade Mdia_ quando se desenvolvem os servios administrativos, muito especialmente as chancelarias. So homens de letras, que redigem a histria maneira dos contratos. O seu relato baseia-se nos documentos originais que citam muitas vezes e de maneira exata. O escritor Humberto Baqueiro Moreno, na introduo da Crnica de D. Joo I, analisa e conclui que a crnica de Ferno Lopes se apresenta bastante fidedigna e minuciosa no perodo que se estende de 1383 a 1390. Mas, apesar de tudo, em relao aos cronistas do seu tempo, Ferno Lopes, na sua opinio, apresenta-se com uma segurana e uma viso global dos acontecimentos que a todos ultrapassa. Desperta-nos ainda, nesse trabalho, o interesse por identificar as funes e caractersticas do monarca na Baixa Idade Mdia, na literatura de Ferno Lopes, referentes D. Joo I. Nesse caso, mais evidente e necessrio se torna a presena de manifestaes e outros atributos que sejam importantes para a afirmao da realeza do Mestre de Avis, inclusive, porque filho bastardo de D. Pedro. Segundo J.M. Nieto Soria, na literatura poltica da Baixa Idade Mdia possvel encontrar uma exposio, totalizadora, ainda que sinttica dos diversos argumentos sobre os quais, no plano do ideolgico, se assentou monarquia [...] mais entendida em uma perspectiva de poder que de instituio[...]. (SORIA, J.M. Nieto,1988, p.17) O Messianismo rgio que aparece descrito na Crnica de Ferno Lopes uma tipologia das imagens sacralizadoras. Estas, por definio, se podem entender como aquelas que, ainda que no sejam essenciais para a fundamentao teolgica do poder real, tm como finalidade principal procurar para o rei, e para o poder que ostenta, uma certa dimenso sagrada que assegure ao monarca e a realeza uma posio de incomparvel superioridade. O messianismo rgio manifesta-se em situaes nas quais o monarca reconhecido como um eleito pela divindade para realizar um plano positivo para seus sditos. Se o plano a realizar tem um significado eminentemente poltico, quase sempre suscetvel de receber uma valorizao religiosa, como no captulo XLVI da crnica em que Ferno Lopes afirma que [...] o Mestre tomou carrego de rregedor e deffensor do(s) rreinos[...]. E que ell por homrra e deffenssom do rreino, e dos naturaaes delles, se desposera a tomar carrego de os rreger e deffender, o que com a graa de Deos emtemdia de levar adeamte com sua boa ajuda delles [...].(LOPES, Ferno,1991, p.93) O messianismo rgio nesse caso [...] em grande medida e at certo ponto,
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CONSTRUINDO A REALEZA. A IMAGEM RGIA DE D. JOO I NA CRNICA DE FERNO LOPES...

equiparvel com o Quanto ao que se refere imagem jurdica da realeza, a sua construo na Baixa Idade Mdia do ocidente, no se produz de forma autnoma e espontnea, mas como resultado de diversos argumentos que remetem a realidades ou aspiraes parciais, geralmente muito pontuais, do poder rgio. Nieto Soria agrupou as representaes que definem a imagem poltica de pretenses globalizadoras em dois grandes tipos: as teolgicas e as jurdicas. A narrativa de Ferno Lopes apresenta imagens de superioridade, definidas pela tipologia jurdica, enquadradas na anlise de Soria como aquelas que reconhecem no poder real uma superioridade incomparvel com respeito a qualquer outro poder do reino, no admitindo a presena de conceitos jurdicos, polticos ou de outra ordem que venham a colocar em questo a supremacia do rei. Ferno Lopes embasa a superioridade rgia no apoio divino que se manifesta, inclusive, na cunhagem de moedas: [...]Ca per taaes mudanas e lavramento de moedas, com a ajuda do mui alto Deos, o rreino de Portugal foi per elle deffeso, e posto em boa paz com seus emmiigos[...], (LOPES, Ferno, 1991, p.101) exemplificando a superioridade real que Deus concedeu ao monarca, para que ele fizesse moedas para o reino. Para o autor Soria, as imagens, [...] Desde uma perspectiva mais ou menos jurdicas[...] que colocam o poder da realeza em inquestionvel superioridade so as seguintes: A superioridade rgia[...](SORIA, J.M.N. p.111) incomparvel, porque o rei deve ser amado, servido, obedecido, reverenciado e temido devendo ser a lealdade, uma atitude constante que o sdito deve ter, pelo seu monarca. Outro aspecto dessa tipologia de poder est no dever de obedincia que percebemos na narrativa de Ferno Lopes, quando se configura um iminente ataque ou uma invaso no reino portugus: [...] que cada hu Rei e Primcipe deve daver em sseu comsselho, quando lhe tal neessidade aveher que doutra guisa rremediar nom possa: Que mais vall a terra padecer, que terra se perder[...], (LOPES, Ferno, 1991, p. 101) ele nos informa, sobre a obedincia, inquestionvel, ao soberano, quando o reino est prestes a ser tomado, pelo rei de Castella. possvel destacar, na literatura de Ferno Lopes, a concepo magesttica, e identificar o monarca governando pela vontade de Deus[...] e quisesse aeptar e tomar em ssi o nome e dignidade e homrra de rei, tomando carrego de deffemder os rreinos, ca pra ell os tinha Deos guardados, que esto assi hordenara[...]. (LOPES, Ferno, 1991, p.422) Outro conceito o poder real absoluto . possvel reconhec-lo em muitos textos, na Baixa Idade Mdia, revelando uma inteno clara da realeza e de seu aparato administrativo, com sentido simblico de finalidade absolutista ou quase. Nesse sentido, o rei est completamente descomprometido com qualquer lei, norma ou compromisso. Ferno Lopes confere D. Joo [...]hordenar tam discretamente todallas cousas que a deffemssom deste rreino perteeem, que nehum outro melhor poderia[...]. (LOPES, Ferno, 1991, p.421) Nessa perspectiva de poder, existe a idia de soberania que s pertence ao rei. A fundamentao teolgica est presente neste caso. Deus o nico soberano e a divindade atua no plano poltico atravs do rei, sendo este, o que assume 211

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

a funo soberana , no exemplo que se segue [...]E por tamto pois que he servio de Deos, e proll e homrra...pera nom seermos destrudos de nossos emmiigos...este dom Joham, filho delRei dom Pedro, por rei e senhor destes rrenos [...].(LOPES, Ferno, 1991, p.421) A soberania tem entre suas funes garantir a unidade do reino em torno da figura do monarca. Atravs deste pequeno estudo podemos perceber alguns conceitos de poder, importantes para compreendermos como est forjada a imagem do monarca de Portugal, nos sculos XIV e XV. O poder, pessoal, do rei, nesse contexto, D. Joo, vai-se ampliando, atravs de diversas construes de aspectos jurdicos, teolgicos e definindo uma ideologia justificadora para as aes polticas do soberano nos seus domnios.
Bibliografia BOURD, Gui e HERV, Martin. A Histria na Idade Mdia: A Histria Crist. In: As Escolas Histricas. Frum da Histria (sem mais indicaes). GOUVEIA, Joo Monteiro. O Ocidente nos Fins da Idade Mdia (sculos XIV e XV): algumas Coordenadas. Da Centralizao s Monarquias Absolutas. In: ___. Texto e Contexto. Minerva. (Coleo Histria, 1). GUENE, Bernard. Propaganda do Poder Rgio; Simbologia do Poder. In: O Ocidente nos sculos XIV e XV- (Os Estados). So Paulo. EDUSP. Pioneira, 1981, p. 71-79. (Coleo Nova Clio. A Histria e seus problemas, 22). LE GOFF, Jacques. A Histria Poltica continua a ser a espinha dorsal da Histria? In: ___. O Imaginrio Medieval. Lisboa: Estampa, 1994 (Coleo Nova Histria, 13). MAGALHES, Vitorino Godinho. Da Revoluo de 1383-1385 s bases de Portugal de alm-mar. In: ___. Portugal a emergncia de uma nao. Lisboa: Colibri. Faculdade de Cincias Sociais e Humanas. Universidade Nova de Lisboa. MATTOS, Marcelo Badar. Pesquisa e Ensino. In: ___. Histria Pensar e Fazer. Niteri: Laboratrio Dimenses da Histria, UFF, p.92-124. SORIA, J. M. Nieto. Fundamentos Ideolgicos Del Poder Real en Castilla ( siglos XIII XVI). Madrid: Eudema, 1988, p. 41-166. SOUZA, Luiz Rebello de. Introduo, Organizao do Discurso, O Problema do Messianismo. In: ___. A Concepo do Poder em Ferno Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, s. d.

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Cerimnia da homenagem poder e juramento na Dinastia de Avis (Portugal - 1438 a 1495)


Ieda Avnia de Mello

pesquisa se concentra na anlise da relao entre as cerimnias e rituais do poder caractersticos da dinastia de Avis e suas prticas propagandsticas, bem como sua importncia no processo de centralizao do poder monrquico e na formao do Estado portugus durante os reinados de D. Afonso V e D. Joo II (1438 -1495). As cerimnias e rituais rgios tm sido objeto de estudos historiogrficos importantes, particularmente em obras produzidas ao longo das dcadas de 1980 e 1990. Destaque-se, nessas obras, a grande influncia exercida pela inovao deste campo de estudos promovida pelos historiadores annalistes e, em especial, por Marc Bloch. A chamada Nova Histria no s ampliou como aprofundou, em muitos aspectos, as reflexes referentes a sacralidade rgia, s cerimnias diversas que davam lugar entronizao dos reis, aos rituais fnebres que pontuavam a sua morte, mas que, no entanto, representam o reino vivo materializado na parte imortal do corpo do rei. Le Goff aponta que o rei medieval tambm um rei cerimonial, como testemunha o simbolismo dos rituais rgios. Nos rituais de ascenso dos reis necessrio mencionar a importncia da uno em reinos como Frana e Inglaterra. J, Castela e Portugal so exemplos de realeza sem sagrao salvo em circunstncias extraordinrias fato este que de forma alguma altera relevncia dos rituais rgios nestes reinos.(LE GOFF, 2002, p.402). A sociedade medieval apresenta um ritualizao da vida cotidiana. Jean-Claude Schmitt demonstra como essa sociedade adaptou formas especficas s suas hierarquias, abrangendo, inclusive, as categorias sociais e a regulao de trocas entre as pessoas. Isto se d, ao mesmo tempo, no que tange ritualizao ostentria da salvao, do juramento, do desafio, cuja relevncia era acrescida pela presena de um pblico. A igreja teve um papel fundamental enquanto instncia produtora de rituais, controlando durante muito tempo os meios escritos ou figurados de representao, interpretao e julgamento dos ritos em geral. (SCHMITT, 2002). A aproximao com as Cincias Sociais possibilitaram a compreenso do conceito de poder de modo a unir as referncias weberiana, que entende o poder como fora legtima de coero, e foucaltiana sobre as formas
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Mestranda do Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense.

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sublimadas para obter a mesma submisso sem usar a violncia, mormente sem perder de vista a insero do Estado nesta concepo de poder. (STOPPINO, 1983, p. 940-941). O universo emprico desta pesquisa composto por material cronstico e normativo que abrange os sculos XV e XVI. Segundo Nieto Soria, as monarquias do baixo-medievo, apesar de sua menor complexidade e amadurecimento institucional, tambm possuam aparatos ideolgicos que cumpriam a funo de divulgar as mensagens do poder em conjunturas especficas.Estas visavam difundir imagens claras e empiricamente condizentes com a ao rgia e, assim, justificar o poder e a integrao poltica sob a base da obedincia e do respeito ao comando. (SORIA,1988, p.9.). Convm considerar as fontes como um dos mecanismos da construo ideolgica enunciada em discursos entendidos como mensagens, veculos de expresso que abarcam significaes diversas, porm social e historicamente determinadas. No caso da Dinastia de Avis, denominamo-lo discurso do pao. (FRES, 1993, P.189.). O mbito do palcio real o foco deste conceito, que consiste em um enunciado discursivo de cunho messinico e carismtico, e encontra-se presente em textos de diversos gneros, em festas, no teatro e nas cerimnias e entradas rgias, produzindo e articulando a representao do rei e do reino e, conseqentemente, a sua memria e identidade. importante ressaltar que, a ideologia no entendida como um fato derivado essencialmente das formulaes do Estado ou da cultura formal de uma dada sociedade. (STOPPINO,1983, p. 585-596) Contudo, na presente pesquisa ser privilegiado, esses dois percursos a fim de se entender o processo de afirmao do poder rgio na Dinastia de Avis. Examinar um discurso precede considerar a linguagem, o vocabulrio, as imagens e os enunciados que do sentido s idias. (VAINFAS, 1983, p. 13) A anlise das fontes deve levar em conta os elementos que envolvem o lugar de produo (autor, gnero, recurso da lngua, rede de sociabilidade na qual o autor se insere), o enunciado (categorias, palavras-chave e cnones narratolgicos) e a veiculao (mecanismos de propagao e circulao de enunciados no interior dos textos). Segundo Chartier, os textos escritos, as imagens e as cerimnias possuem laos estreitos, convindo no apart-los dos distintos meios de expresso e comunicao por meio dos quais o poder representado (CHARTIER, 1987.). O corpus documental deste trabalho formado por fontes primrias de cunho narrativo, que abrange crnicas e material normativo, a saber: O Livro de Apontamentos (1438-1489), de lvaro Lopes Chaves, a Crnica de D. Joo II (1533), de Garcia de Resende, a Chronica do Serenssimo Prncipe D. Joo (1567), de Damio de Gis, alm da Chrnica de D. Joo II e a Chrnica de D. Afonso V, ambas devidas a Rui de Pina, e os Ditos Portugueses Dignos de Memria, de autoria desconhecida. O Livro de Apontamentos (1438-1489) de lvaro Lopes Chaves uma fonte de cunho narrativo, cdice 443 da Coleo Pombalina da Biblioteca Nacional de Lisboa, que rene as memrias deste que foi secretrio rgio de D. Afonso V e de D. Joo II, referindo-se principalmente a acontecimentos ocorridos entre os anos de 1475-1489. Transcrito no sculo XVII, o cdice foi designado
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CERIMNIA DA HOMENAGEM PODER E JURAMENTO NA DINASTIA DE AVIS...

primeiramente como Miscelnea Histrica, o que indica o fato de o copista no ter tido preocupao em arrumar cronologicamente os papis que transcrevia. constitudo por cerca de cento e setenta e seis flios, compostos por relatos de guerras, viagens, regimentos e ordenaes, minutas de cartas, tratados, entre outros, ligados intimamente ao discurso do pao e que retratam vastamente a prxis governativa nos dois reinados. O texto do cronista rgio Garcia de Resende foi provavelmente escrita entre 1530 e 1533, e oferece uma rica construo em torno da figura desse Rei especfico. Resende (1470-1536), desde novo foi acolhido no pao, onde recebeu o cargo de moo de escrivaninha de D. Joo II, presenciando os principais acontecimentos da vida pessoal e poltica de seu Rei. Foi um dos principais responsveis pela personificao no monarca do ideal de bom rei: justo, prudente, virtuoso e com fama de santidade. Rui de Pina (1440-1552) foi o terceiro Cronista-Mor do Reino, secretrio de D. Joo II, e atuou como agente diplomtico deste Rei e de D. Manuel. Deixou uma obra extensa, escrevendo as crnicas de Sancho II, D. Afonso IV, D. Duarte, D. Afonso V e D. Joo II. Nestas ltimas, Pina contou com o conhecimento direto dos fatos e dos documentos oficiais. Portanto, apresenta os acontecimentos segundo a verso oficial designada pelo pao rgio, conservando um estilo notarial de narrativa. A Chronica do Serenissimo Principe D. Joo foi escrita por Damio de Gis (1502-1572), personagem envolvido com o pao rgio desde seu nascimento, e cuja trajetria foi marcada por viagens nas quais obteve formao humanstica nos principais centros urbanos da Europa. Ocupou o cargo de guarda-mor da Torre do Tombo em 1548, mostrando, em latim, suas qualidade de historiador. Esta crnica data de 1567, e narra fatos ocorridos desde o nascimento do filho de D. Afonso V at a sua morte. Esta obra desperta interesse pelas informaes copiosas que nos do uma viso mais viva e incisiva nas descries de casos e cenas observados pelo cronista. Os Ditos Portugueses Dignos de Memria constituem uma coletnea de ditos, ou seja, de intrigas que abarcaram os reinados de D. Afonso V a D. Sebastio, datando de cerca de 1575-78. O nome do autor no revelado, mas a fonte fornece pistas que nos permitem concluir que ele viveu na poca de D. Joo III, serviu na repartio da Fazenda pois conhecia muita das irregularidades desse meio e ainda era cristo-novo, pelo modo que trata estas questes. Autor semi-letrado, escreveu com estilo simples, sendo o maior exemplo da arte do mote e do tom irnico caracterstico do sculo XVI. O autor afirma tambm, com considervel freqncia, repetir o que ouviu dizer. Segundo Jos Saraiva, o critrio que regeu a escolha dos episdios foi o da crtica sociedade em que viveu, mais especificamente s mazelas do ambiente da Corte portuguesa. Nesse sentido, as temticas dominantes so a corrupo na administrao, a pedinchice, a lisonja, o compadrio, a explorao do trabalho, etc. Tais narrativas, alm de trazerem informaes sobre a formao da memria e da identidade do reino em longa durao, mostram-nos a crescente burocratizao do Estado portugus, 215

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acentuada pela expanso ultramarina (SARAIVA, 1992, p. 5-12). Durante o sculo XIII, a noo de Estado ganhava contornos mais ntidos no Ocidente, na medida em que, desde a centria anterior eram retomadas as idias de Aristteles e do Direito Romano nas universidades. O pensamento poltico da Baixa Idade Mdia complexificou-se, tendo em vista o prprio desenvolvimento da sociedade. As noes universalistas ligadas ao Imprio perdiam espao diante da emergncia dos novos estados territoriais, do desenvolvimento urbano e da revitalizao das atividades comerciais que concorriam para o fim do feudalismo. (GUENE, 1981) As noes de funo e ofcio receberam nova conotao a partir de modificaes na viso do trabalho e na organizao da sociedade, dais quais dentre as principais conseqncias esteve a releitura do imaginrio rgio. Releitura esta onde a figura do rei tornouse referncia a ser contemplada pelos sditos, exigindo-se do monarca um exmio preparo para exercer a arte de governar. Entretanto, ainda subsistiam teorias hierocrticas, teocrticas e feudais a respeito da organizao e legitimao do poder, paralelamente nova concepo de Estado. A figura do rei manifestava-se associada a idias capazes de resgatar a unidade, alm de unir elementos sagrados e profanos, sintetizando aspectos da herana bblica e do maravilhoso cavaleiresco. (FRES, 1995, p. 14) Em termos materiais, a consolidao da hegemonia do poder real pode ser identificada com a constante acumulao de propriedades por parte de um grande senhor ou mesmo de uma famlia, elemento que possibilitou o aumento e o conseqente controle da funo militar e financeira pela monarquia nascente. Segundo Norbert Elias, a sociedade feudal que melhor se adequa expresso mecanismo rgio, uma vez que se trata de uma sociedade profundamente hierarquizada em estamentos na qual interesses diversos distribuem-se de modo to uniforme que a autoridade principal, tendo seus prprios interesses, apia e refora seu poder na luta constante entre os grupos, sem se identificar diretamente com nenhum deles. (ELIAS, 1994, p. 148) Nesse mbito, o atributo rgio da justia se desenvolve a fim de promover a mediao dos conflitos inerentes sociedade, fato este que torna inteligvel a razo pela qual espao social interno passa a ser representado pela idia de corpo e da trifuncionalidade, noes monopolizadas pelo rei cuja figura se tornou o eixo fundamental desta pirmide. (DUBY, 1982, p. 11) As Escrituras, principalmente o Antigo Testamento, ofereciam os variados modelos que fundamentavam os atributos rgios, tais como Moiss, Davi e Salomo. As imagens buscavam afirmar que o monarca exercia um poder delegado por Deus, objetivando adequar a realidade humana lei divina e ao enaltecimento da religio crist. (LE GOFF, 1999, p. 346) Tais questes tornam-se particularmente relevantes nos reinos ibricos. No sculo XIV assistimos a dois episdios importantes que impuseram modificaes no panorama scio-poltico da Pennsula Ibrica: o processo de unificao da Espanha atravs do fortalecimento dos Reinos de Castela e Arago, e a Revoluo de Avis em Portugal (1383-1385). Trata-se, este ltimo, de um movimento de carter popular que tomou Lisboa sob comando do Mestre de Avis, que assumiu o poder a despeito de sua origem bastarda.
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Desde a vitria de D. Joo a Casa de Avis percebeu a necessidade de afirmar a legitimidade da nova dinastia, e a superioridade desta em relao a qualquer pretendente ao trono. (SERRO, 1980, p. 215-217) Mas tal discurso no se limitou afirmao da legitimidade, pois pretendia alar o rei condio de efetivo soberano do reino portugus. Deparava-se, ainda, este rei com a oposio da antiga nobreza, a presso dos novos senhores, o desenvolvimento das cidades, a importncia dos mercadores, o aumento da pobreza, a ameaa representada pelos estrangeiros e, ademais, com um ambiente repleto de tenses e conflitos. Desta forma, o rei como verdadeiro soberano deveria ser capaz de unir os vrios segmentos, sobrepondo-se a eles, formando uma unidade que a todos se afirmasse, elemento central na constituio da nao portuguesa. A dinastia de Avis, por meio de um modelo messinico tomou por base outros modelos europeus, adaptou muitos smbolos e integrou-os ao seu discurso legitimador, estendendo-o ao conjunto do povo. (FRES, 1995, p. 20) O pao avisino tornou-se o microcosmo da sociedade portuguesa poca, e um lugar privilegiado para a abordagem histrica. Podemos, assim, dizer que as tenses polticas quatrocentistas so passveis de anlise atravs dos personagens vinculados ao pao, sujeitos histricos cuja ao nem sempre possvel de ser detectada. Aes estas que, no plano literrio, podem ser verificadas no movimento de expanso da produo, reproduo e organizao dos livros no sculo XV. Afinal neste perodo, o mundo ocidental encontrouse num processo de transformao o Renascimento que veio se desdobrando desde o sculo XII, e se materializou em todos os setores da vida do homem, incluindo o campo do poltico. Nesse contexto, D. Joo II ascendeu ao trono em 1481, nas Cortes de vora, cujo discurso de abertura, feito pelo Dr. Vasco Fernandes de Lucena, j predizia uma forma de governo distinta de seu pai. Contrariamente ao governo de D. Afonso V, quando os senhores ampliaram seus poderes devido ao apoio dado ao mesmo no episdio de Alfarrobeira, D. Joo II, na poltica interna, cerceou a autonomia da nobreza, interveio no poder local com agentes da coroa, e condenou morte por traio os Duques de Bragana e Viseu. Na poltica externa, expandiu o territrio portugus no alm-mar, enriquecendo o reino e afirmando-o diante as potncias da Cristandade. Tratou-se, pois, de um conjunto de aes voltadas ao fortalecimento das bases de um Estado que resplandeceria mais adiante com D. Manuel, devido precoce morte de D. Joo em 1495. Assim, a pesquisa parte da anlise da Cerimnia da Homenagem, caracterizada pelo juramento de fidelidade, realizada na ascenso dos reis portugueses. Destacam-se as alteraes introduzidas por D. Joo II nesta cerimnia, seus precedentes e desdobramentos como expresses de um projeto de governo que previa a submisso da nobreza pelo estabelecimento de um novo pacto entre o Rei e seus sditos. Uma das hipteses de trabalho que, o fato do rei no jurar aos seus sditos abriu espao num campo simblico para que o monarca tivesse o direito de eliminar os nobres que faziam frente ao poder rgio sem que o mesmo fosse considerado perjuro e perdesse sua 217

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legitimidade, como ocorreu diante a morte dos Duques de Bragana e Viseu. Abordam-se tambm questes relativas representao, ao controle simblico, legitimao e centralizao do poder rgio visando estabelecer o carter e as funes das cerimnias rgias em um perodo de centralizao poltica e consolidao do Estado. Por fim, objetiva-se, ao se tomar como contraponto para anlise o reinado de D. Afonso V, aclarar as relaes do rei com a nobreza, e compreender em que medida o rei passa [da condio] de primus inter pares de adversrio, de adversrio de rbitro, e [da condio] de rbitro a, porventura, de sustentculo fundamental. (MATTOSO, 1980, p. 21)
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Os franciscanos nas Cruzadas: uma reflexo sobre as polticas pontifcias e sua relao com os frades menores
Plcido Rios Moreira Junior*

idia deste trabalho apresentar os primeiros passos da pesquisa realizada para o projeto de monografia de final de curso, sob a orientao da Professora Doutora Andria Frazo, cuja temtica versa sobre a participao das Ordens mendicantes em especial os franciscanos nas Cruzadas. Cabe ressaltar que a pesquisa ainda encontra-se no seu estgio inicial, assim, a preocupao imediata refere-se coleta de referncias e dados acerca do tema. Dessa forma, pretendo com esse trabalho analisar o contexto das Cruzadas, dando um enfoque maior a esse movimento como um brao da Igreja na expanso dos interesses da poltica pontifcia, sem, claro, deixar de levar em conta o peso da religiosidade no pensamento medieval. Nesse sentido, busco entender o contexto scio-cultural em que surgem os mendicantes, bem como a insero dos franciscanos nos projetos pontifcios relacionados s Cruzadas; alm de como se deu a participao da ordem nas campanhas militares, seus reflexos para os cruzados em termos de anseios e expectativas; e, por fim, procuro compreender as transformaes sofridas pela ordem diante desse ambiente. As Cruzadas podem ser analisadas sob diversas ticas. Por exemplo, se nos atermos s melhorias climticas da Europa a partir do ano 1000, juntamente com o avano das tcnicas agrcolas e por uma certa pacificao interna, podemos considerar que houve um aumento demogrfico e na produtividade. Tais transformaes levaram a um excedente de mo-de-obra, que se viu forado a migrar para outras reas de assentamento. Esta conjuntura pode ser considerada, portanto, um dos fatores que levam ao ingresso de populares sem terra nas Cruzadas, ou seja, a busca da terra prometida. As transformaes no panorama poltico da Europa proporcionaram uma ampliao das monarquias em detrimento dos senhorios locais. Dessa maneira, a expanso territorial desses nobres foi, sob certa medida, impedida pelas organizaes monrquicas, fato que explicaria a sede dessa nobreza quanto conquista de novos territrios no Oriente, o que se concretizaria nas Cruzadas. O impulso no desenvolvimento mercantil despertou tambm o interesse
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Graduando em Histria na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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OS FRANCISCANOS NAS CRUZADAS: UMA REFLEXO SOBRE AS POLTICAS PONTIFCIAS...

das cidades italianas pela empresa crist, vistas como uma forma de se conseguir privilgios comerciais. Mercenrios e cavaleiros sem senhorios tambm enxergaram nas Cruzadas uma forma de conquistar riquezas e instituir domnios. Para Jose Luis Martin (1985, p.7), por exemplo, as Cruzadas foram, no uma manifestao do Ocidente contra o Oriente, mas uma luta contra os muulmanos. Isso se explica pelo fato das campanhas militares crists terem ocorrido em diversas regies diferentes, como o Norte da frica e a Pennsula Ibrica; no se restringindo a regio da Palestina. No entanto, tais motivaes no explicam por si s a lgica das Cruzadas. Estas, antes de tudo, representam uma manifestao da religiosidade medieval e do poder dos pontfices romanos. Sob a gide do pensamento medieval e da religiosidade, podemos dizer que as Cruzadas foram, em certa medida, uma forma de escolta aos peregrinos que buscavam redimir seus pecados atravs de viagens a lugares sagrados. Tal tendncia pode ser explicada ao analisarmos a peregrinao como uma forma de martrio redentor. A partir do momento notadamente sculo XIII em que a dor deixa de ser entendida como algo humilhante e se torna uma glria,1 por aproximar o homem do Cristo, a peregrinao passa a ser vista como uma via crusis, uma forma de expiao dos pecados. As Cruzadas tambm podem ser entendidas como um meio de afirmao do poder papal, na medida que se buscava mobilizar a cristandade ocidental na libertao da terra santa das mos dos muulmanos. Levando em conta o rompimento da dependncia da Igreja em relao aos poderes laicos, podemos dizer que aquela buscou, com as Cruzadas, afirmar seu domnio sobre todos os fiis sejam clrigos ou laicos sem excetuar os reis, chamando-os a participar, sob sua direo, deste seu projeto. Tendo em vista as diferentes lgicas de entendimento acerca do movimento cruzado pelo Ocidente Medieval, aqui pretendo abord-lo dentro dos objetivos propostos para esse trabalho- mantendo como eixos principais de anlise a religiosidade medieval, a Ordem Franciscana e a Reforma papal. Dessa forma, antes de tudo, para que possamos compreender essa proposta, faz-se importante que entendamos a conjuntura scio-econmica e cultural da Europa ao longo dos sculos XI a XIII; bem como as principais transformaes que se deram nesse contexto. Segundo Javier Turza (1996, p.14,15), foram as transformaes no campo scio-econmico europeu que muito contriburam para uma nova tendncia quanto religiosidade do homem medieval. A partir do momento em que ocorreram melhorias climticas e desenvolveram-se as tcnicas agrcolas, proporcionando uma maior produo e crescimento demogrfico, notamos tambm um aumento dos excedentes, possibilitando trocas e contribuindo para as transformaes nas relaes senhoriais, quando parte dos tributos passaram a serem pagos em moeda. Ainda segundo o estudioso espanhol, tais mudanas permitiram uma maior mobilidade do homem do medievo, embora tambm tenha aumentado o distanciamento entre ricos e pobres. nesse contexto que podemos identificar uma alterao no conceito de pobreza, que deixa de ser vista como um estado de debilidade, passando a adquirir uma idia de degradao social. Foram, 221

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portanto, para Turza, a idia de expanso da pobreza e a busca pelo o lucro que fizeram com que os cristos pensassem outras questes em termos religiosos. Essa nova postura se fez evidente com o aumento das peregrinaes e da importncia atribuda caridade. Isso fica claro ao verificarmos que a partir do sculo XI h uma tendncia em se buscar viver melhor a f, o que estaria bem representado pelo cristianismo primitivo. Essa proposta faz com que muitos pensadores religiosos vejam na abnegao, desprendimento e na pregao aos pobres o verdadeiro ideal do Cristo. O perodo que abrange os sculos XI ao XIII foi, segundo Vauchez (1985, p.19), a verdadeira Era de Cristo, j que h uma passagem da viso de Cristo como o Rei e Senhor, que domina, para a do Jesus de Nazar que peregrina, prega, sofre e perdoa. Seriam, portanto, essas as idias bsicas que constituram a nova religiosidade medieval. dentro desse contexto que se d a Reforma Eclesistica. Esta pode ser analisada em dois momentos, o primeiro ligado busca de Roma em se tornar a Sede nica e absoluta do Cristianismo; e uma segunda, na qual h um projeto que visava modificar os costumes individuais e sociais. Iniciada pelo rei alemo Henrique III, a reformulao da Igreja tinha como objetivo por fim a comercializao da Cadeira de Pedro e a prtica da simonia. Os reformadores religiosos passam tambm a atacar o casamento clerical e o concubinato em prol da purificao da Igreja. Entretanto, a principal preocupao no girava em torno da pureza do clero e da instituio, mas com a possibilidade das propriedades da Igreja carem nas mos de ambiciosas famlias clericais. Indicado por Henrique III, o papa Leo IX passou a atuar com energia na Reforma. Nesse sentido, ele buscou uma renovao da f crist e uma reforma da vida monstica. Os principais aspectos que esse Pontfice atacou foram a simonia, o casamento de clrigos e a investidura leiga, sendo este ltimo ponto, no mnimo, contraditrio dentro da poltica papal, dadas as condies em que Leo IX assumiu o pontificado. Dessa forma, tais propostas, somadas a idia de quebra da dependncia dos mosteiros ao poder laico, permite entender que a Reforma proporcionou ao papado enriquecimento e a afirmao do seu poder. Isto , tendo libertado os mosteiros do domnio laico, suas rendas deixam de ser canalizadas para estes, e passam a contribuir para os recursos da Igreja. Alm disso, denotam uma afirmao do poder pontifcio sobre o clero, postura que se expandiu com Leo IX, na medida que este transformara o papado em uma instituio cuja esfera de atuao ultrapassava o regionalismo romano. Dentro desse contexto, podemos dizer que a Reforma, at esse momento, no estava em consonncia com as expectativas da sociedade, uma vez que sua preocupao maior estava relacionada questes internas. Muitos mosteiros, com a Reforma, enriqueceram. No entanto, sua postura tambm no se adaptou ao novo ambiente scio-cultural europeu, ou seja, o isolamento e a reduo do apostolado santificao individual, que seguiam, no atendia aos anseios da maioria dos cristos. Embora, tambm seja no meio monstico que surjam, paradoxalmente, as maiores
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OS FRANCISCANOS NAS CRUZADAS: UMA REFLEXO SOBRE AS POLTICAS PONTIFCIAS...

aspiraes transformao espiritual. Em um segundo momento, no entanto, houve uma tendncia por parte da Cria Romana em buscar uma reformulao dos valores cristos, ou seja, foi uma busca pela transformao dos hbitos e costumes da sociedade. Nesse sentido, podemos entender que a Reforma passou a ter um alcance maior, ou seja, no se restringiu somente ao clero e Igreja, mas passou a abarcar toda a cristandade. Tal proposta teve reflexo nas Cruzadas, j que o principal fator responsvel pela garantia de sucesso nas empresas crists - segundo a Igreja, bem como o prprio pensamento medieval - seria o valor dos homens envolvidos nas campanhas e a pureza de suas almas. Entretanto, essas condies s poderiam ser alcanadas mediante uma reformulao dos hbitos e costumes individuais, ou seja, era necessria uma reforma moral de toda a sociedade crist. Foi dentro desse ambiente que se desenvolveram as Ordens Mendicantes; que surgiram no meio urbano, abdicaram de todo e qualquer bem ou propriedade vivendo da caridade alheia e no praticavam o isolamento. Essas caractersticas denotam a ligao desses homens com os anseios e expectativas da sociedade do perodo. Em um breve relato acerca das origens dos frades menores, podemos ressaltar que seu fundador, Francisco, filho de um mercador de tecidos, nasceu na cidade de Assis em fins do sculo XII. Desiludido com os horrores presenciados durante a participao nas guerras de sua cidade contra Pergia e envolvido com as questes religiosas de seu tempo, decidiu abandonar o conforto de sua vida e abdicar de tudo o que fosse material para pregar o amor universal e o verdadeiro valor cristo. Prontamente conseguiu adeptos, e seu movimento foi reconhecido pelo papa Inocncio III em 1209. Os frades menores eram, na verdade, pregadores e tinham como meta difundir o evangelho e realizar aes na sociedade. A idia de aes referese aos trabalhos em prol da comunidade. Tal fato nos permite pensar em uma outra ruptura com o contexto scio-cultural anterior a esse momento, ou seja, se antes o trabalho manual era entendido de maneira pejorativa2 e a atividade intelectual tida como algo enobrecedor, os mendicantes, sob essa tica, tambm se diferenciam, de certa maneira, dos monges aos olhos do povo. Os monges se mantinham em clausura, entregando-se s letras, filosofia e teologia, embora alguns tambm trabalhassem dentro dos mosteiros. Mas onde os frades menores se encaixaram nos projetos pontifcios das Cruzadas? Esse questionamento pode ser respondido ao analisarmos os objetivos de vida dos Franciscanos; ou seja; a pregao, a itinerncia e a pobreza evanglica eram, segundo Sandro Roberto da Costa (2003, p.52) tudo o que a Igreja precisava naquele momento. Isto , uma vez que os bispos estavam sempre envolvidos em questes polticas locais e o clero secular nem sempre detinha o nvel intelectual exigido para pregao, a misso que foi confiada em primeira instncia aos monges, foi passada aos mendicantes. A atuao dos frades menores foi importante em dois aspectos principais para poltica do pontificado em relao s Cruzadas. Por um lado, devemos destacar sua participao na divulgao, cooptao de 223

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voluntrios e recursos para empresa crist; por outro, h que se ressaltar sua atuao nos campos de batalha ao lado dos cruzados. Nesse sentido, a experincia com os pregadores deixou claro, para a Igreja, que o sucesso de uma Cruzada dependia tanto do nmero de combatentes quanto da qualidade do pregador. Dessa forma, os frades menores se destacaram, dentre outras habilidades e caractersticas, por formarem um grupo heterogneo, desde simples laicos a sacerdotes e doutores em teologia, possibilitando alcanar diversos estratos sociais, inclusive os segmentos mais abastados, angariando recursos. O valor moral dos franciscanos e o seu carisma dentro da sociedade tambm colaboraram para o sucesso das campanhas de aliciamento para as Cruzadas. Cabe ressaltar que no eram considerados cruzados somente aqueles que partiram para o combate. Ao reforar o carter financeiro da empresa crist, Inocncio III concedia queles que contribuam com recursos para o movimento os mesmos privilgios dados aos guerreiros. Ainda sob esse aspecto, vale lembrar que outro fator responsvel pela escolha dos mendicantes pelo papa seria o voto de pobreza evanglica. Tal postura garantia que no houvessem desvios dos recursos conquistados nas expedies por parte dos pregadores; segurana esta que os bispos e membros do clero secular no poderiam oferecer Cria Romana. Dentro desse contexto de participao dos franciscanos no apoio as Cruzadas e poltica pontifcia atravs da sua pregao cabe um questionamento: se Francisco buscava divulgar o amor e a paz, por que ele e seus frades atuavam no alistamento de homens para a guerra? A resposta para isso pode ser encontrada no fato da Ordem dos frades menores estar subordinada Igreja e, portanto, vontade do Pontfice; alm disso, h a construo de todo um arcabouo teolgico em torno do conceito de guerra justa. Nesse sentido, se tomarmos o ponto de vista da religiosidade, verificamos que antes de um combate, as Cruzadas representavam um evento religioso, sendo estruturadas em torno da idia de peregrinao. Mesmo assim, a postura de Francisco quanto s Cruzadas estava relacionada tentativa de converso dos infiis atravs da palavra e no das armas. Esse posicionamento pode ser exemplificado na sua viagem ao Egito, onde foi recebido pelo sulto Melek el Kamel,3 porm no obteve sucesso na tentativa de converso dos muulmanos ao cristianismo atravs unicamente da pregao. Para compreendermos o impacto da atuao dos franciscanos no conflito propriamente dito, preciso que antes entendamos a histria da participao direta de clrigos em guerras, intercedendo junto a Deus pela vida das tropas e pregando aos exrcitos. Tal postura j era adotada ao longo da Antiguidade Tardia e da Idade Mdia, segundo Bachrach (2004, p.617). No entanto, seriam as transformaes nas prticas religiosas do Ocidente que impulsionaram os comandantes militares a recrutarem um contingente cada vez maior de clrigos para servirem como capeles nos exrcitos, j que a supresso do costume de se confessar apenas uma vez na vida e a institucionalizao dessa prtica como ato regular, permitia que todos os guerreiros relatassem seus pecados antes de cada batalha e, assim,
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pudessem enfrentar o inimigo com a conscincia e alma limpas. Logo, essas prticas, para (...) os habitantes endurecidos e violentos de um mundo demasiado preocupado com o pecado e suas conseqncias (...) (DUFFY, 1998. p.96 ), constituam um forte aliado no momento do conflito. Nesse sentido, a atuao dos franciscanos como capeles militares teve extrema importncia. Isto , os mendicantes tinham como funo encorajar, transmitir confiana e, assim, elevar o moral da tropa, alm de buscar manter a disciplina. Esses clrigos eram os responsveis por exaltar nos guerreiros o comportamento digno de soldados cristos, ou seja, deveriam manter o temor e o amor a Deus dentro das mentes desses homens. Tal postura estava em consonncia com a questo moral proposta pela Igreja, ou seja, somente os homens valorosos e puros de esprito estariam destinados a vencer. O fato dos frades menores estarem junto aos cruzados ouvindo suas confisses e conferindo penitncias antes, durante e depois das batalhas, fazia com que estes se sentissem prontos para lutar e morrer pela Cristandade na busca pela recuperao dos lugares sagrados. Sendo assim, foi agindo na preparao da mente e alma dos cruzados, que os franciscanos atuaram em meio ao conflito propriamente dito, desempenhando um papel fundamental no auxlio conquista dos objetivos das Cruzadas. Destacando-se nas participaes no contexto das Cruzadas, os franciscanos seguiram ganhando prestgio junto a Cria Romana. Dentro desse aspecto, a Ordem passou por algumas transformaes. Isto , a insero cada vez maior de elementos intelectualizados, ligados s universidades, tornou-se uma constante entre os frades menores. Dessa maneira, houve uma transformao gradual no tipo de pregao, que foi deixando de ser o anncio simples da Boa Nova, da exortao converso, para se tomar um sentido doutrinal, necessitando do estudo da teologia. Os menores foram recebendo dos papas uma srie de privilgios, que aos poucos foram moldando os franciscanos aos interesses da Igreja. Tal insero dos mendicantes nos mecanismos da Igreja fica evidente quando analisamos as funes que desempenharam a favor da afirmao do poderio papal, alm da pregao nas Cruzadas, como misses diplomticas, legaes e, at mesmo, nomeaes episcopais. Cabe ressaltar que a insero dos mendicantes no se deu somente atravs do papado, mas tambm pelos reis e nobreza que participaram das Cruzadas. Em virtude disso, muitos nobres buscaram convocar os integrantes dessas Ordens para pregar para seus exrcitos particulares.4 Diante do exposto, podemos verificar que os franciscanos surgiram em meio s transformaes de seu tempo, estruturando-se em torno de novas questes que permeavam o pensamento da cristandade medieval, a qual se encontrava, de certo modo, desiludida com as atitudes e tendncias da Igreja muito envolvida com as questes da Reforma. Dentro desse contexto, a poltica pontifcia; que buscava afirmar sua autoridade perante as instituies laicas, alm de expandir sua rea de influncia; encontrou nas Cruzadas um meio para alcanar tais objetivos. Foi dentro desse contexto de pregao das Cruzadas que o papa passou a fazer uso dos mendicantes 225

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

como meio de auxlio consolidao do seu projeto, tendo em vista o carisma e as caractersticas da Ordem. A partir desse ponto podemos, ento, notar que essa participao promoveu reflexos dentro da Ordem. No entanto, segundo Sandro, no devemos entender essas transformaes na Ordem como um afastamento dos ideais iniciais de Francisco, mas como medidas necessrias manuteno e sobrevivncia daquela. Sendo assim, no foi a influncia da Igreja a nica responsvel pelas mudanas da Ordem, uma vez que podemos identificar na prpria dinmica interna desta, elementos que contriburam para isso.
Bibliografia BACHRACH, David S. The friars go to war: Mendicant military chaplains, 1216 1300. The Catolic Historical Review. v. 90, n. 4, p. 617-633, 2004. COSTA, Sandro da. Deus o quer!, mas... e Francisco? Os franciscanos e a pregao das Cruzadas. In: COSTA, Sandro da, SILVA, Andria Cristina Lopes Frazo; SILVA, Leila Rodrigues da. (Orgs.). Tradio Monstica e o Franciscanismo. Rio de Janeiro: Pem, 2002. DUBY, Georges. Idade Mdia, idade dos homens: do amor e outros ensaios. So Paulo. Companhia das Letras, 1989. DUFFY, Emon. Santos e Pecadores: histria dos papas. So Paulo: Cosac & Naify, 1998. GARCIA TURZA, Francisco Javier. De los Monjes a los Frailes la coyuntura del ano 1200 en la sociedad y en la Iglesia. In: IGLESIA DUARTE, J. I. de la. (Coord.) Semana de Estudios Medievales, 6, Njera, agosto de 1995. Atas... Logroo: Instituto de Estudios Riojanos, 1996. p.13-27 LINAGE, Antonio. Las Ordenes Mendicantes. Madrid: Historia 16, 1985. MARTIN, Jose Luis. Las Cruzadas. Madrid: Historia 16, 1985. RAMOS, Luis Garcia-Guijarro. Papado, Cruzadas y rdenes Militares, siglos XI XIII. Madrid: Ediciones Ctedra, 1995. VAUCHEZ, A. La espiritualidad del Occidente medieval. Madrid: Ctedra, 1985. Notas As vises sobre a dor e o sofrimento fsico na idade mdia esto bem definidas em: DUBY, Georges. Idade Mdia, idade dos homens: do amor e outros ensaios. So Paulo. Companhia das Letras, 1989. p.165. 2 Sob a tica bblica, o trabalho estava associado dor, e no pensamento clssico estava ligado ao servo, ou seja, traduzia uma idia de ao humilhante. DUBY, G. op.cit., p. 162,163. 3 Sobre a viagem de Francisco ao Egito ver: LINAGE, Antonio. Las Ordenes Mendicantes. Madrid: Historia 16, 1985; e MARTIN, Jose Luis. Las Cruzadas. Madrid: Historia 16, 1985. 4 Vale destacar que a liberao dos frades para atuar junto aos exrcitos laicos dependia da autorizao do papa ou de seus legados.
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Mechthild e o amor s almas do Purgatrio


Denise da Silva Menezes do Nascimento*

osso trabalho tem por objetivo analisar a importncia da caridade para com as almas do Purgatrio na religiosidade das beguinas. Para tanto analisaremos os textos da beguina Mechthild que viveu em Magdeburg na segunda metade do sculo XIII. As beguinas eram mulheres leigas que se dedicavam ao amor de Deus e do prximo. Tais mulheres buscavam vivenciar as principais virtudes aconselhadas por Cristo e seus apstolos, tais como castidade, pobreza voluntria, f, humildade e caridade. A origem do termo beguina imprecisa, Saskia MurkJansen (MURK-JANSEN, 1998, p. 26), por exemplo, afirma que o termo pode ter vindo dos albigenses e que a palavra era empregada tanto para designar as ortodoxas quanto as mulheres herticas que tinham uma vida similar. J Andr Vauchez (VAUCHEZ, 1995, p. 121) e Le Goff (LE GOFF, 2001, p. 30) afirmam que a palavra est associada ao padre Lambert le Bgue (1177) da provncia belga de Brabante que incentivou mulheres leigas a viverem na caridade, ascetismo, pobreza voluntria e castidade. No meio urbano o papel da mulher nos sufrgios no era secundrio. Eis as mulheres animadas pelo desejo de levar uma nova forma de vida religiosa, a quem se propem que meditem sobre o Purgatrio: as beguinas. (LE GOFF, 1993, p. 372). Elas externalizavam sua compaixo pelos espritos privados da presena de Deus ao oferecerem sufrgios pelas almas do Purgatrio. Nesse sentido, podemos afirmar que para as beguinas a caridade para com as almas que sofriam os tormentos do Purgatrio era um dos principais pontos em que se calcava a sua espiritualidade. Devido compaixo divina os pecados eram perdoados e o pecador arrependido no era punido com a pena eterna, porm, a justia de Deus no deixava o pecado impune. At o sculo XIII dois eram os veredictos: Cu ou Inferno. Com as transformaes desse perodo vemos despontar uma terceira possibilidade o Purgatrio. Exemplo de compaixo para com as almas que sofriam os tormentos do Purgatrio dado por Mechthild que conseguiu a libertao de setenta mil almas atravs de orao e muitas splicas.
Um horripilante banho, uma mistura de fogo e breu, de estrume, fumaa
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Doutoranda do Programa de Ps-graduao em Histria Social da Universidade de So Paulo.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS e fedor. Uma espessa neblina escura foi desenhada como chapu preto sobre eles. As almas estavam deitadas nele como sapos na imundcie. [...] Eles gritavam e sofriam incontveis tormentos por causa de sua carne, que os tinha afundado to profundamente. A carne tinha cegado seus espritos. [...] Ento a alma da pessoa [que desejava libert-los de tal tormento] tornou-se muito triste e prostrou-se aos ps de nosso querido Senhor e desejou poderosamente e trabalhou amorosamente e disse: Meu Querido, voc sabe muito bem o que desejo. [...] Ento, Nosso Senhor, de seu divino corao encheu-se de um doce desejo pelas pobres almas. Em grande alegria e amor elas se ergueram. A alma estranha disse: Ai de mim, meu querido Senhor, aonde elas devem ir agora?. Ele disse: Eu devo traz-las a uma montanha coberta com flores. L elas devero achar mais felicidade do que eu saiba expressar. Ento nosso Senhor os serviu e foi seu oficial e sua mui querida companhia. Nosso Senhor me contou que havia setenta mil deles. (MECHTHILD, 1998, p.121-124).

Para as beguinas, a reflexo sobre o Purgatrio estava vinculada ao desejo de justia, j que o local para onde as almas eram enviadas aps a morte estava relacionado s atitudes boas ou ms e s aes justas ou injustas praticadas aqui na terra. Por isso,
na parte mais baixa do inferno, o fogo, a escurido, o fedor, os tremores, e todos os tipos de dor intensa so os maiores. l que os cristos so posicionados de acordo com suas aes. Na parte do meio do Inferno o sofrimento mais moderado. L os judeus so classificados de acordo com suas obras. Na parte mais alta do inferno os vrios tipos de dores so as menos severas, e l os gentios so posicionados de acordo com suas obras. (MECHTHILD, 1998, p.128).

Assim, o Alm deveria corrigir as desigualdade e injustias deste mundo. Nem todas as faltas eram igualmente graves e por isso no mereciam a mesma punio; se a justia humana no se agradava das desigualdades e injustias quanto mais a justia divina que era sbia, perfeita e no estava em dissonncia com a misericrdia do Pai Celestial. A crena no Purgatrio pressupunha um julgamento individual baseado nos mritos de cada um e que ocorria logo aps a morte, era nesse momento que Deus dava a sentena: Cu, Purgatrio ou Inferno. O destino do homem aps a morte era, portanto, determinado pela conduta em vida: a f e as boas obras levavam para o Cu, j os pecados capitais e a incredulidade conduziam ao Inferno. No sculo XIII pecado venial era sinnimo de uma falta digna de venia, ou seja, de perdo. Os pecados veniais eram, portanto, aqueles que se praticava por ignorncia ou mais comumente os pecados leves, quotidianos. Havia, portanto, uma diferenciao entre pecado criminal ou mortal e pecado venial ou leve. O primeiro se cometia deliberadamente e a conscincia e gravidade do ato ou pensamento levava condenao; j os pecados veniais provinham da fraqueza humana ou de sua ignorncia e por isso no eram passveis de
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uma condenao eterna, tais pecados eram facilmente perdoados pela confisso, contrio e penitncia. Ao pecado mortal as chamas eternas do Inferno, ao pecado venial o fogo temporrio do Purgatrio. Todavia, no devemos pensar que o Purgatrio era destinado apenas aos que tinham cometido faltas leves. L tambm eram purgados os pecados criminais dos homens que antes de morrerem se arrependeram, assim temos um Purgatrio povoado de pecadores arrependidos e confessos que eram punidos de acordo com as faltas cometidas.
Uma pessoa deveria orar muito simplesmente e com grande intensidade a Deus no Paraso pelas pobres almas. Uma vez Deus mostrou a ela [Mechthild] o horrvel fogo purificador e os tipos de tormentos nele to variados como os pecados punidos l. O esprito desta pessoa foi to intensamente mudado que ela acolheu o Purgatrio inteiro em seus braos. Ela continuou carinhosamente e suplicou amorosamente [pelas almas]. (MECHTHILD, 1998, p.77-78).

Para o Purgatrio tambm iam os que praticaram pecados mortais por ignorncia. Nesse sentido, os homens que pecaram por desconhecimento da gravidade de seus atos ou pensamentos no eram condenados a pena eterna, j que neste caso tais pecados eram considerados veniais. Os homens que no tinham conscincia do pecado que estavam praticando cometiam pecados veniais, posto que no estavam desobedecendo aos mandamentos cristos voluntariamente e sim por ignorncia. No havendo culpa no eram condenados ao Inferno, mas devido justia divina eram enviados ao Purgatrio para cumprirem sua pena. Isto porque era necessrio distinguir culpa, que era o desprezo a Deus e a desobedincia s suas ordenanas, e pena, esta como sendo sinnimo de castigo aplicado. O que normalmente levava a condenao era a culpa, mas esta podia ser remida pela confisso e contrio; enquanto a pena era anulada pelo cumprimento da penitncia imposta. Para a maioria dos telogos do sculo XIII, entre os quais podemos destacar Alexandre de Hales (LE GOFF, 1993, p.192-196) os pecados veniais eram remidos no Purgatrio quanto pena, mas no quanto culpa que era apagada no instante da morte pela caridade divina. Os justos que morreram com pecados veniais insignificantes tinham como castigo a privao da Viso Beatfica. Alguns telogos acreditavam que isto tinha lugar no limbo, outros eram favorveis a que tal punio ocorria no Purgatrio. As beguinas eram contrrias tese de tienne de Bourbon que afirmava que a privao da Viso de Deus era uma das mais duras penas do Purgatrio. Para elas a privao da Viso Beatfica era a menor pena das que se suportavam no Purgatrio. Assim, alguns homens que tiveram uma vida asctica com ardente amor a Deus no eram torturados, mas como forma de expiao estavam privados temporariamente da gloriosa Viso de Deus.
Porm quando eles tiveram se tornado to abenoados que tenham sido libertados das mos de mal, eles ainda queimam dolorosamente

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS dentro de si mesmos por causa de pequenos malfeitos. Da em diante, atravs de ajuda [sufrgios] e pacincia eles ultrapassam toda aflio. Isto to prximo do Cu que eles possuem todas as alegrias exceto trs eles no vem Deus, eles ainda no receberam suas honras e eles ainda no foram coroados. (MECHTHILD, 1998, p.234-235).

As beguinas fizeram da caridade a base de sua religiosidade e, portanto, se compadeciam de todos os necessitados, quer no plano fsico ou espiritual, pois conforme aconselhava Mechthild era necessrio trabalhar pelos pecadores e por aqueles no Purgatrio, e assistir s necessidades de cada e toda pessoa, viva ou morta. (MECHTHILD, 1998, p. 240). A piedade para com as almas do Purgatrio se fazia necessria, pois o tempo que se passava no Purgatrio podia ser reduzido pelos sufrgios dos vivos: oraes, missas, a Palavra de Deus, a vida de boas pessoas e jejuns libertam as almas do Purgatrio. (MECHTHILD, 1998, p. 236). Nesse sentido, Mechthild oferece o sufrgio da orao s almas que sofrem os tormentos do Purgatrio.
Eu oro a ti, santo Pai do Cu, por todas as almas crists que partem de seus corpos hoje, que o senhor, Deus misericordioso, possa ser o Protetor delas e conceder a elas a Vida Eterna. Oh, querido Senhor, tenha misericrdia das almas de meu pai e minha me, e tambm de todas as almas no Purgatrio. Liberte-os, Deus, nesta hora atravs de seus trs gloriosos nomes. Possam eles descansar em paz. Amm. (MECHTHILD, 1998, p.262-264).

Deus dava uma permisso especial para que as almas sassem de sua morada temporria e aparecessem aos vivos para sensibiliz-los a uma vida asctica. O criador na sua infinita misericrdia permitia que os vivos tivessem uma chance de aprendizado, reflexo e arrependimento ao verem os sofrimentos pelos quais passava o homem que morria impenitente; assim, a caridade divina ensinava os vivos por intermdio dos mortos. A celebrao do Dia das Almas Dia 2 de novembro instituda no sculo XII por Cluny, era destacada pelas beguinas, na medida em que intensificava a solidariedade entre vivos e mortos. Esta data do calendrio litrgico era apresentada como uma importante comemorao, j que este era um dia de caridade e sufrgios por todas as almas no Purgatrio e no apenas para parentes e amigos.
No Dia de Todas as Almas eu orei junto Sagrada Cristandade por todas as almas que esto cumprindo pena no Purgatrio. Ento eu vi um Purgatrio que era como uma fornalha. Do lado de fora era preto, do lado de dentro estava cheio de chamas ardentes. Olhando para o lado de dentro eu vi como eles estavam nas chamas e queimavam como um fardo de palha. (MECHTHILD, 1998, p. 275-277).

Aps descrever os tormentos do Purgatrio, enfatizando a passagem pelo fogo que purificava os pecados da alma, Mechthild nos mostra que o
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Senhor na sua infinita misericrdia permitia que os sofrimentos das almas fossem amenizados e sua pena reduzida pelas oraes e penitncia dos vivos em prol dos mortos.
Ento minha alma foi levada a agir com piedade por causa do poder e dignidade deles e eu chorei aos Cus: Senhor Deus, poderia eu ir para o lado de dentro com eles e sofrer com eles de forma que eles pudessem vir at vs logo?. Ento Nosso Senhor revelou que ele era o anjo de p prximo a mim, e ele disse: Se voc est desejando entrar, eu hei de entrar contigo. Ento Nosso Senhor abraou o esprito dessa pessoa para si mesmo e a trouxe para o lado de dentro. Quando a alma veio para o lado de dentro com Nosso Senhor ela no sentiu dor alguma. Ento ela perguntou quantos deles havia. Nosso Senhor disse: Voc no pode terminar de cont-los, e estes so aqueles por quem voc orou enquanto eles estiveram na terra. Ento eu achei uma pessoa por quem eu costumava orar a trinta anos atrs. E eu estava entristecida porque eu no tinha nada para dar a ele e, por causa da minha desdita, eu no ousei pedir por grandes coisas de um to grande Senhor. Ento eu disse as seguintes palavras: Oh querido senhor, voc os libertaria?. Ento todos de uma s vez se ergueram em grandes nmeros maravilhosamente mais brancos do que a neve, e eles flutuaram em direo ao Paraso em pura e doce felicidade. L eles descansaram com alegria. (MECHTHILD, 1998, p. 275-277).

As almas que no possuam um intercessor especfico junto a Deus no eram beneficiadas apenas no Dia das Almas. Para as beguinas o sufrgio oferecido em prol de uma alma podia tambm beneficiar as demais. A orao e demais obras pias feitas em prol de uma alma, no perdiam sua funo caritativa mesmo que a alma a quem se destinava o sufrgio j tivesse sido libertada. Os sufrgios eram mais teis queles a quem eram destinados, todavia os sufrgios excedentes ajudavam as almas que deles estavam privadas, mas que necessitavam de tal ajuda.
A alma: Tudo que nos dado como ajuda em nosso caminho ao Cu certamente nosso. Mas uma vez que chegamos l, compartilhado pelas almas. Isto Deus fez por ns para o nosso prprio bem, para que eles rapidamente venham e nos ajudem a louvar a Deus em eterna glria. (MECHTHILD, 1998, p. 184-185).

Mesmo os sufrgios dos pecadores eram teis, na medida em que estes no dependiam da condio de quem os oferecia e sim de quem os recebia. Alis, semelhana dos sacramentos que so eficazes por si prprios, independentemente daquele que atua. (LE GOFF, 1993, p. 321). Portanto, mesmo no tendo a graa da perfeita santidade, as penitncias e oraes das beguinas reunidas em comunho contribuam para minimizar o sofrimento dos necessitados de ajuda espiritual.
Agora, Senhor, eu desejo seu louvor e no minha vantagem de que hoje seu glorioso corpo deva vir como consolao s pobres almas.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Voc verdadeiramente meu. Agora, Senhor, voc deve ser hoje um resgate por aqueles prisioneiros. [...] Ento nosso Senhor os serviu e foi seu oficial e sua mui querida companhia. Nosso Senhor me contou que havia setenta mil deles. A alma ento perguntou por quanto tempo seus tormentos tinham durado. Nosso Senhor disse: Eles tem estado separados de seus corpos h trinta anos, e por mais dez anos eles estariam em tormento, no tivesse tal precioso resgate sido oferecido por eles. (MECHTHILD, 1998, p. 121-124).

As beguinas eram mulheres que viviam na pobreza voluntria, dedicando-se a caridade, a vida longe dos costumes deste mundo as aproximavam do Salvador. O pobre era identificado com o Cristo-sofredor e considerado como um intercessor nato, uma espcie de porteiro do Paraso. (MOLLAT, 1989, p. 110). A esmola estabelecia uma estreita relao entre o benfeitor e o beneficirio, na medida em que aquele abria mo de parte de seus bens em favor de outrem, enquanto este passava a dedicar oraes em favor do doador. As beguinas, ao tornarem-se voluntariamente pobres de Cristo, eram receptoras de esmolas e ao receberem tais legados pios intercediam junto a Deus pelos indivduos que fizeram a doao. Por sua atuao as beguinas passaram a receber inmeras doaes para que orassem e jejuassem pelas almas. Estes bens eram transformados em ajuda e, portanto, repassados para hospitais, leprosarias, ou destinados a saciar a fome dos famintos, abrigar os peregrinos, cuidar dos enfermos, entre outros. Assim agindo, essas mulheres praticavam atos misericordiosos que serviam para reduzir a estada da alma do doador no Purgatrio e ao mesmo tempo minimizavam os sofrimentos dos vivos. O medo dos castigos infernais levava os homens medievais a deixar parte de seus recursos em proveito da Igreja ou dos mais pobres; seus bens transformavam-se post mortem em doaes a hospitais, igrejas e ordens religiosas e em oraes e missas. Vrios eram os homens que deixavam parte de seus bens em proveito de comunidades religiosas, inclusive beguinarias, para que fossem revertidos em obras pias.
Os leigos que do uma oferta devem abster-se da maldita parcimnia quando doarem, da mesma forma que o padre deve preservar-se de ambiciosa cupidez. Isto importante para ambos porque o leigo deve dar sua oferta com grande amor e uma alma vivida na mo generosa de Deus. O padre deve tom-la em humilde temor e trmulo corao das mos de Deus e deve em todas as suas aes retorn-la a Deus de modo louvvel; pois os bens terrenos so como escravos quando algum os recebe, porm como o inocente quando algum lhes doa. (MECHTHILD, 1998, p. 151).

Para as beguinas o Purgatrio era tambm um lugar de esperana, na medida em que todos os que por ele passavam sabiam-se eleitos. As beguinas eram contrrias a idia de que todas as almas do Purgatrio julgavam-se condenadas devido aspereza de suas penas e passagem pelo fogo. Para elas tais almas sabiam-se destinadas Vida Eterna com Jesus.
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MECHTHILD E O AMOR S ALMAS DO PURGATRIO Eu tambm vi um homem religioso sofrendo. [...] Eu perguntei: Ai de mim, diga-me, como pode algum te ajudar?. Ele disse: Se uma pessoa oferecer cem venias [completa prostrao que se faz durante uma orao], doze disciplinas [equivale a uma prtica na qual o indivduo se penitncia com um chicote de corda], e muitas lgrimas com um corao cheio de lamento de puros olhos todos os dias por um ano, isso ser penitncia para mim. (MECHTHILD, 1998, p. 124-125).

Os relatos das beguinas esto repletos de nmeros que sugerem uma relao de proporo entre a gravidade do pecado e tempo no Purgatrio, bem como entre o tempo dos sufrgios oferecidos e o tempo de acelerao da sada do lugar intermedirio. Nosso Senhor disse: Eles tm estado separados de seus corpos h trinta anos, e por mais dez anos eles estariam em tormento, no tivesse tal precioso resgate sido oferecido por eles. (MECHTHILD, 1998, p. 121-124). Era comum a pario de almas que estavam no Purgatrio um perodo considerado curto para ns alguns dias ou meses. A durao refere-se sensao que as almas tem no Purgatrio de que o tempo passa muito lentamente, por causa dos sofrimentos que l suportam. (LE GOFF, 1993, p.366). A dureza das penas dava, portanto, a sensao de que o tempo decorrido era maior do que o perodo que l estavam. Mechthild afirma que na justia, seu sofrimento teria durado dezessete anos, mas a misericrdia de Deus o reduziu a dezessete meses porque ela tinha agido com intenso amor. (MECHTHILD, 1998, p. 184-185). As almas no ficavam no Purgatrio necessariamente todo o tempo decorrido entre a morte individual e o Julgamento Final, j que elas podiam ser libertadas mais ou menos rapidamente de acordo com a gravidade dos pecados, a penitncia cumprida em vida e os sufrgios dos vivos. Nas vises de Mechthild era comum que a alma falasse sobre o tempo passado no Purgatrio, o perodo de penas a cumprir e o tempo de purgao que seria reduzido pelos sufrgios. Podemos perceber que para alm das aes em vida que determinavam a permanncia no Purgatrio o tempo neste local era tambm determinado pela caridade dos vivos e pelas indulgncias da Igreja. O sufrgio s era valido se o cristo merecesse pela sua vida justa e seu amor ser ajudado depois da morte. Isto porque depois da morte j no se adquiria mritos, este era o tempo de se fazer uso dos mritos conseguidos em vida; este era o caso das almas que utilizam os seus mritos, atravs dos sufrgios, para reduzir sua estada no Purgatrio.
Se voc quer voltar seu corao completamente a Deus, deve persistir em trs coisas como ensinamento: amedrontar-se em face do pecado, ser bem intencionado como todas as virtudes, ser constante em todas as boas ciosas. Ento voc traria sua vida a um bom final. Se voc agir desta maneira, voc pode de fato atingir isso com a ajuda de Deus. Ore a Deus por isto constantemente e voc sustentar todos os seus problemas levemente. Confesse puramente e sirva a Deus diligentemente e voc ser rico em alegria. (MECHTHILD, 1998, p. 299-300).

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Na condio de satisfatrio (expiao) o sufrgio era propriedade do defunto, beneficiando apenas as almas. Todavia, na condio de meritrio da vida eterna o sistema de sufrgio tambm era til aos vivos pela caridade feita em favor dos mortos, que implicava na aquisio de mritos nesta vida e tambm pela maior proximidade com Deus atravs da orao feita em favor das almas. Nesse sentido, as beguinas ao se voltarem para os necessitados espirituais colocavam em prtica os dois principais mandamentos: o amor a Deus e ao prximo.
Bibliografia ARIS, Philippe. Histria da Morte no Ocidente. Lisboa: Teorema, 1989. BECHTIL, Guy. A carne, o diabo e o confessor. Lisboa: Dom Quixote, 1998. BOWIE, Fiona. Beguine spirituality: mystical writings of Mechthild of Magdeburg, Beatrice of Nazareth and Hadewijch. Nova York: Crossroad, 1990. BRAET, Herman, VERBEKE, Werner. A morte na Idade Mdia. So Paulo: Edusp, 1996. BYNUM, Caroline Walker. Jesus as mother. Studies in the spirituality of the High Middle Ages. California: University of California, 1982. GRUNDMANN, Herbert. Religious movements in the Middle Ages. Notre Dame: Universidade de Notre Dame, 1995. LE GOFF, Jacques. O nascimento do Purgatrio. Lisboa: Estampa, 1993. MECHTHILD OF MAGDEBURG. The flowing light of the Godhead. Traduo e Introduo de Frank Tobin. Nova York: Paulist Press, 1998. MOLLAT, Michel. Os pobres na Idade Mdia. Rio de Janeiro: Campos, 1989. MURK-JANSEN, Saskia. Brides in the desert. The spirituality of the beguines. Nova York: Orbis, 1998. SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. VAUCHEZ, Andr. A Espiritualidade na Idade Mdia Ocidental. Sculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

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Reflexes sobre a produo historiogrfica sobre a morte na Idade Mdia


Maurcio Prates Nogueira A morte s tem importncia na medida em que nos faz refletir sobre o valor da vida. Andre Malraux Introduo sta comunicao apresenta as primeiras reflexes relacionadas pesquisa que visa a redao da monografia final, a ser apresentada ao Departamento de Histria da UFRJ. O objetivo analisar o texto hagiogrfico de nome A morte de So Jernimo, escrito no mosteiro portugus de Alcobaa entre os sculos XIII e XIV. Essa pesquisa est vinculada ao projeto Hagiografia e Histria, uma das pesquisas desenvolvidas no PEM, Programa de Estudos Medievais da UFRJ, onde fazemos uma pesquisa em conjunto no intuito de identificar e analisar as hagiografias escritas no perodo entre os sculos XI-XIII nas pennsulas ibrica e itlica coordenada pela professora Andria Frazo. A hagiografia A morte de So Jernimo foi transmitida pelo manuscrito alcobacense CCLXVI, que rene outras hagiografias, como Vida de Tarsis, Vida de uma Monja, Vida de Santa Pelgia e Viso de Tndalo, e encontra-se atualmente na Biblioteca Nacional de Lisboa A obra apresenta aquelas que teriam sido as ltimas palavras do santo antes de morrer e relata o milagre que ocorreu com o seu corpo morto, que exalava perfume. Aps as minhas primeiras reflexes, conclui que esta hagiografia , ao mesmo tempo, um testamento de um moribundo, um discurso de como ser um bom cristo e uma defesa da trindade. Nossa preocupao central articular esta obra s prticas e vises sobre a morte em Portugal no sculo XIII. A morte uma etapa de nossa existncia to importante quanto o nascimento. Falar da morte falar de nossa prpria realidade, como ser vivo. Segundo os especialistas, desde os primrdios do cristianismo, a morte foi pensada como uma passagem para um outro mundo, o Alm, que seria os cus ou o inferno, onde os homens habitariam eternamente. A deciso de seus destinos viria a partir do julgamento dos atos cometidos pelos homens no mundo terreno feito por Jesus em nome de Deus no dia do Juzo final.

Graduando em Histria na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Nos sculos que compreendemos como Idade mdia, apontam os estudos que os homens sentiam medo e respeito pelos mortos e, com isso, praticavam ritos em homenagem aos que se foram do mundo terreno. Os religiosos aos poucos passaram a proibi-los, atribuindo tais costumes aos pagos, ento aqueles que os praticavam eram vistos como contra a ortodoxia catlica. J no sculo XIII, perodo que nos interessa, segundo os trabalhos histricos sobre a temtica, a morte, que uma passagem natural, passa a implicar na tomada de conscincia de si prprio e, com isso, surgem testamentos que especificam os atos para a salvao do morto e os documentos genealgicos, traando a sua linhagem, individualizando-o e reconhecendo-o em destaque. O enterro dos mortos em tmulos fora da igreja passaram a ser prtica comum na alta hierarquia social, pois era custoso construir e manter as instalaes. As preocupaes de se individualizar no processo de morte era, porm, uma caracterstica deste grupo privilegiado. A idia de morte e de alm esto indissociveis em todos os textos medievais e, portanto, tambm em nosso estudo. Para o homem medieval, a morte sempre levar a alma para o alm, um mundo extraterreno, e eternamente ficar neste local. Podemos concluir, a partir destes dados presentes nos textos historiogrficos, que na Idade Mdia a viso sobre a morte diferenciada e a Igreja tenta monopolizar tais vises, porm isso no foi totalmente possvel. Da nos aproximarmos deste texto alcobacense: o que eles nos apresenta sobre os conflitos entre as prticas e as concepes de morte presentes no reino portugus em fins da Idade Mdia? A presente comunicao tem como objetivo discutir como os historiadores procuraram entender a viso da morte para os homens na poca medieval. Os textos analisados estudam aspectos filosficos, literrios, sociais e teolgicos das representaes da morte no medievo.Consideramos fundamental, antes de nos debruarmos sobre o estudo de nosso texto medieval, verificarmos como o tema morte tem sido abordado pela historiografia, a fim de que possamos reunir dados para a leitura crtica e original desta hagiografia. A anlise ser de cinco textos contidos em dois livros sobre o tema: Histria da morte no Ocidente, de Philippe Aris, escrito em 1975, considerada a obra clssica sobre o tema, e alguns textos reunidos no livro A morte na idade mdia, organizado por Herman Braet e Werener Verbeke, que uma srie de comunicaes e conferncias apresentadas em um Colquio Internacional ocorrido em 21 a 23 de maio de 1979 e organizado pelo Middeleeuwse Studies da Katholieke Universiteit. A minha escolha baseou-se na busca de livros de referncia, que abrangessem um gama maior de aspectos sobre o tema morte no medievo. O primeiro artigo que analisaremos o segundo captulo, A morte de si mesmo, do livro Histria da morte no Ocidente, que demonstra a preocupao dos homens, a partir do sculo XII, em relao a sua personalidade e individualidade. Aris se preocupa em analisar como o doente,
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REFLEXES SOBRE A PRODUO HISTORIOGRFICA SOBRE A MORTE NA IDADE MDIA

a caminho da morte, deveria seguir um ritual e estuda o sepultamento dos mortos. Neste perodo, segundo o autor, d-se mais importncia ao morto do que ao rito e ao homem caberia aceitar a sua condio e sua morte. Em um primeiro momento, o autor estuda a representao do juzo final. A idia predominante no sculo XIII era do juzo como uma corte de justia, onde Cristo, a Virgem Maria e So Joo participam do destino das almas pesadas na balana da vida, na qual as aes ms e boas eram postas separadas em dois pratos e registradas em um livro chamado Lber vitae, considerado um livro csmico. Para Aris, a idia de juzo final foi ligada biografia individual, que no acabaria com a morte, mas sim, no final dos tempos. Para Aris, a idia da decomposio, no medievo, sinal do fracasso do homem, pois a morte interrompe as ambies e os prazeres terrenos. E acrescenta que os homens transformaram a sua viso da vida e da morte por meio do speculum mortis, espelho da morte onde o homem do medievo via a imagem da sua alma refletida revelando sua verdadeira natureza assim redescobrindo o segredo de sua individualidade. Aris parece concluir que a morte para o homem do final da idade mdia seria uma profunda descoberta da sua individualidade por meio do lber vitae e do speculum mortis, onde refletem a verdadeira personalidade da alma. O outro captulo do livro de Aris analisado se chama Riqueza, pobreza e a morte da na idade mdia, que estuda o rito da preparao do doente para a morte e as ordens que deixam aos seus prximos para que executem depois de sua morte. Para o autor francs, os homens amavam loucamente as coisas da vida. A morte torna-se um ato dramtico e, com isso, o doente, ao prever a sua morte, pratica um longo ritual de preparo para uma boa morte, onde acompanhado dos seus parentes e amigos. O doente deveria fazer a escolha mais difcil em sua vida, que era o apego ou desapego s riquezas em nome do amor que tem por Deus. O nobre do sculo XIV, por exemplo, empobrece seus herdeiros pelas instituies devotas e caridosas: legado aos pobres, aos hospitais, s igrejas e s ordens religiosas, missas pelo repouso de sua alma, que se contam em centenas e milhares (Heers, 1966), pois tem medo do castigo eterno por ter acumulado riquezas. Por isso, podemos dizer que, para Aris, a morte foi o momento do desprendimento das riquezas acumuladas. Ele usa Max Weber, o fato de que um ser humano possa escolher como tarefa, como nico objetivo na vida, a idia de descer sepultura carregado de ouro e de riquezas para ele (homem pr-capitalista), s se explica pela interveno de um instinto perverso, o auri sacre fames. (apud Aris, 1977) Existia uma ambigidade da avaritia, da fama e da glria, revelando a separao difcil de uma imortalidade celeste e a celebridade terrestre. Aris conclui que existia uma clara conscincia das diferenas entre os ritos dos ricos e dos pobres, em que o ltimo fica sozinho e, por isso, criam-se confrarias que fazem a caridade e uma delas as exquias no 237

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

momento final de sua existncia terrena. No Uma antiga concepo do alm, tambm de autoria de Aris, e presente no livro A morte na idade mdia, faz-se uma anlise do entendimento do que era o alm na literatura culta medieval. As fontes estudadas so um livro apcrifo do primeiro sculo da nossa era, o quarto livro de Esdras, os livros sinticos da Vulgata e uma orao do primeiro ritual galicano da morte. Em primeiro lugar, o autor sustenta que o morto aquele que passa, o passageiro, e espera a vinda de Jesus Cristo e a ressurreio (1Ts IV, 12-17) num lugar de refrigrio e, portanto, da consolao e do descanso (At III, 20). O descanso e espera, segundo o estudioso, so muito mais presentes que qualquer outra caracterstica durante a alta idade mdia. Porm, no Ap.XX, 4-6, aparece uma nova concepo que ele chama de milenarista, segundo a qual o Sat aprisionado por mil anos, quando ocorreria a prima ressurectio. Depois de mais mil anos ocorreria a ressurreio dos que no haviam sido privilegiados na primeira e que seriam julgados segundo suas obras, que estaro registradas no livro da vida. Os padres logo comeariam a condenar a interpretao literal da idia milenarista. A denominao do alm para os primeiros padres, principalmente para santo Ambrsio, dada como promptuaria animarum, reservatrios de alma. Mas, na poca da escolstica, o mesmo lugar passa a ser chamado de receptacula. No sculo XI e XII, h uma clara mudana no ponto vista, pois a idia do castigo e punio passa a ser principal, no lugar da idia de descanso e espera do juzo final. Tal concepo aparece na iconografia. Na liturgia galicana percebemos vrias denominaes para o alm que so refrigerium, sinus Abrahae, Jerusalm celeste, mansio, porcio, paradisus, regnum e habitaculum como um lugar de descanso. Mas a espera s definida como um nico termo: requie. A idia de Jerusalm celeste, lugar da viso beatfica, e o seio de Abrao tendem a se aproximar e a se confundir, e a ambigidade das diferentes origens se apaga. Se pensarmos na topografia definitiva do alm que conhecemos, paraso, inferno e purgatrio, s a encontraremos na baixa idade mdia nas obras de Dante, comentrios dos escolsticos e finalmente no catecismo banal. A imposio dos letrados demorou muito tempo para se afirmar como uma crena comum. A fonte que demonstra melhor essa persistncia do morto como aquele que repousa a lenda dos Sete adormecidos de feso, presente na Legenda urea, uma compilao de Jacobus Voragine do sculo XIII. No final deste sculo, o sono da morte ainda no provoca escndalo. No sculo XII, os tmulos representavam os mortos como os setes mrtires, ou seja, todos descansam com os olhos abertos e com a mo cruzada no peito esperando a ressurreio. Aris conclui que na idade mdia os mortos so vistos como bem aventurados a espera da ressurreio num descanso, mesmo que essa idia tenha sido rejeitada pela elite religiosa desde santo Agostinho. O artigo A morte como texto e signo na literatura da idade mdia, de Gerhild Scholz Williams, pretende identificar a importncia da morte nos
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REFLEXES SOBRE A PRODUO HISTORIOGRFICA SOBRE A MORTE NA IDADE MDIA

textos literrios. As fontes analisadas so Elegia de Walter de Vogelweide, Parsifal, Tristo e Isolda, Roman de Thbes, Roman dEneas, Fabliau, Vers de Hlinand, Baysrische chronik de Ulrich Fltrer, Herzmare, Minnesang e Mort du roi Artu. O autor defende que a produo literria potica referente a morte era destinada para os nobres e refletia um longo debate crtico com a cultura cortes, que floresce no sculo XII, por meio dos seus prprios conceitos de valor e do modo de compreender essa cultura. A morte estabelece o vnculo entre o passado e o futuro e opera de forma estruturante, como texto e signo, sobre a concepo de cada sociedade faz de si mesma. Assim, a morte ligada ao amor, pois ela integra a realidade fsica e espiritual dissolvendo a tenso psicolgica e os vnculos sociais antigos e cristalizados, conduzindo a outros novos. Ele destaca que tanto a morte como o amor esto interligados em quatro formas diferentes e complementares de investigar o tema dentro da literatura, que so o signo histrico, sociocultural, psicolgico e semiolgico. Os estudiosos na histria medieval falam que os escritores da baixa idade mdia se interessavam em descobrir os motivos do agir humano e fundir a histria do mundo com a histria da salvao regulado pelo topos, um motivo que sempre aparece ao longo do texto. No campo sociocultural, a morte de um heri quer dizer uma mudana de governo e aquele que o substitui tambm pode significar uma mudana no cenrio cultural da sociedade. No campo psicolgico, o estudo nos induz a entender que a alma desesperada se transpe numa visualizao da dor e que a onipresena da morte faz parte e tambm oponente deste mundo, como parte da ordem divina e colaboradora dessa ordem. No campo semiolgico, o tema um argumentum elaborado de acordo com as regras da retrica. O leitor conhece a interao complexa da representao do signo morte com a inter-relao das diferentes estruturas do mundo e estabelece a ligao entre a representao literria do texto com outras formas literrias. O processo histrico, a partir do sculo XII, mostra um debate crtico na tentativa de questionar o processo da morte em seu valor e o modo de compreenso individual. No mundo corts e na sua organizao, a morte comea a se assemelhar com o caos potencial que ameaa as individualidades pertencentes aquele grupo. Assim, para Williams, a morte torna-se um signo que realiza experincias ticas e ontolgicas. Na tica, ela se torna visvel na descrio do morto e ontologicamente, h uma ligao com os signos de queda do homem no pecado e da redeno divina. Para o autor, pode-se investigar o tema morte diacronicamente e sincronicamente, mesmo trabalhando com as modificaes e variaes que acontecem durante os sculos medievais. Asssim, a morte isolada como personificao e aparece como intermediria entre Deus e o diabo, ou seja, entre o bem e o mal. Em um caso positivo, ela a promessa de vida eterna e amor puro. O medo da morte existencial do homem encontra o seu ponto alto e sua mudana rumo esperana afirmadora da vida na dualidade da realidade psicolgica da morte. 239

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

O ltimo artigo analisado se chama O vocabulrio da morte na Espanha do sculo XIII segunda a obra de Berceo, de Jol Saugnieux. O autor utiliza algumas fontes berceanas, como o Milagros de Nuestra Seora, os Loores de Nuestra Seora, consideradas obras mariolgicas, Vida de san Milan de la Congolla, Vida de santo Domingo de Silos, consideradas obras hagiogrficas, Poema de santa Oria e Martrio de san Loreno, que ele considera como textos msticos. Segundo Saugnieux, o fato de morrer pode ser manifesto em trs formas na lngua castelhana durante o sculo XIII, que tambm so usadas por Berceo, que so o modo ativo, passivo e reflexivo. A morte ativa a sofrida que independe da vontade e desinteressante para o conjunto da obra berceana. A morte passiva a procurada e desejada ou assumida e vivida plenamente, sendo considerada a morte crist, um transitus, viagem e metamorfose. A morte reflexiva a interiorizada, personalizada e individualizada, sendo um tormento e uma angstia. Uma transio entre a morte crist e o cruel destino. No sculo XIII, segundo Saugnieux, o latim clerical e litrgico ainda predomina nos meios religiosos, e por isso o vocabulrio berceano sobre a morte se baseia na bblia na verso Vulgata, feita por S. Jernimo e, tambm, possvel que Berceo tenha usado expresses de Grimaldo nas hagiografias. Nas hagiografias berceanas encontram-se duas condies da alma aps a morte terrena em oposio ao corpo. A primeira aquela onde a alma abandona o corpo e migra para o alm e a segunda a morte da alma que consiste na perda da amizade de Deus sendo uma punio dada aos mpios que devem tem-las. Os milagres identificados em Berceo consistem simplesmente em um retorno da alma para o corpo. A morte pode ser um bom ou mau negcio, segundo o autor. Por exemplo, o suicdio e o assassinato so considerados ms mortes que afastam a alma de Deus. O assassino levado condenao por ser um agente do diabo. O suicdio o ataque da morte onde a vida passa a ser uma priso e angstia numa eterna morte. A morte inseparvel da Ressurreio para Berceo, pois os vivos e os mortos pertencem a mesma comunidade. O fim do corpo o comeo da alegria da alma e, com isso, pode ter acesso ao trono divino. A doena nada mais do que o anncio da libertao e no deve ser temida. Para Saugnieux, o ato de morrer como participar da ceia e alimentar-se de Deus. Conclumos que a viso da morte para o autor positiva. Sagnieux, no final do seu artigo, conclui que no possvel dar uma resposta definitiva a questo da fonte lingstica, latim ou castelhana, de onde Berceo bebe para criar suas hagiografias. Ele explica que o sculo XIII uma poca de profundas mudanas na sociedade, na nova lngua e nova cultura onde a Igreja toma medidas de vulgarizao da cultura crist e das Escrituras. O autor considera que o seu estudo pode indicar uma direo possvel de pesquisa e identifica uma limitao dos estudos em Berceo nos problemas de linguagem e falta de um maior acesso via das mentalidades.

