Livro Lawrence Mello, Graça Druck, Ricardo Antunes
Livro Lawrence Mello, Graça Druck, Ricardo Antunes
Livro Lawrence Mello, Graça Druck, Ricardo Antunes
Contratualidades Espoliativas e
Mobilizações Coletivas:
teoria e debates
1ª edição
LUTAS ANTICAPITAL
Marília/SP – 2023
Editora LUTAS ANTICAPITAL
____________________________________________________________________
Mello, Lawrence Estivalet de.
M794c Contratualidades espoliativas e mobilizações coletivas: teoria
e debates / Lawrence Estivalet de Mello, Graça Druck, Ricardo
Antunes. – Marília : Lutas Anticapital, 2023.
174 p.
Inclui bibliografia
ISBN ???
CDD 306.36
_____________________________________________________________________
Ficha elaborada por André Sávio Craveiro Bueno
CBR 8/8211 FFC – UNESP – Marília
7
critas e revisadas pelos(as) autores(as), essas discussões
compõem este livro, acrescidas dos debates propostos por
estudantes de graduação, mestrado e doutorado do grupo
Transformações do Trabalho, Democracia e Proteção
Social (TTDPS/UFBA), constituindo um diálogo e uma
análise interdisciplinar que traz elementos do Direito, da
Sociologia e da Política.
A radicalização da mercantilização e destruição da
vida, com a descartabilidade do humano – expressão da
ofensiva neoliberal – se opera pela negação do assalaria-
mento e da condição de classe dos trabalhadores pelo
capital (DRUCK; BASUALDO, 2022) e torna documenta-
dos contratualmente processos pelos quais a acumulação
por espoliação expande a legalização da violência, a
cidadania sacrificial e desenhos discriminatórios do tra-
balho, conforme formula Lawrence Mello em sua síntese:
8
Nesse campo de investigações, Graça Druck discute em
trecho do livro:
9
Demonstra o significado das acentuadas mutações
no Estado e no trabalho, especialmente a partir
das rebeliões de 2013 e 2014, quando vivemos
processo muito particular. [...] A tese que Lawrence
desenvolve acerca das contratualidades espoliati-
vas e ilegalidades expandidas é, por certo, interes-
sante, original e merece ser analisada empírica e
analiticamente. Desde 2017, ao analisar a reforma
trabalhista, minha primeira impressão intuitiva foi
de que se acentuava sua tendência mais aberran-
te, qual seja, a legalização do ilegal. Ao instaurar o
trabalho intermitente, a Contrarreforma Traba-
lhista legalizava o ilegal. Ou, se usarmos os termos
do Lawrence, acentuava ilegalidades expandidas.
Legalizar o trabalho intermitente é, por certo, lega-
lizar aquilo que é ilegal. É proposital a repetição de
palavras.
10
na teoria contratual do trabalho permite conhecer a
instável carga explosiva que acompanha a multiplicação
da força de trabalho supérflua, para lembrar a impor-
tante chave de leitura de Mészáros (2011).
Esta é uma agenda de pesquisa que envolve,
portanto, um olhar para a destruição dos direitos sociais
clássicos, considerada a finitude do Estado e do Direito,
mas outro para seu real contraponto: a nova morfologia
das lutas sociais que se encontra em curso. Apoiar, dar
visibilidade e fortalecer as lutas do tempo presente são
parte das tarefas interminadas que este livro provoca e
para as quais tem esperança de contribuir.
Graça Druck,
Lawrence Estivalet de Mello,
Ricardo Antunes.
11
Prefácio
13
Escrevo com uma distância temporal em relação
ao debate original, o que me permite um certo conforto de
dizer de uma perspectiva de mudança em relação ao
cenário que foi objeto das reflexões dos colegas. A derrota
de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022,
construída a partir de uma grande articulação do campo
democrático, desenha horizontes políticos um pouco
menos áridos, embora complexos e limitados quanto às
perspectivas de ruptura com a ordem neoliberal.
As contribuições trazidas pelo Professor Lawrence
em sua tese de doutorado, cujas sínteses principais são
apresentadas no início dessa obra, devidamente ilumi-
nadas pelas reflexões de Graça Druck e de Ricardo
Antunes, lançam dois elementos fundamentais para
pensar a encruzilhada que vivenciamos.
O primeiro é relativizar a perspectiva elogiosa
quanto às conquistas e ao desenho institucional alavan-
cado pela Constituição de 1988, notadamente em relação
ao trabalho. A compreensão das contradições colocadas
no momento da Constituinte e das disputas de classe que
a conformaram permite vislumbrar a relevância das
categorias trabalhadas por Lawrence, no sentido de um
texto constitucional cujos contornos, a despeito de incor-
porarem perspectivas sociais, continham elementos
discriminatórios e, por isso mesmo, tolerância com ilega-
lidades expandidas.
Longe de significar uma incompreensão das
adversidades do momento presente, sobretudo durante o
período 2019-2022, em que a atuação governamental em
relação ao trabalho teve contornos neofascistas, porque
marcada pela antissindicalidade, pela rejeição da dimen-
são classista do trabalho e pela perspectiva sacrificial da
experiência laborativa, o resgate feito por Lawrence
convida a uma radicalidade crítica no estudo do direito
14
do trabalho, que se coloque para além das conquistas
parciais (e nem por isso desnecessárias) representadas
pela ordem constitucional.
O segundo é perceber a dialética de cons-
trução/desconstrução do direito do trabalho a partir das
acoplagens entre Estado, direito e lutas sociais, eviden-
ciando a participação das lutas dos trabalhadores, em
sentido lato, na dinâmica conflitiva que faz mover o
pêndulo da regulação do trabalho. Nesse ponto, há um
alargamento da perspectiva para nos permitir compreen-
der, como insurgências classistas dos trabalhadores e
trabalhadoras, movimentos que vão além da estrutura
sindical institucional e que, ainda que de forma ambígua,
expressam insatisfações de classe. Aponta-se para um
alargamento da compreensão de classe trabalhadora,
assimilada, desde uma perspectiva situada nas particu-
laridades do Brasil e da periferia do capital, a partir da
articulação entre economia organizada e desorganizada,
entre o formal e o informal, sobretudo quando o advento
da reforma trabalhista legitima e chancela o esmaeci-
mento dessas fronteiras.
As chamadas contratualidades espoliativas, na
definição feliz de Lawrence Mello, ao trazerem para o
campo do emprego regulado marcadores de precarização
antes tolerados apenas na informalidade, constituem o
que Ferreira (2012) denomina de um direito do trabalho
de exceção – aquele em que o ilícito se torna lícito, por
meio de uma “balcanização” das formas de contratação
laborais.
Com essa percepção convergem as reflexões de
Veras e Krein (no prelo), para quem o movimento recente
do mundo do trabalho, diferente do que observamos
outrora, nos move não a falar de uma divisão entre a
velha informalidade e a nova informalidade (grosso modo
15
definidas a partir da experiência da economia de
sobrevivência em contraposição ao assalariamento dis-
farçado [KREIN; PRONI, 2010]), mas, sim, em uma
divisão entre a velha e a nova formalidade, porquanto o
emprego formal foi afetado de tal maneira pelas reformas
neoliberais e pelo recrudescimento das condições do
trabalho, em face das ações e omissões das políticas
econômicas, que passam a existir subtipos de contrata-
ções formais, rebaixadas e, por isso mesmo, espoliativas.
Não sem razão, a manifestação mais ostensiva do
presidente não reeleito sobre o trabalho, nos cruéis anos
do seu mandato, fora a de que a regulação do trabalho
deveria aproximar a formalidade da informalidade, numa
tradução grosseira que jogava, sem pudor, com o apoio
do setor patronal ao seu governo e, também, com o
desespero de alguns setores da classe trabalhadora. Se
essa fala poderia ser tomada por nós como uma inconsti-
tucionalidade inadmissível, a categorização providencia-
da por Lawrence explica como se construiu o caminho
para a admissibilidade desse tipo de discurso, que,
inclusive manifestado pela Corte Constitucional, apenas
alargava a esfera de ilegalidade já admitida constitucio-
nalmente. Tratava-se, pois, do esgarçamento das contra-
dições presentes no texto constitucional, na perspectiva
radical da extrema direita.
A simbiose formalidade/informalidade, enquanto
experiência peculiar aos países periféricos e constituída
como decorrência do colonialismo, passa, portanto, a ser
lida como chave de compreensão essencial às novas e
velhas dinâmicas de regulação do trabalho. A conserva-
ção de zonas de exclusão jurídica no mundo do trabalho
– nas palavras de Thula Pires (2019), assentada na
construção de Fanon (2008), zonas do não ser – como
sustentáculo da seletiva e restrita regulação do trabalho
16
formal, é atravessada por marcadores de gênero e raça,
que constituem não só nossa sociedade desigual
(THEODORO, 2022), como também um modo de ver do
direito do trabalho que, mesmo em seus matizes prote-
tivos, acomodou largamente zonas de exclusão pautadas
em marcadores discriminatórios.
Assim é o que o encontro entre as novas e
supostamente “modernas” estratégias de acumulação
capitalista (tais como terceirização, uberização, empreen-
dedorismo), no caso brasileiro e de toda a periferia do
capital, se dá com os arranjos de uma escravidão
póstuma (VARGAS, 2017), na qual homens e mulheres
negras são continuadamente recrutados para performa-
rem seus papeis coloniais em relações informais ou em
contratualidades espoliativas – entregadores, emprega-
das domésticas, serventes, cuidadoras – nos novos
arranjos do capitalismo organizado.
Todo esse caldo crítico e a compreensão das
complexidades do trabalho e da acumulação capitalista
na periferia do capital, bem como de seus reflexos na
forma jurídica e nos desenhos regulatórios, nos qualifica
para enfrentar o momento vindouro de um possível
refreio da ofensiva neoliberal no Brasil a partir de uma
perspectiva situada: não apenas a revisão ampla das
reformas trabalhistas é um compromisso político que
enfrentará dificuldades em ser aprovado, diante do perfil
do Congresso Nacional eleito em 2022 e de uma corre-
lação de forças tendente ao campo da direita, como essa
medida também se revelaria insuficiente para reverter o
cenário de exclusões e ilegalidades expandidas que já se
encontravam constituídos anteriormente à própria refor-
ma laboral de 2017, como bem nos lembra Lawrence
Mello.
17
Os processos continuados de desindustrialização,
desinvestimento e a quebra de setores estratégicos para
o desenvolvimento nacional, aliada a uma ampliação da
margem de exclusão dos grupos periféricos e da juven-
tude, colocam desafios que vão além das dinâmicas de
regulação jurídica e convidam para arranjos criativos de
políticas sociais e econômicas que permitam reverter os
quadros atuais de miséria e desproteção social. A
precarização do trabalho, como bem aponta Druck, está
diluída nos espaços da informalidade e da formalidade,
na qual se observa, dentre outros marcadores, um
profundo processo de pauperização da classe traba-
lhadora (FILGUEIRAS; DUTRA, 2022).
O conjunto de reflexões trazidas nesse livro, com
sua potência crítica, deve servir de guia para os caminhos
que passam a ostentar um novo horizonte de disputa a
partir de 2023 e nos demandam compromisso com o
combate à violência do capital e às autocracias que
insistem em subalternizar a classe trabalhadora brasi-
leira. É bom que possamos contar com gigantes da altura
de Antunes, Druck e Mello para que os bons combates
sejam melhores e mais férteis.
18
Referências
19
Sobre a autora e os autores
21
Ricardo Antunes: Ricardo Antunes, Professor Titular de
Sociologia do Trabalho no IFCH/Unicamp. Autor, entre
outros, de "Capitalismo pandêmico”, (Boitempo, 2022,
publicado também na Itália e Austria), "Icebergs à Deriva:
o trabalho nas plataformas digitais" (org., Boitempo, no
prelo), "Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0" (org.,
Boitempo); "Privilégio da Servidão" (Boitempo, publicado
na Itália e Espanha-Galicia), "Os Sentidos do Trabalho"
(Boitempo, publicado também na Argentina, EUA,
Inglaterra/Holanda, Itália, Portugal e Índia), "Adeus ao
Trabalho?" (Cortez e também na Argentina, Itália,
Inglaterra/Holanda, Espanha, Venezuela e Colômbia),
entre outros livros. Foi Visiting Professor na Universidade
Ca’Foscari (Veneza/Itália); Visiting Research Fellow na
Universidade de Sussex (Inglaterra) e Visiting Scholar na
Universidade de Coimbra (Portugal). Coordena a coleção
Mundo do Trabalho (Boitempo). Ministrou palestras em
vários países da América Latina, Estados Unidos, Europa
e Ásia. Ministra palestras e participa de atividades nos
sindicatos, movimentos sociais e partidos de esquerda,
em vários países do mundo.
e-mail: <rlcantunes53@gmail.com>.
22
Sumário
Introdução
25
consciência em movimento, é radicalmente ligada ao
entendimento de que trabalho é tempo, energia psico-
física, mas também corpo, identidade, tecnologia, expec-
tativas, revoltas, sindicatos, adoecimento, chão. O traba-
lho é central na vida do sujeito, de sua organização
coletiva e das relações de poder exercidas por governos e
Estado em determinado país.
Nessa perspectiva, este texto ensaia hipóteses
acerca da ampliação das fronteiras e das mutações
constitucionais no Direito do Trabalho contemporâneo.
Apresenta síntese de tese de doutorado, na qual se
discutiu que a compreensão da precarização do trabalho
como regra (ANTUNES; DRUCK, 2013; DRUCK, 2021),
em expansão a partir de 2014 no Supremo Tribunal
Federal, leva à tarefa de explorar, no campo jurídico e
social, os sentidos de contratualidades espoliativas e
suas ilegalidades expandidas (MELLO, 2020).
Estruturam-se uma perspectiva teórica e uma
compreensão da correlação de classes no Brasil contem-
porâneo, em especial após as Jornadas de Junho de
2013, para levantar problemas e desafios da pesquisa
acadêmica em Direito do Trabalho.
Na dimensão nominada como individual do ramo
juslaboral, cuida-se de compreender a expansão, legali-
zada e vigente, de contratualidades espoliativas, median-
te a hibridização de tipos e cláusulas contratuais, com a
expropriação de direitos da personalidade e a carga de
violência e hostilidade que se normalizam na relação
entre trabalhadores(as) e capitalistas.
No campo do direito sindical, enfrenta-se o
descompasso entre os estudos jurídicos e os estudos
sociológicos acerca da dimensão da rebeldia e dos
protestos de massa que retomaram com força o cenário
global desde a crise econômica de 2008. No Brasil, as
26
greves aumentavam progressivamente em quantidade,
até 2013, quando ocorreram as Rebeliões de Junho,
levante multifacetado e que anuncia questões para o
campo coletivo do trabalho.
Explora-se o problema de pesquisa exposto e
rediscutido por Ruy Braga (2017, p. 28; 2020, p. 10): “Daí
o espanto: como interpretar a anomalia segundo a qual o
sindicalismo fordista declina, mas a mobilização dos
trabalhadores se acirra?”.