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REFLEXES SOBRE A PRODUO HISTORIOGRFICA SOBRE A MORTE NA IDADE MDIA

Concluso Cada autor que analisamos nesse artigo procura se basear em uma teoria histrica especfica. Aris baseia toda a sua investigao na histria das mentalidades, onde a nfase est voltada para a compreenso de como a sociedade se comporta imposio de ritos da Igreja, nesse caso, ligados a morte. No caso de Williams e Saugnieux, as pesquisas foram feitas no campo da histria cultural, tendo como instrumentos de estudo os textos literrios medievais especficos que tratam da morte. Neste caso, a sociedade j no faz parte do tema principal e sim, a interpretao que se pode fazer de textos especficos e de como podem influenciar na sociedade. O ponto de convergncia em todos os estudos a idia de morte como um descanso ou uma espera para o juzo final, ressurreio, no perodo da alta idade mdia. A partir do sculo XII-XIII, a morte j vista como um castigo ou recompensa conforme os atos cometidos na vida terrena e com isso, os mortos migram para o inferno, o purgatrio ou o paraso. Ou seja, as vises sobre a morte vo se tornando cada vez mais complexas e multifacetrias na medida em que h um crescimento demogrfico e econmico e a Igreja Romana se consolida no Ocidente.
Bibliografia FEIO, J. M., (Ed.). Morte de S. Jernimo. In: CASTRO, Ivo. (Ed). Vidas de Santos de um manuscrito alcobacense: Vida de Tarsis, Vida de uma Monja, Vida de Santa Pelgia, Morte de So Jernimo, Viso de Tndalo. Revista Lusitana. Nova Srie, v. 4, p. 5-52, 1982-1983. ARIS, Philippe. Histria da morte no Ocidente: da Idade Mdia aos nossos dias. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977. ___. Uma antiga concepo do Alm. In: BRAET, Hermann e WERNER, Verbeke (Ed.). A morte na Idade Mdia. So Paulo: EDUSP, 1996. p. 79-87. SAUGNIEUX, Jol. O vocabulrio da morte na Espanha do sculo XIII segundo a obra de Berceo. In: BRAET, Hermann e WERNER, Verbeke (Ed.). A morte na Idade Mdia. So Paulo: EDUSP, 1996. p. 146-179. WILLIAMS, Gerhild Scholz. A morte como texto e signo na literatura da Idade Mdia. In: BRAET, Hermann e WERNER, Verbeke (Ed.). A morte na Idade Mdia. So Paulo: EDUSP, 1996. p. 131-145.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

A gula: um estudo comparativo em documentos medievais


Alex da Silveira de Oliveira

Introduo o desenrolar do sculo VII, na Pennsula Ibrica, circunscreveu-se, referente a prtica religiosa, uma destacada produo literria. Neste sentido, muitas foram as obras que serviram a uma atividade reguladora, tanto no sentido institucional da Igreja e do cenbio quanto no pessoal - dos indivduos e suas coletividades. Sendo assim, foram escritas neste perodo diversas regras monsticas e atas conciliares, formando conjuntos textuais dos quais foram retirados os documentos que compem o corpus documental deste trabalho. Nossa inteno delinear consideraes acerca da conduta corporal de eclesisticos que viviam em esferas distintas da vida religiosa, no tocante sua normatizao. Para tal, selecionamos a regra monstica elaborada por Frutuoso de Braga que Regula Monachorum e a ata do VIII conclio de Toledo. Objetivamos, atravs de uma anlise comparativa, identificar em que medida as prescries que se direcionam ao controle da atividade corporal nestes documentos, especificamente as referncias gula, expressam confluncia ou divergncia de posicionamentos. Nossa escolha pelo referido corpus decorre, da importncia que estes escritos tiveram na organizao do cenbio Noroeste peninsular - no caso da regra de Frutuoso e, da Igreja ibrica, no caso da ata conciliar. Tambm, pelo fato de terem sido escritos no mesmo intervalo cronolgico o sculo VII. Estes dados favorecem a construo de uma interao entre os documentos em questo, o que se torna possvel atravs do cotejo de seus posicionamentos quanto ao referido objeto em estudo. A diversidade pela qual se constitui o corpus eleito para este artigo, permitiu-nos evitar repeties caractersticas de comparaes realizadas entre documentos de naturezas semelhantes, o que enriqueceu o trabalho e abriu possibilidades de estudos futuros. Alm desta vantagem, outra se configurou: a de podermos construir uma viso macro-social na qual o objeto corpo estava inserido. Esta opo torna-se vivel, na medida em que uma parte do corpus retrata a viso monacal e a outra a do clero secular. No entanto, juntas, fornecem dados sobre o todo da vida religiosa ortodoxa da Pennsula Ibrica do sculo VII.

Mestrando do Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 242

A GULA: UM ESTUDO COMPARATIVO EM DOCUMENTOS MEDIEVAIS

Nossa inteno foi sintetizar a posio de Frutuoso, quanto a gula dos religiosos submetidos sua regra e cotej-la com os cnones conciliares que fazem referncia ao mesmo tema. As concepes e o estudo do corpo Na Idade Mdia, a percepo do corpo e o que se entendia por este, so marcados por idias dualistas. Diferente da posio platnica - que entendia o ser humano composto por corpo e alma, no qual cada parte era completa em si mesma e encontravam-se unidas no homem a viso aristotlica compunha-se pela mesma dualidade de corpo e alma, entretanto, como partes incompletas em si mesmas. Apenas juntas, formavam um ser completo: o homem (CAPPELLI, 2003, p. 147). Entre os elementos que constituem o humano h certa complementaridade, isto se verifica no sentido em que, os atos de um atingem diretamente ao outro. Contudo, no obstante esta formao dupla, estes componentes encontram-se em oposio constante: a sade espiritual da alma inversamente proporcional satisfao dos instintos corpreos, dado que importante para fundamentar a viso de corpo, praticado no medievo. Faz-se notrio a incidncia cada vez mais constante do corpo como objeto de anlise das Cincias Sociais. fato que a Antropologia o assume como tema de sua especificidade disciplinar, no entanto, outras reas do conhecimento cientfico o tm includo em seus quadros de objetos. Falamos especificamente da Sociologia e da Histria. No mbito desta ltima, uma das possibilidades de anlise a utilizao do corpo como forma de caracterizar as prticas sociais que estiveram em voga em determinado perodo histrico, isto atravs da compreenso de que est circunscrito no corpo um conjunto de discursos que o configuram. Nesta linha, Roy Porter acrescenta que a constituio material dos indivduos no possui existncia atemporal, mas culturalmente que se d sua percepo (1993, p. 258). De outra forma, Peter Brown (1988) chama a ateno para a possibilidade de se estabelecer noes da pessoa humana e da sociedade atravs da recuperao das manifestaes corporais. O estudo do tema corpo na perspectiva da histria, promove uma estreita aproximao entre esta cincia e a antropologia. de tal forma constituda a relao, que as produes oriundas desse meio confundem-se nas classificaes que ora se faz por histria antropolgica, ora por antropologia histrica e social. Assim sendo, conferimos destaque a obra do antroplogo Jos C. Rodrigues O corpo na histria, a qual como j sugere o ttulo analisa as concepes sobre o corpo em determinada sociedade histrica no caso, a medieval. Tambm obra do mesmo autor, o Tabu do Corpo nos oferece uma viso cultural sobre a materialidade intrnseca dos humanos, destacando seus aspectos expressivos e, portanto, simblicos, como fruto dos princpios estruturais em reproduo no corpo. Neste trabalho nos valemos das contribuies destes pesquisadores no que se refere a afirmao da possvel historicidade do corpo como tema, de sua constituio dual e de sua apreenso, configurao e significao cultural. 243

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

A regra de Frutuoso e o conclio de Toledo A Regula Monachorum1 uma regra monstica cuja autoria atribuda ao bispo Frutuoso, metropolitano da sede de Braga no sculo VII. Encontra-se dividida em vinte e quatro captulos, nos quais diversos assuntos so tratados, entre eles a preocupao com a conduta moral dos monges, a descrio do ofcio divino, a organizao do trabalho, o cuidado com os doentes, etc. Seu mentor, o supracitado bispo, era descendente de famlia nobre goda. Por volta dos vinte anos, aps a morte de seus pais, ingressa na escola de formao religiosa de Conncio (DAZ y DAZ, 1967, p. 217218). Consta que ao retorno desta instituio assume o ascetismo como forma de vida religiosa e passa a empenhar toda a herana recebida dos pais na construo de mosteiros. O primeiro deles foi o de Compludo. Para padronizar a conduta dos religiosos deste estabelecimento, elaborou, por volta de 640, a RM (MANJARIM, 1968, p. 3). Sendo assim, este documento apresenta-se como escrito legislativo de cunho religioso cujo objetivo era a normatizao da conduta monacal. Os conclios visigticos, entre eles o VIII de Toledo realizado no ano de 653, eram reunies gerais da Igreja das quais participavam bispos ou seus representantes - s vezes abades - e o responsvel pelo reino. Em diversas ocasies, fora sob a alegao de atender a um pedido do rei que a Igreja reunira-se em conclio o caso do conclio que ora estudamos. Assim, alguns dos assuntos postos em discusso nestes encontros fugiam da condio puramente religiosa e abarcavam temas de ordem civil, tais como: regulamentaes sobre o recebimento de heranas, regulao do casamento, punies a crimes contra o rei, etc. fato que acrescia em importncia s prescries oriundas dos referidos eventos. O VIII conclio de Toledo, constitudo por doze cnones. Na reunio que originou sua produo, estiveram presentes cinqenta e dois bispos, alm de eclesisticos de menor colocao hierrquica. Este conclio tido como geral,2 isto significa dizer que foi uma reunio da Igreja goda cujo alcance abrangeu todo o reino e no uma simples provncia deste. Considerando a extenso territorial que tal reino possua, tambm o grande nmero de sedes episcopais e a dificuldade de locomoo da poca, convm destacar a importncia que detinha para a Igreja em geral, cada assunto posto em discusso nestes encontros. Alm do mais, a prescrio da ortodoxia que deveria toda a Igreja professar, divulgar e seguir, provinha destas reunies. Gula: a concepo de Frutuoso e da ata conciliar Noo comum no cristianismo ibrico era a idia de que a santidade da alma manifesta-se atravs do corpo. Tal perspectiva justificou o grande zelo adotado em relao s atitudes corporais. nesse contexto, que a gula configura-se objeto de dedicao e controle na documentao clerical analisada. Na RM, a primeira incidncia de regulao ao hbito alimentar dse, no captulo III Nenhum monge atrever-se- a quebrar o jejum; nem tratar de provar ou apreciar comida ou bebida antes ou depois da refeio em comum com os demais, ou esconder-se- com algo para seu uso
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A GULA: UM ESTUDO COMPARATIVO EM DOCUMENTOS MEDIEVAIS

particular. (RM, III, p. 143). O contedo desta citao remonta noo de excesso: atravs do exagero de uma grande ingesto de alimentos indiscriminados, que se d a prtica da gula. A norma estabelece o teor tido por suficiente ou necessrio ao religioso. Contudo, no s ao hbito de ingerir em demasiado que o bracarense rotula como gula, mas tambm o consumo de certos alimentos: A ningum se concede licena para degustar carne. No porque a consideramos como criatura indigna de Deus, seno porque a abstinncia de carne se estima til e proveitosa para os monges (...) (RM, V, p. 142). A idia de gula aqui veiculada, no a que se refere ao excesso da ingesto, mas a que se ocupa da ingesto de alimentos proibidos. Nas prescries que indicavam o jejum, completava-se a premissa pela qual as populaes monsticas deviam abster-se de certos alimentos: o fato de optarem pelo ascetismo como forma de vida e a negao ao prazer palatal. Em linhas gerais, fazia-se por proibio corrente, o comer carne. No entanto, em datas festivas ou simblicas, inclua-se na abrangncia desta proibio o consumo de azeite e vinho De 14 de setembro pscua se h de jejuar com rigor e na quaresma se h de abster de azeite e vinho (RM, XVII, p. 156). Estes recortes conferem destaque no ingesto desenfreada, mas to somente a um simples contato com determinados produtos, para que se determine a gula. Neste caso, a quebra de simbolismos estabelecidos pela religio crist, que configurava elemento de proibio. Assim, um simples contato com o objeto fruto de proibio caracterizava a falta, diferentemente do primeiro caso, no qual o erro s se constatava pelo consumo abusivo. A RM fora elaborada no sem interferncias de outros textos de natureza semelhante. Deste modo, Linage Conde, em En torno a la Regula Monachorum y a sus Relaciones con otras Reglas Monsticas (1967, pp. 123-163), aponta para a relao existente entre o documento monstico de Frutuoso com outros constitudos no mesmo perodo medieval. Para este autor dado por certo a predileo do bracarense por Cassiano (p. 146-147). No tocante a gula, as proposies de Cassiano veiculam uma associao entre este vcio e a luxria, assunto que fora tratado por Foucault em O combate da castidade (1985, p. 25-38). Nesta mesma linha, Isidoro de Sevilha em sua Regula Isidori, reitera a associao feita por Cassiano, ao indicar que a fartura da alimentao do corpo poderia rapidamente excitar a luxria da carne (Cf.: SILVA, 2003, p. 649-657). No entanto, no obstante a influncia dos escritos destes religiosos Cassiano e Isidoro - na produo da regra de Frutuoso, ao menos referentes gula, este ltimo reserva-se o direto da discordncia. Isto devido ao fato de no haver a menor relao entre luxria e gula na RM. Para Frutuoso a restrio gula justificava-se pela vida asctica que o monge optava viver, ao entrar para o mosteiro. Era a condenao do prazer palatal. O hbito de comer, deveria se restringir unicamente s necessidades de subsistncia (SILVA, 2003, p. 649-657). Comparando as concluses descritas da obra de Frutuoso com as referncias relacionadas ao mesmo tema, contidas nas atas do VIII conclio de Toledo, perceberemos a que distncia encontrava-se o bracarense da 245

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tradio eclesistica visigoda oriunda de Toledo. O primeiro paralelo que podemos traar com a regra monstica, refere-se natureza distinta da prtica glutona. Na ata, assim com na regra, a gula indicada de duas maneiras, pela voracidade com que se come caracterizando o excesso da ingesto e, pelo o qu se come referindo-se a determinados alimentos temporariamente proibidos. O primeiro caso, aludindo ao perodo da quaresma (40 dias), nos quais os religiosos deveriam adotar procedimento de cautela, com jejuns, expiao e penitncias, diz que os clrigos hispnicos desrespeitavam o estabelecido, no freando sua voracidade ao comer (...) faz penitncia convenientemente dez vezes quatro, estes, com atrevimento temerrio, desprezando todas estas coisas, no pem freio a sua voracidade glutona (...). (VIII Concilio de Toledo, IX, p. 24). A idia que se destaca neste recorte, a da alimentao em excesso e, neste caso, assemelha-se ao estipulado pelo bracarense em seus textos. No segundo, caso a norma conciliar, prescreve perodos e tipos de alimentos que deveriam ser evitados: quaresma, na qual a proibio relacionava-se ao ingerir carne e nas festividades da pscoa nas quais, certos alimentos especialmente saborosos eram o alvo da condenao (...) profanam as festas da pscoa, comendo manjares proibidos (...). (VIII Conclio de Toledo, IX, p. 24). Por estas indicaes, conclui-se que no era quantidade que se aludia, mas sim qualidade dos alimentos. Sendo assim, percebemos a paridade existente entre os escritos de Frutuoso e o conclio toledano, na medida em que ambos participaram do mesmo entendimento sobre a concepo da gula, e dedicaram ateno ao fenmeno na tentativa de disciplin-lo. A prescrio da ata conciliar em questo tem por motivao o mesmo ideal que encontramos na RM, no que diz respeito considerao da gula por vcio (VIII Concilio de Toledo, IX, p. 24). A semelhana se d de forma ainda mais profunda, na medida em que notamos existir uma no identificao da glutonaria com outros vcios, em especial luxria. Como visto, foi nesta direo que Frutuoso direcionou seus escritos: ao no inserir a associao da gula luxria, o que fez Cassiano e Isidoro nos quais se inspirou, divergiu levemente destes e aproximou-se da produo conciliar. Pelo exposto faz-se notrio que a comida, tanto quanto a determinao do que se tinha por comestvel e a freqncia com que se podia comer, eram smbolos determinados pela cultura e no pelas vontades corporais. Neste sentido, Frutuoso intentou estabelecer pela fora da imposio normativa, entre os tipos de alimentos conhecidos, os aceitos para o consumo da populao de suas comunidades. Tambm estabeleceu as pores que julgava convenientes. Logo, seu esmero pretendia entrelaar a submisso do natural (vontades fisiolgicas) ao cultural (representado pelo conjunto de simbolismos cristos). Notamos ter sido de forma semelhante o tratamento dispensado pela ata conciliar em estudo, no que tange a regulamentao da conduta corporal de seus subordinados. Em especial suas asseres referentes glutonaria.

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A GULA: UM ESTUDO COMPARATIVO EM DOCUMENTOS MEDIEVAIS

Sobre as penas e os isentos Como era de se esperar de um documento legislativo, toda prescrio reguladora, atrelam-se sanes, para que, no caso de haver infratores, haja tambm meio de pun-los e/ou recuper-los. Sendo a RM documento desta natureza, no poderia desaperceber-se quanto s penalidades previstas aos que no se submetessem s suas normas. Ao estabelecer sanes que deveriam aos glutes se aplicar Frutuoso enumera, em captulos distintos, tipos diferenciados de punies. Uma delas E se algum monge infringir aquela norma e se atrever a comer carne contra proibio da regra e contra a prtica antiga, ficar sujeito pena de recluso durante seis meses. (RM, III, p. 142). Esta condenao, referia-se a aplicao de jejuns e a proibio da fala, sem aoites e excomunho, prescritos em outras citaes. No captulo XV, ao aludir aos que se davam a embriaguez, estipula a aplicao de aoites e excomunho por trs meses. Atravs da anlise comparativa, conclumos constituir-se de duas maneiras a diferena entre a penitncia estipulada na ata do VIII conclio de Toledo e na RM, quanto gula. A primeira que o conclio no estipulou mais de uma penalidade para castigar o vcio (...) como castigo da obrigao de vencer sua gula e abster-se todo esse ano o provar da carne (VIII Concilio de Toledo, IX, p. 24). Ou seja, limitou-se apenas a condenar o consumo da carne no restante do ano em que o religioso cometera a infrao, o contrrio de Frutuoso que fez mais de uma prescrio. Ainda neste primeiro ponto, h que se perceber que, no comer carne por um ano menos grave que ser enclausurado, aoitado ou excomungado, como determina Frutuoso. Com isto, afirmamos ser mais brando o teor da penitncia na ata conciliar que na RM. No entanto, quanto durao das penas, o conclio destaca-se como defensor de um perodo mais duradouro, um ano. Enquanto isso, o mximo de tempo recomendado por Frutuoso para a aplicao de pena, era de seis meses. notrio que estes prazos esto diretamente relacionados ao teor das penas, entretanto, possibilita-nos classificar a diferena entre os documentos do corpus documental. Determinado grupo de pessoas encontra-se relacionado nos documentos como portadores de certos benefcios em relao aos demais membros da comunidade a qual pertencem, so estes os idosos e os doentes. Para Frutuoso, esta classe de indivduos estava sempre isenta do rigor de suas formulaes normativas. Em relao gula, quando determina que se coma pouco ou que no se coma determinados alimentos em certos perodos, sempre flexibilizando a norma frente aos cuidados especiais requisitados pelo estados de sade dos doentes e idosos que ele a conclui (RM, III, p. 142). Portanto, se estes estados corporais fugiam ao rigor das normatizaes, no havia a necessidade de lhes prescrever penalidades. de maneira semelhante que a ata conciliar conclui sua explanao. Aps expressar a crtica, condenar a gula e ordena-lhe punio, o documento termina dizendo que fogem destas determinaes os idosos e os doentes. Mas, todavia, devia-se fazer tudo com a ordem explcita do bispo (VIII Concilio de Toledo, IX, p. 24). 247

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

O que se destaca nestas comparaes que a luta de Frutuoso contra a manifestao do prazer e mesmo da preservao de datas constitudas de verdadeiros smbolos para o cristianismo, tornam-se motivaes secundrias frente a patente exposio de debilidade fsica do monge seja causada por doenas ou por idade avanada. De forma bastante semelhante percebemos ser a postura do cnon conciliar, na qual o idoso e o doente so merecedores de cuidados especiais, frente a estes acometimentos biolgicos. Diante destes dados, conclumos salientando a importncia que detivera o corpo em suas manifestaes biolgicas e culturais, no correto proceder da Igreja e do monacato. O fato de constarmos semelhanas quanto as estipulaes normativas presente nos documentos devido hiptese aqui construda de convergncia do posicionamento teolgico de seus mentores. Concluso No tocante a uma comparao efetuada em documentos de naturezas distintas, na qual o carter comumente mais severo da normatizao atribudo quele que regula a vida monstica, notamos ser flexvel a incidncia deste postulado. Isto porque, na realizao da pesquisa no encontramos dados que pudessem exemplificar esta demarcao. As prescries sobre a gula foi o objeto eleito para que nortessemos o posicionamento de ambas as perspectivas de vida religiosa em questo, a que vive sob regra e a clerical. No entanto, nosso anseio por delimitar a distino patente foi surpreendido pela constatao da existncia de uma confluncia entre as posies sustentadas pelos documentos preditos. Isto significa dizer, que o comer em excesso ou satisfazer-se de certos alimentos em dias proibidos, foram, ao nosso entender, considerado por gula em ambas perspectivas. Este carter confluente torna-se ainda mais explcito, ao constatarmos a recusa de Frutuoso em associar gula luxria o que fizerem Cassiano e Isidoro, autores que influenciaram a escrita de sua regra. Por esta medida, patente a aproximao das produes de Frutuoso com a norma conciliar que evita inscrever a mesma agregao. A singular divergncia que se verificou entre os documentos, ocorreu na estipulao das penas s quais deveriam os glutes se submeter. Pois, na RM praticava-se punies que incluam entre suas sanes aoites fsicos e excomunho. Enquanto que na ata destaca-se meramente a abstinncia do consumo daquilo que gerou o erro. Estas distines possivelmente justificam-se pela natureza diferenciada da vida religiosa a qual referiam-se as penas. Por esta medida, pode-se afirmar que castigos mais dolorosos foram projetados pela regra que pelo conclio. Entretanto, no que se refere ao espao temporal ao qual deveriam perdurar as punies, o estipulado pela prescrio conciliar ultrapassava da regra monstica. Pois, o primeiro determinou aproximadamente um ano de sano. J o segundo limitou-se a no mximo seis meses. Estes intervalos temporais deviam ter correspondncia direta ao tipo de pena adotado em ambas perspectivas. Ainda confere-se semelhana na forma de iseno que os dois documentos prestaram aos idosos e doentes. Estes podiam beneficiar-se
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de utilizao contrria prescrio da norma, no que tange a alimentao, pois eram favorecidos pelo estgio de sade que seus corpos apresentavam. Conclumos, atestando o posicionamento aliado ortodoxia, que RM esboou, referente gula. Assim, podemos afirmar que seu mentor, Frutuoso, situava o monacato sobre sua regra em contato com as prescries destinadas Igreja peninsular, resultando numa visvel convergncia de posies entre ambas perspectivas literrias.
Bibliografia Documentos medievais impressos FRUTUOSO, Regla. In: Reglas monsticas de la Espaa Visigoda. Los tres libros de las Sentencias. Introducciones, versin y notas de Julio Campos Ruiz e Ismael Roca Melia. Madrid: Editorial, 1971 (Biblioteca de Autores Cristianos). CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS. Jose Vives (Ed.). Madrid: CSIC. Instituto Enrique Flores, 1963. Bibliografia especfica BARBERO, F. R. La concepcion Teolgica Del Concilio em la Espaa Romana y Visigoda. In: GONZALEZ RUIZ, R. Inovacipn y continuidad en la Espaa visigtica. Toledo: Instituto de estudios visigticos-Morabes, 1981, srie C, n 3, p. 49-68. BROWN, Peter. Corpo e Sociedade. O homem, a mulher e a renncia sexual no incio do cristianismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. DAZ Y DAZ, Manuel C. Notas para uma cronologa de Frutuoso de Braga. Bracara Augusta, v.21, n.47-50, p. 215-223, 1967. FLOREZ MANJARIN, Francisco. Compludo: Primer Monasterio de San Fructuoso. Bracara Augusta, v.22, n. 52-54, 1968. FOUCALT, Michel. O combate da castidade. In: ARIS, Philippe et BJIN, Andr. (Orgs.) Sexualidades Ocidentais. So Paulo: Brasiliense, 1985. GARCIA MORENO, Luis A. Historia de Espaa Visigoda. Madrid: Ctedra, 1989. LE GOFF, Jacques. A recusa do prazer. In: ___. Amor e sexualidade no Ocidente: Porto Alegre: L&PM, 1992. p. 150-162. LINAGE CONDE, Antonio. En torno a la Regula Monachorum y a sus Relaciones con otras Reglas Monsticas. Bracara Augusta, Braga, v. 21, p. 123-163, 1967. MRIO MARTINS, S.J. O monacato de S. Frutuoso de Braga. Coimbra, 1950. ORLANDIS, J. Congregacin monstica Dumiense. Bracara Augusta, v. 22, 1968. OROZ, J. San Agustin e RETA. San Fructuoso. Bracara Augusta, v. 22, n. 92-102, 1968. PONS, J. P. San Fructuoso de Braga y su influjo em la formacin del oficio monacal hispnico. Bracara Augusta, v. 22, n. 127-140,1968. PORTER, Roy. Historia Del Cuerpo. In: BURKE, P. (Ed.) Formas de Hacer Historia. Traduo de Jos Luis Gil Aristur. Madrid: Alianza, 1993. RAMOS-LISSN, D. El principio de la tradicin em los conclios bracarenses Del siglo VI. In: La tradicin en la Antiguidad Tardia. Antigidad Cristiana, Murcia, n. 14, p. 209-216, 1997. RODRIGUES, Jos Carlos. O Corpo na Histria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. ___. O tabu do Corpo. 4 ed. - Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1999. SCHMITT, J. C. Corpo e alma. In: Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. So Paulo: EDUSC, 2002, V. 1, p. 253-267. SILVA, L. R. A gula nas regras monsticas de Isidoro de Sevilha e Frutuoso de Braga. In: Encontro Internacional de Estudos Medievais, 4, 4 a 7 de julho de 2001, Belo Horizonte. Anais.... Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. p. 649-657.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Notas 1 Daqui por diante passaremos a nos referir a Regula Monachorum por suas iniciais RM. 2 Para se ter uma diferenciao precisa entre os conclios gerais e particulares na concepo da Igreja visigoda, ver: BARBERO, F. R. La concepcion Teolgica Del Concilio em la Espaa Romana y Visigoda. In: GONZALEZ RUIZ, R. Inovacipn y continuidad en la Espaa visigtica. Toledo: Instituto de Estudios VisigticosMorabes, 1981, srie C, n 3, p. 49-68.

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Aleivoso, bausador e fraudador: a feudalidade ibrica em palavras latinas e romances


Bruno de Melo Oliveira* Este artigo tem por objetivo analisar a Feudalidade ibrica por meio de expresses latinas e romances, mais precisamente as dedicadas a indicar o no cumprimento das obrigaes desta prtica social. O documento empregado a Historia Roderici, biografia do guerreiro castelhano Rodrigo Diaz de Vivar, o Cid Campeador. Rodrigo Diaz teve a sua trajetria de vida ligada corte rgia de Leo e Castela, e s transformaes polticas de seu tempo. Foi exilado em 1081 (RODERICI, 1947, p. 923), retornando em 1085-1086 (RODERICI, 1947, p. 931), porm foi mais uma vez desterrado em 1088, pelo seu suserano, o rei Afonso VI (RODERICI, 1947, p. 935). O Cid Campeador, vivendo em terras muulmanas, serviu como soldado profissional aos soberanos de Saragoa (RODERICI, 1947, p. 923924) e a outros reinos do Leste da Pennsula Ibrica (RODERICI, 1947, p. 940). Contudo, suas aes militares progressivamente foram se tornando independentes de seus contratadores, passando a guerrear em proveito prprio. As expedies que o castelhano conduziu fizeram-no se chocar com outros chefes cristos. Em fins da dcada de 1080, nas pores orientais da Pennsula Ibrica, o Campeador iniciou mais uma vez suas expedies de pilhagem e submisso de territrios islmicos (RODERICI, 1947, p. 940). O guerreiro castelhano coagia os soberanos muulmanos com seu poderio militar que crescera nos ltimos anos. Jogou com a animosidade dos inmeros reis de Taifas de tal maneira que estes se tornaram dependentes deste aventureiro cristo. A fragilidade destes monarcas foi progressivamente agravada com a sangria propiciada pelas exigncias financeiras de Rodrigo de Vivar. A mquina de guerra tornou-se independente de seu antigo contratador o rei Almuzahen de Saragoa e assim assolava as terras que antes defendia. Fortaleceu-se a figura do Cid Campeador que expandiu seu poder e ampliou o nmero de guerreiros a ele subordinados. Suas operaes de razia alargaram suas reas de atuao, avanando sobre muitos outros terrenos que poderiam estar subjugados por outros rapinadores cristos. Em fins desta dcada, Rodrigo Diaz de Vivar feriu os interesses dos grandes senhores da guerra das terras situadas no leste peninsular
Mestrando do Programa de Ps-graduao em Histria pela Universidade Federal Fluminense.

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(RODERICI, 1947, p. 940-941). Segundo a Historia Roderici, o heri castelhano havia se estabelecido nas proximidades de Dnia (RODERICI, 1947, p. 940). Os monarcas das proximidades tentaram firmar um pacto de paz com o guerreiro cristo, enviando vrios nncios para negociarem um acordo de no agresso que era revertido em uma remessa de bens e riquezas. Naquele tempo, Alfagib, rei de Lrida, compactuou com o ameaador poderio militar deste cristo. A partir da regio citada, o Campeador saiu ao encontro do rei Al-Qadir de Valncia, com quem firmou um acordo de paz. A Historia Roderici nos relata o estado de extrema preocupao do rei Alfagib de Lrida ao saber das negociaes entre Rodrigo de Vivar e al-Qadir de Valncia (RODERICI, 1947, p. 940) momentos depois. Para defender a si e as suas terras, os reis muulmanos procuraram encontrar amparo em outros guerreiros que pudessem fazer frente ao exilado castelhano, j que eles mesmos no dispunham de recursos militares para promover tal tarefa. As negociaes para cumprir estas intenes no passaram desapercebidas pelo guerreiro exilado, e, de alguma maneira, o Cid tomou conhecimento da tentativa de firmar um pacto entre Alfagib de Lrida e o cristo rei Sancho de Arago, os condes catales Berenguer de Barcelona e Hermengardo de Urgel (RODERICI, 1947, p. 941). O rei Sancho de Arago e o conde Hermengardo de Urgel declinaram da convocao de combater Rodrigo Diaz de Vivar (RODERICI, 1947, p. 941). Somente o conde Berenguer de Barcelona se disps a lutar com o exilado castelhano. Segundo Carl Von Clausewitz, destruir as foras do inimigo fazia-se necessrio (VON CLAUSEWITZ, 2003, p. 32), que constitua uma grave afronta aos prncipes dos territrios invadidos. As circunstncias imperantes conduziram Alfagit e Berenguer a tentarem reprimir as aes de Rodrigo, forando-o a se retirar da regio, desalojando-o para os confins do reino ou para o exterior (VON CLAUSEWITZ, 2003, p. 32). Von Clausewitz nota tambm a importncia de criar a situao que impelisse o adversrio a desistir, mostrando a impossibilidade de xito ou do excessivo custo na manuteno da luta (VON CLAUSEWITZ, 2003, p. 33). Primeiramente Berenguer negociou o emprego de sua espada com Alfagib, de quem obteve mxima riqueza e a seguir foi a Saragoa tratar com o soberano Almuzahen (RODERICI, 1947, p. 941). Estes ltimos fizeram um conselho (consilium) em Daroca e acordaram sobre a expulso do Campeador. A marca da intensa preocupao de Almuzahen evidenciase pela deciso deste de pedir a interveno de Afonso VI de Leo e Castela contra seu vassalo. O monarca cristo no desejava interferir nas aes militares do Cid Rodrigo de Vivar (RODERICI, 1947, p. 941). Talvez esta postura possa sugerir o interesse de Afonso em ter acesso ao Levante espanhol por meio do Campeador. Antigas teses da historiografia ibrica de Alexandre Herculano e de Snchez-Albornoz no reconheciam a existncia desta modalidade de vnculo pessoal, pois as terras da Pennsula Ibrica excetuando a Catalunha no praticavam a Feudalidade. Para estas perspectivas, no havia o contrato feudo252

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vasslico, no existiam determinaes para ambas as partes que constituam o pacto, nem um elemento material claro que intermediava a relao, que deveria se chamar feudo, ou benefcio, beneficium. No havia um ato jurdico registrado na Pennsula Ibrica como em terras de alm-Pirineus. Apesar de compreensvel a postura dos historiadores citados, eles no compreenderam as informaes contidas fontes peninsulares. Jos Mattoso procura evidenciar que a Feudalidade em Portugal e na Espanha se produziu de maneira diferente. Tais regies forneciam modelos tericos, mas que no se constituam em um paradigma nico que determinaria o que seria ou no Feudalidade. No devemos entender as outras formaes sociais e polticas europias como deformaes de uma estrutura paradigmtica oriunda da Glia Franca. Mattoso assinala para a necessidade de se notar a penetrao das idias feudais em outras esferas sociais. Ciente deste caminho, identificaremos os vocbulos que constatam a insero da Pennsula Ibrica no mundo feudal. No devemos considerar palavras isoladas, mas sim inseri-las no contexto da composio da fonte. Os discursos que precederam a batalha que evidenciam a Feudalidade ibrica. O escriba responsvel pela narrativa informa que o Campeador recebeu uma delegao de Saragoa que lhe transmitiu a notcia dos exrcitos do Conde de Barcelona para combat-lo (RODERICI, 1947, p. 942). Esboando satisfao o exilado castelhano respondeu ao soberano de Saragoa em forma de agradecimento (RODERICI, 1947, p. 942). A carta resposta do Cid de Vivar alm de se referir a Almuzahen como amigo fiel (meo amico fideli) (RODERICI, 1947, p. 942), declarou estar preparado para enfrentar as foras. A atitude de Almuzahen revelaria certa premeditao. Segundo ele, Almuzahen de Saragoa fingiu concordar, mas, secretamente, fez vazar para Rodrigo notcias sobre os planos de seus inimigos (FLETCHER, 2002, p. 210). Para Ramn Menndez Pidal, entretanto, o que motivou estas aes seria a recusa do rei Afonso em cumprir a sua parte do acordo firmado com Saragoa (MENNDEZ PIDAL, 1947, p. 378). Faamos aqui uma pequena anlise do emprego de dois termos caros ao jargo feudal: amicus e fides. Estes so os primeiros indcios para chegarmos constatao da existncia de uma viso feudo-vasslico ibrica. Os vocbulos indicam a reciprocidade entre as partes que instituam o pacto de auxlio mtuo, da responsabilidade de se manter os deveres e a fidelidade entre si. O cumprimento das obrigaes firmadas e a necessidade de que ningum ameaasse a integridade do outro, era, logicamente, um imperativo. Era vedada qualquer atitude pudesse prejudicar o outro. Tais imposies se firmavam com um pacto de fidelidade. No havia um rito elaborado na Pennsula Ibrica, mas as cobranas de fidelidade so ndices suficientemente seguros para constatar a fidelitas Feudal. Por outro lado, no afirmamos que os vnculos que a unio o Campeador com o rei de Saragoa fossem de fato e de direito uma relao feudo-vasslica, ou que partilhasse desta natureza. A condio de soldado profissional do Cid Campeador ressaltou a condio diferenciada, uma 253

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relao mais frouxa e de fcil rompimento. Como bem destacou Jos Mattoso, o vigor de uma dada prtica social fornece uma tonalidade sua outra prtica social contempornea a ela (MATTOSO, 1987, p. 118), e a Feudalismo pode ser constatado pela interferncia de sua linguagem em outras esferas sociais. Os termos caractersticos de uma relao interpessoal e poltica entre os cristos tenderam a serem empregados em vnculos sociais com indivduos no cristos, neste caso com rei muulmano de Saragoa. Quanto ao seu confronto com o Conde Berenguer, podemos verificar de forma menos confusa a situao em que se encontrava diante do monarca Afonso VI. Antes que o choque no campo de batalha iniciasse, foram promovidas trocas correspondncias entre os condutores dos exrcitos. O que poderia ser encarado como simples ofensas que visassem, de alguma maneira, abalar o moral do inimigo, devemos prestar ateno aos elementos que compem cada frase injuriosa. Alguns dias aps Rodrigo de Vivar ter recebido as notcias de Almuzahen, o castelhano recebeu uma carta (epistola) do Conde Berenguer:
Eu, Conde Berenguer de Barcelona, com meus cavaleiros, digo a ti, Rodrigo, que vimos a epstola que enviaste a Almuzahen, e dissestelhe para que mostrasse a mesma epstola a ns, ele escarneceu de ns e nos vituperou e nos levou a mxima loucura. Outrora, fizestenos muitas injrias, pelas quais deveremos ser contra ti inimigos e muito irados; tanto mais por desprezo que por tua carta escarneceste de nos e nos desdenhaste, devemos ser inimigos e adversrios de ti. (RODERICI, 1947, p. 942)

A Historia Roderici nos remete ao fato do rei Almuzahen der dado a conhecer ao conde catalo sobre as ameaas de Rodrigo. Encontramos elementos que podem sugerir uma grave falta de Rodrigo:
Na verdade, confiado no teu monte, percebemos que desejas debelar nele, tambm percebemos e reconhecemos que os montes e os corvos e os animais de chifres e tambm as guias e todos os gneros de feras e aves so teus deuses, pois confias mais em augrios do que em Deus. Ns acreditamos no Deus nico que est no meio de ns e diante de ti. Saibas, certamente, a verdade que amanh pelo alvorecer, querendo Deus, tu nos vers perto de ti. Se te aproximares na plancie e te afastares de teu monte, sers o mesmo Rodrigo a quem chamam guerreiro e Campeador. Entretanto, se no quiseres fazer isto, serias tal aquilo que os castelhanos chamam, vulgarmente, de aleivoso e os francos, vulgarmente, de bausador e fraudador. (RODERICI, 1947, p. 943)

O fragmento destacado acima inicia seu discurso como intudo de distinguir os personagens histricos pelas suas atitudes, crenas e valores. O conde deprecia crenas que, neste texto, denotam indcios de manifestaes religiosas pr-cristos ainda praticadas neste perodo medieval. Estas formas de religiosidade popular podem constituir uma espcie de traio a nvel religioso. Este , pelo menos, mais um vestgio de uma noo
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de traio de um pacto de fidelidade, que ganhou um aspecto particular. A Feudalidade no demonstrada na Pennsula Ibrica por frmulas jurdicas contratuais, mas pela leitura profunda das fontes podemos atestar uma estrutura que remetia diretamente sua presena. Segundo Berenguer, enquanto o Campeador confiava nos auspcios das foras da natureza, o conde seria um homem temente a Deus, estaria fortalecido nele e seria instrumento de sua vingana. Esta oposio demarcada objetivo do pretensioso discurso do Conde Berenguer, que buscava legitimar sua ao contra o Cid de Vivar. Este jogo de oposies, na Historia Roderici, poderia indicar ao leitor desta obra conhecedor da concluso destes eventos a presuno de Berenguer frente a um oponente que estivesse realizando uma ao lcita. Seguindo agora para outros termos que foram utilizados por Berenguer Ramn de Barcelona podemos destacar com maior intensidade a ideologia Feudal. O redator da prosa latina produziu na composio da obra um discurso inicialmente negativo e pejorativo contra o heri castelhano que indica suas faltas aos seus deveres feudais. Foram inseridas na boca do conde catalo expresses incisivas, nomeando com vocbulos explcitos aquele que cometeu um grave erro e que representasse uma ameaa ordem social vigente. Um pequeno nmero de palavras que foram empregadas no texto so oriundas das lnguas romances que emergiam naquele tempo, excetuando outras, que preservavam a sua clara morfologia latina. Antes de prosseguir esta anlise do conjunto dos discursos seguiremos com fragmentos da mensagem de resposta do Cid Rodrigo de Vivar a seu oponente: Eu Rodrigo, juntamente com meus scios, sado a ti, conde Berenguer, e a teus homens. Saibas que ouvi tua carta e compreendi a tudo que estava contida nela. (RODERICI, 1947, p. 943) A carta remetida ao acampamento inimigo expunha o conhecimento de Rodrigo da situao. Tornava conhecido aos oponentes que se sabia das negociaes com os reis muulmanos do Levante espanhol, e que Almuzahen de Saragoa apresentou a carta destinada ao monarca islamita ao Conde de Barcelona e a seus companheiros. Rodrigo, o Campeador, ratificou nesta mensagem seu desprezo por seus concorrentes. Outra situao que informou conhecer foi acordo entre Berenguer e Alfagib, de quem havia recebido uma vultosa quantidade de riquezas para o conde catalo desalojar o castelhano exilado.
Tu mesmo tambm, estando Almuzahen presente, disseste ao rei Afonso que lutasse comigo e me expulsasse acorrentado das terras de Alfagib, e nas referidas terras de nenhum modo ousasse esperar; mas renunciastes fazer tudo isto por amor ao rei, e no te inquietaste por amor deste que era vassalo dele, por isso procuraste lanar desonra a mim e no me desejaste (RODERICI, 1947, p. 944). Mentindo com to grande falsidade que fiz aleive ao foro de Castela, ou bausia ao foro da Glia, mentiste por tua prpria boca claramente. Na verdade, nunca fiz tais coisas: tu mesmo fez isto que est provado

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS em tais traies, isto que tu bem conheceste, e muitos, tanto cristos quanto pagos, tal como eu digo, reconhecem existirem tais traies (RODERICI, 1947, p. 945).

Podemos verificar como as relaes entre cristos e muulmanos poderiam ser efmeras. A despeito do considerado sobre a similaridade com a relao feudal, o pacto que unia mercenrio e contratador parava por a. A proteo militar fornecida de maneira contratual tinha sempre um carter provisrio: em qualquer momento e sob os mais diversos pretextos reaparece a inimizade entre islamitas e cristos e, com ele, novas exigncias no pagamento das preas (GARCA DE CORTZAR, 1999, p. 106). Por ser uma relao pessoalizada os acordos firmados dependiam da afinidade entre as partes. Os termos utilizados se encaixam natureza das construes desta passagem da narrativa. Inicialmente, separaremos tais expresses em dois grupos regionais e culturais. Podemos identificar nestes vocbulos que veremos uma prtica social corrente nos territrios cristos ibricos, Castela e Catalunha. Eles remontariam a uma realidade oral das lnguas neolatinas que estavam conquistando seu espao em meio documentao em lngua latina. O escrever com as palavras do Lcio j no fornecia embasamento conceitual para a prtica social ento vigente no sculo XI e XII. A lngua falada das comunidades lingsticas e culturais penetrava com fora nos textos em um latim que no supria as necessidades dos que estavam inseridos na sociedade feudal ibrica. Notamos o quo similar estavam culturalmente e socialmente os homens originados de Castela e da Catalunha. As declaraes entre ambas s partes contendoras no so dirigidas apenas aos seus lderes, mas tambm aqueles que constituem o fiel sqito deles. Eu com meus cavaleiros e Eu juntamente com meus scios. A honra ferida da cabea do grupo interferia imediatamente na honra dos seus componentes, a carta do Campeador era aberta a todos unidos ao conde Berenguer, sua mensagem destinava-se a todos os cavaleiros (milites) do referido conde. A declarao do Cid Rodrigo era a expresso viva e concordante de todos os scios (socii) do castelhano. Miles e socius, termos detentores do mesmo significado social (MATTOSO, 1988, p. 41), foram equivalentes no se distinguindo pelas regies que os utilizam em relao a vassalos de nobres (MATTOSO, 1988, p. 41). A preocupao do annimo redator da Historia Roderici em demarcar a fala dos personagens atravs da insero de termos romances evidente. Distinguiremos agora estes termos, e seu valor negativo, empregados em Castela daqueles utilizados na Catalunha dos quais o Cid Campeador foi acusado. Aleve, alevosia, como os castelhanos chamam. Derivaria da palavra gtica lvjan (BLEIBERG, 1968, p. 114), que deu origem ao aleve e alevosia medieval, que por sua vez originou o aleive e aleivosia no portugus de nossos tempos. Seu uso deduziria uma preservao de alguns vocbulos visigticos na poro ocidental da Pennsula Ibrica, que manteve entre seus habitantes e no falar coloquial at ser
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absorvido pela ideologia feudal, que deu um contorno especfico a este vocbulo e para aqueles relacionados a ele. A expresso significa traio, fraude, deslealdade, e o indivduo que a pratica o alevoso, o aleivoso, o falso, o prfido (ENCICLOPDIA, 1998, p. 163). O Cid foi acusado pelo Conde de Barcelona como sendo, nos termos castelhanos, um homem desleal no cumpridor de seus deveres como vassalo, desleal. No que tange s expresses vigentes nas pores orientais da cristandade ibrica, na Catalunha, a terminologia diferia na forma, no na sua proposio e preciso conceitual. Adequava-se a fala cotidiana, restringia-se aos hbitos dos grupos dirigentes catals. O conceito, precisado na linguagem da ideologia feudal, penetrou na linguagem jurdica e foi assentada nos suportes de escrita, como a Historia Roderici. O equivalente catalo de alevosia bauzia, perjrio, juramento falso ou violao de juramento, bausia no lngua catal moderna (DICCIONARI, 1991, p. 222). O agente desta falta bauzador, perjuro, desleal e infiel. Estas so as palavras usadas pelos catalos, denominados na fonte latina em prosa como francos, francorum (MENNDEZ PIDAL, 1977, p. 695). Foi acrescido ao discurso do Conde Berenguer o termo latino fraudador, fraudator, embusteiro, como complemento para reafirmar as ofensas contra o Campeador. No bastava ao autor da prosa latina indicar ofensas com as palavras catals, era preciso ressaltar com um complemento o sinnimo de bauzador, fraudator, para intensificar as declaraes de no cumprimento dos deveres vasslicos do Cid Campeador. Parece que o agrupamento dos vocbulos acima destacados sugere no apenas uma equivalncia da terminologia, mas tambm complementaridade. No somente indica a falta cometida ou a nomeao daquele que incorreu nela, mas tem a ver com a interiorizao conceitual destes termos pelo escriba e pelo leitor que promoveria a decodificao do texto latino. As palavras, a narrativa, a forma que ela apresenta, so ndices para o reconhecimento da ideologia medieval deste perodo histrico. A lngua essencialmente destinada escrita era o latim que carecia de determinados vocbulos e conceitos para descrever a realidade circundante. A lngua latina precisava ser complementada por expresses oriundas da fala cotidiana. Esta complementao unia-se estrutura da composio da fonte produzindo um significado compreensvel ao leitor. As declaraes do Conde Berenguer contra Rodrigo de Vivar e deste a seu oponente, factuais ou no, demonstram a penetrao das idias feudais no sculo em que estes personagens histricos viviam. Um inimigo acusava o seu rival com os elementos referentes quebra da fidelidade vasslica, ao no cumprimento dos deveres do vassalo. Entretanto, no caso da Historia Roderici, serviriam justamente ao contrrio. Tais acusaes virulentas do conde Berenguer de Barcelona primaram mais pelo vigor retrico do que pela criao de uma correlao entre os vocbulos negativos e as circunstncias a eles vinculados. Destacamos mais uma vez que existe uma certa nebulosidade neste perodo da vida do Cid. No conhecemos com certeza como estava a relao do heri castelhano com o seu suserano, mas Rodrigo 257

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Diaz defendeu-se das acusaes promovidas pelo catalo, elencando que componentes provariam o desvio de conduta por parte do conde. Contra a soberba do desafiador catalo, Rodrigo descrevia em resposta as atitudes que comprovariam a falta do conde. O heri castelhano depreciou o contato mantido por Berenguer com o rei Almuzahen de Saragoa e, posteriormente, com o rei Alfagib de Lrida. Apenas nestas situaes o guerreiro exilado considerava como perfdia, juntamente com as negociaes e as acusaes contra sua pessoa. A incapacidade destas partes de enfrentarem sozinhas seu oponente em especial Almuzahen de Saragoa e a aliana entre estes grupos para deter seus avanos caracterizaria um ato de traio (traditio). Estas condies ainda se agravariam com a tentativa de se buscar apoio do rei Afonso VI de Leo e Castela para intervir contra Rodrigo de Vivar. Os reis muulmanos citados e o conde catalo teriam instigado o suserano do guerreiro castelhano a combat-lo. A ltima assertiva implicaria em uma mobilizao deliberada contra a preservao de um vnculo feudo-vasslico ainda vigente. Os inimigos do Campeador estariam incentivando o rei de Leo e Castela a quebrar o lao que o unia a Rodrigo Diaz. O monarca foi incentivado a no cumprir a sua parte no pacto que firmara com o Cid, ou seja, enfrent-lo e combat-lo ao invs de proteg-lo. Se Afonso VI tomasse tal atitude incorreria em uma grave falta ideologia feudal, contudo como isto no ocorreu, a quebra no foi realizada. Porm, a sua ameaa, ou melhor, a instigao por parte dos rivais do Campeador j os caracterizaria como alevosos, bauzadores e fraudatores. O resultado desta vitria do Campeador preparou o terreno das suas empreitadas que se seguiram. A derrota de Berenguer Ramn repercutiu entre seus contemporneos, pois afastou a Catalunha das disputas polticas e territoriais no Levante espanhol que, por sua vez, no se viu mais pressionado no flanco oriental. Castela estava s voltas com as campanhas contra os Almorvidas, tornando sua influncia sobre as taifas orientais muito tnue, as meditas que logrou empreender rapidamente perdiam o efeito. O cenrio era favorvel para suas expedies militares do Cid, que progressivamente foram mudando o seu perfil, perdendo os ares de milcia dependente da remunerao de seus contratadores. Verificaremos, a seguir, em que se transformaram as movimentaes das hostes cidianas. A carta resposta do Cid Rodrigo de Vivar encerra a troca de insultos, destacando que as aes seguintes determinariam o destino dos litigantes. A batalha que se seguiu serviria como um espao de litgio (DUBY, 1993, 157), e seu resultado estaria determinado pela verdade e legitimidade do vencedor, aquele que era o mais valoroso e apoiado por Deus, Testemunha e Juiz Justo. O resultado do embate militar entre Rodrigo Diaz e Berenguer Ramn culminou mais uma vez com a vitria do castelhano (RODERICI, 1947, p. 946). O Cid Campeador, apesar das duras acusaes, provou estar no caminho reto, sem desvios e, principalmente, expondo seu valor como guerreiro. Texto escrito e as histrias narradas compem o suporte para o registro de muitos elementos. Neste caso, os indcios deixados pela Feudalidade nos proporcionaram dados ntidos em duas formas distintas de
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romance, juntamente com a lngua latina medieval. Pelas acusaes de transgresso aos deveres feudo-vasslicos manifestaes da ideologia feudal, foram as cobranas de algo no praticado que possibilitou o rastreio de uma prtica social. Os textos narrativos, e as palavras-chaves contidas neles, fornecem material suficiente para esta busca pelo Feudalismo ibrico.
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Ordem das Damianitas e a construo da identidade religiosa feminina


Elisabeth da Silva dos Passos* Karina Dias Murtha* Introduo Nos sculos XII e XIII constitui-se, segundo o historiador Andr Vauchez, uma nova espiritualidade marcada pelo retorno a vida apostlica (o ideal da vita vere apostlica) e a comunidade primitiva crist (ecclesiae primitivae forma); propunha-se o seguimento nu de Cristo nu (nudus nudum Christum sequi) (VAUCHEZ, 1995; MALDONADO, 1979; BOLTON, 1983). Neste contexto, a busca pela salvao tornou-se responsabilidade de cada indivduo (VAUCHEZ, 1995, p. 81). Assim, homens e mulheres imbudos desta nova espiritualidade formaram grupos religiosos laicos mistos (DALARUN, 1990). Muitos deles foram considerados herticos, seja pela interpretao especfica das Sagradas Escrituras, como foi o caso da heresia ctara (LE ROY LADURIE, 1997; RICHARDS, 1993), seja por sua no-subordinao a ortodoxia representada pela Igreja (Ecclesia),1 os valdenses demonstravam claramente esta perspectiva. Cabe evidenciar, que, no sculo XIII, a instituio eclesistica constitui as suas diretrizes normativas em relao aos movimentos religiosos femininos (BOLTON, 1983; DUFFY, 1998; PAUL, 1988). De acordo com a historiadora Maria Pia Alberzoni, a autoridade eclesistica representada na figura do pontfice Inocncio III estabeleceu um projeto conciso para os grupos religiosos femininos laicos. A principal premissa deste empreendimento era o processo de monasticizao/ monasterizao, cujo modelo baseava-se em Cister (ALBERZONI, 1999, p. 228 230; ROTZETTER, 1994, p. 36). Esta prerrogativa, para Alberzoni, se tornou mais evidente a partir do momento que, no sculo XIII, a Ordem Cisterciense interrompeu a fundao de casas femininas (ALBERZONI, 1999, p. 238). A Igreja propunha a criao de uma instituio religiosa que abarcasse os anseios das mulheres, jovens ou no, que desejassem adotar uma forma de vida asctica. Com a criao, em termos institucionais do ramo feminino franciscano, as damianitas futuras clarissas, este objetivo passou a ser almejado.2 Entretanto, o estabelecimento e a relao dessas religiosas, com a
*Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. **Graduada em Histria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 260

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parte masculina da Ordem dos Frades Menores (OFM), foram controversas. Em sua apresentao crtica dos documentos legislativos da Ordem Segunda Franciscana, o estudioso Jos Carlos Corra Pedroso afirma que:
Uma das maiores dificuldades veio por parte dos frades. Como anteriormente os cistercienses e premonstratenses, que no quiseram responsabilizar-se pela ala feminina de sua Ordem, os franciscanos tambm tiveram dificuldades desde o comeo e, principalmente, quando a Ordem comeou a crescer tanto. Na ocasio da morte de santa Clara, havia mais de cem mosteiros. No fim do sculo XIV chegaram a quinze mil (PEDROSO, 1994, p. 165).

Dois pesquisadores dedicaram a anlise desta temtica. Em sua obra intitulada Vida de San Francisco de Ass, o historiador Raoul Manselli defende a hiptese de que o assisense no teria como objetivo ter mulheres como suas seguidoras, visto que, a sua opo religiosa era marcada pela austeridade, ser um pobre entre os pobres; era uma opo pela marginalidade (MANSELLI, 1997, p. 157). O artigo de Lezlie Knox, Audacious nus: institucionalizing the Franciscan Order of Saint Claire, trata, especificamente, do conturbado processo de aceitao e vinculao das religiosas seguidoras de Clara de Assis com a instituio franciscana masculina, entre os anos de 1261-63, aps a canonizao da santa em 1255 (KNOX, 2000). No ano de 1212, com um gesto simblico (SCHMITT, 1990, p. 27) - o corte de cabelo e a mudana das vestes do sculo para o hbito pobre franciscano - Clara torna-se a primeira seguidora mulher do homem de Assis. Inicia-se, assim, um polmico e difcil processo para a aceitao e vinculao. De acordo com Knox, esta disputa acentua-se aps a morte de Clara e com o trmino do processo de monasticizao/monasterizao da Ordem Franciscana (KNOX, 2000), que, para ns, ocorre aps o generalato de Boaventura. Seguindo as prerrogativas de uma histria antropolgica, e tendo como base os pressupostos epistemolgicos do paradigma ps-moderno, o nosso texto tem como problemtica analisar as referncias s vestes presente no texto legislativo que se vincula constituio do ramo feminino da Ordem Franciscana, a Forma de Vida de Hugolino (FVH) escrita e divulgada para os primeiros mosteiros femininos em 1219. Defendemos como hiptese que as menes as vestes presentes no texto normativo em anlise expressam a construo de uma identidade religiosa feminina pela instituio eclesistica e vinculam-se ao processo de institucionalizao da Ordem Segunda Franciscana (PARISSE, 1994, p. 196), que foi posto em prtica, inicialmente, pelo pontfice Inocncio III. importante salientar que monasticizar/monasterizar, no que se refere ao movimento religioso feminino franciscano, implica em adoo do modelo administrativo cisterciense, que se expressa, dentre outros aspectos, na adoo da clausura e do silncio. Estas caractersticas esto presentes ao longo da histria da Ordem Segunda Franciscana.3 A historiadora Valria Fernandes da Silva, a partir das diretivas de gnero, discute a implantao 261

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deste modelo com a adoo destas prticas monsticas. A autora concluiu que a sua aplicabilidade no era to rgida, nem muito eficaz. Um considervel nmero de filsofos, antroplogos, lingistas e historiadores tm se dedicado ao estudo da identidade de distintos grupos sociais. A pluralidade de abordagens permite-nos entrever, de certo modo, a complexidade do conceito. Por este motivo, devemos explicitar a concepo de identidade que adotamos, e que est em estreita relao com a de alteridade, a problemtica acerca do outro antropolgico. O antroplogo Marc Aug debrua-se sobre esta problemtica. Para o autor, O tratamento do outro no seno uma maneira indireta ou negativa (sem dvida a nica possvel) de pensar o mesmo o idntico: a etnia, o homem realizado, a linguagem pura (AUG, 1999, p. 23).4 Ou seja, quando na FVH verificamos as delimitaes acerca das vestes, entendemos que o no seguimento dessas normas indica o seu no-pertencimento a Ecclesia, a comunidade crist. As menes, inclusive detalhistas, como veremos adiante no texto normativo em estudo, em relao indumentria, corroboram a apreenso por parte da Igreja (ortodoxia) em singularizar, delimitar e especificar, o movimento religioso feminino a ela vinculado existente na regio de Assis. Esta necessidade legislativa constitui-se como um contraponto aos movimentos herticos que pululavam em fins do sculo XII e incio do XIII. A Forma de Vida de Hugolino (FVH)5 A Forma de Vida de Hugolino (FVH) foi redigida em 1219, tendo sido enviada entre nos dias 27, 29 e 30 de julho deste ano para os mosteiros que seguiam a proposta de vida religiosa elaborada por Clara em So Damio, foram eles: Gattaiola de Lucca, Porta Camlia de Sena e Monteluce de Perusa. Cogita-se que a redao da Forma de Vida escrita por Hugolino foi feita em conjunto com frei Filipo Longo, o sexto companheiro de Francisco de Assis.6 Pedroso assinala que as jovens tinham enorme resistncia s prescries contidas no texto da Regra de So Bento (RSB) acerca do silncio e do jejum (PEDROSO, 1994, p. 145 - 146). No que se refere ao tempo aplicao e uso deste documento, de acordo com Pedroso, esta forma de vida teve um curto perodo de durao, de 1219 a 1247, quando foi substituda pela redigida pelo pontfice Inocncio IV (PEDROSO, 1994, p. 146). A pesquisadora Valria Fernandes Silva assinala que o perodo de vigncia deste documento foi o mais duradouro (SILVA, 2000, p. 140). Partilhamos da postura de Silva, pois a este texto normativo teria sido utilizado durante 28 anos; por conseguinte, ressaltamos a eficcia de suas prescries. A anlise das referncias s vestes Destacamos que existem poucos textos que se dedicaram anlise das menes indumentria presentes em documentos histricos de carter normativo sobre o perodo medieval; assim, assinalamos a especificidade de nossas reflexes. O nico estudo encontrado, que analisou as relaes identitrias construdas a partir das vestes, foi escrito por Brigitte Miriam
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Bedos-Rezak, em seu artigo, Medieval identity: a sign and a concept. A partir da perspectiva analtica da antropologia semitica, Bedos-Rezak visa analisar a como as elites francesas nos sculos XI e XII utilizavam suas insgnias como representaes simblicas de suas identidades (BEDOSREZAK, 2000).7 De acordo com o conceito de identidade que adotamos, ao analisarmos a Forma de Vida de Hugolino (FVH) para as damianitas, inferimos que presena no texto normativo da expresso hbito regular8 tem por objetivo delimitar atravs do gesto de adotar esta vestimenta religiosa especfica a opo por uma vida-asctica baseada na clausura. O autor busca, assim, constituir um dos traos da identidade religiosa franciscana feminina, fundamentado na recluso, como pressupe o modelo cisterciense. Como apresentamos anteriormente, este texto foi escrito, por volta de 1219, logo, a expresso hbito regular assume outro sentido/ significado, uma vez que no existia uma Ordem, mas sim uma Fraternidade Franciscana. Ou seja, o processo de monasticizao/monasterizao estava em curso, e a instituio eclesistica, representada na figura de Hugolino, evidencia sua efetiva atuao no tocante ao ramo feminino, as damianitas. Cabe salientar que as divergncias acerca do ministrio pastoral destas religiosas, tornaramse um problema efetivo quando a Ordem j estava devidamente institucionalizada, aps o generalato boaventurino. Entendemos que o vnculo entre os ramos femininos e masculinos estava baseado, sobretudo, na manuteno do ministrio pastoral. Os franciscanos questionavam ferrenhamente a manuteno deste vnculo. interessante notar que o texto hugoliano institui o noviciado. Sobre este aspecto, citaremos a obra:
Todas as que forem recebidas na clausura, de acordo com o costume, se tiverem idade suficiente para entender o que esto fazendo, deixem quanto antes as roupas seculares e faam a profisso nas mos da abadessa, dentro de poucos dias 6. Isso deve ser observado firmemente tambm com as serviais (FVH 4).9

De acordo com Pedroso, a meno ao noviciado presente neste documento normativo uma inovao, j que o documento Cum secundum consilium, que faz aluso a esta prtica data de 22 de novembro de 1220 (PEDROSO, 1994, p. 149). Entretanto, inferimos que tal referncia demonstra uma reflexo precisa, por parte das autoridades eclesisticos no que se refere a adeso vida religiosa, vinculado com o processo de institucionalizao da Ordem Franciscana. As mulheres, que desejavam esta vida asctico-religiosa, deveriam experiment-la e, ao entrar para a instituio eclesistica, estarem cientes da opo que fizeram. Tal delimitao, possivelmente, tinha como objetivo combater a entrada na vida religiosa como fuga ou garantia de sustento, comuns no perodo medieval e que afetavam tanto mulheres quanto homens (DALARUN, 1990) Sobre as roupas, citaremos o documento:

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS [As roupas] 9. Quanto s roupas, observe-se o seguinte: cada uma tenha duas tnicas e um manto, alm do cilcio ou estamenha, se o tiverem, ou do saco 13. Tenham tambm escapulrios de pano leve e religioso 14, ou de estamenha, se quiserem, de largura e comprimento adequado, conforme o exigirem a condio e a estatura de cada uma; vistam-nos quando estiverem trabalhando ou fazendo alguma coisa que no lhes permita usar adequadamente o manto. Mas se quiserem us-los junto com o manto, ou mesmo dormir com eles, no lhes proibido 15. Tambm podem ficar algumas vezes sem eles, se assim parecer abadessa, quando o calor for demais ou algum outro motivo fizer que sejam muito pesados para usar. Mas, se este preceito de usar escapulrios parecer to grave ou molesto para algumas que no seja possvel nem mov-las nem induzi-las a us-los, sejam dispensadas disso pacientemente. Mas as que os usarem estaro agindo muito mais honestamente e nos agradaro muito mais 16, e cremos que com isso agradaro muito mais a Deus (FVH 9).10

O autor do documento determina o nmero de roupas, duas tnicas e um manto. Tnica trata-se de um vesturio antigo, comprido e ajustado ao corpo; manto, por sua vez, consiste em uma roupa feminina, larga, comprida e sem mangas, que usada por cima do vestido, podendo cobrir at a cabea, cingida pela cintura; uma espcie de hbito utilizado por mulheres religiosas, inclusive na atualidade (DICIONRIO ELETRNICO HOUAISS, 2001). De acordo com Pedroso, o termo cilcio presente na hagiografia celanense sobre Clara uma palavra genrica, por causa da relao estabelecida com as cabras da Siclia. Era comum utilizarem o plo desses animais para a confeco de tecidos muitos speros. Os materiais empregados para a elaborao deste objeto de macerao da carne, poderiam ser diversos: pano, couro e metal (PEDROSO, 1994, p. 33; ALEXANDER, 2002). Alm disso, pe-se em evidncia a austeridade da vida asctica proposta por Clara, tal como Francisco de Assis; estabelecendo um vnculo conciso com uma prtica monstica. O tipo de tecido utilizado tambm pode ser associado a macerao da carne. A estamenha, um pano rude utilizado pelos que eram pobres, ou o saco; porm, o uso ou no desses elementos era facultativo. Ou seja, nem todas deveriam fazer uso desta rusticidade em suas vestimentas. Os escapulrios eram obrigatrios, podendo ser de estamenha e respeitando o tamanho de cada uma, provavelmente, para facilitar o trabalho (de carter manual) que realizariam, pois deveriam utiliz-lo quando fossem faz-lo. Em suas atividades dirias, o manto e/ou escapulrio eram indispensveis. Na hora de dormir, as mesmas vestes poderiam ser mantidas; provavelmente, por causa do frio, que deveria ser rigoroso naquela regio da pennsula itlica (MONGELLI, 1997). Somente com a permisso da abadessa, representante da autoridade eclesistica, poderiam deixar de utilizar o manto, por causa do calor ou da tarefa que realizariam. Porm, se no desejassem usar os escapulrios, para assegurar a rigorosa ascese, no eram obrigadas a faz-lo, poderiam manter o manto. No entanto, no texto Hugolino afirma que se o fizessem estariam agindo de acordo com os
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preceitos divinos, e, de certo modo, preservando-se fisicamente. A austeridade da vidas asctica proposta a Clara e suas seguidoras perpassa a indumentria. A macerao da carne atravs das vestes um pressuposto da religiosidade constituda por Hugolino, autor do texto em anlise, sendo um contraponto s roupas utilizadas no sculo. (PASTOREAU, 1989, p. 87 - 90). Alm disso, as prescries referentes a indumentria, quantidade, tipo e forma, devem ser analisadas a partir da ascese proposta por Francisco de Assis, e que Clara desejava imitar. O fundador da Fraternidade Franciscana preconizava a pobreza, e, de certa forma, o texto hugoliano busca assegurar este fato. O Forma de Vida de Hugolino tambm apresenta prescries sobre o corte de cabelo: Cortem seu cabelo de maneira redonda; e nenhuma seja tonsurada de outra maneira se isso no for exigido por uma evidente enfermidade corporal (FVH 9).11 O historiador Jos Rivair Macedo, em seu artigo A face de Eva os cuidados com a aparncia em um manual de beleza do sculo XIII, nos concede informaes para analisarmos esta prescrio em um texto normativo da vida religiosa.12 Segundo o estudioso, os cabelos, assim como a indumentria, constituem signo importante da conscincia de si e da representao social (MACEDO, s.d.; SCMITT, 1999) Ou seja, mant-lo solto, preso, longo, curto demonstram o seu status social. Neste caso, a meno a tonsura na Forma de Vida hugoliana ressalta claramente a sua opo por uma vida asctico-religiosa fundamentada na austeridade, e a recusa aos padres, modelos de beleza vigentes no sculo XII pertencentes, sobretudo nobreza, do qual Clara de Assis fazia parte. Concluso Inferimos que a identidade do grupo religioso feminino, constitudo a partir da figura de Clara de Assis, no est constituda no texto em anlise, pois vincula-se diretamente com o o processo de institucionalizao do ramo feminino da Ordem Franciscana. Entendemos que as prescries referentes s vestes, presentes no texto hugoliano analisado, evidenciam a necessidade de se especificar o uso dos hbitos (tipo e quantidade), relacionando-o necessidade de se delimitar as religiosas que pertenciam a Ecclesia. Ou seja, a Igreja desejava constituir essa identidade, especialmente atravs das damianitas. A identidade/ imagem destas religiosas, vinculada ao hbito que adotaram, tornou-se um contraponto aos movimentos herticos. Salientamos que a relao entre a construo desta identidade e a espiritualidade clariana, expresso da proposta por Francisco de Assis, ainda no foi explorada.
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ORDEM DAS DAMIANITAS E A CONSTRUO DA IDENTIDADE RELIGIOSA FEMININA comunidade crist e se vincula, tambm, aos aspectos institucionais (organizacionais) da Igreja Medieval (ortodoxia), que vivenciava o seu processo de consolidao no sculo XIII, trajetria que tinha sido iniciada com a Reforma Gregoriana no sculo XI. 2 A opo pela expresso damianitas corresponde a vinculao com o perodo inicial do processo de institucionalizao da Ordem Segunda Franciscana (OSF) e expressa os ideais de vida asctico propostos por Clara de Assis, que desejava imitar o seguimento de Cristo empreendido por Francisco de Assis. 3 Salientamos que no dia 18 de maro de 1212, Clara passa a fazer parte da Fraternidade Franciscana. Com a chegada das primeiras seguidoras, lhe impem a Regra de So Bento (RSB). Este texto foi escrito por Bento, que nasceu em Nrcia, localizado na regio da pennsula itlica, em fins do V sculo, mais especificamente em 480 d. C.. O autor deste texto normativo dedicou a sua vida constituio de casas religiosas, educao e aperfeioamento da vida monstica. A redao da regra teve origem a partir de sua longa experincia no Monte Cassino. Gregrio Magno, bispo de Roma, nos fornece as informaes sobre Bento, no segundo volume de sua obra Dilogos. Cogita-se que a famlia de Bento pertencia pequena nobreza rural. A sua educao teria comeado ainda muito jovem, tendo sido enviado a Roma para complet-la. Porm, no adequou-se a realidade urbana, optando pelo ideal de vida monstico, como j o tinha feito sua irm Escolstica. Estabeleceu-se como um anacoreta no vale do nio, em Subaco, atraindo discpulos. As famlias nobres da regio enviavam-lhe os seus filhos para que fossem educados. Entretanto, passou a sofrer oposio de um membro do clero secular, que se sentia ameaado pela expanso dos mosteiros criados por Bento. Por causa desta situao, abandona a regio e segue com alguns seguidores para Montecasino, que se localiza entre a regio de Npoles e Roma, dedicando-se, neste local, onde j existia uma tradio religiosa pag, evangelizao. A data de sua morte imprecisa. Para maiores informaes sobre a Regra de So Bento e seus usos ao longo da Idade Mdia, ver: VAUCHEZ, Andr. S. Bento e a revoluo dos mosteiros. In: BERLIOZ, Jacques. (Apres.). Monges e religiosos na Idade Mdia. Lisboa: Terramar, 1994. p. 15-30. 4 Para Waissman, () a Identidade pode ser estabelecida ou reconhecida em qualquer critrio convencional. De acordo com esta concepo no possvel estabelecer uma de vez por todas o significado da identidade ou o critrio para reconhec-la; mas possvel, no mbito de um determinado sistema lingstico, determinar de forma convencional, dito critrio (ABAGNNANO, 1982, p. 504). Esta acepo, tambm, pode nortear a nossa reflexo, no entanto, precisaramos de mais tempo para desenvolv-la. 5 Sobre as diferenas entre Regras e Formas de Vida, cf.: BROWN, Peter. De Ambrsio a Agostinho: a formao latina. In: ___. Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renncia sexual no incio do cristianismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. p. 281-351; DORTEL-CLAUDOT, Michel. Cdigo Fundamental (de um Instituto de Vida consagrada). In: SALVADOR, Carlos Corral; EMBRIL, Jos Ma. Urtega (Coord.). Diconrio do Direito Cannico. So Paulo: Loyola, 1993. p. 134-135. 6 Lezlie Knox evidencia que Francisco de Assis no possua relaes amistosas com este seguidor. Citaremos a obra: Francis cursed Philip as an ulcerous tumor and destroyer of the Franciscan Order. Para fazer tal afirmao, utilizou o documento Descriptio codicis S. Antonni de Urbe unacum appendice tentuum de S. Francesco , escrito por Livarius Oliger. (KNOX, 2000) 7 Entretanto, ao longo dos ltimos anos, diversas pesquisas voltadas para a moda, e temas correlatos, vm sendo produzidas. Para maiores informaes ver: SANCHEZ

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS ORTIS, A. Chromatic ploys of appearance and power in the medieval european courts. Goya, n. 293, p. 91-102, 2003; BONSCH, A. Ulrich von Liechtenstein Outfitting him for the Venusfahrt - realization of the Ulrich project, a cultural tourism incitiative on a European sacale (Medieval clothing, costume). Waffenund Kostumkunde, v. 40, n. 2, p. 1-38, 1998; SPONSLER, C. Narrating the social order - medieval laws. Clio - a journal of literature history and the philosophy of history, v. 21, n. 3, p. 265-83, 1992; JAACKS, G. The terminology and typology of medieval clothing, proceedings of the 1986 krems round-table. Zeitschrift fur volkskunde, v. 86, n. 2, p. 318-9, 1990. 8 Citaremos o texto normativo: Pois devem permanecer encerradas todo o tempo de sua vida; e, depois que tiverem entrado no claustro desta religio, assumindo o hbito regular, a nenhuma delas ser dada licena ou faculdade de sair jamais da, a no ser que por acaso algumas sejam transferidas para algum lugar para plantar ou edificar a mesma religio. O texto original: Omni namque tempore vitae suae clausae manere debent; et postquam claustrum huius religionis intraverint aliquae, regularem habitum assumentes, nulla eis conceditur (S concedatur) licentia vel facultas inde ulterius exeundi, nisi forte causa plantandi vel aedificandi eamdem religionem ad aliquem locum aliquae transmittantur. (FVH 4) (PEDROSO, 1994, p. 147.) 9 Em latim: Omnes vero ex more intra clustrum receptae, si aetatis intelligibilis (BF convenibilis) fuerint, citius deponant habitum saecularem, et infra paucos (BF statutos) dies professionem faciant (A+in manu) abbatissae. Quod etiam de servientibus firmiter observetur (FVH 4) (PEDROSO, 1994, p. 149). 10 O texto em latim: 9. De indumentis autem hoc observetur, ut unaquaeque duas habeat tunicas et mantellum, praeter cilicium vel stamineam, si habuerint, sive saccum. Habeant et scapularia de levi et religioso panno, vel staminea, si voluerint amplitudinis et longitudinis congruentis, sicut uniuscuiusque qualitas exigit vel mensura; quibus induantur cum laborant vel tale aliquid agunt, quod pallia congrue gestare non possint. Si tamen illa simul habere voluerint cum mantellis, vel etiam iacere cum ipsis, minime prohibentur. Possunt et sine ipsis esse aliquando, si visum fuerit abbatissae, cum forte propter calorem minimum vel aliquid aliud eis gravia multum fuerint ad portandum. Quod si praeceptum hoc, de scapularibus scilicet deferendis, tam grave fortasse visum fuerit aliquibus vel molestum, quatenus ad illud suscipiendum nec inclinari valeant nec induci; patienter cum eis super hoc dispensetur. Quae vero suscipiunt, multum honestius agunt et multo plus nobis placent, et Deo multo magis ex hoc illas credimus complacere. Super tabulas ligneas iaceant, storea vel panno superstrato cum aliquantulo foeni vel paleae, si voluerint et visum fuerit abbatissae, vel huiusmodi aliquo alio, quod earum religionem deceat et pro loco potuerit inveniri, habentes ad caput cervicalia plena palea sive feno. Habeant etiam coopertoria lanea, sive cultras, si lanea habere nequiverint congruenter (FVH 9). (PEDROSO. 1994, p. 150 - 151). 11 Texto original: Capillos suos tondeant in rotundum; nec aliqua de cetero tonsuretur, nisi evidenti infirmitate corporis exigente (FVH 9). (PEDROSO, 1994, p. 151) 12 O texto estava disponvel no site: www.abrem.org.br.