Se essa pergunta não pode ser respondida apenas
pela ascensão de setores neofascistas ou, ainda menos,
pela ascensão de fascistas desde 2013, 4 não é incompre-
ensível que cientistas políticas contemporâneas se
distanciem parcialmente de Foucault e reaproximem de
Marx, como é o caso de Wendy Brown (2018), para
perguntar se as revoltas globais, após 2008, podem ser
conectadas ao que a filosofia política moderna denomina
“corpo político”. Ou à necessidade de “dar corpo ao
impossível”, como vem discutindo Safatle (2017; 2019).
Um argumento convincente sobre este problema
geral é dado por Mészáros (2011b), para quem a
multiplicação da força de trabalho supérflua é acompa-
nhada, necessariamente, de uma instável carga explo-
27
siva. A descrição dialética desta compreensão teórica, ao
articular a precarização da vida e as revoltas globais,
fornece indícios para compreender o tempo presente e
traçar as tarefas do próximo período.
28
a respeito do Direito Capitalista do Trabalho, como uma
“máquina de transformar o ilegal em legal”, com ambi-
valências.
Toma-se o Direito do Trabalho como objeto no
qual se inscrevem novas fronteiras entre exploração e
expropriação. 5 Observada em uma perspectiva histórica,
a contemporânea regulação pública do trabalho siste-
matiza e explicita figuras jurídicas espoliativas, que
fornecem fundamentos para maior taxa de exploração do
trabalhador 6 e mercantilização 7 de bens jurídicos de sua
29
personalidade, antes considerados atributos sob seu
domínio, indisponíveis à circulação mercantil. Quem
opera juridicamente essa nova disponibilização são as
liberdades contratuais individuais e coletivas, que se
encontram em expansão, no contexto da crise estrutural.
Relevam-se, no campo juslaboral, as perspectivas
de lacuna do campo de conhecimento da sociologia do
trabalho indicadas por Maria Bridi, Ruy Braga e Marco
Santana (2018). Os autores indicam que a agenda
brasileira deve se aproximar da internacional, em temas
como recrudescimento da precariedade do trabalho e
impacto sobre o movimento de trabalhadores, em especial
em seus setores mais jovens. Este trabalho se filia a esse
conjunto de preocupações.
O Direito do Trabalho é área da ordem jurídica
central na agenda de modificações realizadas por gover-
nos autocratas, que se instalam em vários países e
propõem políticas de austeridade, em especial a partir da
crise de 2007 e 2008. 8 No período, tem-se uma virada
30
neoliberal da autocracia política, na qual o Estado não
saiu de cena, mas sim passou a intervir de forma inédita,
em especial a partir da crise do sistema imobiliário e
financeiro, 9 da qual decorre uma estagnação secular
(BOFFO; SAAD FILHO; FINE, 2019; MESZÁROS, 2011;
LETIZIA, 2012; MALTA; LEÓN, 2017; MALTA, 2019;
BROWN, 2019).
Tem-se como objeto, portanto, um tema cujos
diferentes momentos e expressões são tomados como
mediações concretas, cuja observação possibilita tecer o
desenho, prolongado no tempo, de horizontes de expecta-
tivas sucessivamente criados e frustrados, dos quais
surge uma espécie de inquietação ou mesmo possibi-
lidade de revoltas e rebeliões, nas diferentes dimensões
da subjetividade analisadas por Antunes (2018) e Braga
(2017).
Para examinar dimensões individuais e coletivas
desta problemática, este trabalho não “adota” o método
dialético. 10 Busca, em outro sentido, operá-lo, tomá-lo
31
como arma da crítica, mediante a análise concreta da
situação concreta, expressão de Lênin 11 interpretada por
Lukács como uma forma de “(...) encontrar, no novo
momento de uma situação, aquilo que o liga ao processo
anterior e, nas leis gerais do processo histórico, o
32
elemento novo que nunca cessa de surgir; a encontrar a
parte no todo e o todo na parte” (LUKÁCS, 2012, p. 101).
O exame das Rebeliões de Junho de 2013
representa uma possibilidade de compreendermos o que
conecta e nega dois períodos: o período de crescimento da
estratégia democrático-popular e de políticas de conci-
liação-compromisso, por um lado, e por outro aquele no
qual expandem-se ilegalidades no campo laboral, com o
crescimento do neoliberalismo, sedimentado pelo Supre-
mo Tribunal Federal a partir de 2014.
O neoliberalismo, cuja expansão é aqui analisada,
deve sua originalidade não apenas à definição de um novo
regime de acumulação, mas mais precisamente à
efetivação de uma nova sociedade, com um conjunto de
modificações no Estado, na economia e na ideologia
social, razão pela qual é razoável afirmar, desde uma
certa leitura sobre a regulação do trabalho, que o Brasil
tem se tornado um laboratório no qual são testadas as
novas configurações do neoliberalismo autoritário em
nível global, como afirmou Safatle (2019).
Este estudo se serve da distinção entre a fase de
investigação e a de exposição dos resultados alcançados,
com as explicações correspondentes (THIOLLENT, 1980,
p. 124; MARX, 2011, pp. 128 e 129). Na fase de investi-
gação, foi realizada pesquisa de tipo qualitativa, de
natureza aplicada, espécie exploratória, com o objetivo de
formular problemas sobre elementos que se encontram
escondidos na natureza jurídica privada do contrato de
trabalho. As informações empíricas, então, foram anali-
sadas com objetivo de elaborar uma análise concreta de
processos e relações sociais: O objetivo qualitativo tam-
bém pode ser descrito, nesse sentido, como uma "(...)
ênfase em produzir conhecimento em profundidade e em
33
depurar e elaborar imagens e conceitos" (IGREJA, 2017,
p. 15).
É certo que a ideia de “depuração” carrega uma
ambiguidade. Os conceitos são expressões do real con-
creto no concreto pensado. A relação entre os campos não
é de purificação, como gostaria a doutrina kantiana. A
crítica do real é parte do real, e não cindida dele. Nesse
sentido, os conceitos não se purificam do real concreto,
mas exsurgem de mediações que possibilitam aproxima-
ções sucessivas ao real concreto. Não parece adequado à
ciência empírica em Direito um exercício de resposta
correta sobre um sistema fechado e, por esse motivo, a
compreensão da Constituição e suas permissividades
interessam a esta perspectiva de trabalho. O Direito e a
regulação pública do trabalho fazem parte de uma
sociedade viva, na qual o Estado intervém concretamente
e nessa condição é analisado.
Na travessia entre investigação e resultados de
pesquisa, adota-se a compreensão marxista de que o
modo de exposição formal [die Darstellungsweise formell]
articula uma relação entre o que já foi investigado e uma
forma dialética de exposição da teoria enriquecida pela
investigação ou dela resultante.
O modo de exposição relaciona “(...) o conheci-
mento teórico decorrente da crítica da economia política
clássica com um conjunto de informações empíricas,
objeto de polêmica, sem as quais a teoria permaneceria
vã especulação filosófica sem relevância social e política”
(THIOLLENT, 1980, p. 104). O objeto estudado, uma vez
que tenha sido suficientemente apreendido e analisado,
pode se desenvolver em suas articulações próprias, com
as determinações conceituais correspondentes (MÜLLER,
1982).
34
Convém indicar afinidade com a compreensão de
Lukács sobre o marxismo, em contraste à corrente teórica
difundida pelo estalinismo e pela Terceira Internacional.
Na perspectiva que não é adotada neste trabalho, o
marxismo-leninismo é um sistema fechado, uma teoria
integral, 12 uma “(...) devoção sincera e proba ao poder
soviético[, que] poderia ser útil para um burocrata
soviético exigir obediência, mas não para um marxista
crítico” (BIANCHI, 2013, p. 21).
Para Lukács, o investigar marxista não consiste
em uma fé revelada nas descobertas de Marx ou em uma
adesão a seus resultados de pesquisa. É método no seu
momento lógico, como unidade do todo, e teoria relacio-
nada ao movimento em seu momento epistemológico
(BIANCHI, 2013, p. 22). Por isso, o materialismo possui
uma “(...) função viva e vivificante ao mesmo tempo
crescente e enriquecedora” (LUKÁCS, 2012, p. 129).
Se é verdade que “(...) o marxismo permitiria
pensar uma realidade que se transforma, a revolução que
ele quer fazer, porque essa mesma realidade, essa mesma
revolução é parte dele” (BIANCHI, 2013, p. 23), ele
certamente se apresenta como o método para o estudo
das crises, transformações e mudanças, movimento da
realidade em que se inserem a contrarreforma trabalhista
e seus antecedentes judiciais, que serão analisados.
O apagamento das fronteiras entre as áreas do
jurídico, realizado pela expansão da liberdade contratual
35
pelo Supremo Tribunal Federal e pela contrarreforma
trabalhista (GEDIEL; MELLO, 2020), implica na compre-
ensão de que, nas relações contratuais de cabeleireiras,
manicures, trabalhadores uberizados ou plataformiza-
dos, empregada doméstica, intermitente, entre outros, o
Estado não deve ser compreendido como um externo às
lutas, como se as palavras Estado e direito ou as noções
de proteção social e emprego não comportassem fron-
teiras e modulações, com a participação do Estado não
apenas como protetor, mas também como corretivo ou no
papel de controle social. Compreende-se, como Lukács
(2012), que: “(...) o Estado torna-se claramente um
participante da luta. Não se luta apenas contra o Estado,
mas o Estado mesmo revela seu caráter como arma da
luta de classes, como um dos mais importantes
instrumentos para a manutenção da dominação de
classe” (LUKÁCS, 2012, p. 77, grifos no original).
Este caráter instrumental do Estado se revela
quando, no lugar da proteção ao contratante mais fraco
reivindicada pela tradicional doutrina juslaboral, tem-se
uma regulação pública do trabalho em que a ideologia da
liberdade justifica, fundamenta e amplia espoliações
contratuais. Realiza-se uma transição no conceito de
emprego e no regime jurídico previsto pela Consolidação
das Leis do Trabalho, que segue tendência mundial,
segmenta-se, hibridiza-se, não mais nas fronteiras entre
o legal e o ilegal (CARLEIAL; AZAÏS, 2007), mas tornando
o ilegal legal, intracontratualmente (MELLO, 2020).
O conceito de hibridização contratual, formulado
em 2003, tinha por objetivo conferir destaque à multi-
plicação de tipos e cláusulas contratuais, para a mesma
atividade realizada, dimensionando a imprecisão e insu-
ficiência da abordagem jurídica da temática. A hibridi-
zação no caso brasileiro consistia no crescimento de
36
contratos atípicos, como contratos por prazo determina-
do, contrato de safra, contrato por empreitada, contrato
por experiência, estágio, relação de emprego disfarçada
pela contratação de pessoa jurídica individual, a
terceirização, a subcontratação e ainda as cooperativas
de trabalho (CARLEIAL; AZAÏS, 2007, p. 411).
Até recentemente, ainda que presentes e per-
mitidas, as formas atípicas de contrato de trabalho eram
consideradas pouco expressivas no Brasil, na avaliação
de Krein, comentada por Carleial e Azaïs. 13 O problema
ganhou uma nova proporção com as decisões do STF no
período recente e com as alterações legislativas promo-
vidas pela contrarreforma trabalhista.
Já não se trata de indicar algumas modalidades
híbridas como uma fronteira ao contrato de emprego, sem
poder situá-las no binômio legal-ilegal. As modalidades
híbridas de contrato são consideradas legais e são tam-
bém parte de uma nova compreensão dos tribunais sobre
o contrato de trabalho típico. Aos tipos contratuais
híbridos se somam, portanto, cláusulas contratuais
híbridas no contrato de emprego.
O fenômeno de hibridização, conforme debatido
no âmbito do grupo ZOGRIS: L’évolution des normes
d’emploi et nouvelles formes d’inégalités: vers une
37
comparaison des zones grises? [A evolução dos padrões
de emprego e novas formas de desigualdade: para uma
comparação de áreas cinzentas?], instigou a observação
de nuances que são instrumento de trabalho para o
exame da legalização de modalidades híbridas de
contrato de trabalho.
O hibridismo, nesta perspectiva e diferentemente
do conceito de Azaïs (2003; 2012), é observado dentro dos
parâmetros do legal e também intraformas contratuais.
Observa-se como hibridização, portanto, não uma fron-
teira ou um “embaralhamento” entre legal e ilegal, mas
uma dimensão interna de novas formas típicas contra-
tuais, com cláusulas híbridas.
Ao comentar a lógica de Hegel e sua diferença em
relação à lógica de Kant, Lênin destaca que a primeira
apresenta uma relação mediada e a segunda uma relação
imediata entre sujeito e objeto, pois Kant toma a lógica
formal e seus princípios como dados, não leva em consi-
deração a transição do conceito e, assim, não conceitua
a multiplicidade da unidade conceitual (LÊNIN, 2018, p.
220). 14 O modo expositivo da dialética, explicam Benoit
e Antunes (2016, p. 32), é referenciado como uma forma
que é inseparável do conteúdo, ao mesmo tempo analítica
e sintética, que leva a uma busca por uma forma
imanente.
38
Propõe-se a categoria analítica contratualidades
espoliativas com o objetivo de descrever a multiplicidade
da unidade conceitual no campo do trabalho e do em-
prego no Brasil, após a legalização de modalidades
híbridas de contrato de trabalho. Trata-se de sugerir um
olhar não para o assalariamento como regra, mas sim
destacar a violência e o desenho discriminatório que se
expandem no ramo juslaboral no Brasil. Amplia-se a
violência privada no contrato de trabalho e por isso ela é
tomada como objeto de estudo jurídico, entendido como
um campo de conflito e hostilidade e não como um campo
de consenso e proteção estatal.
Em um olhar sobre o clássico Direito do Trabalho,
o jurista mexicano Oscar Correas (1984) desenvolve a
ideia de que a forma jurídica oculta, e não exprime, a
expropriação do trabalho excedente, realizada pelo capi-
talista. Isto ocorre porque o direito apresenta o inter-
câmbio como “justo” no contrato de trabalho, ao proteger
o salário, aqui entendido como forma fetichizada do preço
da força de trabalho. O que acontece, porém, quando a
intenção de promover justiça desaparece da forma
contratual e não há proteção ao salário-mínimo mensal
em um contrato hibridizado, como o contrato intermi-
tente?
Pesquisas qualitativas exploratórias buscam ob-
servar o inexistente ou escondido do real concreto no
âmbito do conhecimento, do ponto de vista de um
problema que se quer formular. O conhecimento jurídico
é tradicionalmente estabelecido sobre cânones, ou sim-
plesmente dogmática jurídica, uma espécie de verdade
legal no sentido atribuído à expressão por Supiot (2007).
Identificar a racionalidade do Direito e as ver-
dades legais em seu sentido dogmático, para delas fazer
a crítica, exige apresentar uma forma de investigação e
39
um modo de exposição que ultrapassem a lógica do juízo
de valor, típica da ética, e do juízo de legalidade ou
constitucionalidade, típico da postulação reivindicatória
perante tribunais. O contrato é uma categoria jurídica
central da modernidade que, racionalizada pelas verda-
des legais tensionadas pela dominação do trabalho, 15
recebeu progressivamente e com múltiplos sentidos
criativos a qualificação contrato de trabalho.