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Deus amicitia est: o conceito de caridade e de amizade espiritual em Aelred de Rievaulx (1110-1167)
Ana Paula Lopes Pereira

movimento monstico cisterciense objeto, para a historiografia recente, de anlise sobre transformaes capitais no que concerne chamada descoberta do indivduo e interiorizao do sentimento religioso. Para conhecer o pensamento que estrutura o conceito monstico de amizade espiritual, tal como foi elaborado e praticado, escolhemos duas obras-primas da literatura cisterciense, os belos tratados de Aelred de Rievaulx (1110-1167): o Speculum Caritatis, composto ao longo do ano de 1143, e o De Spirituali Amicitia, datado de 1160. A anlise que empreendemos visa compreender a sistematizao de um comportamento afetivo - elaborao de regras em relao a si mesmo e em relao ao outro - que foi integrado ao aparelho conceitual que funda a teologia mstica cisterciense da Caridade. Aelred de Rievaulx nasceu por volta de 1109 em Hexham, na Nortmbria. Educado na corte de David, rei da Esccia, conhece a literatura clssica, sobretudo Ccero. Ocupando a funo de dispensator, tinha a responsabilidade de cuidar da mesa e do tesouro reais. Em 1134 enviado para atender ao arcebispo de York e conhece a comunidade cisterciense de Rievaulx, fundada em 1132. Decide a permanecer e recebido por Guilherme, secretrio de Bernardo de Clairvaux. Em 1141 mestre dos novios, em 1143 torna-se abade de Rewsby e em 1147 abade de Rievaulx, filha de Cteaux, at sua morte, em 1167 (DICTIONNAIRE DE SPIRITUALIT, t.I, 1937, col. 226). At recentemente a obra de Aelred de Rievaulx no havia suscitado grande interesse dos eruditos clssicos, e se manteve sombra dos escritos de Bernardo de Clairvaux e de Guilherme de Saint-Thierry. Em 1932 Dom Anselme Le Bail, responsvel pela renovao dos estudos cistercienses, escreve o verbete Aelred no Dictionnaire de Spiritualit. Entre 1934 e 1935, nos dois primeiros tomos da revista Collectanea Cisterciensia, aparece um pequeno estudo que baliza o conhecimento sobre o santo e suas obras. Na mesma poca, o editor Charles Hugh Talbot descobre o tratado De anima, e em 1939 publica artigos sobre o De institutione inclusarum. Em 1952,
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Doutoranda em Antropologia Histrica na cole des Hautes Etudes en Sciences Sociales.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Maurice Powicke publica a Vita Aelredi. Neste mesmo perodo Dom Andr Wilmart identifica o autor da carta que encabea o Speculum Caritatis e que pede a redao de um tratado para responder s crticas rudeza da regra cisterciense, como sendo de Bernardo. Em 1958 Dom Anselme Hoste abre a Continuatio Mediaevalis das Sources Chrtiennes com Quando Jesus tinha 12 anos (De Jesu puero duodenni) e edita ainda, em 1961, A Vida de Reclusa (De institutione inclusarum), traduzido por Charles Dumont. A onda de publicaes sobre o pensamento teolgico, a pedagogia e a arte literria de Aelred de Rievaulx continuou com os padres Aelred Squire e Amde Hallier, e atualmente estudos vigorosos tm sido publicados na coleo americana Cistercians Studies. Em 1992 a obra Speculum Caritatis foi objeto de uma jornada de estudos na Abadia de Scourmont, cujas conferncias foram publicadas na pioneira Collectanea Cisterciensia (DUMONT, 1993, p. 6-7). Na via aberta por Bernardo de Clairvaux, os monges cistercienses se esforam em conhecer o mistrio da capacidade de amor no homem, criando uma nova interpretao e conseqentemente uma nova aceitao do sentimento de amor ao prximo. Esta nova percepo da amizade, que procuramos analisar, mostra a mudana dos sistemas de valores que a sociedade medieval central conhece, em razo de novas necessidades espirituais subjetivas. Os textos de Aelred de Rievaulx mostram de modo significativo como o mandamento de amor foi sentido e sua prtica experimentada de modo especial, assim como sua ligao estrutural com a teologia cisterciense da Caridade e a sua concepo de vida comunitria. Esperamos poder compreender, atravs de uma breve anlise do pensamento do monge ingls, como a teologia mstica cisterciense, fundamentada em uma maior devoo ao sacrifcio do Filho (ou em uma maior exegese da humanidade do Cristo) e se esforando para conhecer o mistrio do amor, criou uma nova interpretao, deu um novo valor e conseqentemente uma nova forma de expressar o sentimento de amor e a relao com o outro. A construo do ideal de amizade espiritual visvel no meio beneditino e cisterciense. Seu desenvolvimento se situa no perodo entre 1120 e 1180, inicia-se com Anselmo de Canterbury, floresce com Pedro, o Venervel, Bernardo de Clairvaux e Guilherme de Saint-Thierry e conhece uma total celebrao com o monge ingls Aelred de Rievaulx. A necessidade de expressar, dentro de uma nova antropologia, os sentimentos de amor e de amizade transforma o conceito de Caritas e o vocabulrio subjacente. Estes autores iluminam uma mudana profunda nas mentalidades, no que concerne s atitudes em relao a si mesmo, aos outros e a Deus. O sentido do mandamento de amor de Deus se modificou no sculo XII. No se justifica mais a importncia do amor do prximo, entendido como amor ao inimigo, mas se afirma a excelncia da Caridade fraterna, uma vez que os monges se dirigem aos seus pares que, no paraso do claustro (paradisus claustralis), j foram tocados pela graa divina. Se liga assim, ao sentido de diligere, este amor preferencial que consiste em escolher racionalmente e afetivamente, atravs da manifestao do affectus, aqueles que merecem mais amor e amizade do que os outros. Para os cistercienses, a Caridade e o amor do prximo desabrocham na vida comum, perfeita, onde as relaes do mundo
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so transformadas em relaes espirituais cuja fonte e finalidade o amor do Cristo. A chegada de Bernardo com seus jovens amigos e irmos em Cteaux, em 1112, nos mostra a importncia do desejo de perfeio pela via monstica e da converso coletiva (GULHERME DE SAINT-THIERRY, Vita Prima ch.14, PL. 185, 235). Vemos aqui a importncia que a amizade reveste na comunidade, cultivada como o meio de partilhar a devoo, de expressar a alegria, o prazer em uma espiritualidade marcada pelo sensvel, onde a experincia representada sobretudo por metforas gustativas. O claustro, onde se combinam o ensino e a afeio, se torna o lugar do desenvolvimento da amizade perfeita, onde o amor dos amigos se torna o elemento central da composio do amor cristo. A amizade sendo a afeio natural qual se dedicam homens que se assemelham pela sua bondade e virtude, a escolha de uma certa comunidade supe esta semelhana entre seus membros. Pelo pacto de entrada na nova vida, a amizade do mundo, convertida em amizade em Cristo, vivida no claustro como o desabrochar do sentimento do Cristo no homem. A possibilidade do exerccio desta forma de amor implica na reflexo sobre quem amar, sobre o tipo de relao que deve ser estabelecida, assim como sobre o modo pelo qual o sentimento pode ser expressado. A reforma cisterciense formando uma nova comunidade, com suas regras de observncia mais rigorosas, coloca a questo dos limites da prtica do amor de Caridade em relao ao ideal asctico e comunitrio. Coloca tambm a questo de saber o que nutre e o que se ope criao e manuteno de relaes intersubjetivas. Aparece assim o dilema do cristianismo, o de saber como amar seu prximo, mas sobretudo como amar especialmente um de seus prximos, sem transgredir o mandamento da Caridade, entendido como amor universal. A idia de amizade espiritual passa a fazer parte de um sistema de valores monsticos, integrados em uma nova antropologia, representando uma comunidade de idias relacionadas a uma sistematizao do afeto no homem atravs do amor do prximo, entendido agora como amigo. O tema encontrado e desenvolvido em uma gerao de monges revela uma mesma estrutura mental, formando uma linguagem comum sobre o amor e a amizade. Entretanto, em Aelred de Rievaulx, que as noes de Caridade e de Amizade aparecem correlatas: Se Deus caritas est, Deus amicitia est. Durante o ano de 1143, respondendo ao pedido exigente de Bernardo, Aelred de Rievaulx empreende a redao do Speculum Caritatis. Bernardo impele Aelred a explicar sua comunidade que o ascetismo e a observncia regra cisterciense no impediam a manifestao de laos afetivos. Bernardo faz este pedido a Aelred, seu irmo bem amado, pois este aprendeu, com uma longa meditao sobre a excelncia da Caridade, de seu fruto, de seus graus a fim de que se possa ver, como em um espelho, o que a Caridade da o ttulo da obra (DUMONT, 1992, p.26). Nesta obra surpreendente, Aelred de Rievaulx, no apenas integra a noo de amizade doutrina da Caridade, como Bernardo, como tambm faz da amizade espiritual a excelncia da Caridade, definindo assim, a prpria noo de amizade espiritual. Refletindo sobre o amor no homem e sobre as diversas formas de o sentir, Aelred cria uma doutrina original sobre os affectus e sua funo positiva na alma humana. 271

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

No incio de seu tratado Aelred pede para que lhe seja dado provar a doura divina, a fim de a desejar mais, e s se satisfazer quando a glria aparecer, e que a abundncia da doura que Deus esconde daqueles que temem se revele queles que amam. A obra composta por trs livros. No primeiro o autor, herdeiro de Agostinho e Bernardo integra a Caridade doutrina da imagem de Cristo no homem dotado de livre arbtrio. No livro segundo, mais moralizante e com exemplos escriturrios, expe o caminho espiritual do novio no progresso espiritual. Finalmente, no livro trs, explica a tripla dileo ou as trs formas de amor, que so os trs sabbats espirituais. No incio da sua reflexo afirma que nada mais justo do que a criatura amar o seu criador, e se pergunta o que o amor (amor) ? definindo-o ento:
um maravilhoso deleite da alma, to mais doce quando casto, to mais saboroso quando sincero e to mais agradvel quando extenso. Ele o palato do corao (palatum cordis) que prova que tu ( Cristo) s doce, o olho que v que tu s bom. tambm o lugar capaz (capax) de ti, o Altssimo. Pois aquele que te ama te tem, e ele tem na medida que ele ama pois tu prprio s amor, tu s caridade. (Speculum Caritatis, I, 1)

No captulo trs Aelred expe a doutrina de que o homem, criado imagem e semelhana do Criador, criatura racional, capaz de beatitude, pois dotado de livre arbtrio pode guiar sua faculdade de amar (Speculum Caritatis I, 3-4). Na sua antropologia o abade de Rievaulx explica que a alma tem trs faculdades que se movimentam juntas em direo beatitude: a memria, a razo e a vontade. Pela memria da viso celestial (memorie celestem visionem), o homem capaz de possuir a eternidade, de abraar Deus ; pela racionalidade da cognio divina (rationi divinam cognitionem) o homem participa da Sabedoria; e pela vontade de amor (voluntati caritatem) o homem saboreia a doura divina. A beatitude procede da vontade, que deve se virar para as lembranas e para o saber, para poder se deleitar na alegria. Mas a imagem do homem est corrompida: o homem possui a memria sujeita ao esquecimento, uma faculdade de conhecimento passvel de erro e uma faculdade de amor inclinada ambio, ao mau desejo. Assim o gnero humano, privado de razo e de conhecimento, s pode desejar o que carnal. Entretanto um trao da Caridade divina aparece nas criaturas, porque tudo tende em direo ao repouso, ao sabbat espiritual. A imagem de Deus, no homem, assim restaurada pela Caridade/Amor - manifestao do mandamento novo, onde a alma se reveste perfeitamente de amor, que reforma as duas faculdades corrompidas (Speculum Caritatis, I, 21). No livro III Aelred de Rievaulx desenvolve a idia de progresso espiritual na paz da Caridade como sendo a experincia de trs sabbats espirituais. O primeiro sabbat o recolhimento em si mesmo, o segundo se desenvolve para o exterior pela dileo fraternal e o terceiro pelo rapto da alma que adere ao Uno. (Speculum Caritatis, III,1). Mas, para Aelred, no se trata somente de progresso de um para outro estgio da vida espiritual, mas de uma alternncia entre estas trs formas de dileo, segundo as disposies de cada um e as circunstncias da vida. Esta tripla dileo compreende ento trs objetos do
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amor : o prprio indivduo, o prximo e Deus. As duas primeiras formas de dileo esto salvaguardadas pela dileo de Deus. Pois o repouso se acha primeiro na pureza da conscincia, depois na doce unio de vrias almas e enfim na contemplao de Deus (Speculum Caritatis, III, 1-6). O repouso no pode ser procurado em uma amizade carnal, no apenas devido aos desentendimentos e interesses, mas tambm por causa da possibilidade da morte, que traz a dor ao sobrevivente e o castigo ao desaparecido. Mas h a dileo entre os bons, quando as regras da justia acompanham os mritos de cada um. A perfeio da justia depende assim da perfeio do amor - amar o que deve ser amado e amar o quanto deve ser amado : Deus mais que a si mesmo, o prximo como a si mesmo, Deus unicamente por ele mesmo, a si mesmo e ao prximo por Deus. Ainda como Bernardo, Aelred de Rievaulx identifica a Caridade como sendo um acordo entre a vontade humana e a vontade divina, de forma que a vontade humana consente em tudo o que a vontade divina prescreve. Este acordo da vontade se realiza pelo Esprito Santo, por sua vez vontade e amor de Deus. Aquele invade a vontade humana e a transforma inteiramente, dando seus prprios modo e qualidade de amor. Unindo-se a Deus, a alma se torna um s esprito com ele, assim a deificao do homem se completa na reciprocidade do amor mtuo, que nasce como um dom da graa divina. Entretanto, o conceito de Caridade desenvolvido pelo ingls e o lugar que a amizade ocupa no sistema da salvao implicam na criao de uma doutrina do affectus, do conhecimento do modo pelo qual o homem sente o amor. Sua definio levanta vrias questes de ordem teolgica, estando ligada compreenso de todos os fenmenos sensveis que se instalam no homem enquanto criatura dotada de livre arbtrio e maculada pelo pecado original. Para Aelred o affectus uma certa inclinao (inclinatio) espontnea e doce da alma em direo algum. O Afeto pode ser espiritual, racional, irracional, ligado aos bons ofcios, ou natural, ou mesmo fsico. (Speculum Caritatis, III, 11) O affectus pode ser entendido de dois modos: como um movimento egosta de desordenado deleite ou pela atrao da alma que, quando tocada por uma visita secreta ou quase fortuita do Esprito Santo, se deixa levar pela doura divina da dileo e pela suavidade da caridade fraterna, implicando em desejo e ao, visando a beatitude. O affectus a atrao que o homem experimenta por Deus, o movimento que corresponde a essa atrao. O affectus a capacidade de amor ordenado, comandado pela Caridade, ou desordenado, comandado pela paixo. O exemplo dado por Aelred para explicar os dois modos de affectus o amor que um indivduo sente por duas pessoas: uma doce e agradvel, mas menos perfeita em virtude ; a outra mais virtuosa, mas com uma face mais sombria e o rosto enrugado por uma vida austera. Assim, para amar a primeira, o esprito levado por uma atrao espontnea, mas para amar a segunda ele faz uso da razo e da regra de uma caridade ordenada. Amar a primeira pessoa, apesar de no ser condenvel, a aparncia do amor e no o amor. Aelred de Rievaulx concebe ento um affectus involuntrio, aquele que sentido espontaneamente em relao a algum que pode no merecer 273

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o amor, e um affectus racional, ordenado pela Caridade, que escolhe o bem. Assim, a vontade funciona segundo dois critrios: o da paixo e o da ao. De uma certa maneira, a vontade boa ativa, e a vontade m se acha influenciada pelas paixes, que travam a liberdade da adeso da alma ao Esprito. Mas o mais significativo na sua doutrina, e o que confere a sua originalidade perante os sistemas doutrinrios de Agostinho e Bernardo, o fato de que o affectus racional e espiritual aquele que anima o doce lao da amizade espiritual (Speculum Caritatis, III, 12). A amizade espiritual a muito santa forma de Caridade (Speculum Caritatis, III, 40). A amizade salutar pela experincia que ns fazemos de uma total conformidade de sentimentos e de vontades com o ser amado para descobrir o verdadeiro amor de Deus, quer dizer, a livre e perfeita adeso sua Vontade. Para ele, a amizade revelada aos homens pelo Cristo que se oferece a eles por sua presena no amigo, e medida que a alma se apaga diante do Cristo, pelo esquecimento de si, a amizade se torna mais profunda, somente ele, Cristo, subsistindo nos amigos. O fundamento metafsico da amizade vem do fato dela constituir seu prprio fim, sendo ordenada a Deus. Finalmente, no seu exerccio de sistematizao do comportamento afetivo, o cisterciense ingls considera que o corao como uma espcie de arca espiritual com compartimentos e trs nveis, onde colocamos aqueles que devemos amar pelo mandamento da Caridade e os outros aos quais o affectus nos atrai como uma fora. No primeiro nvel esto os animais selvagens, os inimigos, aos quais so oferecidas as oraes. No segundo nvel esto aqueles que se entregam aos vcios da carne, mas que no agem de forma cruel. Ainda no mesmo nvel, mas mais internamente, esto aqueles que nos so prximos pelos laos de parentesco ou pela troca de bons ofcios. E no nvel superior esto os bons, que podem entrar na morada do corao : aqui o affectus ordenado, balizado pela razo e pelo consentimento. E h ainda um lugar mais elevado para aqueles que esto acima da condio humana
graas s asas espirituais das virtudes. Mais esto prximos de Deus, mais eles devem ser colocados no alto desta arca espiritual. Que aqueles, dentre eles, que esto ligados ns pelo dulcssimo (dulcssimo) vnculo de amizade espiritual (spiritualis amicitiae), estejam mais ternamente escondidos no mais ntimo e secreto do nosso corao (in interioribus ac secretioribus pectoris nostri), que eles sejam mais estreitamente abraados, mais docemente amados. Finalmente, no lugar mais alto e profundo tem assento em todo seu esplendor e beleza: o Cristo, que construiu e restaurou esta arca espiritual, a assenta, s, sem companheiro, em todo o esplendor de sua beleza. (Speculum

Caritatis, III, 38) De fato Aelred de Rievaulx, na sua ordenao, coloca de forma positiva as relaes afetivas, como nenhum autor havia feito, e ele se justifica atravs da exegese do amor entre o Cristo e Joo Evangelista. Aelred coloca de fato a excelncia da amizade, considerando que Jesus, manifestando de modo particular sua afeio pelo discpulo bem-amado, transformou a idia de amizade,
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DEUS AMICITIA EST: O CONCEITO DE CARIDADE E DE AMIZADE ESPIRITUAL EM AELRED...

fazendo-a passar da forma humana para a forma divina. Como coroamento do seu sistema teolgico Aelred de Rievaulx compe, pelos anos 1160, o De Spirituali Amicitia. No seu prlogo ele confessa a necessidade de amar e de ser amado, seus desvios de juventude e sua anterior ignorncia das verdadeiras leis da amizade. Ele descobriu e amou as sentenas de Ccero, mas, depois da sua converso, a leitura das Escrituras, este espelho da Caridade que o Novo Testamento (DUMONT, C.,1992, p.12), permitiu-lhe descobrir a verdadeira amizade. Este tratado um dilogo entre ele, o antigo mestre dos novios, e trs discpulos que querem conhecer a natureza e a excelncia da amizade. O tratado dividido em trs livros : o primeiro trata da definio do que a amizade, o segundo do seu fruto, onde determina os diferentes tipos de amizade e o ltimo dos quatro estgios que deve passar a verdadeira amizade (escolha, provao, aceitao e fruio) e ainda da maneira como conserv-la na sua perfeio espiritual e mstica. Logo no incio do primeiro livro, o abade de Rievaulx d o tom do sistema que vai desenvolver: Ecce ego et tu, et spero quod tertius inter nos Christus sit. (De Spirituali Amicitia, I,1). Como em uma educao sentimental, Aelred alerta seu companheiro Yves para as falsas amizades as amizades pueris, nocivas e utilitrias dizendo que os homens que procuram a amizade pelo prazer ou utilidade ignoram que o fruto da amizade verdadeira o prprio sentimento de amizade, e que estes homens e aqueles que rejeitam a amizade como sendo perigosa devem ser comparados aos animais. No terceiro livro, Aelred ensina aos seus amigos discpulos como achar um verdadeiro amigo, seu igual. Esta busca da verdadeira amizade consiste em quatro etapas. Primeiro a eleio, que afasta os que so indignos de amizade, a saber : os irascveis, os indiscretos, os instveis, os loquazes e os desconfiados. Segundo a prova que deve confirmar a fidelidade, a inteno, a discrio e a pacincia que colocam os deveres de um em relao ao outro. Em terceiro a admisso, que permite finalmente a fruio dos bens da amizade espiritual, o coroamento da amizade em Cristo. Conhecendo o escritos de Bernardo que fundam a mstica cisterciense, questionamos em que medida o Speculum caritatis e o De Spirituali Amicitia foram influenciados pela sua doutrina mstica do amor. Aelred de Rievaulx visto pelos seus comentadores como seu mais prximo discpulo literrio; de fato, foi educado por Guilherme de Rievaulx, antigo secretrio de Bernardo. Mas Aelred diferencia a amizade da Caridade justamente pela preferncia que a primeira faz sentir por alguns. Para ele a amizade nasce naturalmente da afeio e se desenvolve pela similitude de vida, de modos e de inteno. medida que ela se fortifica, se fortifica o amor a Cristo, seu princpio e seu fim. Assim, existe um grau de amizade quase perfeito que consiste no conhecimento e no amor de Deus, e conseqentemente no processo que leva o homem de amigo do homem a ser amigo de Deus. A amizade revelada aos homens pelo Cristo, que oferece sua presena no amigo : medida que a alma se apaga diante do Cristo, que a amizade se torna mais forte, somente Ele subsiste nos amigos. Pois, se na criao a participao da amizade de Deus ordenada, o Cristo quem leva a Deus, tornando-se objeto da amizade, 275

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e no amigo que se experimenta um ante-gosto da amizade com Deus. O Cristo no amigo e amigo ele mesmo, faz com que a fruio da amizade seja um fim em si mesmo. Se o Cristo inspira o amor pelo qual se ama o amigo, ele est presente ele mesmo com o amigo amado ; os amigos em Cristo se tornam, neste sentido, um s corao, uma s alma e, juntos, se elevam amizade do Cristo. A amizade assim uma virtude que une as almas por um tal vnculo de amor e de doura que sendo muitas elas s fazem um! (De Spirituali Amicitia, II,18-20). Aelred de Rievaulx ainda coloca que a afeio mtua, sentida pelos amigos no claustro, se manifesta pelo beijo espiritual, ou seja, pela unio dos espritos, que o prprio beijo do Cristo (osculum Christi). Assim, Aelred de Rievaulx no se limita a seguir a teologia mstica do amor de Bernardo : integra a amizade no plano do divino e no esquema da salvao. Assim, pode-se dizer que Aelred refletindo sobre a excelncia da amizade no seio da vida comunitria cisterciense, abriu, paradoxalmente, o caminho para a expanso do conceito de amizade espiritual para alm do quadro monstico.
Bibliografia Fontes AELRED DE RIEVAULX, Speculum Caritatis, Migne, Patrologia Latina, v. 195. LE MIROIR DE LA CHARIT, trad, introd. et notes par Charles Dumont, o.c.s.o. et Gatane de Briey, o.c.s.o., Abbaye de Bellefontaine; ditions Vie Monastique, 1992. AELRED DE RIEVAULX, De Spirituali Amcitia, Migne, Patrologia Latina, v.195. LAMITI SPIRITUELLE, trad, introd. et notes, par Soeur Gatane de Briey, o.c.s.o., Abbaye de Bellefontaine; Vie Monastique1994. GUILHERME DE SAINT-THIERRY, Vita Prima, ch.14, PL. 185, 235. Bibliografia especfica DUMONT, Charles. Ouverture, In: S. Aelred de Rievaulx. Le Mirroir de la Charit. Journe dtudes Abbaye de Scourmont (5-9 octobre 1992). Collectanea Cisterciensia, Revue de Spiritualit Monastique. Tome 55, Fleurus, Belgica, 1993. DICTIONNAIRE DE SPIRITUALIT, A. LE BAIL, artigo Aelred, tomo I (1937) col. 225-234. GILSON, Etienne. La Thologie Mystique de saint Bernard, 5me d., Paris : Vrin, 1986. MC EVOY, James. Les affectus et la mesure de la raison dans le Livre III du Miroir, S. Aelred de Rievaulx. Le Mirroir de la Charit. Journe dtudes Abbaye de Scourmont (5-9 octobre 1992). Collectanea Cisterciensia, Revue de Spiritualit Monastique, t. 55, Fleurus, Belgica, 1993.

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Apropriaes contemporneas do medievo - O Senhor dos Anis


Fernanda Pimenta*

ohn R. R. Tolkien foi um escritor muito alm da simples determinao do termo. Desde cedo, j mostrava interesse e dedicao pelo estudo de diversas lnguas 1, graas tambm ao incentivo da me que o ensinava, quando criana, latim, e a algumas lies de francs e alemo. Ingressara na Universidade de Oxford em 1911. Era um aluno aplicado no estudo de lnguas germnicas, ingls antigo, gals e finlands, e era encorajado por seu tutor, o fillogo Joseph Wright. Tornara-se professor universitrio em 1920, na Universidade de Leeds, tendo recebido seu mestrado em artes em 1919, pela Universidade de Oxford. Na busca da origem das palavras, acabou tambm se apaixonando por textos mitolgicos. Seu interesse levou-o a criar lnguas e contos que deram origem a uma grande mitologia, sendo o pice da criao O Senhor dos Anis. Grande parte de sua influncia e at passagens nos seus livros vinha do estudo conjunto da lngua com a antiga literatura medieval inglesa2. Isso pode ser demonstrado no ensaio de Beowulf: The Monsters and The Critics (Beowulf: Os Monstros e os Crticos) de 1936. Ele analisara o poema herico anglo-saxo do sculo VIII d.C., que relata a luta de Beowulf contra monstros e drages. A partir desse trabalho ele mostrou a importncia dos elementos mitolgicos para a literatura. Igualmente, Tolkien foi influenciado pelo o pico alemo Nibelungenlied e o Edda Antigo3. Tendo isso por base, sabe-se que Tolkien se inspirou para criar sua obra, em grande parte, nesta rea de mitologia antiga e medieval que tanto amava. Logo, o autor mais que um criador, ele um sub-criador, que se utiliza de elementos culturais e literrios pr-existentes a fim de elaborar sua mitologia, como veremos ao longo do trabalho. O presente trabalho parte de uma monografia que se inspirou na fascinao que a histria de O Senhor dos Anis vem promovendo em vrios leitores, e na riqueza de detalhes que esta obra possui. O objetivo deste estudo, portanto, centrarse- na anlise de alguns pontos desta obra, nos quais submetemos a uma nova forma de estudo literrio, cuja perspectiva, histrico-cultural, em que conceitos da cultura popular so aplicados e trabalhados com base nos elementos apresentados.

Graduanda em Histria na Universidade Federal Fluminense.

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O enovelar da Histria Tentar enquadrar a histria de O Senhor dos Anis em apenas uma categoria literria no s pouco produtivo, mas inadequado. Devido sua grandiosidade e diversidade, no possvel dizer que ele um pico, uma saga ou um mito. Em sua confeco foram misturados diversos estilos literrios, que, ao mesmo tempo em que o descaracterizam como um estilo nico, o enriquecem como mitologia autnoma. Como aponta Tzvetan Todorov, a literatura contempornea tem se afastado das noes genricas das teorias literrias do passado, mas no abdicam de seu uso, j que os gneros so precisamente essas escalas atravs das quais a obra se relaciona com o universo literrio (TODOROV, 1975, p.12). Isto , cada obra individual, mas no se afasta da combinatria preexistente de propriedades literrias virtuais, na medida em que esta exerce uma transformao da mesma, tornando-a, portanto, nica. Poderamos sugerir, ento, no uma caracterizao ou classificao, mas uma indicao de uma forma literria capaz de aglutinar noes diversas, porm, complementares, sem descaracteriz-las. Indicaramos, portanto, que Tolkien utilizou-se de uma novelizao do pico.
A novela no como outros gneros, que mantiveram suas caractersticas definidoras por longos anos. Ela ainda encontra-se em desenvolvimento e no segue um conjunto de regras rgidas, um cnone. Isso lhe garante uma plasticidade na criao da histria, dando-lhe a possibilidade de ser um gnero crtico e autocrtico, principalmente quando se trata do herosmo presente no pico, e de englobar outros gneros de forma harmnica, sem que eles percam suas estruturas significantes.

A novela est hoje para ns como o pico esteve para a antiguidade. Contudo, devemos lembrar que a novela uma derivao da epopia atravs das canes de gesta, em uma metamorfose medieval (MOISS, p.82). Na literatura antiga pica, trabalha-se com a tradio nacional de um passado herico, sendo mais importante a memria e no o conhecimento que serve como fonte e poder para o impulso criativo, pois a tradio do passado sacralizada. J na novela o que conta mais a experincia, o conhecimento e a prtica, expressando a diversidade e uma zona de aproximao (entre a histria e o leitor). Por esta nova dimenso, capaz de abarcar noes como magia e magos, que antes eram estranhas quela contudo, existentes ou mesmo reformar antigas noes, trazendo novos tipos de monstros, por exemplo. A novela forneceu os padres mticos, antes oriundos da epopia e canes de gesta, requeridos pela cultura e pelas necessidades transcendentais da gente letrada (MOISS, p.82) Vale lembrar que, antes da histria se tornar a cincia do estudo documental, era comum nos picos uma mitificao histrica, ou seja, a fico se mesclava com a verdade histrica. A histria relatava o mito em que as aes dos personagens se tornaram, criando uma realidade verossmil em busca da esttica, logo, o mito e a histria casam-se e ento a epopia vem levantar seus andaimes e tecer a sua tela (MOISS, p.85). Assim sendo, poderamos especular remotamente sobre o livro como
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APROPRIAES CONTEMPORNEAS DO MEDIEVO - O SENHOR DOS ANIS

uma novela histrica, j que Tolkien diz que a histria de O Senhor dos Anis se passa em um passado remoto europeu. Nas palavras de Massaud Moiss:
A novela histrica caracteriza-se pela recriao de um passado remoto ou recente atravs de documentos verdicos que dele restauram, submetidos imaginao transfiguradora do ficcionista. Assim, pessoas e fatos se presentificam deformadamente porque analisados sob o prisma da imaginao, que ainda se incumbe de preencher os claros deixados pelos documentos. (MOISS, p. 79).

A partir disso, podemos pensar em Tolkien como um construtor, um edificador, capaz de usar sua imaginao unindo diversas influncias e tornando-as, ainda que ficcionais, reais para aquele que l. Isto ocorre porque ele teve um grande cuidado em no s expor a ao dos personagens, mas tambm em criar caracteres que singularizassem sua histria. O Senhor dos Anis refere-se a um passado remoto, fato que o assemelha, mas no o limita aos romances de cavalaria. Deste modo, a mitologia do Mundo de Arda ganhou autonomia da autoridade do autor, que se torna um subcriador (CARTER, 2003, passim) num Mundo Ficcional slido, coerente e verossmil, com suas prprias regras, mas no muito distante da realidade que conhecemos no nosso mundo, no Mundo Real onde sua imaginao pode penetrar e se perder. Ou seja, a mitologia to grandiosa e detalhada que ela pode existir e ser vivida pelos leitores fora da inteno inicial do livro. A histria do livro O Senhor dos Anis poderia ser vista como uma novela medieval mgica. No sentido de novela, pelo fato de que ela mistura diversos estilos literrios e estabelece uma zona de contato entre o leitor e a histria. No sentido medieval, pois trabalha com os ideais de cavalaria medievais. E, no sentido mgico, pois trabalha com caractersticas mgicas e tambm por nos enfeitiar com tamanha beleza literria. Todavia, no devemos confundir o sentido de mgico com o de fantasia, pois este no foi o intuito do autor. Tolkien no desejou criar um mundo fantstico distante da realidade, mas sim uma mitologia, com bases na mitologia europia, onde o mundo de Arda realmente teria existido h 6 ou 7 mil anos. Alm disso, como vimos, se aproveitou de alguns elementos picos para criar o seu prprio mundo, tais como a concepo da natureza, das paisagens fantsticas habitadas por monstros e seres diferentes, a concepo do poder e da dimenso sobre-natural. Apesar da incrvel genialidade e imaginao de Tolkien, devemos sempre nos lembrar que ele no foi o nico a navegar pelo mundo do fantstico. Como Lin Carter discorre, h outros escritores que podemos citar, como William Morris, Lord Dunsany e Eric Rcker Eddison, que viajaram pela prosa texturizada e criativa do romance de fantasia herica (CARTER, 2003, p. 146), como a autora caracteriza, edificando os alicerces da literatura de fantasia (id., p. 147)4. O Senhor dos Anis, elementos culturais e literrios Quando vemos o filme ou lemos O Senhor dos Anis percebemos que vrios elementos culturais esto presentes ao longo da histria. Muitos 279

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deles nos intrigam e instigam a refletir como se articulam ao longo da jornada do Anel e da construo literria de Tolkien. Sendo assim, este tpico se aprofundar em algumas das questes que so latentes nesta obra, buscando a interao entre literatura e histria. A relao com a natureza uma questo muito discutida pelos historiadores, principalmente nos perodos mais recuados da histria. Isso se deve no s a uma baixa urbanizao, se tomarmos os parmetros modernos, mas tambm tradio de culto aos elementos da natureza, muito presentes nas tradies pags, e a relao e interdependncia cotidiana com os animais e as plantas. Essa relao com a natureza se torna patente ao longo da histria tolkieana, onde os membros da Sociedade do Anel passam por diversas paisagens e enfrentam seus perigos. Poderia-se dizer que a natureza um componente, um personagem determinante da histria. A prpria constituio da Terra-mdia faz com que todos os povos tenham uma forte relao com ela, seja boa ou destrutiva. Povos, como elfos e hobbits, tm uma relao muito prxima com animais, plantas e com a prpria terra, mas isso no diminui a relao que os anes tm para com a natureza presente em minas e cavernas. Isto , cada raa5 tem uma forma de lidar com a natureza que lhe cerca, sendo no to importante o nvel, mas os propsitos dela, se so de manuteno como os elfos, ou de destruio como os orcs. Alm da paisagem e sua diversidade, os seres se defrontam com a relao da natureza atravs dos animais e plantas. Como a histria tem uma essncia medieval, o principal meio de transporte so os animais, em especial os cavalos. Essa ligao fica bastante evidente nos rohirrim (palavra que significa Senhores dos Cavalos). Muitos desses animais so especiais e possuem vontade prpria, quase que como pessoas, que o caso de Scadufax que atende ao chamado de Gandalf, mas o faz porque o quer e no porque mandado a fazer. H uma forte relao, portanto, entre os animais e os humanos, mesmo aqueles no domsticos. Produziu-se um processo de antropomorfismo, no qual este animal, ainda que no fale, possui iniciativa prpria. Todavia, no foi excluda por Tolkien a contraposio para com os animais selvagens, expressos pelos wargs, trolls, bestas aladas, olifantes, entre outros. Alm disso, como no perodo medieval, h um grande conhecimento do poder de cura de ervas. A questo das ervas fica aparente no livro, na parte das Casas de Cura em Minas Tirith, onde se cuidam dos doentes. Nessa passagem, Aragorn pede ao mestre de ervas a planta athelas para curar Faramir, owyn e Merry, que haviam sido acometidos pela sopro negro causado pelos ferimentos feitos por um Nazgl. O poder de cura da erva e o seu conhecimento, como podemos constatar, no so muito comuns, logo, facilmente o poder curativo da planta pode ser transferido para o rei, como um poder taumatrgico exclusivo da realeza, o que no verdade, pois o que parece magia fruto de um conhecimento transmitido. A relao da natureza atravs das plantas tambm bem expressa pelos Ents6 e pela floresta de Fangorn. De incio e para muitos homens assim continuava , esta floresta aparece com um carter sombrio, hostil, fechado e selvagem, onde muitos preferem no entrar. Entretanto, interessante constatar
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APROPRIAES CONTEMPORNEAS DO MEDIEVO - O SENHOR DOS ANIS

esta mudana quando se percebe que h vida na floresta, tanto quando os hobbits entram na floresta, quanto na sensibilidade que um elfo no caso Legolas, que um elfo silvestre tem de notar a idade e a vida que h em Fangorn, alm das lendas que so ditas h anos sobre ela. Muito mais que expresso da natureza, eles tambm so expresses da memria e do passado, fato que fica um pouco mais claro no livro que no filme. Partindo desta questo de memria e simbolismo/significado, outra influncia patente de um estudo mitolgico e medieval a atribuio da importncia da palavra e da linguagem, o uso do nome como tradio e identificao. O nome atribudo a um determinado personagem ou lugar possui uma forte relao com suas caractersticas e atributos, como vemos quando fazemos a etimologia da palavra7. Um exemplo disso a palavra Mordor, onde mor denota escuro e dr significa terra. Contudo, deriva ainda da palavra morthor, que em ingls antigo significa assassinato. importante, portanto, notar a epifania8 por detrs de cada denominao, graas ao extremo cuidado que o autor tem em escolher e empregar a palavra. Logo, no de se estranhar que Tolkien tenha declarado que a inveno do idioma o fundamento. Para mim, o nome vem em primeiro lugar (STANTON, 2002, p. 15). Assim, o mundo por ele criado um lugar onde pode manter vivas as diversas lnguas que elaborou. Muito mais do que somente as palavras, a lngua se torna um referencial de identidade e diferenciao. Isto , atravs do domnio de uma ou mais lnguas, e tambm das caligrafias, cada personagem, povo ou grupo se afirma como participante de uma comunidade nica que expressa seu conhecimento e essncia atravs da lngua caso expresso por Aragorn e Gandalf. Todavia, o que mais ocorre o monolingismo, o que denota o isolamento de um determinado grupo em relao aos demais da Terra-mdia, como ocorre com os Hobbits. Como costume na poca medieval, aqui da mesma forma podemos ver a importncia do ttulo e do nome da pessoa, que geralmente vem identificado tambm com o nome dos pais ou da casa da qual participa. Como o caso da apresentao de Aragorn, filho de Arathorn, e do ano Gimli, filho de Glin. No caso de Rohan, os cavaleiros se identificam com a Casa de Eorl, eles se autodenominam eorlingas. Outro caso a identificao da pessoa pelo lugar de onde vem, como o o elfo Legolas da Floresta das Trevas. H tambm uma denominao diferente de acordo com cada povo ou regio como acontece com Aragorn (Elessar, Passolargo) e Gandalf (Storm Crow, Mithrandir, que significa peregrino cinza para os elfos) No livro, Faramir caracteriza Aragorn deste modo:
Aqui est Aragorn, filho de Arathorn, chefe dos dnedain de Arnor, Capito do Exrcito do Oeste, portador da Estrela do Norte, possuidor da Espada Reforjada, vitorioso em batalha, cujas mos trazem a cura, o Pedra lfica, Elessar da linhagem de Valandil, filho de Isildur, filho de Elendil de Nmenor. (TOLKIEN, 2000c, p. 246)

Vemos ento, o poder da palavra e da informao expresso pela 281

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

diferena e o descobrimento. Ou seja, muitas vezes esse domnio da variedade e da especificidade determinante e diferenciador, como o era para os literatos medievais e antigos. Vale repensar o quanto se perdeu dos significados das palavras e, portanto, desta tradio de conhecimento em pocas mais remotas, j que a palavra e a lngua so elementos de identificao e de distino. Alm disso, tal qual a tradio medieval, o conhecimento na Terra-mdia tambm tem uma tradio oral, sem falar na tradio escrita9. Assim sendo, a utilizao de canes um elemento muito importante no s para passar os conhecimentos, como tambm para expressar os sentimentos, um meio de preservar a memria de um povo e sua linguagem. O livro, muito mais que o filme, est recheado de canes que falam de amor, cotidiano e sobre a histria dos povos da Terra-mdia. Tambm podemos observar que h uma dualidade entre o conhecido, a segurana e o civilizado, e o desconhecido, o duvidoso e o inspito. Na primeira categoria encontramos as cidades. Apesar de algumas estarem sob ataque como Minas Tirith , ainda so tidas como lugares civilizados e mais seguros para os viajantes, onde podem encontrar, na hospitalidade do reino, comida e descanso. Nesses lugares h todo um desenvolvimento poltico, artstico e econmico de uma determinada sociedade, que pouco se mistura com outros grupos, raas e cidades. J a segunda categoria abarca os campos10 e terras desconhecidas, ermas, subterrneas ou florestais. So lugares que inspiram dvida e insegurana, poucos vivem nessas regies ou tm coragem de andar nelas. claro que relativa a conceituao de um lugar ou regio, como vemos na situao em que Gimli teme entrar em Fangorn, enquanto a floresta um espao de alento para os elfos o que no exclui possveis perigos nas regies florestais. De outro lado, para os anes as minas e cavernas so um lugar familiar, enquanto a maioria teme entrar nelas, pois a escurido esconde ameaas. Contudo, os campos, como lugar externo ao espao da cidade, podem ser locais escolhidos pelos guardies que optaram pelo exlio. As terras abertas, longe da urbe, escondem os perigos de animais, mas tambm guardam a relao com a natureza com o ar livre, enquanto expresso de liberdade e com a diversidade de culturas. Um caso a parte a regio de Mordor e seus arredores. L se encontram perigos escondidos, como a Laracna, e regies inspitas, insalubres, cheias de poeira e com terrenos pantanosos e rochosos. Este local habitado por diversos seres e pelas foras servis de Sauron. Assim sendo, um lugar de medo e rejeio para qualquer viajante. Podemos constatar, ento, que mais do que a determinao do clima e da paisagem, as regies so caracterizadas de modo subjetivo e particular de acordo com cada raa ou ser. Isso , de fato, uma caracterstica muito presente no s na literatura, mas tambm nos relatos medievais, na medida em que cada espao apropriado de forma diferente, de acordo com as caractersticas de cada grupo ou observado pelos olhos dos viajantes.

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APROPRIAES CONTEMPORNEAS DO MEDIEVO - O SENHOR DOS ANIS

Imaginao literria, a criao de um mundo mtico A partir do estudo feito at ento, podemos perceber que a histria de O Senhor dos Anis vai muito alm de uma simples construo literria e imaginativa de Tolkien. A realidade que vemos, nada mais do que uma reconstruo com suas especificidades de um universo medieval que nos inteligvel e verossmil. Com isso, podemos constatar que, no s os livros da Saga do Anel, mas toda a obra e universo literrio so mais do que mera criao, mas sim uma sub-criao, que se aproveita de elementos culturais e literrios pr-existentes. Contudo, tal fato no limita, mas sim guia o autor, que, de tal modo, pode reinvent-los ou criar outros novos. Assim sendo, podemos constatar que O Senhor dos Anis constitui uma novela medieval mgica com elementos culturais, materiais e psicolgicos que nos remetem a um perodo medieval relatado nesse tipo de literatura especfica, caracterizada como fantstica. No entanto, no podemos tomar esse universo literrio como real ou construdo fielmente a partir daquele que conhecemos, mas sim que verossmil, guardadas as particularidades de cada um. Atravs deste estudo pudemos expor no s uma nova forma de interpretao literria, sob uma viso de aspectos histrico-culturais, mas tambm se demonstrou que as criaes literrias ultrapassam a mera liberdade criativa do autor, visto que esto inseridas no s na realidade em que ele vive, sendo fruto, do mesmo modo, de um imaginrio medieval socialmente construdo na contemporaneidade, o qual guarda em si uma caracterstica mtica e imaginativa. Destarte, relevante uma nova releitura de obras de literatura fantstica, no s como histrias de livre criao, mas como fruto de um conjunto cultural mais amplo.
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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Universitria,1984. STANTON, Michael N. Hobbits, Elfos e Magos. Rio de Janeiro: Frente, 2002. THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural: mudanas de atitude em relao s plantas e aos animais, 1500-1800. So Paulo: Companhia das Letras, 1996. TODOROV, Tzvetan. Introduo Literatura Fantstica. So Paulo: Perspectiva, 1975. TOLKIEN, J.R.R. O Hobbit, 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. _____. O Silmarillion. So Paulo: Martins Fontes, 1999. _____. Contos Inacabados: de Nnemor e da Terra Mdia. So Paulo: Martins Fontes, 2002. _____. O Senhor dos Anis, A Sociedade do Anel. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2000a. _____. O Senhor dos Anis, As Duas Torres. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2000b. _____. O Senhor dos Anis, O Retorno do Rei. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2000c. Notas Dentre as lnguas que Tolkien conhecia, podemos citar: holands, gals, francs, espanhol, filands, italiano, grego antigo, sueco, latim, noruegus, nrdico antigo (islands antigo), gtico, alemo, anglo-saxo (antigo ingls), mdio ingls e dinamarqus. 2 Alm da mitologia inglesa, Tolkien se interessou tambm por outras mitologias, como a nrdica, e pela cultura finlandesa. Dois exemplos da influncia desta ltima so a inspirao da lngua quenya, alto-lfico, no finlands e o interesse no pico finlands Kalevala. Este se constitui por um conjunto de poemas, canes, histrias e encantamentos mgicos transmitidos oralmente por cantores populares e que foram organizados e transcritos por Elias Lnnrot (entre 1830 e 1840). 3 Lin Carter (2003, passim) aponta diversas similitudes entre a mitologia tolkieana e a pera escrita por Wagner, O Anel dos Nibelungos, como o caso das noes de invisibilidade, a espada quebrada e do anel estar relacionado corrupo, maldio, runa e morte do portador. O Edda antigo, uma obra da mitologia nrdica, com cerca de trinta e cinco livros, que configura uma longa antologia escrita em prosa, e, em sua maioria, em versos, onde se relatam histrias, mitos religiosos, provrbios, fbulas, genealogia, teologia e cosmogonia. O Edda a fonte de origem da mitologia nrdica, como aponta Lin Carter, mas ele foi sendo acrescido e modificado de acordo com a incrementao da mitologia. No se pode datar certamente sua criao, j que foi sendo transmitido pela tradio oral, mas se especula que comeou a ser escrito por volta do sculo XIII d.C. 4 Todorov tambm caracteriza essa forma literria de literatura fantstica, entendendo que o fantstico a hesitao experimentada por um ser que s conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural (1975, p.31), ou seja, o conceito de fantstico se insere na relao entre o real e o imaginrio e na possibilidade de momentaneamente hesitar entre os dois. 5 A palavra raa aqui aplicada seguindo a indicao da prpria obra literria em questo. 6 Os Ents - tambm conhecidos como Pastores das rvores - so uns dos seres mais antigos da Terra-mdia, tendo o mais velho deles vivido por nove eras. Adquiriram vida pela magia de um dos Valar, Yavanna, a Rainha da Terra, para serem pastores e guardies. So metade rvore e metade humanos, so sbios e gentis, podem ter, contudo, sua fora destruidora despertada.
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APROPRIAES CONTEMPORNEAS DO MEDIEVO - O SENHOR DOS ANIS


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No apndice de O Silmarillion, tem-se um cuidado em apresentar radicais componentes de diversos nomes. 8 Epifania significa a revelao de um mistrio. 9 Esta tradio escrita fica clara quando Gandalf, no primeiro filme, vai at Minas Tirith em busca de escritos que possam ajud-lo a descobrir que j haviam chamado o Um Anel de precioso. Nesta cena, vemos uma sala com grande quantidade de pergaminhos, onde ele encontra o relato de Isildur. Outros exemplos so o Livro Vermelho, onde Bilbo e Frodo escreveram as histrias There and Back again e Lord of the Rings, respectivamente, e o livro que Gandalf encontra nas Minas de Mria, onde so contados os ltimos momentos da resistncia dos anes no salo onde Balin estava enterrado. 10 Como campo queremos expressar a idia de rea fora dos limites da cidade mais prxima ou de origem, e no rea agricultvel.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Atualizao do tema da morte no Auto de Joo Cabral


Danbia T. Pimentel* Da morte venho eu cansado, E cheio de refregereo, E no posso, mal pecado. VICENTE, 1965, p. 256

texto acima, que nos serviu de epgrafe, um trecho da fala do personagem lavrador do auto vicentino Auto da barca do Purgatrio, de 1518. Nela encontramos um escopo para o estudo do imaginrio medieval sobre a morte na obra de Joo Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina: Auto de Natal pernambucano. A partir desse relato, depreendemos semelhanas entre a vida de um lavrador da Idade Mdia1 e um dos sculos XX-XXI. E, atravs do duplo sentido em que empregada a palavra morte, observamos que essa idia de um fim ainda em vida, antes da condenao da alma, a verdadeira morte, segundo a Igreja, a condenao, durante a existncia, misria e maustratos. Ademais, num relato seguinte, o lavrador, alm de elucidar o motivo de suas lamentaes, apresenta, literalmente, o ttulo, ou o mote, da obra de Joo Cabral, cujo enredo traz um lavrador sertanejo como protagonista: (...) Sempre morto quem do arado / Ha de viver. / Ns somos vida das gentes, / E morte de nossas vidas (VICENTE, 1965, p. 258). Diante dessas semelhanas e variaes que apresentaremos, uma vez que o texto brasileiro foi escrito em um contexto histrico-ideolgico diferente do que percebemos na Idade Mdia, realizamos nosso estudo sobre a retomada desse tema. Antes, porm, se fez necessria uma apresentao do imaginrio medieval sobre a morte. A morte na Idade Mdia Durante a Idade Mdia e, principalmente, entre os sculos XIV e XV, o tema da morte foi obsessivo no imaginrio do homem medieval. A preocupao com o post-mortem, alm de obrig-lo a seguir os preceitos estabelecidos pela Igreja Catlica, tambm o forava a configurar o momento do trespasse. Obras literrias, pinturas e esculturas do mostras desse momento histrico. Todavia, o imaginrio sobre a morte relativo ao fim da Idade Mdia
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Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 286

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- poca sobre a qual nos debruamos - no semelhante aos sculos anteriores, tanto do ponto de vista econmico, quanto do social e religioso. At a Alta Idade Mdia, a Igreja no era totalmente responsvel pelas prticas funerrias de todos os homens. Este ainda era sepultado sob costumes familiares, ainda que a sociedade de ento vivesse sombra da Igreja, pois, j havia um tratado dos cuidados devidos aos mortos (De cura pro mortuis gerenda), composto por Santo Agostinho entre os anos de 421-422, o qual estabelecia os laos que os vivos deveriam manter com os mortos. No entanto, a partir dos sculos VIII e IX, os homens da Igreja passaram a coibir tais prticas, consideradas supersticiosas (LAWERS, 2002, p. 248): Primeiro, a igreja transformou o tipo de relao entre os mortos e os vivos, dominante desde a Antigidade, impondo suas concepes e servios sociedade laica (LAWERS, 2002, p. 245). Posteriormente, adotou algumas lendas sobre mortos para a construo de seu discurso:
Paradoxalmente, a Igreja medieval, que nos primeiros sculos manifestara uma grande reticncia com relao crena nos fantasmas, tomando-a como caracterstica do paganismo e das supersties, esteve, assim, na origem de um enquadramento e de uma explorao da crena nos fantasmas de que os relatos de milagres e os sermes dos pregadores so amplo testemunho. (SCHMITT, 1999, p. 20-21)

A partir do sculo XII - com a renovao do direito, redescoberto pelos canonistas entre os sculos XII e XIII, o estabelecimento de instituies organizadas e de normas escritas (LAWERS, 2002, p. 255), alm da formao dos estados-naes -, o mundo das prticas familiares substitudo progressivamente pelo mundo do direito. Mas no s os costumes perderam espao. A igreja, que antes dominava todos os campos da sociedade, levada a agir somente no mbito para o qual estava preparada. Aparentemente, seu campo de ao passa a ser restrito; todavia, sua presena tornava-se cada vez mais forte e imprescindvel na relao entre os vivos e os mortos. A Igreja, assim, ratifica a sua nova posio reforando a distino entre o sagrado e o profano, o temporal e o espiritual, o laico e o eclesistico, a fim de proibir as prticas pags ainda existentes (LAWERS, 2002, p. 243). Alm disso, com as mudanas no pensamento do homem medieval, j consciente dos seus direitos e obrigaes, criado, por volta do final do sculo XII, segundo Jacques Le Goff (LE GOFF, 1994, p. 109), o Purgatrio, o terceiro lugar do Alm, por onde os homens que no tivessem agido segundo as leis de Deus e da Igreja deveriam passar (LAWERS, 2002, p. 243). Essa avaliao de conduta, promovida pelo Purgatrio e sendo, mais ainda, um reflexo dos novos tempos - que permitiu tambm a instituio da confisso - voltou o pensamento do homem para si mesmo. A conscincia de sua individualidade, no plano espiritual, o fez temer o destino da sua alma e, no plano terrestre, a separao de seus bens. A morte domada concede, ento, espao morte de si expresses cunhadas por Aris. A morte agora a dolorosa separao da alma e do corpo, a fim de que aquela seja julgada de acordo com a postura 287

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do homem quando vivo. No final do sculo XII e incio do XIII, as prticas funerrias e comemorativas da Igreja popularizam-se. Os eclesisticos passam a realizar sufrgios pelos mortos e ritos funerrios (ltima confisso, extrema-uno, testamento) em maior nmero. Face a essa preocupao exacerbada com a morte, a Igreja perde o controle dos servios que so oferecidos. Cresce o nmero de indulgncias, missas e outras atividades funerrias vendidas para burgueses e aristocratas - aqueles pertencentes a uma nova estratificao social. Alis, percebe-se na Baixa Idade Mdia uma preocupao com a biografia em relao aos bens materiais que o homem construiu e conquistou. Nessa poca, esse sentimento pela vida descarta a imagem da morte como um descanso ou segundo advento, mas como a separao dos bens e o fim de sua existncia. Das duas atitudes do homem diante da morte - a do apego s coisa materiais, e do conseqente medo da morte e do alm, e a da converso, que exigia o desprezo do homem pelo mundo -, o mote, que introduz as artes sobre a morte, podendo ser precursor das artes moriendi e temas macabros, o da converso, proposto principalmente pelas obras de monges mendicantes. Todavia, esses livros no agrediam o seu leitor, expondo a corrupo do corpo humano. A inteno didtica era relembrar aos homens a efemeridade da vida, cuja origem frgil no garantiria a eternidade. importante salientar que, embora enfatizasse o destino individual do ser, essas obras profetizavam um fim comum a todos. Ou seja, apresentavam ainda a morte coletiva da Alta Idade Mdia, a morte tradicional. No entanto, a outra atitude do homem medieval diante da morte rendeu inmeras representaes da mesma 2 . Essa fase proveitosa durou aproximadamente quatro sculos, entre os sculos XII e XVI, e apresentava as novas inquietaes do homem na descoberta do seu destino. As iconografias dessa poca figuravam o Juzo Final, semelhante arte funerria, que nos jazigos iniciaram a criao de imagens do fim dos tempos, baseados no Evangelho de So Mateus3 e no Apocalipse de So Joo 4 . Outras ainda, conhecidas como artes moriendi, tambm representavam mortos no momento do trespasse. Paralelamente s artes moriendi so criadas iconografias com temas macabros, em que eram expostas formas humanas em decomposio. Segundo Aris (ARIS, 1977, p. 123-124), a origem do termo macabro relaciona-se aos santos macabeus, considerados patronos dos mortos e autores de oraes de intercesso pelas almas. O prprio termo macabeu, posteriormente, passou a designar corpo morto, uma vez que no era comum a palavra cadver. Alm disso, a data de comemorao desses santos tornouse o Dia dos Mortos, dois de novembro. Para alguns historiadores, as iconografias macabras foram diferentes de todas as outras sobre a morte. Aris, por outro lado, aposta que esse tema, apesar de ter sido aproveitado exemplarmente na Idade Mdia, j havia sido explorado outrora. Os artistas romanos, [por exemplo], modelavam um esqueleto no bronze da taa de beber ou o desenhavam no mosaico de uma
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casa (ARIS, 1977, p. 118). Conforme observa, os romanos j haviam captado a fragilidade da vida. O primeiro cadver semidecomposto da arte macabra surgiu por volta de 1320, nos muros da baslica inferior de Assis, na obra de um discpulo de Gioto (ARIS, 1977, p. 120). O tema da Dana macabra, por sua vez, difundiuse a partir de 1425 (SCHMITT, 1999, p. 237). Nela representado um squito de pares formados cada um de um morto e de um vivo encarnando um estado da sociedade (SCHMITT, 1999, p. 237)5. Segundo Aris,
a dana macabra uma ronda sem fim, onde se alternam um morto e um vivo. Os mortos conduzem o jogo e so os nicos a danar. Cada par formado por uma mmia nua, putrefada, assexuada e muito animada, e por um homem ou mulher, vestido segundo a prpria condio, e estupefato. A morte estende a mo para o vivo que vai arrastar, mas que ainda no se submeteu. A arte reside no contraste entre o ritmo dos mortos e a paralisia dos vivos. O objetivo moral ao mesmo tempo lembrar a incerteza da hora da morte e a igualdade dos homens diante dela. Todas as idades e todos os estados desfilam numa ordem que a da hierarquia social, tal como dela se tinha conscincia. (ARIS, 1977, p.124)

Tal encontro entre o homem e o seu fim (a morte, o cadver) foi utilizado por pregadores na inteno de converter os vivos. Alm disso, o grande sucesso desse tema da morte justifica-se pelas crises econmicas, pelas guerras e pela peste, que dizimou, durante a pior infestao, um tero da populao europia no vero de 1348 (DUBY, 1998, p.78). importante frisar, no entanto, que, embora a tradio histrica aponte os acontecimentos naturais e/ou polticos como motivos da popularidade da morte, h historiadores que acreditam numa manipulao do nmero de mortos pela Igreja, para fins doutrinrios. O que ocorria era
(...) uma f excessiva em certas testemunhas da poca, homens da Igreja em geral pouco habituados a manipular nmeros, naturalmente inclinados a aumentar perdas e dificuldades, a apresentar uma imagem deformada, romanceada, a lamentar as desgraas de uma humanidade que eles vem atingida pela clera de Deus, a dar crdito ento a uma espcie de lenda negra do seu tempo. (ARIS, 1977, p. 134-135)

Para Aris, um amor apaixonado pela vida est mais prximo do motivo do sucesso dos temas macabros. Isso deve-se ainda questo da individualidade, em que o homem, tornando-se consciente de seus atos, passava a ter conscincia tambm de suas riquezas, seus bens; no querendo, pois, abandonar tudo na Terra. A Igreja novamente aproveitou-se desse conflito existencial do homem, que, mesmo preso aos seus tesouros, temia o julgamento aps a morte. O testamento tornava-se, ento, o meio de um homem avaro e perverso se transformar em um santo aps a morte, ao reconhecer que tudo que possua pertencia, na verdade, a Deus, como se percebe em expresses testamentrias 289

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do tipo: Queremos e desejamos distribuir e ordenar de mim e de meus bens, que Monsenhor Jesus Cristo me emprestou, em proveito e salvao da minha alma (Testamento de 1399) (ARIS, 1977, p. 208). O tema da morte, assim, alcanava o auge de sua representao no sculo XV, estando relacionada individualidade do ser e seu amor apaixonado pela vida (ARIS, 1977, p. 137). E, segundo Aris, jamais alcanaria tal importncia devido s circunstncias que envolviam as produes artsticas inspiradas nesse tema. No se tratava somente da iminncia da morte por causa das guerras, intempries e crises econmicas, mas tambm da mudana das crenas e da mentalidade do homem. A morte no Auto de Joo Cabral de Melo Neto Ao lermos as primeiras pginas do auto Morte e vida severina, no difcil constatar que o enredo leva situaes de morte ao encontro do protagonista Severino. Numa primeira cena desses encontros, a morte por emboscada apresenta sua vtima: um Severino, cujo nome e vida so semelhantes aos de nosso protagonista. A morte, nesse momento, nos sinaliza os seus motivos. A questo da reforma agrria suscita ambio e assassinato. Logo, aqueles que impedem o enriquecimento de outros devem ser banidos violentamente ave-bala. No possuir terras ou possui-las no impede o nordestino da terra seca do Nordeste de pensar em sair de seu lugar. Por causa das condies impostas para a sobrevivncia, a nica alternativa fugir da fome, da morte. Sem terras, o mesmo no tem como plantar, no h emprego em campo seco e, quando dono de terras, no h dinheiro para investir; portanto, forado a vender tudo que possui. E, assim, sem escolha, seu destino migrar para outras cidades. O mote principal desse Auto, trazido tona por Joo Cabral, no foi o nico nem o primeiro em sua obra a abrir espao para a discusso da misria dos nordestinos. Sua cidade natal, Recife, j o havia inspirado a escrever O co sem plumas (1950), o primeiro poema que trata das mazelas humanas de Recife, e outros cento e oitenta poemas escritos sobre Pernambuco, mormente Recife e o rio Capibaribe. Levar a morte, no entanto, para o campo da literatura como uma bandeira poltica, segundo o prprio autor, no era a sua inteno, embora na poca da publicao de Morte e vida severina, devido s denncias de que seria comunista, tenham sido divulgadas notcias contrrias ao seu propsito. Cabral, na verdade, mostra a misria do Nordeste atravs de imagens criadas por seu refinado gosto potico. Imagens, alis, to chocantes que no podiam ser apresentadas, numa noite de Natal, como um auto de cunho puramente religioso. As crticas sociais sem engajamento poltico, segundo o mesmo, eram resultantes do clima de pobreza interminvel que ele havia acompanhado desde menino e que ainda persistia, ora com a ajuda do governo, sustentando a misria com medidas assistencialistas, para manter mais ricos e poderosos os fazendeiros e empresrios, ora sem a ajuda governamental, fechando os
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olhos para a comunidade carente pernambucana. Nessa tentativa de retratar (...) o que via e sentia6, sua sensibilidade extrapolou os limites do que seria um auto de Natal, composio pedida por Maria Clara Machado, diretora, na poca, do grupo O tablado. E o que deveria suscitar a renovao dos laos familiares, fraternais, imbudos pelo esprito natalino, trouxe a morte confundindo-se (ou nos confundindo) com a vida severina dos nordestinos. Morte e vida severina, nesse sentido, so companheiras de Severino em sua via-crucis existencial. Vivendo na fronteira entre a morte e a quasemorte, face pobreza da regio, Severino nos remete aos homens da Idade Mdia, uns preocupados com a morte espiritual, tentando anular os prazeres da vida, e outros, camponeses rsticos, vtimas diretas do clima de morte da poca, preocupados com as duas possveis mortes, fsica e espiritual, no s pela presso ideolgica da Igreja, mas por causa, principalmente, das crises polticas e intempries da poca. esse clima de morte que envolve obras como a trilogia das barcas, de Gil Vicente, mormente o Auto da barca do Inferno, e a pea cabralina, tendo em vista o seu formato e o conhecimento do autor da literatura ibrica, que nos fundamenta para tecer consideraes acerca dessa semelhana. No livro sobre a morte na Idade Mdia, de Philippe Aris, O homem diante da morte (1977), h um panorama da influncia da morte (ou importncia) na vida daqueles homens, dando margem a comentrios do autor, em poucos momentos, infelizmente, sobre o comportamento do homem do sculo XX em relao mesma. Nesse raio-x do homem diante da morte, Aris nos mostra exemplos de homens como Severino e os da barca infernal de Mestre Gil. Recorrendo experincia de A . Tenenti, Aris nos fala de uma iconografia das artes moriendi que sugere um embate entre as foras do bem e do mal por causa da alma de um enfermo:
A . Tenenti, na sua anlise da iconografia das artes moriendi, pensa que o prprio moribundo assiste ao seu drama mais como testemunha do que como ator: Um combate entre duas sociedades sobrenaturais em que o fiel tem fraca possibilidade de escolher, mas nenhum meio de se esquivar. Em torno do leito, uma luta sem piedade, uma tropa diablica de um lado, legio celeste do outro. (ARIS, 1977, p. 117)

Em Morte e vida severina no temos propriamente uma alma em jogo, mas a vida humana subjugada ao sofrimento, ora pendendo para a morte rpida, o suicdio, ora para a lenta e progressiva morte do dia-a-dia, considerada a mais dura e cruel. Essa disputa a fora motriz da crise existencial de Severino. Ora, se compararmos as duas situaes, verificaremos que h, no auto cabralino, um embate semelhante ao medieval entre duas foras que dinamizam a peregrinao do migrante Severino. esse choque de Severino diante das foras do mal que o impulsionar a abreviar sua vida, contrastando em algumas cenas com a sua esperana na cidade grande, a qual aos poucos vai esmorecendo. 291

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ainda mais evidente essa semelhana quando Aris percebe que nas ars, publicada por A . Tenenti,
A liberdade do homem ali respeitada e que se Deus parece ter abandonado os atributos da justia (...) porque o prprio homem se tornou seu juiz. O Cu e o Inferno j no lutam (...) assistem ltima prova proposta ao moribundo e cujo desfecho determinar o sentido de toda a sua vida. So eles os espectadores e as testemunhas. o moribundo que nesse instante tem o poder de tudo ganhar ou tudo perder: A salvao do homem estabelecida no seu final. (...) Cabelhe vencer com o auxlio do seu anjo e dos seus antecessores, e ele ser salvo, ou ceder s sedues dos diabos e ele estar perdido. (ARIS, 1977, p. 117)

A viso de Aris sobre a iconografia publicada por A . Tenenti reflete parcialmente a nossa leitura do conflito de Severino em Morte e vida severina. H momentos em que esse embate de foras contrrias depende somente do desejo de Severino, do seu livre arbtrio. Suicidar-se ou no uma deciso que s o prprio poder tomar, apesar de todas as adversidades que o foram a concretizar o ato. Em outro momento, Aris lembra-nos de uma famosa imagem consagrada por Ingmar Bergman, em O Stimo Selo, na qual vida e morte disputam uma partida de xadrez, revelando a impotncia do homem diante das foras da natureza e do seu destino. Tal (re)criao escatolgica foi inspirada numa iconografia medieval em que o homem e o diabo jogam na disputa pela alma deste:
Homem, o diabo joga xadrez contigo e se esfora por te apanhar e te dar xeque-mate neste ponto (a morte). Mantm-te, portanto, pronto, pensa bem nessa jogada porque, se ganhares neste ponto, ter ganho todo o resto, mas se perderes, o que tiveres feito de nada valer. (ARIS, 1977, p. 117)

Essa disputa enseja novamente a comparao entre o debater-se de Severino, entre o fim do seu sofrimento e a permanncia em uma vida miservel, e o conflito do homem medieval temeroso em relao ao seu fim e a proximidade da morte, configurada na peste, na fome e nas guerras que assolaram terras europias no final da Idade Mdia. Na anlise das Danas macabras, uma das criaes artsticas suscitada pelo tema da morte, que revela um mesmo fim para todos, surge um campons, numa situao econmica semelhante ao de nosso protagonista. A morte lhe diz: Lavrador que em cuidados e penas / Viveste todo teu tempo / Morrer preciso, coisa certa / com a morte deves ficar contente / j que de grandes cuidados ela te libera (...) (ARIS, 1977, p.125). Nesse discurso, aparentemente, piedoso e transbordante de compaixo, entrecruza-se o discurso de Severino ao pedir morte um fim digno. Assemelha292

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se mesma necessidade em pr fim misria, pobreza que o fez sofrer por toda a sua vida:
Sabia que no rosrio De cidades e de vilas, E mesmo aqui no Recife Ao acabar minha descida, No seria diferente A vida de cada dia: (...) Esperei, devo dizer, Que ao menos aumentaria Na quartinha, a gua pouca, Dentro da cuia, a farinha, (...) E chegando, aprendo que, Nessa viagem que eu fazia, Sem saber desde o Serto, Meu prprio enterro eu seguia. S que devo ter chegado Adiantado de uns dias; O enterro espera na porta: O morto ainda est com vida. (MELO NETO, 2000, p. 69).

Nesse sentido, a morte tambm faz Severino danar com suas necessidades e esperanas, fome e desespero. Mas, em Morte e vida severina, a dana da morte no se apresenta como um fim comum a todos, sem distinguir nobres de miserveis. Apesar de a morte ser um fim natural para todos, um enterro digno ser de direito somente para aqueles que podem pagar, pois h, no mundo do capitalismo selvagem, cemitrios para cada classe social.
Bibliografia ARIS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. BBLIA SAGRADA. O Antigo e o Novo Testamento. Traduzida em Portugus por Joo Ferreira de Almeida. Revista e atualizada no Brasil. 2 ed. So Paulo: Sociedade Bblica do Brasil, 1993. DUBY, Georges. Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos. So Paulo: Editora da Unesp,1998. LAWERS, Michel. Morte e mortos. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio temtico do Ocidente medieval. So Paulo: EDUSC, 2002. LE GOFF, Jacques. O imaginrio medieval. Lisboa: Estampa, 1994. MELO NETO, Joo Cabral de. Morte e vida severina: auto de Natal pernambucano. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. SECCHIN, Antnio Carlos. Joo Cabral: a poesia do menos. So Paulo: Duas Cidades,1985. VICENTE, Gil. Obras de Gil Vicente. Edio de Lello & Irmo. Porto: Lello & Irmos, 1965.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Notas 1 O perodo a que nos referimos como Idade Mdia aquele fixado pela tradio histrica, entre os sculos V e XVI (LE GOFF, 1994, p. 22). 2 Lembrando que, a princpio, essa nova arte tambm tinha a inteno de incitar a converso. 3 Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos com ele, ento, assentar no trono da sua glria; e todas as naes sero reunidas em sua presena, e ele separar uns dos outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas; e por as ovelhas sua direita, mas os cabritos, esquerda; ento, dir o Rei aos que estiverem sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos est preparando desde a fundao do mundo. (...) Ento, o Rei dir tambm aos que estiverem sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Livro de Mateus 25, 31-34 e 41 (BBLIA, 1993, p. 25-26) 4 Olhei, e eis o Cordeiro de p sobre o monte Sio, e com ele cento e quarenta e quatro mil, tendo na fronte escrito o seu nome e o nome de seu Pai. (...) So estes os que no se macularam com mulheres, porque so castos. So eles os seguidores do Cordeiro por onde quer que v. So os que foram redimidos dentre os homens, primcias para Deus e para o Cordeiro; e no se achou mentira na sua boca; no tm mcula. Livro do Apocalipse 14, 4-5. (BBLIA, 1993, p. 208) 5 Da Dana macabra distinguem-se as representaes da dana dos mortos nos cemitrios: os tmulos se abrem; os mortos como cadveres vivos, levantam-se, agitam-se e danam(SCHMITT, 1999, p. 237). 6 Trecho de um estudo sobre Joo Cabral de Melo Neto em um site. Ver: http:// fredbar.sites.uol.com.br/mvsint.html.

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Os cativos na Vida de Santo Domingo de Silos: uma contextualizao histrica da santidade


Thiago de Azevedo Porto

venerao aos santos uma prtica verificada em diversas sociedades ao longo da histria e, at por isso, um objeto de estudo que j foi explorado por muitos pesquisadores. Contudo, ela foi durante um longo tempo tratada nica e exclusivamente como um fenmeno divino, de carter essencialmente religioso e espiritual. No entanto, apesar desse tratamento que foi, e de certa forma ainda , destinado ao culto aos santos, consideramos bastante pertinente o seguinte questionamento: quem responsvel pela atribuio do status de santidade aos indivduos? Apesar dos esforos das instituies religiosas e de seus representantes para atribuir tal responsabilidade ao poder divino, o que de fato podemos afirmar que, ao longo do tempo, diversas sociedades adotaram como prtica essa atribuio de valor e contaram evidentemente com o apoio da Igreja Romana que, por questes de interesse e fortalecimento interno, se dedicou a transformar essa prerrogativa numa responsabilidade pertinente nica e exclusivamente prpria Instituio, j que se via como representante legtima do poder divino na Terra. Tal carter pode ser evidenciado com o estabelecimento dos processos de canonizao (durante o final do sculo XII e incio do XIII) como critrio definidor da santidade. Entretanto, mesmo aps esse esforo, diversas sociedades continuaram a eleger santos prediletos, intercessores vistos como eficazes junto divindade, fossem reconhecidos oficialmente ou no pela Igreja de Roma. Em nosso ver, a santidade deve ser estudada, do ponto de vista da Histria, no como um fenmeno divino, dotado de um carter extra-temporal, e sim sob seu aspecto scio-cultural, ou seja, uma prtica de atribuio de valor que assume diferentes significados e adota diferentes critrios de reconhecimento nas sociedades em que se insere. Nesse sentido, consideramos extremamente importante a contextualizao histrica dessa prtica, ou seja, um estudo sobre a santidade deve estar sempre atento s singularidades scio-culturais que caracterizam as sociedades onde se verifica tal fenmeno, visando exatamente desconstruir aquela viso da santidade como um fenmeno constante e homogneo ao longo do tempo. A contextualizao histrica da santidade permitenos fazer novos questionamentos sobre o tema, como: que motivos levam uma sociedade a santificar determinados indivduos? Quais so os critrios adotados
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Graduando em Histria na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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na atribuio do status de santidade? Como a escolha desses critrios se relaciona com o contexto scio-cultural da sociedade em questo? Em nosso entendimento, o fenmeno de venerao dos santos est intrinsecamente ligado, como j assinalamos, ao reconhecimento desse valor por parte de uma comunidade, ou mais especificamente, pela prpria Igreja Romana. Em sntese, por mais que uma determinada pessoa realize escolhas durante sua vida e apresente uma conduta irretocvel, o que supostamente levaria a sua santificao, ela s se torna santa no momento em que objetivada como tal. Para que um determinado indivduo seja venerado como um intercessor eficaz junto divindade maior necessrio que algum lhe atribua esse valor, portanto, em ltima instncia, a santificao desse indivduo depende muito mais do reconhecimento de seu poder por parte de uma sociedade, de uma comunidade religiosa, de um grupo social, ou como j foi dito, pela Igreja de Roma, do que de seu prprio esforo pessoal. exatamente por considerar o fenmeno em questo como uma prtica de atribuio de valor, que independe da vontade daquele que reconhecido como santo ou objetivado como tal, que a nossa anlise centrase principalmente sobre a figura do hagigrafo, um dos responsveis diretos por forjar esse reconhecimento dentro de uma determinada populao. Em nosso caso, o hagigrafo a ser estudado Gonzalo de Berceo e a hagiografia a ser analisada a Vida de Santo Domingo de Silos, escrita por ele no sculo XIII. Nesse artigo, vamos realizar uma breve apresentao dessa hagiografia e de seu autor, alm de analisar um milagre de Domingo de Silos, supostamente realizado em vida, que tem como temtica principal o cativeiro. Sendo assim, nesse trabalho pretendemos abordar a venerao aos santos como um objeto histrico datado e sujeito aos influxos de seu tempo, bem como aos acontecimentos da sociedade onde se encontra inserido. Portanto, a contextualizao da Vida de Santo Domingo de Silos o nosso objetivo central. Gonzalo de Berceo e a Vida de Santo Domingo de Silos A Vida de Santo Domingo de Silos1 foi redigida originalmente em castelhano por volta de 1236, Gonzalo de Berceo o seu autor e tomou como base a Vita Dominici Siliensis, uma hagiografia escrita em latim, no sculo XI, por um monge chamado Grimaldo. Nesta Vida, que tem Santo Domingo de Silos2 como personagem central, Berceo acabou seguindo as mesmas estruturas narrativas que caracterizam suas outras hagiografias, j que ele narra a vida e os milagres de SDS na forma de um poema: a VSD est escrita em uma frmula conhecida como cuaderna va, que se caracteriza por apresentar o texto em estrofes monorrimas de quatro versos com catorze slabas cada. Teresa Labarta de Chaves, responsvel pela edio da obra com a qual estamos trabalhamos, ressalta que:
Se pensara que una forma, al parecer tan rgida impondra demasiadas cortapisas a la inspiracin potica; sin embargo, al examinar cuidadosamente el poema, se descubre que para Berceo eran admisibles toda una serie de licencias que en general non lo son ni en la poesa ni en 296

OS CATIVOS NA VIDA DE SANTO DOMINGO DE SILOS: UMA CONTEXTUALIZAO HISTRICA... la lengua de hoy en da (...). Estas figuras de lenguaje no eran licenciadas exclusivas del lenguaje potico, sino posibilidades que ofreca el romn paladino en que versificaba Berceo.(LABARTA DE CHAVES, 1987, p.36)

Acreditamos que esta obra tenha sido redigida voltada para um grande pblico, uma platia variada que no tivesse o domnio do latim, para ser recitada, provavelmente, aos domingos e em dias festivos. Essa hiptese pode ser sustentada por diversos aspectos: o fato da obra de Berceo estar escrita em lngua verncula facilitava muito a sua difuso; em segundo lugar, a narrativa em forma de poema tornava esta obra muito mais atrativa ao pblico leigo; as prprias adaptaes feitas por Berceo certamente colaboraram bastante para a difuso desta hagiografia, visto que ele no se limita a fazer uma mera traduo do texto latino de Grimaldo, tendo bastante liberdade para adaptar determinados termos latinos e algumas situaes ao seu contexto, alm de criar novas situaes que no constam em sua fonte; por ltimo, o perodo histrico no qual se insere a VSD leva a uma difuso ainda maior dessa obra, j que o sculo XIII marca um momento de avano das foras crists na luta de reconquista da pennsula ibrica e a fama de redentor de cativos de SDS foi extremamente reafirmada neste contexto. Gonzalo de Berceo nasceu por volta de 1196, em La Rioja (regio de Castela), em um povoado chamado Berceo. Ele recebeu sua formao inicial no monastrio de San Milln de la Cogolla, contudo acabou seguindo carreira eclesistica. De acordo com os documentos notariais desse monastrio, em 1221 ele j ocupava a funo de dicono, algo que ajuda a confirmar a data de nascimento fornecida anteriormente, j que, segundo decretos papais, a idade mnima para exercer tal cargo era a de vinte e cinco (25) anos. Apesar de no seguir carreira monstica, o clrigo-poeta esteve sempre ligado ao monastrio San Milln, inclusive escrevendo obras para tal comunidade. Frazo da Silva, apresenta sinteticamente a produo deixada por ele:
Escreveu doze obras, todas sobre temas religiosos e com caractersticas formais comuns: redigidas a partir de fontes escritas; organizadas em estrofes de quatro versos em cuaderna via; povoadas de termos latinos e de topoi retirados da literatura clssica e de recursos presentes nos manuais de retrica medievais. Pelo carter culto de sua produo literria acredita-se que Gonzalo de Berceo tenha estudado na Universidade de Palncia, local onde aprendeu as tcnicas que aplicou em seus poemas. (SILVA, 2003, p.641)

A suposta formao acadmica de Gonzalo de Berceo um dos pontos polmicos discutidos entre os pesquisadores de suas obras. Teresa Labarta de Chaves e Ruiz Domguez se posicionam favoravelmente em relao a essa possvel formao superior, ambos amparados nos argumentos de um outro pesquisador, Brian Dutton: a falta de documentos firmados por Berceo no monastrio de San Milln, no perodo de 1222 a 1237, indicaria a sua ausncia da regio. Alm disso, Berceo demonstra ter um amplo conhecimento da regio de Palncia e a meno feita por ele, em um de seus escritos, a 297

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Don Tello Tllez de Meneses bispo de Palncia e um dos responsveis pelo impulso da Escola de Estudos Gerais, seria um ltimo indcio de que fez parte da mesma durante o perodo referido (RUIZ DOMINGUEZ, 1999, p.4). O prprio Ruiz Dominguez apresenta um outro pesquisador, D. Yndurain, que se ope tese levantada por B. Dutton: Suposicin que es negada por Yndurain, para el que Berceo, que recuerda sus tiempos de criado en San Milln, y aprecia en tanto los estudios, no hubiera silenciado algo tan significativo como su paso por los Estudos Generais de Palencia (RUIZ DOMNGUEZ, 1999, p.5). Se no sculo XIII os hagigrafos passaram a assumir com maior freqncia a autoria das obras, isso se deve, sobretudo, ao surgimento das universidades na Europa, que teriam valorizado a atividade dos escritores. Portanto, seria estranho aceitar que Berceo simplesmente omitiu esta informao to significativa em suas obras, um dado que valorizaria ainda mais os seus escritos. Com relao a VSD, percebemos, nos trabalhos de alguns autores, a diversidade dos elementos apresentados como caractersticos da obra. Para Joaquin Gimeno Casalduero, a obra apresenta um padro diferente dos outros poemas de Berceo, que seria representado por uma intensificao gradual dos principais elementos caracterizadores da santidade de Domingo de Silos. Segundo este pesquisador, os trs livros que compem a obra seguem um roteiro que representa uma escalada crescente em direo santidade (GIMENO CASALDUERO, 1977, p.441). J para Ruiz Dominguez, a VSD se caracteriza, tal como as hagiografias em geral, pelos seus aspectos propagandstico e materialista (no sentido de aumento da arrecadao do monastrio), alm de uma clara motivao devocional (1999, p. 6-7). Em nosso ver, dois elementos so bastante caractersticos da VSD: o aspecto didtico da obra e o seu carter propagandstico. Em primeiro lugar, a hagiografia escrita por Berceo tem uma clara inteno de transmitir ensinamentos religiosos, algo que feito principalmente atravs da utilizao de exemplos da vida de Domingo de Silos, exaltado sempre como um modelo a ser seguido. J o carter propagandstico da obra pode ser verificado sob diversas formas: a inteno de difundir a histria de um indivduo tornado santo, atravs do relato de sua vida e de seus milagres (ocorridos em vida e aps a morte); o intuito de propagar e tornar mais conhecido o nome de um monastrio, ao qual o santo esteve ligado durante sua vida ou estabeleceu relao de patronato aps sua morte (no caso da VSD, o monastrio em questo o de Silos); a ampliao do conhecimento sobre determinadas regies, atravs do estabelecimento de itinerrios percorridos pelo santo, bem como pelas referncias feitas ao local de escrita e pelas metforas utilizadas pelo hagigrafo, que fazem aluses ao seu contexto; a possibilidade dos hagigrafos se tornarem mais conhecidos atravs da disseminao de suas obras; e por ltimo, o objetivo de propagandear as principais diretrizes emanadas por conclios e pela Cria papal. Anlise do milagre referente ao cativo cristo Nessa ltima parte do artigo, vamos nos dedicar exclusivamente a analisar
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um dos milagres atribudos a Domingo de Silos, supostamente ocorrido ainda durante sua vida, referente ao aprisionamento de um cristo por parte dos mouros. A narrativa desse milagre na VSD ocupa um espao substancialmente grande, 23 estrofes, sobretudo se comparado aos demais narrados na obra. Tal milagre bastante rico em diversos aspectos, sobretudo graas ao trabalho literrio do hagigrafo, que cria dilogos, descreve situaes e ressalta detalhes que no so to explorados em sua fonte. Contudo, vamos nos prender especificamente a dois aspectos: a inteno, por parte do autor, de demarcar e/ ou reforar uma identidade ibrico-crist3 e uma possvel disputa de espao entre a Ordem Monstica, representada pela figura de Domingo de Silos, e a Ordem da Merc.4 Consideramos pertinente, at para facilitar a compreenso da anlise que vamos desenvolver, apresentar um breve resumo do milagre em questo: durante uma cavalgada5 em Soto de San Esteban, povoado localizado na provncia de Soria, os mouros capturaram um cristo, que foi levado para um cativeiro, onde ficou algemado. Os parentes do homem caram em desespero, porque o valor do resgate era muito alto6 e, apesar de todo esforo deles, s conseguiram arrecadar a metade do valor, por isso, temiam que o homem no fosse libertado. Graas a uma mensagem divina, eles tiveram a idia de procurar Domingo de Silos e pedir-lhe ajuda para a resoluo do caso. Aps ter sido informado de toda a histria, Domingo de Silos chorou e disse aos parentes do cativo que, infelizmente, no tinha muito o que dar, mas que lhes entregaria um cavalo do monastrio para que eles vendessem e arrecadassem mais alguma quantia para o resgate. O clrigo afirmou, ainda, que tentaria arrecadar mais alguma coisa, mas que ficassem tranqilos, porque certamente o cativo seria libertado, visto que eles acreditavam em Deus. Enquanto os parentes do cativo saram para vender o cavalo e tentar arrecadar o valor total do resgate, Domingo de Silos tratou de ir para o altar rogar a Deus que os ajudasse nessa situao, gesto que foi repetido na missa do dia seguinte, dessa vez com a ajuda de seus monges. As oraes do clrigo-santo foram atendidas e o cristo feito cativo foi milagrosamente libertado: as algemas e a cela onde se encontrava preso se abriram e ele pde fugir sem a menor dificuldade. Logo na segunda estrofe do relato desse milagre, Gonzalo de Berceo aponta para a proximidade dos mouros, que ocupavam boa parte da pennsula ibrica desde as primeiras dcadas do sculo VIII. Entendemos que, nessa passagem especificamente, o poeta no fala de seu prprio contexto, visto que desde 1120 La Rioja j tinha sido totalmente reconquistada, embora isso no signifique que a totalidade dos mouros tenha sido expulsa da regio. Nessa passagem, acreditamos que ele estivesse se referindo ao contexto de Domingo de Silos, que viveu no sculo XI (mais precisamente de 1000 a 1073), quando a reconquista comeava a ganhar fora. Em algumas outras passagens, no entanto, conseguimos perceber claramente uma certa intencionalidade na demarcao de uma identidade, algo que remeteria ao contexto do hagigrafo e no do personagem central da obra, principalmente atravs da caracterizao negativa dos mouros, que, em nosso ver, claramente a representao do outro:

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Non osavan los omes andar por los caminos davan las cosas malas salto a los matinos llevavan cruamientre en soga los mesquinos. (VSD, 353) aliaron a Soto, essa gent renegada, prisieron un mancebo en essa cavalgada. (VSD, 354) Metironlo en fierros e en dura cadena, de lazrar e de famne dvanle fiera pena, dvanle yantar mala e non buena la cena. (VSD, 355) Es un nuestro pariente de moros cativado, enna presn yaciendo es fierament lazrado. (VSD, 361) [grifos nossos]

Podemos observar nessas transcries a caracterizao negativa dos mouros: eles so coisas ms, cruis e gente renegada. Os prprios atos dos quais eles so responsabilizados apontam para a negatividade de suas caractersticas: eles aprisionam os cristos, que so levados contra sua vontade para o cativeiro, onde so algemados, encarcerados e submetidos a maus tratos. Essa caracterizao extremamente negativa dos mouros, em nosso ver, visivelmente parte integrante de um processo de construo de uma identidade ibrico-crist, a partir da atribuio de valores negativos ao outro, que nesse caso representado pelos muulmanos: responsveis pela ocupao de parte do territrio ibrico, infiis (do ponto de vista do cristianismo) e representantes de uma outra tradio cultural. Em nosso ver, a afirmao de uma identidade s necessria diante da diferena, diante de um outro, e ambas so parte de uma extensa cadeia de negaes. Tanto uma quanto a outra, s fazem sentido quando analisadas conjuntamente. Segundo Tomaz Tadeu da Silva, dentro de uma perspectiva mais usual, a diferena apenas o resultado da existncia de vrias identidades, que so tomadas como parmetro. Contudo, na perspectiva que ele prope, a diferena no o produto de um processo, na verdade ela o prprio processo e, portanto, vem em primeiro lugar: atravs do processo de diferenciao que tanto a identidade quanto a diferena so produzidas (SILVA, 2000, p.76). Portanto, tendo como base as reflexes desse autor, a identidade e a diferena no so simples dados da natureza, no existem por si s, ambas precisam estar cotidianamente sendo produzidas e reafirmadas perdendo, dessa forma, seu carter essencialista e sendo abordadas como cronstructos scio-culturais. Com base nessa reflexo, podemos tranqilamente afirmar que, se no foi responsvel direto pela criao, Gonzalo de Berceo, no mnimo, contribuiu com sua hagiografia para o processo de diferenciao entre os povos ibricos e muulmanos, ajudando a reforar e demarcar uma identidade, por ns chamada de ibrico-crist. Um outro aspecto que gostaramos de abordar uma possvel disputa de espao entre a Ordem Monstica e a Ordem da Merc: o objeto central dessa disputa seria a atividade da redeno de cativos. Nesse mesmo milagre, existem algumas passagens nas quais podemos perceber uma exaltao dessa atividade. Gonzalo de Berceo, apesar de supostamente no ter seguido a carreira monstica, parece ter tomado uma posio de defesa do espao e da importncia da Ordem Monstica - da qual Domingo de Silos fazia parte - diante do surgimento das
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Ordens Mendicantes, dentre elas a Ordem da Merc. Os mendicantes surgiram no sculo XIII e se caracterizavam, entre outras coisas, por um ideal de vida diferente (valorizao da pobreza, da caridade e do amor ao prximo) daquele adotado na vida monstica (isolamento, concentrao e orao), algo que teria facilitado a rpida difuso dos mendicantes pelas cidades europias e atrado uma enorme quantidade de fiis. Em nosso entendimento, esse aspecto aponta claramente para a necessidade de contextualizao da VSD, medida que essa possvel disputa de poder somente poderia ocorrer a partir do sculo XIII, quando surgem as Ordens Mendicantes, momento de escrita da obra e, portanto, contexto de Gonzalo de Berceo e no de Domingo de Silos. A seguir apresentaremos algumas transcries do milagre em questo, onde podemos observar o aspecto ressaltado:
Seor, alguna ayuda te viniemos a pedir, ya por nuestra ventura non sabemos d ir, t sabes en qu caye cativos redimir, Dios cmo lo gradece al que lo pued complir. (VSD, 362) Amigos-diz-dara si toviesse qu dar, non podra en cosa mejor lo emplear, lo que meter pudiesse en cativos sacar. (VSD, 363) Seor Santo Domingo, complido de bondad, porque fo tan devoto e de tal caridad, por sacar el cativo de la captividad, dili Dios bona gracia como por eredad. (VSD, 373) [grifos nosso]

Nessas trs estrofes, podemos perceber uma valorizao da redeno de cativos que, na VSD, totalmente associada fama de santidade de Domingo de Silos. Nesse caso, fica ainda mais visvel a interveno do hagigrafo, medida que o prprio Gonzalo de Berceo, atravs de um dos elementos mais caractersticos de sua originalidade - a criao de dilogos -, que literalmente atribui frases aos personagens, fazendo com que eles reconheam a grande importncia da redeno: os parentes do cristo aprisionado lembram a Domingo de Silos da importncia de redimir cativos, atividade que glorificada pela divindade maior; Domingo reconhece esse aspecto e ainda afirma que no poderia empregar seus bens em melhor atividade; por fim, o santo recompensado por Deus, devido ao seu bom trabalho, exatamente como os parentes do cativo tinham ressaltado. Parece-nos que, ao valorizar a atividade de redeno de cativos e associla figura de Domingo de Silos, Gonzalo de Berceo tenta resguardar a posio de importncia da Ordem Monstica perante aos fiis e prpria Igreja de Roma, demonstrando que, apesar dessa atividade ter passado a ser quase que uma exclusividade dos mercedrios, um santo j reconhecido como redentor de cativos estava associado Ordem Monstica. Podemos ainda pensar que, talvez, o hagigrafo no estivesse pleiteando um espao maior para os integrantes dessa ordem s por uma questo de disputa de espao com os mercedrios (ou seja, qual ordem seria mais valorizada na hierarquia eclesistica e qual conquistaria mais fiis), mas tambm por uma questo material: a atividade de 301

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redeno de cativos como um campo de atuao exclusivo dos mercedrios, certamente atraa para essa ordem um ingresso maior de dzimos e doaes. Diante do que Berceo, cumprindo seu papel de hagigrafo, estaria reclamando parte desses ingressos materiais para o monastrio de Silos, real residncia daquele santo, que ficou conhecido por interceder em favor dos cristos feitos cativos pelos mouros.
Bibliografia Textos medievais impressos LABARTA DE CHAVES, Teresa. Vida de Santo Domingo de Silos: Edicin, introducin y notas. Madrid: Castalia, 1987. (Clsicos Castalia, 49.) VALCARCEL, Vitalino (Ed.). La Vita Dominici Siliensis de Grimaldo: Estudio, Edicin y Traducin. Logroo: Instituto de Estudios Riojanos, 1982. Obras especficas GIMENO CASALDUERO, Joaquin. Berceo: La norma hagiogrfica de la Vida de Santo Domingo de Silos. In: CHEVALIER, Maxime, LPEZ, Francois, PREZ, Joseph, SALOMN, Noel (Ed.). Congreso de la Asociacin Internacional de Hispanistas, 5, Bordeaux, 2-8 de septiembre de 1974. Actas... Bordeaux: Instituto de Estudios Ibricos e Iberoamericanos. Universite de Bordeaux III, 1977.p. 441-448. PREZ ESCOHOTADO, Javier. Economa y dieta de salvacin en La Rioja Medieval (Hacia un modelo alimentario a propsito de la obra de Berceo). Semana de Estudios Medievales. IV, Njera 2 a 6 de agosto de 1993. Atas... Logroo: Instituto de Estudios Riojanos, 1994. p. 207-224. RUIZ DOMINGUEZ, J. A. El mundo espiritual de Gonzalo de Berceo. Logroo: Instituto de Estdios Riojanos, 1999. SILVA, Andria C. L. Frazo da. A santidade como construo histrica: o caso de Santo Domingo de Silos. Encontro Internacional de Estudos Medievais da ABREM. IV, Belo Horizonte, 6 a 8 de julho de 2001. Atas... Belo Horizonte: PUCMinas, 2003. p.640-648. Notas 1 Passaremos a nos referir a esta apenas como VSD. 2 A quem passamos a denominar apenas como SDS. 3 A opo por essa denominao se deve, primeiramente, porque no contexto de escrita da obra (sculo XIII) ainda no existia a delimitao territorial que atualmente denominamos de Portugal e Espanha, portanto consideramos a regio como um todo. Em segundo lugar, se existia algum elemento que, forosamente, poderia ser considerado como comum s diversas populaes que ocupavam aquela regio, tal elemento era o cristianismo (que inclusive era a religio oficial da maioria dos reinos ibricos), sobretudo diante da ocupao muulmana: desde as primeiras dcadas do sculo VIII, desenvolveu-se uma expanso de povos do norte da frica sobre territrios ibricos, principalmente ao sul da pennsula. Essa ocupao perdurou at o sculo XV e durante esse perodo as populaes nativas da pennsula tiveram que conviver com a proximidade desses povos representantes de uma tradio cultural completamente diferente da ibrica. 4 A Ordem de Nossa Senhora da Merc foi fundada em Barcelona, em agosto de 1218, por Pedro Nolasco (que inclusive venerado como santo) e confirmada pelo papa Gregrio IX em 1235. A finalidade central de tal ordem era a atividade de 302

OS CATIVOS NA VIDA DE SANTO DOMINGO DE SILOS: UMA CONTEXTUALIZAO HISTRICA... redeno de cativos, exatamente por isso que, desde sua fundao, a Ordem da Merc disps a totalidade de seus bens para o resgate de cativos. Alm dos trs votos convencionais (pobreza, obedincia e caridade) que eram necessrios para ingressar em qualquer ordem, os mercedrios tinham que fazer um quarto voto, em que se dispunham a se entregar em troca da liberdade de um cristo feito cativo, caso os recursos econmicos no fossem o bastante para a realizao do resgate. Vide: RODRGUEZ, M. Redencion de cautivos. In: ALDEA VAQUERO, Quintin, MARIN MARTINEZ, Tomas & VIVES GATELL, Jose. Diccionario de Historia Eclesiastica de Espaa. Madrid: Instituto Enrique Florez, 1987. p.625-642. 5 Apesar de terem ocupado sobretudo as regies do sul da pennsula ibrica, os mouros costumavam realizar expedies a cavalo sobre outros territrios, com as mais diversas finalidades, dentre elas, a captura de cristos. 6 O pagamento do resgate de um cativo era responsabilidade de seus familiares e amigos, sobretudo antes da criao das instituies (privadas e religiosas) voltadas para a atividade de redeno de cativos. Op. Cit, p.627.

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A Peste Negra e a representao do Inferno em afrescos toscanos do sculo XIV


Tamara Qurico* Una pestilenzia tra gli uomini dogni condizione di catuna et e sesso, che cominciavane a sputare sangue, e morivano chi di subito, chi in due o in tre d, e alquanti sostenevano pi al morire. E avveniva, che chi era a servire questi malati, appicandosi quella malattia, o infetti, di quella mesesima corruzione incontanente malavano, e morivano per somigliante modo. Matteo Villani, cronista florentino do sculo XIV

ste trabalho discutir de modo sucinto trs obras: o afresco de Giotto na capela Scrovegni, em Pdua, e particularmente os ciclos de Buonamico Buffalmacco no Camposanto de Pisa, e de Taddeo di Bartolo na Collegiata de San Gimignano, todos com as representaes do Juzo final. Estas pinturas podem estar relacionadas a uma preocupao particular com a preparao para a morte. Essa inquietao acompanha o cristianismo desde seus primrdios; os homens acreditavam que apenas aps a morte haveria incio a verdadeira vida ao lado do Criador e de Sua luz eterna para os bons e justos, naturalmente. A morte no representaria o fim. Como escreve Jacques Le Goff, o Alm um dos grandes horizontes das religies e da sociedade. A vida do fiel muda quando pensa que nem tudo decidido com a morte (LE GOFF, 1996, p. 10). Para o homem cristo a morte mesma, no fim de tudo, deveria se submeter a Deus que, no ltimo dia, ressuscitar toda a humanidade. Havia portanto o consolo da esperana esperana de ser conduzido finalmente s benesses do Paraso por toda a eternidade aps o Juzo final. Como ficaria, entretanto, esse sentimento de esperana em meados do sculo XIV, em um momento em que a morte parecia vir de modo cruel e aterrador, por meio da Peste negra? O surto de peste em 1348, estima o gegrafo canadense Harold Foster, foi provavelmente o segundo maior desastre na histria do homem, ficando atrs apenas da II Grande Guerra. Isto porque, de acordo com seu entendimento, os desastres deveriam ser medidos no apenas pelo nmero absoluto de vtimas que causam, mas tambm pelos danos fsicos e emocionais que acarretam (LERNER, 1981, p. 533). Embora seu mtodo de pesquisa possa ser criticado, no h dvidas de que a Peste negra foi um dos piores desastres j registrados pelo homem.
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Doutoranda do Programa de Ps-graduao em Histria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 304

A PESTE NEGRA E A REPRESENTAO DO INFERNO EM AFRESCOS TOSCANOS DO SCULO XIV

A idia mais difundida no prprio sculo XIV, logo aps o primeiro grande surto, foi a de que a peste, um inegvel triunfo da morte, foi causada pela corrupo moral do homem e pela clera de Deus (MEISS, 1978, p. 75). A peste era vista como um castigo divino. O cronista florentino Giovanni Villani, por exemplo, ele mesmo vtima do surto de 1348, indagava se os desastres que ocorriam em seu tempo deviam ser atribudos a fatores outros que no a responsabilidade humana, ou se deviam ser interpretados como retribuio divina aos pecados dos florentinos avareza, ganncia e opresso do pobre pela usura. Ao fim da reflexo, Villani no teve dvidas de que se tratava da segunda opo (HERLIHY, 1998, p. 03). Se foi enviada por Deus, como realmente pareciam acreditar, como esperar o regojizo da luz eterna aps o Juzo final? A condenao parecia iminente e inevitvel. Parece plausvel especular que uma calamidade como a epidemia de peste de 1348, assim como os surtos recorrentes at o fim do sculo XIV, tenham gerado mudanas nas mentalidades religiosas ao menos em relao s expectativas face morte. Deve-se considerar, por exemplo, que historiador Robert Lerner afirma que indisputavelmente, muitos na Europa ocidental interpretaram o surto como um sinal escatolgico (LERNER, 1981, p. 534), um aviso da proximidade da chegada do Anticristo logo, do fim dos tempos. No sculo XIV, diversos foram aqueles que buscaram meios de expiar seus pecados ainda em vida. Os exemplos mais conhecidos so os flagelantes, ou disciplinati, como ficaram conhecidos na Itlia; estes, de acordo com Herman Haupt, se sentiram chamados a preparar o caminho para a vinda do reino de Deus (Apud IDEM, p. 535). Ademais, a reduo brusca da populao teve possivelmente um imenso impacto sobre os que sobreviveram estima-se que, em mdia, a taxa populacional tenha sido reduzida em cerca de dois teros1; ela parecia trazer constantemente memria os horrores da peste. Como comenta Millard Meiss, Os sobreviventes estavam atnitos. O cronista sienense Agnolo di Tura fala de como enterrou seus cinco filhos com suas prprias mos. Ningum chorou pelos mortos, diz, porque cada um esperava a sua morte. (MEISS, 1978, p. 65) As reaes ao surto foram variadas, como natural que ocorra em qualquer evento: nem todos entenderam a epidemia como um sinal do iminente fim do mundo; mesmo entre aqueles que acreditavam na proximidade do Juzo final havia grupos que no mostravam arrependimento nem buscavam perdo pelas eventuais faltas cometidas. Em muitos casos, porm, o surto trouxe consigo um renovado fervor religioso, bem como o desejo e a necessidade de se aplacar a ira divina, gerando, dentre outros, procisses, promessas de construo e de decorao de igrejas e hospitais (BOWSKY, 1964, p. 14 e 15). O surto de peste parece ter gerado de fato mudanas nas formas de espiritualidade de uma populao que se sentia ameaada pela epidemia. A partir da segunda metade do sculo XIV, quando o homem se deparou de modo mais concreto com a possibilidade da morte iminente, a penitncia ganhou novo mpeto como forma de religiosidade. Como uma calamidade de tamanha proporo pode ter influenciado a 305

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

representao artstica? O historiador Millard Meiss defende, em sua mais importante e influente obra, Painting in Florence and Siena after the Black Death, publicada em 1951 mas que gera debates at hoje , uma mudana brusca na arte toscana aps 1348. Meiss tomaria como exemplo inicial para sua argumentao um retbulo atribudo a Andrea Orcagna (Andrea di Cioni, ca 1308-ca. 1368), no qual, segundo o autor, estaria presente um abandono das inovaes trazidas por Giotto e seus seguidores arte toscana; o estilo do retbulo, ainda segundo Meiss, retornaria a um esquema compositivo mais de acordo com os padres do sculo XIII. Este suposto abandono teria sido gerado pelo clima de pessimismo e medo que se instalara aps o primeiro grande surto. Uma vez que a peste fora interpretada como um castigo divino, seria apropriado que a arte abandonasse o humanismo dos giottescos, desprezando o mundo natural, e buscasse uma nfase maior no espiritual. A questo que o presente artigo coloca, no entanto, mais especfica: de que modo a peste poderia ter influenciado a representao do Juzo final, tema escatolgico por excelncia, e que sem dvida era particularmente recordado em um momento no qual se anteviam os sinais do Anticristo e portanto tambm da proximidade do fim do mundo, do retorno de Cristo e do julgamento ltimo de toda humanidade. Com efeito, diversos foram os sinais que eram tradicionalmente apontados como indicativos da iminncia do fim dos tempos. Alm das menes bblicas2, o autor que maior respaldo deu a esses sinais sem dvida foi Santo Agostinho. O bispo de Hipona de fato afirmava que o fim do mundo seria anunciado por diversos desastres, naturais e sociais, o penltimo dos quais seria a chegada do Anticristo (FLANAGAN, 2000, p. 59). A devastao causada pela peste sem dvida era interpretada nesse sentido. O tema do Juzo final possui destaque na arte ocidental pelo menos desde o sculo XI, com os relevos nas portadas das catedrais francesas e tambm em pinturas italianas e em mosaicos bizantinos. Nesse perodo, a composio costuma sofrer poucas variaes: no centro o Cristo juiz; de um lado ou logo abaixo os eleitos no Paraso, de outro os condenados que se dirigem ao Inferno. Nas primeiras representaes, o destaque dado particularmente figura central do Cristo. Especialmente a partir do sculo XIII comea a ocorrer uma laicizao mais efetiva da religio com relao pennsula itlica basta considerar, nesse sentido, o surgimento de inmeras confrarias nas cidades italianas, os meios institucionais por excelncia pelos quais os leigos participavam na vida religiosa no mesmo nvel que os clrigos (BORNSTEIN, 1993, p. 29). Com essa laicizao, elementos mais populares foram incorporados s representaes. Passa-se a conceder um destaque maior Virgem Maria e aos santos intercessores sua presena nas representaes poderia suscitar a devoo dos fiis, de modo que estes lhes dirigissem preces visando sua intercesso para o perdo de suas faltas. Deve-se considerar que na religiosidade laica dos sculos XIII e XIV havia um
Forte senso de reciprocidade entre, por um lado, o poder espiritual da prpria imagem e, por outro, o comprometimento e o fervor religiosos dos devotos das imagens. Esta reciprocidade surgiu na crena mesma 306

A PESTE NEGRA E A REPRESENTAO DO INFERNO EM AFRESCOS TOSCANOS DO SCULO XIV na intercesso dos santos. Assim, algum rezaria para que o santo intercedesse diante de Deus a seu favor. Em troca, o requerente prometeria realizar alguns atos pios. (NORMAN et alii, 1995, p. 181) .

No entanto, como afirma Herv Martin, at o final do sculo XIII o Inferno no possui grande destaque iconogrfico nas representaes do Juzo final, sejam esculpidas ou pintadas exceo feita, naturalmente, ao grandioso tmpano da igreja abacial de Sainte-Foy, em Conques, em que se destaca no apenas a figura do diabo, mas a representao minuciosa dos pecados capitais. Isto se deveria ao fato, segundo Martin, de que ele [o Inferno] participa do indizvel e portanto do no-figurvel (MARTIN, 1996, p. 85). Nesse perodo o destaque recairia especialmente sobre o julgamento, sobre a separao entre os eleitos e condenados, mas o Inferno como tal continuaria marginal (IBIDEM). Talvez o melhor exemplo a ser mencionado seja o tmpano da catedral de Saint-Lazare em Autun (1130-1145); neste, h apenas a meno ao Inferno no gesto do demnio que, na extremidade direita da obra, ao lado da cena da pesagem das almas, empurra grosseiramente algumas almas para dentro de um recipiente que poderia ser interpretado como a entrada para as regies infernais. Como se pode perceber, representa-se principalmente a entrada da rea; ao Inferno, portanto, h apenas uma aluso. A partir do sculo XIV, comea-se a conceder uma progressiva proeminncia regio infernal. As razes para essa nfase poderiam residir na laicizao da religio, mas tambm na condio mesma desses fiis leigos. Incultos e iletrados, muitos seno a maioria deveriam ser persuadidos sobre qual caminho seguir mais pelo medo do que pelo simples convencimento, especialmente em um momento em que a liberdade popular em relao aos assuntos religiosos era maior. Como indica a historiadora Bernardine Barnes ao comentar o clebre afresco de Giotto na capela dos Scrovegni, em Pdua, Essa regio inferior do afresco [o Inferno] foi realizada para fascinar e ser estudada, certamente com a esperana de que alguma lio pudesse ser aprendida. (BARNES, 1998, p. 18). Deve-se recordar, naturalmente, que as imagens nesse perodo difundiam os princpios religiosos das sociedades, catequizando aqueles que no conseguiriam ter acesso a outras fontes de conhecimento. Uma noo que encontra respaldo na mxima difundida por So Gregrio Magno no sculo VII, e que norteia toda a arte medieval: (...) o que a escrita para os que sabem ler, a pintura para os iletrados. Nela os ignorantes vem aquilo que devem seguir; nela lem aqueles que desconhecem as letras. (PL 77, 1128) Nessas pinturas com o tema do Juzo final, h ainda um detalhe a mais: a rea reservada ao Inferno, tradicionalmente a parte inferior do espao, situa-se em um nvel mais prximo dos fiis, permitindo um contato visual direto e imediato3. No apenas isso: concedendo especial ateno ao Inferno, poder-se-ia enfatizar tambm o papel intercessor da prpria Igreja apenas atravs dela torna-se possvel escapar da condenao para alm dos tempos. A elaborao minuciosa dos castigos teria ento a funo de assustar o fiel e prepar-lo para o juzo. Necessrio estar sempre atento, pois no se sabe quando ser. 307

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

O que poderia ter mudado aps o surto de peste em 1348? Ao menos uma alterao parece ter ocorrido nas representaes do Juzo final: a progressiva nfase concedida ao Inferno nas pinturas a partir do incio do sculo XIV vide o exemplo do afresco de Giotto, em que o Inferno ocupa praticamente toda a metade inferior direita do afresco parece culminar na segunda metade do Trecento com o destaque completo do Inferno: nos afrescos desse perodo ele aparece muitas vezes como uma composio autnoma, ao lado da pintura com o Juzo final propriamente dito, e acompanhado normalmente por outro afresco representando o Paraso. Alguns exemplos poderiam ser mencionados: o afresco do Campo santo de Pisa, atribudo a Buonamico Buffalmacco realizado em uma rea destinada ao sepultamento e ao culto aos mortos, deve-se destacar , o afresco de Nardo de Cione na igreja de Santa Maria Novella, em Florena (1345-57), e o ciclo de Taddeo di Bartolo em San Gimignano (ca.1393). Deve-se considerar, naturalmente, nesta discusso, a influncia que a Commedia de Dante poderia ter exercido sobre esse tipo de representao, especialmente os cantos do Inferno. Com efeito, Taddeo e Buffalmacco parecem ter tirado inspirao direta de Dante; a aluso Commedia fica clara especialmente no que se refere figura do diabo. Sem dvida, a descrio feita por Dante do mperador del doloroso regno4 influenciou sua figurao desde ento: a partir do sculo XIV, os diabos e outros demnios tm usualmente asas de morcego. Um diferencial no entanto pode ser percebido: as faces do diabo de Bartolo, assim como em outras representaes do sculo XIV, so pintadas de modo uniforme; no h diferenciao entre elas em termos de cor, como o faz Dante. No caso especfico dos afrescos de Buonamico Buffalmacco e Taddeo di Bartolo, os diabos representados, assim como o de Dante, possuem trs cabeas, e tambm devoram trs almas. No afresco de Taddeo, o condenado central identificado como Judas e, embora a tarjeta das outras duas figuras no seja mais legvel, pode-se talvez inferir que sejam Cssio e Brutus, conforme descreve a Commedia5. No afresco de Buffalmacco, a aluso a Dante tambm era evidente: at o incio do sculo XX era possvel ler, acima da figura do diabo, a inscrio vista na entrada do Inferno dantesco: lasciate ogni speranza, voi chentrate! O que tambm se verifica na segunda metade do sculo XIV uma maior proeminncia na representao dos pecados capitais. Isto j ocorria em obras anteriores, como no afresco de Giotto, em que vrios dos pecados so passveis de identificao, mas em perodos posteriores o destaque cada vez maior. A historiadora americana Gail Elizabeth Solberg comenta que nos ciclos de Buffalmacco e de Taddeo di Bartolo os artistas parecem ter buscado um maior rigor na representao desses pecados, devido possivelmente s dimenses que o Inferno ganhava como obra autnoma (SOLBERG, 1991, p. 813). No afresco de Taddeo, por exemplo, no apenas h a reproduo dos pecados como eles so explicitamente indicados por inscries diversas: la superbia, la vidia, la lussuria, la varitia soberba, inveja, luxria e avareza; o historiador italiano Peccori em 1853 identificava gola, assim como a expresso gli accidiosi,
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A PESTE NEGRA E A REPRESENTAO DO INFERNO EM AFRESCOS TOSCANOS DO SCULO XIV

indicando que algumas das legendas da pintura foram destrudas com o tempo (NORMAN, 1995, p. 182). Alguns pecadores especficos tambm so identificados por essas inscries: avaro, golosi, usuraio, alm de outros tipos de pecado como o falso testimonio. Percebe-se que, ao menos no caso do ciclo de San Gimignano, a imagem pode ser lida e interpretada de modo mais literal, atravs dos tituli que definem os pecadores; a imagem se torna portanto um iconotexto, de acordo com a definio do historiador da arte Peter Wagner (BURKE, 2005, p. 49). parcela da populao letrada, ainda que pequena, a compreenso da obra ficaria ainda mais simples e evidente tendo em vista o fato de que as legendas foram escritas no em latim, mas na lngua verncula habitual ao povo. Mesmo aqueles que no poderiam ler as tarjas, no entanto, seriam capazes de compreender a mensagem da obra. O afresco mostra com efeito a associao entre os tipos de pecados e as penas especficas a eles aplicadas, prtica que se tornar corrente nas representaes do tema, e j presente em modelos anteriores. A punio est de alguma forma relacionada ao tipo de pecado cometido em vida. Por exemplo, o homem identificado como sottomutto (sodomita) castigado por uma estaca que colocada em seu nus por um demnio, que sai por sua boca, entrando em seguida na boca de um segundo homem. O sodomita por fim assado em uma chama posta sob ele, alm de, aparentemente, ter seu calcanhar pinado por um demnio. No afresco de Giotto, as punies aos luxuriosos se concentram na regio dos rgos genitais algumas figuras so penduradas pelos rgos genitais; um homem tem seu pnis puxado por um demnio, que utiliza para tanto uma espcie de alicate. No caso dos gulosos as figuras so postas, no afresco de San Gimignano, diante de uma farta mesa, impedidas pelos demnios de devorar o banquete que lhes apresentado; em Pdua, pelo contrrio, aos gulosos so continuamente fornecidos alimentos atravs de canos que lhes so enfiados na boca. Por fim, Taddeo di Bartolo representa o avaro sendo enforcado com um saco de dinheiro, enquanto o usurrio obrigado a engolir moedas de ouro que so defecadas em sua boca por um demnio. Verifica-se que, apesar da associao entre os pecados e as punies, os modos de representao variam bastante entre as obras de Taddeo di Bartolo e Giotto. Taddeo parece ter tirado inspirao para seu Inferno especialmente do afresco do Campo santo. H com efeito uma srie de similaridades em algumas das punies encontradas em ambas as obras; ele tambm parece ter copiado alguns tipos de punio apresentados no afresco de Buffalmacco, colocando-os porm como castigo para tipos diferentes de pecado. Por exemplo, na regio dos avaros Taddeo representa um esqueleto enforcado; em Pisa, esse tipo iconogrfico encontrado na rea reservada aos suicidas. No afresco de San Gimignano dois demnios alimentam o esqueleto com moedas de ouro. Esta representao explicada por Solberg: o pecador presumivelmente trocou sua prpria substncia pelos bens que esto no grande fardo preso em seu lao (SOLBERG, 1991, p. 793). Tanto o afresco do Camposanto de Pisa como o de San Gimignano 309

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

parecem refletir tambm uma concepo mais popular do tema, com um realismo por vezes bastante rude, buscado talvez por motivos didticos. Com efeito, a visualizao dos pecados ocorre de maneira mais explcita, e o fiel compreende de modo mais efetivo as punies a que poder ser submetido no Alm. Nas representaes do sculo XIV, o mais importante no seriam as recompensas que poderiam receber no Paraso, mas sim os castigos a que poderiam ser submetidos aps o julgamento6. A representao de horrveis torturas poderia tirar a mente do fiel de seu natural torpor, permitindo a tomada de atitudes que evitariam a condenao. Evocam-se nessas imagens as palavras do Eclesistico: Em todas as tuas obras, lembra-te do fim, e jamais pecars (Ecl 7, 36). O Juzo final parece se tornar progressivamente tema para a reflexo humana, o que se justifica quando se considera o momento histrico. Interpretando o surto como punio pelos pecados do homem, seria natural a nfase nos castigos suscitados no Alm por conseqncia desses mesmos pecados. Millard Meiss comenta brevemente em sua obra o ciclo do Campo santo, particularmente o afresco do Juzo final. Segundo ele, a obra dataria de pouco aps a epidemia de 1348, e teria sido realizado pelo mais importante pintor pisano do perodo, Francesco Traini (1321-1363). Para o autor, se no fim do sculo XIII e incio do XIV a figura do Cristo juiz parecia interagir tanto com os condenados quanto com os eleitos, rechaando uns e recebendo os outros, a partir da segunda metade Ele parece se dirigir apenas aos condenados, denunciando-os talvez como os responsveis pela peste. De acordo com sua proposta, a peste teria efetivamente engendrado uma mudana significativa no tipo de representao do tema do Juzo final. Ele no comenta, entretanto, a maior proeminncia do Inferno. A principal controvrsia em relao ao ciclo de Pisa est no fato de que o historiador italiano Luciano Bellosi, em sua obra Buffalmacco e il Trionfo della morte, publicada em 1974, contesta uma das mais importantes premissas da tese de Meiss: a autoria e sobretudo a datao da obra. O autor afirma baseado em farta documentao e em uma anlise estilstica bastante detalhada que o afresco do Campo santo seria obra de Buonamico Buffalmacco (ativo entre 1315 e 1341), artista florentino que trabalhou em vrias cidades italianas ao longo da primeira metade do sculo XIV, e mencionado por Boccaccio em seu Decamerone. De acordo com Bellosi, o afresco teria sido pintado por volta de 1336, no mais tardar em 1340, alguns anos portanto antes do primeiro grande surto de peste7. A cronologia do ciclo do Campo santo se torna ainda mais importante quando se considera que os afrescos parecem ter exercido grande influncia sobre outros artistas ainda no Trecento, pode-se citar o ciclo realizado por Taddeo di Bartolo, especialmente no que se refere ao posicionamento do Cristo juiz, alm da representao mesma do Inferno, como visto. O gesto do Cristo pisano parece estar repetido ainda em outros exemplos posteriores: no painel de Fra Angelico no museu de San Marco, em Florena (ca. 1450), e mesmo no clebre afresco de Michelangelo na Capela Sistina, j no sculo XVI. A questo est ainda em aberto, portanto. O ciclo do Campo santo de
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A PESTE NEGRA E A REPRESENTAO DO INFERNO EM AFRESCOS TOSCANOS DO SCULO XIV

Pisa parece ser uma obra fundamental para a compreenso da iconografia do tema no sculo XIV, e sua datao poderia indicar ou no a possibilidade de influncia da peste na representao do Juzo final. Entretanto, mesmo que a obra seja anterior ao surto de 1348, como indica Bellosi, a possvel relao entre a peste e a iconografia do tema no pode ser descartada a priori. possvel que uma mudana nos modos de representao j estivesse se manifestando, ainda que de modo pouco abrangente, desde antes de 1348; a epidemia poderia ter intensificado e mesmo acelerado as mudanas iconogrficas. A pesquisa apenas iniciada buscar determinar se isto de fato ocorreu, e que outros tipos iconogrficos nas representaes do Juzo final podem ser especificamente relacionados s mudanas nas mentalidades religiosas geradas pela peste. Essas obras, afinal, so capazes de dizer muito a respeito da religiosidade e das expectativas face morte das sociedades que as criaram. Como escreve Peter Burke,
Imagens tm sido utilizadas com freqncia como um meio de doutrinao, como objetos de cultos, como estmulo meditao e como armas em controvrsias. Portanto, elas tambm so um meio atravs do qual historiadores podem recuperar experincias religiosas passadas, contanto que eles estejam aptos a interpretar a iconografia. (BURKE, 2005, p. 58) Bibliografia BARNES, B. Michelangelos Last Judgment: the Renaissance response. Berkeley: University of California, 1998. BORNSTEIN, D.E. The Bianchi of 1399. Popular devotion in late medieval Italy. Ithaca e Londres: Cornell University, 1993. BOWSKY, W.M. The impact of the Black Death upon Sienese government and society. Speculum, v. 39, n. 1, janeiro 1964. BURKE, P. Testemunha ocular. Histria e imagem (trad. Vera M. dos Santos). Bauru: EDUSC, 2005. DANTE ALIGHIERI. La Divina Commedia. Commento scartazziniano di Giuseppe Vandelli. 21 edio completa. Milo: Ulrico Hoepli, 1989. FLANAGAN, S. Twelfth-century apocaliptic imaginations and the coming of the Antichrist. The Journal of Religious History, v. 24, n. 1, fevereiro 2000. GOODICH, M. Violence and the miracle in the fourteenth century. Private grief and public salvation. Chicago e Londres: Chicago University, 1995. HERLIHY, D. The Black Death and the transformation of the West. Cambridge (MS) e Londres: Harvard University, 1998. LE GOFF, J. La naissance du Purgatoire. Paris: Gallimard, 1996. LERNER, R. The Black Death and Western European escathological mentalities. The American historical review, v. 86, n. 1, junho 1981. MARTIN, H. Mentalits mdivales. XIe-XVe sicle. Paris: PUF, 1996. MEISS, M. Painting in Florence and Siena after the Black Death. Princeton: Princeton University, 1978. NORMAN, D. The case of beata Simona: iconography, historiography and misogyny in three paintings by Taddeo di Bartolo. Art History, v. 18, n. 2, junho

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS 1995. NORMAN, D. et alii. Siena, Florence and Padua: art, society and religion 12801400. Londres: Yale University, 1995. V 1: interpretative essays. SOLBERG, G.E. Taddeo di Bartolo. His life and work. Nova York: New York University, 1991. 1 A peste teve efeitos duradouros sobre a demografia europia. Se na Toscana havia cerca de dois milhes de habitantes antes de 1348, como estimou Fiumi, a regio s voltaria a um patamar demogrfico semelhante aps 1850 (HERLIHY, 1998, p. 32). Para cidades como Siena, Volterra e San Gimignano, Bowsky afirma que apenas no sculo XX a populao conseguiu enfim retornar aos nmeros de antes da peste (BOWSKY, 1964, p. 09). 2 Por exemplo, Mt 24, 29-30 e Lc 24, 11 e 25-27. 3 As conseqncias que isso poderia ter sobre a obra tambm so comentadas por Barnes, novamente em relao ao afresco de Giotto: A face de Sat est completamente obliterada por arranhes, e a maior parte dos pequenos demnios foram similarmente desfigurados. Pinturas do perodo que representavam demnios em qualquer lugar ao alcance dos pios muitas vezes sofreram tal abuso. (IBIDEM). 4 Oh quanto parve a me gran maraviglia/ quandio vidi tre facce alla sua testa!/ Luna dinanzi, e quella era vermiglia; laltreran due, che saggiugneno a questa/ sovresso l mezzo di ciascuna spalla,/ e s giugneno al luogo della cresta:/ e la destra parea tra bianca e gialla;/ la sinistra a vedere era tal, quali/ vegnon do l onde l Nilo savvalla./ Sotto ciascuna uscivan due grandali,/ quanto si convena a tanto uccello:/ vele di mar non vidio mai cotali. Non avean penne, ma di vipistrello/ era lor modo. Inf. XXXIV, 37-50. 5 Quellanima l su cha maggior pena/ disse l maestro, Giuda Scarotto,/ che l capo ha dentro e fuor le gambe mena./ Delli altri due channo il capo di sotto,/ quel che pende dal Nero ceffo Bruto/ vedi come si storce! e non fa motto! ;/ e laltro Cassio che par s membrutto. Inf. XXXIV, 61-67. 6 A nfase no Inferno pode ser constatada pela complexidade mesma da obra. Solberg, por exemplo, ao descrever o ciclo de Taddeo di Bartolo em San Gimignano, dedica pouco mais de uma pgina ao afresco do Juzo final; quase duas pginas ao do Paraso, necessitando, porm, de quase quatro pginas para a descrio da regio infernal (SOLBERG, 1991, p. 788-796). 7 Embora ainda no exista consenso em relao data de execuo dos afrescos de Pisa, os historiadores tendem atualmente a concordar na atribuio da obra a Buffalmacco.

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A PESTE NEGRA E A REPRESENTAO DO INFERNO EM AFRESCOS TOSCANOS DO SCULO XIV

Giotto di Bondone. Juzo final. Detalhe do Inferno

Giotto di Bondone. Juzo final, ca. 1305. capela Scrovegni, Pdua

Buonamico Buffalmacco. Juzo final, ca. 1340. Camposanto, Pisa

Buonamico Buffalmacco. Inferno, ca. 1340. Camposanto, Pisa

Taddeo di Bartolo. Inferno, ca. 1393. Collegiata, San Gimignano 313

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

O papel do Homem Santo na Igreja Visigoda no sculo VII: a vida de Emiliano


Rodrigo dos Santos Rainha* Apresentao Esta comunicao parte da pesquisa que desenvolvemos no Programa de Estudos Medievais, sobre o processo de normatizao da sociedade no interior dos reinos germanos. Sob a orientao da professora Leila Rodrigues, elaboramos nossa dissertao de mestrado, ainda em fase inicial, cujo o principal objeto , naquele contexto, analisar as relaes de poder no reino visigodo na primeira metade do sculo VII. Procuramos analisar diversas nuanas da influncia e participao da Igreja na vida do reino visigodo. Um dos campos mais fecundos a tal propsito a possibilidade de estender nosso olhar esfera cultural. Durante muito tempo diversos especialistas se escusaram este fim, a no ser naquilo que se referisse ao espao restrito da Igreja, nica instituio a nos deixar documentos escritos sobre o perodo. Meu interesse justamente utilizar o prprio olhar da Igreja como forma de extrapol-lo. Para tal utilizaremos as referncias do discurso eclesistico estudando a forma como o ltimo interfere e interage na sociedade, visando por meio dos indcios apreender as relaes de poder presentes nos textos clericais. Duas importantes influncias possibilitaram o amadurecimento desta perspectiva: o livro Os reis taumaturgos de Marc Bloch e o artigo intitulado Santidade de Andr Vauchez. No primeiro, o autor, a partir de relatos eclesisticos e de uma perspectiva comparada, traa linhas mais profundas envoltas naquele fenmeno das curas pelo toque do rei (BLOCH, 1993). No segundo, o historiador, ao analisar a possibilidade da transformao do Homem Santo com o advento do fortalecimento do cristianismo e a forma como este se relaciona com sociedade, mostra o abandono do modelo asctico e a adoo de figuras inseridas no corpo social, preocupando-se em destacar alm dos milagres sua atuao social (VAUCHEZ, 1987). A Hagiografia no Reino Visigodo e a Vida de Emiliano necessrio delinearmos o momento cultural que vive o reino visigodo no sculo VII. O perodo marcado pela unificao religiosa, sob o cristianismo catlico, ainda que as preocupaes com as heresias
Mestrando do Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 314

O PAPEL DO HOMEM SANTO NA IGREJA VISIGODA NO SCULO VII: A VIDA DE EMILIANO

permaneam presentes.1 No sculo VII, o crescimento do nmero das escolas, os momentos de apoio de alguns monarcas Igreja e sua posio hegemnica no campo religioso, permitiram que o episcopado ampliasse a quantidade de seus escritos, assim como sua circulao pelo reino. Entre os textos cuja produo foi ampliada no sculo VII, os de natureza hagiogrfica tm um papel destacado. Podemos citar como exemplo as vidas dos padres de Mrida, de autor desconhecido (FEAR, 1997. p. 45 -106); a vida de Desidrio, escrita pelo rei Sisebuto (Idem. p. 1-14); a Viris Ilustribus de Idelfonso de Toledo que destaca os santos padres da pennsula entre eles o prprio Brulio (Idem. 107-122); a vida de Frutuoso de Braga, de autor desconhecido (DIAZ Y DIAZ, 1974) e a que analisaremos nesta comunicao, a vida de Emiliano, escrita por Braulio de Saragoa (FEAR, 1997. p.15-44). A anlise de um texto hagiogrfico para enfocarmos aspectos da sociedade justifica-se pelo carter deste escrito. Trata-se de um discurso feito para a pregao e nos fornece, portanto, indcios de como se dava a relao entre membros do clero e o cuidado na divulgao de sua idias para a sociedade. Outro aspecto que nos desperta a ateno nas hagiografias do perodo a proximidade existente entre os santos e seus bigrafos. No caso de Emiliano, esta proximidade to grande que Braulio pede a seu irmo que os clrigos, Citonato e Geroncio, que conviveram pessoalmente com Emiliano, confirmem as informaes apresentadas e corrijam os possveis erros. A contemporaneidade de Emiliano e Brulio nos remete a Gregrio Magno. O bispo de Roma, ao escrever a vida e os milagres de Bento, indica na introduo a seu texto que assim o faz para que todos vejam que os santos continuam a existir, e no s no Oriente, mas na prpria Itlia. Acreditamos que os objetivos do hagigrafo de Emiliano foram parecidos, a proximidade era a forma encontrada para que os diversos segmentos do reino visigodo identificassem mais facilmente a santidade. A Vita de S. Aemiliani pode ser dividida em dois momentos: um primeiro que explica a trajetria de vida do santo e um segundo preocupado em descrever seus milagres.2 Emiliano, nas palavras de Braulio, foi um pastor at converter-se ao cristianismo. Para sua iniciao cincia crist procurou instruo de outro eclesistico, o eremita Flix, discreto religioso. Em seguida optou por uma vida contemplativa, estabelecendo como moradia ora a montanha ora a floresta. Assim permanece at que o bispo da regio de Tarrazona lhe pede para assumir a responsabilidade de um mosteiro; mesmo a contragosto, o santo aceitou a incumbncia. Nesta funo, teria sofrido diversas incompreenses pelo desapego que demonstrou s coisas deste mundo. Na parte em que so detalhados seus milagres, quase sempre de forma muito sucinta e direta, seu principal embate contra o diabo e a doena, estando, muitas vezes, interligadas estas dois aspectos. A VSE acompanhada de uma carta do seu autor e nos permite identificar o objetivo do bispo ao escrever esta hagiografia, assim como sua 315

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

forma de utilizao pelo corpo clerical. A correspondncia traz informaes sobre o modo como o texto deveria ser utilizado. Braulio diz que escreveu uma hagiografia curta e com linguagem simples para no cansar aos ouvintes e facilitar a compreenso de todos O texto deveria ser lido durante a missa, de preferncia na data da celebrao do dia de Emiliano. Acompanhandoo seguiu um hino de louvor, escrito pelo principal auxiliar de Braulio, Eugenio. Este teria levado pessoalmente a correspondncia e ajudado nos preparativos da comemorao. Esta preparao de festa nos remete a um clima de comoo pretendido pela Igreja, de forma a cativar aos ouvintes. A busca pela emoo dos ouvintes um importante instrumento de catequese, utilizado largamente no perodo tanto em sermes como nas celebraes litrgicas. A VSE uma alternativa a este modelo, tratando de arrebanhar at os que tivessem pouca compreenso sobre os assuntos eclesisticos. O autor deste texto um bispo plenamente comprometido com os processos de fortalecimento da Igreja. Braulio nascido em famlia hispanoromana e com grande tradio no interior do clero. Pelas cartas que o autor nos deixou temos o conhecimento, por exemplo, de que possuiu trs irmos clrigos: a abadesa Pomponia, o bispo Juan e o abade Frunimiano. Sabemos ainda que seu pai chamava-se Gregrio, e que provavelmente foi bispo da regio de Osma. Este autor teve destacada participao junto s elites do reino, eclesisticas e nobres.3 Sua formao educacional ocorreu na escola de Isidoro de Sevilha, principal bispo do reino no sculo VII pela grande quantidade e influncia dos seus escritos, alm da participao destacada nos processos de aliana com os monarcas.4 Braulio um dos seus discpulos mais destacados, e assume no ano de 631 o bispado de Saragoa, regio de relevncia poltica-econmica do reino.5 Sua produo intelectual pode ser apreendida pelo seu estimulo leitura e as suas cartas de solicitao e envio de livros. Alm disso, foi o responsvel por duas importantes obras, o Praeonatio Libri Isidorum e Vita de S. Aemiliani; outros escritos so atribudos ao autor mas sem fundamentao necessria para tal. Teorizando sobre a funo hagiogrfica Sentimos a necessidade, para facilitar o entendimento do papel que o Homem Santo assume na sociedade, de explicitar alguns referenciais tericos propostos por Pierre Bourdieu, e que adotamos.6 O socilogo francs desenvolveu uma extensa gama de conceitos para anlise das sociedades. Ao tratar especificamente da questo da formao e estrutura do campo religioso, destacou que a legitimidade s pode ser alcanada e garantida com a constituio de um corpo de especialistas e a construo de um conjunto de prticas que definam e transformem o grupo. Estas sero fomentadas principalmente pelos membros da elite deste campo. A tal grupo cabe a venda de um bem exclusivo e que seja reconhecido por toda a sociedade: a salvao. na busca do monoplio da salvao que giram as aes dos membros do campo religioso.
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O PAPEL DO HOMEM SANTO NA IGREJA VISIGODA NO SCULO VII: A VIDA DE EMILIANO

Entendendo a Igreja visigoda, no todo dos seus membros, como um campo religioso em processo de afirmao, frente a um poder poltico, ainda que instvel, atuante, as aes do episcopado vo constantemente pretender a valorizao dos bens simblicos que o clero pode oferecer. O trabalho de evangelizao com certeza um dos mais claros exemplos da valorizao do poder simblico e conseqente monoplio da salvao por parte da Igreja Catlica frente a sociedade. Assim a hagiografia passa a ser uma das expresses, entre os textos eclesisticos, mais cristalinas de legitimar a instituio eclesistica, j que permite por um processo brando de evangelizao a conquista de fiis. Esta considerao permitiu-nos apreender a atuao da Igreja fora do espao teolgico. Na sua relao com a sociedade, o discurso eclesistico apresenta nuanas prticas tornando os eclesisticos o grupo a dar lgica a prpria vida das populaes. Ou seja, ao atribuir os problemas do mundo e da vida sofrida ora ao diabo ora aos pecados cometidos, aquele discurso afasta tudo o que ruim da Igreja, passando tal instituio a ser somente a responsvel pela cura dos males. A construo teolgica prtica da pregao hagiogrfica, indica que a forma de se obter uma vida melhor aqui e/ou aps a morte seguindo os preceitos da Igreja. Valoriza desta maneira o princpio religioso, a importncia da glria do Cristo, que quem possibilita a absolvio e salvao divina no dia do julgamento. Como neste mundo o seu representante a Igreja, esta, pelo seu discurso religioso, legitima por fim a si mesmo. Monoplio da salvao A idia da salvao valorizada e constante nos escritos do perodo, seja em atas conciliares ou cartas. Somente aqueles que seguirem a Igreja tm alguma chance de salvao. Mas para obteno deste benefcio existem normas e uma disciplina a ser cumprida. Encontramos a funo do santo presente no papel de convencer as populaes que a Igreja poderia ser um caminho vivel. Na concretizao deste processo, a figura do santo personificava a instituio e visava garantir a seus membros a legitimidade frente a sociedade. Como o santo era o representante mais prximo de Deus neste mundo, o fato de ser membro da Igreja garantia, por conseguinte, aos clrigos um estatuto privilegiado. Devemos chamar ateno para a diferena do discurso teolgico e a comunicao litrgica com objetivo de pregao. Enquanto no primeiro o dualismo do mundo permanecia presente, com uma clara separao entre estes, quando direcionadas a conquista de fiis a apresentam nuances especficas e de carter local. A pregao na hagiografia de Emiliano apresenta duas dimenses, vida e ps-vida. A separao de ambas, entretanto, no clara, deixando transparecer a permeabilidade dessas realidades. Assim, no discurso de pregao, presente no texto de Brulio, existe a possibilidade da salvao poder ser obtida a qualquer momento, na vida ou na morte. A salvao pode ser concretizada, realizada, neste mundo, sem necessidade da espera por um prximo. Claro que para tal necessrio 317

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

condies especiais, como a interveno de um santo, mas s passvel de ser alcanada por um cristo. Dessa forma, aproximar-se do clero era o nico caminho para livrar-se das mazelas deste mundo. Existia ainda a possibilidade do crente no obter a graa das curas de suas dores durante sua vida. Para resolver esta possibilidade a hagiografia ilustra o caso de dois bandidos que roubam os cavalos de Emiliano. Os meliantes ficam cegos, se arrependem e devolvem os cavalos, mas, mesmo assim o santo no lhes restitui a viso. Braulio explica que a ao do clrigo visava apenas o bem dos pecadores, j que o fato de no cur-los do castigo garantiria-lhes a oportunidade de pagamento dos seus pecados neste mundo, para que fossem posteriormente salvos. Logo conclumos que sofrer e no ser curado, pode ser algo bom, j que isto pode acontecer para que o pecador tenha a oportunidade de pagar sua dvida. Assim temos uma dicotomia muito clara e interessante e que faz parte da forma como a Igreja buscou passar os seus ensinamentos, disseminando seu monoplio frente a sociedade: a Igreja, por intermdio do homem santo, evidencia sua estreita vinculao com Deus. Para garantir o bem da sociedade e dos fiis, atua junto ao cotidiano sobretudo nos momentos mais difceis. Existe ainda outra forma de atuao do santo que podemos identificar nos escritos de Braulio: a valorizao do mestre. Devemos lembrar que estamos em uma sociedade que j recebeu forte influncia do germanismo, proveniente dos visigodos que ocupam a regio h quase dois sculos. Um dos principais traos do qual temos notcia dos germanos a valorizao dos laos pessoais como base da sociedade. Assim a relao mestre-discpulo assume um carter diferenciado e presente, ainda que de forma muito atenuada nos diversos campos da sociedade. Devemos destacar que tambm no Imprio Romano a relao mestre-discpulo existia e era sobressaltada, no entanto, no reino visigodo em diversos escritos, inclusive atas conciliares, a relao do mestre com seus alunos descrita como uma forma de acolhida dos discpulos, como membros da famlia, fato que nos remete a uma relao de carter pessoal. A favor desta hiptese podemos indicar as cartas trocadas entre Braulio e Isidoro. Seu contedo revela que o tratamento entre eles marcado por um tom familiar, com referncias marcadamente ntimas.7 Braulio destaca que todos precisam de algum que lhes ensinem, lhes guiem, inclusive o prprio santo que vai buscar no eremita Flix as instrues para seguir seu caminho. Emiliano, tambm se torna um mestre, mesmo daqueles que no compreendem sua ao salvadora. A hagiografia foi preparada para ser lida em uma missa. Seguida de um hino, buscava, pela comoo dos ouvintes, afirmar o discurso eclesistico, lembrando-os que precisavam de algum para conduzi-los. Consideraes finais De forma geral devemos destacar que a hagiografia no perodo, afirma, entre outras coisas, os bens eclesisticos que garantem e indicam o caminho da salvao, como algo nico e eficiente contra os percalos desta
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O PAPEL DO HOMEM SANTO NA IGREJA VISIGODA NO SCULO VII: A VIDA DE EMILIANO

vida e o direito a um julgamento favorvel no outro mundo. Na sociedade visigoda os bens de salvao eclesisticos adquirem o papel de instrumentos aproximao desta sociedade viso da Igreja. A partir das concepes de Pierre Bourdieu, pode-se afirmar que por meio de um discurso de convencimento, apresentado de maneira pouco agressiva e envolvente, o clero valoriza seus membros e suas crenas, divulgando sua cultura e ampliando o seu poder simblico junto sociedade. Este poder adquirido pode ser avaliado quando no V concilio de Toledo o rei e a Igreja assinam praticamente um acordo de cooperao, comprometendo-se a proteo mtua. Este processo e participao tm muitas matizes, mas h que ressaltar que, ao destacarmos a perspectiva cultural, a hagiografia ser um importante instrumento de ao.
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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Notas 1 No sculo anterior, VI, o reino visigodo foi marcado pela disputa de duas tendncias do cristianismo, a ortodoxa que continuava o credo oficial ao fim do Imprio romano e era seguido pelas populaes de origem hispano-romana, e o arianismo uma perspectiva que no aceitava a idia da Santssima Trindade, e teve grande aceitao entre os povos germanos, entre eles os visigodos. Mais ao fim do sculo, visando um processo de unificao poltica do reino, Recaredo, rei visigodo, faz uma aliana com os principais membros do episcopado e se converte vertente ortodoxa. 2 Para facilitar a compreenso passaremos a utilizar a sigla VSE, para designar a Vita de S. Aemiliani. 3 Podemos apreender a partir das cartas, que Braulio se corresponde com diversos bispos do reino, como Isidoro de Sevilha e Eugenio de Toledo, alm dos monarcas Recesvinto e Chindasvinto. 4 Foi o idealizador do IV concilio de Toledo e tutor do monarca Sisebuto. 5 No local passa uma das principais estradas do reino visigodo, alm de ser uma rea militarmente estratgica pela proximidade com francos e vascos. 6 Dois livros do autor so fundamentais para a nossa pesquisa: BORDIEU, P. O Poder Simblico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989 e BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Simblicas. So Paulo: Perspectiva, 2003. Para a questo do Monoplio da Salvao, aconselhamos a leitura do primeiro captulo do Economia das Trocas Simblicas. 7 Para basearmos estas informaes utilizamos: BRAULIO, Epistolrio. L Riesco Terrero (ed.) Epistolario de San Braulio: Introduccin, edicin crtica y traduccin. Sevilia: [s.n], 1975. Jose Vives (Ed.). Cartas I VII e Concilios Visigoticos e HispanoRomanos. Madrid: CSIC. Instituo Enrique Florez, 1963. IV Conclios de Toledo.

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A temtica artrica em narrativas galegas contemporneas


Caroline Moreira Reis*

osso trabalho visa observar, por meio de anlise comparativista, a permanncia da temtica artrica na literatura galega contempornea. Como sabemos, as lendas arturianas, a chamada matria da Bretanha, chega ao noroeste da Pennsula Ibrica, atravs da verso galego-portuguesa da Demanda do Santo Graal. Devemos lembrar que o norte de Portugal e o territrio que hoje forma a Galiza foram, durante a Idade Mdia, um s. Portanto, culturalmente e literariamente durante a Idade Mdia so um s povo, e tudo que provm deste medievo comum aproxima, hoje, os dois povos. Alm disso, o interesse pela Demanda do Santo Graal deve-se ao fato de ser o mais antigo texto portugus em prosa literria, embora, como observa, entre outros, Antonio Jos Saraiva, de matria no original (SARAIVA e LOPES, s/d, p. 95). O que nos instigou a fazer este trabalho, no entanto, o fato de que, a partir da segunda metade do sculo XX aos dias de hoje, houve uma enormidade de lanamentos literrios galegos no s na prosa, mas tambm na poesia e no teatro acerca de Camelot e seus personagens. Para mencionar apenas os mais importantes, podemos aqui citar Merln e familia (1955) de lvaro Cunqueiro; Percival e outras historias (1958) e Amor de Artur (1982) de Mndez Ferrn e Galvan en Saor (1989) de Daro Xohn Cabana. Diante desta constatao, buscamos comparar a verso galegoportuguesa da Demanda do Santo Graal com livros galegos do sculo XX, principalmente as obras de Mndez Ferrn e lvaro Cunqueiro. Procuramos aqui enfocar as narrativas Amor de Artur e Merln e familia. Para isso, comearemos com um breve histrico sobre a origem da lenda arturiana, e do uso do celtismo fundamental para entendermos o uso de Artur como personagem recorrente na literatura galega. Aps isso, faremos uma breve exposio da situao literria galega na qual, juntamente com seus autores, se agregam Amor de Artur e Merln e familia. Por fim, pretendemos analisar o porqu desta fascinao pela imagem da corte arturiana, na literatura galega durante os ltimos anos. Inmeras so as origens da lenda arturiana, porm, iniciaremos falando da tradio literria dela proveniente. O primeiro advento de Artur na literatura parece vir de um cronista anglo-normando William de Malmesbury que, por volta de 1125, comps uma Historia regnum Anglorum. Contudo, Artur consolidouMestranda do Programa de Ps-graduao em Literatura Comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

se como rei quase histrico (ASHE, 1997, p. 5), por mos de Geoffrey de Monmouth de quem pouco se sabe, alm do fato de ter lecionado em Oxford entre 1129 e 1151 , e seu Historia regnum Britanniae, escrito provavelmente entre 1135 e 1136. No entanto, somente na trilogia em versos Li livres dou graal, composta por Robert Boron, entre 1191 e 1212, no s vai explicar a origem do Graal, mas tambm articular a histria do Graal com o reinado de Artur (Demanda do Santo Graal, 1995, p. 8).1 Os livros que a compem so Joseph, Merlin e Perceval. No sculo XIII, a tendncia em relacionar as diversas tradies fez com que as histrias fossem reunidas, provavelmente por Gautier Map, sendo conhecida essa reunio sob o nome de Vulgata, e que se compe dos seguintes livros: Estoire del Saint Graal; Estoire de Merlin; Lanzarote du Lac; Queste del Saint Graal; Mort Artu.2 Contudo, antes da segunda metade daquele sculo, a Vulgata foi remodelada. Este novo ciclo foi denominado Post-vulgata ou PseudoBoron, e compe-se de trs livros: Estoire del Saint Graal; Merlin; Queste del Saint Graal.3 As obras medievais ibricas so tradues deste ltimo ciclo. E baseada no ltimo livro citado Queste del Saint Graal - que se forma a verso portuguesa, utilizada nesta pesquisa, conhecida como A demanda do Santo Graal. Muitas so as divergncias de qual verso teria surgido primeiro, a portuguesa ou a castelhana, mas esse no um ponto fundamental para o trabalho, j que o pretendido apenas observar a utilizao desta obra como fonte medieval para obras contemporneas. Literariamente so essas as fontes arturianas. Porm, vamos tentar retornar s fontes mitolgicas celtas, pois estas sero o ponto de unio cultural entre Artur e os galegos. Segundo LE ROUX & GUYONVARCH a origem da lenda poderia ser extremamente remota, e remontar ao imaginrio celta proto-histrico, mais especificamente ao chamado Ciclo de Magnobi (LE ROUX & GUYONVARCH, 1999, p. 94). O que no se discute a raiz celta de Artur. Assim, a literatura medieval proveniente desta herana seria uma tentativa de cristianizar lendas pags. Mas o que realmente importa aqui so os textos que transmitem toda a lenda artrica aos povos descendente do imaginrio galego-portugus medieval. H registros, de que durante a Idade Mdia em portugus havia trs livros: Jos de Arimatia, Merlim e A Demanda do Santo Graal, baseados, como j dito anteriormente, na Post-vulgata. Das trs obras Merlim, de quem h notcias de um exemplar na biblioteca de Dom Duarte, desapareceu completamente, (SARAIVA, s/d, p. 95); de Jos de Arimatia ainda restam alguns trechos em manuscritos dos sculos XIV e XVI. mas no fonte para o conhecimento da Matria da Bretanha, dado que se prende origem do Graal. Assim, a cavalaria vai ser exposta perfeitamente na Idade Mdia Ibrica atravs da Demanda do Santo Graal, que por sorte a nica das trs obras a chegar aos nossos dias. importante apenas ressaltar que a edio mais antiga
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A TEMTICA ARTRICA EM NARRATIVAS GALEGAS CONTEMPORNEAS

de A demanda do Santo Graal portuguesa disponvel uma cpia, feita provavelmente no sculo XV, e que est em manuscrito nico, preservado na Biblioteca Nacional de Viena. De posse dessas informaes, faz-se necessrio relacionar a cultura galega cultura celta. Ao final da Idade do Bronze (sculos XI ou X a.C.) inicia-se um tipo de ocupao humana e organizao social, aldeias ou recintos fortificados, de forma oval ou circular, situados em lugar elevado, em construes tambm ovais ou circulares, conhecidos como castros. Acredita-se que esta ocupao foi realizada pelos celtas que chegaram pennsula, entretanto, no h comprovao para esta informao. Algumas escavaes j encontraram indumentrias semelhantes s celtas, descobertas em outros territrios europeus, tais como a Frana e a Irlanda. No entanto, h dificuldade em se estabelecer datas e indcios pois, como sabemos, os celtas eram grafos. A cultura de conferir aos celtas a criao dos castros inicia-se no sculo XIX, com o Romantismo e a tendncia, comum a todas as naes, em firmar a nacionalidade. Durante todo aquele sculo, algumas obras de cunho histrico so publicadas discorrendo sobre o possvel passado celta de Galiza, e explicando a grandeza da nao por este passado. Alm disso, neste perodo, a descoberta de uma lenda irlandesa em um manuscrito em galico do sculo XII acrescentou veracidade questo da origem celta da Galiza. Neste manuscrito se narram as aventuras de Breogn, um caudilho irlands que conclui a tarefa de seu pai, Brath, de conquistar toda a terra galega. Seu filho, Ith, volta Irlanda e assassinado. Os galaicos vo Irlanda em busca de vingana, travam uma guerra sangrenta e saem vitoriosos. Este mito no s confere uma origem celta para Galiza, mais tambm reforam a caracterstica guerreira do povo. Contudo, aps a segunda metade do sculo XX e at os dias de hoje, houve uma enormidade de lanamentos literrios galegos acerca de personagens celtas e, especificamente, dos personagens de Camelot. Destas escolhemos as duas obras j citada, que se distinguem quanto apresentao dos personagens artricos. Dada a escassez de tempo para faz-lo, cuido falar pouco destes autores e de suas obras. O primeiro dos autores que gostaramos de apresentar Xos Luis Mndez Ferrn Este nasceu na cidade de Ourense, em 1938. Homem inteligente e culto, doutor em Filologia e catedrtico de literatura em Vigo, alm de terico em literatura, poeta e prosador imensamente premiado na Espanha. A presena do mito arturiano em suas obras muito forte; no , portanto, toa que sua primeira obra narrativa chama-se Percival e outras historias (1958) e que uma de suas obras mais recentes seja Bretaa, Esmeraldina (1987). Mas a obra discutida aqui uma narrativa de 1982 e que abre uma coletnea de narrativas de temtica celta ambas chamdas de Amor de Artur. Trata-se de uma novela curta, onde o Rei de Logres sai em busca de seu Graal. Porm, este Graal no o de Jos de Arimatia, algo muito mais 323

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subjetivo. Esta novela trata da busca que Artur faz procura de respostas para seu sofrimento aps se saber trado pela esposa. Assim sendo, vai atrs de quem possa responder-lhe, contudo, acaba por fazer uma peregrinao, onde cada ponto de parada um momento de reflexo psicolgica. Nesta viagem somos lanados dentro da tradio celta. E o rei mantm as caractersticas pags - como, por exemplo, se envolver com entidades celtas como Dagda - apagando, assim, os traos cristos que assumiu a partir da tradio medieval e, logo, entrando em contraste com a viso religiosa que o mito assume na Demanda do Santo Graal. Amor de Artur trata-se, grosso modo, de uma nova Demanda, porm, a busca agora pela essncia da traio. Qual a razo para esta? Por que ela to poderosa para fazer sofrer tanto a um rei? Mais que isto, Artur, o predestinado, o mais importante de todos os reis. O livro j comea com Artur ciente dos fatos. Todo o captulo I mostra as reflexes de Artur acerca da traio dupla que sofrera. Diante da recusa de sua Rainha em voltar e responder as suas dvidas os dois monarcas de Camelot brigam e Artur decide ir atrs de Merln, sendo este o segundo momento da peregrinao. E assim se sucedem os fatos. Depois de muitos percalos, em um dia de ano novo, Artur tem um encontro com o deus celta Dagda. bom lembrar que este o deus descrito por Jlio Csar como o Jpiter celta (LE ROUX & GUYONVARCH, 1999, p. 56) o deus pai, que est ligado, extremamente, a dois smbolos: a roda e o vaso. Alis, este aspecto importante, afinal, algumas fontes indicam ser o vaso de Dagda a origem da lenda do Graal, ou seja, o Graal, tal como nos passado na Demanda do Santo Graal, seria uma tentativa de cristianizao do vaso de Dagda (CHEVALIER E GUERBRANT, 2005, p. 476). O vaso - ou Graal, se assim o entendermos, contm todo o conhecimento, toda a explicao para a angstia e desespero inerentes existncia. Assim, Dagda, o deus-vaso, ou deus-graal, a fonte de todo o conhecimento pago, d a Artur trs recomendaes: no confiar em Galvan,4 o protegido de Lug:5 seguir ao p da letra os conselhos do mago Roebek de Tagen Ata; e o mais importante, e nico no bem compreendido por Artur, as aves tornan sempre ao puo do seu amo(MENDEZ FERRN, 1998, p.24). Artur levado a Galiza, onde encontra Liliana, a esposa secreta de Lanzarote. L chegando, fortemente atrado por Liliana. Toma-a sexualmente, v em seus olhos os olhos de Guenebra,6 compreendendo assim o enigma que procurava resolver. O narrador conclui que Lanzarote no amava Guenebra, amava a Artur. Tomava a Guenebra como quem toma o prprio Artur. E Artur acabara de fazer o mesmo com Liliana. O livro sugere assim um amor homossexual entre Artur e Lanzarote. A obra termina com a revelao de que Galaad filho de Artur e Liliana, mas por amor a Lanzarote. Assim, Lanzarote e Rei Artur se complementam, so apenas um. A lenda de um no vale sem a do outro. Sua unio vai ser perpetuada atravs de Galaad, o filho dos dois, o cavaleiro perfeito. Outro ponto interessante a ressaltar um dos conselhos dados pelo deus Dagda, sua terceira recomendao: as aves sempre voltam ao punho de
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A TEMTICA ARTRICA EM NARRATIVAS GALEGAS CONTEMPORNEAS

seu senhor. Ou seja, o erro do passado, ou no caso de Artur, um filho fruto do pecado seja ele um incesto, como na Demanda do Santo Graal (onde Mordred, seu filho com sua irm, o responsvel pela sua morte); ou uma vingana, como em Amor de Artur, afinal a relao de Artur e Liliana uma resposta traio de Lanzarote e Guinebra, -, volta para destruir o pecador. Seja como for, o aparecimento de Galaad o ponto que vai determinar o final do reinado de Artur. Sendo assim, a relao entre ele e a esposa de Lancelot marcam o final de uma era. No final do livro, o rei passa a ser protegido e guardado por Liliana at que os dias de felicidade voltem ao ocidente (MENDEZ FERRN, 1998, p. 36). A partir da Artur passa a viver apenas em nossa memria ou, como prefere o narrador, em nossos coraes escravos, como voltaremos a falar mais tarde. O outro autor, lvaro Cunqueiro, tem uma experincia de vida bem diferente da de Mndez Ferrn. Nasceu em Mondoedo, em 22 de dezembro de 1911, e morreu em Vigo, em 27 de fevereiro de 1981. Passou a infncia escutando as histrias e lendas de sua terra, atravs de seus familiares e dos clientes da botica de seu pai. Estudou Letras e Filosofia, cursos que no terminou enveredando pelo jornalismo. Neste perodo escreveu suas primeiras poesias. No entanto, problemas de ordem poltica o fizeram largar o jornalismo e levaram-no de volta a Mondoedo onde, imerso na cultura local, inicia sua carreira na narrativa. Sua primeira narrativa, Merln e Familia (1955), portanto, guia-se pelo lado mais folclrico da Galiza, jogando Merln, diversos personagens das novelas de cavalaria, e de outros gneros, na realidade labrega e misteriosa de sua terra. Merliln e Familia narra a histria de um certo Felipe que em sua velhice conta uma histria, onde afirma ter sido criado de um Don Merln, um senhor muito estranho, casado com uma ex-rainha bret, Ginebra, e que vivia em Miranda regio pertencente comarca de Lugo, na Galiza. Pela casa de Merln transitam diversos tipos e situaes que misturam personagens ficcionais, literrios e lendrios a uma tpica famlia galega. Porm, a histria no tem um encadeamento, uma sucesso de fatos ocorridos aps a chegada de Felipe casa da famlia de Merln e que cessam com sua sada. Nesta obra, o narrador, Felipe, narra as fantsticas histrias ocorridas na residncia campesina de Merln enquanto l esteve. interessante ressaltar que no h nenhum comprometimento temporal que permita sabermos a poca em que viveu Felipe. A maioria das marcas temporais se d pela ao do calendrio religioso, como acontece em a Demanda do Santo Graal e nas outras obras que tratam da Matria da Bretanha. No entanto, no sabemos a poca histrica com a qual estamos lidando, seguramente o perodo medieval no o retratado. Outro fator que serve de ponte para a confuso temporal cunqueriana a caracterizao dos personagens. Sabemos, por Felipe, que Ginebra Era unha seora mui sentada, vern e inverno coa sa peleria negra mui bordada com abaloiros. (CUNQUEIRO, 1991, p. 18). A descrio desce a personagem do patamar de uma rainha para o de uma simples senhora campesina galega, 325

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

principalmente pela peleria negra. No entanto, no resta dvida de que esta mesmo a rainha de Artur: Decan que era viuda dun grande rei que morreu na guerra, e tivo a noticia por un corvo cando estaba em Miranda probando un peite de ouro.(CUNQUEIRO, 1991, p.19). O mesmo acontece com Merln, apresentado como campons, inteligente e capaz de resolver os problemas que, literalmente, lhe aparecem porta. Em relao cultura de Merln, sempre lembrado o fato de ter uma grande biblioteca, sendo interessante observar a citao de que era leitor de Raimundo Lullio (CUNQUEIRO, 1991, p. 67), autor do Livro da Ordem da Cavalaria, mais uma prova da ligao entre a Merln e familia e ideal do cavaleiro do tratado de Lullio. Esses personagens famosos e no galegos -, so, no entanto, deslocados temporalmente, vivendo numa Galiza no-medieval, com indcios de contemporaneidade. Exemplos no faltam, lembremo-nos a preparao para o San Xohan (CUNQUEIRO, 1991, p. 42) e o fato de Elimas dizer a Felipe que non fora por teu amo, estaba agora chegando a Roma ou China, ou Habana,7 onde teo un medio parrafeo (CUNQUEIRO, 1991, p.50). Mas a confuso deve-se, principalmente, profuso de personagens, ficcionais ou no, que passam ou so citados durante a obra. De Hamlet a Percival, passando por Amadis de Gaula e dipo. Isso pode ser entendido como uma tentativa de colocar a Galiza no Mundo Ocidental e/ou o inverso, jogar o Mundo Ocidental em Galiza. Esses personagens totalmente dspares em realidades e temporalidades so unidos pelo mesmo conceito, proposto por Felipe no prlogo, posto que so personagens de sua memria. So personagens eternos, pois so personagens: por isso Merln no falece, assim como o corpo de Artur no encontrado na Demanda (A Demanda do Santo Graal, 1995, p. 493-494). Igualmente acontece a Hamlet cujas dbidas e morte crudel andan polos teatros (CUNQUEIRO, 1991, p. 145). A Artur, Hamlet, Ginebra, dipo e Merln dada a eternidade da memria popular e literria. Portanto, o personagem Artur mantm escravos os coraes e mentes de toda a populao ocidental. Incita e inspira milhes de adaptaes, representaes e re-apresentaes, como nas duas narrativas galegas aqui expostas. Pela obra de Cunqueiro observamos que o uso da temtica artrica liga-se a esta questo da memria. Diante de duas obras to significativas, interessantes e, principalmente, complexas, a nica coisa que podemos afirmar que, mesmo com o passar dos anos, Artur ainda uma fonte inesgotvel para a arte, mas para Galiza, o Rei mais do que isso. o elemento cultural que une dois dos componentes mais marcantes da identidade galega: a Idade Mdia e a cultura celta, em especial na obra de Mndez Ferrn. Une-se a isso um terceiro elemento constituinte desta identidade: o campesinato (em Cunqueiro). No h, ento, como negar a influncia do medievo na memria galega. Mais do que representar um perodo histrico, a Idade Mdia constitui para Galiza um momento de plenitude nacional. claro que a Idade Mdia tambm se reflete, contemporaneamente, nas outras literaturas
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A TEMTICA ARTRICA EM NARRATIVAS GALEGAS CONTEMPORNEAS

dela herdeiras principalmente na portuguesa e na brasileira. No entanto, pelo que representa historicamente, para o povo galego fica mais evidente em sua literatura, que ainda um modo ou o principal modo - de resistncia cultural do galego frente ao castelhano. Temos certeza de que esse desejo de autonomia cultural da Nao de Breogn s persistiu, mesmo depois de tantos anos de impedimentos, graas riqueza memorialstica deste povo, como bem demonstra Cunqueiro. Afinal, a memria popular ocidental foi o suporte para sobrevivncia at nossa era da imagem da Corte de Camelot. Portanto, nenhum outro personagem pode ser maior e mais representativo do povo galego que Artur, assim como nenhum outro mito confundir-se-ia to bem com a histria de luta pela memria e identidade na Galiza.
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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

So Francisco de Assis: foi, aps o Cristo, a grande personalidade da histria crist


Raphael de Oliveira Reis*

Introduo em dvida, Jesus Cristo a grande personalidade8 da Histria Crist, pois foi a partir de sua mensagem que desencadeou a formao do cristianismo. Porm aps Cristo, no contexto histrico inserido na Idade Mdia do sculo XIII (1182 1226) que So Francisco de Assis vm se tornar a grande personalidade da histria crist. Francisco desenvolveu uma espiritualidade de maneira distinta das outras pessoas e instituies. Este conceito de espiritualidade na Idade Mdia deve ser entendido, segundo o historiador Andr Vauchez, como uma doutrina de f e sua prtica, atravs dos homens historicamente determinados (VAUCHEZ, 1995, p. 12), como por exemplo: no perodo das cruzadas, os leigos desejosos de obterem a salvao (f) acreditavam que ao chegarem a Terra Santa e lutarem (prtica) contra os infiis, conseguiriam a redeno de seus pecados. As maneiras de vivenciar a espiritualidade ao longo da Idade Mdia, passou por transformaes em sua f e prtica, tendo o apogeu com a volta da mensagem primitiva apostlica e a participao dos leigos na espiritualidade. Francisco de Assis expressou essas duas caractersticas supracitadas: Vivendo Segundo o Santo Evangelho e participando da ascenso dos leigos na busca de uma espiritualidade ativa, sem intermedirios.