Uma análise crítica das transformações do Estado
não busca a “verdade científica” ou a experimentação de
“(...) revoluções na ordem das palavras como se fossem
revoluções na ordem das coisas” (BURAWOY, 2010, p.
32). Em outro sentido, trata-se da busca de se dirigir a
públicos mais amplos, para tratar de temas cuja lingua-
gem jurídica dificulta o acesso à classe trabalhadora, na
diferenciação entre sociologia pública e sociologia para
40
políticas públicas, realizada por Bourdieu e reivindicada
por Burawoy (2010, pp. 39 e 40). 16
Propõe-se, nessa direção, uma perspectiva polí-
tica para o estudo acadêmico do Direito do Trabalho, no
lugar de uma perspectiva “para as políticas públicas” ou
de um “uso alternativo” ou hermenêutico, voltado ao
comentário e ao elogio da Constituição. O modelo pare-
cerista ou opinativo é comum no campo jurídico, como
discutem Nobre (2003) e Dantas (2017), e falseia aspectos
da realidade, como a força normativa da Constituição ou
a efetiva proteção conferida pela Consolidação das Leis
do Trabalho.
Reconhecer a dimensão espoliativa que habita e
avança no campo laboral leva à abordagem do Estado
como arma, do nível de tensão que se acirra nas relações
sociais e da importância da análise documental e da
pesquisa-ação para a denúncia e compreensão daquilo
que, ainda, oculta-se no caráter privado do contrato de
trabalho.
41
Nossa perspectiva se serve de formulações
teóricas que respondam ao problema da compatibilidade
entre neoliberalismo e Constituição Federal e que bus-
cam fornecer concretude e sentido aos documentos
jurídicos que expandem o sentido espoliativo das contra-
tualidades laborais no Brasil, como, em especial, a noção
de ilegalidades constitucionais.
A ilegalidade constitucional decorre de uma
permissividade constitucional. O Estado, por meio do
poder da legalidade, permite que o capital viole direitos
fundamentais e discrimine trabalhadores, pois consolida
no ordenamento jurídico brasileiro que um desenho
discriminatório do Direito do Trabalho seja lícito.
A estrutura do conceito combina e articula traços
da teoria do Estado de Mészáros (2011a; 2015) com a
proibição constitucional de desenhos institucionais dis-
criminatórios, decorrente do direito geral de igualdade da
Constituição Federal (RIOS, 2008, pp. 21 e 119). Entre
outros temas desenvolvidos por Mello (2020), ilustram
essa perspectiva a ausência de exigibilidade jurídica de
salário igual para igual trabalho, entre homens e mu-
lheres, bem como a legalidade conferida pelo Tribunal
Superior do Trabalho à exigibilidade de antecedentes
criminais na fase pré-contratual para mais de uma
dezena de profissões, com impacto discriminatório sobre
trabalhadoras e trabalhadores negros.
A teoria social do contrato de trabalho tem como
eixo a discussão da tipicidade contratual trabalhista
(LUDERA-RUSZEL, 2016; VASCONCELOS, 1995;
COUTINHO, 1997; FELICIANO, 2003) e esta tipicidade
normatizou a equivalência entre “relação de emprego” e
“contrato de trabalho” na Consolidação das Leis do Tra-
balho (GOMES; GOTTSCHALK, 1995, p. 41; MACHADO
FILHO, 1948, pp. 04 - 07). É dizer: tradicionalmente, há
42
apenas um regime jurídico na CLT, o regime jurídico do
emprego (RODRIGUES, 2005, p. 525; SÜSSEKIND, 2017,
p. 222).
No entanto, a ambiguidade do conceito jurídico de
contrato de trabalho se expande. Há contratos por toda
parte – no sentido de que essa forma jurídica se amplia
para designar um conjunto maior de realidades legiti-
madas pelo direito – que conduzem a “grandes trampolins
de predação, fraude e roubo”, como se tornaram o
sistema de crédito e o capital financeiro, na perspectiva
de Harvey (2005, p. 122). Parte desses contratos, uma vez
que legalizados e vigentes, devem ser entendidos como
contratualidades espoliativas.
Trata-se de não ignorar a efetividade das recentes
alterações legislativas e jurisprudenciais e insistir na
observação da situação concreta ocasionada pela amplia-
ção da ambiguidade do conceito jurídico de contrato de
trabalho, hibridizado.
As espoliações contratuais da trabalhadora e do
trabalhador são um movimento de devolução ao domínio
privado de comportamentos e práticas antes reguladas
por normas de ordem pública, de observação obrigatória
pelos contratantes. Em outras palavras, as modalidades
e cláusulas lícitas de contratualidades juslaborais se
diversificam, expandem-se, tornam-se centro das novas
disputas sobre as liberdades individuais e coletivas do
trabalho, nas quais a violência e a dominação são
normalizadas e ocultadas.
Um conjunto considerável de fontes empíricas
indica a pertinência de sugerir novos caminhos para a
compreensão teórica das liberdades contratuais exerci-
das por sujeitos trabalhadores e do objeto da relação
43
obrigacional trabalhista. 17 O conceito de ilegalidades
expandidas é formulado com o objetivo de observar o
sentido imanente da crise do contrato, que se expressa
na expansão da violência do capital e do Estado sobre
trabalhadoras e trabalhadores.
As condições de possibilidade de que uma ilega-
lidade seja compreendida como constitucional decorrem
da análise do conflito entre normas extraída de Marx e
Mészáros, bem como da ordem de ilegalidades que se
instala no Congresso Constituinte. Cuida-se de recuperar
a noção de democracia restrita e sua edição liberal no
Brasil, formuladas por Florestan, em especial na inter-
pretação de Malta e León (2017; 2020) e com base nos
textos de Fernandes sobre a Constituinte.
A ilegalidade constitucional decorre de uma
permissividade constitucional, ideia que permite perce-
ber, no regime político atual, o problema estrutural da
ausência de vitórias significativas no campo do trabalho
no Congresso Constituinte. A omissão, como se disse,
44
não significa ausência. Cuida-se de um “nada determi-
nado”, como definiria Hegel (1988).
O Estado, por meio do “poder da legalidade”,
permite que o capital viole direitos fundamentais e
discrimine trabalhadores e trabalhadoras, pois consolida
legalmente que um desenho discriminatório do Direito do
Trabalho seja lícito e constitucional.
Esta formulação conceitual permite a organização
do material de pesquisa: o Estado brasileiro elaborou um
desenho institucional discriminatório no âmbito do
Direito do Trabalho na Constituição de 1988 e o expandiu
no período recente, com o uso do poder de legalidade do
Estado. Esta legalidade deve ser vista como uma forma
de expansão destrutiva do Estado, da qual o Direito do
Trabalho, com centralidade no tema das contratua-
lidades, tem sido instrumento regulatório.
Ao destacar a transição da correlação de forças
entre as classes sociais, a categoria teórica fornece
mediações à análise jurídica empírica e provoca incô-
modos à teoria liberal do Estado Constitucional, que
admite mutações constitucionais regressivas de direitos,
mas não discute como isso ocorre em relação a normas
jurídicas dotadas, em tese, de rigidez.
Como revela a Ministra do STF Rosa Weber, em
documento judicial que será objeto de discussão na
segunda seção deste texto, “(...) a Constituição é viva, a
Constituição é aquilo que o Supremo diz que é, a
interpretação que confere ao Texto Constitucional”
(BRASIL, 2015, pp. 134 e 135).
A denúncia da falsidade desta rigidez consti-
tucional merece papel de destaque neste programa de
investigação, dadas as necessárias discussões que provo-
ca no âmbito das modificações da teoria e da modalidade
de violência do Estado no Brasil, objetos de investigação
45
que permitem uma conexão entre imposições e resistên-
cias ou, se se quiser, entre contratualidades espoliativas
na regulação individual do trabalho e revoltas globais do
trabalho no âmbito coletivo.
Trata-se de indicar dos documentos não apenas o
que dizem ou de vê-los como um conteúdo a ser analisado
isoladamente, mas sobretudo de vê-los como ponto de
partida, para ler o que dizem, mas também o que escon-
dem, como produtos e produtores de políticas, no sentido
desenvolvido por Shiroma, Campos e Garcia (2005). Um
exame de contratualidades espoliativas na situação
política leva a tratar documentos contratuais no nível
micro e macro, abordar como são vistos por trabalha-
dores e trabalhadoras, seu tratamento destrutivo pelo
Estado, a que tipo de experiências de classe conduzem e
de que forma esta abordagem é capaz de revelar o
crescimento da insatisfação ou inquietação da classe
trabalhadora brasileira.
46
em mutação. Por isso, qualquer aumento nos poderes da
produção é, hoje, também um aumento nos poderes da
destruição (MÉSZÁROS, 2011b, pp. 56–58).
Nessa operação, há um papel preponderante cum-
prido pelo Estado, que possuía a função de coesão na fase
ascendente do capitalismo e passa a realizar a destru-
tividade na fase descendente do capitalismo (MÉSZÁROS,
2011b, p. 153). Cuida-se de observar que, até a década
de 1970, a “promessa civilizadora” persistia, calcada no
binômio democracia e desenvolvimento, com generaliza-
ção do conhecimento pela educação massiva, expansão
dos serviços públicos e melhoria de condições de saúde,
urbanização e acesso a um mercado supostamente capaz
de suprir o conjunto das necessidades básicas das
populações (FONTES, 2009, p. 212).
Como nos informa o autor húngaro, em sua fase
descendente o Estado se efetiva em um contexto de
fortalecimento do desemprego crônico, período no qual foi
superada a ideia de exército de reserva e oferecida aos
gestores do capital uma forte limitação na busca de
“soluções parciais”, em contraste ao período desenvolvi-
mentista do pós-guerra (MÉSZÁROS, 2016, p. 31). Tem-
se, nessa perspectiva, o fim da possibilidade de pleno
emprego em uma sociedade livre, um período de políticas
regressivas de direitos.
No campo jurídico, a teoria crítica francesa for-
nece bons rumos para o exame da efetividade, como
discute Isabela Fadul de Oliveira (2014), na convergência
para a “denúncia de uma ideologia da qual a corporação
dos juristas é guardiã e celebrante” (JEAMMAUD, 1984,
p. 90). Em texto no qual discute questões para “fazer
avançar o conhecimento crítico em Direito”, Antoine
Jeammaud (1984) assenta o direito como técnica de
controle social e de direção social, que “participa funda-
47
mentalmente da organização das relações de exploração
características do capitalismo, de sua reprodução e da
manutenção da dominação de classe” (JEAMMAUD,
1984, p. 90).
A recusa ao normativismo kelseniano não é indi-
ferente à sua contribuição. Se esta teoria jurídica
sedimenta que a ciência do direito analisa o “sistema
normativo” ou “ordenamento jurídico escalonado”
(COSTA, 2010), ela também estabelece que o campo da
juridicidade é indiferente ao conteúdo de suas regras. O
direito como técnica, portanto, não é o mesmo que o
direito como “violência nua”, dado que o sistema jurídico
pode fundamentar seu arbítrio na concessão de certas
garantias ou elevação do nível de proteção a traba-
lhadores (JEAMMAUD, 1984).
Ocorre que tal conteúdo jurídico se modifica e a
teoria jurídica deve acompanhar estas transições. Supiot
(2014, p. 58) destaca que o Estado deixa de regular a livre
concorrência e passa a ser regulado por ela. Ressalta, na
sua leitura dos relatórios do Banco Mundial, os indica-
dores estatísticos referentes à “inflexibilidade” dos
direitos trabalhistas em cada país. A dogmática jurídica
trabalhista trata, nesse sentido, de verdades legais
flexíveis ou pressionadas para que venham a se flexibi-
lizar, pela centralidade que a modificação das regras
laborais possui para que seu país se torne mais atrativo
para o capital. Essa ideia de verdade flexível contrasta
com o postulado de uma Constituição rígida e de direitos
fundamentais sociais como cláusulas pétreas.
É apenas aparente o descompasso entre o esva-
ziamento do sentido originariamente atribuído aos
direitos sociais na Constituição e o avanço do poder de
legalidade destrutiva do Estado. A Constituição Federal
não apenas reflete a correlação de forças, mas também
48
delimita um campo de autonomia relativa que condiciona
e permite a ação política, como já demonstrava Werneck
Vianna (1999) sobre a Constituição de 1937.
Nesse sentido, é atual a lição de Schwartz (1993,
pp. 551 e 552), para quem a Constituição atua como
documento e como dispositivo que cria estruturas e
instituições. É um retrato de um período no tempo, reflete
as esperanças e os medos hegemônicos de uma nação em
um momento específico. Apresenta os limites de acordos
e compromissos estruturais ou mais controversos, tidos
como “os mais difíceis de concordar”; são objeto de luta,
lidam com distribuição de poder, e não uma disposição
“ideal”.
Em tese, a Constituição apresenta uma maior
rigidez em relação a leis e atos infraconstitucionais e,
portanto, possui maior limitação a mudanças, como uma
espécie de instrumento antidemocrático ou de preser-
vação da tradição. Para Wolkmer (1989, p. 13) isso ocorre
porque, pela qualidade de pacto político, “(...) a Consti-
tuição expressa uma forma de poder ideológico que se
legitima pela natureza do compromisso e da conciliação”.
Se a natureza do compromisso constitucional é política,
ela guarda uma forte tensão, pois busca instituir um
fundamento contrário à luta aberta e à violência privada,
afirmando-se como única fonte legítima de poder.
Daí por que o problema teórico não se esgota em
identificar a Constituição como “social”, sem observar
que a trajetória da política social brasileira possui uma
dinâmica singular, pela qual sua expansão conviveu com
a restrição de direitos civis e políticos, por um lado, e
tornou compatíveis desigualdade de classe e cidadania,
por outro (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, pp. 101 e 135).
Há uma continuidade entre o Estado Liberal e Estado
Social, no fato de que “(...) ambos têm um ponto em
49
comum: o reconhecimento de direitos sem colocar em
xeque os fundamentos do capitalismo” (BEHRING;
BOSCHETTI, 2011, p. 63). Na formação social brasileira,
o capitalismo dependente é compatível com a superex-
ploração da força de trabalho e com a segmentação de
diferentes regulações, permitidas pela Constituição de
1988.
São dois os cuidados em relação à observação de
direitos no Estado Social. O primeiro informa que o
Estado Social não apenas protege, mas também regula a
exploração e realiza a espoliação. O segundo é no sentido
de que não há apenas um modelo global de regulação da
exploração e realização das espoliações. A localização do
país na divisão internacional do trabalho e a correlação
de forças entre as classes fundamentais determina o
modelo protetivo possível e instituído.