Panorama da espiritualidade do sculo VIII - XIII Nos sculos VIII X, a espiritualidade medieval marcada pela influncia do imprio Carolngio e pelos relacionamentos recprocos de interesse entre o clero e os governantes. na poca Carolngia que o cristianismo comea a preocupar-se com as prticas exteriores e obedincia a preceitos (VAUCHEZ, 1995, p. 17) e nesta poca tambm que ficou marcada a presena da liturgia, sendo chamada por Andr Vauchez de: Uma Civilizao da Liturgia. Os leigos no tinham acesso a espiritualidade, pois esta ficava a cargo dos clrigos atravs dos rituais, os quais eram os intermedirios entre os leigos e Deus. Os leigos eram meros espectadores, pois no entendiam aquelas liturgias, muito menos a lngua utilizada nas missas, o latim. Todavia, somente os sacerdotes poderiam ter acesso s escrituras sagradas e os nicos que poderiam interpret-las, ou seja, com estas
Graduando em Histria na Universidade Federal de Juiz de Fora. 328

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caractersticas a Igreja era um elo entre os leigos e a espiritualidade, determinando preceitos de salvao e de condutas. Porm com a decadncia do Imprio Carolngio, o nascimento do feudalismo (Unio entre a feudalidade e o senhorio) e a independncia da Igreja em relao ao imperador, trazem mudanas no processo da espiritualidade e desta maneira h o desejo crescente dos leigos em participarem deste processo de maneira individual e ativa. Nos sculos XI-XII, perodo este marcado segundo o historiador George Duby, acontece um grande progresso da expanso demogrfica e econmica; desenvolvimento da produo agrcola e artesanal; difuso de tcnicas (charrua, arroteamento e pousio) (DUBY,1978), fez com que influenciasse no surgimento de novos tipos de vida religiosa: o eremitismo, a vida cannica e novo monaquismo. Estes tipos de religiosidade estavam calcados em dar menos importncia liturgia enfatizando uma vida mais solitria, de contemplao e excluso do mundo ou das coisas mundanas, ainda ficando restrito a participao da espiritualidade aos monges e sacerdotes, os quais se encarregavam de uma vida de orao. Portanto, o trabalho e a guerra eram atividades exercidas pelos leigos. Os leigos realmente s tero o seu primeiro contato ativo com a espiritualidade com as cruzadas (1099 1290), e ... pela primeira vez, que a Igreja entreabria as portas da graa em benefcio da totalidade dos fiis... a suas partidas para o oriente, lutarem contra os inimigos de cristo obtendo a salvao de seus pecados na Terra Santa (VAUCHEZ, 1995, p. 104). Com estes fatores desencadeados torna-se ntido a vontade por parte dos leigos em ter acesso s escrituras sagradas e obter a salvao sem intermedirios participando da espiritualidade sem renunciar a sua vida familiar (VAUCHEZ, 1995, p. 125). No sculo XII-XIII tambm analisaremos o surgimento dos movimentos evanglicos, muito destes condenados como hereges pela Igreja, sendo os principais: Valdenses e Ctaros. Estes movimentos foram conceituados desta maneira por romperem com alguns preceitos da Igreja. Os Valdenses defrontaram com a hierarquia religiosa da Igreja, por se dedicarem pregao livre e vulgarizao da Sagrada Escritura e tambm ensinavam que todo fiel cristo que observa o Evangelho sacerdote (IRIARTE, 1985, p. 34). Os Ctaros ou Albigenses negavam vrios dogmas fundamentais do cristianismo, rejeitavam o antigo testamento e abominavam todo o culto externo (Idem). Estas posturas iam de encontra com os interesses da cria romana, pois os hereges conseguiam muitos adeptos colocando-os a parte da espiritualidade sem intermedirios, utilizando idias de uma vida fundada exclusivamente no Evangelho, na pobreza e na orao e realizavam pregaes baseadas nas escrituras sagradas. A Igreja se sentiu ameaada e realizou vrias expedies para conter a expanso destes movimentos. Estes processos de mudana ocorridos na espiritualidade durantes sculos, fez com que o sculo XIII desenvolvesse uma nova expresso de espiritualidade: passando da conformidade de rituais da poca carolngia para uma evanglica, dando nfase na humanidade de Deus (VAUCHEZ, 1995). neste contexto do sculo XIII que Francisco surge, com a ascenso dos 329

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leigos e a respectiva participao na espiritualidade, expressando a vontade de se voltar mensagem primitiva apostlica ou crist. O franciscanismo primitivo em seu alicerce anlogo a outros movimentos desejos de viverem a mensagem apostlica (Ctaros, Valdenses, Dominicanos, etc.), porm distinto no que tange algumas prticas e idias. A instituio franciscana no caiu na heresia como as mencionadas anteriormente e Francisco tambm viveu o evangelho no meio dos homens, recusando, todavia o mundo e com ele o cristianismo se tornou mais popular e menos clerical (FRANCO JR., 2004, p. 80), realizando a juno em sua ordem entre clrigos e leigos, vivendo em sua vida a imitao de Cristo. A reviravolta de valores Francisco nasce em 1182, filho de famlia rica, pertence o alto nvel da classe mercantil. Seu pai era um rico comerciante de tecidos, chamado Pietro di Bernardone, o qual vendia tecidos de l francs de qualidade, e os revendia, obtendo excelentes lucros. Os relatos sobre a vida de Francisco e outros santos so descritos pelos hagigrafos, como de costume, rompendo de maneira brusca entre vida mundana para uma vida espiritual. Segundo esta perspectiva ... Francisco nos apresentado como um ativo e hbil colaborador do pai (...) sendo preparado para uma vida poltica, militar e dos negcios (MANSELLI, 1997, p. 41). Aprendera certamente com o pai o francs, lngua esta utilizada em momentos de alegria e canes. Ele, inserido em uma classe social provinda de riqueza e mordomia, costumava a passar o seu tempo nos jogos, no cio, bate-papos, canes, utilizava roupas luxuosas e era um grande gastador. Aspirava em ser um cavaleiro corts, querendo imitar os nobres (LE GOFF, 2005, p. 59). Porm ele comea a manifestar uma vontade de mudana, tentando com o seu ar corts a vislumbrar novas perspectivas de vida, passando da vida de divertimentos para uma vida espiritual ativa. A primeira manifestao de ruptura com as coisas mundanas o seu ato corts no momento em que Francisco vai at Roma, na praa de So Pedro, em uma peregrinao. L, ele troca a sua roupa e lugar com um mendigo e comea a pedir esmolas em francs. Esse ato mostra sua vontade de experimentar um novo modelo de vida. Este ato foi a impulso para sua converso e esta se inseriu em uma reviravolta de valores. Sua converso pode ser analisada em trs etapas, nas quais mostram nitidamente a ruptura com os valores sociais da poca. Na primeira etapa o momento em que escuta uma voz interior dentro de si que dizia:
Se queres conhecer a minha vontade, necessrio que desprezes e odeies todas as coisas que por acaso amaste e desejaste ter. E depois que tiveres comeado a fazer isto, as coisas que antes te pareciam suaves e doces ser-te-o insuportveis e amargas, e naquelas que antes experimentavas horror provars grande doura e suavidade imensa (MANSELLI, 1997, p. 57).

Neste momento Francisco cavalgava nos arredores de Assis, quando


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de sbito levado pelo cavalo em um local, onde visualizou um leproso. No ponto de vista da maioria dos homens medievais daquela poca, os leprosos despertavam horror e carregavam em si a ira de Deus (BARGELLINI, 1980, p. 31), sendo um castigo divino a lepra. Francisco participava deste ponto de vista, no qual podemos observar mais em um trecho de seu testamento. Porm uma fora o impulsiona ao contato com o leproso, fazendo com que ele beijasse-lhe a mo, e depois distribusse dinheiro de seu pai aos leprosos (era uma regio onde havia um leprosrio). Este primeiro momento de sua converso fica claro o desejo de Francisco em participar dos excludos da sociedade e ser um deles. Esta etapa fica ntida nas prprias palavras do santo:
Foi assim que o Senhor me concedeu a mim iniciar uma vida de penitncia como eu estivesse em pecados, parecia-me deveras insuportvel olhar para os leprosos. E o Senhor mesmo me conduziu entre eles e eu tive a misericrdia com eles. E enquanto me retirava deles, justamente o que antes me parecia amargo se me converteu em doura de alma e de corpo; e depois disto, demorei s bem pouco e abandonei o mundo (MANSELLI, 1997, p. 42).

Na segunda etapa de sua converso, mostra a ruptura com os bens materiais e a aspirao dos bens espirituais. Em 1206, quando o Poverello, aps vender os tecidos de seu pai, Pietro di Bernardone, sem autorizao, para ajudar o proco na reconstruo da Igreja de San Damiano (a igreja estava em runas), desperta no pai um sentimento de dio. Leva Francisco at o bispo Guido, em praa pblica, sendo esta o centro de atrao (LE GOFF, 1992, p. 32), humilhando-o em frente multido que observava a cena do jovem, acusado de roubo pelo prprio pai. Na praa o santo desposa de tudo e sai nu, entregando suas vestimentas e tudo que possua a Pietro di Bernardone, declarando a partir daquele momento ser filho de um nico Pai, Deus, o qual devia obedincia. As pessoas de Assis conheciam o jovem Francisco de outrora marcado pelas suas farras e divertimentos e comearam a humilh-lo e o chamarem de louco pelo seu ato. Completando a sua converso, o terceiro e ltimo momento se deu por volta de 1209. Estava na igreja de Porcincula em uma missa, o padre da igreja recitou o captulo 10 de Mateus, o qual modifica definitivamente a vida e os valores de So Francisco de Assis, trecho este que influenciou os seus comportamentos em diante.
Vai, disse o Salvador, e anuncia por toda parte que o reino de Deus est prximo. O que recebeste gratuitamente, d gratuitamente. No carregue nem ouro, nem prata no teu cinto, nem saco para estrada, nem duas tnicas, nem calado, nem bordo; porque o operrio tem dignidade para manter-se por si. Em qualquer cidade ou aldeia que chegues, informa-te para saber quem digno de receber-te e permanece em casa dele at partires. Entrando na casa sada dizendo: Paz para esta morada (LE GOFF, 1992, p. 68).

o ato decisivo de sua converso ao estilo de vida do Nazareno. A 331

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partir desta renncia dos bens materiais, Francisco se torna um missionrio do evangelho, possuindo somente uma tnica spera, uma corda que a amarrava e um par de sandlias. Nestas trs etapas da converso: o contato com o leproso, despojamento na praa pblica e a missa de Porcincula, fica ntido a reviravolta de valores na qual sua converso ficou inserida. O desejo de ser tornar um excludo da sociedade como os leprosos; a dedicao a Senhora Pobreza, em analogia da vida dos pobres; a renncia aos bens materiais em favor dos bens espirituais; a negao do pai Pietro de Bernardone, a favor de um Pai Celestial (Deus), mostram as caractersticas de sua converso e sua respectiva reviravolta de valores. Despojado de tudo que era mundano, torna-se um missionrio do Santo Evangelho. Francisco e seus atos Francisco, como j foi dito, viveu secundum formam sancti evangelli, o que significa recusar toda a segurana e entregar-se providncia no que se referia subsistncia, ao alojamento e a todas as outras necessidades (BERLIOZ, 1996, p. 256), expressando os valores que Cristo viveu. Esta forma de vida se baseou nas passagens do Evangelho, seguindo literalmente os escritos sagrados, causando em seus contemporneos, surpresa e admirao. Foi o nico homem a viver conforme o Cristo (recebeu os estigmas no Monte Alverne em 1224), vivenciou o Deus-Homem na venerao com o Cristo sofredor da Cruz, expressando desta maneira o respeito para com a Eucaristia. Algumas analogias entre eles, Cristo e Francisco, ficam expressas na renncia de todos os valores materiais, dedicao aos excludos, pobreza, sofrimento, humilhaes, pregao, penitncia, amor ao prximo, a prtica da caridade, estigmas, etc. O Poverello dedicou os seus atos na imitao de Jesus, sendo inovador, pois hauriu a vontade de ser modelo como o Cristo, viver entre os homens, amar todas as criaturas e toda criao, ...alegre, fez a espiritualidade Crist ficar mais perto dos leigos (LE GOFF, 1995, p.113). Seu desprendimento com as coisas mundanas, as quais poderiam compuscar as virtudes dos homens, Francisco mostrou uma averso aos valores em que vivia: repudiou o dinheiro, a hierarquia religiosa e o militarismo, pois estas seriam formas de poder, ostentao, vaidade; indo de encontra com suas idias baseadas no Evangelho, escolhendo como forma de vida a Senhora Pobreza. No que tange a caridade parece que Francisco via em todas as pessoas a imagem do Cristo, por isso ele talvez tenha conseguido demonstrar total empenho em favor dos excludos e mostrar que leigos so dignos e capazes de levar, como clrigos, uma vida verdadeiramente apostlica (LE GOFF, 1995, p. 38), pedindo sempre em seus escritos que as pessoas seguissem os conselhos dos evangelhos. Esta caracterstica da caridade baseada no amor desafia os valores da poca que repudiava os excludos. A fraternidade expressa no santo vm tona no momento que ele deixa conviver dentro de sua ordem, sem hierarquia, de maneira igualitria, clrigos e leigos, ressaltando o sentimento de fraternita aceitando:

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SO FRANCISCO DE ASSIS: FOI, APS O CRISTO, A GRANDE PERSONALIDADE DA HISTRIA CRIST colocar em comum a prpria sorte com a dos rejeitados, dos leprosos, aos quais no deixavam de dar todo o seu apoio, dos mseros, com os quais dividiam os frutos de seu trabalho, recordando-se sempre que a sua pobreza voluntria os obrigava a olhar para os verdadeiros indigentes, antes que para si mesmo (MANSELLI, 1997, p. 112).

Sua pregao era em lngua vulgar e simples, realizada no meio urbano, abarcando todos os tipos de pessoas e classes sociais, tendo sado do sculo, no queria sair da sociedade crist, da fraternidade com todos os homens em Cristo, mais agir no meio deles (MANSELLI, 1997, p. 65). Nesta passagem fica evidente o desejo do santo em querer levar a salvao para todos, sem distino. Para o Poverello, a teoria (pregao) somente no bastava, tinha que praticar, por isso antes de pedir a qualquer um de seus frades alguma coisa, ele mesmo dava o exemplo no tendo ...relutncia em pedir esmola, nem repugnncia para comer os restos que se misturavam no prato medida que lhe eram oferecidos (MANSELLI, 1997, p. 141). Este trecho elucida vrias caractersticas de Francisco: o exemplo, abnegao, pobreza e a mendicncia. A mendicncia era s utilizada quando os franciscanos no obtinham atravs do trabalho manual os seus alimentos. O trabalho manual servia tanto para afastar o cio quanto para a alimentao, nunca visando lucro. No que se refere o seu missionarismo levando a palavra do Cristo para todos e em todos os lugares, tinha sempre como meta e perspectiva o captulo 4, versculos 24-25, de So Joo, que Jesus era o caminho, a verdade e a vida. Esta frase fazia sua respirao. Esta passagem corrobora com o seu missionarismo, fazendo uma contra posio com as cruzadas. Ele era contra o uso de armas e da violncia para a converso dos infiis para o cristianismo e acreditava que esta converso deveria ser realizada atravs da pregao, da palavra e bons atos. Outra caracterstica importante que Francisco expressou em seus atos foi a valorizao da mulher. A sociedade expressava uma misoginia em relao a mulher, utilizando preceitos do antigo testamento salientando a inferioridade perante o homem, pois a mulher seria a causa do pecado, carregando a fraqueza moral. O Poverello tinha um carinho imenso com os rejeitados, entre eles, as mulheres e com elas estabeleceu pactos recprocos de dedicao e afeto. Seu sentimento de valorizao da mulher expressou em duas figuras femininas, as quais teve maior contato, Clara de Assis e Jacoba de Sattesoli. O contato com Clara de Assis, que igualmente com Francisco, desposou de sua riqueza para seguir os ensinamentos de Cristo aderiu o modelo de vida franciscano. Funda futuramente a ordem das Pobres Senhoras, regra esta criada por Francisco, baseada nos princpios do evangelho. Porm as Pobres Senhoras ficaram em um convento e no podiam pregar, pois era lhes proibido pela cria proibia a pregao por mulheres e uma vida ativa no meio das multides. Francisco tinha um respeito enorme pelos clrigos visto que via neles pessoas autorizadas em realizar a Eucaristia, a qual ele venerava, porm o alicerce da regra das Pobres Senhoras, permanecia o mesmo, o Cristo a ser seguido. Outra aproximao com as mulheres se d quando prximo de seu desencarne pede para que trazem Jacoba de Sattesoli, (dama que oferecia doces de amndoa para o santo quando ele se hospedava em Roma), para que ela viesse ao seu 333

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encontro, trazendo um pano para o seu enterro e o doce de amndoa que tanto gostava. O franciscanismo do sculo XIII colocou as mulheres a parte de uma espiritualidade ativa sem cair na heresia. Francisco demonstrou a vontade de ser o modelo de Cristo, apaixonado pelo sofrimento humano do salvador na cruz, obteve no Monte Alverne, em 1224, quando em silncio profundo e orao intensa, refugiando-se dos problemas que sua ordem enfrentava, j em profunda doena dos olhos, estmago e malria, recebe aps a viso de um Serafim de seis asas, os estigmas, chagas de cristo, onde fica indiscutvel o fato que exorta e unicamente Francisco tenha sido o primeiro na histria que se conhece que tenha tido as cinco chagas (MANSELLI, 1997, p. 302). Essas caractersticas supracitadas so algumas das quais que mostram a persistncia de Francisco em seguir o Cristo, conseguindo imit-lo. Atravs do O Cntico do Irmo Sol, criado em italiano pelo Poverello, percebe-se algumas perspectivas do santo. Esta poesia mostra a sua admirao da natureza e dos animais como criaturas do Criador; o desejo de ser um instrumento da paz, a qual fica expressa em uma estrofe do cntico, criado e recitado, para que o bispo Guido e o podest Oprtulo se reconciliassem; e por ltimo nesta poesia, mostra a relao tranqila com a morte. Concluso Francisco de Assis, foi uma personalidade que influenciou e modificou a sociedade em que viveu atravs de seus atos e valores: colocou os leigos e excludos a parte de uma espiritualidade ativa sem intermedirio, ajudou a levantar a Igreja que estava inserida em crise, dinamizou o cristianismo, imitou o Evangelho e o Cristo literalmente. Influencia a sociedade atual atravs de sua mensagem, pela ordem Franciscana existente at hoje (com modificaes em suas estruturas ao longo dos setecentos anos de existncia, seguindo a regra bullata, aprovada pelo papa Gregrio IX em 1223) e desperta nos pesquisadores a vontade de estud-lo para melhor compreender as transformaes ocorridas naquele perodo histrico. Sua figura to fascinante que afirmo que ele um enigma, tal qual a esfinge do Egito fazendo com que tambm o historiador George Duby afirmar que o Poverello: foi, com Cristo, o grande heri da Histria Crist (Apud: FRANCO JR. 2004, 79).
Bibliografia BARGELLINI, Piero. So Francisco de Assis. Braslia: EdUnB, 1980. BERLIOZ, Jacques. Monges e Religiosos na Idade Mdia. Lisboa: Terramar, 1996. DUBY, George. Guerreiros e Camponeses: os primrdios do crescimento econmico europeu do sculo XII. Lisboa: Estampa, 1978. FRANCO JR., Hilrio. A Idade Mdia: nascimento do Ocidente. So Paulo: Brasiliense, 2004. IRIARTE, Lzaro. Histria Franciscana. Petrpolis: Vozes, 1985. LE GOFF, Jacques. So Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2005. ____. O Apogeu da Cidade medieval. So Paulo: Martins Fontes, 1992. MANSELLI, Raoul. So Francisco de Assis. Petrpolis: Vozes, 1997. VAUCHEZ, Andr. A Espiritualidade da Idade Mdia Ocidental (Sc. VIII XIII). Lisboa: Estampa, 1995. 334

A institucionalizao da Santa S entre os sculos XI e XIII: uma leitura crtica


Leandro Duarte Rust*

om esta comunicao gostaria de compartilhar algumas de minhas reflexes sobre a histria institucional da Santa S entre os sculos XI e XIII. Reflexes ainda em curso e que, portanto, permanecem em aberto. A histria institucional do papado medieval h muito repousa desvalida nos interior de duas grandes vertentes historiogrficas. O primeiro e mais antigo destes fronts - hegemnico na primeira metade do sculo XX, mas ainda influente na dcada de 1970 - foi aquele que abrigou a histria institucional da Santa S, reunindo nomes como G. Barraclough e Bihlmeyer & Tuchle (BARRACLOUGH, 1972; BIHLMEYER & TUCHLE, 1964), historiadores empenhados em contemplar o papado em sua estruturao poltica e governamental. Eis uma literatura cuja marca distintiva vislumbrar a Cria romana em sua singularidade, realando as especificidades dos processos que a distinguiam face aos demais ambientes da Igreja Medieval: os autores dissecam a montagem dos departamentos que a compem, empregam grande flego no exame da composio de seus quadros funcionais; no esmiuar de sua rede tributria e legislativa... (GARCIA-VILLOSLADA, 1976; HUGUES, 1954; JACQUIN, 1948; LEFEBVRE, LE BRAS & RAMBAUD, 1965A; LEFEBVRE, LE BRAS & RAMBAUD, 1965B). Todavia, logo se fez ouvir a crtica de que se estes estudiosos nos apresentam aspectos histricos que individualizaram o papado, eles por vezes deram vazo a uma perspectiva assaz descritiva, formal, porventura seca, por demais presa simples exposio das engrenagens administrativas que moviam o papado ou s mincias de sua justificao intelectual por papas e cardeais. Postulado que conduziu A. Fliche a restringir as atuaes do papado sobre a sociedade medieval como intervenes essencialmente moralizadoras catalisadas pela luta das investiduras (FLICHE, 1976A; FLICHE 1976B), perspectiva seguida de perto por Knowles & Obolensky (KNOWLES & OBOLENSKY, 1974). Especialmente ilustrativas so ainda duas conhecidas obras de G. Le Bras (LE BRAS, 1976; LE BRAS, 1959) que parecem agraciar Cria romana a carga positivista da sociologia de durkheiminina, diferentemente de seus estudos sobre o catolicismo francs (LE BRAS, 1955-1956; LE BRAS, 1952). Reconhecendo tais limitaes, estudiosos ambientados nas dcadas de 1970 a 1990, apelaram a olhares considerados mais penetrantes e

Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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abrangentes (VAN ENGEN, 2002): alguns se inspiraram em um exame capaz de abarcar la relacin entre autoridad y sociedad (MOORE, 1989, p. 13); ou de alertar que the habit of separanting ecclesiastical history from secular history has tended to make everything ecclesiastical appear more rarefied than it really is (SOUTHERN, 1990: p. 360); de apresentar the institutions of the papal governmente in action (ROBINSON, 1996: p. vii-viii) ou de vasculhar a reao do papado ao grande fermento espiritual do sculo XII (BOLTON, 1983: p. 13; CONSTABLE, 1996. Ver ainda: DU JORDIN, 1998; GUTIERREZ, 1983; JOHNSON, 2001; VAUCHEZ, 1998; MORRIS, 1991; RAMOS, 1995; TELLENBACH, 1991; ULLMANN, 2003A). Para outros historiadores, atuantes desde a dcada de 1950, como M. Pacaut (PACAUT, 1957) e W. Ullmann (ULLMANN, 2003; ULLMANN, 1949), a histria institucional da Santa S medieval recobrou seu flego epistemolgico no momento em que os historiadores perceberam que esta engenhosa sofisticao das tcnicas pontifcias de governo era animada pela secular formulao de um iderio poltico cada vez mais pujante, ambicioso, audaz ao reivindicar para a Santa S a soberania sobre a Cristandade: o pensamento e o discurso polticos so assim convertidos em roda-de-proa das engrenagens institucionais, em seu centro gravitacional (ARQUILIRE, 1955; BURNS, 1993; CONGAR, 1970; CONGAR, 1997; DUFFY, 1998; GIERKE, 1987; SOUZA & BARBOSA, 1997). No outro flanco historiogrfico situaramos nomes filiados histria cultural, como J. Le Goff (LE GOFF, 1994; LE GOFF, 1995B). Trata-se de historiadores que, guiados por uma apreciao antropolgica, seguem as pistas de mentalidades, imaginrios e sensibilidades coletivas. Aqui o papado perdido de vista: ele parece liquefazer-se numa imensa populao clerical que compunha a Igreja em tempos medievais, como quiseram H. Martin e J. Paul (MARTIN, 1996; PAUL, 1988). Suas singularidades so dissolvidas no momento em que seus integrantes so recrutados, como fez A. Gurevitch, para atestar a personalidade do homem medieval (GUREVITCH, 1990), para ilustrar, como operou J. Delumeau, crenas coletivas sobre o pecado (DELUMEAU, 2003) ou para restituir, como props P. Aris, as imagens vigentes acerca da morte (ARIS, 1977; ARIS, 2003). Este olhar tambm v muito pouco de um contedo prprio s malhas institucionais do papado: ele as vislumbra como um palco em que os protagonistas so alteraes culturais, ao mir-las ele no busca se no o rastro das mentalits, o traado de bens simblicos que permeiam toda uma sociedade. Porm, se estas obras incorrem num mpeto homogeneizador e globalizante, elas detm o mrito de reconhecer a opacidade que encerra as transformaes histricas e que, portanto, se deve, muitas vezes, superar o que os homens reconhecem sobre si mesmos para alcanar a complexidade das ramificaes culturais que os envolvem e que projetam um poder performtico sobre suas aes. Na primeira perspectiva os sujeitos histricos so propriamente indivduos; idias e discursos; crculos, trajetrias e escalonamentos sociais. O faro do historiador o guia para a racionalidade do agente histrico ou para a atuao constitutiva de sua linguagem poltica na montagem, no funcionamento e na
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A INSTITUCIONALIZAO DA SANTA S ENTRE OS SCULOS XI E XIII: UMA LEITURA CRTICA

legitimao do aparato de governo movido pelo papado; persegue-se suas aes repressoras e as foras motrizes de seus instrumentos de dominao. J na segunda, os protagonistas so antes as atitudes mentais: suas profundezas sociais e holsticas, e seu papel na estruturao de relaes de poder e controle social. A Cria romana engolida por um mar de processos histricos cuja magnitude societria arrebata-a, convertendo seus integrantes em partes de um austero e coletivo homo simbolicus que se revela pela dilatada - e por vezes imprecisa - estatura de uma mentalidade clerical ou uma sensibilidade eclesistica. Em ambos horizontes, as ocorrncias propriamente institucionais, espectros do combatido fantasma positivista, parecem no merecer ateno em si mesmas, sendo exibidas como vis de realizao de outros processos e instncias histricas. Poderia se alegar que, se for tomado em considerao um quadro historiogrfico mais amplo, poder-se-ia constatar que a histria poltica esteira da histria institucional h muito se tornou alvo de uma ntida renovao epistemolgica que implica em sorver recortes temticos, conceitos e metodologias das cincias sociais em geral (BOURDIEU, 1989; CLASTRES, 2003; ELIAS, 2001; FALCON, 1997), uma tendncia que conta com a contribuio dos prprios medievalistas, cujos esforos fazem ressoar o pioneiro legado de M. Bloch (BLOCH, 1993), ainda que no estes tenham por objeto de estudos a Santa S ou mesmo a Igreja Medieval. Desta forma, a Histria Poltica foi convertida em Histria do Poder Poltico, de maior centro e profundidade (LE GOFF, 1990, p. 219). Todavia, quando os estudiosos alargaram os reinos da poltica em direo s presses sociais, sua cadncia cotidiana e sua teatralidade de um longo cortejo de imagens, smbolos, rituais, crenas e comportamentos, a face propriamente institucional do poltico parece ter sido, de maneira ainda mais enftica, deslocada do foco historiogrfico (BALANDIER, 1980; BALANDIER, 1982; BURKE, 1994; DUBY, 1992; DUBY, 1994; GEERTZ, 1991, KANTOROWICZ, 1998; MONGELLI, 1997; SILVA, 2003). Afinal, o historiador que se detm no institucional encarado como aquele que se contenta com a face meramente visvel do poltico, que deixa escapar a intricada e microscpica malha de poderes locais e disciplinares que trespassam a sociedade (FOUCAULT, 2002). Este o estudioso que expem a si mesmo ao risco de um encastelamento, de negligenciar as ligaes que conectam o poltico por mil vnculos, por toda espcie de laos, a todos os outros aspectos da vida coletiva (RMOND, 2003, p. 35). Os componentes institucionais de um aparato de governo so considerados auxiliares, secundrios, como instrumentos de ao desprovidos de contedo prprio, formas de organizao destinadas a satisfazer as necessidades de outros domnios da vida humana: utensiliagem elaborada para operar a realizao de algum poder ou princpio que lhe so exteriores (BOBBIO, 2004; STRAYER, 1989). So as engrenagens que pem em movimento as diretrizes do iderio poltico ou da mentalidade e, para o historiador, seu estudo deve ser precedido pelo exame das exigncias de esprito que lhes conferem vitalidade (GUENE, 1981). E exatamente a que quero enfocar minha crtica: minhas pesquisas tm, cada vez mais, me conduzido para a idia ainda carente de sistematizao e maiores investidas documentais de que a aparelhagem institucional montada pelo papado medieval entre 1050 e 1310 detm uma significativa densidade 337

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

cultural, uma maior robustez histrica do que aquela comumente reconhecida. Assim o advogo por acreditar que este processo histrico que pluralizou e sofisticou os departamentos, os postos hierrquicos e as regras de ordenamento da monarquia pontifcia medieval, incorreu tambm na produo de modalidades singulares de subjetivao dos agentes sociais. Dito em outros termos: refirome a elaboraes histricas mais astutas, sutis e de maior profundidade, como a criao de cdigos de sentido atravs dos quais a Santa S regulamentara comportamentos, orientara condutas, operara novas relaes de poder... Julgo insatisfatria, em se tratando do papado medieval dos sculos XI e XIII, uma postura por vezes recorrente na historiografia que insiste em caracteriz-lo como um importador de referenciais culturais de outros ambientes medievais, especialmente da espiritualidade monstica e do saber escolstico (PAUL, 1988), uma vez que acredito que a institucionalizao do papado medieval parece ter institudo poderosas, penetrantes e duradouras tramas simblicas plenas de disposies e coordenadas de ao. Tal proposta de apreciao da Santa S est ancorada em minhas constataes de que no referido perodo o processo de institucionalizao romano incorreu na fabricao de um singular arranjo para um dos mais densos, essenciais e perenes esquemas culturais (SAHLINS, 1990; SAHLINS, 2003) da existncia humana: uma representao do tempo. A temporalidade que encontrei dispersa ao longo das legislaes lateranenses de 1179 e 1215 - portanto, de dois grandes conclios capitaneados pela Cria romana - sugere que o papado dos sculos XII e XIII no apenas veiculou uma imago temporalis arredia s indicaes da historiografia, como recorreu a valores cronolgicos que os medievalistas apontam como contrrios aos de uma concepo eclesistica e medieval acerca do tempo. De maneira geral, os eclesisticos medievais surgem como prisioneiros de uma imagem arrebatadora do tempo. Sua apreciao da marcha cronolgica insistentemente descrita como impregnada de sagrado, de transcendente: a percepo da durao parece sempre assumir contornos csmicos e msticos. O decurso temporal surge revestido de qualificaes espirituais, de ressonncias sobrenaturais, a sucesso linear desencadeada no ato da Criao que, tendo a eternidade por pano de fundo, transcorre irreversivelmente para o Apocalipse, o fim dos dias. O tempo, na concepo arrogada aos clrigos medievais, era sinnimo de um enredo histrico universal e orientado para Deus (CARMONA FERNNDEZ, 2003, p. 41-51; FAURE & NADAL, 2005; GUREVITCH, 1990; LE GOFF, Jacques. 1995A; LE GOFF, 1995C; MARTIN, 1996; SCHMITT, 2001). Tempo teolgico. Tempo dos destinos celestiais. Tempo dos assuntos da alma. Tempo litrgico. Da, portanto, que entre as formas de expresso tidas como emblemticas desta representao do tempo encontremos a subjetividade da distentio anima de Agostinho de Hipona, as horas cannicas consagradas aos ofcios monsticos pela Regula de So Bento, o constante trnsito de espritos entre planos temporais descrito na Legenda urea de Jacopo de Varezze e a vertiginosa marcha bblica da histria que, na Chronica de Otto de Freising ou no Speculum Historiale de Vicent de Beauvais, desgua de Ado ao Juzo Final (ARIS, 1992; DAVRIL & PALAZZO, 2000; GILSON,
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1994; GILSON, 1936; GUENE, 1980; LWITH, 1991; SCHUBACK, 2000). Para o prelado medieval o tempo estaria plasmado numa intrincada cosmogonia, organicamente atrelado totalidade da criao como uma alegoria dos desgnios divinos, como uma imensa cascata de impresses que jorram do criador. O tempo seria uno, linear, mas absorvido por uma mirade de simbolismos: a um s flego se desvelaria itinerrio do esprito e preceptor da morte, punio dilacerante merecida pela transgresso admica e esteira da redeno, preldio dos suplcios infernais e horizonte do utpico... Morte, Milnio, Pecado, Alm... Eis alguns dos prismas reconhecidos pelos historiadores como prprios s maneiras pelas quais os clrigos medievais apreendiam o tempo (ARIS, 2003; BRAET & VERBEKE, 1996; COHN, 1981; COMTE-SPONVILLE, 2000; DELUMEAU, 1994; DOBRORUKA, 2004; DUBY, 2002; FRANCO JR., 1992; FRANCO JR., 1996; FRANCO JR., 1998; HULIN, 1985; LE GOFF, 2003; MORS, 2001; SCHMITT, 1999). Dissolvido na trama salvacionista que envolvia toda forma de vida, o tempo seria a maneira de existir das criaturas talhadas por deus. No se poderia control-lo e tudo ficaria nestes termos: prostrar-se a sua ao corrosiva ou expurga-la por meio de preces e penitncias. Alertas finitude e indigncia ontolgica com que a durao sela as criaturas, estes crculos clericais teriam convivido com uma nsia de desprezo pelo mundo terreno, terra de degredados do paraso (HUIZINGA, 1978; LRTORA MENDONZA, 1999). Assim, oprimido por um olhar hierofnico, o tempo na apreciao atribuda ao eclesistico medieval se encontraria tomado por uma ndole sacramental, escatolgica e csmica que lhe instilaria uma desvalorizao per si, uma repulsa por atributos corriqueiros, usuais como mensurabilidade e previsibilidade. Tempo inebriante. Misterioso. Inefvel. Medocre em praticidade, pouco afeito racionalizao, arrebatado pelo magnetismo do etreo e do sublime: na Idade Mdia no havia necessidade de valorizar e economizar o tempo, de medi-lo e conhecer-lhe. (GUREVITCH, 1975, p. 279), ou ainda, o tempo de uma economia ainda dominada pelos ritmos agrrios, sem pressas, sem preocupaes de exatido, (...) de uma sociedade (...) pouco capaz de esforos quantitativos (LE GOFF, 1995A, p. 62-68). Apenas os mendicantes e os escolsticos, identificados como vanguardas clericais, como segmentos eclesisticos mais progressistas ficam excludos desta viso arcaica e conservadora do tempo que incluiria, portanto, a prpria Santa S. Contudo, em meio s atas das assemblias eclesisticas realizadas no palcio de So Joo de Latro em 1179 e 1215 deparei-me com uma representao clerical de tempo peculiar, inclinada ao secular, ambivalente, partidria de valores profanos e selada pela hbil racionalidade com que a Cria romana atuava sobre a durao, valorizando-a ao valer-se dela como um instrumento funcional e controlvel de ao sobre os homens. Uma representao jurdica e governamental do tempo, modelada pelo discurso cannico e pela necessidade de otimizar as relaes de poder em que o papado estava imbricado. Enfim, uma temporalidade intimamente ligada aos rumos do vasto processo de institucionalizao que selou a histria da Santa S de 339

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ento: tal institucionalizao foi ao mesmo tempo produtora e produto desta representao de tempo (RUST, 2005). Ora, parafraseando uma clebre expresso de levistraussiana, poderia dizer que uma temporalidade pode ser encarada como indcio de uma alta temperatura cultural, pois se trata de uma elaborao multifacetada, polissmica, como um poliedro de incontveis faces e que no se encontra apenas nos relgios e calendrios, mas infiltra-se como uma rede tentacular por toda uma srie de domnios da vida humana, da senda do cotidiano aos domnios das leis, do poltico e do emprego da violncia. Nas justas palavras de Paul Ricouer: so inmeras as maneiras de fazer a histria que marcam ou selam o tempo (RICOEUR, 1975, p. 30), e que tornam sua percepo e vivncia um dispositivo essencial das relaes do homem com o mundo que o rodeia, vital para dotarse de identidade e orientar suas aes (BACZKO, 1985; BLANC, 1999; DOCTORS, 2003; ELIAS, 2000; HALL, 1996; NOWOTNY, 1992). Uma representao do tempo no uma semntica ou um cimento do poder poltico, mas uma de suas vias de estruturao. Portanto, a presena e a atuao desta temporalidade na montagem do maquinrio de governo da monarquia papal pode ser encarada como um lampejo de ntimas conexes existentes entre o poltico e o cultural na trajetria histrica da Cria romana. Tem-se a um forte indcio de que o institucional confeccionado pelo papado medieval nestes sculos decisivos possui dimenses historicamente mais extensas e espessas do que os estudiosos parecem habituados a admitir. Por certo que a institucionalizao do papado faz saltar aos nossos olhos a condio alcanada pela Santa S de uma majestosa e dispendiosa corte, inchada a cada pontificado pela aglomerao de servidores, dignitrios, ofcios, departamentos, tributos, de procedimentos cada vez mais especializados, de ordenamentos jurdicos cada vez mais refinados, de princpios de governo cada vez mais cobiosos... Mas deve-se permanecer igualmente alerta para esta outra face constitutiva desta aparelhagem institucional, aquela que comporta elaboraes mais vastas e, por isso mesmo, imperceptveis s conscincias dos agentes histricos: refiro-me a criao de referenciais culturais basilares, de peso existencial quase incomensurvel e de prolongamentos mais profundos na vivncia humana, inscritos com tinta quase invisvel nas aes e condutas de seus membros, tal como uma representao de tempo. No se trata de substituir os procedimentos poltico-administrativos por liames culturais, mas sim de perceber que estes so parte constitutiva daqueles. Desta forma, acredito que se faz necessria e ao mesmo tempo promissora uma renovao das abordagens deste percurso de anlises assaz desgastado que a histria institucional da Santa S entre os sculos XI e XIII. Deve-se estar atento a riqueza epistemolgica que podem representar os esforos empreendidos no sentido de manter-se o institucional em foco, e que enriquecer sua apreciao por meio de um apelo cauteloso interdisciplinaridade, notadamente Antropologia Histria, pode significar ao historiador o acesso a uma janela nica e demasiado profcua de compreenso do passado.
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Um rei, um reino, uma crnica: Afonso Henriques


Rodrigo da Silva Salgado*

elaborao desta comunicao est diretamente relacionada pesquisa que venho desenvolvendo junto ao laboratrio de Histria Medieval da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Medievo). Sob orientao da prof. Dr. Gracilda Alves. Este trabalho est intimamente ligado com uma problemtica que tenho levantado sobre o corpus documental acerca da construo do reino de Portugal e da ascenso ao poder de Afonso Henriques (1109-1185). , pois, atravs das sucessivas vitrias contra o muulmano na Guerra de Reconquista que o Condado Portucalense adquire gradativamente sua configurao territorial, e por meio da mesma que a construo do poder de Afonso Henriques se legitima. Em primeiro lugar, a Guerra de Reconquista para Portugal possua alm do sentido militar, um mais especificamente poltico. A vitria dos portugueses contra os invasores demonstrava a expresso do juzo de Deus, da vontade divina, assim como a proteo aos povos ibricos, especialmente, os lusitanos. E , precisamente, o sucesso de Afonso Henriques nesta guerra que o impe como o detentor de um carisma, fazendo dele um herdeiro de Afonso VI, tornandoo digno de portar a coroa de rei. Esta maneira de analisar os acontecimentos permite, igualmente, compreender o carter eminentemente guerreiro dos primeiros monarcas portugueses, pois os mesmos se impem, no conjunto dos reinos cristos, como sublimes chefes guerreiros que devem, certamente, a sua dignidade descendncia rgia, mas s pelo vigor militar se tornam dela verdadeiramente dignos. importante ressaltar que o tema central desta comunicao o de compreendermos como se deu a construo da figura de Afonso Henriques a partir dos modelos de rei da Idade Mdia, e para isto, decidimos utilizar a Crnica de El-Rei D. Afonso Henriques de Duarte Galvo, entre outras fontes como alicerce para estas tais analogias. Esta crnica foi publicada pela primeira vez, em 1726, por Miguel Lopez Ferreira e depois reeditada por Gabriel Pereira, na Biblioteca de Clssicos Portugueses em 1906, juntamente com os captulos que antes haviam sido suprimidos pelo Santo Ofcio. (GALVO, 1995, p. VII). De acordo com Tomaz da Fonseca, Duarte Galvo nasceu na cidade de vora em meados do sculo XV, e ao escrever sua crnica, desempenhou a funo de que o incumbiram, no apenas o rei, mas tambm a prpria corte de que fazia parte, e com ela, o ambiente nacional. (FONSECA, 1949, p. 382).
*Graduado em Histria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 344

UM REI, UM REINO, UMA CRNICA: AFONSO HENRIQUES

A tarefa de produzir historiografia fora uma espcie de servio pblico, onde os reis nomeavam um homem que pudesse, por intermdio da escrita, descrever os sucessos dos prprios reinados ou de seus imediatos antecessores, o cronista exercitava um cargo do Estado. Ao analisarmos o corpus documental percebemos que durante a Reconquista crist que o poder de Afonso Henriques se estabelece, pois esta soberania vinha-lhe sobretudo de uma idia; a de recuperar o territrio do Condado Portucalense das mos dos infiis e integr-lo Cristandade. A figura do monarca, devido a este ideal, acaba ligando-se ao armada, intimamente centrada no alargamento do espao fsico inicial do territrio de Portugal. Podemos afirmar que o sucesso do primeiro rei de Portugal adveio em larga medida do seu prestgio na guerra e da autoridade que esta lhe conferiu. Fosse em Portugal, Arago ou em Castela, os reis eram justificados por essa ao, e a extenso do seu territrio, sobre as terras retomadas aos muulmanos constitua apenas a prova da sua submisso a Deus e aos seus mandamentos. Esta concepo de poder, que igualmente uma justificao para os prncipes que o exercem, foi elaborada no decorrer do sculo XII e deve muito ao direito romano e noo de imperium. O rei era portanto o supremo chefe civil e militar da sociedade, representando o comandante em chefe das tropas convocadas, comando que na poca da reconquista assumia pessoalmente. Por muulmanos devemos entender, em Portugal, um conjunto plural de etnias, correspondendo a diferentes capacidades demogrficas e mesmo econmicas. Mulumanos eram, antes de tudo, aqueles que seguiam a F islmica. Todos estes grupos tnicos se distinguiam do ponto de vista sociobiolgicos, mas unia-os a identidade religiosa. ( MARQUES, 1996, p. 309) De fato, para alm das divergncias entre Portugal e Castela, todos os cristos do Norte da pennsula se identificavam na luta contra o invasor muulmano, participando de uma idia militar, religiosa e econmica, a Reconquista, sendo esta um mito unificador e uma realidade, fundando assim, simultaneamente, um conceito de poder e uma prtica deste, uma estruturao da sociedade em funo de critrios militares, a organizao de um espao que no era fechado ou definido, e uma viso especfica das relaes entre o cristo e seu Criador. importante definirmos claramente o significado de ser rei na Idade Mdia, pois o mesmo, de acordo com Jacques Le Goff, aparece como produto de uma ruptura e de uma inovao em matria poltica. (LE GOFF, 2002, p. 395). Sendo o regime monrquico medieval o resultado de um amlgama de heranas das realezas antigas. Porm, do ponto de vista hegemnico, a herana dominante desta construo deu-se de acordo com paradigmas bblicos. O ideal monrquico inspira-se sobretudo no Antigo Testamento, onde os idelogos cristos da Idade Mdia encontram os modelos reais individuais e uma teoria do bom rei. ( LE GOFF, 1999, p.345) O carter do rei cristo o aspecto mais novo e mais importante, sendo seu fundamento ideolgico residindo na passagem do politesmo antigo ao monotesmo. O rei a imagem de Deus( rex imago Dei), porm, com Cristo que o rei medieval desenvolve laos caractersticos, sendo representado na 345

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figura do Christus rex, a do rei messinico. Esta analogia sustenta a imagem de alguns reis medievais. Pois desta idia podemos encontrar uma de nossas convergncias com a construo do poder de Afonso Henriques, sendo este incumbido da tarefa de dar continuidade s conquistas e defesas dos territrios outrora conquistados por seu pai, o conde D. Henrique, das mos dos infiis e integr-los Cristandade. importante atentarmos para a passagem da batalha de Ourique onde esta idia messinica se apresenta explicitamente elucidada, pois as tropas de Afonso Henriques ao deparar-se com as de cinco reis mouros, de acordo com a crnica, so tomadas de medo e de receio da derrota devido a sua inferioridade numrica nesta batalha. Porm, nesta adversidade que o milagre se manifesta, pois ao perceber o abatimento de suas tropas, Afonso Henriques prontamente se ps a discursar com a finalidade de levantar os nimos de seus companheiros de armas, sendo este discurso baseado na justificao divina de sua vitria nesta batalha, pois na noite anterior batalha, de acordo com a crnica, Cristo lhe havia aparecido em viso e ele havia prometido a vitria contra os infiis na batalha.
Meus bos caualleiros, tenhamos ffee, mujta esperama em nosso Senhor: o dia de amanha, em que com sua graa uemeremos a batalha, sera de tamto prazer pra nos e nos apresemta tanta gloria e homrra pra o outro mumdo e pera este, que cuydamdo no premio sse faz ligeiro o trabalho. (GALVO, 1995, p. 54)

Certamente, a importncia atribuda a Ourique no cessou de crescer desde o momento da batalha. Em torno dela se foram tecendo uma srie de relatos maravilhosos, destinados a conferir-lhe um significado simblico. Esta propenso para mitificar o acontecimento militar resulta de se pretender lig-lo fundao da nacionalidade portuguesa, por associ-lo aclamao de Afonso Henriques como rei. Podemos perceber que esta aclamao no totalmente inverossmil e que pode explicar a sua exaltao sobre o pavs, o qual foi colocado sobre o tmulo do rei, inspirando as armas reais portuguesas. Destas passagens, percebemos a construo de um discurso imbudo de uma retrica caracterstica das monarquias crists, pois a associao destes fatos veio a suscitar a necessidade de uma interveno divina que demonstrasse o seu sentido transcendente e que mostrasse a funo de Afonso Henriques como o enviado por Deus para libertar as terras portucalenses do jugo dos inimigos da f e elev-las categoria de um reino independente. Outra caracterstica tradicional de Cristo, vigente na Idade Mdia, a dele como mdico sustentando a crena no rei taumaturgo. A partir desta idia, devemos ressaltar a clssica obra de Marc Bloch Os Reis taumaturgos, onde o autor se dedicou ao estudo de um rito singular: a cura, por meio do toque de mos, das escrfulas, ou seja, a adenite tuberculosa representada pelas inflamaes dos gnglios linfticos provocadas pelos bacilos da tuberculose. (BLOCH, 2005, p. 51). Bloch partiu do pressuposto de que os reis e as rainhas da Inglaterra e da Frana no possuam o poder de cura e prosseguiu analisando porque essa
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iluso coletiva, como a denominou, logrou persistir por tanto tempo. De acordo com Bloch, o carter sagrado dos monarcas provinha da uno, rito este proveniente do Antigo Testamento pelos quais os reis eram considerados personagens sagradas e este aspecto sobrenatural era marcado com uma cerimnia de sentido bastante claro: quando o soberano ascendia ao trono, certas partes de seu corpo eram ungidas com um leo previamente abenoado: o leo com o que eram ungidos os bispos. O autor ressaltou o fato de as pessoas esperarem um milagre. Se os sintomas da doena desaparecessem, elas consequentemente davam o crdito ao rei. Por outro lado, se os sintomas persistissem, significava apenas que o enfermo precisava ser tocado pelo rei outra vez. Ao analisarmos as crnicas relacionadas a Afonso Henriques, percebemos que no h a prefigurao de um monarca com poderes taumatrgicos, pois, a questo da uno estava ausente na monarquia portuguesa. A partir destas crnicas observamos que a luta contra o infiel que justifica o seu poder perante todo o reino de forma incontestvel. O simbolismo tipolgico caracterstico das crnicas rgias, que faz a correspondncia a cada personagem ou acontecimento do mundo contemporneo uma outra personagem ou acontecimento modelo no Antigo Testamento, favorece esta construo ideolgica. Para apresentar um modelo elucidativo desta afirmao, seria importante ressaltar a conquista de Santarm, onde a partir da crnica e do relato do prprio Afonso Henriques percebemos explicitamente um discurso construdo a partir desta vitria comparando sua conquista com a de Josu conquistando Jeric.
Dou a Deus dos eeos mujtos louuores amte cujos olhos todallas cousas sam sabydas e conhecidas [...] serem pello seu poder derribados em outro tempo os muros de Jerico [...] em comparaam da piadade e misericrdia que lhe aprouue fazer commiguo, em me dar huu tam forte luguar, tomado com tam pouca jemte. (GALVO, 1995, p. 118)

De fato, a conquista de Santarm descrita pela fonte foi uma operaosurpresa de sucesso, apesar de seu difcil acesso; parece de tal modo rpida e simples que custa a crer pudesse ter sido executada sem o auxlio de alguns habitantes da cidade, fato este que as crnicas e os relatos no nos indicam, pois nesta poca todo o al-Andaluz sofria graves tenses devido sua fragmentao. O rei medieval no se contenta em ser aquele que concentra em sua pessoa todos os poderes, deve concentrar tambm todas as virtudes. A esse modelo foram consagradas, do sculo IX ao sculo XIII, obras caractersticas, os chamados Espelhos dos Prncipes. Os clrigos, autores destes tratados, tinham por objetivo evitar que o carter sagrado dos reis se tornasse um carter divino ou sacerdotal da funo real. O rei, por sua vez, no devia ser mais do que o eleito indicado por Deus, aquele que recebe a uno da sagrao na tradio crist. Nessa vontade dos clrigos de afastar o rei da condio sacerdotal, observamos que a Igreja do Ocidente medieval tinha empenho em obter o compromisso do rei em professar a obedincia e defesa da f crist, enfim, pr 347

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seu poder a servio da Igreja e de toda a Cristandade. A limitao dos poderes do rei devia impedi-lo de se tornar um tirano, tinha, pois, deveres para com Deus, primeiro, depois quanto aos sacerdotes e Igreja, quanto aos seus sditos, quanto a seu povo. O captulo XVII do Livro de Deuteronmio constitui um importante espelho dos prncipes bblicos que muito inspirou os prncipes medievais, ao analisarmos seus versos percebemos um manual cuidadosamente explicado de como um rei eleito por Deus deve portar-se em relao ao matrimnio, s riquezas e s Leis.
Ser tambm que, quando se assentar sobre o trono do seu reino, ento, escrever para si um traslado desta lei num livro [...] E o ter consigo e nele ler todos os dias da sua vida, parta que aprenda a temer ao Senhor, seu Deus, para guardar todas as palavras desta lei e estes estatutos, para faz-los. (BBLIA SAGRADA: Deuteronmio XVII, v 18-19)

O Policraticus de Joo de Salisbury desempenhou um papel fulcral do ideal e da prtica monrquica. Em alguns captulos de sua obra, o mesmo desenvolveu sua doutrina do rex imago aequitatis, metfora do rei expressa como imagem de equidade e justia, pois o autor tentava resolver algo que parecia contraditrio, pois ao prncipe era atribudo o poder absoluto, porm, o mesmo encontrava-se sob limitao da prpria lei. Que o prncipe, embora no esteja limitado pelas amarras da Lei, , contudo, servo da Lei, bem como da Equidade; que ele portador de uma pessoa pblica e que derrama sangue sem culpa. (KANTOROWICZ, 1998, p. 76) Joo de Salisbury no rejeitava a validade essencial da mxima do Direito Romano que proclama o prncipe como legibus solutus, pois concebe o mesmo como livre das amarras da Lei, porm, no quer dizer que esteja autorizado a praticar o mal. Est livre das amarras e restries da Lei, como deve estar livre das algemas do pecado. (KANTOROWICZ, 1998, p. 76) Nas questes discutidas em sua obra, Joo de Salisbury est interessado na persona publica do rei, noo esta introduzida do Direito Romano e na qual se articularia a teoria poltica a partir da Baixa Idade Mdia. O rei atua como uma persona publica. O mesmo voltado pra as questes pertinentes utilidade pblica, tornando-se aequitatis servus est princeps, ou seja, o prncipe servo da equidade. Esta imagem expressa pelo conceito de persona publica contm a distino entre o rei como pessoa pblica e como uma pessoa particular. E como pessoa pblica, ele ao mesmo tempo senhor e servo da Lei. Podemos dizer que o rei para Joo de Salisbury no um ser humano no sentido comum. De acordo com o autor, ele perfeio, desde que chegue a ser rei e no tirano. O rei personifica, em um novo sentido jurdico, a idia de Justia, que em si mesmo, est sujeito Lei e, no entanto, est acima dela, pois ele o fim de toda Lei. No o rei, mas sim a Justia que reina por meio do mesmo da qual,
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por sua vez, ele se torna seu instrumento. Ao analisarmos a problemtica da formao nacional do ocidente ibrico, podemos verificar que o princpio do sculo XII o momento crucial para a consolidao dos reinos. Assim, podemos dizer que s possvel falar propriamente de nacionalidades na Pennsula ibrica a partir do sculo XII. Antes disso, de acordo com Jos Mattoso, tnhamos uma superestrutura que prolongava a autoridade rgia sobre todo o territrio leons, mas se apoiava em centros de poder com uma influncia superficial sobre os nveis inferiores. S a partir do momento em que se forma a aristocracia senhorial, se pode falar propriamente de uma relao entre o poder monrquico e a organizao social do espao. (MATTOSO, 1987, p. 21). importante salientar a devida importncia que a luta contra o muulmano teve na independncia do Condado Portucalense, pois, ao contrrio das teses tradicionais, as disputas entre Portugal e Leo, apesar de serem freqentes, no passavam de meros conflitos de fronteiras, quando se disputavam algumas terras e castelos, se exigiam juramentos, se trocavam filhas ou irms para garantir o respeito de compromissos mtuos, mas no houve invases muito profundas em territrio inimigo nem qualquer propsito srio de aniquilar o adversrio ou conquistar todo o reino, portanto, as guerras nacionais antes do sculo XIV se parecem muito mais com simples lutas de senhores feudais do que com as guerras modernas. Portanto, conclumos que a Guerra de Reconquista possui um verdadeiro sentido unificador de todo o territrio do Condado Portucalense e precisamente a vitria de Afonso Henriques neste empreendimento, assim como sua rede de estratgias polticas e de poder, que o reconhece como o primeiro rei de Portugal, sendo esta legitimao proveniente do seu prestgio na guerra e da autoridade que ela lhe conferiu, sempre unindo a figura do monarca a esta ao armada. A ascenso de Afonso Henriques ao trono portugus representava o aparecimento de um novo rei, destinado a tomar na Cristandade um lugar de relevo, amalgamando a figura do rei, da guerra e de um reino.
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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Condado Portucalense Crise do Sculo XIV. In: Nova Histria de Portugal. Lisboa: Presena. 1996. V. III. MATTOSO, Jos. A nobreza medieval portuguesa. A Famlia e o Poder. Lisboa: Estampa. 1987. ___. (Org.) Jornadas luso-espanholas de Histria medieval, 2. Actas... Porto: Centro de Histria da Universidade de Porto.1987. V I. ___. Histria de Portugal. Lisboa: Crculo de leitores. 1992. V. I e II. TENGARRINHA, Jos. Histria de Portugal. Bauru: EDUSC, 2001. ULLMANN, Walter. Historia del pensamiento poltico en la Edad Media. Barcelona: Ariel. 1999.

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A morte e o mar: Mendinho e Manuel Bandeira


Henrique Marques Samyn*

esse ensaio, pretendemos realizar uma breve anlise comparativa entre a nica cantiga que nos foi legada pelo jogral galego Mendinho, a cantiga de amigo Sedia-m eu na ermida de San Simin, e a Cantiga de Manuel Bandeira, de clara feio medievalstica. Comearemos tratando das barcarolas na lrica medieval, gnero potico no qual se insere a cantiga de Mendinho e com o qual a poesia de Bandeira mantm explcito dilogo. Por fim, apresentaremos anlises das cantigas de Mendinho e de Bandeira, ressaltando em que aspectos essas composies podem ser articuladas. As cantigas de amigo galego-portuguesas constituem a verso, nesta lngua, das canes de mulher medievais, de resto presentes em vrias outras lnguas europias (cf. BREA & GRADN, 1998, p. 9). O que caracteriza tais canes a presena de uma voz lrica que fala sobre sua condio pessoal, seus sentimentos e aflies, comumente por conta de um namorado (amigo) que est longe e que no sabe quando regressar. No caso galego-portugus, sabemos que esse eu lrico feminino sempre produto de um fingimento, uma vez que apenas composies de autoria masculina chegaram at ns. As barcarolas ou marinhas constituem um subconjunto das cantigas de amigo que tm como cenrio o mar ou, ocasionalmente, rios. So cantigas notveis sobretudo por serem exclusivas da lrica galego-portuguesa; sendo as cantigas de amigo aquelas que, dentro do campo lrico medieval, mais explicitamente demonstram a presena de um substrato popular ainda que no de uma poesia elaborada pelo povo, como destacou Giuseppe Tavani (2002: 194-195), ao menos de elementos provenientes de uma cultura popular pr-trovadoresca , so produto de uma gente que foi criada beira-mar, o que inevitavelmente fez com que a vida martima se tornasse parte de seu temrio potico, como notou Segismundo Spina (1996, p. 369). Jogral galego que teve seu perodo de atividade, provavelmente, na segunda metade do sculo XIII, acerca da vida de Mendinho nada conhecido; ademais, a ambigidade de sua colocao nos cancioneiros dificulta o estabelecimento de sua cronologia (Cf. OLIVEIRA, 1995, p. 156). Transcrevemos abaixo sua cantiga, considerada por vrios estudiosos uma das mais belas do cancioneiro galego-portugus singular, como logo veremos, em muitos aspectos (Brea op. cit., p. 662, 2 vol.):

*Doutorando em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Sedia-m eu na ermida de San Simin e cercaron-mi-as ondas que grandes son. Eu atendend o meu amigu ! E verr? Estando na ermida, ant o altar, cercaron-mi-as ondas grandes do mar. Eu atenden[d o meu amigu ! E verr?] E cercaron-mi-as ondas que grandes son: non ei [i] barqueiro nen remador. Eu [atendend o meu amigu ! E verr?] E cercaron-mi-as ondas do alto mar: non ei [i] barqueiro nen sei remar. Eu aten[dend o meu amigu ! E verr?] Non ei barqueiro nen remador: morrerei [eu], fremosa, no mar maior. Eu aten[dend o meu amigu ! E verr?] Non ei [i] barqueiro nen sei remar: morrerei eu, fremosa, no alto mar. Eu [atendend o meu amigu ! E verr?]

Em uma leitura literal, a cantiga trata de uma menina que, estando na igreja de So Simio (ou Simo: a forma Simin intermediria cf. FERRO RUIBAL, 1992, p. 488), onde lamenta a ausncia de seu amigo, v-se de sbito cercada pelas ondas do alto mar. Sozinha na ilha, no havendo por perto barqueiro nem remador, e no sabendo ela mesma como remar, a situao torna-se cada vez mais dramtica: ser seu destino morrer no mar maior, ainda jovem (fremosa), sozinha e abandonada? Essa cantiga de Mendinho vem recebendo, durante o tempo, vrias leituras e interpretaes que, de modo geral, podem ser inscritas em duas categorias: de um lado, as leituras em superfcie, que vem na cantiga uma situao literariamente real; de outro lado, as leituras em profundidade, que enfatizam as possveis dimenses alegricas e psicolgicas da cantiga. As leituras em superfcie da cantiga de Mendinho partem do pressuposto de que a composio visa descrever uma situao literariamente real, ou seja: a provvel morte no mar da solitria menina que aguardava por seu namorado. Trata-se de uma imagem forte que, como veremos, muito bem resolvida literariamente, razo pela qual deve-se evitar entender que a expresso leitura em superfcie encerre qualquer sentido pejorativo. Um bom exemplo desta alternativa de leitura nos dado por Gonzlez Prez (1997). Evitando interpretar simbolicamente qualquer elemento presente na cantiga, esse autor limita-se a procurar extrair todo o potencial dramtico da situao descrita na composio (p. 41-43; trad. nossa):
Conforme avanam as estrofes, a situao vai tornando-se mais 352

A MORTE E O MAR: MENDINHO E MANUEL BANDEIRA dramtica, visto que as ondas crescem, o mar torna-se mais bravo, e no h na ilha barqueiro, tampouco remador que a leve [a menina] para a terra firme (...). A tragdia aumenta nas duas ltimas, uma vez que a moa percebe que morrer fremosa (mais que formosa, aqui devemos entender jovem, no melhor da vida), levada pelo mar maior, e logo seu corpo ser arrastado pelas ondas at o alto mar (...). Mas no perde a esperana de que chegue o amado e a salve: eu atendend o meu amigo...

Pozo Garza (1998, p. 226-227) apresenta, em sntese, os elementos que se destacam nesta opo de leitura: primeiro, o prenncio da ameaa das ondas, enquanto a enamorada menina esperava na ilha; depois, o despertar do medo que, aos poucos, cresce, acompanhando o movimento das ondas e criando uma ciso na conscincia da jovem: regressar terra ou continuar espera do amado? Por fim, o pressentimento da morte no mar maior o que leva trgica percepo, pela menina, de que o sacrifcio inevitvel. As leituras em profundidade, por sua vez, nascem fundamentalmente de uma desconfiana: da conjectura de que a cantiga de Mendinho no se esgota na descrio de uma cena, e que por isso uma interpretao baseada na literalidade deixa de perceber um certo sentido oculto. Ramn Pena (1998, p. 78), em uma interpretao de fundo psicolgico, coloca em dvida a existncia mesma de um amigo. Ainda que de fato a menina esteja isolada na ilha, cercada pelo mar, ser que corre de fato risco de vida, ou que realmente espera um namorado que poderia salv-la? Tal leitura concentrase em uma interpretao particular de dois versos. Em primeiro lugar, h a pergunta que encerra o refro E verr? , que para ele pode ser entendida no com relao a um namorado real, mas com relao prpria existncia de um namorado: Vir este? Onde estar? Existir realmente um amigo? A partir desta leitura, Ramn Pena concebe que tambm o verso morrerei eu, fremosa, no mar maior possui um outro sentido, hiperblico: no se trata de um risco efetivo, mas de um chamado desesperado pelo namorado, real ou no, que ali deveria estar e que no apareceu. Nesta leitura, a fora da cantiga deriva de sua acuidade psicolgica; em outras palavras: do realismo com que espelha o desespero de uma adolescente que, sozinha e carente, procura desesperadamente por uma presena amiga. Tambm Pozo Garza fornece uma possibilidade de leitura em profundidade igualmente interessante, ao propor uma interpretao simblica relacionada descoberta da sexualidade pela menina (op. cit., p. 230-231). Nesta interpretao, o santurio de So Simio simbolizaria a inocncia virginal e a proteo contra a sensualidade, enquanto as ondas representariam a paixo e o desejo: se as ondas crescem sem controle, porque o desejo torna-se cada vez mais forte e mais incontrolvel. A menina v-se, ento, em conflito: que fazer? No h ningum para ajud-la (nen hei barqueiro nen remador); no tem, por si mesma, foras para lutar contra violncia da paixo (nen sei remar). A menina d-se conta, na espera do amigo, que fatalmente vai se entregar sem reservas ao amor (ondas do alto mar). Conclui-se, por conseguinte, que a cantiga fala de um sacrifcio da virgindade, que enfim sucumbir fora de um desejo incontrolvel. 353

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Tendo analisado a cantiga de Mendinho, voltemos agora os olhos ao poema de Manuel Bandeira , que transcrevemos (BANDEIRA, 1974, p. 230): CANTIGA
Nas ondas da praia Nas ondas do mar Quero ser feliz Quero me afogar. Nas ondas da praia Quem vem me beijar? Quero a estrela-dalva Rainha do mar. Quero ser feliz Nas ondas do mar Quero esquecer tudo Quero descansar.

Essa cantiga de Bandeira, coligida por Maleval em sua antologia de poesia medievalista brasileira (2002), apresenta de fato vrias similaridades com as poesias medievais, tanto por conta do ttulo quanto por conta de alguns recursos poticos utilizados, como o paralelismo semntico utilizado nos versos Nas ondas da praia e Nas ondas do mar e a utilizao de um recurso similar ao leixa-pren, a que faremos referncia mais adiante. Ao iniciar a anlise, logo percebemos que no podemos aplicar aqui as categorias de leitura utilizadas na cantiga de Mendinho, visto que uma leitura em superfcie do poema de Bandeira no nos diria praticamente nada. H dois motivos pelos quais isso ocorre. Em primeiro lugar, a prpria estrutura da poesia de Bandeira apenas muito vagamente sugere uma situao, sem no entanto conceder elementos para a percepo de cena alguma: apenas sabemos que o poeta est em uma praia; no sabemos, todavia, o que h nessa praia, nem por que o poeta l est. Em segundo lugar, de Bandeira ns no s dispomos de uma vasta quantidade de material biogrfico, algo indisponvel no caso do jogral galego, como sabemos que toda a melhor poesia de Bandeira profundamente autobiogrfica de modo que a considerao da cantiga a partir desses dados algo a que no podemos nos esquivar. Com isso em mente, retornemos cantiga, buscando realizar uma leitura em profundidade a partir do repertrio de dados biogrficos de que dispomos acerca de Manuel Bandeira. Observamos, j nos versos iniciais do poema, diferenas importantes com relao cantiga de Mendinho. Em primeiro lugar, o tom confessional do poema nos leva a suspeitar de uma identificao da voz lrica com a voz do prprio poeta; no estaramos, portanto, diante de uma voz fingida, como na cantiga de Mendinho, mas sim diante de um poema no qual o poeta se desnuda no texto literrio. Por enquanto, trata-se meramente de uma impresso que, no entanto, se confirmar nas ltimas estrofes, como logo veremos. Uma segunda observao relevante que, se na cantiga de Mendinho,
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A MORTE E O MAR: MENDINHO E MANUEL BANDEIRA

encontramos uma menina que se via cercada por ameaadoras guas das quais desejava, em vo, fugir, na poesia de Bandeira o poeta deseja aproximar-se das guas: ele quer banhar-se naquelas guas, e mais: quer se afogar nelas. E se deseja faz-lo porque h, nesse mergulho, uma promessa de felicidade; em verdade, a prpria felicidade identificada ao afogamento, como vemos nos versos finais da primeira estrofe. A situao apresentada, portanto, precisamente o oposto da situao que encontramos na cantiga de Mendinho: se naquela a morte nas guas representava o trgico encerramento da juventude, nesta o afogamento nada tem de trgico; representa, antes, uma forma de se alcanar a felicidade. A segunda estrofe , dentre todas, a mais avessa a uma leitura em superfcie. Para compreend-la melhor, separemos o quarteto em duas metades: a primeira traz, em dois versos, a pergunta: Nas ondas da praia / Quem vem me beijar?; a segunda encerra uma espcie de resposta: Quero a estrela-dalva / Rainha do mar. No tocante pergunta, podemos interpret-la como anloga ao chamado da adolescente na cantiga de Mendinho: assim como aquela perguntava se seu amigo viria, aqui o poeta indaga: quem vem me beijar? Trata-se por outro lado de uma retomada do tema da solido, to comum na obra de Bandeira, enraizada, indubitavelmente, na tsica a doena que, como observou Mrio de Andrade, marcou singularmente a vida de Bandeira: Nos outros poetas tsicos que o Brasil j teve a doena foi apenas um acidente. Pra Manuel Bandeira uma data histrica. Nos outros a doena no diminuiu nem aumentou as caractersticas pessoais. Em Manuel ela decidiu de Manuel. (1987, p. 73). Devido tuberculose, o poeta teve de habituar-se a uma vida de freqentes repousos e confinamentos, zelos e precaues, o que ao fim, afirma Ivan Junqueira, levou-o a adaptar-se ao silncio e solido (BANDEIRA 1980, p. 197). Solido que, por conseguinte, habita a alma do poeta; interessante deslocamento com relao menina de Mendinho, uma vez que nesta a solido era aparentemente fruto de uma situao, estando relacionada ilha na qual se situava. Bandeira, por outro lado, estava isolado na ilha de sua prpria existncia. Na segunda metade da estrofe, o poeta d sua resposta: deseja ser beijado pela estrela-dalva / Rainha do mar. O que interessante notar nesses versos que aquela que o poeta deseja, sendo rainha do mar, habita dentro das guas nas quais deseja se afogar. No h, portanto, separao alguma entre o amor ansiado e o mar que cerca Bandeira; se a jovem da cantiga de Mendinho esperava por um amado que viesse salv-la das guas hostis, a voz lrica na Cantiga bandeiriana sabe que sua amada no apenas vive nas guas, como tambm soberana deste territrio. H aqui, por conseguinte, uma nova inverso da cantiga do jogral galego. Com isso, chegamos estrofe final. Bandeira a inicia recuperando versos da primeira estrofe, num recurso que segue o mesmo princpio do leixa-pren medieval ou seja, a subordinao de uma estrofe a outra anterior a partir da repetio de versos , mas que no aqui realizado da mesma forma como o realizavam os medievais (Cf. SPINA op. cit., p. 388): Quero ser feliz / Nas ondas do mar, diz o poeta, retomando o anseio pela felicidade que pode ser 355

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

considerado a essncia do poema. E, nos versos finais da cantiga, Bandeira sintetiza essa felicidade, explicitando por que ela poderia ser alcanada pela via do afogamento: Quero esquecer tudo / Quero descansar. Essa concepo bandeiriana da morte como descanso algo que surge no Bandeira maduro e que se ope viso negativa da morte que o poeta mantinha em sua juventude. Se, enquanto jovem, o poeta via a morte com angstia e terror, como encerramento precoce e absurdo de sua existncia, o Bandeira maduro, no dizer de Ruy Espinheira, pode sentir medo, mas tambm receber a morte com um sorriso e uma alegre saudao (2004, p. 216). isso, de fato, o que o poeta diz em Consoada (op. cit., p. 307), poema em que recebe a chegada da Indesejada das gentes com A mesa posta, / Com cada coisa em seu lugar. Se na cantiga em Mendinho nos deparamos uma morte inesperada que tolhia uma vida florescente, na poesia de Bandeira encontramos uma morte que, esperada e desejada, traz o descanso leniente e derradeiro. Embora desconheamos qualquer vnculo deliberado entre as cantigas do jogral galego e do poeta brasileiro, sem dvida interessante perceber como um dilogo entre as duas composies resulta frutfero e pertinente. Por outro lado, no se reduzindo o sentimento lrico ordem da conscincia, h que se considerar que a inspirao, intrnseca sensibilidade humana, permanece essencialmente para alm do tempo e do espao e, nesse sentido, o mar que inspirou Mendinho pode muito bem ser o mesmo mar que inspirou Bandeira.
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Restries e normatizaes de condutas sexuais nas Atas do II Conclio de Sevilha e do IV Conclio de Toledo
Michelle de Oliveira Santos*

urante a Idade Mdia, o corpo era visto por alguns segmentos eclesisticos como uma priso para a alma. Estes acreditavam que a encarnao a humilhao de Deus (LE GOFF, 1985, p. 59). Essa viso negativa do corpo se agravava ainda mais, se a pensarmos em termos sexuais. Por essa razo, a ateno dedicada ao corpo pelas autoridades religiosas mostrou-se uma preocupao corrente em seus escritos. A intensa atividade conciliar existente na Pennsula Hispnica, principalmente a partir dos sculos VI e VII,1 favoreceu a produo de uma srie de normatizaes a respeito das prticas e condutas sexuais das populaes da regio referida, no s de clrigos como tambm de leigos. justamente com essas restries a aspectos associados ao controle da sexualidade que iremos trabalhar, ressaltando trs elementos: casamento, castidade e a relao com as mulheres. Para tal, ser feita a anlise de duas atas conciliares, produzidas na Pennsula Hispnica, no decorrer do sculo VII, entre os anos de 619 e 633. So respectivamente o II Conclio de Sevilha e o IV Conclio de Toledo, ambos presididos pelo bispo metropolitano Isidoro de Sevilha. Historiografia A sexualidade um tema muito normatizado desde as sociedades antigas, principalmente porque as estruturas de parentesco e de organizao social esto embasadas na codificao das relaes sexuais. Contudo, o prprio discurso a respeito do tema sempre foi muito restrito, ou seja, sem uma ampla discusso sobre o assunto, e controlado por homens. No caso da Idade Mdia, principalmente por eclesisticos, que desde os primeiros sculos do cristianismo se encarregaram da criao de uma moral crist, que estaria associada a ideais de salvao do corpo e da alma, como nos mostra o historiador Jacques Rossiaud (ROSSIAUD, 2002, p. 477). A construo dessa moral teve como alicerce textos mdicos e filosficos clssicos, entre os quais podemos destacar escritos de Galieno e Aristteles. Entretanto, esses documentos no fazem referncias noo de que o corpo e
*Graduanda em Histria na Universidade Federal do Rio de Janeiro. 358

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o prazer no estariam relacionados a algo pecaminoso: O pessimismo sexual na antiguidade deriva, no como ocorreria depois no cristianismo, da maldio do pecado e da punio a ele, mas sobretudo de consideraes mdicas (RANKE- HEINEMANN, 1996, p. 21). Nota-se que existe uma preocupao maior no que toca questo da sade; j que se acreditava que o ato sexual fosse prejudicial, devido ao desgaste fsico causado por ele. A moral crist se firma com os escritos dos pais da Igreja Ambrsio, Jernimo e Agostinho que, pelo fato de terem sido monges ou influenciados pelo movimento monstico, ressaltam os valores ascticos com relao sexualidade. E no pensamento de Santo Agostinho que o pecado aparece como algo que est vinculado concupiscncia da carne: em seu conceito de pecado original. Com isso a idia de sexo associado ao pecado concretiza-se no pecado original, como tambm a noo de que o homem j nasce condenado, principalmente ao pecado da carne. Como demonstram Carla Casagrande e Silvana Vecchio: todo homem nasce contaminado pelo pecado no qual gerado, contaminado no corpo e na vontade, submetido aos impulsos da carne (CASAGRANDE e VECCHIO, 2002, p. 340). Porm, o pecado original nem sempre foi visto como carnal. Segundo o historiador Jean-Claude Schmitt, a falta cometida por Ado e Eva no seria em relao ao corpo, mas sim alma. Considerando-se que este seria o orgulho somado desobedincia da criatura com relao ao Criador (SCHMITT, 2002, p. 255). De acordo com Jacques Le Goff, o pecado original foi transformado pelo cristianismo medieval em sexual, que est presente no pensamento medieval como um legado da tradio monstica (LE GOFF, 1985, p. 59). Em outro artigo, o autor nos mostra como a tradio monstica associa os dois pecados carnais: a luxria e a gula, quando escreve: A luxria nasce muitas vezes do excesso de alimento e de bebida (LE GOFF, 1992, p. 155). Esse desprezo pelo sexo se torna maior no tocante ao corpo feminino, que se julgava ser uma oficina do diabo, templo de tentaes. Como cita Lester K. Little, em seu texto sobre monges: as mulheres encarnavam a corrupo criminal (LITTLE, 2002, p. 227). Esta imagem deve-se, sobretudo, a Eva. Os documentos utilizados sero analisados a partir do mtodo de anlise do discurso presente no texto de Ciro Flamarion Cardoso que afirma: um documento sempre portador de um discurso (CARDOSO, 1997, p. 377). Nessa perspectiva devem ser consideradas as condies histricas, sociais e polticas do contexto em que est inserido este discurso. De acordo com Carlo Ginzburg, uma crtica hostil pode transmitir testemunhos sobre prticas ocorridas numa determinada sociedade (GINZBURG, 1997, p.20). Concordando com esta viso, utilizaremos o mtodo indicirio proposto por ele, ciente de que o historiador deve ler nas entrelinhas do documento, a fim de que possa encontrar algo que est implcito no texto. A opo pelo corpus documental referido deve-se ao fato deste nos permitir o estabelecimento de comparaes. Esta possibilidade torna-se especialmente vivel, na medida em que tais documentos fazem parte de um mesmo corte temporal e possuem carter normativo. 359

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II Conclio de Sevilha O II Conclio de Sevilha foi um snodo local, realizado no ano de 619 e presidido por Isidoro de Sevilha. Entre os seus participantes havia um total de nove bispos, alm da presena laica de altos dignitrios civis pertencentes administrao territorial. Nota-se uma forte influncia do romanismo jurdico em suas atas; j que utilizava como punies a problemas disciplinares, solues jurdicas. Neste evento, tambm foram discutidas questes relativas a disputas territoriais entre bispos. Uma outra questo muito debatida refere-se heresia dos acfalos. Estes negariam a existncia das duas naturezas em Cristo: a humana e a divina. O conclio condenou tal heresia e confirmou as duas naturezas de Cristo, citando textos bblicos e escritos dos Padres da Igreja. Cabe ressaltar que, apesar dos vrios temas tratados neste snodo, interessa-nos especialmente o fato de que, entre seus treze cnones, dois esto relacionados a aspectos da sexualidade. IV Conclio de Toledo J o IV Conclio de Toledo ocorreu no ano de 633, e pelo fato de ter sido uma assemblia geral contou com a presena de sessenta e nove clrigos, dos quais sessenta e dois eram bispos. Assim como o II conclio de Sevilha tambm foi presidido pelo bispo metropolitano Isidoro de Sevilha. A assemblia debateu questes referentes disciplina clerical e prtica correta de ritos. Demonstrou uma espcie de alinhamento da Igreja Visigoda Igreja Catlica Romana.10 O conclio tambm tratou da periodicidade destes eventos. A partir de ento, ocorreu a institucionalizao dos conclios gerais. Suas atas possuem um total de setenta e cinco cnones, dos quais dez so dedicados sexualidade. Casamento A primeira referncia feita a restries ao casamento no II Conclio de Sevilha encontra-se no cnone IV. Neste so tratadas questes relativas a ordenaes ilcitas de padres que tinham se casado com vivas: Se haban dado algunas ordenaciones ilcitas, de tal modo que algunos se haban casado com viudas haban sido ordenados para el ministerio de diconos (II Conclio de Sevilha, p. 165). J no IV Conclio de Toledo, o cnone XIX menciona que os clrigos que tinham sido casados ou que tivessem vivido com uma concubina fossem impedidos de se tornarem bispos (IV Conclio de Toledo, p. 198). Apesar das restries feitas ao casamento de clrigos, nota-se que este no era totalmente condenado pela Igreja: No princpio da Idade Mdia, os membros do clero casavam-se (BROOKE, 1989, p. 65). Isto se torna claro no cnone XLIV que demonstra que os eclesisticos poderiam se casar, mas apenas com mulheres que fossem aceitas previamente pelo bispo. Caso contrrio, o prprio deveria separar o casal (IV Conclio de Toledo, p. 207). O casamento de clrigos era aceito, mas no recomendado. Santo Agostinho pregava que o casal precisava ser casto, e que o ato sexual s deveria
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praticado com moderao, visando a procriao (BROWN, 1990. p. 349). Tais restries so, sem dvida, heranas da influncia advinda do movimento monstico, que a partir dos sculos IV e V disseminou seus valores de vida asctica e castidade. Castidade A castidade um outro tema citado, sobretudo no IV Conclio de Toledo, pois dois de seus cnones, XXI e XXVII, fazem referncia, respectivamente, castidade dos bispos e dos presbteros. Em relao aos primeiros, vejamos: Es conveniente, pues, que los obispos de Dios sean irreprochables y imaculados y que no se manchem com nigum contacto carnal, sino que viviendo castamente se presenten puros a presentar los ministerios sagrados (IV Conclio de Toledo, p. 200). No que se refere aos segundos: Que hagan profesin a suo bispo de vivir casta e puramente em el temor de Dios (IV Conclio de Toledo, p. 202). Ainda em outros cnones, apesar de no se fazer aluso direta castidade, notamos preocupaes relacionadas a esse aspecto. Como por exemplo, cnones que insistem que os clrigos devam ter uma boa fama: tengamos um testimonio de vida santa, porque hasta aqu algunos obispos han provocado no pequeo escndalo ao se acusados de lujuria (IV Conclio de Toledo, p. 201). O cnone XII advertia que os clrigos, a exemplo dos bispos, levassem uma vida de acordo com sua profisso, ou seja, que fossem castos e no se envolvessem em nenhum escndalo sexual, para que servissem de exemplo para a sociedade: Tambin stos tengan em sus casas testigos de su manera de proceder, y lleven uma vida de acuerdo com su profesin (IV Conclio de Toledo, p. 201). J no II Conclio de Sevilha no encontramos citaes referentes a castidade. Relao com as mulheres Um outro ponto que nos chama a ateno e que est presente em ambos os conclios a precauo que os clrigos deveriam tomar no trato com as mulheres. A principal recomendao que lhes foi dirigida diz respeito ao distanciamento do convvio com elas. Esta repulsa se deve viso negativa que se tinha das mulheres, especialmente por parte dos clrigos, para os quais eram vistas como sementes do pecado, imagem de Eva. O cnone XI do II Conclio de Sevilha faz referncia aos cuidados que os monges, que tomavam conta de mosteiros femininos de virgens, deveriam ter, evitando o contado direto e particular com as mulheres, provavelmente, para que no fossem corrompidos por elas:
Esta precaucin acerca de los monges: que apartados de cualquier trato particular com ellas [...] ni es conveniente para ellos hablar a solas con la superiora, sino a presencia de dos o tres hermanas, de tal modo que las visitas sean raras y la conversacin muy breve. (II Conclio de Sevilha, p. 170).

Este cnone nos mostra ainda um outro aspecto comum da relao entre 361

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os homens e as mulheres na Idade Mdia: a idia de que estas no seriam capazes de cuidar de suas prprias vidas, deveriam viver sob tutela masculina, a fim de que fossem protegidas pelos homens (MACEDO, 1998-1999, p. 294). Ao final deste ltimo cnone, vemos que h uma advertncia para que a resoluo estabelecida pelo cnone no fosse descumprida sobre pena de excomunho: Y si algunos de los que viven en los mosteiros depreciaren esta ordenacin, o la descuidaren por un certo abandono o inercia, sepan que su tibieza y soberbia ser castigada con la pena de excomunin (II Conclio de Sevilha, p. 171). No IV Conclio de Toledo, a recomendao de que clrigos se afastassem das mulheres fica evidente em dois cnones. Primeiro no cnone XLII, que declara que as mulheres estranhas, ou seja, que no fossem familiares e pudessem ter algum envolvimento sexual com clrigos, deveriam ser separadas do convvio com eles: Las mujeres extraas no deben em modo alguno habitar com los clrigos (IV Conclio de Toledo, p. 207). A segunda meno est no cnone XLIII, que afirma que as servas unidas aos clrigos de forma ilegtima deveriam ser vendidas: Algunos clrigos sin estar casados legtimamente, buscan las uniones que les estn prohibidas, con mujeres extraas o con sus siervas, y por lo tanto si alguna de estas est unida a un clrigo, ser separada y vendida por el bispo (IV Conclio de Toledo, p. 207). Concluso Observamos que as consideraes feitas a respeito da sexualidade em ambos os conclios coincidem com a tradio advinda da cultura monstica. Isto se deve ao fato da forte influncia exercida por esta cultura naquela regio. Esta influncia no acontece por acaso, j que o prprio bispo que presidiu os dois conclios, Isidoro de Sevilha, foi autor de uma regra monstica, a Regula Isidori. Alm desta foram produzidas na mesma regio, entre os sculos VI e VII, mais duas regras: uma por Leandro de Sevilha e a outra por Frutuoso de Braga. Podemos ressaltar ainda que a pretenso de se controlar a sexualidade, por parte dos eclesisticos, tinha uma grande preocupao com a salvao. Acreditava-se que era por meio de renncias e sacrifcios que a remisso dos pecados seria alcanada, e que a salvao poderia ser conseguida atravs do corpo e da alma ao mesmo tempo. Logo, a recusa do prazer obtido com o ato sexual seria uma das vias possveis para a purificao. Bibliografia
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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Por que Virglio no entrou na Comdia?