A democracia restrita brasileira é uma ordem
ilegal organizada, e não um documento que possui
“entulhos autoritários” em meio a direitos conquistados,
para retomar uma compreensão de Florestan Fernandes
(2014) em seus textos sobre a Constituinte. Em nossa
formação social, a tradição autocrática não se reduz a
uma “mentalidade autoritária”, como destacou Werneck
Vianna (1999, p. 264). Trata-se de não reduzir os direitos
sociais à forma mercadoria ou a conteúdos jurídicos
judicializáveis, mas reconhecer a centralidade das rela-
ções entre democracia, crise e autoritarismos (MALTA;
LEÓN, 2017), com a observação da forma particular que
a autocracia assume no Brasil, inclusive no campo do
trabalho.
Esta mesma tradição ganha novos contornos com
a Constituição de 1988, como a práxis da Constituinte
por Florestan Fernandes permite desenvolver. O processo
constituinte foi destituído de soberania e antidemocrá-
50
tico, como indicam Vito Letizia (2014, p. 195) e Florestan
Fernandes (2014b, p. 219) e como denunciava a Central
Única dos Trabalhadores (CUT) nas Resoluções de seu 2º
Congresso (CENTRAL ÚNICA DOS TRABALHADORES,
1986, p. 13).
Entre outros motivos, destacam-se a rejeição à
convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva, a
presença dos Senadores empossados em 1982 e a comis-
são de notáveis dirigida por Afonso Arinos, indicada pelo
então Presidente da República, como sumarizam Daniel
Sarmento e Claudio Souza Neto (2017, p. 157). Conforme
Francisco de Oliveira (1985, p. 11), a transição negociada
em meio à crise econômica não se realiza contra ou sem
as Forças Armadas e dela emerge um regime político com
alto grau de conservadorismo.
Apesar de campanha realizada por dezenas de
entidades, 18 do expressivo apoio popular às emendas e
das promessas realizadas pelo relator da Comissão de
Sistematização da Constituinte, deputado Bernardo
Cabral, em reunião com sindicalistas de dez estados, a
moldura parlamentar do Congresso Constituinte facilitou
manobras de organizações patronais e setores da elite
estatal, como descreveu Fernandes (2014c, p. 307).
O resultado do Congresso Constituinte, então,
torna a Constituição uma contradição declarada, para
retomar uma expressão de Marx (2010, p. 93, grifos do
autor): “A constituição representativa é um enorme
progresso, pois ela é a expressão aberta, não falseada,
51
consequente, da condição política moderna. Ela é a contra-
dição declarada”. As contradições abertas brasileiras
após 1988 foram caracterizadas por Florestan como
pobres, bitoladas, como o movimento que “apaga a luz de
múltiplas esperanças”.
Isso ocorre, como descreveu Florestan, em espe-
cial pela atuação de “(...) classes e facções de classes
dominantes, pelo vetor militar e pelas interferências
castradoras do Executivo (e por vezes do Judiciário), o
que estava dentro da lógica política de um solo histórico
árido e ultrarresistente à democratização da sociedade
civil, da cultura e do Estado” (FERNANDES, 2014d, p.
310).
Apesar do resultado geral, Souto Maior (2017)
caracteriza o movimento realizado pela Constituição
como de um “avanço comedido”, dado que os consti-
tuintes tinham consenso sobre a necessidade de elevar os
direitos trabalhistas, com divergência apenas quanto ao
alcance desses avanços. Não houve em nenhum mo-
mento a apresentação de proposições que buscassem
retrocessos nos direitos trabalhistas, pela ausência de
ambiente político favorável (SOUTO MAIOR, 2017, p.
379).
Uma leitura conjunta da composição da comissão
de sistematização e dos votos no Capítulo II, referentes
aos Direitos de Trabalhadores e Trabalhadoras, indica
que a bancada da esquerda nessa comissão era muito
reduzida e, apesar disso, obteve significativa votação,
dada a pressão popular. Considerando como base os
membros do PT, PDT, PCB, PC do B e PSB, este campo
possuía oito titulares e seis suplentes. Apesar disso,
como o Boletim Nacional da CUT n. 16 (out./nov. de
52
1987) indica, 19 o texto “Lula” e o texto “40h” receberam
38 e 40 votos, em um conjunto de 93 votantes, o que
representa uma votação significativa, com atração de
setores do PMDB. 20
Na interpretação do Brasil realizada por Flores-
tan, como lida por Malta e León (2020), a distensão da
ditadura envolvia, para as classes dominantes, duas
tarefas: (i) conectar organicamente mecanismos da demo-
cracia de cooptação com o Estado autocrático burguês e
(ii) reforçar a autocracia burguesa, ampliando-se a
cooptação de setores da classe trabalhadora e “criando
novas formas de conexão com o restante da sociedade
civil de maneira a camuflar o autoprivilegiamento, e
estabelecendo claramente o alcance constitucional e legal
do Estado autocrático” (MALTA; LEÓN, 2020, p. 51).
A democracia de cooptação, ainda que com
contornos mais democráticos, seria uma espécie de
“contrarrevolução a frio”. Seus objetivos, como descrevem
Maria Malta e Jaime León, são os seguintes: “(...)
transformar revolucionários em reformistas e garantir a
absorção gradual e contínua dos elementos contradi-
tórios surgidos na luta de classes no âmbito da sociedade
política e da sociedade civil. Esta forma de democracia
implica a corrupção 'intrínseca e inevitável' do sistema de
poder” (MALTA; LEÓN, 2020, p. 52). Daí a proposição de
Florestan, na visão dos autores, segundo a qual “(...) o
Brasil estava diante de uma abertura de democracia de
53
cooptação com intensificação da autocracia burguesa”
(MALTA; LEÓN, 2020, p. 55).
As classes dominantes são divididas quanto às
soluções essenciais da sociedade civil e do Estado, de
forma explosiva, nas palavras de Florestan (2014a, p.
79). 21 Daí resulta que a Constituição instala um ciclo de
compressão conservadora como reação a crises, com o
fortalecimento do discurso da “defesa da ordem contra a
anarquia”. Florestan colaciona dezenas de exemplos, da
Independência à Nova República, que atestam sua obser-
vação de que a anarquia não vem de baixo, mas de cima:
“Os que combatem a anarquia, na verdade geram a
anarquia” (FERNANDES, 2014a, p. 81).
A participação estrangeira na composição bur-
guesa conglomerada e as posições conservadoras nas
54
relações e estruturas de poder emergentes constituem a
classe dominante brasileira (FERNANDES, 2009, p. 106),
com suas soluções autoritárias para crises econômicas
(MALTA; LÉON, 2017). Em A deterioração do poder,
Fernandes (2014e) argumenta que o corte tecnocrático e
a corrupção crescente do Estado, ao lado do renasci-
mento de um fisiologismo cru, levarão o Estado brasileiro
a fortalecer tendências à oligarquização e à autocra-
tização. 22
Interessante problematizar como a autocratização
do Estado se conecta às revoltas em nível global, consi-
derado o campo de novos estudos do trabalho global
(BROOKES; MCCALUM, 2017), que indica o endereça-
mento de tais revoltas ao Estado e aos governos, e não à
negociação coletiva ou à regulação jurídica (BRAGA,
2020), como se discutirá na segunda parte deste texto.
Em A Revolução Burguesa no Brasil, sobre o
período autocrático do regime militar, Florestan informa
haver uma “máquina de opressão de classe institucio-
nalizada”, com uma constante reformulação constitucio-
nal de relações autocráticas (FERNANDES, 2009, p. 105).
A Constituição não encerra as questões da
correlação de classes, mas sim as renova e agrava, ao
55
abrir espaço para confrontos abertos e ao exigir do Estado
um desempenho democrático que as ramificações do
Estado se demonstram incapazes de desempenhar, dado
o fortalecimento de sua oligarquização e autocratização
(FERNANDES, 2014e, pp. 298 e 299). Ela abre um novo
período histórico, entendido por Florestan como “(...) a
forma tardia que a ruptura comparece no funcionamento
e nos dinamismos da sociedade civil” (FERNANDES,
2014e, p. 299). A Nova República persiste e busca
reforçar-se, portanto, no período pós-constitucional, com
o objetivo explícito de governo de desconstitucionalizar a
Constituição (FERNANDES, 2014c, p. 300).
O sociólogo paulista oferece importantes adver-
tências sobre a correlação de forças inaugurada pela
CRFB/1988. Ela põe em cena dois personagens vigo-
rosos: o Poder Judiciário e um conjunto de entidades da
sociedade civil. Ainda assim, a Constituição não escapa
ao descrédito popular e às decepções sucessivas com a
democracia. Os problemas da transição pós-constitucio-
nal revelam a democracia restrita no país e reavivam a
convicção radical de que a revolução democrática, no
sentido proposto por Fernandes (2014c, p. 302), só se
dará contra a ordem.
Essa reversão do sentido originário da Consti-
tuição pode ser ilustrada pelo texto de Amauri Mascaro
Nascimento, que afirma que o “sentido da Constituição”
é a valorização das negociações coletivas, baseada na
autonomia privada coletiva (SOUTO MAIOR, 2017, p.
373). Gera apreensão a posição de Luiz Carlos Robortella,
que afirma estar inscrita na Constituição a ideia de
flexibilidade, e não de irrenunciabilidade, no art. 7º, VI. 23
56
Também Romita defende a ideia de que a Constituição
teria abarcado o princípio da flexibilização (SOUTO
MAIOR, 2017, p. 378).
Do ponto de vista dos dispositivos constitucionais
trabalhistas, Orlando Gomes e Elson Gottschalk (1995,
p. 40) destacam que “muitos dos preceitos contidos na
Constituição de 1988 já estavam acolhidos na legislação
ordinária” e outros não foram regulamentados. Talvez por
essa razão, passados trinta anos da promulgação da
Constituição da República, ela “continua sendo interpre-
tada conforme a Consolidação das Leis do Trabalho”, em
inversão sublinhada por Aldacy Coutinho (2016, p. 227).
Uma observação atenta da Constituição da
República, como a realizada por Godinho Delgado (2019,
p. 133), reforça os argumentos de Gomes, Gottschalk e
Coutinho, para destacar que o texto constitucional
preserva contradições antidemocráticas da sociedade que
afirmava superar. Entre elas, tem especial relevância a
manutenção das estruturas fundamentais do Direito
Coletivo do Trabalho, inclusive com o reforço da repre-
sentação corporativa classista na Justiça do Trabalho. 24
57
Conhecidas as dimensões teóricas e concretas do
constitucionalismo social no Brasil, foram destacados
aspectos da correlação de forças que se expressou no
Congresso Constituinte, como a ampla participação
popular e os limites de sua dinâmica interna. Com a
promulgação da CRFB/198, a democracia de cooptação
se renova. A unicidade sindical ter recebido votação de
ampla maioria na Constituinte indica como o modelo é
valorizado pela classe dominante e relativamente consen-
sual entre suas frações majoritárias. Igualmente foi
mantido o juiz classista, com forte resistência à sua
superação, como descreveu Sampaio (2002). Não cumpre
papel menor, nesse sentido, que o Direito do Trabalho
tenha se mantido fortemente ligado à legislação ordinária
e à sua maleabilidade.
A persistência de componentes corporativos do
Direito Coletivo do Trabalho revela traços potencialmente
regressivos da estrutura sindical imposta pelo Estado
brasileiro, tema que é revisitado pela contrarreforma
trabalhista e desafiado pelo período inaugurado pelas
Rebeliões de Junho no Brasil, como se discutirá na
segunda seção deste texto.
O campo individual do trabalho pode ser lido
como uma manifestação daquilo que Florestan deno-
minou como o “esporte burguês do ‘deixa tudo como está
pra ver como fica’, (...) uma demonstração suave de que
até a omissão é uma arma de luta política nas mãos da
burguesia, de seus políticos profissionais e de seus
agentes no governo” (FERNANDES, 2014c, p. 302).
A omissão é uma arma porque temas sensíveis do
racismo estrutural no campo do trabalho não foram
alterados, como a diferenciação entre empregadas
58
domésticas e demais empregados no país 25 ou entre
empregadas domésticas e diaristas na contratualidade
híbrida regulada pela Lei Complementar 150/2015
(MELLO, 2020, p. 322). Igualmente a noção de cláusula
pétrea dos direitos fundamentais dos trabalhadores,
como definição da natureza jurídica das normas consti-
tucionais, não se demonstrou capaz de retirar de gover-
nos e do Poder Judiciário a possibilidade de navegar pelos
mares profundos das permissividades constitucionais.
Para dimensionar o sindicato e as liberdades
coletivas como parte do quadro de ilegalidades expan-
didas, o ano de 2014 é significativo. A partir de então, o
Estado brasileiro amplia a edição de leis e decisões
judiciais como forma de retirar direitos, ao mesmo tempo
em que, visto como arma, o Estado também expande sua
força, por meio da determinação e distorção do papel de
corporações sindicais, entendidas como “mediações”
entre Estado e sociedade, no sentido de corporações
construído por Oliveira Viana (1952; 1974). Intensificam-
se, ao menos em condições de possibilidade, as “coopta-
ções para baixo”, como descritas por Malta e León (2017;
2020).
Precedentes judiciais podem ser entendidos como
documentos jurídicos que informam não apenas a
respeito da correlação de forças entre as classes sociais,
mas também sobre o padrão de dominação e intervenção
do Estado nas relações de trabalho e as modalidades de
violência que corrige ou permite.
Na dimensão do direito coletivo do trabalho ou
direito sindical, julgados do ano de 2015 alteram a com-
59
preensão tradicional da teoria do contrato de trabalho e
apagam fronteiras do contrato de trabalho típico,
mediante a hibridização contratual, não como uma
insuficiência do binômio “legal-ilegal” (AZAÏS, 2003;
AZAÏS, 2012), mas como uma dimensão interna de
formas típicas contratuais, com cláusulas híbridas
(MELLO, 2020; GEDIEL; MELLO, 2020).
O exame documental ajuda em uma aproximação
concreta ao tema. O padrão de regulação é descrito pelo
Ministro Barroso, em precedente judicial de 2015, como
um rigoroso controle do Estado, cujo objetivo seria
antecipar ou mesmo sufocar o embate entre empregados
e empregadores (BRASIL, 2015a, p. 08). Daí por que as
“relações grupais” seriam a categoria básica de um
modelo democrático e autônomo da CRFB/1988, motivo
pelo qual o fortalecimento da negociação coletiva, reali-
zada pelos sindicatos, resultaria na “maioridade cívica”
de trabalhadores.
No lugar da “permanente atrofia de suas capaci-
dades cívicas”, trabalhadores e trabalhadoras devem
“aprender com os próprios erros”, como afirma o Ministro
Barroso. Para que esta maioridade cívica seja possível, o
Estado deve ter uma atuação “terapêutica” sobre o
conflito capital-trabalho, estimular uma “experiência de
autogoverno” e um “processo de autocompreensão” medi-
ante a negociação coletiva (BRASIL, 2015a, p. 18).