Andr Luiz Nascimento Silva* Dia 7 de abril de 1300, Dante entra numa selva escura. Amedrontado com as feras que o rodeavam, quando a fraqueza o abatia, ele percebe algum prximo, tem compaixo de mim! Quem quer que sejas, sombra ou homem certo! So as palavras angustiosas que consegue emitir. A resposta vem de imediato: Homem no sou, mas hei sido, pais lombardos eu tive; sempre amada Mntua lhes foi; haviam l nascido.Continua o desconhecido: Nasci de Jlio em era retardada, vivi em Roma sob o bom Augusto, quando em deuses havia a crena errada. Poeta, decantei feitos do justo filho de Anquises, que de Tria veio, depois que lio soberbo foi combusto. Mas por que tornas da tristeza ao meio? Por que no vais ao deleitoso monte, que o prazer todo encerra no seu leito? Dante emocionado reconhece o desconhecido; - Oh! Virglio, tu s aquela fonte donde em rio caudal brota a eloqncia? dos poetas lustre, honra, eminncia! Valham-me o longo estudo, o amor profundo com que em teu livro procurei cincia! s meu mestre, o modelo sem segundo; unicamente s tu que hs-me ensinado o belo estilo que honra-me no mundo. Assim comea a Comdia. Na apresentao de Virglio e o reconhecimento de Dante comeamos a ter pistas para respondermos a pergunta que nomeia o ttulo do trabalho. Sabemos que o poeta florentino dividiu sua obra mxima em trs partes: Inferno, Purgatrio e Paraso. A primeira parte, a mais famosa delas, to conhecida que ao nos referirmos a alguma coisa tenebrosa chamamos de dantesco. neste cenrio, assustador, onde se inicia a viagem entre mestre e discpulo. E quando usamos a palavra viagem no sentido amplo. Auerbach (1997) resume de maneira objetiva a relao entre os poetas, as obras( refirome a Eneida e a Comdia, as lnguas latina e italiana e mais do que tudo isso: Roma e a Itlia). O crtico literrio escreve: Na Alta Idade Mdia, a Sibila, Virglio, as personagens da Eneida e at mesmo as do ciclo de lendas brets(por exemplo, Galahad em busca do Santo Graal) eram assimilados pela interpretao figural, e, acima de tudo, surgia todo tipo de mistura entre formas figurais, alegricas e simblicas. Todas essas formas, aplicadas tanto ao material clssico quanto ao cristo, esto presentes na obra que encerra e resume a Idade Mdia: a Divina Comdia. Afinal, quem foi Virglio? Lamentavelmente, pouqussimo lido, apreciado
*Graduado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 364

POR QUE VIRGLIO NO ENTROU NA COMDIA?

e estudado em nossos dias, o poeta mantuano seja provavelmente o mais importante escritor de lngua latina. Viveu num dos perodos mais importantes da histria romana. Escreveu trs obras: As Georgicas, As Buclicas e a Eneida. As duas ltimas tm importncia fundamental no perodo medieval, a primeira delas tratar, num dos seus captulos, do que muitos consideram a profecia da vinda Jesus Cristo.Reproduzo o trecho que trata do episdio:
musas da Siclia, cantemos coisas mais elevadas. Os arbustos e os humildes tamarindos no agradam a todos. Se cantamos florestas, que sejam florestas dignas do cnsul. J chegou a ltima poca da profecia de Cumas: surge novamente a grande ordem da totalidade dos sculos. A Virgem j est de volta, voltam os reinos de Saturno, uma nova gerao enviada do alto do cu. Tu, casta Lucina, favorece o menino que nasceu h pouco; por causa dele, a poca de ferro desaparecer e a gerao de ouro surgir no mundo. Apolo quem reina agora. Sendo tu, Polio, sendo tu o cnsul, a glria desta idade avanar, e os grandes meses comearo a correr, sendo tu o chefe.Se permanecem alguns vestgios de nossos crimes, sero apagados e libertaro as terras de um pavor eterno. Ele receber a vida dos Deuses e ver os heris misturados s divindades; ele prprio ser visto entre elas e reger com as virtudes paternas o universo pacificado. E para ti,criana, a terra produzir, sem cultura alguma, pequenos presentes: heras que vicejam aqui e ali com nardos, colocsias misturadas ao alegre acanto. As prprias cabrinhas traro de volta ao lar os beres retesados de leite, e os rebanhos no temero os grandes lees. Os prprios beros produziro para ti mimosas flores. A serpente morrer, e morrer a erva enganadora do veneno; o amomo assrio nascer por toda parte. E assim que puderes ler os louvores dos heris e os feitos de teus ancestrais, e saber o que valor, aos poucos, o campo amarelar com espigas maduras, as uvas vermelhas pendero dos espinhais incultos e os rudes destilaro mis. Sobraro, entretanto, alguns vestgios da maldade antiga, capazes de ordenar que se afronte Ttis, com navios, que se circundem as cidades com muros, que se abram sulcos na terra. Haver ento outro Tfis e outra Argo que transportar heris escolhidos; e haver tambm outras guerras e mais uma vez um grande Aquiles ser enviado a Tria. E ento, quando a juventude j te tiver tornado um homem, no s o prprio comandante deixar o mar como tambm o pinho nutico no mercadejar; a terra toda produzir de tudo. O solo no precisar suportar arados, nem as vinhas, foices; e o lavrador robusto desprender os jugos do touro; a l no aprender a imitar cores diversas: o prprio carneiro, no prado, transformar seu velo em prpura vermelha ou em dourado aafro; o escarlate, espontaneamente, vestir os cordeiros que pastam. Correi, sculos tais, disseram a seus fusos as Parcas concordes com o imutvel desejo dos fados. Ergue-te para as grandes honrarias pois o tempo chegar -, rebento querido dos Deuses, prole grandiosa de Jpiter. Observa o universo oscilante em sua massa convexa, as terras, as extenses do mar e o cu profundo. Observa como tudo se alegra com o sculo que est por vir. Que para mim se estenda a ltima parte de uma longa vida e que o alento me seja suficiente para cantar os teus feitos.

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Quanta controvrsia gerou a quarta Buclica. E no perodo medieval, muitos iro tratar Virglio como profeta. E fugimos um pouco do nosso tema, porque h um motivo justo para faze-lo. No canto II do inferno, Virglio explicar para Dante que foi Beatriz quem o chamou no Limbo para guia-lo. Ou seja, o Virglio de Dante mora no Limbo, porm o que o Limbo? Cito ento Dante, no quarto canto do inferno, onde o poeta latino explicar para o autor da Comdia o que seja: Conhecer no queres quais so os que assim vs ora sofrendo? Antes de avante andar convm saberes que no pecaram: boas obras tendo acham-se aqui; faltou-lhes o batismo, portal da f, em que s ditoso crendo. Na vida antecedendo o Cristianismo, devido culto a Deus nunca prestaram: Tambm sou dos que penam neste abismo. Por tal defeito os mais no nos mancharam - Perdemo-nos: a pena desesperana, desejos que para sempre se frustraram. Portanto, todos os companheiros, do mantuano, no Limbo tm um pecado. No serem cristos, no por opo, mas em razo do fado. Viveram, antes do Cristianismo e da Igreja Catlica Apostlica Romana existirem. Porm h um detalhe interessante a observar. Por que ser, Beatriz escolheu Virglio e no Plato, Scrates ou Homero? A resposta talvez esteja no canto II do Inferno. O mestre de Dante passa a explicar como foi convocado: No limbo era suspenso: eis requerido por dama fui to bela, to donosa, que as ordens suas presto lhe hei pedido. Beatriz ento lhe fala:
De Mntua alma corts, que inda hoje em dia no mundo gozas fama to sonora, que, enquanto existir mundo, mais se amplia, Ela ento explica o motivo de sua descida ao Limbo: Amigo meu, que a sorte desadora, pela deserta falda indo, impedido de medo, atrs os passos volta agora. Temo que esteja tanto perdido, que tarde eu tenha vindo a socorre-lo, pelo que l no cu dele hei sabido. Parte, pois, e com teu discurso belo e quanto o salvar possa do perigo lhe acode; e me console o teu desvelo. Sou Beatriz, que te envia ao que digo, de lugar venho a que voltar desejo: Amor conduz-me e faz-me instar contigo. Voltando ao meu Senhor, em todo o ensejo repetirei louvor, que hs merecido.

A resposta de Beatriz no to objetiva. Ela tece elogios ao poeta latino, diz que ser recompensado pelo esforo de guiar o amigo perdido, mas no explica o motivo da escolha. Talvez vejamos a resposta na Introduo de 1959 escrita por Otto Maria Carpeaux:
Aos monges eruditos do sculo XIII, Virglio s significava um modelo do verso latino; e nas superties populares da poca, o autor da Eneida ainda sobreviveu como necromante e feiticeiro. O respeito para com a cultura antiga no excluiu a repulsa moral dos cristos aos representantes literrios do paganismo. Mas em Dante o culto da Antiguidade j no puramente gramtico-retrico. Aprecia, sim, em Virglio, o belo estilo. Mas a cultura clssica do poeta est em harmonia perfeita com sua f crist. J se realizou, em Dante, aquela sntese que caracterstica da Renascena e da poca moderna. E enquanto o 366

POR QUE VIRGLIO NO ENTROU NA COMDIA? povo ainda temia encontrar, de noite, nas runas do Foro Romano, o espectro daquele feiticeiro Virglio, o autor da Divina Comdia o elevou a representante e smbolo da razo, que o guia pelos reinos do Inferno e do Purgatrio; e que s s portas do Paraso tem de ceder o lugar a Beatriz, smbolo da F e do Amor Divino.

Atravs do grande crtico literrio comeamos a aprofundar nossa viagem. Neste trecho, observaes se fazem mais do que necessrias. Primeiro, ao incio sobre a observao aos monges. sabido das discusses em torno de Vrglio, no captulo intitulado O Retorno das Belas-Letras Gilson (1995) analisa o tema, que ora era tratado como pago, ora era tratado como profeta. E comeamos a perceber que Virglio, ao morar no Limbo, mais do que uma maneira gentil de tratar o poeta mantuano e seus amigos. Dante, na verdade, cria um lugar honroso para os homens das letras, que ele respeita profundamente, porm h a condio de pagos, e percebemos a profunda coerncia do florentino com a obra e suas convices, no o permitir coloca-los no paraso. A confirmao, desta coerncia, ser observado mais adiante, quando tratarmos do poeta Estcio. Seguindo a introduo de Carpeaux, citamos o ponto nevrlgico entre os poetas, a ponte que liga Virglio a Dante. O autor austraco escreve: A cultura clssica do poeta est em harmonia perfeita com sua f crist. E onde est geograficamente a harmonia perfeita? Em Roma, a cidade dos templos pagos e cristos. Onde os poetas de maneira metafsica se encontraro. E um passar o basto para o outro. Grimal (1992) cita de maneira contundente uma biografia sobre Virglio de um historiador antigo, lio Donato que escreveu: Desde o incio, a Eneida adquiriu fama to grande que Sexto Proprcio no hesitou em assim predizer Curvai-vos, escritores romanos, curvai-vos gregos: nasce no sei o que, maior que a Ilada! Havia uma necessidade romana de ter uma obra monumental, as crianas quirites liam na fase de desenvolvimento e se inspiravam a Ilada e a Odissia de Homero. bom pensarmos que falamos de um perodo onde Roma comeava a se imperializar. Otvio havia se tornado Augusto, o primeiro imperador de Roma. E citando Mendes (1999): Imprio Romano foi um modelo, uma imagem cuja construo foi contaminada pela formao e significado do termo imperialismo...
...a idia que temos de Imprio Romano deve ser entendida como uma construo que foi usada para unir, dar simbolicamente sentido e coerncia a numerosas experincias. Olh-lo como uma construo no negar a sua existncia. entender a forma pela qual esta existncia foi criada e reproduzida historicamente.

A Eneida de Virglio vem justamente tocar neste ponto, desta maneira devemos olhar o autor, como um guia literrio-poltico desta Roma Imperial, assim como Dante na sua Comdia. Gramsci, no Cadernos do Crcere vol. VI, onde trata de Literatura dir: O Canto X poltico como poltica 367

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toda a Divina Comdia. Ento vemos que as ligaes entre Virglio e Dante so mais estreitas do que deveramos supor. Augusto cobrava de maneira insistente, a grande obra latina o mais rpido possvel. Havia um imenso desejo de haver um livro que fizessem os romanos esquecerem dos livros homricos. Mas como escrever uma epopia sem imaginar os livros homricos? E pensando neles que o afilhado de Mecenas comearia compor a Eneida. Aqueles que assistiram o filme Tria devem recordar-se no final da pelcula quando aparece um homem chamado Enias, carregando um velho de nome Anquises e um menino chamado Ascnio, Tria ardia em chamas. esse o incio da Eneida. Os seis primeiros cantos so inspirados na Odissia e os ltimos na Ilada. Mas todos devem se perguntar: Se era uma obra, para esquecer a dos gregos, como ele escreve algo to helnico? simples, que s a genialidade de um poeta poderia criar. Na verdade o que estamos lendo no a histria de uma nova Tria, mas sim o reerguimento de uma antiga civilizao que saiu do Lcio para o que seria Tria. O que na verdade Enias est fazendo retornando com os penates. Segundo Grimal (2000), os deuses Penates so divindades romanas que protegem o larrio da casa. So por isso freqentemente associados a Vesta, embora sempre tenham permanecido distintos dos Lares. Enquanto estes eram representados por esttuas de culto, os Penates foram, durante muito tempo, considerados foras invisveis, simples abstraes. Tal como cada casa tinha os seus penates, tambm o Estado romano possua os seus, trazidos por Enias para a Itlia. Ou seja, Roma, atravs de Virglio,conta sua prpria Histria e no exalta a dos gregos. Mas no ficaremos a dissecar a Eneida, que daria uma outra comunicao, porque nosso assunto a relao entre os poetas italianos. E que so tambm romanos. Outros pontos de contato entre os dois. Analisemos, a partir de agora, o Canto VI da Eneida. Onde justamente a Odissia torna-se Ilada. Enias chega em Cumas. E guiado pela sibila ir ao inferno, que para os romanos pagos era bem diferente do inferno dos romanos cristos, onde encontrar seu pai Anquises e conhear o futuro de Roma, todos seus heris at Augusto. Cito um trecho:
Aqui est Csar e toda a gerao de Iulo que h-de vir sob a grande abbada do cu. Este Csar Augusto, aquele heri que muitas vezes tens ouvido ser-te prometido, gerao dos deuses; o qual de novo h-de trazer ao Lcio sculos de ouro pelos campos outrora governados por Saturno e dilatar o seu imprio para alm dos Garamantes e dos Indos.

No da pax romana que Virglio est falando? O inferno virgiliano menor que o de Dante mas traz uma ligao quase umbelical. Porque se a sibila guia Enias, seno outra sibila a guiar Dante. Lembremos novamente que Virglio tido por muitos na Idade
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POR QUE VIRGLIO NO ENTROU NA COMDIA?

Mdia como profeta. Outra semelhana est no fato de Eneias, quando viaja pelo inferno, passar do sofrimento at a alegria, como Dante. As duas obras tambm estaro ligadas pela lngua em que foram escritas. Virglio escrevia um monumento nacional (tendo a exata noo de que ser romano era muito mais do que ser nacional) e usou as palavras para construir o templo da lngua latina. Dante escreveu em toscano, creio que inconscientemente, o monumento nacional italiano. O passado lingstico da pennsula itlica est ligado entre as duas obras. Portanto vemos a Roma pag, viva em toda sua fora, presente em Virglio e este passado legtimo o credencia a gui-lo pelo inferno e pelo purgatrio. E Dante escrever no De Monarchia, como cita Auerbach (1999), o imprio romano nasceu da fonte da justia. Ou como Bloom (2003) descrever Virglio e o seu tempo:
A ideologia augustiana que permeia a obra de Virglio era compatvel com a romanizao do cristianismo, mas arcaica na era atual do imprio da informao. O nosso imperador o segundo George Bush, que dispensa qualquer Virglio. O fato de o gnio de Virglio ainda ser vlido e atual sustenta-se. Exclusivamente, devido persistente sensibilidade do poeta, que pouco tem a ver com Enas, ou com Augusto.

O que crtico literrio est a nos dizer o poeta maior do que o homem e a obra. Entretanto no final do primeiro Canto, Virglio dir a Dante: porta de S.Pedro eu v contigo. Se o vate latino a representao do passado grandioso romano, ao qual Dante faz questo de estar ligado a ele, por que ser que Virglio no entrou na Comdia? A Comdia no a grega, at por ser Dante de um perodo onde o riso no era muito bem visto, como podemos no livro O Nome da Rosa do Umberto Eco que depois veio transformar-se em filme constatar, mas como o prprio florentino ir esclarecer numa carta a um amigo, que Carpeaux (1959) cita: O leitor moderno talvez chegue a achar estranho o ttulo do poema. Uma obra que trata de Satans no Inferno e de Deus no Cu seria uma Comdia? que Dante usou o termo num sentido muito diferente do atual. Na carta-dedicatria ao Cangrunde Della Scala explica o poeta que so tragdias as obras que acabam mal e comdias as que acabam bem; hoje diramos happy end. A obra de Dante comea com coisas terrveis. Mas pode haver happy end mais feliz do que a viso de Deus no cu? Agora entendemos que a Comdia, trata-se na verdade, do Paraso e portanto Virglio no entra nele. Mas qual seria o motivo? O fato do mantuano ser pago? Somente por isso? Dante no chamou sua obra de Divina Comdia, mas simplesmente de Comdia. De onde teria sado o adjetivo divina? Raul de Polillo, numa outra introduo ao grande poema medieval, explica:
Quem acrescentou ao ttulo simples de Comdia, dado por Dante sua obra, o qualificativo divina, foi Giovanni Boccaccio. Da

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS resultou a consagrao universal do ttulo Divina Comdia, que apareceu, pela primeira vez, nesta forma na edio veneziana da obra de Dante, por iniciativa de Ludovico Dolce, impressa por Giolito, e publicada em 1555 - duzentos anos depois da morte do autor. Giovanni Boccaccio aplicou, Comdia, o qualificativo divina, referindo-se qualidade literria da obra, e no matria nela tratada.

bom lembrar que Boccaccio, trata-se do autor do livro Decamero, foi contemporneo de Dante, o que significava na repercusso imediata da Comdia, tal como a Eneida. Curiosamente o ttulo Divina Comdia oferece um sentido ambguo, eu diria entre o sacro e o profano, entre a Roma Crist e a Roma Pag. Porque se pensamos pelo lado sacro, imaginamos o divino paraso, o sonho de todo cristo apostlico romano do medievo, mas se observamos como um romano pago da antiguidade, olhamos como uma estupenda comdia, como os romanos antigos adoravam. Este gnero literrio fazia um sucesso estrondoso, diferente da tragdia (no sentido grego). Portanto quando Boccaccio coloca o qualificativo como valor da obra no como valor religioso, a palavra estupenda poderia perfeita encaixar-se no ttulo, o que prova: Dante era quem estava certo. Entre o sagrado e o profano h mais do que o ttulo. H os homens, a procura pela resposta certa, se que ela existe, e a busca pela evoluo espiritual. nesta caminhada que seguem Virglio e Dante pelo Purgatrio. l que encontraro Estcio, contemporneo de Augusto e Virglio, poeta, escritor de um poema chamado Silvae. O tradutor, na edio brasileira que possuo, manteve uma traduo literal do ttulo que seria Silvas. No Dicionrio Latino-Portugus do Saraiva temos algumas palavras que poderamos traduzir o silva para selva, bosque, floresta ou mata. E como comea a Comdia? Da nossa vida em meio da jornada achei-me numa selva tenebrosa... Curiosamente, no poema Silvas II, que tem o sugestivo ttulo de Horscopo de Lucano a Pla, Estcio ir citar um nmero sem conta de mitos gregos e romanos. Citar inclusive Virglio: A prpria Eneida louvarte- quando cantares para os latinos. Este poeta, considerado menor pelos crticos literrios, estar em lugar melhor do que Virglio na Comdia. Haveria explicao? Citarei o canto XXII do purgatrio: Pois que de Clio ento ardor te arrasta, inda o fervor da f no te incendeia, e o bem sem f para salvar no basta. Num outro trecho diz Estcio: J estava o mundo inteiro alumiado da vera crena que do reino eterno os mensageiros tinham propagado. Prossegue em outro trecho: enquanto estive no viver humano, dei-lhes socorro e o seu exemplo austero dio inspirou-me s seitas do erro insano, antes j de cantar o cerco fero de Tebas no batismo renascera: Mas, de medo, ocultei meu crer sincero. Vemos que Estcio se convertera. Era cristo, preguioso como mais adiante o prprio ir falar para Virglio, mas era cristo e poeta por causa dele, Virglio. Parece ento simples, o mantuano no entrou no Paraso porque no se converteu. Mas no to simples assim. Auerbach (1999) escreve: Aos olhos de Dante, o Virglio histrico ao mesmo tempo poeta e guia. Ele
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poeta porque, na descida aos infernos do justo Enias, profetiza e glorifica a paz universal sob o Imprio Romano, a ordem poltica que Dante considera exemplar, a terrena Jerusalm; e porque, em seu poema, a fundao de Roma, stio predestinado do poder secular e espiritual, celebrada luz de sua futura misso. Acima de tudo ele poeta porque todos os grandes poetas que vieram depois dele foram inflamados e influenciados por sua obra; Dante no s vai expressa-lo em seu prprio nome, mas introduz um segundo poeta, Estcio, para proclamar a mesma coisa ainda mais enfaticamente; no encontro de Sordello, e tambm talvez no verso altamente controvertido sobre Guido Cavalcanti (Inf.10,63), o mesmo tema explorado. Mais ainda, ele um guia porque, alm de sua profecia temporal, proclamou tambm na quarta cloga a eterna ordem transcendente, a vinda de Cristo que iria renovar o mundo temporal, sem sequer suspeitar, na verdade, do significado de suas prprias palavras, mas de tal modo que a posteridade iria extrair inspirao de sua luz. Virglio, o poeta , era um guia porque havia descrito o reino dos mortos portanto conhecia bem o caminho. Mas tambm como homem e romano ele estava destinado a ser um guia, no apenas porque era um mestre do discurso eloqente e da sabedoria elevada, mas porque tambm possua as qualidades que tornam o homem capaz de guiar e liderar, as qualidades que caracterizam seu heri Enias e Roma em geral: iustitia e pietas. Para Dante, o Virglio histrico encarnava esta plenitude de perfeio terrena e era capaz, portanto, de gui-lo at o limiar da viso da perfeio eterna e divina; o Virglio histrico era, para ele, uma figura do poeta-profeta-guia, agora preenchido no outro mundo. O Virgilio histrico preenchido pelo habitante do Limbo, o companheiro dos grandes poetas da antiguidade, que, ao chamado de Beatriz, assume a tarefa de guiar Dante. Como romano e poeta, Vrgilio enviou Eneias a mundo subterrneo procura do conselho divino para conhecer o destino do mundo romano; e agora Virglio convocado pelos poderes celestiais para ser o guia de uma misso no menos importante; pois no h dvida que Dante via a si prprio como encarregado de uma misso no menos importante que Enias:eleito para anunciar a um mundo desajustado a ordem justa, que lhe revelada durante a caminhada.Virgilio escolhido para revelar e interpretar para ele a verdadeira ordem terrena, cujas leis so executadas no outro mundo, e cuja essncia preenchida no outro mundo, e ao mesmo tempo para dirigi-lo at sua meta, a comunidade celestial dos eleitos, que ele anunciou em sua poesia mas no ainda at o interior do reino de Deus, pois o significado de seu pressgio no lhe foi revelado durante sua vida terrena, e, sem esta iluminao, morreu como um infiel.Assim sendo, Deus no permite que Dante entre em seu reino com a ajuda de Virgilio; Virgilio s pode levlo at o limiar do Reino, at aquele limite que sua justa e nobre poesia foi capaz de discernir. Primeiro diz Estcio a Virgilio: tu me mostraste o caminho do parnaso para que eu bebesse das suas
fontes, e depois iluminaste at Deus. Foste como um destes que anda pela noite, levando a luz atrs de si mesmo, sem aproveitar-se dela, mas instruindo a quem o segue... Atrs de ti, tornei-me poeta, por tua causa cristo.

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E assim como o terreno Virglio conduziu a Estcio salvao, agora, como uma figura preenchida, conduz Dante: pois tambm Dante recebeu dele o belo estilo de sua poesia, atravs dele salvou-se da danao eterna e seguiu o caminho da salvao; e assim como outrora iluminado havia iluminado Estcio, sem que ele prprio visse a luz que trazia e proclamava, tambm agora conduz Dante at o limiar da luz, que ele conhece mas no pode alcanar. Desse modo Virglio no e a alegoria de um atributo, virtude, capacidade, poder ou instituio histrica. No nem a razo, nem a poesia, nem o Imprio. o prprio Virglio. Todos caem na mesma armadilha, inclusive Auerbach. Virglio no entra na Comdia pelos motivos explicados pelo crtico alemo, apesar dele dar uma pista. Bloom (2003) segue um caminho que nos levar a entender o verdadeiro motivo.Cito:
Dante to convicente em termos de autoridade potica que o leitor pode levar um certo tempo at perceber que, apesar dos nomes histricos, todas as figuras da Comdia so personagens literrios. O poeta latino Estcio jamais se converteu ao cristianismo, mas Dante precisava dele, em uma cena crucial e comovente, um encontro com Virglio, no Purgatrio, e, assim, a reles verdade histrica foi alterada.

O crtico norte-americano diz mais adiante: Dante, cuja afinidade com Virglio , em grande parte um mito. A perplexidade certamente assombrar a todos. Se o libi para que Virglio no entrasse na Comdia, era justamente a converso de Estcio, no h mais motivo para ele no deixar de acompanhar Dante ao Paraso. Porm, uma razo fortssima h, que passa despercebida, por leitores menos atentos. Auerbach, citado h pouco, lembra que Dante est escrevendo um novo evangelho, uma obra imortal, como no havia sido escrita at ento. No havia espao no paraso para dois poetas maiores. E na verdade Virglio faz o papel da agulha e Dante a linha, rememorando o velho Machado de Assis no conto Um Aplogo. H uma discusso entre a agulha e a linha, de quem era mais importante. A linha vai para a festa no vestido da baronesa, a agulha volta para a caixinha da costureira. desta forma, que Virglio volta para o Limbo, Dante ir curtir a festa entre os santos e os querubins. Portanto, muito mais que o sentimento religioso, na verdade o que h a velha competio potica, assim como Virglio achava-se maior que Homero, Dante achava-se maior que Virglio, assim como Cames achavase maior que todos os anteriores...Esse o ciclo da vida. Para finalizar, o escritor contemporneo Herman Broch no romance A morte de Virglio escreve uma das passagens mais belas da Literatura. O sentimento de ser poeta:

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POR QUE VIRGLIO NO ENTROU NA COMDIA? Nomes e nomes, os nomes dos homens, os nomes das pradarias, os nomes das paisagens, das cidades e de tudo quanto foi criado, nomes ptrios, nomes confortadores na aflio, os nomes das coisas, criados junto com elas, criados antes dos deuses, aqueles nomes que sempre ressuscitam com a santidade da palavra, constantemente reencontrados por quem vele verdadeiramente, o despertador e fundador divino! Nunca mais poder o poeta reivindicar tamanha dignidade, e mais ainda, mesmo que fosse a derradeira, a essencial misso da poesia exaltar os nomes das coisas, sim, mesmo que ela, na primeira vibrao de seus momentos supremos, tivesse conseguido deitar um olhar fonte eternamente viva da lngua, sob cuja luz, nas profundezas, paira, intacto e casto, o verbo das coisas, a pureza dos nomes no fundo do universo das coisas, ento a poesia talvez fosse capaz de redobrar a criao atravs da palavra, porm no lograria reconverter a redobrada numa unidade, no o lograria, porque a inveno fictcia, o pressentimento, a beleza, porque tudo quanto a define como poesia e a transforma em poesia ocorrem exclusivamente na duplicao do mundo; o mundo da lngua e o das coisas permanecem separados, dupla a ptria da palavra, dupla a ptria do homem, duplo o abismo da essencialidade, mas dupla tambm a castidade do ser, e dessa forma, pela duplicao, transmudados em impudiccia, que, igual a um renascimento sem nascimento, impregna todo o pressentir tanto como toda a beleza e traz em si o germe da destruio do mundo, a impudiccia primignia do ser, to temida pela me; impudico o manto da poesia, e jamais a poesia se tornar fundao, jamais se despertar a poesia de seu jogo adivinhador, jamais o poema chegar a ser orao, orao de verdade, vlida como sacrifcio, orao essa to profundamente inerente ao genuno nome das coisas que para o orante, encerrada na palavra imoladora, volte a cerrar-se a duplicao do mundo e que, para ele, s para ele, palavra e coisa constituam novamente uma unidade...Oh!, pureza da orao, inatingvel poesia, e no entanto ah, sim! -, atingvel a esta, desde que ela mesma seja imolada, superada e aniquilada.

Palavra e coisa so a arte e o engenho, virtudes poticas que Virglio e Dante tambm as utilizaram.
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O profeta e a Umma: relaes de poder e poltica no Alcoro


Daniele Sandes da Silva*

a poca imediatamente anterior ao surgimento do Isl, em princpios do sculo VII, a Pennsula Arbica passava por profundas transformaes sociais, econmicas e polticas. A principal delas advinha da necessidade da busca de uma nova opo de rota comercial que fugisse ao controle persa, dada importncia fundamental para o mundo mediterrnico da comercializao da seda e das especiarias provenientes da ndia e do sudoeste asitico. A rota mais rpida, at ento utilizada, passava por territrios submetidos aos persas que, obviamente, disso tiravam vantagens tanto econmicas quanto estratgicas. Com o declnio dos reinos da Arbia do Sul em funo de disputas internas, invases estrangeiras e do contnuo avano das tribos do norte e a constituio de uma nova rota terrestre, os bedunos, que viviam em meio a estepes e vales que interligavam as zonas desrticas, conquistaram grande relevncia no cenrio comercial, pois estavam agora munidos do privilgio de cobrarem por seu papel de intermedirios ou de guias para o trfico terrestre. A organizao de caravanas, a negociao do transporte de produtos preciosos e a formao de centros de operaes colaboraram para uma progressiva sedentarizao das tribos do deserto. A ascenso da cidade de Meca deu-se neste contexto. Afortunada, a cidade possua, alm de uma vasta clientela atrada pelos seus frutos, legumes e vinhos, a vantagem de estar situada a meio caminho entre a Arbia do Sul e a Palestina bizantina. A tribo dos Quraysh teria se estabelecido em Meca no fim do sculo V, e a ela pertencia Muhammad, que fazia parte do cl dos Hashim. Na noite de 26 para 27 do ms do Ramad, que posteriormente foi chamada de noite do destino, Muhammad convenceu-se de que estava sendo incumbido de admoestar as pessoas. As mensagens por ele recebidas no cessaram durante os vinte anos que se seguiram e teriam sido coletadas por seus companheiros e escritas em pedaos de pergaminho, ossos de omoplata de camelos e guardadas na memria. O que mais tarde resultaria na compilao de um livro chamado Alcoro, que significa, literalmente, ler ou recitar (Quran) e que a fonte de nossa pesquisa. Porm, em sua poca, o profeta enfrentou acusaes como a de ser mais um dos adivinhos da Arbia ou, at mesmo, um poeta, j que a eloqncia era um de seus dons. Suas primeiras pregaes preocupavam-se, basicamente, com questes eminentemente religiosas, despertando somente a curiosidade de alguns. Podemos notar que, a princpio, durante as revelaes feitas em Meca, as suras

Mestranda em Histria pela Universidade Federal Fluminense.

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se caracterizavam pela sua brevidade e linguagem eloqente, Os captulos do Alcoro relativos Meca ocupam-se, fundamentalmente, de questes como a unidade de Deus, a iniqidade do esprito idlatra e a iminncia do julgamento divino. (LEWIS, 1996, p.47). A vida social de Meca abalada quando as revelaes passam a atacar os dolos e a afirmar o monotesmo, passando a usar uma linguagem mais inflamada, rompendo com a indiferena por parte dos Quraysh, nos remetendo diretamente ao contexto histrico do profeta. Contudo, apesar dos versculos estarem vinculados a diferentes fases da vida de Muhammad, trata-se de uma nica revelao, base essencial do Isl. O conflito teria se desencadeado por razes econmicas, pois a pregao do monotesmo poria em xeque o estatuto do santurio de Meca (Caaba), j que alm de local de culto era tambm um centro de negcios (LEWIS, 1996, p.46). Outra hiptese considera que Muhammad, mais do que um simples refgio, tentava encontrar uma nova rota comercial independente, livrando-se assim das sanes comerciais impostas pelos seus opositores. De qualquer forma trata-se, aqui, de uma deciso poltica, que o transforma em um magistrado supremo de uma comunidade (LEWIS, 1996, p.46), na qual colocaria em prtica o que pregava em Meca. A formao da nova comunidade, assim como o papel poltico desempenhado por Muhammad so, neste trabalho, nosso principal alvo de investigao. A formao de alianas polticas, e os meios pelos quais o profeta estabeleceu estas alianas, ocupam um papel de destaque na pesquisa, cujo recorte temporal est demarcado a partir da migrao do profeta e seus seguidores (622) at seu retorno a Meca (630). A partir de sua migrao para Medina a Umma dos crentes passou a estar submetida s decises de Muhammad, formando uma nova concepo de autoridade. Configurando-se como um organismo poltico, possua, tambm, contudo, um carter essencialmente religioso (LEWIS, 1996, p.51). Um dos cinco pilares da f consiste em realizar, ao menos uma vez na vida, caso o crente tenha condies financeiras e fsicas, a peregrinao (hajj) a Meca. Realizada em meses determinados, um de seus ritos consiste em vestir o ihram, duas peas de tecido no costurados e que, nas mulheres, cobre todas as partes do corpo exceto o rosto, as mos e os ps. Por dias seguidos marcham juntos, em horas prefixadas. Nesta ocasio a igualdade e a unidade devem se sobrepor nacionalidade, raa, economia ou sexo, pois todos esses ritos simbolizam - ainda que idealizada - a unidade da Umma, ou a comunidade dos crentes. O termo Umma, que significa povo ou comunidade, foi muitas vezes relacionado com a palavra rabe umm, ou me. Trata-se, possivelmente, de um equivoco e acredita-se que seja um emprstimo do hebreu ou aramaico. Em um perodo anterior, na Arbia antiga um termo aparentado com este (lumiya) era utilizado para designar uma confederao tribal e, provavelmente, era este o sentido atribudo ao termo que vigorava na poca do profeta (LEWIS, 2002). Quanto utilizao deste termo, Bernard Lewis destaca que:
Aparece vrias vezes no Alcoro, com variaes interessantes. Pode ser tnico, uma vez que o Alcoro fala da umma dos rabes. Pode ser religioso, uma vez que o Alcoro fala da umma dos cristos. Pode ser moral uma vez que o Alcoro fala da umma das pessoas boas, oposta 376

O PROFETA E A UMMA: RELAES DE PODER E POLTICA NO ALCORO da umma daqueles que fazem o mal. Pode ser ideolgico, uma vez que o Alcoro fala daqueles que fazem o bem e se comportam justamente entre os cristos. (LEWIS, 2002, p.53)

Na nossa perspectiva, a comunidade formada em Medina uma comunidade tnica, religiosa e poltica, no havendo, portanto, como no mencionar os trs nveis, ou ao menos tentar relacion-los. Nosso enfoque, direcionado para os aspectos polticos, no minimiza nem exclui os outros dois. Usado durante muito tempo para designar obras que se dedicavam ao estudo do Estado, na poca moderna, o termo Poltica foi ganhando outros significados como Cincia do Estado, Doutrina do Estado, Cincia Poltica (BOBBIO, 2002, p.954), etc. Sempre relacionado a atos de proibir ou ordenar algo a um determinado grupo social, o conceito de poltica est intimamente relacionado ao de poder. Bobbio chama ateno para a especificidade do poder poltico, que se baseia na posse dos instrumentos mediante os quais se exerce a fora fsica (as armas de toda a espcie e potncia): o poder coator no sentido mais estrito da palavra. (BOBBIO, 2002, p. 955). Porm, o poder, ou a capacidade de agir ou produzir efeitos sobre um grupo de pessoas (BOBBIO, 2002, p. 933), pode ser exercido por vrios meios: riqueza, fora, informao, prestgio, legitimidade, popularidade, etc. Contudo, a capacidade daquele que exerce o poder em converter os recursos a sua disposio em poder ainda fundamental. Assim, o profeta desempenhou seu poder por meio da influncia de suas idias, expressas em certas circunstncias, que foram difundidas por ele, pessoa investida de certa autoridade: era um mensageiro divino. Por isso, podemos dizer que Muhammad exerceu poder ideolgico e poltico (em seu sentido mais estrito), pois tinha a posse dos instrumentos por meio dos quais poderia exercer a fora fsica (BOBBIO, 2002, p. 955). No entanto, a sociedade em questo possui especificidades que no esto necessariamente ligadas concepo de Estado. Trata-se de uma sociedade na qual as relaes polticas ainda so fundamentadas no parentesco, pois rege a relao entre grupos sociais e no entre pessoas, regulando o acesso aos cargos que conferem poder ou autoridade. (BALANDIER, sd, p. 87). O contributo, portanto, da Antropologia Poltica para nosso trabalho consiste em que seus pressupostos nos permitem articular parentesco e poder poltico, pois segundo Balandier no h sociedades sem poder poltico, no h poder sem hierarquias e sem relaes desiguais instauradas entre os indivduos e os grupos sociais (BALANDIER, sd, p. 85). Em um contexto de grandes disputas polticas e econmicas, as principais articulaes polticas davam-se entre Muhammad e seus seguidores [leia-se Umma]; as tribos judaicas e crists que, alm de uma localizao estratgica comercialmente, tambm possuam um papel decisivo em poca de conflitos blicos; e os comerciantes ou a oligarquia de Meca. E por que no pensar nas articulaes entre o Profeta e sua comunidade? Garantir ou legitimar sua liderana entre os crentes tambm era de crucial importncia. Cabe, portanto, ressaltarmos o papel desempenhado pelo profeta e sua relao com a comunidade formada a partir de suas revelaes. Na tentativa de apreender o poltico, poderamos nos remeter s categorias adotadas por Jean Copans e tentar perceber a sociedade tribal como uma 377

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

sociedade hierarquizada. Seguindo a mesma linha, a sociedade em que emerge a figura de Muhammad poderia ser considerada estratificada ou de chefaturas, pois j havia uma aristocracia de famlias dominantes que vivia em funo de uma economia mercantil. Jean Copans destaca ainda que, na medida em que o parentesco j no pode manter e exprimir a coeso social e em que as desigualdades da estratificao so portadoras de contradies e antagonismos, faz-se sentir a necessidade de um controle especfico da coeso e das contradies. (COPANS, 1971, p. 108). Eis que surge a liderana de Muhammad, que com seu carisma - ou seja, qualidade pessoal considerada extracotidiana, em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, extraordinrios especficos, ou ento toma-se-lhe como enviada por Deus, como exemplar e, portanto, como lder (WEBER, 1999, p. 158) - foi aceito como mensageiro de Deus. E exerceria sua liderana carismtica tambm como chefe poltico e guerreiro. Na esteira de Max Weber, devemos destacar que entendemos como profeta aquele que possui um carisma pessoal e, em virtude de sua misso, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandato divino, configurando-se como um renovador ou como o fundador de uma religio (WEBER, 1997, p. 105). Se estivssemos tratando de um sacerdote, este reivindicaria sua autoridade baseando-se em uma funo exercida dentro de uma tradio sagrada. Mas, neste caso, sua autoridade legitimada em decorrncia de uma revelao divina e em seu carisma. H, no discurso cornico, freqentes referncias origem do poder exercido por Muhammad: Dize: humanos, sou o mensageiro de Allah para vs.; Quem obedecer ao mensageiro obedecer a Allah. (Alcoro 4, 80). Ao ser mencionado, o mensageiro sempre aquele que guia, admoesta, anuncia, orienta, elucida e, para aqueles que no crem em sua misso outros exemplos so narrados na fonte, como o do povo de No injusto e transgressor, Sodoma e Gomorra, o Fara que julgou Moisis como um mago, todos punidos severamente pela sua incredulidade, sendo assim tomados como exemplos dos antepassados. As revelaes apontam Muhammad, incessantemente, como um mensageiro que surge do meio rabe, um mensageiro de vossa raa, cujo mrito gui-los e proteg-los dos infortnios. Como sua misso no est ligada magia e sim formao de uma doutrina tanto religiosa como tico-social, devemos destacar a observao de Weber de que a distino entre um profeta e um legislador bastante fluida. Um legislador, ou uma pessoa em que se confia a tarefa de constituir ou ordenar um sistema de Direito (como Slon, na Grcia), geralmente nomeado para o cargo em momentos de tenso social, principalmente ao surgir uma diferenciao econmica dentro de uma mesma categoria, ou melhor, a riqueza de uns em contraste com a servido de outros (WEBER, 1997, p. 108). Se nos remetermos a situao de Meca e ao conflito entre a emergente aristocracia comercial verificaremos, seguindo esta perspectiva, que o contexto era similar ao mencionado por Weber, quando surge uma legislao sagrada com o Isl. Allah, Deus nico, adverte por meio de seu mensageiro: Pelo convnio dos
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O PROFETA E A UMMA: RELAES DE PODER E POLTICA NO ALCORO

Coraixitas, o convnio das viagens de inverno e de vero! Que adorem o Senhor desta casa. (Alcoro 106, 1-3); Ai de todo o difamador, caluniador, que acumula riquezas e as entesoura, pensando que suas riquezas o imortalizaro! Sem dvida que ele ser precipitado naquilo que o consumir. (Alcoro 104, 1-4). Iniciavase, segundo Maxime Rodinson, um processo de dissoluo da sociedade tribal :
no eram j as qualidades tradicionais dos filhos do deserto que asseguravam o xito. A avidez, a nsia do ganho eram muito mais necessrias. Os ricos presunosos e vos orgulhavam-se da sua promoo, que era sua, pessoal, e no j da tribo. Os laos de sangue afrouxavam, cediam em importncia aos laos baseados na comunidade dos interesses. (RODINSON, 1992, p.50)

Apesar do xito de sua profecia, ou seja, ter conseguido agregar seguidores, sua jovem comunidade enfrentaria grandes desafios nos anos que se anunciavam. Em geral, sua permanncia em Medina lembrada como a Idade do Ouro, mas tambm como um perodo de tristezas e terror (ARMSTRONG, 2002, p.190). Se, nesse perodo especfico, h vrios grupos polticos em condies equivalentes de disputa, ao retornar a Meca Muhammad e seus seguidores passam a dominar a cena poltica, mantendo sob seu controle, ainda que instvel, o espao, as rotas comerciais e as regras sociais e religiosas.
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Os Sermes da Pscoa de Cesrio de Arles: atuao episcopal na Glia no sculo VI


Paulo Duarte Silva*

1. Apresentao ossa pesquisa, conduzida sob orientao da Profa. Dra. Leila Rodrigues (Programa de Estudos Medievais, UFRJ), dedica-se ao estudo da atuao de Cesrio, bispo da diocese de Arles na primeira metade do sculo VI (502-542). Seu bispado caracterizado por extensa e diversificada produo escrita, da qual se destacam seus duzentos e trinta e oito sermes. O objetivo desta investigao, tendo como base os sermes, compreender de que forma a pregao, uma das possibilidades de atuao episcopal, contribui para o fortalecimento institucional eclesistico, coadunado com a prevalncia da figura dos prelados. Esta anlise torna-se mais pertinente quando se enreda no episcopado de Cesrio. Sua carreira assinalada por incisiva participao eclesistica e poltica, transpondo em alguns momentos os limites de sua diocese e mesmo da Provena. Assevera-se que, no decorrer do perodo em questo, o sul da Glia atravessa complexas transformaes scio-polticas, referentes ao assentamento de grupos germnicos e desarticulao institucional do Imprio do Ocidente. Visigodos, ostrogodos e, por ltimo, francos se alternam na ocupao da regio. Nesta apresentao, interessam-nos os sermes pascalinos do prelado. Nossa escolha justifica-se pelo fato de que, poca, o perodo da Pscoa, indissociado da Quaresma, constitua-se como evento norteador do calendrio litrgico confeccionado pelos eclesisticos, uma das fontes preferenciais do esforo intelectual do episcopado (MACEDO, 1999). Pretende-se, portanto, inferir em que medida a Pscoa celebrada por Cesrio encerra prerrogativas e orientaes que visavam contribuir para a cristianizao da congregao e para o correlato fortalecimento da autoridade religiosa do bispo, a partir de uma srie de premissas dispostas audincia. A preferncia pelo estudo dos sermes pascalinos, nesse caso, motivada tambm pelo interesse em ampliar a discusso a respeito dos sermes e da atividade pastoral no alto medievo, na medida em que a maior parte dos medievalistas vinculados esta temtica dedica-se ao perodo entre os sculos X-XV. (MUESSIG, 2002) No mais, pode-se afirmar que os numerosos sermes de Cesrio de Arles tm sido utilizados por estudiosos sob uma perspectiva restrita, ora inseridos

*Graduando em Histria na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

em premissas e preocupaes apologticas, ora sendo trabalhados no bojo de uma historiografia engajada no estudo das manifestaes religiosas e prticas culturais ditas pags, vinculadas especialmente paisagem rural. 13 2. Cesrio e a diocese de Arles A amplitude e diversidade da documentao atribuda trajetria eclesistica de Cesrio prestam-se investigao histrica como registro de uma carreira ativa, notadamente nas quatro dcadas de seu bispado. Sua carreira episcopal possui referenciais precedentes, tais como Hilrio de Arles e Fausto de Riez, confeccionados no movimento de insero das aristocracias galo-romanas nos quadros eclesisticos, correlato ao esvaziamento das instituies burocrtico-administrativas imperiais, observados ao longo dos sculos V e VI. (FRIGHETTO, 2000, p. 66-67) Nascido em 470, oriundo da nobreza galo-romana de Chalons, poca sob domnio dos burgndios, Cesrio dirige-se com aproximadamente vinte anos para o mosteiro de Lrins, centro de prestgio entre a intelectualidade episcopal do sul da Glia desde a primeira metade do sculo V, permanecendo no local entre cinco e nove anos. (MARKUS, 1992, p. 155) A partir de 499 sua carreira eclesistica comea a despontar, quando Cesrio enviado cidade de Arles, sob a liderana do bispo Acio, aparentado seu. Em 502, aps dirigir um monastrio nos arredores da cidade por pouco menos de trs anos, sucede-se a eleio de Cesrio como bispo metropolitano, pesando decisivamente em seu favor a nomeao feita por Acio pouco antes da sua morte, diante das autoridades visigticas e do clero local no sem encontrar, especialmente durante sua primeira dcada de bispado, oposio e ressentimento de parte dos eclesisticos, que por duas vezes apresentaram acusaes de traio junto aos monarcas visigodos. Por quatro dcadas Cesrio esteve frente de Arles, importante centro religioso e institucional da pars occidentalis do Imprio nos sculos IV e V. Particularmente a partir de 512, j sob domnio ostrogodo, sua proeminncia poltico-eclesistica incrementa-se na regio. (GENET, 2002, p. 398) A fora de seu episcopado tributria em boa medida ao estreitamento dos laos de cooperao com a monarquia ostrogoda e com a diocese de Roma, aps o encontro com Teodorico em Ravenna e com o Papa Smaco. A honraria do pallium, tal qual o ttulo de Vigrio para a Glia, assinala o fortalecimento de Arles e seu bispo. (KLINGSHIRN, 2004, p. 124-132) Em seu momento de maior prevalncia (512-536), Cesrio consolidou, com respaldo papal, seu controverso monastrio feminino; dedicou-se prtica pastoral e ao assistencialismo material e espiritual, atuando como patrono especialmente em Arles. (LAPORTE, 2004, p. 299) Nesse perodo o prelado presidiu conclios; solucionou a querela teolgica do semipelagianismo; resgatou cativos de guerra em dioceses sob jurisdies distintas; envolveu-se em disputas com o episcopado de Lyon e Vienne. Em suma, estendeu sua influncia episcopal por todo o sul da Glia. A ltima metade da dcada de 530 corresponde ao enfraquecimento de sua atuao. Em verdade, por mais incisivo que tenha sido, seu projeto de poder
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OS SERMES DA PSCOA DE CESRIO DE ARLES: ATUAO EPISCOPAL NA GLIA NO SCULO VI

assentava-se em bases sujeitas oscilao. A autonomia outorgada por Ravenna se viu perturbada, desgastando-se desde a morte de Teodorico em 526; a sucesso papal, sujeita s presses da corte ostrogoda, passou a eleger figuras que se afastavam progressivamente do Ocidente. Em 536, a consolidao franca na regio desloca Arles para uma Igreja cujo centro de gravidade pendia para Paris, tornando a influncia de Cesrio e de seus eclesisticos perifrica. (KLINGSHIRN, 2004, p. 244-261) Pouco antes de morrer, Cesrio dedicou-se a garantir a autonomia de seu polmico monastrio feminino, sob os cuidados de familiares: sua irm Cesria, sua sobrinha e seu sobrinho. Cesrio morre no dia 27 de agosto de 542, data prxima aos festejos de So Gensio, padroeiro de Arles, e de Agostinho, principal influncia intelectual do bispo. 3. Os Sermes de Cesrio Entre os escritos associados ao seu episcopado podem ser destacadas duas regras monsticas; conclios regionais glicos, entre os quais atuou presidindo em Arles (524), Carpentras (527), Orange (529) e Marseille (533); tratados doutrinrios; comentrios ao Apocalipse; testamentum; um epistolrio composto por vinte e quatro cartas e, por fim, a confeco da Vita Cesarii, elaborada menos de uma dcada aps seu falecimento por um grupo de clrigos liderados por Cipriano de Tlon. Fundamentalmente, seu polivalente projeto episcopal deve ser concebido levando-se em conta sua atuao pastoral, encerrada em seus sermes. Permanecendo ao largo do perodo do alto medievo (sculos VI-VIII) como atribuio do ofcio dos bispos encarregados de pregar em sua diocese e nas parquias adjacentes , fonte de autoridade e influncia religiosa, a pregao pode ser entendida como reunio eventual da ecclesia a saber, clrigos e leigos interessados na salvao individual e coletiva. (DE BEAULIEU, 2002, p. 367) Corresponde, portanto, ao ambiente primordial de cristianizao dos fiis: a palavra apregoada projeta-se audincia engendrada por valores, crenas e prticas que visam assegurar congregao a ascenso ao reino de Deus. Desta forma, entende-se que a atividade pastoral responde ao esforo episcopal de constituir um habitus cristo junto aos leigos, ouvintes. 14 Ciente de que a existncia de uma lacuna entre o desempenho oral e gestual na performance da pregao condicionada em larga medida pela presso e reao da audincia e a produo escrita ensejada pelo sermo deve ser ponderada (MUESSIG, 2002, p. 77; BATANY, 2002, p. 383-395), definimos nosso aporte documental como dimenso textual de um discurso catequtico ou admoestatrio constitudo a partir de um tema ou tpico no necessariamente sustentado pelas Sagradas Escrituras15. Desta feita, tomando os sermes pertinentes festa em seu conjunto (Sermes 200-204), inferimos de que forma a pregao dedicada Pscoa: 1) fundamenta o evento, conferindolhe identidade e compromisso peculiares em relao a outras celebraes litrgicas; 2) concebe a autoridade religiosa, analisando os interditos que aferem atribuies aos clrigos, dotando-os com o controle do exerccio do sagrado capital religioso , simultaneamente arranjando no interior do campo aqueles que possuem menores somas ou mesmo so desprovidos deste capital; 3) 383

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

normatiza o comportamento dos fiis, orientando suas condutas para alm da baslica ou da parquia, espaos consagrados devoo crist, constrangendo diversas prticas sociais, sob pena de danao eterna da alma na priso do inferno e da escurido da noite eterna (203.4) ditas obrigaes negativas; 4) estabelece, ao mesmo tempo, os mecanismos de salvao, comportamentos e prticas que permitam aos cristos a recompensa eterna (204.2). 4. Pscoa
4.1. Identidade e Compromisso

Em nossa anlise, prefiguram-se nos sermes de Cesrio trs aspectos referentes confeco de atributos de identificao e unidade apresentados ecclesia no decorrer da celebrao. Por um lado, o contedo teolgico da Pscoa crist deriva da sntese de duas tradies confeccionadas pela Patrstica Antiga, conhecidas como tradio asitica e tradio alexandrina. Por outro, percebe-se que a Pscoa concebida em estreito vnculo com o Batismo, instncia constituinte de iniciao na vida crist e veculo primrio de identificao entre os fiis. (GERARDI, 2003, p. 72). A princpio destacamos a vertente asitica, filiada Igreja latina com maior mpeto durante o alto medievo, denotando especialmente o significado cristolgico da Ressureio de Cristo perpetrada na celebrao, ressaltando em seu contedo a comemorao dos eventos do passado, rememorando o crime cometido durante a pscoa judaica. (RORDORF, 2002, p. 1096) O sermo 203, possivelmente inspirado na coleo eusebiana, alinha-se a estas premissas, conclamando os cristos a divulgarem e tomarem parte na expanso da comunidade. A exortao enrgica da prdica lana-se especialmente contra os fariseus, associados ao diabo e responsabilizados pela morte do Salvador, morto injustamente pela perfdia judaica, em favor da redeno dos pecados dos homens. As chagas de Cristo, expostas na ressurreio pascoal, relembram da morte Dele: Fariseus, sabeis da perversidade de vosso crime. Ns reconhecemos os pregos que pusestes, e adoramos Aquele que matastes. Vedes a quem ofendestes (203.3). A vertente alexandrina, por sua vez, institui-se a partir de seu contedo antropolgico, excepcional, sendo a Ressureio de Cristo enredada pela antecipao da Ressurreio Eterna no Reino de Deus (204.1). (VAN ASSELDONK, 2003, p. 573; RORDORF, 2002, p. 1096) A Pscoa, no sermo 204, propagada nesta perspectiva: trata-se de um evento extraordinrio justamente porque vislumbra prematuramente a Verdade e, com isso, eleva os homens das profundezas atravs da virtude, pondo-os acima das coisas mundanas, estabelecendo-os no alto (204.1). Desta feita, a ecclesia deleitase jubilosa diante do Paraso no dia da Pscoa, confiante de que a devoo e o amor inspirados por Cristo sero recompensados. Fundamentalmente, a celebrao pascalina deve ser compreendida em relao direta com o sacramento do Batismo. Os sermes dedicados festividade insistem na renovao pascal do compromisso assumido com Cristo (200.6) ao longo de toda a sua composio. Compreendido como fundamento basilar de identidade crist na medida em que o reconhecimento perante a comunidade religiosa se d a partir desta sagrao , o Batismo engendra a
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OS SERMES DA PSCOA DE CESRIO DE ARLES: ATUAO EPISCOPAL NA GLIA NO SCULO VI

insero ao habitus referente e, ao mesmo tempo, a unidade aos membros da ecclesia. Deve, portanto, ser restitudo no dia da ressurreio do Senhor. O mistrio da Pscoa est intimamente vinculado queles que anseiam receber o Batismo, e consequentemente tornarem-se parte da ecclesia. Os catecmenos, a quem Cesrio dedica diretamente um sermo (200) e faz aluses indiretas em todos os demais, devem experimentar um perodo de provao e preparo, de corpo e corao. Ao final dos dias pascais, esperado que se mostrem dignos de admisso na congregao, contando com a ajuda dos fiis, mesmo posteriormente sua aceitao e ao Batismo. Pais e filhos (200.6), respectivamente fiis e catecmenos, devem dedicarse edificao da comunidade: os primeiros, atravs dos bons exemplos e das lies, censurando e reprovando (204.3) os ltimos, que precisam esforar-se por imit-los (200.6). Desta forma, a Pscoa e o sacramento batismal renovado ou institudo projetam uma unidade crist, inscrita em trs espectros: a exaltao da ecclesia diante dos judeus, inimigos do povo da nova aliana; o Reino de Deus antecipado em terra, diluindo as fronteiras entre clrigos e leigos; e, finalmente, a filiao entre os catecmenos e os fiis.
4.2. Autoridade Religiosa

Entre as prerrogativas que conferem autoridade religiosa ao predicador Cesrio, percebemos que seus sermes ambicionam legitimarse em certa medida nas Sagradas Escrituras: diante do testemunho de Paulo, nomeado exclusivamente O Apstolo (200.2, 202.4), das palavras do abenoado Pedro (202.3) e da exclamao de Thiago (199.5); de acordo com o que est escrito em Lucas e Matheus e, com menor destaque, nos Salmos e Provrbios. Interessante observar que Cesrio faz meno direta Me Igreja somente na pregao dirigida aos catecmenos (200.5). Substancialmente, a autoridade religiosa se corrobora nesses sermes pelo controle do sacramento do Batismo: Tudo aquilo que feito externamente a ti perfeitamente interiorizado em sua alma pela beno do Esprito Santo (...)Tudo aquilo que feito a ti fisicamente pela lngua ou mos de homens completado espiritualmente pelo ministrio dos anjos (200.2). Recorrendo renovao da prtica em toda a cerimnia, o clrigo procura (re)constituir a validade da interveno do predicador, posto que ele concede intercedendo diretamente com o Esprito Santo a incorporao no povo da nova aliana, ao ministrar a uno e a imposio da mo (200.2). A disposio do capital religioso encontra-se, neste campo, partilhada em somas desiguais. O clrigo, aquele que ministra o Batismo, eleva-se frente da congregao. Os catecmenos, por sua vez, encontram-se desprovidos de qualquer competncia. Em verdade, Cesrio procura desqualificar e mesmo demonizar quaisquer referncias aos costumes e prticas deste grupo, que aspira entrada na ecclesia: catecmenos no podem ser reconhecidos por nada, exceto por serem aqueles que pedem juntos (200.1). Sua tentativa de imerso no habitus cristo compreendida com um rompimento com o pecado e demnio: Ainda que tenhais, de incio, lutado sob a mais cruel tirania do demnio, 385

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

abandonando-o podeis retornar ao servio de Cristo, legtimo rei (200.2). Conforme observamos, diante dos catecmenos mesmo os fiis tm autoridade: a relao entre os cristos e os iniciantes concebida, na pregao, como de pais e filhos (204.3). O discurso eclesistico preocupa-se tanto em diferenciar as atuaes dos clrigos e leigos no campo religioso que somente no decorrer do momento excepcional, como a Pscoa da ressurreio antecipada aos fiis (Sermo 204), esta distino encontra-se flexibilizada: Aqueles que, muito embora batizados em Cristo anteriormente, no podem usar a veste branca, no devem por isso abandonar sua conduta impecvel (...). A alma que propriamente pura muitas vezes encontra-se escondida sob um aspecto sombrio, no fazendo muita diferena se algum tem ou no a veste branca (204.2). O carter excepcional do evento faz a prpria pregao esforar-se por dissolver uma atribuio visual conferida pelos clrigos aos catecmenos.
4.3. Obrigaes Negativas e Meios de Salvao

Refletir acerca das orientaes ambivalentes projetadas na pregao pascalina revela-se um exerccio complexo. Na medida em que a festa projetase aos ouvintes como xtase da identidade e unidade crist e o sacramento do Batismo constituindo o mago da celebrao, por sua renovao ou pela espera de sua consagrao as prerrogativas normatizadoras precipitam-se preferencialmente sobre o grupo que anseia tornar-se cristo, os catecmenos. Desta feita, pode-se afirmar que o mbito dos interditos que incidem sobre os catecmenos substancialmente tido como obrigao negativa, uma vez que estes devem esforar-se para alcanar mudana de bodes para cordeiros (...) do lado esquerdo para o lado direito (200.5), abandonando a influncia diablica. Entre as premissas postas aos mesmos esto a supresso inveja, ao orgulho (200.5) e ao ressentimento (200.3), a entrega penitncia e o implorar pela misericrdia divina em caso de terem cometido roubo, assassinato, adultrio e aborto (200.4). De acordo com Cesrio, os catecmenos no devem praticar nada injusto ou desonesto, para que no sejam repudiados pela Me Igreja (200.5). A atuao dos catecmenos no sentido de garantir o seu meio de salvao a partir do batismo bastante restrita: resta-lhes serem gentis, humildes, tenros e temperados (200.5), devendo os casados observar a castidade por muito tempo antes e depois do sacramento. Necessariamente, as prticas asseveradas ao grupo so correlatas quilo que se dispe ao povo da aliana. Interessante perceber que o conclame do pregador para que os fiis tomem parte na edificao dos catecmenos (200.6; 204.3) configura-se como meio de salvao congregao em boa parte das intervenes: aqueles que desejam receber [os catecmenos] piamente como filhos e filhas devem incessantemente repreend-los, antes e depois do batismo, e ensinar-lhes sobre castidade, humildade, temperana e paz (200.6). No entanto, por vezes o chamado ecclesia na assuno dos catecmenos reveste-se indissociavelmente como crtica aos comportamentos dos fiis, portanto carregando uma valncia de obrigao negativa aos ltimos: Fazeis [os catecmenos] apartar
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OS SERMES DA PSCOA DE CESRIO DE ARLES: ATUAO EPISCOPAL NA GLIA NO SCULO VI

dos mgicos, ministros do diabo; fazei-vos atar f Catlica, participar (...) assiduamente dos servios da igreja, condenar a verbosidade, ouvir as lies divinas com ateno (204.3). Os fiis salvam-se no s pelas lies aos catecmenos e pelos bons exemplos: os cristos devem esforar-se por viver de maneira moderada, casta e devota, se quiserem manter suas vestimentas de batismo impecveis e livres de qualquer mancha de pecado (203.4). O Batismo, sacramento manipulado pela atuao pastoral episcopal, preferencialmente no decorrer das festividades pascais (225.6), instncia primordial de identidade do cristo na baslica, na parquia e na ecclesia (campo religioso) confere unidade audincia, necessariamente inscrevendo condutas virtuosas e condenatrias. 5. Concluso Cesrio dedicou-se como poucos bispos de sua poca atuao pastoral. Para alm de motivaes espirituais e intelectuais influncia de Juliano Pomrio e Agostinho neste domnio de seu ambicioso projeto episcopal, factvel inferir que a amplitude de sua pregao encontra-se indissociada de sua proeminncia poltico-eclesistica, mesmo esta sujeita a oscilaes. A Pscoa, festa instauradora do calendrio litrgico cristo, desenrolase em sua pregao projetando referenciais de identificao e pertencimento audincia, a partir de interdies ambivalentes de unidade, isto , fundamentada na diluio das distncias entre clrigos e leigos, fiis e catecmenos e, finalmente, entre a ecclesia e os seus histricos adversrios judeus. Na prdica pascalina, o batismo fundamenta-se como compromisso caracterstico: seu advento ou sua renovao conferem audincia premissas e norteamentos pertinentes temporalidade crist, ao comportamento admoestado aos fiis e autoridade religiosa responsvel pelo ministrio do sacramento. A cristianizao avocada por Cesrio enreda-se, portanto, nos festejos da Ressurreio, instituindo um habitus e conformando um campo cristo. Aos fiis, a adeso representada pelo batismo pascal engendra expectativas de insero em seu projeto episcopal a saber, em sua chancela temporal e secular.
Bibliografia Documentos medievais CESRIO DE ARLES. Sermones. In: MUELLER, M. M. (Ed.) Caesarius of Arles: Sermons: fathers of the Church (66) (Sermons 187-238). Washington: Catholic University of America, 1973. Bibliografia especfica BATANY, J. Escrito/Oral. In: LE GOFF, J. e SCHMITT, J-C. (Org.) Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. So Paulo: IOE, 2002. p. 383-395. BOURDIEU, P. Gnese dos conceitos de habitus e campo. In: O Poder Simblico. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989. p. 59-73. BOURDIEU, P. Gnese e Estrutura do Campo Religioso. In: A Economia das Trocas Simblicas. So Paulo: Perspectiva, 2003. p. 27-78. DE BEAULIEU, M-A. Pregao. In: LE GOFF, J. e SCHMITT, J-C. (Org.) Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. So Paulo: IOE, 2002. p.367-377. FRIGHETTO, R. Cultura e Poder na Antiguidade Tardia Ocidental. Curitiba: Juru, 2000.

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Histria e fico na narrativa medieval e na escrita de Jos Saramago


Pedro Octvio Imbroise Silva*

rago para esta comunicao uma temtica que sempre suscitou inmeras discusses historiogrficas e que nunca deixar de levantar questionamentos em virtude de seu carter enigmtico. Trata-se da questo sobre os limites entre a Histria e a Fico. Para melhor elucidar minha exposio e tentar situ-la dentro do campo da Histria Medieval, aproprio-me de dois textos, um ficcional e outro histrico, que tm em comum seu tema principal. Um deles consiste num texto de carter narrativo e identificado como um documento histrico (no-literrio), e conhecido com o nome De expugnatione Lyxbonensi (A expugnao Lisboeta).1 O documento se apresenta em forma de carta na qual o remetente conhecido apenas como R., mas que hoje considerado R(aul), escreve a Osb. de Bawdsey, hoje considerado Osb(erno) de Bawdsey,2 dando conta dos acontecimentos relacionados com a conquista da cidade de Lisboa, evento datado de 1147, no mbito da reconquista peninsular e da segunda cruzada, quando Afonso Henriques, que estava se tornando o primeiro rei de Portugal, avana com seu prprio exrcito contra a Lisboa dominada pelos mouros, recebendo ajuda fundamental de cruzados oriundos de vrias localidades do Norte da Europa,33 e que se dirigiam para a Palestina. J o outro texto uma obra literria escrita por Jos Saramago, A Histria do Cerco de Lisboa. Na obra o personagem principal, Raimundo Silva, revisor de uma editora, revolta-se com a ajuda dada pelos cruzados na libertao da cidade de Lisboa e, ao revisar um livro de histria atribui-lhes um No em resposta ao pedido de Afonso Henriques em vez do Sim oficialmente registrado.4 Seu ato causa grande turbulncia na editora que contrata Maria Sara como chefe dos revisores, em especial de Raimundo Silva. Dada a proximidade que passa a existir entre os dois, esta lhe pede, em tom quase de desafio, que reescreva a histria a partir da perspectiva do No. A partir da, sem poder mudar os acontecimentos futuros em relao ao ocorrido, ou seja, mantendo o discurso histrico, Raimundo Silva cria sua prpria verdade histrica sem poder contar com o contingente de cruzados que, segundo a fonte histrica, participaram do evento. Saramago constri o discurso tendo a literatura e a histria como seus grandes temas. Percebe-se que a obra opera um discurso de entremeio a partir da sobreposio de camadas narrativas aparentemente opostas. A partir da mistura de enunciados histricos e ficcionais, surge um estado de entremeio
*Graduando em Histria na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

entre o real e o imaginrio, construdo por sensveis diferenas de discurso. Alm de romper as fronteiras entre o histrico e o literrio, Saramago mexe com questes como verdade e fico, real e imaginrio, histria oficial e testemunho de vida. Ao mesmo tempo em que sua narrativa realiza uma problemtica unio entre historia e literatura, desenvolve uma intertextualidade com os princpios do movimento denominado Nova Histria, o que favorece uma interpretao mais epistemolgica da sua obra. Percebe-se claramente que o fato que vincula a obra literria discusso expressa-se atravs da insero do No de Raimundo Silva acerca da verdade histrica, abrindo discusso sobre a verso oficial, expandindo o conceito de verdade. No caso, a verdade histrica a de que os Cruzados deram ajuda fundamental aos portugueses na tomada da cidade de Lisboa, ocorrida no ano de 1147, e a correo se faz a partir da rasura deliberada. Diante de tal fato, como no pensar que o Sim histrico no foi tambm includo por uma vontade diferente dos acontecimentos? A palavra verdade, ento, passa a assumir grande pluralidade, possibilitando relativizar o documento histrico enquanto narrativa. Diante disso torna-se de suma importncia, dar esclarecimento sobre como deve ser a escrita da histria e o que representa esta escrita, no com pretenses de propor um paradigma e, com isso, entrar na longa discusso que existe sobre a questo, hoje, no campo das cincias sociais, mas sim, discutir sobre o conceito de verdade histrica. Questiona-se exatamente a existncia desta verdade, sendo posta a Histria como possuidora de vrios sentidos, tanto para aqueles que a escrevem como para aqueles que a lem. Isto talvez se justifique por ser a Histria uma construo do historiador. Ele reconstri o passado, atribuilhe um sentido, sob a influncia de suas crenas, convices, e personalidade. Conseqentemente o conhecimento histrico est ligado poca de sua produo, ao presente do historiador, que sempre novo. Se o presente sempre novo e reinterpreta de forma nova o passado, a verdade do passado ser tambm sempre nova, pois dominada pela novidade do presente. A princpio o que basicamente isto representa que a histria um conhecimento indireto do passado, baseado em testemunhos e vestgios. A histria no mostra o vivido ao vivo, diretamente. No se sabe se as afirmaes sobre o passado se referem a ele, j que uma afirmao fictcia tem a mesma estrutura, a linguagem que o historiador utiliza a mesma da fico. A obra de Saramago elucida isto, pois ela o produto de diversos subtextos: histrico, mtico, literrio, cultural, potico, ficcional, metaficcional. A histria apresenta-se como o sincretismo de diversas histrias que se entrecruzam e se confundem, sem que uma prevalea hierarquicamente sobre a outra. Chartier nos traz algo importante para discutir, pois mostra que, como muito se discute, a histria uma narrativa, assim como o texto literrio, e que este possui um discurso montado, mas acrescenta que no uma narrativa qualquer, pois tem as suas regras com um corpo de enunciados, sendo assim uma cincia. Chartier coloca a questo da prova no centro da investigao histrica. Indaga - se ento: o que provar em histria? A definio mais bsica de provar a tentativa de demonstrar uma verdade, sendo que a verdade da
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HISTRIA E FICO NA NARRATIVA MEDIEVAL E NA ESCRITA DE JOS SARAMAGO

escrita histrica representaria o correto exerccio da crtica documental ou o devido manejo das tcnicas de anlise dos materiais histricos (CHARTIER, 1990, p. 85). Sob esta perspectiva a histria pode ser diferenciada da fico e ser validada como uma reconstituio objetiva do passado, conhecido atravs dos seus vestgios. Portanto a verdade seria garantida por operaes controlveis, verificveis, renovveis. Porm Chartier ressalta que no basta assegurar a objetividade das tcnicas para eliminar o carter indireto ou conjetural do conhecimento ao qual a histria se prope a produzir. A sada no estaria simplesmente no controle das operaes de base, e sim:
Encarar como possveis, provveis, verossmeis, as relaes postuladas pelo historiador entre os vestgios documentais e os fenmenos indiciados por eles, ou seja, as representaes manipulveis hoje em dia e as prticas passadas que elas designam. (...) Colocar simultaneamente todo um conjunto de questes que dizem respeito tanto pertinncia e representatividade dos vestgios acessveis (...) com a maneira de articular a relao entre representaes das prticas e prticas de representao. (CHARTIER, 1990, p. 85)

Enfocando novamente sobre o documento histrico, podemo-nos perguntar a que propsitos a carta responderia quando foi escrita, talvez seja o maior ponto de discusso a ser levantado a seu respeito. Apesar de no se ter informaes a respeito da circulao do texto, o que inviabiliza afirmaes mais precisas, boas evidncias indicam que um jogo de interesses estaria por traz de sua composio. A isto se pode chegar com a anlise de todo o material que foi utilizado para a sua composio, inclusive documentos rgios, o que mostra clara ligao do autor da carta com D. Afonso Henriques, alm de transcries de discursos de seus assessores D. Pedro Pites e D. Joo Peculiar.5 Alm disso, a escrita, produzida de forma extremamente minuciosa, preocupada em exaltar aes e homens, principalmente D. Afonso Henriques, refora a hiptese de que o documento faz parte de uma estratgia de Afonso Henriques que, visando ser reconhecido pela Igreja de Roma como rei cristo e dar o estatuto de reino a seus territrios, busca atravs das sucessivas vitrias contra os mouros ser visto por Roma como Miles Sancti Petri, no esforo de reconquista de territrios para a Cristandade, de acordo com os desgnios estabelecidos pelo papado: o servio de so Pedro, servio este integrado na poltica da libertas Ecclesiae da Reforma Gregoriana. Desta forma combatia o infiel muulmano em defesa da Cristandade atravs de uma guerra santa e justa. O rei dos portugueses, um rei cristo que estava imbudo, na tomada da cidade de Lisboa, de repor a ordem e a legitimidade da posse correta, aparece sempre a desempenhar o papel que seria desejvel. Fica claro que a narrativa tenta expor o seu esforo pessoal e de todos os seus assessores numa empresa preocupada em seguir a linha dos desgnios pontifcios, agindo sempre no seu projeto com moderao e com a conquista de terras para a cristandade. Esta parece ser a preocupao prvia do autor na composio do documento. Como foi dito no se sabe sobre a circulao deste texto, o que inviabiliza qualquer afirmao mais precisa. De qualquer forma, quais fossem as motivaes do 391

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

autor R.(aul) em relatar com preciso os principais acontecimentos do evento, no seria de se estranhar o fato do mesmo, seja por iniciativa prpria ou apoiado pelo rei e seus assessores, ter tentado supervalorizar a imagem do Rei e dos que o acompanhavam na luta de reconquista, fazendo com que a cristandade tomasse conhecimento da to gloriosa vitria. Apesar dessas boas evidncias qualificarem o documento como um instrumento estratgico, outras possveis interpretaes apresentam-se, apesar de menos provveis, mas como possveis. Desta forma a possibilidade, por exemplo, de a carta significar apenas uma simples comunicao entre R[aul] e Osb[erno], relatando todos os acontecimentos do evento no pode ser descartada, apesar de pouco plausvel. Os conceitos de verdade, viabilidade e possibilidade se confundem. Enquanto no alcanares a verdade, no poders corrigi-la. Porm, se no a corrigires, no a alcanars. Entretanto, no te resignes. Do Livro dos Conselhos (SARAMAGO, 1989, epgrafe) A citao desta epgrafe foi inventada, retirada de um livro fictcio por Saramago. , na verdade, uma brincadeira do autor com a verdade histrica dos grandes livros. Sabe-se que o tal livro dos Conselhos, citado em suas obras, no existe. Em A Historia do Cerco de Lisboa, ele constri uma trama que mostra como a verdade sempre fruto de uma subjetivao, o que no nos desobriga a lutar por ela. Embora a verdade seja inatingvel, como sugere a epgrafe, a sua busca que move o historiador e d sentido a grande parte do trabalho historiogrfico. O texto literrio em Saramago uma mentira assumida pela qual ele tenta se aproximar do real. Sua sina como escritor a sina de muitos de inventar relatos que busquem explicaes, mesmo que provisrias, para aliviar a carga das infinitas indagaes a respeito do mundo. Acredito que uma boa definio de verdade dada por Kant. Para o mesmo a verdade aquilo que um sujeito humano, em linguagem humana, pode formular com alguma segurana sobre objetos bem determinados. Percebe-se que a verdade depende de uma relao sujeito objeto, da iniciativa construtiva do real pelo sujeito. No h uma verdade que se auto apresente e que dispense a construo e o discurso. A definio de Kant marcante, pois define um limite. Acredito que qualquer afirmao que v alm desta rompe uma fronteira que ainda no pode ser rompida. Diante do que est sendo exposto e focando sobre a fonte histrica, De expugnatione Lyxbonensi, e o texto literrio, A Histria do Cerco de Lisboa, percebe-se que o limite entre a fico e a histria tnue criando-se um lugar de interseo comum entre as duas reas. Neste espao esto contidas as possveis interpretaes da carta, onde todo o conceito de histria se mantm e tambm se dilui quando a temos como objeto da fico. A veracidade histrica pode ser confirmada, j que o narrado se aproxima do verossmil. Contudo a relao estabelecida pelo narrador com os elementos narrativos lhe atribui carga de ficcionalidade. Percebe-se que a verdade histrica no pode se reduzir a algo fechado e homogneo. Obtm-se algo prximo dela, examinando todas as leituras possveis. Creio que o exame exaustivo de um tema que diz a sua verdade. Como as possibilidades novas de abordar um tema histrico so quase infinitas, as novas leituras so mltiplas
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no presente e ao longo do tempo. Portanto, conhecer a verdade de um tema histrico reunir e juntar todas as possibilidades de interpretao a respeito do objeto estudado. Conclui-se que cada texto pode ter vrias leituras porque existem tambm diferentes escritas dependentes de onde o foco de luz da interpretao jogado. Assim busco o que seria a verdade dentro do meu plano de compreenso do fato narrado, ciente de que no chego a uma verdade absoluta, porque como diz Hayden White sobre a Histria e a sua prtica historiogrfica, elas no necessitam de um nico sentido, e sim podem possuir vrios. A histria tem muitas histrias, podendo-se perceber isso nas discusses da Nova Histria, onde tudo histria. Esse questionamento dos sentidos pode talvez demonstrar um certo desprezo pela teoria da histria, principalmente da questo dos paradigmas, pois no seria necessria teoria se so diversos os sentidos das coisas. Muitos historiadores discordam dessa posio, acham que a histria possui um sentido e a teoria deve discuti-lo. Creio ainda no existir fuga para isso, mas vale dizer que antes de discutir se a prtica historiogrfica dotada de carter cientfico, acima de tudo ela produtora de conhecimento. Deve-se esperar uma objetividade especfica, diferente das cincias naturais. No h um nico modelo de cientificidade, mas vrios. um tipo de objetividade que exige a presena da subjetividade. Assim, ao analisar o De expugnatione Lyxbonensi, o documento , pois utilizado como fonte de busca por indcios, sendo que a coleta coerente e organizada desses indcios permite utilizar tanto as informaes expressas que o documento passa quanto os silncios e as omisses formulando assim a hiptese de que o cruzado, o narrador, intenta reforar no seu relato a idia de uma vassalagem de D. Afonso Henriques a Roma, o que o torna bem prximo de um provvel projeto do rei e esta proximidade se comprova pela utilizao do autor de documentos da chancelaria de D. Afonso Henriques na composio do relato. Percebe-se que o texto recheado de inmeras questes que ainda no foram exploradas, de rumores, de possibilidades que o circundam, mas que, por causas diversas no foram elevadas, seja por comprovao ou interesse sem, contudo, deixarem de ser importantes ou existir. No obstante trabalha-se com a verdade construda por um consenso historiogrfico que daqui a algum tempo, sem conseguir precisar exatamente quanto, pode se manter ou se diluir.
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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Notas 1 O documento se encontra no Corpus Christi College da Universidade de Cambridge, no cdice n. 470, folhas 125-146. O texto j recebeu edies completas de Jos Augusto Oliveira e Charles Wendell David, ambas de 1936, e a mais recente de Aires Augusto do Nascimento, que a edio utilizada no presente trabalho. 2 Harold Livermore prope que se interprete o remetente da carta R. como abreviatura de Raol, baseado na anlise de um documento de 1148 onde o autor Raol faz uma doao a Santa Cruz de Coimbra. O historiador Ingls prope que os dois devem significar uma autoria comum em virtude de algumas coincidncias constatadas: ambos esto presentes na Conquista de Lisboa no primeiro desembarque, os dois eram devotos de Santa Maria e com ligao aos meios regrantes, ambos estavam presentes em Portugal no inverno seguinte conquista e mantinham ntima ligao com D. Afonso Henriques. J com relao ao nome Osb[erto] apresenta-se como provvel, depois de anteriormente ter sido considerado como Osberno. Para um melhor esclarecimento das questes dos nomes e da autoria da carta ver a introduo de Maria Joo V. Branco e notas de Aires A. Nascimento In: A Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de Um Cruzado. Edio, traduo e notas de Aires A. Nascimento; Introduo Maria Joo V. Branco. Lisboa: Vega, 2001. p. 29-34. 3 A estrutura do exrcito dos cruzados. In: A Conquista de Lisboa aos Mouros, Relato de Um Cruzado. Edio, traduo e notas de Aires A. Nascimento, Introduo Maria Joo V. Branco. Lisboa: Vega, 2001. p. 55. - Cruzados oriundos de vrias regies do Imprio Germnico. Comandante: o conde belga ARNOLDO DE AERSCHOT - Cruzados de Flandres e Bolonha. Comandante: CRISTIANO DE GISTELLES - Cruzados de Norfolk e Suffolk. Comandante: HERVEY DE GLANVILLE - Os navios de Kent. Comandante: SIMO DE DOVER - Os navios de Londres. Comandante. ANDR - Todos os navios restantes. Comandante: SARIO DE ARCHELLES 4 Este registro atestado na historiografia por uma carta retirada das obras completas de So Bernardo de Claraval. O contedo desta carta gera controvrsias, pois no evidencia clareza ao que hoje se considera como uma resposta positiva de So Bernardo a um pedido de auxlio de D. Afonso Henriques, na tentativa de conquistar a cidade de Lisboa. Durante muitos anos esta carta foi considerada falsa, porm, recentemente, a crtica trouxe convincentes argumentos em prol de sua autenticidade. Considerando-a como legtima, aceita-se que em 1146 ao pregar a Segunda Cruzada nos Pases Baixos e no Imprio, So Bernardo, tenha aliciado um contingente de cruzados, a caminho da Terra Santa, que auxiliassem D. Afonso Henriques na conquista de Lisboa, o que veio a ocorrer no ano seguinte. 5 D. Pedro Pites, bispo do Porto. A fonte registra um sermo promovido Poe este para receber os cruzados em sua cidade exortando-os a guerra contra os mouros. D. Joo Peculiar, arcebispo de Braga entre 1138-1175, antigo bispo do Porto por indicao de D. Afonso Henriques em 1136, mas que logo passou a Braga, em 1138. O arcebispo foi a figura fundamental no relacionamento de D.Afonso Henriques com a Cria Romana, o seu homem de confiana para as questes diplomticas junto Santa S.