Esta perspectiva é ardilosa, na medida em que
afirma um fortalecimento das liberdades coletivas do
trabalho, mas o faz de forma combinada e articulada ao
enfraquecimento das liberdades reais individuais. Ao
afirmar o tipo de atuação estatal, terapêutica, o que o
documento jurídico não informa é que só precisa de
“tratamento” quem sofre violência, legalizada no contrato
de trabalho. A violência é um pressuposto implícito da
60
argumentação, pois a razão de decidir informa que não é
necessário impedir o “embate” entre empregados e em-
pregadores.
Depreende-se desta argumentação que a luta de
classes é confundida com legalização da violência e a
atuação cívica esperada de trabalhadores e trabalhado-
ras, em contratualidades espoliativas, é anunciadamente
sacrificial ou resiliente (KATREIN; MELLO, 2020), dada a
legalização da expropriação de direitos, ideologicamente
elevada à virtude de exercício de cidadania.
Reside neste ponto um dilema para a teoria crítica
juslaboral, que compreende que as liberdades coletivas
podem ser elementos de equilíbrio mínimo na relação
capital-trabalho, como normas de ordem pública impos-
tas ao ambiente privado, no qual vale a “subordinação
livremente consentida” (SUPIOT, 2016). Juridicamente,
essa busca de equilíbrio se traduziria na garantia do
direito de greve e de negociação coletiva, com contra-
dições que escapam ao objeto desta seção, 26 em proteções
especiais para dirigentes sindicais, como a garantia
provisória de emprego, e na organização de um sistema
de custeio sindical.
O modelo do sindicato único, como modalidade
institucional integrada à ordem, não foi alterado pelas
decisões judiciais recentes e manteve seu esqueleto no
exclusivismo da unicidade sindical, que impede a liber-
dade de associação e impõe a associação forçada como
“representação”. Esse sindicato-representante passa a
ter legitimidade para negociar ilegalidades do trabalho. O
poder de obrigar do Estado, como pensado por Oliveira
Viana, estende-se aos sindicatos e, portanto, multiplicam-
61
se os agentes das ilegalidades constitucionais do tra-
balho.
Acontecem, pois, inversões do sentido constitu-
cional inicialmente atribuído aos direitos fundamentais
sociais previstos na Constituição Federal, que são
modificados, regredidos, requalificados rebaixadamente,
por meio da atuação do Estado, ainda que sem modifi-
cação formal da Constituição. Uma de suas dimensões é
o movimento de expansão das ilegalidades do trabalho,
improvável sem uma atuação concertada, ainda que não
combinada ou conspirada, entre os poderes da Repú-
blica. Vale dizer, a democracia constitucional não apenas
regula uma correlação de forças, mas oportuniza um
cenário em que ela é operada juridicamente e, portanto,
sofre transições e alterações.
Se um dos principais atores institucionais forta-
lecidos no Congresso Constituinte foi o Poder Judiciário
(FERNANDES, 2014; SAMPAIO, 2002), daí decorre o
estabelecimento de uma linha de tensão entre o Judi-
ciário e os demais poderes, por um lado, e a Constituição
de 1988 diante da agenda neoliberal, por outro. O
Judiciário brasileiro, nesse itinerário, passou por uma
forte transformação com a transição democrática de um
“Poder periférico, encapsulado em uma lógica com pre-
tensões autopoiéticas inacessíveis aos leigos, distante
das preocupações da agenda pública e dos atores sociais,
(...) [para uma] instituição central à democracia brasi-
leira” (VIANNA; CARVALHO; MELO; BURGOS, 1999, p.
09). 27
62
Informada pelo mercado, pela abertura ao mundo
e às suas inovações, então, a Constituição inaugura um
período histórico de ataques neoliberais aos direitos
sociais. Não por acaso, “A primeira intervenção legislativa
do Congresso Nacional depois da Constituição, no mesmo
ano de 1989, foi também com o propósito de limitar a
greve, tendo sido, então, editada a Lei n. 8.783/1989”
(SOUTO MAIOR, 2017, p. 380).
Assim localizado o período posterior à Consti-
tuição de 1988, pode-se descrever a supremacia constitu-
cional como uma relação concertada entre os Poderes da
República, o que torna o exame político da expansão do
Direito do Trabalho dependente de análise na esfera
legislativa e judicial.
Analisadas em conjunto, três decisões do
Supremo Tribunal Federal, em 2007, 2015 e 2017, são
significativas para a compreensão das alterações estrutu-
rais do direito público, no âmbito do Estado brasileiro,
como examinado por Aldacy Coutinho (2018). Nos prece-
dentes judiciais de 2007 e 2015 decide-se pela consti-
tucionalidade da contratação de trabalhadores, em
regime jurídico celetista, para exercício de funções típicas
de Estado, como a gestão da educação pública e a
“prestação de serviços” de ensino, pesquisa, desenvolvi-
mento tecnológico, proteção e preservação do meio
ambiente, cultura e saúde.
As razões de decidir indicam a “valorização da
globalização e competitividade”, a “necessidade de algu-
ma flexibilização” (BRASIL, 2007) e “a lógica que
prevaleceu no jogo democrático, de que a atuação privada
pode ser mais eficiente do que a pública, (...) dada a agili-
63
dade e a flexibilidade que marcam o regime de direito
privado” (BRASIL, 2015, pp. 03-07). No conjunto de
decisões, as expressões que se destacam são: “(...)
incentivos, precificação, custos, custos fixos, competição,
desempenho, concorrentes, mercado, riscos, flexibili-
dade, além de, por óbvio, eficiência (...)" (COUTINHO,
2018, p. 48). 28
Aquilo que a doutrina constitucional e decisões
judiciais do Supremo denominam mutações constitucio-
nais são, na verdade, o poder de legalidade do Estado,
avançando de forma destrutiva sobre os compromissos
mínimos da Nova República, mediante contratualidades
espoliativas, com impactos articulados sobre a dimensão
individual e coletiva do trabalho.
64
e o sindicalismo, no Brasil e no mundo, caminham para
um redescobrir da classe trabalhadora em sentido forte,
no lugar de um olhar fetichista para suas entidades e
negociações, como propõe Atzeni (2020).
Nessa direção, dois elementos perturbam a longa
continuidade do corporativismo sindical no Brasil. O
primeiro são as alterações na noção de “autonomia
coletiva” ou “liberdade coletiva” do trabalho, operada pelo
Supremo Tribunal Federal; o segundo é o crescimento,
em nível global, de revoltas sociais que não trabalham na
lógica da reivindicação seguida de regulação pelo Estado
ou pela negociação coletiva, fenômeno crescente desde a
crise de 2008. Este é o objeto da primeira seção deste
capítulo.
Nos países do Sul Global, observam-se expe-
riências vívidas da classe trabalhadora, na forma de
revoltas sociais e rebeldias criativas, como demonstração
da insuficiência da autonomia coletiva, pensada pela
social-democracia europeia, para compreender as lutas
sociais contemporâneas. Entre esses experimentos vívi-
dos com impacto na situação política, apresentam-se
elementos sobre o momento inaugurado com as Jornadas
de Junho de 2013 no país. Com esta reflexão, a segunda
seção do capítulo busca tatear pelas bordas o campo de
investigação e expor elementos sobre caminhos abertos
para a investigação contemporânea em Direito do
Trabalho.
65
individuais e coletivas do trabalho, como ampliação
destrutiva do Estado, da qual o Direito do Trabalho, com
centralidade no tema das contratualidades, tem sido
instrumento regulatório.
Foram apresentados trechos de documentos
jurídicos analisados de forma mais ampla na tese, pelos
quais o Supremo Tribunal Federal combina a expansão
destrutiva no campo individual a uma mudança de
caráter dos sindicatos. Esta mudança anuncia a “maio-
ridade cívica” dos trabalhadores, com a reforma antes da
reforma, quando o negociado sobre o legislado se impõe
como algo permitido pela Constituição, já em 2015.
Cuida-se, agora, de apresentar uma segunda
aproximação à relação entre o campo individual e o
coletivo. Para tanto, realizam-se apontamentos sobre o
acirramento das contradições que marcam o sindicalismo
como alternativa de luta dos trabalhadores nesta quadra
histórica e, na sequência, apresentam-se estudos sobre a
relação entre trabalhadores precarizados e sua relação
com os sindicatos, em nível global.
Em 1999, Leôncio Martins Rodrigues argumenta-
va que a diversificação contratual do trabalho levaria à
erosão da força dos sindicatos, com base em larga pes-
quisa de dados da Organização Internacional do Traba-
lho, em esforço de síntese teórica, junto a esmerado
exame de dados, como descreveu Ruy Braga (2020, p.
03).
Combinam-se a precariedade e a desindica-
lização. O padrão de agitação fordista foi uma exceção
histórica e geográfica e a agenda de estudos em trabalho
deve ser mais ampliada. Como argumenta Braga (2020,
p. 03): “o foco nesse modelo dificultou a identificação de
padrões alternativos de mobilização dos trabalhadores,
sobretudo no chamado Sul global”.
66
A proteção do trabalho conferida pelas liberdades
coletivas deve ter seu enfraquecimento localizado em um
quadro amplo, que combine as alterações em seu esta-
tuto jurídico realizadas pela atuação concertada dos
Poderes da República, a compreensão da crise do modelo
sindical social-democrata e um primeiro olhar para as
revoltas globais do trabalho.
Ainda que expressões de luta de trabalhadores e
trabalhadoras brasileiras remontem ao século XIX e
ultrapassem o âmbito sindical, 29 é certo que a legalização
de institutos protetivos do que se denominou direito
sindical modificou o cenário da luta de classes no país e
criou robustas mediações entre Estado e trabalhadores.
A longa permanência da composição de juízes classistas
na Justiça do Trabalho e o modelo da unicidade sindical,
ambos elementos preservados pelo Congresso Constitu-
inte na normatização juslaboral, demonstram não apenas
a força dos institutos jurídicos deste campo do Direito do
Trabalho, mas também a utilidade deste arranjo institu-
cional para as classes dominantes no país.
Apesar do enfraquecimento dos sindicatos no
Brasil e no mundo, o quadro de referências dos estudos
do trabalho sobre organização dos trabalhadores perma-
nece ligado à discussão baseada nos sindicatos, conforme
demonstra Atzeni (2020). O Direito Sindical brasileiro
acompanha esta tendência geral e pode se servir dos
acúmulos dos estudos globais do trabalho para ampliar
seu campo de investigação. Há autores que divergem
deste foco restritivo sobre a organização de trabalha-
dores(as). Para tanto, abordam temáticas diversas como
mobilização e ação coletiva, organização de migrantes, de
67
trabalhadores precários, de trabalhadores informais ou,
ainda, o papel dos sindicatos na formação de estruturas
de longo prazo das relações de emprego (ATZENI, 2020,
p. 312).
Ao adotar uma posição que amplia nosso objeto
de investigação, não se propõe o abandono dos estudos
sobre o sindicalismo e negociação coletiva, nem se apre-
senta uma contraposição dualista entre ação organizada
de sindicatos e atuação espontânea de movimentos. Em
outro sentido, ampliar o campo de estudos indica uma
atual incompreensão ou invisibilidade acadêmica de
reivindicações parciais e formações dos subalternos,
como discute Braga (2020, p. 07), ao lembrar a for-
mulação gramsciana.
Um primeiro passo para ampliação do campo de
estudos consiste no estudo sobre o descontentamento de
trabalhadores e trabalhadoras com os caminhos da
social-democracia para a organização coletiva, em
especial a partir da crise crônica do sistema sociome-
tabólico do capital, em 1973 (MÉSZÁROS, 2011a), em
que a hegemonia neoliberal inaugura uma nova onda de
mercantilização e faz conviverem o crescimento de inse-
gurança social, o aprofundamento de inquietação social
e o enfraquecimento dos sindicatos e dos partidos
políticos (BRAGA, 2017, p. 25).
Rosa Luxemburgo oferece uma interessante
narrativa sobre a crise da social-democracia, com ima-
gens nas quais se entrevê o arbítrio camuflado em direito
e o despedaçar das ilusões com o futuro apreendido pela
conciliação e pelas alianças:
68
tos, populações completas em grupos de mendi-
gos, igrejas em estrebarias. O direito dos povos, os
tratados, as alianças, as mais sagradas palavras,
a autoridade suprema, tudo é despedaçado
(LUXEMBURGO, 1974, pp. 08 e 09).
69
menos abertas contra a combinação dos modos de
mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro
promovida pelo neoliberalismo” (BRAGA, 2017, p. 221).
Adota-se a compreensão de que as lutas sociais
da década de 1970 “(...) exprimiam descontentamento em
relação ao caminho social-democrata do movimento
operário, predominante nos organismos de representação
do (ou sobre o) mundo do trabalho” (ANTUNES, 2009, p.
44). Não por acaso, um dos problemas do caminho social-
democrata para o movimento operário é identificado na
segmentação de gênero, raça e sexualidade da classe
trabalhadora ligada a esses sindicatos (HARVEY, 2017).
Se é verdade que o desenho institucional discrimi-
natório do Direito do Trabalho no país se expande no
campo individual do Direito do Trabalho, é interessante
observar elementos ocasionados pela segmentação do
trabalho no campo da consciência social de trabalha-
dores, como discutida por Harvey.
O descontentamento de setores discriminados da
classe trabalhadora com o fordismo pôde ser observado
no que Harvey (2017) denominou, em Condição Pós-
Moderna, como a reformulação do mercado de trabalho
“dual” realizada pela acumulação flexível. O autor
destaca que o fordismo estruturou uma classe trabalha-
dora “dual” ou “segmentada”, dividida entre trabalha-
dores protegidos pelos sindicatos – sobretudo homens
brancos – e as excluídas e excluídos do mercado
protegido.
Harvey destaca que o enfraquecimento dos sindi-
catos reduziu o poder dos trabalhadores homens bran-
cos, mas que isso não significou uma paridade destes em
relação aos setores discriminados da classe. Em outro
sentido, tal enfraquecimento foi acompanhado do
reacentuamento da vulnerabilidade de setores discrimi-
70
nados da classe trabalhadora (HARVEY, 2017, p. 145).
Como destaca Antunes (2009, p. 107), “(...) frequente-
mente os sindicatos excluem do seu espaço as mulheres
trabalhadoras, além de mostrarem-se incapazes também
de incluir os trabalhadores terceirizados e precarizados.
Ocorre que a classe trabalhadora moderna é crescente-
mente composta por esses segmentos diferenciados (...)”.
O segundo descontentamento dos trabalhadores e
das trabalhadoras, com o caminho social-democrata
oferecido ao movimento operário, é relacionado à via
negocial e institucional de sua estratégia de poder e luta
social: “Por outro lado, ao adotarem a via negocial e
institucional, contratualista, dentro dos marcos do
‘compromisso’, esses organismos mostravam-se incapa-
zes de incorporar efetivamente o movimento das bases
sociais de trabalhadores” (ANTUNES, 2009, pp. 44 e 45).
Apesar de os movimentos de revolta serem
apoiados nos setores precários das classes trabalha-
doras, não há contradição entre os interesses dos
trabalhadores organizados e de segmentos diferenciados
da classe. Pelo contrário, como entende Braga (2017, pp.
221 e 222): “será por meio da pressão dos jovens
trabalhadores precários que o sindicalismo encontrará
recursos para superar sua crise. Concomitantemente,
sustentamos que a reinvenção democrática do movi-
mento sindical fortalecerá a mobilização do precariado”.
O descontentamento, que se expressa em “erup-
ções vulcânicas” desde a crise de 2008, tem suas causas
identificadas por Harvey (2016) na fúria popular com a
incapacidade do capital de cumprir suas promessas de
emprego para todos, com um Estado capitalista cada vez
mais autocrático e com a submissão a regras e códigos
desumanos, estipulados pelo capital. Na interpretação do
autor, o avançar das contradições da acumulação flexível
71
é também a explosão, o contágio, a pressão crescente do
“crescimento necessário” do capital financeiro (HARVEY,
2016, p. 244).
Na análise sobre processos globais de mobilização
social, muitos estudos colocam em relevo a indignação
contra a corrupção sistêmica, como uma certa “raiva
cívica” sobre como o poder do Estado é exercido, e pela
precariedade das condições de vida impostas pelas
políticas de austeridade, como descrevem Carothers e
Youngs (2015). No entanto, os autores destacam a
heterogeneidade das manifestações, no interior da qual
identificaram, como similaridades, a espontaneidade dos
movimentos, a alimentação deles pelas novas tecnologias
de comunicação, bem como a rejeição às elites e às
estruturas de poder estabelecidas.
Desde a crise financeira que se transformou em
crise da zona do euro, inaugurou-se um período de greves
de massas sem precedentes na Europa, em manifesta-
ções de contrariedade às agendas de austeridade
impostas pelos governos. Em muitos casos, são greves
simbólicas, limitadas a um ou dois dias: “As greves são
direcionadas contra as agendas de austeridade impostas
pelos governos, que envolvem cortes de aposentadorias,
contenção do estado de bem-estar social, demissões no
setor público e restrições de direitos de negociação social
e coletiva” (NOWAK; GALLAS, 2014, p. 306, tradução
livre).
Apenas em 2015, mais de 60 países tiveram
revoltas importantes e de larga escala, que desafiaram
políticas ou estruturas fundamentais de poder, em Es-
tados como Armênia, Azerbaijão, Bósnia, Brasil, Burun-
di, República Democrática do Congo, Guatemala, Iraque,
Japão, Líbano, Macedônia, Malásia, Moldávia e Venezue-
la. Em alguns deles, como na China, foram centenas de
72
milhares de manifestações de descontentamento: “Na
China, por exemplo, cerca de 180.000 eventos de protesto
ocorreram somente em 2010. É claro que muitos deles
foram pequenos eventos focados em questões em um
nível micro, como um prefeito corrupto ou uma decisão
injusta de um conselho da vila” (CAROTHERS; YOUNGS,
2015, p. 05, tradução livre).
A ação dos sindicatos nas greves europeias, desde
então, tem combinado um simbolismo radical, que se
expressa na palavra de ordem da “greve geral”, e uma
“forma moderada de ruptura”, com a greve de um dia, que
exigiria menor sacrifício dos trabalhadores e teria uma
adesão de massas maior, na interpretação de Jörg Nowak
e Alexander Gallas (2014). A descrição das “erupções
vulcânicas” ressalta a atipicidade de cinco greves gerais
em 2009, 14 greves gerais em 2011 e 10 greves gerais em
2012, com intensificação de lutas populares contra a
crise (NOWAK; GALLAS, 2014, p. 307 e 308).
Em uma observação comparativa, as greves
ocorridas após a crise de 2008 ultrapassam, em quan-
tidade, as greves da década de 1980 na Europa Ocidental.
Observava-se, até então, uma tendência decrescente do
montante de trabalhadores e trabalhadoras envolvidas
em greves. Conforme os dados da Comissão Europeia,
sistematizados pelos autores, em 1970 foram 97 mil
grevistas; em 1980, 67 mil; em 1990, 29 mil; nos anos
2000, 21 mil grevistas (NOWAK; GALLAS, 2014, p. 308).
Ao analisar as greves realizadas nos países e com
base em amplo material empírico, concluem pela classi-
ficação como greves políticas, gerais, defensivas e de-
monstrativas, em uma conjuntura política desfavorável
(NOWAK; GALLAS, 2014, p. 312). Os sindicatos, na
sistematização realizada, ficam a meio caminho entre
organizar protestos e tentar manter abertas negociações,
73
com maior radicalização na França no ano de 2010 nos
atos contra os cortes de aposentadorias, quando os
sindicatos realizaram greve de três semanas, com boa
aprovação pública e que mobilizou entre 500 mil e um
milhão de trabalhadores (NOWAK; GALLAS, 2014, p.
313).
Os autores se utilizam de uma compreensão de
lutas sociais e greve luxemburguista, para defender um
elo essencial entre mobilizações por melhores condições
de trabalho (greve econômica) e mobilizações mais amplas
por reformas sociais, ou seja, da possível implicação
política de greves imediatas. 30 Em Greve de Massas,
Partido e Sindicatos, Rosa Luxemburgo deduz pontos
74
gerais, a partir das experiências, dentre os quais destaca:
“(...) a luta econômica apresenta uma continuidade, é o
fio que une os diferentes nós políticos; a luta política é
uma fecundação periódica que prepara o solo para as
lutas econômicas. Causa e efeito sucedem-se, alternam-
se incessantemente (...)” (LUXEMBURGO, 2010, p. 286).
Postula-se, portanto, a existência de uma relação de
complementariedade, no lugar de uma distinção esque-
mática entre greve econômica e greve política.
Nessa perspectiva, como se desenvolveu, as greves
de massa não exibem um “padrão unificado” e não podem
ser identificadas antes do desdobramento em luta com-
creta, pelas suas características cruciais, como adapta-
bilidade, eficiência, fatores de origem, que mudam
constantemente (NOWAK; GALLAS, 2014, p. 310). Esses
movimentos têm como efeito perturbar a vida política,
afetar o discurso público, provocar respostas de governos
ou órgãos estatais e se destacam, centralmente, por seu
caráter mobilizador (NOWAK; GALLAS, 2014, pp. 310 e
311).
Conhecer a atuação combativa de sindicatos neste
período histórico possibilita conhecer seu espaço de
manobra na representação de trabalhadores precários,
na formulação de políticas sociais de forma ampla e na
formulação e defesa de políticas sociais protetivas. Nesse
sentido, há múltiplas dimensões em que os trabalhadores
expressam sua consciência, organização ou reivindica-
ções parciais, como o balanço de bibliografia realizado por
Atzeni (2020) permite identificar.
No período de revoltas globais inaugurado em
2008, estudos sobre mobilização e organização de traba-
lhadores precários vêm demonstrando uma relação de
antagonismo ou organização paralela em relação aos
sindicatos, em países diversos como Índia, México,
75
Tanzânia, Vietnã, China, Estados Unidos e Coréia do Sul
(RIZZO, 2017; MARINARO, 2018; ANNER, 2018;
AGARWALA, 2013; SMITH; PUN, 2006; CHUN, 2009).
Outro grupo interessante de estudos fornece um
olhar sobre a solidariedade de classe que se experiencia
com base em questões de raça, gênero, status de migra-
ção ou etnia nas expressões de resistência (MEZZADRI,
2020; MORRISON; SACCHETO; CROUCHER, 2020) e
sobre a mobilização de trabalhadores uberizados ou em
plataformas digitais na Itália, Inglaterra e Brasil (TASSI-
NARI; MACCARRONE, 2019; CARVALHO; PEREIRA;
SOBRINHO, 2020).
Em nossa experiência de pesquisa-ação com
trabalhadoras terceirizadas do município de Porto Alegre
e teleoperadoras em Curitiba (MELLO, 2020, p. 400;
MELLO, 2022), pudemos identificar e descrever rebeldias
criativas no cotidiano das trabalhadoras entre 2014 e
2019, com elementos do fazer-se classe thompsoniano e
da relação entre ação e organização em Luxemburgo
(THOMPSON, 2012; SCHÜTRUMPF, 2015), em temas que
entrecruzam solidariedade de classe, monitoramento
coletivo de ilegalidades, reconhecimento de gênero, apoio
ativo de categorias próximas mais estáveis – como
professores de escolas –, ajuda mútua em situações de
adoecimento e mobilizações contra a entidade sindical
que, em tese, as representaria.
As escolas da experiência, no sentido luxembur-
guista, são o meio para a criação das condições de luta
cotidiana, rompendo a cisão entre “greve geral” e “luta
cotidiana” então colocada pelos anarquistas (BOGO,
2010, p. 235). Na instigante imagem da revolucionária
alemã, trata-se de não conceber o movimento grevista
como se fosse uma “navalha”, uma arma “puramente
teórica” à disposição dos líderes do movimento, que a
76
deflagrariam. Isso porque a greve não poderia facilmente
ser “decidida” ou “proibida”, de acordo com o que “se
julgue útil”, “(...) qual navalha que se pode ter fechada no
bolso para qualquer eventualidade ou, ao contrário, aber-
ta e pronta a servir, quando se decidir” (LUXEMBURGO,
2010, p. 247).
Na observação desses protestos globais e
experiências de classe, cabe à análise social tentar
realizar suas duas funções, como descritas por Burawoy
(2010, p. 75): por um lado, desmistificar a naturalização
do “arbitrário social”; por outro lado, “[a ciência social é]
destinada a inventar e elaborar alternativas sociais
enraizadas nas experiências vividas e nos experimentos
vívidos das classes subalternas” (BURAWOY, 2010, p.
75).
Um balanço do debate público e da ciência social,
a partir das erupções públicas, reivindica a necessidade
de ultrapassar a perspectiva negocial e de compromisso,
na busca por uma reorientação política-estratégica,
exigida pela crise (NOWAK; GALLAS, 2014, p. 318). Trata-
se de investigar a relação entre a estrutura de classes e a
matriz de interesses baseados na espoliação e na
exploração, com diferentes padrões de agitações traba-
lhistas, como problematiza Braga (2020).
Esta reorientação amplia a agenda do Direito
Sindical ao propor uma caracterização do período e um
olhar para revoltas e rebeldias não necessariamente
classificadas, legalmente, como greves ou etapas de uma
negociação coletiva. Combinam-se, no período inaugu-
rado em 2008, uma longa depressão econômica e uma
intensa agitação trabalhista, o que sugere ultrapassar a
perspectiva do mero “apassivamento” da classe trabalha-
dora e a necessidade de estudos concretos sobre experi-
77
ências de organização e mobilização de seus setores
precários.
78
ser objeto de análise, em especial nas transições que
movimentam na teoria social e nos conflitos coletivos.
Como se discutiu na seção referente à perspectiva
metodológica, as Rebeliões de Junho de 2013 repre-
sentam possibilidade de compreensão daquilo que
conecta e nega dois períodos: o de crescimento da
estratégia democrático-popular e de políticas de concilia-
ção-compromisso, e aquele no qual expandem-se ilegal-
dades destrutivas no campo laboral, com o crescimento
do neoliberalismo, sedimentado pelo Supremo Tribunal
Federal a partir de 2014.
Conjunto mais importante de revoltas populares
da história recente não pelo que construíram, mas pelo
que destruíram no que concerne à Nova República e à
forma de atuação das esquerdas (SAFATLE, 2017, p.
107), as Rebeliões de Junho se caracterizam como um
grande levante popular, comparável apenas com a
campanha pelo impeachment de Collor (1992) e pelas
eleições diretas (1985) (ANTUNES, 2018, p. 245), dado
que reuniram milhões de pessoas e tiveram diversos
momentos, como manifestações multidiferenciadas, hete-
rogêneas, polissêmicas e até mesmo policlassistas.
Os anos anteriores a 2013 revelam uma tendência
de retomada das lutas sociais e um crescimento da
indignação de trabalhadores e trabalhadoras. Se entre
2003 e 2008 o registro foi de baixo número de greves, os
anos de 2010 (446 greves), 2011 (554 greves) e 2012 (877
greves) demonstram a reversão deste quadro e o cresci-
mento da mobilização, como sinaliza o Sistema de
Acompanhamento de Greves do DIEESE (SAG-DIEESE).
No ano de 2013 foram 2.050 greves, o maior número em
décadas, comparável apenas ao período do fim da
ditadura.
79
Dessa forma, o período que antecede as Jornadas
de Junho é marcado pela “exacerbação das contradições
sociais no Brasil” (MUSSI; BIANCHI, 2013, p. 60). Não por
acaso, o crescimento das mobilizações paredistas é acom-
panhado da “explosão de protestos iniciada em Jirau, em
2011, onde uma violenta greve resultou em casas quei-
madas, máquinas quebradas e patrões aterrorizados.
Apenas em março daquele ano, 170 mil trabalhadores da
construção civil fizeram greve” (MUSSI; BIANCHI, 2013,
p. 60). No ano seguinte, foram realizadas paralisações
históricas nas megaconstruções em Jirau, em Belo Monte
e no complexo petroquímico do Rio de Janeiro.
Da observação da pauta de reivindicações das
greves nos anos que antecedem 2013, é possível extrair
observações sobre a precariedade da vida de trabalha-
dores e trabalhadoras em movimento. Este aspecto é
destacado pela análise de Ruy Braga (2017), quando
analisa os dados e afirma que a maior parte das greves
(46%) foram defensivas, ou seja, buscavam exigir que o
empresário realizasse o cumprimento das normas de
ordem pública do contrato de trabalho. No ano de 2012
cresceram as greves motivadas pela expansão da fraude
na execução do contrato de trabalho, com atraso de
salários na proporção de 21,6% (BRAGA, 2017, p. 241).
Sobre a indignação dos manifestantes, Antunes
ressalta o profundo mal-estar da sociedade brasileira com
um projeto que se desenvolve desde a década de 1990 de
“desenvolvimento capitalista financeirizado e mundializa-
do, sedimentado em privatizações, superávit primário e
desregulamentação dos capitais, tendo, portanto, os inte-
resses do grande capital como prioritários” (ANTUNES,
2018, p. 246).
Daniela Mussi e Álvaro Bianchi (2013) analisam o
período do governo como aquele em que há uma reversão
80
da tendência à informalização do mercado de trabalho,
com uma maioria de postos de trabalho nas ocupações
menos qualificadas, conforme também demonstrava
Pochmann (2012). A expectativa de melhor posição no
mercado de trabalho levou a um “aumento dramático do
consumo e do endividamento entre os trabalhadores (os
últimos números oficiais estimam que mais de 65% das
famílias brasileiras estão endividadas). Também houve
aumento dos investimentos das famílias em educação
(...)” (MUSSI; BIANCHI, 2013, p. 60).
Merecem menção os estudos do Centro de
Estudos de Direitos da Cidadania da USP (Cenedic) reali-
zados no período anterior a junho de 2013, com
etnografias de trabalhadores vivendo em bairros popula-
res e periféricos, a respeito de modificações ocupacionais
do trabalho e sobre o ganhar e o perder a vida no tráfico
de drogas, na terceirização, no trabalho doméstico, no
comércio ilegal, entre outros, como se verá adiante. Braga
(2017, p. 164) menciona que na oportunidade em que foi
diretor desses estudos pôde observar que “a reprodução
do modelo de desenvolvimento financeirizado alimentava
um estado mais ou menos permanente de inquietação
social, capaz de precipitar uma onda de indignação
popular”.