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Concepo do poder real no reino visigodo: reflexes acerca da Historia gothorum de Isidoro de Sevilha e na Chronica de Joo de Biclaro
Vernica da Costa Silveira* Edilaine Vieira Costa**

trabalho que se segue est diretamente relacionado s pesquisas que estamos conduzindo sob a orientao da Professora Doutora Leila Rodrigues. O principal motivo que nos levou a realizar tais reflexes em conjunto foi o fato de estarmos trabalhando com uma fonte em comum: a crnica de Joo de Biclaro. Apesar de nossas pesquisas estarem seguindo caminhos bem diferentes, aproximamo-nos no tocante s idias relativas concepo do poder real. Em suma, podemos dizer que esse artigo resultado de diversas discusses vinculadas s apreenses acerca do poder dos monarcas visigodos. Concentraremos nossa anlise nas perspectivas de Joo de Biclaro e Isidoro de Sevilha em relao ao reinado de Leovigildo. Adotamos como documentos as narrativas de Isidoro e Joo por tratarem basicamente do mesmo assunto, a histria do reino visigodo. Embora o primeiro aborde um perodo mais amplo que o segundo, que se concentra principalmente no reinado de Leovigildo. Alm disso, os dois autores estavam inseridos no contexto do j referido reino, ambos seguiam a doutrina estabelecida no primeiro Conclio de Nicia1 e eram bispos. Os reis germnicos Em linhas gerais os chefes germnicos eram, essencialmente, guerreiros eleitos por uma assemblia formada pela aristocracia, tambm guerreira. Os contatos entre germnicos e romanos gradativamente foram estabelecendo encontros entre as tradies especficas relativas aos dois grupos. A partir da segunda metade do sculo V, o Imprio Romano Ocidental j havia se desagregado. Em seu lugar estabeleceram-se diversos reinos romanogermnicos, por exemplo, o reino visigodo na Pennsula Ibrica, ostrogodo na Pennsula Itlica, franco na Glia, na Britnia diversos reinos anglos, saxes e jutos, dentre outros. Cabe frisar que a desagregao do Imprio Romano deuse, sobretudo, no tocante s suas instituies poltico-administrativas, o ideal de sua centralidade permaneceu. Alm disso, no podemos atribuir aos povos germnicos a desagregao do Imprio, tendo em vista que justamente a
*Graduanda em Histria na Universidade Federal do Rio de Janeiro. **Graduanda em Histria na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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crise que j ocorria no ltimo que facilitou, ou permitiu, que os germanos penetrassem para alm de suas fronteiras. J estabelecidos nos territrios outrora romanos, o poder dos soberanos germnicos era teoricamente total. O poder desses monarcas baseava-se fundamentalmente em duas prerrogativas de componente germnico mais aparente: o mundium ou mundebardium, pelo qual o rei protetor, pacificador e administrador da justia, e o bannum ou bann, pelo qual o monarca tem amplas faculdades para dar ordens e formular proibies nos campos da administrao civil e militar (MITRE, s/d, p.52). Entretanto, o encontro entre as tradies romanas e germnicas resultou em problemas para as regras de sucesso dos monarcas. Enquanto que para os romanos o sucessor do imperador era seu filho primognito, para os germanos, em geral, a sucesso dava-se atravs da eleio, como j destacamos anteriormente. Assim sendo, a legitimidade dos monarcas visigodos poderia ser facilmente contestada. Para evitar que isso ocorresse utilizaram um mecanismo de legitimidade que se apoiava, alm da aceitao por parte da aristocracia, no reconhecimento tambm por parte das autoridades religiosas, neste caso, j crists. Esse aspecto foi fundamental para a manuteno da ordem dentro dos reinos. O reino visigodo durante o reinado de Leovigildo Os visigodos entram no Imprio Romano j convertidos ao cristianismo, contudo, no em sua verso nicena e sim ariana.2 Entretanto, a maioria da populao, formada por hispano-romanos, seguia a doutrina estabelecida em Nicia. Aps sucessivas disputas internas, Leovigildo assume o poder em 568 e adota uma postura poltica que visava unificao territorial e o fortalecimento do poder rgio. O monarca tratou de buscar superar as barreiras religiosas que afastavam hispano-romanos dos godos. Nesse sentido, facilitou a converso dos catlicos ao credo ariano, quando estabeleceu que tal converso deveria ocorrer atravs de um ritual de purificao e no atravs de um novo batismo. Com isso um nmero considervel de catlicos se convertem (R. VALVERDE, 1999, p. 123). Parece-nos que, no tocante a essa questo, o que preocupava Leovigildo, mais do que a orientao doutrinria, era a questo poltica, ou seja, a perseguio aos catlicos dava-se principalmente quando a ordem dentro do reino era ameaada. Antes do reinado de Leovigildo, a Pennsula Ibrica estava longe de uma homogeneidade territorial. O monarca, a partir de 570, investe sobre a regio do sul, que estava dominada pelos bizantinos. Em 572 conquista Crdoba e grande parte da antiga Btica. Leovigildo, em 574, anexa a Cantbria e no ano de 585 o conjunto do reino suevo (RUCQUOI, 1995, p. 36). Entre 579 e 584 Hermenegildo, o primognito de Leovigildo, rebela-se contra o pai, sua revolta era legitimada pela converso de Hermenegildo doutrina nicena. Nesse processo, era apoiado por bispos catlicos, como por exemplo, Leandro de Sevilha, pelos francos na Glia e pelo Imprio Romano Oriental. Esse apoio, entretanto, no tornou sua insurreio bem sucedida, nem os francos, nem o Imprio do Oriente enviaram um nmero significativo de tropas, conforme o previsto. Leovigildo consegue superar a
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rebelio, Hermenegildo preso e morre um ano depois na priso. A revolta de Hermenegildo consistiu em um duro golpe contra a poltica de unificao territorial empreendida por Leovigildo, que at ento s perseguia os bispos que se opunham sua poltica unificadora. O desterro dos bispos catlicos ocorreu mais sistematicamente aps a revolta, essa postura foi adotada principalmente para bispos que apoiaram a rebelio de Hermenegildo, como, por exemplo, o j citado Leandro de Sevilha. Alm disso, a rebelio aumenta a controvrsia entre arianos e ortodoxos (R. VALVERDE, 1999, p. 126-130). Joo de Biclaro So poucos os documentos que nos fornecem informaes a respeito da vida de Joo de Biclaro. Isidoro de Sevilha em sua De Viris illustribus afirma: multa alia scribere dicitur, ou seja, que muito teria escrito Joo Bclaro, entretanto, pouco sobreviveu at os nossos dias. conhecido pelos historiadores que Joo teria redigido uma regra, contudo, a mesma se perdeu. O documento redigido por Joo que sobreviveu at os nossos dias sua crnica. Joo teria nascido em 540, aproximadamente, em Scalabis (atual Santarm) na provncia Lusitana. De origem goda, ainda jovem vai para Constantinopla com o objetivo de estudar, permanecendo na cidade por, acreditase, sete anos. Retorna para a Pennsula Ibrica durante o reinado de Leovigildo, l se ope f ariana e por isso desterrado pelo monarca. Com a converso de Recaredo, filho de Leovigildo, f ortodoxa, em 587, Joo funda o monastrio de Biclaro, de onde recebe o nome pelo qual o conhecemos, tornando-se seu abade. Entre 590 e 591 ele nomeado Bispo de Gerona, permanecendo no cargo at sua morte que teria acontecido entre 621-625. A crnica biclarense narra um perodo de vinte e quatro anos, entre os anos de 565 at 589. O documento em questo a continuao da obra de Victor Tununense,3 iniciando-se exatamente onde a ltima termina, ou seja, o incio do reinado do imperador do Imprio Romano do Oriente Justino II. Joo segue a frmula caracterstica do gnero cronista, ocupando-se em adotar a cronologia como fio condutor da narrativa, preocupando-se em narrar os acontecimentos pretritos ocorridos em cada ano, sendo objetivo na apresentao dos acontecimentos, etc. Contudo a obra de Joo de Biclaro traz uma novidade, o autor no s utiliza os reinados dos imperadores romanos como cronologia, citando tambm o reinado dos monarcas visigodos. Outro aspecto interessante na obra de Joo a aparente imparcialidade com a qual o autor escreveu, essa imparcialidade d sinais de fraqueza a partir do relato da converso de Recaredo doutrina ortodoxa, narrada com um certo otimismo por Joo.
Recaredo, en el dcimo mes del primer ao de su reinado, se hace catlico con la ayuda de Dios (...) y reintegra en la unidad y la paz de la Iglesia cristiana a todo el pueblo de los godos y de los suevos. La secta arriana, con la gracia divina, acepta el dogma cristiano. (Joo, p. 138, linhas: 27-33). [grifo nosso]

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Isidoro de Sevilha Isidoro teria nascido em Cartagena no ano de 560, falecendo em 636. Recebeu educao fundamental na escola da Catedral de Sevilha, provavelmente sob a observao de seu irmo, Leandro de Sevilha, ento bispo da regio. Sabemos que alm de Leandro, seus outros dois irmo: Fulgncio e Florentina, seguiram a vida religiosa. Isidoro torna-se bispo de Sevilha logo aps a morte de Leandro em 589. Participa do II Conclio de Sevilha (619) e do IV Conclio de Toledo (633). No existe um consenso a respeito da adeso ou no de Isidoro vida monstica em algum perodo anterior ao qual ele se tornou bispo. No entanto, durante sua elevao ao episcopado tornou-se protetor dos monges, o que demonstra ser bem provvel a hiptese de que ele teria sim sido monge em algum momento. Sua obra vasta, sendo a mais famosa as Etymologiae, em que procura inserir todo o conhecimento do seu tempo. Morre deixando-a inacabada. seu amigo, e outrora discpulo, Brulio de Saragoza que a organiza. A Historia Gothorum escrita aproximadamente em 615 talvez por encargo do rei Sisebuto. Isidoro demonstra um interesse especial cronologia, o que estaria relacionado importncia que teve o mtodo etimolgico na obra de Isidoro. O corpo da crnica abarca desde a criao do mundo at o ano de 615 (GALN, 1994, p. 175). A obra de Isidoro e Joo no que se referem s narrativas acerca do reinado de Leovigildo Tanto Isidoro quanto Joo narram os feitos de Leovigildo. Percebemos nos escritos de ambos que dada importncia aos atos do monarca, entretanto Isidoro destaca que (...) el error de la impiedad ensombreci en l la gloria de tan grandes virtudes (Isidoro, pg. 255, linhas 18 a 20, verso longa). A crtica orientao doutrinria de Leovigildo aparece apenas uma vez nos escritos de Joo, ao contrrio do relato de Isidoro, como poder ser visto nas prximas citaes:
El rey Leovigildo rene em la ciudad de Toledo un snodo de obispos de la secta arriana y reforma la antigua hereja con un nuevo error, (...) ,no deben ser bautizar, sino purificados por la imposicin de las manos y la prescricin de la comunin y [deben] dar gloria al Padre por el Hijo en el Espritu Santo. Con este engao muchssimos de los nuestros pasan al dogma arriano, ms por su proprio deseo que por imposicin (Joo, p. 6. Linhas: 3-10). [grifo nosso]

Joo parece se ocupar em narrar os feitos de Leovigildo sem atacar diretamente orientao doutrinria do monarca, exceto na passagem mencionada. Podemos perceber, inclusive, no trecho da crnica transcrito ateriormente, que ao tratar do snodo de bispos arianos organizado pelo rei, Joo cita que a converso de alguns destes ao arianismo deu-se mais por vontade prpria do que por imposio. Ao resenhar o mesmo snodo, Isidoro adota uma postura diferente:

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CONCEPO DO PODER REAL NO REINO VISIGODO: REFLEXES ACERCA DA HISTORIA ... Entre otros contgios de su hereja, se atrevi tambin a reubatizar a los catlicos, no slo del pueblo, sino tambin de la dignidad del orden sacerdotal, como a Vicente de Zaragoza, al que convirti de obispo en apstata, y como si lo hubiera arrojado del cielo al infierno. (Isidoro, p. 257, linhas 12-20, verso longa)

Isidoro no informa se a converso de Vicente de Zaragoza ocorreu por vontade do convertido ou por imposio. Acreditamos que se fosse pela fora Isidoro se preocuparia em destacar isso em sua Historia Gothorum. A omisso de Isidoro acerca dessa informao revela uma preocupao em no indicar que um monarca que professava a f ariana estava sendo condescendente. Joo, por sua vez, se preocupa em relatar que a converso desse grande nmero de catlicos ocorreu mais por vontade prpria do que por imposio. Isidoro escreve ainda que Leovigildo se atreveu a rebatizar os catlicos, enquanto Joo afirma que o que props o monarca no foi um outro batismo, e sim uma purificao por imposio das mos. Isidoro ainda escreve que:
En efecto, lleno del furor de la perfdia arriana, promovi a persecucin contra los catlicos, releg ao destierro a muchsimos obispos y suprimi las rentas y privilegios de las iglesias. Empuj tambin a muchos a la pestilencia arriana con amenazas, y a la mayor parte los sedujo sin persecucin, atrayndolos con oro y con riquezas. (Isidoro, p. 271, linhas 1-11, verso longa)

As supostas perseguies, o desterro de muitos bispos catlicos, a supresso das rendas e privilgios da Igreja, assim como a converso forada de bispos catlicos ao arianismo no so relatadas por Joo de Biclaro. Escreve sua crnica logo aps os acontecimentos narrados, provavelmente como abade do mosteiro de Biclaro (GALN, 1994, p.84). J Isidoro escreve a Historia Gothorum aproximadamente trinta anos aps o reinado de Leovigildo, essa diferena temporal entre as produes das crnicas pode ter sido um fator pontual para compreendermos as diferenas relativas s narrativas que concernem ao reinado de Leovigildo (MARCOTEGUI, 2003, p. 290-294). Legitimidade do poder do monarca Mesmo Leovigildo professando uma f considerada hertica pela orientao doutrinria de Joo e de Isidoro, ambos parecem reconhecer a legitimidade do poder do monarca. Essa questo mostra-se aparente quando relatada a revolta de Hermenegildo. Enquanto Isidoro quase no menciona tal acontecimento, Joo, escreve que:
Mientras Leovigildo reina en tranquila paz com sus enemigos, uma ria domstica perturba la seguridad, pues em aqul ao su hijo Hermenegildo, por conspiracin de la reina Gosuinda, asume la tirana, se encierra en la ciudad de Sevilla, despus de haberse rebelado, y lleva consigo a la rebelin contra el padre a otras ciudades y castillos. Esta causa produjo mayores daos en el reino

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS de Espaa, tanto para los godos como para los romanos, que la incursin de los enemigos (Joo, p.135, linhas: 26-32).

Observamos que, mesmo tendo se convertido ao catolicismo e usado isso como aspecto justificador de sua rebelio, esse movimento quando narrado por um cronista catlico no visto com bons olhos. Os motivos mais claros podem ser observados na prpria crnica, Joo relata que essa rebelio teria causado mais danos para o reino do que as incurses inimigas, ou seja, a revolta desestabilizou a ordem que Leovigildo tinha obtido com sua poltica de unio territorial e diminuio das barreiras entre godos e hispano-romanos. Parecenos que Joo prezava essa ordem. Quanto ao uso do termo tirania4 por parte do cronista, cabvel destacar que tal expresso no tinha o mesmo sentido no perodo que possui atualmente. Em ambos os documentos, tanto de Joo quanto de Isidoro, a morte de Hermenegildo citada sem grande alarde. Mesmo na Historia Gothorum de Isidoro a rebelio pouco relatada. Venci, adems, despus de somerterle a un asedio, a su hijo Hermenegildo, que trataba de usurpale el mando (Isidoro, p. 255, linhas: 8-11, verso longa). Apesar da resenha de Isidoro apresentar mais crticas orientao doutrinria de Leovigildo do que o texto de Joo, o hispalense parece dar pouca importncia rebelio, e, alm disso, ele relata que Hermenegildo tentava usurpar o poder do pai. A partir de tal constatao, parece-nos que, assim como Joo, Isidoro reconhecia a legitimidade do reinado de Leovigildo mesmo ele sendo ariano. Esse reconhecimento da legitimidade do reinado do monarca pelos dois cronistas leva-nos a crer que ambos reconheciam o providencialismo do poder rgio, em poucas palavras, o monarca, independente da f que professava, era investido por Deus uma vez que nada fugia dos desgnios divinos. Como j citamos, os feitos de Leovigildo so aceitos pelos dois autores, talvez ambos enxergassem a ordem estabelecida pelo ltimo monarca ariano como o pragmatismo de seu reinado, afirmamos isso partindo do pressuposto de que essa ordem facilitou a converso de Recaredo, uma vez que o ltimo continuou a poltica de Leovigildo.
Bibliografia Documentos primrios BICLARO, Joo de. Chronica. Ed. A. ARIAS, Irene. Cuadernos de Historia de Espaa, n. 10, 1948. SEVILHA, Isidoro de. Historia Gothorum. In: RODRIGUEZ, Cristobal (edicion crtica y traducion). Las historias de los godos, vandalos y suevos de Isidoro de Sevillha. Leon: Centro de Estudos y Investigacion San Isidoro. Archivo Historico Dacesano. Caja de Ahorros y Monte de Piedad de Leon, 1975. SEVILHA, Isidoro de. Etimologias. Ed. bilnge (latim-espanhol) de J. Oroz Reta e MA. Marcos Casquero. Madrid: BAC, 1982. 2 v. Documentos secundrios ANDRADE, R.O. F. A tirania de um santo na Antiguidade Tardia sculo VI. So Paulo: 400

CONCEPO DO PODER REAL NO REINO VISIGODO: REFLEXES ACERCA DA HISTORIA ... UNESP, I Simpsio sobre Histria das Religies, 1999. Consultado em: http:// members.tripod.com/bmgil/afro20.html (12/09/2004) BERARDINO, ngelo Di. Dicionrio Patrstico e de Antiguidades crists. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. CAMPOS, Julio. Juan de Biclaro, o bispo de Gerona: su vida y su obra. Madrid: SchP, 1960. GALN SANCHEZ, Pedro Juan. El gnero historiogrfico de la chronica. Las cronicas hispanas de la epoca visigoda. Crceres: Universidad de Extremadura, 1994. MITRE FERNANDEZ, Emilio. Historia de la Edad Media-I: Occidente. Madrid: Alhambras, s/d. ORLANDIS, Jos. La conversion de la Europa al cristianismo. Madrid: Rialp, 1988. RUCQUOI, Adeline. Histria medieval da Pennsula Ibrica. Lisboa: Estampa, 1995. R. VALVERDE, Maria. Leovigildo. Persecusion religiosa y defesa de la unidad del reino. Iberia, Revista de la Antigedad, n. 2, p. 123-132, 1999. SOUTHERN, RW. A Igreja Medieval. Lisboa: Ulisseis, 1970. http://www.newadvent.org/cathen/15412a.htm (consultado em 16 de setembro de 2005). Notas Conclio convocado por Constantino em 326, aproximadamente. Considerado como o primeiro conclio ecumnico do cristianismo. nesse conclio que se estabelece o dogma da Trindade e que o arianismo considerado heresia. 2 O arianismo foi considerado heresia porque negava o dogma da Trindade. Jesus no seria consubstancial ao Pai, no seria, portanto, Deus, aquele que se fez carne. Assim sendo, Jesus estava subordinado a Deus. 3 Bispo de Tununna (Norte da frica). Morre em 569, provavelmente confinado em um mosteiro em Constantinopla. Sua crnica narra desde a criao do mundo at o ano de 566. http://www.newadvent.org/cathen/15412a.htm (consultado em 16 de setembro de 2005). 4 Etimologias de Isidoro de Sevilha.
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Gnero, a virgindade e a pobreza nos escritos de Clara de Assis


Maria Valdiza Rogrio Soares Introduo sta comunicao objetiva discutir o significado da virgindade e da pobreza para Clara de Assis pela perspectiva dos estudos de gnero. Neste trabalho, analisaremos somente a primeira carta escrita por Clara a Ins de Praga ao todo foram quatro missivas enviadas - porque acreditamos que nela os temas virgindade e pobreza so pontos cruciais, discutidos e vivenciados por ambas. No se conhece a data precisa de quando este documento foi escrito. Os autores apontam os anos de 1234 ou 1235. A carta era o meio atravs do qual Clara comunicava-se com a nova irm em Cristo, era o elo de informao para ambas. Nela, a irm clarissa preocupou-se em transmitir para Ins toda a sua forma de vida e dar conselhos que a ajudassem em seu ideal religioso. Atravs da anlise da carta, podemos detectar que Clara de Assis tinha um estilo prprio de escrever: ela carinhosa, usa jogos de palavras, aconselha, procurando levar nova irm a doutrina espiritual do Franciscanismo. Ressalta a relevncia da renncia luxria do mundo e a glria de uma vida em pobreza, seguindo o exemplo de Cristo. Tal documento relevante, pois se liga diretamente ao processo de difuso do Movimento Franciscano e luta de algumas mulheres em seguir os ideais de Francisco. A inteno inicial de Clara ao escrev-la foi de parabenizar a novia pela sua deciso por uma vida voltada para Cristo. Desta forma, nossa inteno verificar qual o sentido da virgindade e da pobreza para Clara, a partir do uso da categoria gnero.

Pressupostos tericos Para fazermos a associao entre virgindade, pobreza e gnero necessrio que antes apresentemos nossos pressupostos tericos. Trabalhamos com as proposies tericas elaboradas pela historiadora norteamericana Joan Wallace Scott. Para a autora, gnero significa o saber a respeito das diferenas sexuais. tambm uma forma primria de relaes significantes de poder. Ela introduz em sua anlise o conceito saber/poder de Foucault, ou seja, como significado da compreenso produzida pelas
Mestranda do Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 402

GNERO, A VIRGINDADE E A POBREZA NOS ESCRITOS DE CLARA DE ASSIS

culturas e sociedades sobre as relaes humanas, no caso, relaes entre homens e mulheres. Tal saber no absoluto ou verdadeiro, mas sempre relativo. Seus usos e significados nascem de uma disputa poltica e so os meios pelos quais as relaes de poder de dominao e subordinao so construdas (SCOTT, 1994, p 12). Ao trabalhar com esta concepo de poder, ela aponta para os processos pelos quais, no interior de redes de poder, a diferena biolgica passa a ser um operador de desigualdade social. Assim como Jane Flax, quando adotamos a categoria gnero estamos rejeitando o determinismo biolgico e apontando que a distino social homem-mulher e masculino-feminino no natural, universal ou invariante, mas constri-se discursivamente e est presente em todos os aspectos da experincia humana e parcialmente os constituem (FLAX, 1992, p. 230). Com isso no negamos a existncia corporal, s no concordamos que o biolgico seja o fator principal para explicar as diferenas entre os sexos. Da para Scott o gnero ser o saber que estabelece significados para as diferenas sexuais. Como pressupe diferenas, o gnero no pode mais ser tratado e visto como fato simples e natural, pois sua compreenso rejeita o carter fixo e permanente das oposies binrias postulando a desnaturalizao das identidades sexuais (SCOTT, 1994, p. 13) Assim, procuramos detectar com a anlise do documento como as categorias virgindade e pobreza so discursivamente produzidas/construdas por Clara de Assis dentro da perspectiva de gnero. Clara de Assis e Ins de Praga damas virgens e pobres No Ocidente, entre os sculos XII e XIII, o casamento era uma instituio que visava estabilidade da sociedade, servindo, sobretudo entre os nobres, para a gerao de herdeiros e a unio de riquezas entre as famlias. Na Itlia Central, verificou-se, neste perodo, a definitiva passagem do sistema do dom marital, em que o marido, no momento do casamento, dava mulher uma parte importante de seu patrimnio, para o dote, em que parte da herana paterna era usada com a finalidade de obter um casamento vantajoso e uma aliana favorvel linhagem (BARTOLI, 1998, p.62). Desta forma, a maneira encontrada pela nobreza para evitar a dissoluo do patrimnio familiar foi fazer alianas familiares atravs de estratgias matrimoniais. A mulher figurava como personagem central dentro dessas estratgias, na maioria dos casos passivas e usadas para reproduzir os grupos de poder, formados por vrias famlias com interesses comuns ( DUARTE, 2000, p.503). Assim, como era possvel se manter virgem e fazer votos de pobreza em uma sociedade em que as famlias privilegiavam o casamento de suas filhas? neste contexto, que podemos situar Clara de Assis e Ins de Praga. Como eram mulheres de famlias nobres, era esperado, por parte de seus familiares, que elas se casassem. Entretanto, foi contra este tipo de imposio que Clara de Assis se rebelou. Sua luta para tornar-se uma franciscana foi rdua. Mais do que ir para um mosteiro, Clara desejava uma vida na mais absoluta pobreza e humildade, seguindo os ideais de 403

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Francisco de Assis. Assim, ela queria ter o poder de escolher com quem se casar, no caso, por sua opo religiosa, era casar-se com Cristo. Em sua primeira carta a Ins, Clara a elogia pela sua atitude, de no ter aceitado a proposta de casamento do imperador alemo Frederico II, ressaltando a importncia desta deciso:
Porque, embora pudsseis gozar, mais do que outros, das pompas e honras deste mundo, desposando legitimamente o ilustre imperador...rejeitastes tudo isso..., tomando um esposo da mais nobre estirpe, o Senhor Jesus Cristo(...) (1CtIn 5-7)

No momento que ela, princesa Ins de Praga, recusou o matrimnio, desfez-se, tambm, dos benefcios que um casamento nobre iria lhe proporcionar, tais como o reconhecimento social, a riqueza, a maternidade. O rompimento desse enlace, contudo, deu margem para um outro casamento, visto como muito mais grandioso: a unio com Cristo. A princesa optou por um esposo divino, viver em pobreza e privaes corporais. Clara continua elogiando a atitude da nova irm, e mostrando as vantagens que esse casamento divino iria lhe proporcionar: (...) O Senhor Jesus Cristo, que guardar vossa virgindade sempre imaculada e intacta. Amando-o, sois casta; tocando-o tornar-vos-eis mais limpa; acolhendo-o, sois virgem..(1CtIn 8). Nesses trechos, os adjetivos virgindade/virgem esto associados ao casamento com Cristo. O enlace divino opem-se ao matrimnio terreno. Ins elogiada por ter escolhido Cristo como marido. Um marido que, diferente dos terrenos, manteria sua virgindade.1 Em outro trecho, Clara afirma: (...) destacada pelo esplendor do estandarte da inviolvel virgindade e da santssima pobreza, ficai firme no santo servio do pobre Crucificado, ao qual vos dedicastes com amor ardente. (1CtIn 13). Aqui a damianita associa a virgindade pobreza. Ins , portanto, caracterizada no s como uma virgem, mas como uma mulher que renunciou aos seus bens materiais. Segundo o Dicionrio Patrstico e de Antigidades crists, virgindade seria uma forma ou gnero de vida asctica, que consiste na renncia total ao exerccio da sexualidade. Seria tambm uma situao de integridade fsica aplicada ao sexo feminino.2 J o Dicionrio Franciscano ressalta que a virgindade assume uma dimenso esponsal, em que aquela que virgem canaliza todas as potencialidades humanas para amar a Deus e todas as criaturas, para uma vida de comunho em carter nupcial. H tambm, o valor cristolgico, em que ser virgem conformar-se e espelharse em Cristo, que viveu virgem para se doar pela humanidade.3 No momento que Clara fala a Ins sobre o abandono das coisas do mundo e das privaes corporais, a que ela submeteu-se por amor a Cristo, mantendo sua alma e seu corao puros, percebemos que em seu discurso h uma franca oposio diretiva de gnero. Na perspectiva de Clara, a virgindade ope-se ao matrimnio, uma vez que este est ligado riqueza, representando um vnculo para a estabilidade das famlias. O papel da mulher dentro do casamento seria apenas o de procriar para perpetuar a linhagem.
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GNERO, A VIRGINDADE E A POBREZA NOS ESCRITOS DE CLARA DE ASSIS

Submetida a uma relao hierrquica de poder, ligada a um marido terreno, ela ocuparia somente o papel de reprodutora. J a pureza interior e entrega a Deus so caractersticas associadas virgindade por Clara. Na sua perspectiva, mantendo-se virgem, a mulher pode ter tudo e ser tudo, sua finalidade social no somente procriar: sois esposa, me e irm do meu Senhor Jesus Cristo, destacada pelo esplendor do estandarte da inviolvel virgindade e da santssima pobreza. (1CtIn 12-13). Outro ponto abordado na carta a questo da pobreza. Clara almejava para suas irms viver, tambm, em pobreza, um dos pontos centrais do movimento franciscano: Que troca mais louvvel: deixar as coisas temporais, pelas eternas, merecer os bens celestes em vez dos terrestres, e possuir a vida feliz para sempre! (1 CtIn 30). Virgindade e pobreza relacionam-se nos escritos dela. Assim, ela frisa a Ins a importncia de persistir no servio de Cristo, justamente por suas opes pela virgindade e pobreza:
Portanto, irm carssima, ... porque sois esposa, me e irm do meu Senhor Jesus Cristo, destacada pelo esplendor do estandarte da inviolvel virgindade e da santssima pobreza, ficai firme no santo servio do pobre Crucificado, ao qual vos dedicastes com amor ardente (1 CtIn 12-13).

Mais qual seria o significado de ser pobre no sculo XIII? Segundo Michel Mollat, na Idade Mdia ser pobre era uma condio, fruto da carncia de algo. Assim, existiam, em um mesmo contexto, diversas formas de pobreza, e que no poderia ser somente fruto de uma ausncia material, mas da falta de alguma coisa, como falta de f, ausncia de aceitao social, isolamento, etc. Ressalta, tambm, que havia a pobreza voluntria, dos monges, a involuntria dos mendigos e a chamada pobreza tradicional de rfos e vivas merc da caridade pblica, etc.( MOLLAT,1989, pp.25). Desta forma, o autor define o pobre:
(...) aquele que, de modo permanente ou temporrio, encontra-se em situao de debilidade, dependncia e humilhao, caracterizado pela privao dos meios(...), que garantem considerao social (...) Vivendo no dia-a-dia, no tem qualquer possibilidade de revelar-se sem a ajuda de outrem (MOLLAT, 1989, p.5).

O movimento franciscano aproximou-se dos pobres, buscando reproduzir, em seu cotidiano, a situao de debilidade, de dependncia e de humilhao que marcavam o dia-a-dia deste grupo. O ideal de pobreza proposto por Clara de Assis era o mesmo de Francisco: fazer-se pobre como o Cristo. E ao faz-lo, ela prope uma quebra dos discursos hegemnicos de gnero. Assim, ope a pobreza riqueza. Para a irm clarissa, a pobreza significaria a renncia ao que legitimamente se poderia desfrutar, como as riquezas, a estabilidade e a segurana do casamento. Mas no bastava apenas o desapego s coisas materiais, mas uma pobreza espiritual, em que a humildade e a submisso esto lado-a-lado. Ela retrata isso falando de si mesma: Clara, 405

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indigna fmula de Jesus Cristo e serva intil das senhoras enclausuradas do mosteiro de So Damio, sua serva sempre submissa (...) (1CtIn 2-4). Deste modo, Clara aconselha Ins de Praga a perseguir o caminho da pobreza e da virgindade, pois tal atitude assemelha-se com a de Cristo e a faria transcender os papis impostos ao feminino. Negando-se ao casamento, abriria um espao para amar todas as pessoas. Abraando a pobreza, imitava a Cristo em sua humildade e desprendimento. Concluso O que podemos concluir com a anlise da primeira carta de Clara de Assis que, em sua fala sobre a virgindade, percebemos, em seu discurso evidencia-se uma luta contra o discurso hegemnico acerca dos modelos de conduta feminina: o comportamento esperado da mulher de ser uma boa esposa e me. Clara prope para si e para as mulheres escolher o seu papel segundo a sua prpria inclinao, e no, segundo o modelo pr-concebido. O casamento com Cristo significava, para Clara, uma nova postura frente sociedade, deixando evidente que as mulheres poderiam ter voz e estavam aptas a lutarem por seus posicionamentos, mesmo que isto significasse, tambm, o rompimento com suas famlias. Foi esta experincia que ela procurou transmitir para Ins de Praga, princesa da Bomia, que decidiu virar irm clarissa. Ao romperem com as normas impostas ao feminino pela sociedade da poca, de serem mulheres casadas e devotadas aos filhos e ao marido, Clara e Ins deixam em aberto um outro caminho para as mulheres na sociedade. No tocante pobreza, ela uma opo da vida franciscana, no bastando apenas renunciar aos bens materiais, mas tambm sendo pobre de esprito e tendo humildade. Foi isto que ela manifestava em seu primeiro escrito para Ins de Praga: ser franciscana uma nova maneira de inserirse no mundo vivendo em pobreza e dedicada ajuda ao prximo. Ao renunciar ao casamento, Clara e Ins submeteram-se situao de pobres, tal como aponta Mollat, pois se colocaram, na perspectiva da sociedade, sem marido, uma famlia ou mesmo um rico mosteiro para ampar-las, em situao de debilidade, dependncia e humildade. Assim, virgindade e pobreza esto associadas na construo do feminino por Clara. A virgindade e a pobreza tornam-se uma forma de vida que rompe com a estabilidade financeira e os bens materiais. Motivadas por um corao puro, fruto da unio com o esposo Cristo, elas fazem-se pobres para identificarem-se e servirem aos seus semelhantes. Desta forma, Clara nega as limitaes feitas s mulheres, seja pela sociedade ou pela Igreja, presentes nas construes de gnero hegemnicas, que vem no espao privado o local da mulher, tendo como justificativa a necessidade de proteo fragilidade do feminino.
Bibliografia Textos medievais impressos PEDROSO, Jos Carlos Corra (Org.). Fontes Clarianas. 3 ed. Petrpolis. Piracicaba: Vozes, CEFEPAL do Brasil, 1994. 406

GNERO, A VIRGINDADE E A POBREZA NOS ESCRITOS DE CLARA DE ASSIS Obras gerais ALBERZON, Maria Pia. Clara de Asis el franciscanismo femenino. In: Francisco de Asis y el Primer siglo de histria franciscana. Madrid: Franciscana Arantzazu, p. 227-263, 1999. BARTOLI, Marco. Clara de Assis. Petrpolis: Vozes, 1998. BERNADINO, Anglo Di (Org.). Dicionrio Patrstico e de Antigidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002. BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: O homem, a mulher e a renncia sexual no incio do Cristianismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. BYNUM, Caroline Walker. El cuerpo femenino y la practica religiosa en la Baja Edad Media. In: FERRER, Michel et al (Ed). Fragmentos para una Historia del cuerpo humano. Madrid: Taurus, 1990. CAROLI, Ernesto. (Coord.). Dicionrio Franciscano. Petrpolis: Vozes/ CEFEPAL, 1999. DELIO, Ilia. Identity and Contemplation in Clare of Assisis Writings. Journal Studies in Spirituality, v. 14, p.139-152, 2004. DUBY, Georges. O Cavaleiro, a mulher e o padre. Lisboa: Dom Quixote, 1988. FLAX, Jane. Ps-modernismo e relao de gnero na teoria feminista. In: HOLLANDA, H.B. (Org.). Modernismo e Poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p. 217-250. MOLLAT, Michel. Os pobres na Idade Mdia. Rio de Janeiro: Campus, 1989. SCOTT, Joan Wallace. Prefcio a Gender and Politics of History. Cadernos Pagu. Campinas, n. 3, p.11-27,1994. ____. Gender: a useful category of historical analysis. American Historical Review, n. 4, p. 1053-1075, Jul-Ago,1993. SILVA, Andria Cristina Frazo da. Reflexes metodolgicas sobre a anlise do discurso em perspectiva histrica: paternidade, maternidade, santidade e gnero. Cronos: Revista de Histria, n. 6, p.194-223, 2002. ____.Gnero: uma categoria til para o estudo do corpo e sade? Labrys. Estudos Feministas, n. 5, janeiro a julho de 2004. ____. & Lima, Marcelo Pereira. A Reforma Papal, a continncia e o celibato eclesistico: consideraes sobre as prticas legislativas do pontificado de Inocncio III (11981216). Histria: Questes & Debates, ano 19, n. 37, p.85-110, 2002. Notas As palavras virgem e virgindade esto, em toda a carta, sempre associadas a Ins, exemplo disso quando Clara inicia a carta, saudando a nova irm: venervel e santa virgem, dona Ins, filha do excelentssimo e ilustrssimo rei da Bomia (...) (1CtIn 1). 2 Sobre o significado desse termo ver: BERNADINO, Anglo Di (Org.). Dicionrio Patrstico e de Antigidades Crists. Petrpolis: Vozes, 2002. 3 Sobre o significado desse termo ver: CAROLI, Ernesto. (Coord.). Dicionrio Franciscano. Petrpolis: Vozes/ CEFEPAL, 1999.
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A realeza castelhana no contexto da expanso crist (Pennsula Ibrica - sculo XIII)


Almir Marques de Souza Junior*

ste trabalho visa apresentar as questes propostas em minha monografia de bacharelado, voltada ao estudo das imagens atribudas ao poder rgio na Pennsula Ibrica do sculo XIII, em especial no reino de Castela, bem como suas caractersticas e funes polticas. O foco principal da anlise desta pesquisa, que se encontra ainda em sua fase inicial de desenvolvimento, recair sobre a figura do rei Fernando III de Castela, que governou entre 1217 e 1252. Em torno deste monarca observamos como construdo um discurso que ao mesmo tempo procura legitimar a sua autoridade e lhe confere duas caractersticas especiais: a de um guerreiro e a de um santo. Para compreendermos melhor a gnese deste discurso, precisamos nos voltar para as condies polticas em que se encontrava a Pennsula Ibrica no s no momento citado, mas tendo em mente todo o processo que hoje chamado de reconquista. Digo isto porque, no perodo compreendido principalmente entre o incio do sculo XI e fins do XIII, houve uma profunda mudana na correlao de foras no interior da Pennsula Ibrica. At ento, a proeminncia do califado do Al - andaluz sobre os diversos ncleos cristos, que se localizavam no norte, era evidente (LARA, 1994, passim.). Entretanto, aps a morte do caudilho cordobs Almanzor, em 1002, o califado mostra o estado de esgotamento em que se encontrava, permeado por tenses internas e disputas entre diversos grupos pela hegemonia. Enquanto a Espanha muulmana se fragmentava em um conjunto de pequenos reinos, as taifas, os reinos cristos iniciavam uma expanso sem precedentes que teve como conseqncia imediata a incorporao, aos seus domnios, de uma grande extenso territorial que antes se encontrava sob o controle muulmano. O processo de avano sobre as taifas por parte dos reinos cristos s foi possvel graas a alguns fundamentos de base (LARA, 1994, p.12). O primeiro deles, e tambm o mais difcil de ser caracterizado em vista da escassez de fontes documentais, foi o crescimento demogrfico vivenciado pelos reinos, principalmente os de Castela e Leo, que permitiu no s um crescimento do contingente militar, mas tambm disponibilizou colonos suficientes para a ocupao dos territrios conquistados. Em seguida, temos o aprimoramento
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Graduando em Histria na Universidade Federal Fluminense.

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das tcnicas militares, inserindo no campo de batalha, dentre outras inovaes, a cavalaria pesada. Este aspecto est intimamente vinculado ao desenvolvimento das foras produtivas, que possibilitou uma melhoria nos mecanismos de defesa com a expanso das construes em pedra. O ltimo dos fundamentos aos quais se vincula o incio do processo de expanso crist na pennsula a ideologia da reconquista. Este ideal, que se acredita ter tomado corpo entre os idelogos de Castela e Leo, reunia tanto a idia de recuperao de um territrio sobre o qual se acreditava ter direito, como a prpria idia de luta contra o inimigo da f crist, ou seja, de cruzada. Tal mentalidade cresce, principalmente, graas presena de combatentes francos na pennsula, que integram muitos dos exrcitos dos reis cristos25. As incurses crists tiveram incio com Fernando I 26 , o primeiro a se proclamar rei de Castela e a incorporar o territrio leons, continuando com seu filho, Afonso VI, o responsvel pela conquista da antiga capital visigtica, Toledo, em 1085. Na realidade, a conquista armada no era o nico meio de submeter as taifas ao controle dos reis cristos. Aproveitando-se de sua debilidade, os monarcas de Castela impem aos reinos islmicos uma srie de tributos em troca de sua proteo, dentre os quais se destacavam as chamadas parias. Estas poderiam se realizar tanto na forma de vassalagem como atravs de contribuio pecuniria. Contudo, pouco depois da ocupao de Toledo, a expanso militar de Castela e Leo foi detida. Isto se deu graas forte resistncia empreendida pelos almorvidas. Estes, vindos do norte da frica em auxlio dos reinos islmicos que estavam ento submetidos aos cristos, conseguiram no s reunificar o Al Andaluz, mas tambm o incorporaram ao seu imprio. A manuteno do domnio almorvida, porm, no durou muito. A prevalncia de tenses no interior de seu territrio fez com que a unidade do imprio se decompusesse no incio do sculo seguinte, possibilitando, assim, aos castelhanos, a retomada de sua ofensiva militar. O caos que se instalou na Espanha muulmana, contudo, foi dissipado ainda na primeira metade do sculo XII, quando o grupo conhecido como almohadas unitrios reunificou o sul peninsular em um novo imprio. importante ressaltar, aqui, que as relaes internas aos ncleos cristos e aos islmicos no se caracterizavam necessariamente pela reciprocidade e pela unio. Assim como os conflitos dividiam a Espanha muulmana, os reis cristos tambm se enfrentaram mutuamente pela supremacia do poder no norte da pennsula27. Em alguns casos, coalizes de foras se formaram entre cristos e muulmanos para combater um inimigo comum, conforme a aliana firmada entre os reis das taifas e Afonso VI contra o sulto almorvida Ysuf, e entre Afonso VII e o rei de Crdoba, seu vassalo. A presena dos almohadas na pennsula coincidiu com a separao dos reinos de Castela e Leo, aps a morte do rei Afonso VII (1157), cujo reinado tambm foi marcado por importantes incurses sobre territrio muulmano, assim como pela constante presena de foras centrfugas no interior do reino. Castela s recuperou sua hegemonia militar sobre os demais reinos cristos e islmicos sob Fernando III que, desta vez em carter definitivo, torna a anexar 409

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o reino de Leo aos seus domnios, em meados do sculo XIII. A ele creditada grande parte das conquistas sobre o territrio de Al Andaluz, entre elas a da capital do reino, Jan (em 1246) e Sevilha (1248). Todo o processo que conhecido hoje como reconquista da Pennsula Ibrica foi permeado no s de avanos contnuos em direo ao sul, mas tambm teve que encarar sucessivos retrocessos e considerveis perodos de interrupo das investidas militares. Vimos tambm que, apesar da aparente debilidade dos reinos de taifas, a consolidao de um poder militar no interior do ncleo cristo que fosse suficientemente forte e proeminente sobre os demais era muito difcil. Isso porque no s eram constantes os embates entre os seus reis, mas tambm porque existiam foras dissidentes dentro dos prprios reinos que ameaavam sua estabilidade e contestavam o poder dos monarcas. Assim foi o reinado de Fernando III de Castela (1217-1252). Sobrinho do rei Sancho III, Fernando teve que superar no incio de seu governo a rebeldia senhorial, como no caso do conde lvaro e de seus partidrios. Em seguida, este teve o prprio pai por adversrio, Afonso IX, rei de Leo, que tentou tomar para si a coroa de Castela. Uma vez contornadas estas adversidades, Fernando III projeta seu exrcito sobre o territrio das taifas, tendo como aliado o rei de Baeza28, conseguindo assim ampliar de maneira considervel as fronteiras do territrio castelhano. A pesquisa prope-se a se constituir como um estudo de histria poltica. Porm alinhada s crticas efetuadas pelos historiadores dos Annales e pela produo acadmica empregada nouvelle histoire, a postura que ser adotada aqui se distancia da historiografia metdica de incios do sculo XX, majoritariamente narrativa, factual e linear, objetivando descrever, tal como haviam acontecido, os eventos do passado. A proposta de uma nova histria poltica, ou melhor, uma histria do poder, com que ns nos identificamos, mostra que o estudo dos sinais, das insgnias e da imagem, especialmente a imagem rgia, precisa ser feito inserido dentro do contexto histrico, levando em considerao as atitudes e o universo mental do perodo (LE GOFF,1983, p. 227). nossa iniciativa, ento, estabelecer uma correlao entre a representao da figura do rei Fernando III e mentalidade que permeava a Pennsula Ibrica em meados do sculo XIII. O que nos propomos aqui desenvolver uma histria do poder e das imagens, pois entendemos que a construo destas representaes serve de fundamentao e legitimao autoridade do monarca (SORIA, 1988, p. 60). Vemos tambm como atribuda ao rei a funo de vigrio de Deus na terra, cabendo-lhe zelar pela salvao e proteo do reino terrestre e de seu povo. No caso da Idade Mdia, a riqueza que se encontra na anlise do poder est ligada ao fato de este se encontrar diretamente vinculada esfera do sagrado (LE GOFF, 1983, p. 229). Ao assumir esta vinculao entre o poder poltico e a religio, temos que observar que, para o pleno exerccio deste poder, faz-se necessrio fundament-lo em pressupostos sobrenaturais, sobretudo sagrados. de suma importncia atentar para o fato de que a construo da imagem que aqui analisamos se d atravs de uma representao textual, impregnada tanto com o arcabouo mental de sua poca, como pelas aspiraes do seu prprio cronista, um eclesistico e poltico. As imagens atribudas a Fernando III giram em torno de dois cones. O
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primeiro vincula-se ao carter guerreiro, ligado diretamente forma como este rei utiliza-se das armas para legitimar a sua autoridade e suprimir as cises em seu reino29, bem como para exercer a justia e defender a cristandade ibrica daquilo que era considerado uma ameaa, os muulmanos do sul da pennsula. A segunda faceta da imagem rgia de Fernando III decorre da primeira. Ao combater as foras polticas do Al Andaluz e conquistar grande parte de seu territrio em favor do reino de Castela, passa-se a construir uma aura de santidade em torno deste soberano em funo de seus feitos, que logo ser reconhecida pela prpria Igreja Catlica. Ambas as representaes acabam por mostrarem-se como modelos moralizadores, expondo as exigncias bsicas que, dentro de uma inspirao profundamente religiosa, o rei ideal deveria possuir. Em funo disso, a imagem de Fernando III acaba por ser caracterizada como a de um rei que possui, alm das virtudes de um bom governante, a ndole de um perfeito cristo que louva, teme e serve a Deus. Esta imagem de rei cristianssimo, muito associada realeza francesa, tambm esteve presente no interior do pensamento poltico na Castela medieval. Nieto Soria nos mostra que um dos campos da mentalidade poltica na qual esta concepo se manifesta o da atividade guerreira, sobretudo no combate contra os infiis. Mas, tambm, se fosse preciso, o rei guerreiro pegava em armas contra os prprios cristos que atentavam contra a f catlica ou contra os desgnios do Criador expresso pelos atos do rei. No raro, as aes blicas do monarca se convertiam em atos a servio de Deus e de toda cristandade. Atos estes no qual o governante se expe ao perigo de ferir-se ou morrer em favor de sua f (SORIA, 1988, p. 153). Quanto aos demais fundamentos ideolgicos que legitimam a potestade rgia, encontram-se entre seus principais componentes os ideais polticos que congregam ao mesmo tempo a teologia, a religio em si, e demais elementos do sagrado. Assim, para que possamos compreender as monarquias da Baixa Idade Mdia, preciso analisar os componentes teolgicos e sagrados que lhe eram atribudos. Entre estes componentes, aqueles que mais nos interessam neste momento, que guardam estreitas relaes com o carter sagrado de Fernando III, so as representaes teocntricas que estabelecem um vinculo direto entre a divindade e os prncipes (SORIA, 1988, p. 51). Este vnculo se mostra tanto atravs da inspirao que Deus concede a Fernando III, como nas sucessivas ajudas que so prestadas s suas investidas militares. No primeiro caso, observamos como o rei reage traio do senhor de Valncia, Aceit e seus partidrios:
El rey, por su parte, teniendo el firme e irrevocable propsito de destruir aquella gente maldita, como quien estaba tocado por el Espirit de Dios (...) quiso volverse a aquellas tierras para visitar y consolar al maestre de Calatrava y a los otros que haban dejado en la frontera. A este deseo se oponan casi todos los magnates y consejeros (...) Pero el rey, en quien se habia irrumpido el Espritu del Seor, guiado por um consejo mas saludable, como del Espritu del Seor (...) sali rpidamente de Toledo y se dirigi a aquellas tierras (Crnica Latina...,1999, p.79).

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J no segundo caso, durante a tomada de Crdoba, quando o rei dos mouros contava com uma expressiva superioridade numrica frente aos cristos, os poderes celestiais intervm e intimidam os inimigos d f e fazendo sue lder partir.
Nuestro Salvador, que no abandona a los que en el confian, hizo intil el pensamiento de los moros y enervo sus espritos y sus fuerzas, y no se atrevieron a combatir com nuestro rey glorioso com quien Dios estaba (...). Pero el rey de los moros [Avenhut] dej all uma gruesa multitud de hombres y marcho Sevilla com una parte de su ejrcito, fingiendo algunas razones vanas e falsas (Crnica Latina..., 1999, p.79).

O corpus documental desta pesquisa constitudo pela Crnica Latina de los Reyes de Castilla30. O texto desta crnica foi encontrado por Georges Cirot31 no manuscrito catalogado como G-1 da Real Academia de Histria de Madri. Trata-se de um pergaminho intitulado de Chronica B. Isidori iun. et aliorum, constando de 280 flios distribudos em cadernos de oito cada um32. A primeira publicao do manuscrito foi feita pelo prprio Cirot em 1912, sob o ttulo Une Chronique latine indite des rois de Castille jusquem 1236. A crnica, aps uma breve introduo, relata os feitos ocorridos em Castela durante os reinados de Afonso VIII, Enrique I e Fernando III, at a conquista de Crdoba, fazendo referncias tambm ao que ocorreu neste mesmo tempo em outros reinos hispnicos e europeus. Ainda que Brea no concorde, ele reproduz a diviso feita por Cirot em trs partes e setenta e cinco captulos (que no prpria do documento original), a fim de que deste modo a consulta e as referncias a ambas as edies possam se dar de maneira mais fcil e segura. O valor histrico desta crnica est no fato de que provavelmente seu autor foi testemunha ocular de vrios fatos que narra, nos possibilitando assim alguns dados exclusivos, e de que este relato o mais prximo, em espao e tempo, da vida na corte de Fernando III at 1236. Mesmo assim, Brea nos mostra que este documento ainda constantemente esquecido e subestimado por fillogos e historiadores. Acerca do autor da Crnica, o manuscrito no informa explicitamente quem pode ter sido. Contudo, atravs de informaes secundrias colhidas ao longo do texto, possvel levantar dados sobre a sua formao, personalidade e at mesmo sua profisso. Estas informaes levam a crer que o autor tenha sido um castelhano, com acesso a Chancelaria Real, ligado afetivamente a famlia do rei, alm de ser, como j citamos, testemunha ocular de boa parte dos eventos narrados. Brea, assim como Cirot, identificam esta figura como sendo Juan, bispo de Osma, que tambm era chanceler e secretrio do rei Fernando III. Este teria comeado a compilar os primeiros captulos da crnica por volta do ano de 1226, e o restante aps o ano de 1236, no qual o relato se encerra. Em suma, podemos afirmar com certeza que a Crnica foi produzida na primeira metade do sculo XIII, ainda durante o perodo de vida de Fernando III. Mostra-se de fundamental importncia para o desenvolvimento deste estudo, uma compreenso acerca da maneira pela qual o relato histrico era concebido na Idade Mdia. Certamente que, ao tomarmos o texto de uma crnica como fonte de analise, o pesquisador no pode pretender descobrir o
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que nele pode ser considerado verdico ou fico. Nosso objetivo analisar como e em que condies a obra foi concebida, suas finalidades, e quais as influencias que o vivido tem sobre o texto. Inicialmente, destacamos a diferente perspectiva que o homem medieval tinha em relao Histria. Assim, era de primeira importncia o interesse pelo tempo, orientando a histria do mundo numa perspectiva de salvao que se desenvolve linearmente desde a criao at o fim dos tempos. Nesta lgica, tendiase a desprezar as pessoas comuns e concentrar-se nos feitos de pessoas importantes, nos lugares e no tempo em que estes ocorriam (CARDOSO, 2004, p. 124). Esta histria, assim, no se constitua como uma disciplina de ensino, mas sim uma cincia auxiliar da teologia e da moral. O medievo no conheceu uma s forma de se fazer histria, mas sim diferentes formas que se coadunavam com os diferentes tipos de autores. Ciro Cardoso ressalta entre eles o monge, com suas compilaes de textos litrgicos e hagiografias, excessivamente preocupados com as cronologias e com as causas maiores, tendo majoritariamente um sentido pedaggico-moralizante. O historiador de escritrio, tpico da Baixa Idade Mdia, com suas funes administrativas, em especial as chancelarias, compilando uma mescla de outros textos com pesquisas em documentaes oficiais, tinha por finalidade contemplar os interesses da instituio a que estava ligado. E, finalmente, o cronista, ligado s cortes ou patronos senhores e bispos que redigia os feitos dos prncipes. Muitas vezes se revelava como um eclesistico ou secretrio senhorial, utilizando principalmente a tradio oral e as epopias, e frequentemente versava de forma a enaltecer as figuras histricas, sempre preocupado em mostrar os fatos com a exatido que lhe conviesse (CARDOSO, 2004, p. 125) . Alguns autores, entre eles W.J.Brandt, advogam a idia de uma descontinuidade de sentido que permeava o relato histrico na Idade Mdia. Segundo ele, havia uma dificuldade em estabelecer relaes de causalidade entre os acontecimentos, percebidos ento como isolados uns dos outros, todos produzidos pela arbitrariedade divina. Entretanto, a partir do sculo XII, vislumbra-se uma alterao na forma de perceber o tempo e a ao humana neste. Se antes o homem era mostrado como mero peo frente vontade divina, no mundo mais dinmico da Baixa Idade Mdia ele passa a ser tratado como um sujeito ativo nas transformaes do mundo, claro que contando ainda com o auxilio da Providncia divina. Buscase, ento, cada vez mais destacar as razes humanas dos acontecimentos. O prprio tempo histrico passa a ser concebido agora no sentido de um progresso, um avano gradual a um determinado fim (BOURD, s/d, p.18.). Durante o levante de Crdoba, os cristo que habitavam a cidade, mesmo sendo minoria, puderam infligir considerveis danos populao muulmana. O cronista comenta o fato:
Crdoba (...) como aturdida, no poda robustecer las manos sin fuerzas y las dbiles rodillas contra sus enemigos, a los que, aunque eran pocos, no les poda resistir, ya que la indignacin de Nuestro Seor Jesucristo y su poder oprimia la multitud tan grande y fuerte de los moros (Crnica Latina... , 1999, p.98).

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Em nosso estudo, percebemos que, ainda que a iniciativa de conquistar antigas terras possa partir do prprio rei Fernando, a providncia divina sempre lhe garante o devido sucesso por ele ser caracterizado como um homem virtuoso e temente ao Rei dos reis. Se Deus no mais a causa das aes dos homens, ainda seu determinante.
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Descrio de fonte(s) literria(s) em um trabalho historiogrfico: um exemplo em Parzival de Wolfram Von Eschenbach
Daniele Gallindo Gonalves e Souza* Em Parzival, escrito entre 1197 e 1210, Wolfram utiliza-se de uma obra inacabada de Chrtien de Troyes Li Contes del Graal que fora composta aproximadamente em 1180.1 Parzival uma pica corts que pertence ao ciclo arturiano, pois a histria se passa na corte de Arthur. Este mesmo rei sagra Parzival cavaleiro e constatamos a presena de personagens comuns em diversas narrativas contemporneas obra de Wolfram que fazem parte das histrias que tm como centro a Tvola Redonda. Sendo assim, podemos inclu-la na matria da Bretanha, pois tanto as histrias de Arthur, quanto as relativas ao Graal com seu aspecto pago de caldeiro da abundncia possuem fundamento cltico.2 Contudo, deve-se lembrar que, ao longo da narrativa, aparecem elementos que so inerentes, exclusivamente, ao mundo germnico, como o caso da reao feminina de arrancar os cabelos diante da morte do amado e a figura da tlia rvore tanto dos encontros amorosos, quanto da coita de amor.3 O texto, estruturalmente, apresenta-se em versos. Divide-se em 827 estrofes, sendo cada uma constituda por 30 versos, o que resultaria na existncia total de 24 810 versos. Os mesmos encontram-se divididos em 16 livros, no sendo estes uniformes quanto ao nmero de estrofes que os constituem. Os livros so subdivididos de acordo com a temtica abarcada por cada estrofe: Erstes Buch (Prolog, Gahmurets Ritterfahrt zum Baruc, Gahmurets Fahrt zu Belakane, Gahmurets Eintreffen in Zazamanc, Belakane empfngt Gahmuret, Kampfvorbereitung, Belakane besucht Gahmuret, Gahmurets Kmpfe vor Patelamunt, Liebeslohn Friedensverhandlungen, Gahmuret verlt Belakane, Geburt des Feirefiz, Gahmurets Aufbruch nach Sevilla)4 e assim por diante.5 Embora o texto de Wolfram date do sculo XII-XIII, a maior parte dos manuscritos preservados so posteriores, sendo o mais antigo at hoje catalogado oriundo da segunda metade do sculo XIII. Primeiramente, sob a coordenao de Klaus Klein (2000) e posteriormente, sob a reviso de P. Oliver Ruggenthaler (2003) foram averiguados e listados 103 manuscritos catalogados e conservados do Parzival em bibliotecas, arquivos e museus
Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Histria Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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de toda a Europa. Alguns manuscritos encontram-se completos, outros so apenas fragmentos da obra. Por se tratar de uma pica muito difundida e conservada basearemos nossa investigao, mais precisamente, no codex de Heidelberg e em trs edies impressas da obra em questo. Quanto fonte manuscrita, devemos ressaltar que a mesma se encontra completamente digitalizada pela biblioteca da Universidade de Heidelberg sob o cdigo Cpg 339 (Codex Palatinus Germanicus). Trata-se de uma cpia do sculo XV (1443-1446) em papel de linho com 604 folhas. Conforme catalogao do manuscrito em Heidelberg, naquela trabalharam dois copistas e um desenhista. Os copistas redigiram em letra gtica nas cores vermelha (para as chamadeiras ou capitulares, ttulos e nmeros dos livros) e preta. O desenhista ilustrou cerca de 64 iluminuras aquareladas pena. At chegar Heidelberg, o codex teria passado por trs destinos: uma biblioteca particular de algum nobre (Ludwig IV, Friedrich I ou Ruprecht, bispo de Straburg), Bibliothek in der Heiliggeistkirche em Heidelberg (1581-1622) e Bibliotheca Apostolica Vaticana em Roma (1623-1816).6 A primeira das trs edies impressas por ns utilizada trata do texto bilinge Mittelhochdeutsch / Neuhochdeutsch,7 dividido em dois volumes (Band I Buch I-VIII e Band II Buch IX-XVI).8 Tal edio originou-se da reedio publicada em Berlim no ano de 1952, que teve como fonte a edio do sculo XIX (1833), estabelecida por Karl Lachmann, para o texto em Mittelhochdeutsch,9 que se apresenta em forma de versos. J a verso de 1977 para o texto em Neuhochdeutsch, em prosa, foi realizada por Wolfgang Spiewok. De acordo com Gaulin, as edies realizadas entre os sculos XIX e incio do sculo seguinte so frgeis, pois h
tendncia a unificar o contedo de um manuscrito em lugar de acentuar os diferentes extratos de composio, reduo da cpia aliviada de frmulas julgadas secundrias, respeito desigual da ordem original, da paginao e dos ttulos, recomposio artificial de coletneas nunca tendo existido sob a forma produzida pelo editor. (GAULIN, 1998, p.178)

Quase que em sua totalidade, os pesquisadores da obra de Wolfram von Eschenbach utilizam a edio de Lachmann em vez de lanarem mo da fonte manuscrita ou de outras edies. Embora Gaulin destaque a fragilidade dessas edies, assistimos perpetuao do trabalho de Karl, talvez pelo cuidado dispensado ao lidar com a fonte, respeitando o original, como prtica da crtica textual alem. Os trabalhos de traduo da obra Parzival comearam no sculo XVIII. Em 1752, Johann Jakob Bodmer j redigira uma verso da Cena do Graal em hexmetros. Seguem-se as tradues realizadas por San Marte (1836), Karl Simrock (1842), Paul Anton Btticher (1884), Wolfgang Pannier (1897), Wilhelm Hertz (1897), Theodor Mathias (1925), Wilhelm Stapel (1937) e Friedrich Knorr (1940).
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DESCRIO DE FONTE(S) LITERRIA(S) EM UM TRABALHO HISTORIOGRFICO: UM EXEMPLO...

A edio mais moderna da obra em questo, tambm bilnge, foi publicada no ano de 2003 pela editora Walter de Gruyter, em volume nico. A introduo de Bernd Schirok e a verso para o Neuhochdeutsch, em prosa, de Peter Knecht. Nesta encontramos publicados os prefcios para as edies de 1833, 1854/1872, 1879, 1891, 1926 e 1952, que tomam como modelo a verso de Karl Lachmann, juntamente com uma introduo, que apresenta e comenta sucintamente as edies citadas anteriormente e ainda traz uma discusso sobre o problema da interpretao de Parzival. Esta ser nossa segunda edio. J a terceira uma traduo para o portugus realizada por A. R. Schmidt Patier, que foi publicada somente em 1989. Esta edio foi realizada, segundo o tradutor, atravs do texto de Karl Lachmann, ou seja, teramos em mos o texto em Mittelhochdeutsch, hipoteticamente falando, pois a traduo no se deu atravs do texto, por ns chamado original, mas sim do texto em Neuhochdeutsch. Assim sendo, a traduo para o portugus j se trataria de uma segunda releitura do texto em questo. Releitura, pois a traduo no obedeceu apresentao do original (versos, rimas...) e transformou livremente algumas passagens, como em: Parzival, 115, 27:10 ichne kan deheinen buochstap (Mittelhochdeutsch) > Ich selbst kann nmlich weder lesen noch schreiben (Neuhochdeutsch) > que no sei nem ler nem escrever. Para uma traduo do original recorremos a dicionrios de Mittelhochdeutsch: (LEXER, 1992. / HENNIG, 2001) ich > pronome pessoal Ich + ne > partcula de negao nicht, kan > verbo knnen, deh > kein + einen > en = desinncia de acusativo masculino singular, buochstap > Buchstabe, o que resultaria em: Ich kann keinen Buchstabe, e, por conseguinte, em portugus, Eu no sei/conheo nenhuma letra. Traar tal caminho durante toda a leitura do documento seria fazer um projeto distinto, que visaria o campo lingstico (mais especificamente o da traduo) e no essencialmente o histrico. Contudo, devido a essa lacuna que ocorre entre o original at chegarmos traduo em portugus, seremos obrigados a recorrer a esta tcnica todas as vezes em que acreditarmos serem o verso ou algum vocbulo especfico necessrios pesquisa que aqui propomos. As tradues oferecem uma maneira de estudar as apropriaes; elas do imediatamente, de uma lngua a outra, o horizonte de um texto. (CHARTIER, 2001, p.67) De acordo com esta assertiva teramos que empreender um novo projeto, caso a traduo para o portugus e seus resultados fossem o nosso objeto. Sendo assim, abandonamos a traduo e optamos por utiliz-la somente para algumas citaes inseridas no projeto. Nas anlises mais aprofundadas, o enfoque dar-se- na edio em Mittelhochdeutsch. J definido por ns como o original, passemos apresentao do texto. Durante o poema no h uniformidade quanto metrificao, alternando-se irregularmente versos octasslabos, heptasslabos e alguns hexasslabos.11 Segundo Segismundo Spina, muito comum a existncia da
versificao assimtrica de forma heterossilbica ou irregular, em que a medida dos versos flutua em certos limites, numa impresso de desordem. (...)A assonncia e a cesura, nesse caso, surgem como recurso de

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS moderao da irregularidade silbica dos versos. Esta versificao foi sendo suplantada pelo isossilabismo, numa luta que se estende entre os sculos XII e fins do sculo XIV. (SPINA, 1971, p.15)

Rdiger Brandt assevera que h quatro sistemas de mtrica distintos: mtrica quantificada (slabas longas e curtas), mtrica acentuada (slabas tnicas e tonas), mtrica de contagem silbica (quantidade de slabas por verso, no importando a acentuao e durao) e forma mista (mistura dos princpios de acentuao e quantificao). Segundo o autor, na mtrica medieval alem predomina a forma mista desta, sendo importante ainda para determinadas pronncias quo longa ou curta uma slaba. (BRANDT, 1999, p.133-134) Em Parzival, a mais acentuada singularidade mtrica o enjambement de Wolfram (a dissimulao do verso atravs da sintaxe). A frase estende-se para o verso seguinte e termina freqentemente aps a slaba tnica. Quanto rima, devemos ressaltar que so finais, ou seja, as rimas ocorrem no final dos versos agrupando-se a cada dois. Essas rimas em final de slaba so denominadas caudati (BRAGANA JNIOR, 1998, p.47-48) ou ainda Endreim (rima final) (WEDDIGE, 2003, p.145). Conforme Brandt, as Reimpaaren (rimas em pares) so comuns na mtrica dos textos medievais picos em alemo (BRANDT, 1999, p. 114).
Quando a dvida vai tomando Conta do corao, porque a alma Passar por amargas experincias Ist zwvel herzen nchgebr, daz muoz der sle werden sr gesmaehet unde gezieret ist, sw sich parrieret 12

Em seu estudo sobre a Idade Mdia Latina (Lateinisches Mittelalter), Langosch afirma que a rima possui, inegavelmente, um carter artstico, pois requer um grande esforo do poeta em seu emprego, a fim de que no utilize to freqentemente a mesma palavra e a mesma rima, em no deixar o sentido sucumbir obrigao da rima, mas em jogar engenhosamente com a rima e fortalecer a arte, (LANGOSCH, 1988, p.67-68) sem falarmos, ainda, na finalidade mnemnica da rima. Relativamente temporalidade, podemos afirmar que o tempo da narrativa interno, no obedecendo a nenhuma cronologia ou a qualquer registro explcito desta. H somente uma exceo quanto nossa assertiva. Esta encontra-se em Parzival 379, quando so mencionados os Vinhedos de Erfurt13. O cerco desta cidade da Turngia, ocorrido em 1203, teve necessariamente efeitos nefastos sobre os vinhedos. O motivo do stio foi a histrica rivalidade entre os guelfos (partidrios do Papado) e os gibelinos (partidrios do Imprio). Naquele ano, os guelfos conseguiram cercar em seus muros a faco dos gibelinos, do que resultou a devastao dos vinhedos. Esse acontecimento histrico uma das poucas referncias para se determinar a data aproximada da elaborao da obra em foco.14 Cabe ainda ressaltar, acerca da anlise da obra, que o Minnesnger
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DESCRIO DE FONTE(S) LITERRIA(S) EM UM TRABALHO HISTORIOGRFICO: UM EXEMPLO...

de Eschenbach utiliza constantemente figuras de linguagem (ironias e metforas), que enriquecem o tecid lingstico, fazendo com que este possa ser alm de uma narrativa literria, um documento com informaes de cunho histrico.
Neste cruzamento que se estabelece entre Histria e Literatura, o historiador se vale do texto literrio no mais como uma ilustrao do contexto em estudo, como um dado a mais, para compor uma paisagem dada. O texto literrio lhe vale como porta de entrada s sensibilidades de um outro tempo, justo como aquela fonte privilegiada que pode acessar elementos do passado que outros documentos no proporcionam. (PESAVENTO, 2003, p.113)

Segundo Cardoso e Vainfas, o texto um documento e como tal sempre portador de um discurso que, assim considerado, no pode ser visto como algo transparente. (CARDOSO, 1997, p.377)A anlise deste discurso pode se dar atravs de uma anlise semntica, sintagmtica ou semitica. Nossa pesquisa calcar-se- na primeira, por acreditarmos que esta nos auxiliar a constatar com maior clareza o que procuramos em Parzival.
... a semntica tem por objeto o estudo do significado (sentido, significao) das formas lingsticas: morfemas, vocbulos, locues, sentenas, conjunto de sentenas, textos etc., suas categorias e funes na linguagem. (CARDOSO, 1997, p.377)

Resumidamente, efetuamos a anlise da fonte da seguinte forma: a) leitura cuidadosa do texto com marcao das partes referentes ao nosso recorte temtico (feminino e masculino); b) construo de um sumrio com referncias que indiquem precisamente a que estrofe ou verso retornar, para encontrar as aluses ao recorte temtico previamente selecionado; c) elaborao de quadros comparativos / contrastivos, que sero utilizados no momento da anlise final. Atravs destes procedimentos procuramos estabelecer um dilogo mais aprofundado com a fonte, a fim de que no sejam negligenciados determinados dados importantes para o resultado final da pesquisa.
O mtodo fornece ao historiador meios de controle e verificao, possibilitando uma maneira de mostrar, com segurana e seriedade, o caminho percorrido, desde a pergunta formulada pesquisa de arquivo, assim como a estratgia pela qual fez a fonte falar, produzindo sentidos e revelaes, que ele transformou em texto. (PESAVENTO, 2003, p.67)

Bibliografia BRAGANA JNIOR, lvaro Alfredo. A fraseologia medieval latina como reflexo de uma sociedade. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro/Faculdade de Letras, 1998. Tese de Doutoramento em Lngua Latina. BRANDT, Rdiger. Grundkurs germanistische Medivistik, Literaturwissenschaft. Mnchen: Fink, 1999. BUESCU, Maria Gabriela. Perceval e Galaaz, cavaleiros do Graal. Lisboa: Instituto

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS de Cultura Portuguesa / Bertrand, 1991. CARDOSO, Ciro Flamarion et VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domnios da histria: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e histria: conversas de Roger Chartier com Carlos Aguirre Anaya, Jess Anaya Rosique, Daniele Godin e Antonio Saborit. Porto Alegre: ARTMED, 2001. ESCHENBACH, Wolfram von. Parzival. (Band I I. Buch bis VII. Buch). In: http:/ /digi.ub.uni-heidelberg.de/cpg339i. Capturado em 13 de dezembro de 2002. ___. Parzival. (Band II VIII. Buch bis XV. Buch). In: http://digi.ub.uniheidelberg.de/cpg339ii. Capturado em 13 de dezembro de 2002. ESCHENBACH, Wolfram von. Parsifal. Traduo de A. R. Schmidt Patier. So Paulo: Antroposfica, 1995. ___. Parzival Mittelhochdeutsch/Neuhochdeutsch. Stuttgart: Philipp Reclam, 2000. Band I II. ___. Parzival Texte und bersetzung. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2003. GAULIN, Jean-Louis. A ascese do texto ou o retorno s fontes. In: BOUTIER, Jean et JULIA, Dominique (org.) Passados recompostos: campos e canteiros da histria. Traduo de Marcella Mortara e Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: Editora FGV, 1998. LANGOSCH, Karl. Lateinisches Mittelalter. Einleitung in Sprache und Literatur. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1988. LEXER, Mathias. Mittelhochdeutsches Taschenwrterbuch. Stuttgart: Hirzel, 1992. HENNIG, Beate. Kleines Mittelhochdeutsches Wrterbuch. Tbingen: Max Niemeyer, 2001. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Histria & Histria Cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2003. SELANSKI, Wira. A poesia de niedere minne de Walther von der Vogelweide. Rio de Janeiro: Impressora Velha Lapa, 1997. SPINA, Segismundo. A cultura literria medieval. So Paulo: Ateli Editorial, 1997. ___. Apresentao da lrica trovadoresca. Rio de Janeiro: Acadmica, 1956. ___. Manual de versificao romnica medieval. Rio de Janeiro: Gernasa, 1971. ___. Manual de versificao romnica medieval. So Paulo: Ateli Editorial, 2003. WEDDIGE, Hilkert. Einfhrung in die germanistische Medivistik. Mnchen: C. H. Beck, 2003. Notas Entretanto, deve-se lembrar que, em sua obra, Wolfram nos fala de um Ur-Parzival (Parzival original), que fora encontrado em Toledo por um renomado mestre chamado Kyot, e que fora redigido por um pago Flegetanis. Cf. ESCHENBACH, 1995, p.291. Contudo, a identidade e a autenticidade do mencionado monge Kyot permanecem uma incgnita. 2 Em torno da questo do fundamento celta da chamada matria da Bretanha criou-se toda uma discusso, pois alguns estudiosos afirmam que as lendas em torno de Arthur e seus cavaleiros tem fundamentao na Bretanha francesa e outros no Pas de Gales. Cf. BUESCU, 1991, p.35-41. 3 A imagem da tlia como local dos encontros amorosos pode ser verificada nas poesias de Niedere Minne de Walther von der Vogelweide. Para tanto consultar: SELANSKI, 1997, p. 30-36. J quanto referncia ao local da coita de amor, ver Livros III e V de Parzival. 4 Primeiro Livro (Prlogo, Viagem do cavaleiro Gahmuret a Baruc, Viagem de Gahmuret Belakane, Chegada de Gahmuret em Zazamanc, Belakane recepciona
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DESCRIO DE FONTE(S) LITERRIA(S) EM UM TRABALHO HISTORIOGRFICO: UM EXEMPLO... Gahmuret, Preparativos para o combate, Belakane visita Gahmuret, As lutas de Gahmuret diante de Patelamunt, Recompensa amorosa - Negociaes de Paz, Gahmuret abandona Belakane, Nascimento de Feirefiz, Partida de Gahmuret para Sevilha). 5 Na cpia do manuscrito (sculo XV) preservado e digitalizado pela Bibilioteca de Heidelberg (Cpg 339), cada Livro introduzido por uma iluminura. J na cpia conservada (sculo XIII) em Mnchen, na Bayerische Staatsbibliothek (Cgm 19), o corpo do texto disposto em trs colunas. Vide Anexos C e D. 6 Cf: http://digi.ub.uni-heidelberg.de/sammlung1/kat/cpg339ihida.xml? docname cpg339i. Capturado em 13 de dezembro de 2002. 7 Leia-se Mdio-Alto-Alemo / Moderno-Alto- Alemo. 8 Volume I - Livro I-VIII e Volume II - Livro IX-XVI 9 O texto em questo ser considerado por ns como sendo o original, pois se encontra no estgio lingstico do Mdio-Alto-Alemo em uso nos sculos XIIXIII e apresenta caractersticas peculiares a estes sculos. 10 Leia-se Parzival, estrofe 115, verso 27. 11 Quanto aos hexasslabos, ainda necessitamos de um maior aprofundamento na questo, pois no temos certeza se algumas slabas internas do verso so longas ou breves e se isto seria levado em considerao na contagem das slabas mtricas, o que poderia transform-los em hepta ou octasslabos. 12 Parzival, 1, 1 - 4. Ist Unentschiedenheit dem Herzen nah, so mu der Seele daraus Bitternis erwachsen., ESCHENBACH, 2000, p.7 - Em portugus, Cf: ESCHENBACH,1995, p.29. 13 Trombetas ecoavam qual trovo assustador, em cujo alarido se misturava o rufar dos tambores. No cabe culpa alguma de que os colmos tenham sido pisados sem nenhuma considerao. Os vinhedos de Erfurt guardam at hoje as marcas da devastao perpetrada pelas patas dos cavalos., Cf. ESCHENBACH, 1995, p.246. 14 No sero mencionados aqui os outros acontecimentos, para que a discusso no se estenda.

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Claustrum sine amario quase castrum sine armamentario: a lectio na regra de So Bento e a prtica de leitura entre os monges beneditinos do Rio de Janeiro (sc. XVII- XVIII)
Jorge Victor de Arajo Souza* s mesas dos irmos no deve faltar a leitura; nem deve ler a quem quer, por acaso, se apodere do livro, mas sim o que vai ler durante toda a semana, a comear do domingo. (Trecho da Regra de So Bento, captulo 38)

uando Umberto Eco concebeu sua obra literria mais famosa, O nome da rosa, acentuou, atravs do dilogo travado entre os personagens frei Guilherme de Baskerville e um monge beneditino de nome Bncio, um aspecto muito relevante da vida monstica a leitura. Guilherme pressionava Bncio argindo-o sobre que ttulos de livros ele estivera a conversar com outros monges. Bncio, bastante hesitante, disse: No recordo. O que importa de que livros se tenham falado? Ao que Guilherme retrucou: Importa bastante, porque aqui estamos procurando compreender o que aconteceu entre os homens que vivem entre livros, pelos livros e por isso tambm as suas palavras sobre os livros so importantes. Com isso, o monge s pde concordar: verdade, disse Bncio, sorrindo pela primeira vez com o rosto quase se iluminando. Ns vivemos para os livros (ECO, 1986, p.137). Ora, bem conhecida, entre os estudiosos da cultura monstica beneditina, a mxima medieval: claustrum sine amario quase castrum sine armamentario. Trocadilho que procura expressar, grosso modo, que um mosteiro sem livros se assemelha a um campo militar sem armamentos (NASCIMENTO, 1995, p.203). Leitura normatizada A cultura monstica beneditina possui uma administrao de vida extremamente planejada atravs de uma regra milenar (Regra de So Bento, sc. VI) que institui um verdadeiro manual de comportamento da vida em comunidade, e que adotada at os dias de hoje. Sua proposta uma vida de moderao baseada no lema Ora et Labora (orar e trabalhar). Neste documento normatizador a leitura possui um papel preponderante, sendo tratada principalmente como ascese. Dos setenta e trs captulos que a compem, a

Mestrando do Programa de Ps-graduao em Histria Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 422

CLAUSTRUM SINE AMARIO QUASE CASTRUM SINE ARMAMENTARIO: A LECTIO NA REGRA...

prtica da leitura est presente em dez. O captulo trinta e oito, do qual retiramos a epgrafe acima, o que trata mais diretamente do ato de ler. Nele a leitura aparece como uma prtica comunitria, estabelecendo as condies necessrias para que ela se realize: Faa-se o mximo silncio, de modo que no se oua nenhum cochicho ou voz, a no ser a do que est lendo (BENTO, 2003, p.91). Este tipo de leitura coletiva era praticada no refeitrio, na igreja, no captulo e no claustro. A Regra chega a aconselhar certas restries nas leituras:
[...] se for poca em que h jantar, logo que se levantarem da refeio, sentem-se todos juntos e leia um deles as Colaes ou as Vidas dos Pais, ou mesmo outra coisa que edifique os ouvintes; no porm, o Heptateuco ou os Reis, porque no seria til, s inteligncias fracas, ouvir essas partes da Escritura, nesta hora; sejam lidas, porm, em outras horas. (BENTO, 2003, p.97)

Nem o visitante que estivesse no mosteiro escaparia de ouvir uma breve leitura: Leia-se diante do hspede a lei divina para que se edifique e depois disso apresente-se-lhe um tratamento cheio de humanidade (BENTO, 2003, p. 115). Na Idade Mdia a leitura monstica (legere) fazia parte do trip de exerccios que alimentavam a vida espiritual, constitudo tambm da contemplao (contemplari) e de meditao (meditati) (HAMESSE, 1998, p.124). Na Lectio Divina, onde eram usados principalmente textos bblicos, a funo principal era desenvolver uma memorizao oral ligada a meditatio, sendo este tipo de leitura designada muitas vezes de Meditari Litteras ou Meditari Psalmos. (PARKES, 1998, p.105; GRIBOMONT, 2002, p.815-816) Segundo Jos Mattoso, o incio da observncia da Regra de So Bento em territrio portugus documentado no mosteiro de Vilela em 1086 e no mosteiro de S. Romo do Neiva em 1087 (MATTOSO, 1975, p.731-742). Alm da Regra de So Bento, a Congregao Beneditina Lusitana, a qual os mosteiros da Amrica portuguesa eram subordinados, possua tambm suas Constituies como textos normatizadores. Na constituio de 1629 est clara a necessidade de formao de monges letrados (Constittiones Monachorum, 1629, p. 249). Neste documento tambm observamos a importncia dada biblioteca e aos cuidados que deveriam ser dados aos livros. O zelo pela biblioteca, dita um captulo dessa Constituio, uma incumbncia do abade, que deve inclusive providenciar um bibliotecrio que faa, alm de outras tarefas, um inventrio com ndice alfabtico. No Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro a tradio medieval da leitura intramuros no foi, e nem poderia ser, esquecida por seus membros. sobre esta prtica neste ambiente, nos sculos XVII e XVIII, que procuraremos discorrer. Tecendo reflexes a partir dos pressupostos terico-metodolgicos elaborados pelo historiador Roger Chartier, principalmente entendendo que a leitura sempre uma prtica encarnada em gestos, em espaos, em hbitos (CHARTIER, 1994, p.13), procuramos responder as seguintes questes: que livros os monges do Rio de Janeiro colonial tinham a sua disposio, e em que espaos ocorriam suas leituras? O corpus documental que utilizamos constituise de fontes pesquisadas no arquivo do prprio mosteiro, e entre elas destacamse o Dietrio, os Estados, as Constituies e os Inventrios post-mortem. 423

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

Um espao para os livros Elevado a abadia em 1596, o mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro formou aos poucos uma biblioteca fornida de ttulos bem diversificados. Na documentao analisada detectamos pelo menos trs maneiras bsicas de aquisio de obras: por compra, por herana e por pagamento de dvidas. Tambm percebemos que a biblioteca necessitou de cuidados desde cedo. Os livros eram comprados em Lisboa e, ao que demonstra a documentao, existia a preocupao de selecion-los com rigor, todavia ainda no pudemos compreender quais eram os critrios desta seleo. Os assuntos eram bem variados como podemos ver na gesto de frei Jos de Jesus (17861789), o sexagsimo quinto abade: Na livraria meteu 156 volumes de livros teolgicos, litrgicos, jurdicos, histricos, filosficos, geogrficos, e de outras matrias. Alm das compras para a livraria, como era denominada a biblioteca, tambm notamos a aquisio de livros para o coro. Como fizeram frei Francisco do Rosrio em 1677, que segundo o dietrio comprou trs livros de canto cho, frei Bento da Victoria que durante seu abaciado entre 1682 e 1685 comprou um saltrio grande e frei Matheus da Encarnao Pinna que comprou um saltrio novo, e mandou fazer um livro todo de pergaminho muito curiosos com as quatro festas do ano, e outro mais pequeno (sic) com varias cantigas.33 Apesar do voto de pobreza, os monges beneditinos acumularam bens pessoais, e entre eles encontravam-se livros, como apontaremos mais detalhadamente ao focarmos o que eles possuam. Estes livros de uso pessoal formavam outra maneira de enriquecimento da livraria, ou seja, por meio de herana. Por exemplo, o esplio que D. Joo de Seixas, Bispo de Areopoli, deixou para o mosteiro contava com vrios escravos e uma pequena, porm boa livraria.34 E no trinio de 1743 a 1746 os Estados do Mosteiro nos informam que meteram-se mais bastantes volumes de livros que ficaro por falecimentos de alguns monges.35 O livro, um bem pessoal, passava a ser comunitrio aps a morte de seu dono. A forma de aquisio de obras por pagamentos de dvidas s foi localizada em um documento, mas no descartamos que tenha sido uma prtica comum, j que o mosteiro era um grande credor no Rio de Janeiro e admitia vrias formas de pagamento alm da em espcie.36 As condies climticas adversas (umidade e calor) somadas com a diversidade de insetos formavam uma terrvel combinao contra a durabilidade dos livros. No sculo XVII os danos j despertavam preocupaes nos abades, fazendo-os pr em prtica o que vimos determinado nas constituies de 1629. O vigsimo stimo, frei Thomas da Assuno (1688-1691) [...]fez consertar todos, ou maior parte dos livros, que estavam danificados37. Mas o mais zeloso parece ter sido o autor das clebres Memrias para a Histria da Capitania de So Vicente, frei Gaspar da Madre de Deus. Este monge, quando abade pela primeira vez (1763-1766), contratou, por uma significativa soma, um livreiro que ficou morando no mosteiro, e que tinha por funo manter a limpeza dos livros, orden-los e fazer um index dos autores. Alm disto, o livreiro encadernou cinqenta e dois tomos in folio.38 Fato interessante que foi colocado junto ao livreiro um escravo do mosteiro para aprender o oficio, e no trinio seguinte o
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livreiro foi dispensado ficando-se apenas com o escravo. Nos Estados vemos que esta estratgia fez com que o mosteiro economizasse trinta e seis mil ris por ano, alm do que era gasto para o sustento pessoal do dito livreiro.39 No final do sculo XVIII a livraria era um local agradvel para se passar as horas. Em 1779 ela possua estantes de jacarand, uma grande mesa coberta de cordovo com pregaria dourada, seis poltronas e mais duas mesas de jacarand. Era ornada com pinturas dos quatro doutores da Igreja e possua uma boa iluminao vinda de cinco janelas.40 Alm de contar, como vimos, com um index que possibilitava a localizao exata das obras. A livraria era motivo de orgulho para a comunidade, como informou o redator do relatrio de frei Loureno da Expectao Valadares (1783-1787): A casa da livraria a mais completa de que h noticia desta Amrica. 41 Provavelmente por isso fizeram uma inscrio em cima de sua entrada e que chamou a ateno, em 1808, do viajante John Luccock, nela se l: A sabedoria construiu uma casa para si. Entre Bblias e Cervantes Como vimos, em 1629 as Constituies da Congregao ordenavam que a biblioteca possusse um inventrio com ndice alfabtico. Por causa do aumento progressivo do nmero de ttulos, atravs das vrias formas de aquisio que apontamos, esta determinao teve que ser obedecida no Mosteiro do Rio de Janeiro. O index, feito pelo livreiro contratado por frei Gaspar, constitui uma preciosa fonte para levantarmos o que os monges possuam a sua disposio, o que por sua vez pode ajudar a traar um perfil do leitor, pois, como salientou o historiador Robert Darnton, o estudo das bibliotecas particulares tem a vantagem de unir o que` com o quem` da leitura (DARNTON, 1992, p. 208). Esse documento, que tem por ttulo ndice dos Cognomes e nomes de todos os Authores da Livraria, elenca mil trezentos e dezenove autores. Alguns deles possuem mais de dez obras relacionadas aos seus nomes. Um nmero extremamente significativo se tivermos em mente as condies de leitura na Colnia. Nesse ndice podemos ver como era ecltico o interesse dos monges. Ao lado de sermes, bblias e livros de santos encontramos livros de histria, romances, poemas e outros gneros. Um ponto que dificulta as investigaes que no existem informaes completas dos livros, apenas informam o nome do autor e suas respectivas obras, e como alertou Dom Matheus Rocha no incio da dcada de 1990: Infelizmente, pouqussimas obras desse Catlogo ainda existem, e estas mesmas condenadas ao desaparecimento pelo estado de deteriorizao em que se acham (ROCHA, 1991, p.31). Entre as obras elencadas se encontra a do beneditino Ludovico Blosio Opera Spiritualia. relevante, para indicar a possvel circulao dessa obra na Colnia, ressaltarmos que tambm Leila Mezan Algranti encontrou este autor entre os livros das religiosas carmelitas do Convento de Santa Teresa no Rio de Janeiro. (ALGRANTI, 2004, p.85-86) Essa historiadora destaca que a obra de Blosio, possuidora de carter mstico, foi escrita 425

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

para orientar os fiis nos mais diferentes aspectos da vida espiritual. Para leitura de sermes no faltavam obras de padre Antnio Vieira e de seu discpulo Antonio de S, entre outros. De autoria de Vieira encontramos tambm a famosa Histria do Futuro, obra com carter proftico que o levou a ter problemas com o Santo Ofcio. Publicada somente em 1718, a Histria do Futuro expunha um projeto messinico baseado na instalao do quinto imprio do mundo. Que interpretaes esta obra poderia ter suscitado entre os monges no podemos saber, mas significativa a presena de um livro to controverso na prateleira desta livraria, no mnimo um indicativo da heterogeneidade de assuntos disposio da comunidade. Entre os ttulos de histria constam vrios sobre Portugal e um clebre sobre o Brasil. Trata-se da obra Histria da Amrica Portuguesa de Sebastio Rocha Pita. disposio dos monges estava uma obra publicada em 1730 e composta por dez livros que enfatizavam as maravilhas da Terra Brasilis, a que o autor denominou Terreal Paraso descoberto. Alguns nomes desse ndice chamam a ateno por no serem exatamente escritores de ttulos religiosos. Destacamos da lista dois escritores espanhis famosos Pedro Caldern de la Barca (1600-1681) e Miguel de Cervantes Saevedra. Do poeta Calderon de la Barca a livraria disponibilizava nada menos que vinte e nove ttulos, como El mayor monarca del mundo.42 De Cervantes os monges possuam dois tomos in oitavo da Vida e feitos do fidalgo D. Quixote de la Mancha.43 O voto de pobreza no se tornou um impedimento para que os monges do Rio de Janeiro acumulassem bens pessoais. Pesquisando os inventrios dos monges falecidos neste mosteiro encontramos diversos ttulos arrolados em listagens extensas.44 Quando faleceu, frei Loureno da Expectao Valadares possua em seu poder oitenta e sete ttulos, como: Vida de Vieira, Gritos do Inferno, Arte de Furtar de Vieira, Sentena do Levante do Porto, Revolues do Porto, D. Quixote de la Mancha e um volume in oitavo de Noites de Young.45 Este ltimo trata-se do longo poema conhecido como Noites, de autoria do ingls Edward Young (1683-1765). Com dez mil versos produzidos entre 1742 e 1745, ele possui tons sombrios carregados de melancolia. Considerado precursor do movimento Romntico ele, de forma propicia para o pensamento religioso, termina com uma pomposa afirmao de f(WARD, 1959, p.261). Esses versos foram muito difundidos em Portugal na segunda metade do sculo XVIII. interessante notar que esta obra aparece tambm, s que em dois tomos, na listagem de bens de frei Jos da Natividade que possua a quantia de noventa e quatro ttulos em seu esplio. Ao lado do poema Noites, frei Jos possua uma Arte de conhecer os homens, um Flagelo do Pecado em trs tomos, um Bossuet em vinte e dois tomos e um Costume dos Israelitas em um tomo.46 Frei Jos de Jesus Campos, morto em 1807, tinha entre seus 69 ttulos, uma Histria Universal de Bossuet em quatro volumes e uma Histria dos Judeus.47 Frei Joo do Carmo parecia preferir biografias de reis, rainhas e de personalidades de corte, como podemos constatar entre seus setenta e quatro ttulos, onde vemos um volume in oitavo da Histria de Carlos XII, uma Vida da Rainha Eduarda, um volume in oitavo da Vida do Cardeal Mazarin e um volume in oitavo da Vida do Cardeal Richelieu.48
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CLAUSTRUM SINE AMARIO QUASE CASTRUM SINE ARMAMENTARIO: A LECTIO NA REGRA...

Cabe aqui uma reflexo crtica quanto a documentao exposta acima, pois como salienta Chartier quando trata da impreciso das fontes acerca da posse de livros, os inventrios post-mortem constituem documentos imperfeitos e muitas vezes omissos (CHARTIER, 1990, p.129). Todavia, o que podemos inferir diante destes inventrios encontrados no arquivo do mosteiro que a leitura privada possua, ao lado das leituras coletivas, seu espao nesta comunidade. Provavelmente sendo realizada na prpria cela do monge. Isso condiz perfeitamente com o que dita a Regra beneditina: Depois da sexta, levantando-se da mesa, repousem em seus leitos com todo o silncio; se acaso algum quiser ler, leia para si, de modo que no incomode a outro (BENTO, 2003, p.107). Alm da Lectio Divina Vimos que os monges tinham a sua disposio, de forma privada ou coletiva, uma significativa quantidade de obras dos mais variados assuntos. Atravs de uma anlise mais verticalizada das fontes, principalmente do necrolgio, buscaremos apontar a seguir o que possivelmente faziam com elas. A leitura aparece no captulo quarenta e oito da Regra de So Bento como um meio disciplinar, cabendo ao monge ocupar-se de todos os momentos do dia: A ociosidade inimiga da alma; por isso, em certas horas devem ocupar-se os irmos com o trabalho manual, e em outras horas com a lectio divina(BENTO, 2003, p.107). Nesse sentido, o monge que escreveu o necrolgio de frei Joo do Rosrio, que morreu em 1761 com avanada idade de oitenta e sete anos, enfatizou que ele era culto pelo uso que fazia de suas leituras e, que por sua vez, estas lhe serviam para ocupar o tempo: Era cheio de noticias adquiridas pela grande aplicao aos livros, por que inimigo da ociosidade nunca deixava de ler, estudar ou escrever.49 Para frei Jos de Jesus, falecido em 1767, o necrolgio aponta que a diviso do afazeres era uma qualidade sua, e que sempre encontrava tempo para as leituras: Dentro do mosteiro era cuidadoso em cumprir com suas obrigaes, e vivia sempre aplicado na lio de livros espirituais e de moral.50 Como dissemos nem s de obras religiosas se serviam os monges. Frei Domingos da Conceio, morto em 1718, dividia suas leituras pelo menos entre dois assuntos:
Nos dias de quarta depois de santificar as manhs gastava as tardes na livraria, ou ocupando-se em lies de livros espirituais ou divertindo o entendimento na aplicao da cosmografia pela inteligncia que tinha dela; recreando-se em ver o mundo recopilado, seno em um raio de sol como N. S. Patriarca se escreve, pelo menos em mapas como pode conseguir o trabalho e entendimento dos homens.51

Acreditamos que a leitura de assuntos cosmogrficos de frei Domingos ia alm da pura recreao, pois como descobrimos, por meio de outra documentao, este monge foi o responsvel pela construo do relgio de sol do mosteiro. Seu conhecimento cosmogrfico lhe habilitou para a construo de um mecanismo precioso para uma comunidade que possui o tempo bem dividido. Alm disto, o redator do necrolgio procurou dar um carter menos 427

ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS

mundano a esta leitura, mostrando que frei Domingos fazia o mesmo que So Bento, s que atravs de obras criadas por homens (MAGNO, 2003, p.116). A prtica de leitura no mosteiro do Rio de Janeiro foi aos poucos suplantando outras obrigaes comunitrias, levando alguns abades a tomar certas providncias. o que pode-se perceber com o ocorrido na administrao de frei Manoel do Desterro (1748-1750), que: Neste mosteiro fez compatvel o exerccio das letras com obrigaes do coro; e mandando alguns monges juniores da casa da Bahia para esta, veio pessoalmente abrir o coro, e fazer cantar pelos monges os divinos louvores aos 21 de maro de 1751, no sem grande contradio de alguns s apaixonados pelas letras.52 Os apaixonados pelas letras resistiam em abandonar suas leituras, mesmo que fosse por alguns momentos, obrigando o abade a trazer monges juniores da Bahia, ou seja, monges ainda muito habituados ao exerccio do canto coral. Claustrum sine amario... Os estudos sobre a leitura no perodo colonial ainda so poucos. O mosteiro do Rio de Janeiro era, entre os sculos XVII e XVIII, constitudo por uma comunidade de leitores. Alguns monges liam alm da obrigao de se manterem ocupados, alguns tornando-se apaixonados pelas letras. Roger Chartier afirma que: Sem abandonar as mediaes e sries, a histria dos textos e dos livros deve ser, acima de tudo, uma reconstituio das variaes nas prticas em outras palavras, uma histria da leitura (CHARTIER, 1995, p.233). Nesse sentido, acreditamos que atravs de pesquisa mais detalhada, que j colocamos em curso, poderemos apreender como se dava a prtica da leitura no cotidiano dos monges. Parafraseando o perspicaz personagem de O nome da rosa, aqui estamos procurando compreender o que aconteceu entre os homens que viveram entre livros.
Bibliografia Fontes impressas Arquivo do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro BENTO. Regra de So Bento. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 2003. Constituioens da Ordem de Sam Bento destes Reynos e de Portugal. Lisboa: [s.n.], 1590. Constitutiones Monachorum Nigrorum Ordinis S. P. Benedicti Regnorum Portugalliae. Lisboa: [s.n.], 1629. Cpia do Dietrio do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro - Parte I (1590-1792). Dietrio - Estante E Prateleira B. Cpia do Dietrio do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro - Parte II (16291782). Dietrio - Estante E Prateleira B. Fontes manuscritas Arquivo do Mosteiro de So Bento RJ Segundo Livro do Tombo do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro. ndice dos Cognomes e nomes de todos os Authores da Livraria. Arquivo do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro. Cdice 1128. Inventrio dos monges falecidos neste mosteiro (1795-1882). Cdice 1168.

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CLAUSTRUM SINE AMARIO QUASE CASTRUM SINE ARMAMENTARIO: A LECTIO NA REGRA... Bibliografia especfica ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoo, atos de censura: ensaios de histria do livro e da leitura na Amrica portuguesa (1750-1821). So Paulo: Hucitec/ FAPESP, 2004. BERARDINO, Angelo di. (Org.) Dicionrio patrstico e de antigidades crists. Petrpolis/RJ: Vozes, 2002. CHARTIER, Roger.Textos, impresses e leituras. In: HUNT, Lynn. A nova histria cultural. So Paulo: Martins Fontes, 1995. _____. A ordem dos livros - Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os sculos XIV e XVIII. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1994. _____. As prticas da escrita. In: ARIS, Philippe; CHARTIER, Roger (Orgs.). Histria da vida privada. So Paulo. Cia. das Letras, 1990. V. 3: Da Renascena ao Sculo da Luzes. DARNTON, Robert. Histria da leitura. In: BURKE, Peter. A escrita da Histria. So Paulo: UNESP, 1992. ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Record, 1986. GRIBOMONT, Jean. Lectio Divina. In: BERARDINO, Angelo di. (Org.) Dicionrio patrstico e de antiguidades crists. Petrpolis/RJ: Vozes, 2002. HAMESSE, Jacqueline. O modelo escolstico da leitura. In: CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger. (Orgs.) Histria da leitura no mundo ocidental. So Paulo: tica, 1998. LITTLE, Lester K. Monges e religiosos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean Claude. (Orgs.) Dicionrio temtico do Ocidente Medieval. Bauru/So Paulo: EDUSC, 2002. MAGNO, Gregrio. Vida e milagres de So Bento. So Paulo: Artpress, 2003. MATTOSO, Jos. Lintroduction de la Rgle de St. Benot dans la Pninsule Ibrique. Revue dHistoire cclsiastique. Lovaina, V. LXX, n. 3-4, p.731-742. NASCIMENTO, Aires A. Monges, livros e leituras: modos de espiritualidade e preservao de textos. In: Congresso Internacional Os beneditinos na Europa. Actas... Santo Tirso: Cmara Municipal de Santo Tirso, 1995. PARKES, Malcolm. Ler, escrever, interpretar o texto. In: CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (Orgs.). Histria da leitura no mundo ocidental. So Paulo: Editora tica, 1998. ROCHA, Mateus Ramalho. O Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro (15901990). Rio de Janeiro: Stdio HMF, 1991. WARD, Alfred Charles. Histria da literatura inglesa. Lisboa: Estdio, 1959. Notas Cpia do Dietrio do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro - Parte I (15901792). p. 147, 38, 44, 73. 2 Cpia do Dietrio do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro - Parte II (16291782). p. 303. 3 Cpia dos Estados do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro. V. I Parte Segunda: 1720-1748. Originais pertencentes Biblioteca Pblica e Arquivo Distrital de Braga Portugal. p. 243. 4 Cf. Segundo Livro do Tombo do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro. f. 7-8. 5 Cpia do Dietrio do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro - Parte I (15901792). p. 46. 6 Cpia dos Estados do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro. Vol. II 1746-1793. Originais pertencentes Biblioteca Pblica e Arquivo Distrital de Braga - Portugal. p. 52.
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Idem, p. 93. Idem, p. 175. 9 Idem, p. 218. 10 Cf. Indice dos Cognomes e nomes de todos os Authores da Livraria. Arquivo do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro. Cdice 1128. 11 Idem, p. 159. 12 Cf. Inventrio dos monges falecidos neste mosteiro (1795-1882) Cdice 1168. 13 Idem, f. 4 v-5 v. 14 Cf. Inventrio dos monges falecidos neste mosteiro (1795-1882) Cdice 1168. fls. 36v-38. 15 Idem, p. 22-22v. 16 Idem, p. 25-26. 17 Cpia do Dietrio do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro Parte II (16291782). p.308. 18 Idem, p. 139. 19 Idem, p. 254. 20 Cf. Cpia do Dietrio do Mosteiro de So Bento do Rio de Janeiro - Parte I (15901792). p. 95 (grifo nosso).

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O amor corts e a Igreja no Medievo


Thais Menezes Torres*

o falarmos sobre amor, o amor romntico que na nossa cultura iniciou com o Amor Corts, durante o sculo XII no conseguimos deixar de identificar aspectos semelhantes no mundo de hoje. O homem moderno ainda consome muito da concepo do Amor Corts atravs das novelas, filmes de amor e romances, nos quais a paixo conduzida a seus extremos e deve ser vivida at as ltimas conseqncias, vencendo os obstculos que encontra pelo caminho, o que parece avesso vida moderna que utilitria e calculista. Da mesma forma, ao relacionarmos este tipo de Amor com a religiosidade crist, observamos ainda hoje fortemente presente na sociedade - principalmente na brasileira - ritos tradicionais que consagram e celebram o amor, dentre eles: o noivado, o casamento e as bodas; que com exceo do primeiro, podem, e muito freqentemente so, oficializados no apenas na Igreja catlica, mas tambm junto a outras igrejas crists. Seria impossvel negar que tanto o Amor Corts como a Igreja Medieval sofreram interferncias mtuas. A Igreja esforou-se para no perder o controle das relaes conjugais, principalmente da nobreza. J os representantes do Amor Corts e aqueles que participavam dele de alguma forma, no deixavam de carregar em si uma forma de resistncia a este controle exercido por ela. Mudanas do sculo XII: o aparecimento do Amor Corts O sculo XII foi um perodo caracterizado por mudanas que abrangeram aspectos culturais, sociais, religiosos e econmicos; mudanas essas que proporcionaram um cenrio favorvel ao surgimento e propagao do Amor Corts. A escrita, que durante a Alta Idade Mdia foi domnio apenas dos clrigos, passa a ser compartilhada por nobres e cavaleiros, o que deu abertura a uma literatura laica, voltada para os assuntos do cotidiano. A conquista de espaos internos, vencendo a fronteira das florestas, permitiu uma ampliao dos recursos naturais e agrcolas e uma conseqente produo de excedentes, que alimentou o comrcio urbano. O fortalecimento do movimento das Cruzadas tornou possvel uma expanso espacial, ao mesmo tempo em que promoveu o desenraizamento de cavaleiros andantes, mercadores, clrigos vagantes e dos trovadores. Com a revitalizao do comrcio e o crescimento das cidades, so abertos espaos para novos grupos sociais - como a burguesia urbana ascendente - e surgem novas funes e profisses. Com isto, a sociedade feudal se torna mais
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Graduanda em Histria na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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complexa. Uma nova forma de organizao poltica, que fortalece gradualmente o poder monrquico e fragiliza as estruturas e hierarquias feudais, se intensifica, sobretudo, a partir do sculo XIII. As estruturas de parentesco se adaptam aos novos tempos, adequandose a cada um dos grupos sociais que participam deles. Tambm muda a forma de se pensar instituies antigas como a do casamento. A passagem da estrutura familiar aristocrtica no sentido de privilegiar a patrilinearidade e a primogenitura, produziu uma crise na nobreza que acabou por dividi-la entre o grupo dos grandes senhores feudais e o grupo de nobres mais empobrecidos e dependentes. Isto desempenhou um papel significativo para o Amor Corts, j que a imposio matrimonial feita pelo chefe da famlia passou a ser confrontada pelo modelo da livre escolha, e incentivado tambm pela Igreja, que via o casamento como um sacramento que dependia da mtua aprovao dos noivos. No seio da unidade familiar, a mulher adquire maior visibilidade social e melhoria de suas condies em algumas regies da Europa, principalmente no mundo dos trovadores corteses. A Igreja atingida tambm por estas mudanas, que se manifestam no aparecimento e difuso de novas ordens religiosas e na contestao das heresias. O Catarismo, em especial, foi uma heresia difundida mais fortemente no sul da Frana, que manteve contato com o Amor Corts devido sua localizao e pde interagir com o ambiente trovadoresco. Um relativo processo de dessacralizao do mundo, iniciado com a Reforma Gregoriana, levou, a longo prazo, emancipao da sociedade leiga (ANDR VAUCHEZ, 1995, p. 69). O Renascimento Cultural e a revalorizao da cultura clssica so apenas mais alguns exemplos que podem ser citados como prprios do sculo XII mesmo que alguns desses movimentos se tenham iniciado em finais do sculo XI e que de alguma forma, configuraram um cenrio favorvel para o aparecimento do Amor Corts. A funo do Amor Corts Alm do contexto favorvel, algo mais contribuiu para o sucesso do Amor Corts em meio nobreza no sculo XII. As cortes de amor mostram que ele exercia uma funo social e ldica na sociedade de corte que emerge da brutal sociedade feudal. As cortes feudais, sedentas por uma cultura mais refinada, tornaram-se como que laboratrios para os novos modelos de civilidade. Neste sentido, o Amor Corts desempenha um papel educador para o jovem cavaleiro que, atravs dele, se adequa a um novo tipo de vida que clama por novas regras de civilidade, j que as redes de relaes humanas esto cada vez mais interdependentes e complexas nesses tempos (NORBERT ELIAS, 1993, p.218). Amar, dentro dos padres corteses, pressupe um ritual, um conjunto de normas a ser observado e aprendido. Esta concepo de como conduzir o amor romntico fica expresso na poesia trovadoresca. Primeiramente parte-se da valorizao da Dama e da sujeio do poeta a mesma, em nome do amor - a relao de entrega do admirador Dama feita nos termos feudo-vasslicos, ocupando a Dama um lugar de suserana, qual o amador deve fidelidade. Outra condio que integra o Amor Corts
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O AMOR CORTS E A IGREJA NO MEDIEVO

a manuteno do segredo. Portanto, o admirador no anuncia sua fidelidade publicamente, como o vassalo faz com seu senhor - neste ponto se diferencia a relao do Amor Corts da relao vasslica. A Mesura deve ser tambm aprendida e cultivada pelo trovador. Ela consiste em ser capaz de se comportar com moderao e temperana, apesar da relao amorosa de entrega. O amante deve ter uma infinita pacincia, apesar de seu desejo. Desta forma, o Amor Corts apresenta-se, paradoxalmente, como um extravasamento dos sentidos e como um sistema educativo para a conteno dos mesmos. Completando o conjunto de sentimentos que envolvem um amor to extremado e ambguo, esto o desejo e o medo: o primeiro maior do que tudo, mas irrealizvel devido ao receio que se acabe o prprio amor; o segundo mostra o perigo desse amor ser descoberto, dando fim ao romance ou abalando a reputao da dama. O principal veculo do Amor Corts: o Trovadorismo O momento do surgimento do Amor Corts pode ser apontado como um marco na histria dos sentimentos humanos e das suas manifestaes. Mas seria impossvel sua expanso sem um dos seus principais meios de propagao: a poesia trovadoresca. As marcas deixadas por esta poesia foram to fortes e durveis que ainda hoje se afirma o despontar dos trovadores medievais do sculo XII como o momento do surgimento do amor romntico no Ocidente. O Trovadorismo, mesmo sendo anterior ao surgimento do Amor Corts, est intimamente ligado a ele, numa relao quase interdependente: ao mesmo tempo em que o Amor se tornou a temtica central das produes trovadorescas, o movimento do trovadorismo, contando com todos os seus atores, foi o principal meio de difuso desta temtica por grande parte do territrio europeu e na sociedade. Seus principais agentes eram poetas-cantores que percorriam o Ocidente europeu desde o incio da Idade Mdia, atuando como msicos, cantores, recitadores, e que por vezes se ligavam a outras formas de espetculo. As designaes para dar conta desse conjunto de poetas-cantores so muitas menestris, jograis, trovadores - e escondem uma grande gama de possibilidades. Algumas caractersticas, no entanto, so comuns a todos eles, como a itinerncia da maioria de seus participantes e a oralidade de sua produo. O Amor Corts encontra seu principal meio de expresso nas cantigas dos trovadores, nos romances corteses, nas cortes de amor, e nas prprias vidas dos poetas-cantores que percorriam as cortes europias feudais. E algumas dessas vidas tm aparncia de verdadeiros romances corteses, manifestando de forma condensada os principais elementos do Amor Corts, bem como seus personagens fundamentais, a saber: o Amador que se entrega a uma paixo incontrolvel e a servio da mulher amada; a Dama: idealizada aos olhos de seu admirador como a mais bela e perfeita das mulheres, inatingvel do ponto de vista fsico (por estar distante) ou social (por ser casada com um homem mais poderoso); o Marido da Dama: via de regra um poderoso senhor feudal. Outros personagens so coadjuvantes: confidentes, delatores, intrigantes, 433

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bisbilhoteiros, chamados losengiers. O movimento percorreu diversas regies da Europa, e caracterizou-se principalmente pela composio de poesias e canes lricas e, em menor escala, de representaes teatrais, que difundiram o amor corts nas mais diferentes localidades e grupos sociais. Pode-se, no entanto, distinguir o movimento trovadoresco em duas concepes: uma mais ampla e uma mais restrita. Dentro da concepo mais ampla, possvel indicar o grande circuito de produo e circulao potica e musical que abrangia as mais variadas esferas sociais: desde a palaciana e cortes at a popular, desde o ambiente rural at o urbano, desde as festas at as cruzadas. Na esfera mais restrita, que engloba apenas o meio das cortes rgias e senhoriais, a partir do sculo XI, a cultura aristocrtica que assimila a produo potico-musical como uma de suas atividades distintivas refere-se pois, poesia, popular ou aristocrtica que circulava no meio corteso e que se remete a um perodo que vai apenas do sculo XI ao XIV, estendendo-se ao XV em algumas cortes alems. As mudanas que ocorreram, a partir do sculo XI, no mundo medieval, o levaram a se expandir. E o mundo do trovadorismo, que se inseria no mundo feudal, se expande conseqentemente. Mesmo sendo paradoxal, socialmente produzido e imaginariamente elaborado, preciso considerar que o Amor Corts estava originalmente inserido num sistema esttico e em prticas potico-musicais e literrias especficas. Aqueles nobres empobrecidos, que no possuem os privilgios do escalo superior, tornam-se mais propensos a interagir com o mundo dinmico trovadoresco. No de excluir a existncia de trovadores bem estabelecidos no mbito feudal incluindo at mesmo reis e prncipes. medida que o sculo XII avana, vai ficando mais freqente a presena de uma cavalaria errante entre os trovadores, que no permanece ligada a seus senhores. Pode-se considerar que, para essa nova nobreza que est surgindo, o trovadorismo se tornou uma opo de novas formas de expresso e ascenso social (NORBERT ELIAS, 1993, p.74). Apesar de se ter fontes mais abundantes sobre o trovadorismo francs, possvel perceber que o movimento trovadoresco ocorreu tambm em outras regies da Europa, porm com diferenas peculiares. De acordo com a produo trovadoresca, cinco regies principais so passveis de serem distinguidas: o sul da Frana (cortes da Provena, Toulouse, regio da Catalunha), onde iniciou o Amor Corts ; o norte da Frana; a Itlia; a Alemanha; a Pennsula Ibrica, com exceo de Arago e da Catalunha (BARROS, 2002, p. 63). O Amor Corts e outros amores Apesar do amplo sucesso do Amor Corts no mundo das cortes trovadorescas, no se deve exagerar o carter de sublimao amorosa das cantigas de amor provenais. Algumas vezes uma ponta de ironia parece habitar num verso apaixonado. Um amor cnico pode-se perceber em outras cantigas de amor provenais em um dilogo com o amor corts, tendo seus artifcios muitas vezes estereotipados com um sensualismo que aparece debaixo da cobertura do amor
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O AMOR CORTS E A IGREJA NO MEDIEVO

idealizado. Entre esses dois amores oscilavam os trovadores - e na maioria das vezes fazendo-os conviver de forma sobreposta ou misturada, ficando impossvel distinguir o que era sublimao amorosa do que era sensualidade estilizada. Para encorpar o ruidoso concerto de ticas amorosas que o refinado cantar corts encobria, necessrio citar a contradio entre esta literatura de sonho e evaso e o mundo concreto, muitas vezes rude e violento, das relaes entre homens e mulheres na Idade Mdia. A tica corts tinha seu lugar especfico - que eram as grandes cortes da Frana e da Germnia - e contrastava com as brutais atitudes dos homens para com as mulheres que predominavam nas pequenas cortes mais afastadas daqueles centros. Esse contraponto apresenta-se nas cortes medievais como ambivalncia entre o masculino e o feminino e oscilaes entre o comportamento externo da vida social e o interno da vida familiar. No difcil pensar que, eventualmente, um ou outro poeta corts medieval, mesmo admirando os poemas de amor publicamente, na intimidade de seu casamento concreto, espancasse sua mulher. A Idade Mdia um mundo de contrastes vividos intensamente. O amor corts e o amor concreto tambm possuem uma circularidade nos seus registros dialgicos, transformando um ao outro simultaneamente. A literatura corts contribui para transformar a realidade extra-literria, e a realidade extra-literria penetra na literatura cortes que nasceu, em parte, como forma de sonho e de evaso. Uma forma de amor que contrasta com a do amor corts o amor mundano e desabusado dos goliardos - clrigos errantes que percorriam as cidades entoando canes em latim ou participando de torneios de oratria nas universidades. Tendo tido uma formao inicial nos meios eclesisticos, passaram a constituir um mundo marginalizado do saber. O amor que retratam, privilegia a pura entrega aos prazeres sexuais, rejeitando os vnculos monogmicos e os padres de fidelidade amorosa. Parodiar a maneira como se modela o objeto amoroso da esttica provenal - a mulher idealizada - descrevendo uma mulher de forma exatamente oposta, uma crtica sutil ao falso refinamento corteso. Cantigas satirizando o amor corts e suas idealizaes no eram raras no cancioneiro satrico galegoportugus, apesar de nos meios ibricos as cantigas de amor tambm estarem na moda. Os mesmos trovadores que compunham cantigas de escrnio tambm compunham cantigas de amor dentro dos padres corteses. Existem ainda as cantigas de amigo, elaboradas tambm por poetas galego-portugueses. Nelas, os trovadores abandonam os tipos femininos idealizados para apresentar a mais variada gama de tipos femininos. O prprio ponto de vista feminino explorado, pois as cantigas de amigo so construdas atravs da fala de uma mulher. O amor passa a ser apresentado nas formas do cotidiano, embora as cantigas enfatizem sempre a saudade do homem amado - o que nos lembra o sentimento de ausncia e distanciamento amoroso. Os trovadores ibricos, portanto, lidavam indistintamente com o Amor Corts, com o Amor Satrico e com o Amor do Amigo.

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O Amor Corts e a Igreja (instrumento de insatisfao?) O Amor Corts representa uma revoluo nos modos de pensar e de sentir, e no deixa de empreender uma crtica velada aos padres repressores de seu tempo. A lrica trovadoresca intermediava as relaes entre a cultura clerical e laica. Exaltava o amor no seu aspecto espiritual, introvertendo o erotismo e assim usava a impossibilidade da concretizao fsica do amor como uma penitncia. Segundo Franco Junior, a submisso do poeta sua senhora colocava o amor nos moldes da relao vasslica, e mantinha um paralelismo com o culto a Virgem, que estava se desenvolvendo (FRANCO JUNIOR, 1999, p.138). Os elementos que comeam a se apresentar no sculo XII com o Amor Corts ameaam trazer os sentimentos para um lugar de destaque, onde sempre prevaleceram a f religiosa, a razo erudita e o utilitarismo cotidiano. Do ponto de vista da cortesia, a relao entre os dois sexos comea a sofrer transformaes: antes, regida pela fora, pelo instinto, pelo interesse e pelo comodismo entediante, agora tem os sentimentos conclamados a uma autonomia. Portanto, um outro aspecto que coloca o Amor Corts no mundo das contradies sua relao com o Casamento tradicional - o matrimnio oficializado que feito atravs do interesse das famlias, que submete a mulher medieval ao jugo do marido, e que tem como objetivo principal o nascimento do herdeiro do patrimnio feudal. Oficializar e tornar pblico trai o segredo amoroso; ligar a escolha amorosa a interesses sociais e materiais trai os ditames da paixo; sujeitar a mulher concreta hierarquia do signo masculino vai contra ao servio Dama idealizada; manter relaes sexuais apenas para procriao atraioa a dimenso idealizante do amor corts. Em suma, no de se estranhar que, no sculo XII, a idia de Casamento muitas vezes se contrapunha idia de Amor. Contra isto a Igreja reage no sculo XIII, oficializando o sacramento do matrimnio, objetivando com isso reforar a sua capacidade de controle sobre a sociedade laica. Esta revoluo imaginria, vivida de maneira concreta e intensa por muitos trovadores, foi vivida pela maioria dos homens e mulheres apenas de forma ldica e no mundo da imaginao. Ele produto deste tempo histrico especfico ao qual nos estamos referindo, e um dos aspectos da literatura desenvolvida sobre ele, a falta de sentido esttico que se apresenta quando o desfecho de uma histria de amor torna-se favorvel - o que explica muitos poetas e dramaturgos preferirem o desfecho trgico de suas estrias (como no romanceTristo e Isolda). assim que, aps enfrentar mltiplos perigos separadamente, o prncipe encantado e a princesa acabam por viver num banal, felizes para sempre. Talvez essas frmulas indiquem que uma caracterstica indefectvel do amor romntico so os obstculos e sofrimentos que enfrenta - uma vez que esses obstculos so vencidos, no h mais nada de interessante, do ponto de vista literrio, a ser visto. As complexas relaes que conduzem freqentemente o amor extremado soluo final da morte, e que na potica corts deu origem a frmulas conhecidas como a do morrer de amor, aproximaram o amor corts tambm a outras formas de entrega de si mesmo, como a do Amor Mstico. Neste tipo de amor, se aspira em ltima instncia uma fuso com o
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O AMOR CORTS E A IGREJA NO MEDIEVO

Criador ou um mergulho no reino do indiferenciado, onde os sofrimentos mundanos j no existem mais. A Morte, nesses casos, o caminho possvel para se superar os limites que aprisionam o homem, e que no caso do Amor Corts, impedem o amante de estar com sua amada definitivamente. A Igreja e o Amor Corts: Andr Capelo Na relao da Igreja com o surgimento do Amor Corts, queremos focalizar uma obra especfica, a saber: o Tratado do Amor Corts de Andr Capelo. No se tm muitas informaes sobre o autor sabe-se que se tratava de um clrigo que freqentava as cortes francesas e que, portanto, deveria estar a par dos assuntos mais em pauta neste meio. Ele auto-intitulava capelo da corte real. Viveu na primeira metade do sculo XII, aparecendo como testemunha de ttulos de propriedade entre 1182 e 1186. O termo capellanus no fornece informaes muito precisas. No se sabe se Andr era apenas um clrigo tonsurado que no exercia o ministrio, ou se exercia verdadeiras funes eclesisticas. Mas com certeza, o termo se refere ao capelo vinculado a uma capela real ou senhorial e encarregado do servio divino. No se pode afirmar com certeza se Andr era padre, pois era comum os capeles exercerem apenas funes de secretariado nas cortes. Porm, atravs da prpria obra de Andr, pode-se notar que ele devia ser ordenado. No possvel apresentar uma data exata para o Tratado, porm algumas indicaes so dadas pelo prprio Andr Capelo ao longo do texto, que nos levam a localiz-lo entre os sculos XII e XIII. Sendo considerado um homem da Igreja, que tem os preceitos cristos como prioridade, curioso notar a ambigidade com que o assunto do Amor desenvolvido ao longo do tratado. No Primeiro Livro do Tratado est presente a exaltao do Amor e da Mulher. Nele, Andr Capelo distingue duas formas de amor: o amor purus -que se enquadra na forma totalmente idealizada do amor corts, permitindo o contato fsico, mas sem a finalizao do ato sexual; e o amor mixtus - que vive o prazer sexual em sua totalidade. Porm, privilegia o amor puro e atesta sua superioridade sobre o amor misto. Usa como exemplo vrios dilogos entre homens e mulheres de diferentes segmentos sociais, e como se pode desenvolver um relacionamento entre eles. O Livro II se intitula Como manter o amor e busca ensinar a manter o amor aps t-lo usufrudo. Deixa-nos subentendido que o amor, depois de sua consumao, fica mais frgil e passvel de ser desgastado com maior facilidade este no deixa de ser um pensamento recorrente da mentalidade do Amor Corts, cuja fora est justamente no domnio do prprio desejo. O Livro III apresenta a condenao do Amor Corts. Aconselha que aps todos os esclarecimentos, o Amor seja evitado, pois impossvel a qualquer homem agradar a Deus e simultaneamente dedicar-se ao servio desse Amor. A produo do Tratado do Amor Corts, escrita por um clrigo, nos leva a refletir sobre um representante da Igreja que escreve sobre o Amor Corts, considerando-se apto para escrever sobre o ele, a ponto de intitular sua 437

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obra como Tratado. Um trabalho desse tipo, como o de Andr, mostra o empenho da Igreja em inserir-se no universo do Amor Corts, dando exemplos aos homens e mulheres, ouvindo-os e aconselhando-os sobre as conseqncias de se entregar aos seus sentimentos e desejos. Desta maneira, de alguma forma, mantm o controle de seus fiis.
Bibliografia FRANCO JUNIOR, Hilrio. Idade Mdia: Nascimento do Ocidente. So Paulo: Brasiliense, 1999. BARROS, Jos DAssuno. O Amor Corts. Rio de Janeiro: CELA, 2002. ROUGEMONT, Denis de. Histria do Amor no Ocidente. So Paulo: Ediouro, 2003. DUBY, Georges. Idade Mdia, idade dos homens. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. ___. Damas do sculo XII: a lembrana das ancestrais. So Paulo: Cia. das Letras, 1997. CAPELO, Andr. Tratado do Amor Corts. So Paulo: Martins Fontes, 2000. VAUCHEZ, Andr. A Espiritualidade na Idade Mdia Ocidental sculos VIII a XII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. 2v. ___. A Sociedade de Corte. Lisboa: Estampa, 1995.

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Escatologia e Terra Santa no Livro do Fim (1305), de Ramon Llull


Eliane Ventorim*

isticismo e espiritualidade so duas fortes caractersticas do sculo XIII, tempo tambm de crise e de muitas crticas Igreja romana (VAUCHEZ, 1995, p. 125-159). Por isso, no limiar desse sculo, muitos pregadores clamavam por uma reforma: a igreja estava impregnada de corrupo e luxo, e deveria afastar-se das riquezas materiais e da vida luxuosa da cpula clerical. Mas, para isso, era necessrio um retorno s origens do cristianismo e ao modelo de vida apostlica representada pela simplicidade e pela pobreza. Nesse ambiente de crticas e anseio de mudanas surgiram seitas reformistas, como os ctaros, que pregavam um ascetismo extremo o fim do casamento, das relquias e do culto aos santos (KNG, 2002, p. 128-130) e, posteriormente, os valdenses, que defendiam uma liturgia praticada por leigos (tanto homens quanto mulheres), rejeitavam os juramentos, no acreditavam no Purgatrio, nem veneravam a cruz (KNG, 2002, p. 128130). Todos esses movimentos foram considerados herticos pela Igreja, fosse por contestarem seus dogmas, fosse pelas crticas aos maus hbitos clericais e ao afastamento da espiritualidade por parte dos clrigos. Assim, havia um grande clamor por uma renovao e uma purificao da Igreja. Ela deveria ser como uma fnix, que se queima e ressurge das cinzas. Muitos no desejavam somente mudanas. Ento, somente depois das reformas, a Igreja poderia ressuscitar renovada na era do Esprito Santo e assim aguardar o regnum Chisti reino do retorno de Cristo para governar o mundo por mil anos antes do Juzo Final. A crena nesse retorno passou a ser chamada de milenarismo (TPFER, 2002, vol. I, p. 361). O principal representante desse pensamento foi Joaquim de Fiore (11321202). Em seu Comentrio sobre o Apocalipse, obra de exegese proftica, ele dividiu a histria em trs idades: a do Pai (de Ado a Cristo), a do Filho (de Cristo ao ano 1260) e a do Esprito Santo (de 1260 em diante). Essa ltima seria um tempo dominado pelo misticismo e pela contemplao um tempo dos monges. Suas conseqncias seriam o fim do cisma da Igreja e a converso dos judeus (DELUMEAU, 1997, p. 17-19; 40-52). Como os medievos clamavam por renovao, a partir de 1250 essas idias tiveram uma grande divulgao por toda a Europa, e foram adotadas por alguns crculos franciscanos, principalmente os espirituais (FABEL, 1995, p.

Mestranda do Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal do Esprito Santo.

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49-77). Os rumores do milenarismo surgiram no sculo X, com a Ordem de Cluny, e se estenderam at o sculo XV, com as ordens mendicantes (TPFER, 2002, vol. I, p. 353-365). Na virada do ano 1300 e no incio do sculo XIV, essas idias de reforma e espiritualidade ainda ecoavam por toda a Europa. A comemorao do Primeiro Jubileu (em 1300) foi resposta do papa Bonifcio VIII (1233-1303). Com isso, o papa estimulou a peregrinao a Roma, concedendo indulgncia plena a quem visitasse o tmulo de Pedro naquele ano. Era sua forma de responder aos anseios coletivos de salvao (VILLOSLADA, 2003, p.589-591; REALE e ANTISERI, 1990, p. 611). Ramon Llull (1232-1316) tinha conhecimento dessa crise religiosa, cujas causas eram o gosto pelos prazeres materiais, e a perverso dos costumes clericais. Contudo, ao contrrio das seitas que surgiram algumas at subversivas ordem social vigente , esse filsofo no desejaria que a reforma destrusse os poderes constitudos. Para ele, a causa dos conflitos e guerras estava no enfraquecimento e no quase desaparecimento da idia de poder imperial. A reforma social partiria da unificao dos poderes seculares nas mos de um imperador. Tal imperador ficaria a servio da Igreja renovada pelo Evangelho e comandada pelo papa. Isso levaria o mundo paz (CARRERAS I ARTAU, 2001, p. 621-630). O Livro do Fim
[...] um homem deixou tudo o que possua, e por muito tempo trabalhou, correndo quase todo o mundo para poder impetrar do senhor papa, dos senhores cardeais e tambm dos outros prncipes desse mundo, remdio e ajuda para pr fim, se possvel, a uma desgraa to grande e to indecorosa. (RAMON LLULL, 2002, p. 77).

Cansado de tanto insistir para que algo fosse feito em prol da Terra Santa e pela cristandade ocidental, depois de receber muitas respostas negativas por parte de reis, prncipes e papas para seus projetos, esse homem resolveu escrever aquele que seria seu ltimo livro sobre a conquista da Terra Santa, o Livro do Fim (1305). Nele, exps de forma dolorosa todo o seu labor e, diante de todo o descaso, fez ameaas queles que no realizaram, para o bem pblico, uma ao enrgica para reconquistar as terras crists em poder dos sarracenos e converter todos os outros infiis verdadeira f, ou seja, o cristianismo catlico (LLINARS, 1968, p. 245-246). Para realizar a unio de todos os homens em um s credo, acabando com os erros e com o cisma, Llull tinha como o primeiro de seus propsitos a converso. Aps ter cinco vises de Cristo crucificado, Ramon assumiu a misso de converter os infiis. Para isso, perseguiu pelo resto da sua vida trs idias: 1) fundar colgios onde fossem ensinados o rabe e as lnguas dos outros infiis; 2) escrever o melhor livro do mundo contra os erros desses infiis e 3) aceitar o martrio e converter os infiis f crist (BATLLORI, 1993, p. 9). Em suma, a trilogia na qual se baseava seu pensamento era: 1) formao, 2) pregao e 3) conscincia religiosa. Por isso, ele j fizera vrios pedidos aos grandes
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senhores da cristandade, mas ningum lhe dera ouvidos o que era um motivo de grande dor. Alm disso, muitas vezes ele foi considerado um louco e um fantstico, principalmente pela forma arabizada de expor suas idias; o que fazia com que ele no fosse compreendido (HILLGARTH, 1998, p. 155-156). Para esse homem de ao, que reprovava as incurses militares dos cruzados no Oriente Mdio, o melhor caminho para a converso dos infiis era a cruzada espiritual, que, para ele significava sinnimo de converso atravs do dilogo intelectual (LLINARS, 1987, p. 117-118). Assim, homens santos e letrados nas lnguas dos infiis deveriam provar a f com argumentos racionais e lgicos (LLINARS, 1987, p. 128). Essa disputa teria como ponto de partida o que era comum s trs religies (judasmo, cristianismo e islamismo), como as dignidades de Deus (bondade, grandeza, poder etc.). Isso tornaria mais fcil a aceitao das verdades crists por parte de judeus e sarracenos (BONNER, 1989, p. 35). Contudo, caso o infiel no concordasse em dialogar, Llull aceitava o combate armado. Assim, ele poderia ser convertido j no crcere, e aps a sua converso, ele seria liberto e voltaria sua terra natal para realizar a converso de outros (BONNER, 1989, p. 182-183). A forma aceita por Llull para a cruzada corporal era bem prxima daquilo que era praticado pelos muulmanos naquela poca a jihad (LLINARS, 1987, p. 245-251), que era realizada contra quatro tipos de inimigos: infiis, apstatas, rebeldes e bandidos. O objetivo maior era expandir o islamismo por todo o mundo. Assim, as aes militares seriam nada mais que a remoo dos obstculos apresentados para uma converso pacfica dos pagos ao Isl (LEWIS, 1996, p. 210-214). Terminada essa breve explanao sobre alguns fatores da vida do maiorquino, voltemos ao perodo da obra aqui analisada o Livro do Fim e seu contedo. O Livro do Fim (1305) uma obra adequada a seu tempo, tempo de crise, de pensamentos escatolgicos e milenaristas, como dissemos anteriormente. Escrito em Montpellier, a obra foi dedicada ao papa Clemente V (1305-1314). Nela, Ramon desenvolve seus propsitos apologticos, aborda de forma detalhada seus planos de como recuperar os territrios dominados pelos rabes e sugere a melhor forma de converter os infiis (LLINARS, 1987, p. 250). Alm de um Prlogo, o Livro do Fim contm trs distines. A primeira, sobre a disputa com os infiis, divide-se em cinco captulos: 1) a ordem que devemos seguir, 2) contra os sarracenos, 3) contra os judeus, 4) contra os cismticos e 5) contra os trtaros ou pagos (RAMON LLULL, 2002, p. 78-79). A segunda distino, sobre a maneira de fazer a guerra, divide-se em sete partes: 1) da eleio, 2) das regras, 3) do lugar, 4) da maneira de fazer a guerra, 5) da armada, 6) da pregao e 7) da arte mecnica (RAMON LLULL, 2002, p. 93). A terceira distino, sobre a exaltao do entendimento, divide-se em duas partes: 1) da Ars generalis aut compendiosa sive inventiva vel demonstrativa e 2) das vinte artes especiais derivadas da Arte Geral (RAMON LLULL, 2002, p. 107). Para o presente artigo analisaremos a escatologia luliana contida no Prlogo, e o tema da eleio, localizado no primeiro captulo da segunda distino. 441

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A escatologia luliana no Prlogo do Livro do Fim No Prlogo do Livro do Fim, Ramon utiliza um discurso escatolgico para falar dos males do mundo e se desculpa com Deus por no ter conseguido realizar seus propsitos. Ele afirma: com ele, escuso-me a Deus Pai, ao seu Justssimo Filho e ao Esprito Santo [...]; que nesse negcio no pude fazer mais do que fiz, pois estou totalmente s (LLULL, 2002, p. 78), e com pesar, lamenta que ningum tenha lhe ajudado. Llull continua em um tom de ameaa queles que poderiam ter agido em prol da f crist e nada fizeram:
Que julgamento vir sobre eles, no me lcito saber; isso somente pertence a quem tudo sabe, desde sempre. [...] Por tudo isso, eu dou um conselho a quem tem ouvidos para ouvir (Ap, 2-3): que escute o que digo e, com fervor, guarde no seu entendimento o temor pelo grande julgamento (LLULL, 2002, p. 78).

Aos homens no permitido conhecer seu destino aps a morte. Dessa forma, Ramon se exime de qualquer tipo de culpa e coloca diante do Grande Juiz, para receberem suas penas, aqueles que poderiam ter agido em favor da cristandade (TPFER, 2002, p. 353-365). Llull cita o Apocalipse de Joo, no qual o Senhor ordenou a Joo que escrevesse cartas s sete Igrejas, e que todas as cartas se encerrassem com os dizeres: Quem tem ouvidos oua o que o Esprito diz s Igrejas (Ap 2,7; 2,11; 2,17; 2,19; 3,6; 3,13; 3,22). O maiorquino parafraseia essa admoestao, utilizando-a contra os cristos. Com esse aviso, Ramon pretendia demonstrar que, no dia do Juzo Final, todos aqueles que podiam, mas no agiram para recuperar a Terra Santa e converter os infiis, sofreriam as penas infernais por sua indiferena no servir ao Supremo Juiz; assim, o filsofo demonstrava seu pensamento escatolgico na tentativa de conseguir adeptos sua proposta de cruzada e misso. Como possvel reconquistar a Terra Santa
Os anjos do Paraso e os santos e latinos desejam que a Terra Santa e as outras terras que os infiis tomaram dos latinos sejam recuperadas. Cabe, portanto, que o senhor papa e os senhores cardeais, encarregados principalmente de promover o bem, de procurar a honra de Nosso Senhor Jesus Cristo e a salvao dos homens, elejam um cardeal muito santo e muito devoto, que receba a mensagem de levar a termo tudo aquilo que ser exposto nesta distino (LLULL, 2002, p. 93).

No primeiro captulo da segunda distino do Livro do Fim (sobre a eleio), Ramon demonstra as medidas que deveriam ser tomadas para recuperar a Terra Santa e as outras terras que os infiis tomaram dos latinos (RAMON LLULL, 2002, p. 93). Esse negcio proposto por Llull era destinado honra de Cristo e desejado por toda a corte celestial o Pai, o Filho, o Esprito Santo e a Virgem Santssima. E como os clrigos so considerados, por toda a
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Idade Mdia, os homens mais prximos de Deus (AQUINO, 1994, p. 489), nada mais correto que o colgio de cardeais e o senhor papa tomarem o comando desse santo negcio. Depois da eleio desse cardeal, o mesmo teria que seguir as instrues descritas a seguir, para que tudo se realizasse para o bem comum da cristandade. O primeiro passo a ser seguido seria a unio de todas as ordens militares isto , do Templo, do Hospital, dos Alemes, de Ucls, de Calatrava e de todas as outras existentes em uma nica ordem que se chamaria Ordem da Milcia (RAMON LLULL, 2002, p. 93-94). Isso porque a ao conjunta e a convivncia entre essas diferentes ordens fora cheia de conflitos, os quais, a partir do final do sculo XIII, foram apontados como uma das causas do fracasso das cruzadas, possibilitando que os reinos cristos no Oriente Mdio e, principalmente Jerusalm, voltassem para o controle dos sarracenos (RUNCIMAN, III, 2003, p.371-405). O chefe ou mestre dessa ordem seria denominado de rei guerreiro, o qual deveria conquistar para os cristos o reino de Jerusalm, que seria governado por ele prprio. Por isso, tornar-se-ia o rei mais importante de toda a cristandade, de forma que no haveria no mundo outro cargo mais nobre do que o dele. Ele seria sucedido por um outro rei tambm muito honrado (RAMON LLULL, 2002, p. 93-94).
Se o rei guerreiro for eleito conforme o que dissemos, muitos militares cristos, muitos burgueses e outros homens seculares e do povo se alistaro voluntariamente, por sua conta e s prprias expensas. Dessa forma, no exrcito assim formado, eles se submetero unanimemente s ordens do senhor rei guerreiro para fazer penitncia dos pecados cometidos, pois existem muitos que desejam morrer por Nosso Senhor Jesus Cristo (RAMON LLULL, 2002, p. 95).

O fato de o rei guerreiro ser um homem respeitado por toda a cristandade facilitaria a adeso de outros guerreiros causa da reconquista. Muitos militares, burgueses, seculares, entre outros, que haviam levado uma vida de pecados, receberiam a salvao para morrer em Cristo, e seguiriam o exemplo de honradez do rei guerreiro e de sua milcia. Isso era algo muito comum entre os medievais: quando a morte se aproximava, depois de levar uma vida corrompida pelo pecado, o guerreiro se convertia e fazia uma peregrinao, para assim ser perdoado e salvo. Para Llull, esses pecadores, sabendo das vitrias da Ordem da Milcia, alistar-se-iam e pagariam com recursos pessoais as despesas com armamento, alimentao e moradia durante a campanha. Tudo em honra do rei guerreiro, que seria o representante da vontade de Cristo na terra (RAMON LLULL, 2002, p. 95). Tambm deveria ser permitida a participao na Ordem da Milcia a qualquer clrigo ou monge que assim desejasse, sendo mantidas as rendas que possua enquanto ainda estava na sua comunidade religiosa, para que pudesse manter um cavalo armado. No caso dos religiosos, se essa renda no fosse suficiente, o rei guerreiro deveria ajud-los com as despesas. Mas de onde viriam os recursos que manteriam a Ordem (RAMON LLULL, 2002, p. 95)? 443

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Ramon tambm se preocupou com essa caracterstica em seus projetos, dizendo que o papa e os cardeais deveriam conceder o dzimo atual da Igreja para recuperar a Terra Santa (RAMON LLULL, 2002, p. 94). Dessa forma, para o maiorquino, as rendas da Igreja deveriam ser utilizadas para a honra e glria de Cristo. Ele criticava com muita veemncia os desvios que eram feitos do dzimo por reis, para financiar conflitos particulares e entre cristos. Muitas vezes, os reis confiscavam o dzimo em seus reinos para utilizar nessas guerras. Porm, se algum desviasse ou roubasse os recursos da ordem, seria excomungado e somente o rei guerreiro e seu conselho poderiam lhe dar, posteriormente, a absolvio. Aps a ordenao dos planos que deveriam ser seguidos, o Doutor Iluminado retornou ao tom de ameaa utilizado no prlogo do livro.
Cabe considerar muitos outros bens nessa eleio, que seriam extensos de contar. Se for feita, conseguir-se-o estes bens; caso contrrio, perder-se-o irremediavelmente. Quais males se seguiriam dessa perda, ningum pode saber atualmente. Que poderia pensar a tristeza em que a obedincia falando metaforicamente teria? Quem poderia esperar a vingana da justia de Deus, de acordo com as Escrituras? Quem poderia ouvir a voz e os gritos que far sentir o primeiro mandamento? Quem poderia calcular quo grande seria a desobedincia? E portanto: Quem tem ouvidos para escutar, que escute! (Mt 11, 15), enquanto tempo de escutar (RAMON LLULL, 2002, p. 95-96).

Ramon mesmo disse que poderia enumerar muito mais coisas relacionadas eleio e execuo de seus projetos. Contudo, como nada do que foi descrito nessa obra foi feito, muitos males se seguiriam. Uma dessas ameaas seria a expanso do Islamismo a tal ponto, que colocaria em risco a prpria cristandade ocidental. Para ele, a no realizao desses planos era uma desobedincia a Deus, o qual deveria ser amado, honrado e servido. Ainda, a no realizao desses planos se opunha s Escrituras e ao que diz o primeiro mandamento, que : amar a Deus sobre todas as coisas (Mt. 22, 37). Essa desobedincia causaria muita dor e ranger de dentes, pois milhares de infiis seriam condenados pelos erros de suas crenas e os cristos tambm seriam condenados por no terem feito nada para pr em prtica um outro mandamento que diz: ama o seu prximo como a ti mesmo (Mt. 22, 39). Dessa forma, salvar-se-iam aqueles que no conheciam a Cristo. Concluso O Livro do Fim foi a principal obra luliana sobre o tema das Cruzadas. Como demonstramos ao longo do texto, com esse livro Llull pretendia alertar os cristos quanto ao perigo que o ocidente cristo corria de ser invadido e tomado pelos infiis. Na concluso, Llull dedicou tal obra ao Esprito Santo para que Ele aperfeioasse e completasse tudo o que nela existia. Ainda, o filsofo afirmou que quem fosse contra os preceitos dessa obra pecaria contra o Esprito e esse
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ESCATOLOGIA E TERRA SANTA NO LIVRO DO FIM (1305) DE RAMON ILULL

pecado no teria perdo (RAMON LLULL, 2002, p. 111). Ramon Llull finalizou o Livro afirmando que, se os seus projetos fossem levados adiante, os cismas cristos e as heresias acabariam, pois dar-se-ia a unio de todos os credos cristos em um s, para a grande exaltao da f catlica romana, o que traria paz ao Ocidente cristo. O fato de no ter sido atendido, fez com que Llull partisse para a ao. Em 1306, ele foi para Bugia, capital do reino de Tunis, pregar em praa pblica para converter os infiis. Hoje sabemos que seu esforo foi em vo, uma bela utopia!
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A reconquista no Livro dos Feitos (c. 1252-1274) de Jaime I (1208-1276)


Luciano Jos Vianna*

risto, guerreiro, conquistador. Essas palavras resumem a vida de Jaime I, el Conqueridor, rei de Arago, de Maiorca e de Valncia, conde de Barcelona e senhor de Montpelier. Esse personagem da histria da Catalunha uma referncia para o estudo da Pennsula Ibrica, principalmente no contexto da Reconquista. O Livro dos Feitos a autobiografia de Jaime I, e nesse trabalho nosso objetivo analisar alguns pontos dessa obra, destacando as caractersticas que a relacionam ao contexto da Reconquista na Pennsula Ibrica. 1. A vida do rei Jaime I (1208-1276) Jaime nasceu em 2 de fevereiro de 1208, no palcio de Mirabals, em Montpelier. Seus pais foram Pedro II, o Catlico (1193-1213), e Maria de Montpelier (1182-1213). Sua infncia foi muito difcil. Aos cinco anos perdeu seu pai, que morreu na batalha de Muret (1213), e tambm sua me, que faleceu em Roma (MONTALVO, 2005). Assim, desde cedo ele herdou o senhorio de Montpelier e os principados de Barcelona e Arago (RUCQUOI, 1995, p. 185). A partir de 1213, Jaime permaneceu sob os cuidados do conde Simon de Montfort (1160-1218), o qual prometeu sua filha em casamento ao futuro rei (MONTALVO) e comprometeu-se a educ-lo (JAIME I, 8).
E, passat lo temps del nostre naximent, En Simon de Montfort, qui tenia la terra de Carcasss e de Badarrs, e en Tola co que y havia goaynat lo rey de Frana, volch haver amor ab nostre pare, e demanli quens liurs a ell, car ell nos nodriria. E ell fi tant en l e en la sua amor, que liur ad ell ns per nodrir. (JAUME I, 8) Passado o tempo de nosso nascimento, Dom Simon de Montfort, que tinha as terras de Carcassonne, de Bziers e de Tolosa, as quais ele tinha ganhado do rei de Frana, quis ter o amor de nosso pai e pediu-lhe que nos entregasse a ele, para que ele nos educasse. E ele confiou tanto nele e em seu amor que nos entregou a ele para nos nutrir. (JAIME I, 8)

Durante sua menoridade, seus tios, o conde Sancho de Rosseln e o infante Fernando de Arago foram seus regentes. Entretanto, ele retornou para

Graduado em Histria pela Universidade Federal do Esprito Santo.

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os catales em 1214, graas s intervenes do papa Inocncio III (1161-1216) junto ao conde Simon de Montfort. Nesse mesmo ano, Jaime foi jurado como rei nas cortes de Lrida, tornando-se um rei-menino, aos seis anos.
E hagueren altre conseyl: que en nom de ns e ab segel novel quens faeren fer que mansem cort a Leyda de cathalans e daragoneses, en la qual fossen larchabisbe els bisbes els abats els richs hmens de cada .I. dels regnes, e de cada ciutat .X. hmens ab autoritat dels altres de co que ls farien que fos feyt. E tots vengren al dia de la cort, levat Dom Fferrando el comte Dom Sanxo, car havien esperana que casc fos rey. E aqui juraren-nos tots quens gardarien nostre cors e nostres membres e nostra terra, e quens guardarien en totes coses e per totes. (JAUME I, 11) E tiveram outro conselho: que em nosso nome e com um novo selo que mandariam fazer, ordenariam uma corte de catales e aragoneses em Lleida, na qual tambm iriam o arcebispo, os bispos, abades, ricos-homens de cada um dos reinos e de cada cidade, e dez homens com a autoridade dos outros para fazer o que fosse necessrio. E todos vieram no dia da corte, exceto Dom Fernando e o conde Dom Sancho, pois tinham a esperana que cada um fosse rei. Ali todos juraram que guardariam nosso corpo, nossos membros e nossa terra, e que nos guardariam de todas as coisas e de todos (JAIME I, 11).

Depois disso, o rei-menino ficou sob a tutela dos templrios, entre 1214 e 1217, no castelo de Monzn. Durante esse perodo, o tio-av de Jaime, o conde Sancho Raimundo, presidiu um conselho formado por aragoneses e catales que tinha a funo de administrar os assuntos pblicos nos primeiros anos do reinado de Jaime. Em 1221, o rei se casou com Leonor de Castela (1202-1244), filha de Afonso VIII de Castela (1158-1214) e Leonor da Inglaterra (1156-1214). Seu segundo casamento foi com Violante, filha de Andr da Hungria. Desses dois casamentos nasceram alguns de seus filhos. Do primeiro, apenas Dom Afonso. Do segundo nasceram nove filhos: Pedro III, sucessor do trono, Jaime, Fernando, Sancho, Violante, Constanza, Maria, Sancha e Isabel. Mas o rei era um homem de fmeas e, aps a morte de Violante, se envolveu com vrias mulheres, como Aurembiaix de Urgel, Berenguela Afonso, Teresa Gil de Vidaure (com quem teve os bastardos Jaime e Pedro), Guilherme de Cabrera (com quem teve Fernando Sanchez) e Berenguela Fernandez, que lhe deu Pedro Fernandez. Esses bastardos formaram a origem de algumas casas nobilirias de Arago e Valncia. Guerreiro e conquistador, Jaime ampliou a autoridade de Arago em trs direes: ao norte, ao sul e ao leste (LOYN, 1997, p. 220). Pelo Tratado de Corbeil, em 1258 (PREVIT-ORTON, 1995, p. 937), libertou a Catalunha da soberania francesa, renunciando, em troca, s aspiraes de suserania no Languedoc (LOYN, 1997, p. 220). Tomou Valncia em 1238, seu principal local de investida (NAVARRO, s/d, p. 505) e a primeira grande conquista dos aragoneses efetuada para o leste (HEERS, 1977, p. 178). Tambm ocupou as cidades de Burriana e Peiscola, incorporou as localidades de Jtiva e Biar, em 1244-1245, e conquistou Mrcia em 1266, cedendo-a ao rei Afonso
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X, o Sbio (1221-1284) pelo Tratado de Almizra, de 1244. Efetivou as conquistas de Maiorca, na batalha de Portop em 1229, de Minorca em 1231, onde estabeleceu um protetorado, e de Ibiza em 1235, que foi submetida aos catales. Jaime efetivou essas conquistas com a ajuda de seus guerreiros, dispostos tanto a se sacrificar em nome de Deus quanto a receber ganhos dessas guerras (CARDINI, 2002, p. 480). A expanso para o sul e para o leste foi facilitada pela grande derrota islmica de Las Navas de Tolosa, em 1212 (LOYN, 1997, p. 220). A subida do rei ao trono coincidiu com o colapso da dinastia almada e tambm com a queda da influncia moura em boa parte territorial da Pennsula (PREVIT-ORTON, 1995, p. 1118). Isso permitiu a Jaime promover a ampliao do reino para o Mediterrneo, dando impulso expanso comercial catal. A partir de ento, o rei-conquistador obteve o controle da maior parte das rotas comerciais do ocidente mediterrnico. Com essas vitrias, aragoneses e catales iniciaram uma vocao martima, confirmada em 1282 com a Revolta das Vsperas (HEERS, 1977, p. 178) na tomada da Siclia (LE GOFF, 1995, p. 96). Alm das campanhas que realizou, ele tambm protegeu os judeus, que o serviram fielmente (RUCQUOI, 1995, p. 303); organizou o Consejo de Cent, tambm conhecido como Governo Municipal de Barcelona, promoveu a compilao do Livro do Consulado do Mar e a codificao do Direito Martimo. Jaime ainda utilizou a lngua verncula para redigir suas Crnicas, seus tratados e suas obras legislativas, fato muito corrente nos sculos XIII e XIV (PREVITORTON, 1995, p. 1478). Em 1269, Jaime I constituiu uma cruzada para o Oriente, organizando uma poderosa esquadra em Barcelona, mas uma tempestade causou um grande estrago s embarcaes, o que fez com que ele retornasse com a maioria dos combatentes (RUNCIMAN, 2003, p. 291). Seu reinado terminou em desordens nobilirias e problemas financeiros. Assim, politicamente a coroa de Arago foi uma confederao de reinos, pois a autonomia de Maiorca, de Barcelona e de Valncia era muito forte. Com o tempo, no reinado de Jaime essas localidades lutaram para garantir sua independncia (RUCQUOI, 1995, p. 187). 2. O Libre dels Fets del Rei en Jaume I Mesmo com as distines entre documentos historiogrficos, (LE GOFF, 2002, p. 538), Julia Butia Jimnez classifica o Llibre dels Fets del Rei en Jaume como crnica e memria, autobiografia e Histria. Nesta obra em que o carter pessoal do rei Jaime muito perceptvel, so narrados seus feitos cavaleirescos, guerreiros e polticos (JIMNEZ, 2003, p. 7-8). Na narrativa, Jaime destaca que, ao longo de sua vida, seus feitos foram melhorando conforme se adequavam f catlica, exatamente como recomendou seu apstolo Santiago (JIMNEZ, 2003, p. 16).
Retrau mon seyor sent Jacme que fe sens obres morta s. Aquestra paraula volch nostre Seyor complir en los nostres feytz. E jassia que la fe senes les obres no vayla re, can abdues sn ajustades, fan fruyt, lo qual Du vol reebre en la sua mansi. (JAUME I, 1).

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ATAS DA VI SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVAIS Santiago, meu senhor, destaca que sem obras a f est morta. Nosso Senhor quis cumprir essa palavra em nossos feitos, pois embora sem obras a f no valha nada, quando ambas se unem, do fruto, fruto que Deus deseja receber em sua manso. (JAIME I, 1)

Na narrativa se encontram passagens da vida do rei (como o casamento de seus pais), sua infncia e educao no castelo de Monzn; suas conquistas (como as das cidades de Burriana, Jtiva e Valncia), suas campanhas contra os sarracenos, as sublevaes dos bares aragoneses e sua visita ao papa em Roma.
2.1. A mentalidade religiosa

Uma primeira caracterstica que relaciona a fonte ao contexto peninsular de uma maneira especfica e Idade Mdia de uma maneira geral a mentalidade religiosa, tema imprescindvel para entender o momento em questo. A partir do sculo XI houve o desenvolvimento de uma conexo cada vez mais ntima entre a guerra e a religio, especialmente a partir do Conclio de Clermont (em 1095), quando o papa Urbano II (1088-1099) incitou queles que guerreavam entre si para se converterem em soldados de Cristo (PEDREROSNCHEZ, 2000, p. 83). Nessa ocasio, a luta contra o Islamismo estava sacramentada, pois ocorria um processo de expanso territorial de clara motivao religiosa. (COSTA, 1998, p. 79)
E ns esgardan e pensan qual era aquest mn en lo qual los hmens <qui> viuen humanament e con s petit aquest segle e frvol e ple descandel, e com laltre h glria en si senes fi, e nostre Seyor con la dona a aquels qui la volen haver ni la percaen: e esgardan encara con s gran lo seu poder e petita la nostra flaquea, e coneguem e entenem per veritat aquest mot que diu la Escriptura: Omnia pretereunt preter amare Deum, que vol dir aytant que totes les coses del mn sn trespassadores ques perden, sino tan solament la amor de Deu. (JAUME, 1). Assim, refletindo e considerando como era este mundo que os homens vivem humanamente, quo inseguro e cheio de provocaes, como breve esta vida e como a outra tem glria sem fim, e tambm como Nosso Senhor lhe d a quem a deseja e a persegue, e sabendo ainda quo grande Seu poder e quo frgil nossa debilidade, entendemos e reconhecemos como verdadeiro este ditado da Escritura: Tudo passa, menos amar a Deus, isto , todas as coisas do mundo so perecveis e desaparecem, exceto o amor de Deus. (JAIME, 1)

O que destacamos na frase acima a importncia de se amar a Deus, um Deus que se coloca ao lado dos justos, auxiliando-os nas batalhas contra os infiis (COSTA, 2004, p. 93-94). A noo de Deus resumia toda a concepo de mundo dos homens medievais (SCHMITT, 2002, p. 301) da a Crnica, j em seu primeiro captulo, destacar essa idia. Era muito importante que os reis cristos estivessem em harmonia com Deus pois, caso contrrio, as gentes arcariam com as faltas de seu lder (COSTA, 2004, p. 83-84). Alm disso,
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nunca demais relembrar que a sociedade do ocidente medieval era hierofnica, pois interpretava todos os fenmenos naturais e sociais do cotidiano como uma manifestao do sagrado (FRANCO JNIOR, 1990, p. 40). importante tentar compreender a concepo de Deus na mentalidade dos homens medievais para se entender a Idade Mdia e, de uma forma especfica, a guerra medieval. Nessa poca, no campo de batalha, os homens, tanto os reis quanto os sditos, formavam um s corpo (DUBY, 1978, p. 67) e ajustavam suas contas com o Todo-Poderoso (DUBY, 1993, p. 157). Na Crnica, Jaime demonstra um zelo com seu reino e uma prudncia pouco comum em seu tempo. Primeiro porque investiga pessoalmente um caso de falsificao de moeda; depois quando se antecipa s conjunturas estratgicas de seus adversrios, preparando surpresas contra seus oponentes com a inteno de vencer as batalhas. Alm disso, o rei se preocupava com os avanos blicos, fato imprescindvel no contexto peninsular de ento (JIMNEZ, 2003, p. 17). Algumas caractersticas peculiares de Jaime I e de seu reino o aproximam muito do rei Carlos Magno (742-814), mesmo estando separados por quase trs sculos. Por exemplo, sua iletralidade. Jaime no sabia escrever, mas ditou os feitos de sua vida para os escrives de sua corte. Isso mostra que a memria dos homens de guerra dessa poca era constantemente exercitada (DUBY, 1995, p. 41). Sendo militar, ele se dedicava a governar, como aprendeu em sua educao templria no castelo de Monzn (JIMNEZ, 2003, p. 19). A corte de Carlos Magno tinha a caracterstica de ser itinerante, obedecendo a um ritmo sazonal (GUENE, 2002, p. 269); assim tambm era a corte do rei Jaime: ela o seguia na guerra (JIMNEZ, 2003, p. 19).
2.2. A justia

A justia uma das atribuies que mais se destacam nas aes de Jaime I. Quando Jaime faz um acordo por exemplo, com o rei muulmano de Valncia, seid Abu Seid o mantm a qualquer custo, mesmo que isso coloque seus cavaleiros contra ele, causando a priso ou at mesmo a morte daqueles (JAIME I, 26). Essa atitude apenas confirma um fundamento da sociedade medieval: o reconhecimento s leis da honra (GAUVARD, 2002, p. 56). A Crnica composta por feitos de guerra, o que normal vindo das memrias de um rei-conquistador. Como vimos, Jaime foi educado na Ordem do Templo, local onde as crianas no eram rejeitadas (DEMURGER, 2002, p. 85). Nessa ordem ele recebeu, entre outras, uma educao militar. Alm disso, devemos levar em conta as contexto em que a obra foi escrita: era o auge da Reconquista na Pennsula Ibrica, que ocorreu durante seu reinado, principalmente aps a vitria em Las Navas de Tolosa, em 1212, vista como um triunfo da cristandade sobre o Isl (HEERS, 1977, p. 177). Aps esta vitria crist sobre os muulmanos, as aes de Jaime I, juntamente com as de Fernando III de Castela (1201-1252), reduziram a Espanha islmica ao reino Nasr de Granada (CORTZAR, 1988, p. 113). Nesse momento, a guerra j possua um carter religioso (COSTA, 1998, p. 97) sendo uma resposta crist intolerncia provocada pelos muulmanos (GLICK, 1994, p. 64). Era uma guerra justa por excelncia (DEMURGER, 2002, p. 22) em 451

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que Jaime nos explica sua participao (JIMNEZ, 2003, p. 25). Entretanto, deve-se destacar que as guerras e os combates presentes na Crnica no so somente de cristos contra muulmanos, mas tambm de cristos contra cristos.
E ns partn daqui, levaren-se les ciutats dArag contra ns ab Don Fferrando e ab Dom Pero Cornell e la partida de Dom Pero Aons. E sobre a enviaren per En Guillem de Muntcada que vingus. E l vench ab tot son poder. E les ciutats dArag eren totes contra ns, sin tan solament Calatahi. (JAUME I, 28) Quando partimos dali, as cidades de Arago se levantaram contra ns, com Dom Fernando, Dom Pedro Cornel e a partida de Dom Pedro Ahones. A esse respeito, eles solicitaram a Dom Guilherme de Montcada que viesse, e ele chegou com todo o seu poder. As cidades de Arago estavam todas contra ns, exceto Calatayud. (JAIME I, 28)

Existem duas teses em relao composio dessa obra. A primeira, tradicional, diz que ocorreram duas etapas de redao: uma em Jtiva, em 1244, e a outra em Barcelona, em 1274. A segunda, mais recente, esclarece que a Crnica foi composta seqencialmente, com o rei contando os episdios aos poucos. A diviso da obra segue uma seqncia de quatro partes: a primeira, entre os captulos 2 e 33, refere-se sua infncia, ao seu matrimnio e turbulncia da nobreza de Arago; a segunda, que compreende os captulos 34 a 327, est relacionada s conquistas de Maiorca, de Valncia e instncia do rei em Montpelier; a terceira, referente aos captulos 328-409, destaca alguns temas como as desavenas com seu genro Afonso X, as campanhas contra os sarracenos de Valncia e conspirao aragonesa; e por fim a quarta, relativa aos captulos 410 a 566, relata a conquista de Mrcia, algumas sublevaes baronesas, a amizade com Afonso X e sua visita ao papa. De uma forma ou de outra, Jaime deixou claro que o livro deveria ser publicado aps sua morte. (JIMNEZ, 2003, p. 21-22)
E per tal quels hmens coneguessen e sabessen, can hauren passada aquestra vida mortal, co que ns haurem feyt ajudan-nos lo Seyor poders, en qui s Vera trinitat, lexam aquest libre per memria. E aquels qui volran hoir de les grcies que nostre Seyor nos ha feytes e per dar exempli a tots los altres hmens del mn, que faen co que ns havem feyt: de metre sa fe en aquest Seyor qui s tan poders. (JAIME I, 1) E para que os homens conhecessem e soubessem como passamos esta vida mortal e o que ns fizemos com a ajuda do Senhor Poderoso, que a verdadeira Trindade, deixamos este Livro como memria para aqueles que desejam ouvir as graas que Nosso Senhor nos tm feito, e para dar exemplo a todos os outros homens do mundo para fazer o que ns temos feito: colocar sua f nesse Senhor que to poderoso. (JAIME I, 1)

O Llibre dels Fets del Rei En Jaume um livro de memrias que possibilita um conhecimento seguro do desenvolvimento do reinado de Jaime, pois o rei foi
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testemunha ocular desses acontecimentos. Cristo, guerreiro, conquistador e empreendedor, Jaime I oferece com seu relato muitos detalhes e informaes sobre um momento importantssimo para os peninsulares. Para alguns autores, ela a melhor fonte que demonstra a perspectiva crist nas batalhas peninsulares daquela poca (RITT, 2004, p. 23). E mesmo os lapsos nos relatos de Jaime reforam a legitimidade da mesma (JIMNEZ, 2003, p. 19), pois o esquecimento uma caracterstica essencial da memria (GEARY, 2002, p. 179).
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