Essa inquietação social é sintetizada por Safatle
(2017, p. 109) como um horizonte social de frustração
com o lulismo e de crítica à representação política. Para
Braga (2017, p. 180), tem-se uma nova conjuntura
política, com o fim da pacificação social do lulismo. Singer
(2018, p. 99), um dos estudiosos do lulismo, também
indica que os acontecidos dividem o governo Dilma em
dois, pois a popularidade da presidenta diminui de 57%
de bom e ótimo para 30% após as revoltas populares.
81
Singer (2018, p. 108) entende que junho teve
“classes cruzadas”, pois estariam simultaneamente cor-
retos os dois pontos de vista sobre as jornadas, que
teriam sido “tanto expressão da classe média tradicional
como reflexo da nova classe trabalhadora”. Uma nota
crítica a esta perspectiva coloca em relevo a composição
social dos protestos, majoritariamente compostos não por
“classes cruzadas”, mas por trabalhadores inseridos em
um mercado de trabalho com alta rotatividade, como se
desenvolverá.
O autor baseia sua afirmação em uma perio-
dização em três etapas: a primeira com reivindicações por
redução de preço de passagens de ônibus e metrô (06 a
13 de junho); a segunda com reivindicações dispersas –
contra a Copa, na luta por saúde e educação de qualidade
e em críticas aos políticos e à corrução (17 a 20 de junho)
–; e a terceira com fragmentação maior, com iniciativas
sobre redução de pedágios, derrubada da PEC 37, rejei-
ção ao Programa Mais Médicos e, também, manifestação
contra gastos públicos para a Copa do Mundo (SINGER,
2018, pp. 107 e 108).
As Jornadas, portanto, rapidamente recebem
apoio popular e surpreendem setores à esquerda e à
direita. Na nova situação política nacional, ganha relevo
o conhecimento sobre a composição social dos manifes-
tantes, em que uma sistematização de pesquisas, realiza-
da por Singer, oferece as reflexões abaixo.
Observa-se que os manifestantes eram predomi-
nantemente jovens e jovens adultos (entre 18 e 29 anos);
na maioria dos casos, a escolaridade dos manifestantes é
alta, com 43% deles possuindo o ensino superior com-
pleto, na pesquisa para oito capitais. Daí decorre a ideia
analisada por Singer de que os manifestantes apontam
“para a metade superior da pirâmide, com um perfil, no
82
mínimo, de ‘Média Classe Média’, na classificação de
Quadros, e com fortes tintas de classe média tradicional”
(SINGER, 2018, p. 113).
Para Marcos Nobre (2003), essa interpretação só é
possível a quem limita o objeto de análise a regiões ricas,
como Rio e São Paulo. “É impressionante a quantidade de
irrupções nas periferias que se dirigem contra os baixos
salários, contra a péssima qualidade dos empregos, em
um país que se encontra em situação próxima do pleno
emprego” (NOBRE, 2003, p. 15). Braga (2017) apresenta
percepção no mesmo sentido, a partir do dado de que
65% do total de vagas formais criadas no período Lula–
Dilma foram ocupadas por jovens entre 18 e 26 anos,
conforme sistematizou Pochmann (2012). Como “essa
inquietação social se concentrou especialmente nesse
grupo, (...) [entende-se que o tenha levado a] cumprir um
papel-chave na eclosão das Jornadas de Junho” (BRAGA,
2017, p. 226).
Dessa forma, a pesquisa sobre a nova classe
trabalhadora não se refere apenas a um grupo que deve
ser apreendido como um “fenômeno sociológico” dife-
rente, mas também como uma pesquisa que dá especial
atenção à juventude trabalhadora, como população eco-
nomicamente ativa que ingressa no mundo do trabalho e
que o vive sob novas condições e desafios.
O argumento central de Braga (2017, p. 227)
consiste na presença de um protagonista social, “jovem
precariado urbano”, que “se manifesta por meio da
gramática dos direitos sociais e trabalhistas”. Uma se-
gunda dimensão apresentada pelos dados, sistematiza-
dos por Singer, corresponde à renda familiar mensal dos
manifestantes em junho de 2013.
A partir da análise da renda familiar mensal,
Singer conclui que o subproletariado, na sua classifi-
83
cação, não estava ausente dos protestos. Ao menos 15%
dos manifestantes em oito capitais e 20% dos mani-
festantes em Belo Horizonte recebiam até esse valor
salarial. “Somados aos que tinham entre dois e cinco
salários mínimos de renda mensal familiar, dentro do que
se pode considerar baixo rendimento, no conjunto res-
pondiam por cerca de 50% dos manifestantes” (SINGER,
2018, p. 114). Além disso, a maioria dos manifestantes
entrara “havia pouco tempo no emprego – significativa-
mente, o Ibope mostrou que 76% dos manifestantes
estavam no mercado de trabalho nas oito capitais, o
Innovare encontrou proporção parecida em Belo
Horizonte (71%) e o Plus Marketing no Rio de Janeiro
(70%)” (SINGER, 2018, p. 115).
Ao realizar o contraste entre os dados de renda e
os dados de escolaridade, Singer abandona a afirmação
do predomínio da “Média Classe Média” nas manifesta-
ções. Em suas palavras “do ângulo da renda, e da
ocupação que se pode deduzir a partir da remuneração,
as pesquisas apontam uma incidência da metade inferior
da pirâmide nas manifestações. Seria a confirmação de
que a nova classe trabalhadora (...) foi para as ruas”
(SINGER, 2018, p. 114).
Uma terceira e última dimensão trazida por Singer
concerne à localização dos manifestantes de junho de
2013 no espectro ideológico. “Socialmente heterogêneo,
junho o foi também no plano da ideologia” (SINGER,
2018, p. 117). O ponto de partida foi dado por um
movimento social de esquerda, pois o MPL (Movimento
Passe Livre) se coloca contra um sistema entregue à
lógica da mercadoria, bem como defende movimentos
horizontais e descentralizados, o que se tornou uma das
marcas de junho.
84
Interessante pesquisa foi realizada em relação à
localização dos manifestantes no espectro ideológico,
embora o universo de entrevistados se restrinja à mani-
festação de 20 de junho em São Paulo, já ao final da
segunda etapa de manifestações. Conforme dados do
Datafolha, Singer (2018) observa a localização dos
manifestantes de junho de 2013: 22% se indicam de
esquerda, 14% de centro-esquerda, 31% de centro, 10%
de direita e 13% não sabiam (SINGER, 2018, p. 124).
Uma pesquisa do Ibope, também no dia 20 de
junho, em oito capitais, revela interessante perfil ideoló-
gico dos manifestantes. Para 65% dos entrevistados, o
maior desejo é de mudança no ambiente político, “com
50% fazendo referência especificamente à corrupção. A
questão do transporte apareceu em segundo lugar, com
54% das respostas, e os gastos com a Copa em terceiro,
com 40% de menções” (SINGER, 2018, p. 125). Verifica-
se, assim, que mesmo já ao final da segunda etapa de
manifestações, ainda uma maioria dos entrevistados vê
como principal problema a representação, ou direitos
sociais como transporte, ou ainda gastos sociais e
corrupção.
A presidenta Dilma, no dia 24 de junho, reúne 27
governadores e 26 prefeitos de capitais para apresentar
uma resposta à crise. Na avaliação de André Singer
(2018, p. 125):
85
tra a corrupção, promulgando a lei n. 12850, que
definiu organização criminosa, regulamentou a
delação premiada e acabou por ser elemento
impor-tante no sucesso da Operação Lava Jato.
Em fevereiro de 2014, faria novo aperto de cinto,
cortando 44 bilhões no orçamento.
86
não os retiraria “nem que a vaca tossisse”. O ano seguinte
à eleição, no entanto, é marcado por 10 milhões de
desempregados: um a cada quatro nunca tinha traba-
lhado (26,3%), um a cada três era jovem de 18 a 24 anos
(33,4%), quase a metade não tinha completado o ensino
médio (48,2%) e a maior parte era composta por negros e
negras (60,4%). 31
Do ponto de vista da relação do Estado brasileiro
com as revoltas, nesse lapso temporal, imprescindível
relatar que foram criadas, durante o governo Dilma,
hipóteses de saque do fundo público, com consequências
para a prestação de serviços públicos pelo Estado. Cuida-
se da Proposta de Emenda Constitucional n. 87/2015,
que veio a ser anexada à PEC 4/2015, de autoria do
Deputado André Figueiredo (PDT/CE). 32 A PEC 87/2015
foi proposta por Dilma, em julho de 2015, e aprovada sob
o governo Michel Temer, já sob nova numeração, PEC
31/2016, que veio a dar origem à Emenda Constitucional
n. 93/2016.
87
A Emenda Constitucional 93 prorroga e amplia a
Desvinculação das Receitas da União, conforme artigo n.
76 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias):
88
para a modernização de “formas de socialização, de
cooptação, de opressão ou de repressão inerentes à
dominação burguesa” (FERNANDES, 2005, p. 345).
O espaço político assegurado pela ordem legal é
reduzido, restrito. É muito difícil que pressões e conflitos
“dentro da ordem” possam fazer explodir contradições de
classe. As características da burguesia brasileira expli-
cam este quadro. Ela “não está só lutando, aí, para
consolidar vantagens de classe relativas ou para manter
privilégios de classe. Ela luta, simultaneamente, por sua
sobrevivência e pela sobrevivência do capitalismo”
(FERNANDES, 2005, p. 345).
As políticas econômicas dos governos do Partido
dos Trabalhadores, como resumem Maria Malta e Jaime
León (2017; 2020), foram baseadas no aumento do
consumo de massas, no crescimento da base da pirâmide
social do trabalho, com a elevação do salário-mínimo e do
emprego formal, na política assistencial para miseráveis
e em políticas sociais “focalizadas de massa”. No entanto,
como caracterizam os autores, os ganhos foram rever-
tidos facilmente:
89
Na análise desenvolvida pelos autores, a forma
política da democracia de cooptação, com corrupção
intrínseca e abertura para baixo, chegou a um momento
de inflexão com as Jornadas de Junho de 2013:
90
no governo federal não estava restrita a ele, mas se
estendia a todo o sistema político (...)” (ORTELLADO;
SOLANO, 2016, p. 170). Os autores citam estudos da
Fundação Getúlio Vargas sobre índices de desconfiança
institucional, segundo os quais “(...) 5% da população
afirmava confiar em partidos políticos, 15% no Congresso
Nacional, e 33% nas emissoras de TV” (ORTELLADO;
SOLANO, 2016, p. 170).
Nesse sentido, os autores investigaram se haveria
uma continuidade, uma inquietação e uma insatisfação
em comum, entre os protestos de 2013 33 e de 2015. Nem
por isso deixam de ressaltar as diferenças de composição
social e orientação política dos convocantes. 34
Ortellado e Solano informam que, nos atos que
acompanharam em 2015, a maior parte dos manifes-
tantes não confiava em partidos políticos (73,2%),
inclusive no PSDB (47,6%), mas confiavam em movimen-
91
tos, em tese, desvinculados de partidos, como o Movimen-
to Vem Pra Rua (70,8% confiam muito) e, surpreendente-
mente, o Movimento Passe Livre (53,4% confiam muito ou
pouco) (ORTELLADO; SOLANO, 2016, pp. 172 e 173).
Os autores destacam que uma extrema maior
parte dos manifestantes (97%) concordou total ou
parcialmente com gratuidade de serviços públicos, como
educação e saúde. Além disso, 50% dos manifestantes
concordavam com a demanda por tarifa zero nos trans-
portes públicos. Concluem, no tocante à defesa dos
direitos sociais, que há uma linha comum de defesa dos
serviços públicos em 2013 e em 2015. 35
A relação de continuidade entre a demanda por
direitos presente tanto em 2013 quanto em 2015, por um
lado, e a ascensão de um governo neoconservador, por
outro lado, é analisada com perplexidade por Ortellado e
Solano (2016). Os autores defendem que não se pode
responder ao problema com “estereótipos” sobre os
manifestantes e que o paradoxo é um legado de junho de
2013.
Nessa perspectiva, anotam que não houve grupos
progressistas, desvinculados de partidos, capazes de
atrair a insatisfação dos manifestantes em 2013. Tam-
bém em 2015, conforme demonstraram os autores, os
manifestantes possuíam desconfiança institucional com
o sistema político brasileiro. Disso concluem:
92
Ao contrário do estereótipo do manifestante privile-
giado e ressentido com o avanço social dos mais
pobres, há um notável consenso entre os manifes-
tantes a favor dos direitos sociais fundamentais.
Como essa crença pode então estar combinada
com uma liderança ultraliberal, com um senti-
mento antipetista e uma admiração pelo comenta-
rismo neoconservador? Acreditamos que o para-
doxo seja um legado do ciclo de protestos de junho
de 2013. Na ausência de grupos progressistas
desvinculados dos partidos políticos, para além do
MPL, que fossem capazes de dar orientação e
liderança para a indignação que foi despertada, os
grupos liberais e conservadores se aproveitaram
da oportunidade para moldar e explorar politica-
mente a insatisfação (ORTELLADO; SOLANO,
2016, pp. 177 e 178).
93
Observar o contraste entre essa proposta e as
origens da legislação sindical no Brasil, em especial a
partir das compreensões de Werneck Vianna (1999;
2004) e Oliveira Viana (1952; 1974) sobre o sindicato
corporativo, fornece uma compreensão matizada da rela-
ção entre Estado, sindicalismo e liberdades coletivas no
país.
Entre outros elementos, retenha-se que o espe-
cífico da ordem corporativa era a busca pela “paz social”,
no lugar da violência aberta entre classes. Decretava-se a
“morte do homem liberal” (VIANNA, 1999), pela criação
de órgãos intermediários, delegativos do poder público.
Em alguns momentos, os sindicatos eram esvaziados do
sentido de colaboracionismo e convertidos em puro
instrumento de dominação de classe.
Renova-se o corporativismo, com as decisões do
STF, não porque se altera a estratégia negocial e institu-
cional da relação entre sindicato e trabalhadores no
Brasil, mas porque se modifica a relação entre Estado e
sindicatos. Nessa linha interpretativa, não há contra-
dição entre a prevalência do negociado sobre o legislado
e o enfraquecimento do sistema de custeio sindical. Pelo
contrário, ao sindicato é estendido o poder de legalidade
do Estado e seus desafios se acumulam.
A verdadeira pergunta deriva da caracterização de
Antunes (2009), segundo a qual o compromisso negocial
e conciliatório dos sindicatos é alvo de descontentamento,
expresso nas lutas sociais da década de 1970. Nesse
sentido, a análise das revoltas sociais e das erupções
públicas fornece importantes elementos para compreen-
der dimensões das liberdades públicas do trabalho que
não são apreensíveis pelo tradicional esquema corporati-
vo de mobilizações, como também vêm observando
Nowak e Gallas (2014).
94
Interessantes indícios comuns entre a pesquisa de
Ortellado e Solano e as pesquisas de Carothers e Youngs
(2015) conferem relevância, na análise das erupções
coletivas, à raiva cívica contra a corrupção sistêmica.
Florestan Fernandes (2005) também destacava os limites
das negociatas e da democracia de cooptação no
capitalismo pobre, aspecto sublinhado na leitura do
Brasil contemporâneo por Malta e León (2017; 2020).
Desde 2008, como se descreveu, instalou-se um
período de greves de massas, com mais de 60 países
afetados apenas em 2015 (NOWAK; GALLAS, 2014).
Essas erupções vulcânicas (HARVEY, 2016) podem ser
compreendidas como manifestações que dão continuida-
de e radicalizam o descontentamento dos setores seg-
mentados da classe trabalhadora com as estratégias
social-democratas (HARVEY, 2017).
Esse descontentamento, para Harvey (2017), era
explicado pelo dualismo do mercado fordista e pelo
esgotamento da via negocial ou institucional. No Brasil, a
via da conciliação de classes ainda se desenvolveu por
décadas, no caminho pelo qual se gestou o transformismo
do projeto democrático popular do Partido dos Trabalha-
dores e sua progressiva adaptação à ordem (MALTA;
LEÓN, 2020; IASI, 2006; IASI, 2012; GEDIEL; MELLO,
2016).
Especial pertinência parece sugerir a análise da
greve de massas em uma concepção luxemburguista,
como proposta por Nowak e Gallas (2014). Trata-se de
uma forma de observar a conexão entre momentos de
efervescência, como greves gerais, e lutas cotidianas ou
econômicas. A tradição de Rosa Luxemburgo se configura
como uma “escola da experiência”, cujas semelhanças
com Thompson (2012) revelam interessantes perspec-
tivas teóricas e concretas para os estudos contemporâ-
95
neos a respeito da dimensão coletiva do Direito do
Trabalho.
Junho de 2013 marca este momento de encerra-
mento de um ciclo político no país. A análise das
transformações da classe trabalhadora, para observação
da composição social dos protestos e dos seus sentidos
sociais, ganhou importância crescente (ANTUNES, 2018;
SINGER, 2018; BRAGA, 2017; SAFATLE, 2017). Não
parece mais possível pensar o Direito Sindical e a reno-
vação da autonomia coletiva sem levar em consideração
as principais manifestações públicas do último período e
expansão de protestos similares em nível global.
Considerações finais
96
tos destrutivos do Estado brasileiro, sua íntima relação
com a discriminação e a desigualdade, a falsidade da
rigidez constitucional e a lacuna no campo do conheci-
mento no que concerne ao estudo articulado entre teoria
social do contrato de trabalho e experiências de resis-
tência da classe trabalhadora.
Não é ocasional que as revoltas globais cresçam
no mesmo período em que avança a austeridade, após
2008, nem parece inconsequente que as mobilizações
envolvam um forte questionamento de governos, Estados
e partidos de esquerda. Se o crescimento da direita no
período recente tem relação com esses descontentamen-
tos, também o fazer-se e refazer-se da classe trabalhado-
ra, em especial em suas experiências de ação direta,
mobilização e organização, podem ser articulados ao
aumento da violência cotidiana no trabalho e à lega-
lização destas relações hostis.
A consciência social de trabalhadores e traba-
lhadoras não se reduz à forma sindical, às eleições ou a
juízos sobre epifenômenos pontuais. Em outro sentido, é
e vem-a-ser uma contínua cadeia temporal, composta de
avanços e retrocessos, nos quais a violência, a hostilidade
e as experiências de resistência são importantes objetos
de investigação. A caracterização importa e o compro-
misso político com a superação da ordem também.
A ênfase no compromisso político da investigação
crítica tem por objetivo evitar o risco da acomodação que
Lukács (2000) descreveu, com ironia, como um fixar
residência no “Grande Hotel do Abismo”, em que se
realizariam contemplações diárias do abismo e da bar-
bárie, com todas as comodidades de excelentes refeições
ou entretenimentos artísticos.
No Brasil contemporâneo, em que a barbárie
avança a passos largos, mares tempestuosos fazem com
97
que o papel vital da teoria crítica seja semear elementos
para um campo coletivo de investigação, cuja diretriz
geral caminha, com Mészáros (2012, p. 239), na busca de
identificação e ativação de mediações potencialmente
libertadoras, com objetivo de transcendência da ordem
sociometabólica do capital.
Referências
98
ATZENI, Maurizio. Workers’ Organisation in Precarious
Times: Abandoning Trade Union Fetishism,
Rediscovering Class. Global Labour Journal, 2020, 11(3),
pp. 311-314.
99
BRAGA, Ruy. A Rebeldia do Precariado: trabalho e
neoliberalismo no Sul Global. São Paulo: Boitempo,
2017.
100
CARLEIAL, Liana Maria da Frota. Acumulação
capitalista, emprego e crise: um estudo de caso. São
Paulo: IPE/USP, 1986.
101
(Org.). Crítica do Direito e do Estado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1984.
102
DRUCK, Graça. A tragédia neoliberal, a pandemia e o
lugar do trabalho. O Social em Questão, ano XXIV, n. 49,
jan. a abr., 2021.
103
______. A Qualidade da Constituição. In: Florestan
Fernandes na constituinte: leituras para a reforma
política. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo
Expressão Popular, 2014d.
104
______. Autonomia Contratual e Razão Sacrificial:
Neoliberalismo e Apagamento das Fronteiras do
Jurídico. Revista Direito e Práxis: Rio de Janeiro, 2020,
v. 11, n. 4, pp. 2238-2259.
105
JEAMMAUD, Antoine. Algumas questões a abordar em
comum para fazer avançar o conhecimento crítico do
direito. In: PLASTINO, Carlos Alberto (Org.). Crítica do
Direito e do Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
106
LUKÁCS, György. História e Consciência de Classe –
Estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
107
MELLO, Lawrence Estivalet de (Org.); CALDAS, Josiane
(Org.); GEDIEL, José Antônio Peres Gediel (Org.).
Políticas de Austeridade e Direitos Sociais. Curitiba:
Kaygangue, 2019.
108
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma
teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011a.
109
OLIVEIRA, Isabela Fadul de. Pesquisa em direito do
trabalho: notas para uma proposta metodológica.
Revista da Faculdade de Direito da UFBA, V. 40, N.1
(jan./jun. 2014), Salvador/BA.
110
SAAD FILHO, Alfredo. Salários e exploração na teoria
marxista do valor. Economia e Sociedade, Campinas, n.
16, pp. 27–42, jun. 2001.
111
SHIROMA, Eneida Oto; CAMPOS, Roselane Fátima;
GARCIA, Rosalba Maria Cardoso. Decifrar textos para
compreender a política: subsídios teórico-metodológicos
para análise de documentos. Perspectiva, Florianópolis,
v. 23, n. 02, pp. 427-446, jul./dez. 2005.
112
THIOLLENT, Michel. Crítica metodológica, investigação
social e enquete operária. São Paulo: Editora Polis, 1980.
113
A Finitude do Estado e do Direito
Ricardo Antunes1
115
mais no Paraná. Lembrem vocês que lá, para infelicidade
da Universidade Federal do Paraná, era professor aquele
que impulsionou a Lava-Jato. Operação que curiosa-
mente só tinha uma direção ou alvo... Lembram dessa
frase deles? Algo assim: “Não mexe nem com Temer nem
com FHC”.
Depois, conheci o trabalho do Professor Gediel e
do Lawrence, a pesquisa importante que ele nos apre-
sentava e isto fez com que eu percebesse o valor intelec-
tual do Lawrence. Quando ele me falou que prestaria o
concurso da UFBA, se bem me lembro, incentivei
bastante. Tinha certeza de que se ele fosse aprovado teria
um diálogo muito amplo e esta reunião é evidência disso.
Não vou dizer também da felicidade de reencon-
trar uma vez mais a Graça, porque já escrevemos juntos
e, na defesa de doutorado dela, foi a única vez em que eu
disse que sentia muito não ter sido orientador de alguém
– dela no caso. Foi uma declaração do apreço, da iden-
tidade, da admiração que já tinha pelo seu trabalho. Sem
nenhum autoelogio, apesar de ter dezenas ou quase uma
centena de orientandos e orientandas, sentia não ter tido
a Graça como minha orientanda.
Tenho ótima lembrança da defesa de tese da
Graça. De lá para cá, estreitamos cada vez mais nossos
contatos. Por isso, brinco: a UNICAMP é uma universi-
dade que me conquistou em profundidade, mas se um dia
tiver que daqui sair ou dividir a UNICAMP com alguém,
no Brasil será com a UFBA. Não sabemos o que nos
espera, mas tenho certeza de que na UFBA tenho um
bolsão de resistência, o que por certo já nos ajuda nestes
tempos tão difíceis.
Do mesmo modo, me recordo plenamente da
defesa da tese de Lawrence. Para discutir o seu trabalho,
aqui apresentado, tratarei de três dimensões. Como
116
evidenciado na sua tese, neste ensaio e também na sua
apresentação, ele exercita uma crítica do direito inspira-
da pelo universo meszariano. Esta perspectiva é muita
rica. Conheci pessoalmente Mészáros em 1983. Trocamos
cartas antes, mas neste ano pude conhecê-lo pessoal-
mente. Desde esse período acompanho o trabalho do
nosso amigo recém falecido.
O trabalho de Lawrence mostra (e sua exposição
também) como ele parte de pistas da crítica que Mészáros
faz ao Estado e ao direito, dentro da centralidade do
trabalho e da conformação daquilo que denominou como
sistema de reprodução sociometabólico do capital. Ele
pergunta qual é o papel do trabalho e sua relação com o
Estado e o direito. Demonstra o significado das acentua-
das mutações no Estado e no trabalho, especialmente a
partir das rebeliões de 2013 e 2014, quando vivemos
processo muito particular.
Suas hipóteses acerca dessas mutações constitu-
cionais do Direito do Trabalho tomam como ponto de
partida o Levante de Junho de 2013, que a partir de então
sinalizou ou acentuou a tendência de exercitar contra-
tualidades espoliativas e ilegalidades destrutivas, que
passam a se expandir e se intensificar. Qual o papel das
Jornadas de Junho de 2013 nesse contexto?
A tese que Lawrence desenvolve acerca das con-
tratualidades espoliativas e ilegalidades expandidas é,
por certo, interessante, original e merece ser analisada
empírica e analiticamente. Desde 2017, ao analisar a
reforma trabalhista, minha primeira impressão intuitiva
foi de que se acentuava sua tendência mais aberrante,
qual seja, a legalização do ilegal. Ao instaurar o trabalho
intermitente, a Contrarreforma Trabalhista legalizava o
ilegal. Ou, se usarmos os termos do Lawrence, acentuava
ilegalidades expandidas. Legalizar o trabalho intermiten-
117
te é, por certo, legalizar aquilo que é ilegal. É proposital a
repetição de palavras.
Neste debate, vou fazer três ou quatro notas,
visando ajudar um pouco na elucidação de alguns ele-
mentos de fundo. Quero falar, primeiro, sobre Mészáros,
depois sobre Marx, uma nota sobre o método e um
comentário sobre as ilegalidades expandidas, tese de
Lawrence.
O primeiro comentário é uma retomada da
importância da obra de Mészáros. Publicamos recente-
mente aquele que será, para nossa infelicidade, o último
livro de Mészáros (2021) que o grande público ainda não
conhece. Eu tive a alegria de discutir com ele passo a
passo, durante uma década, uma década e meia. Ele
começou a trabalhar mais intensamente nesse tema em
2012 ou 2013. É um tema que ele já vinha percorrendo
muito antes. Vou tratar um pouco do constructo
meszariano e o papel que o Estado e o direito têm sobre
ele.
Vou fazer também segunda nota sobre Marx e sua
crítica ao direito. Este é o ponto de partida, certamente,
do livro Beyond Leviatan, de Mészáros. Acabei de fazer a
orelha deste livro. Foi uma tristeza e uma felicidade. Uma
tristeza porque eu queria fazer mais apresentações de
livros do Mészáros. Em Para Além do Capital (2002) fui
eu que fiz uma longa apresentação, daquela vez em vida
do autor. Dessa vez, essa pequena nota de orelha que
acabei de escrever não será por ele lida. A fonte, a
inspiração primeira deste livro se encontra em Marx e na
crítica marxiana do direito.
Lawrence disse bem, retomando Hegel sobre o
Estado e a paciência do conceito... Aliás, é uma coisa
muito legal nele e eu dou muito valor a isso: jovens
pesquisadores ou jovens pesquisadoras que têm coragem
118
de enfrentar o debate teórico com rigor e profundidade.
Sabemos que sem avanço reflexivo não há teorização
nova. Só avanço empírico não nos leva a reflexões novas,
ainda mais quando nosso horizonte é a superação desse
sistema sociometabólico destrutivo, sobre cuja destrutivi-
dade não é preciso nem mais dizer, dada a abundância
de exemplos que temos.
Coube ao nosso Mészáros desenvolver, na sua
vastíssima obra, uma categoria muito atual, o sistema de
reprodução sociometabólico do capital. Desde muito
jovem, trabalhador operário, Mészáros ingressa na
Universidade de Budapeste e começa a estudar esta
categoria, que ganhou muito destaque em sua obra
posterior, uma vez que explica por que, hoje, estamos
respirando este ar poluído, por que não temos água
suficiente, por que nosso ar nos adoece, por que temos
uma pandemia nessa dimensão etc.
A categoria sistema de reprodução sociometabólico
do capital, desenvolvida por Mészáros, tem inspiração em
Marx. Ler Marx, aliás, é uma tarefa imprescindível para a
intelectualidade crítica. Desde os primeiros parágrafos
d'O Capital (2011), Marx analisa o complexo do capital
fazendo um paralelo com o metabolismo social, as partes
e o todo orgânico. A totalidade capital e os organismos
que lhe dão funcionalidade e vitalidade. Para Mészáros,
que pôde aprofundar muito esse conceito, o sistema de
reprodução sociometabólico do capital ganhou muita força
a partir da constatação que fez acerca da crise estrutural
do capital, conceito que formulou em 1968/69, de forma
absolutamente pioneira.
Para se ter uma ideia, certa vez me confidenciou
pessoalmente François Chesnais que gostaria muito de
conhecer István Mészáros. Eu tive a felicidade de apre-
sentá-los em uma atividade organizada pela revista Actuel
119
Marx, na França, em 1997, se bem me recordo, período
em que estive como pesquisador visitante na Universi-
dade de Sussex, a convite de Mészáros.
Esta é uma primeira pista que eu acho que
Lawrence pode aprofundar um pouco mais, não como
uma lacuna, mas porque tudo o que vem ocorrendo dos
anos 1970 para cá, se formos ao fundo da questão,
remete-nos à crise estrutural do capital e a consequente
destrutividade de seu sistema de metabolismo social (ou
antissocial, como passei a denominá-lo, quando escrevi o
e-book Coronavirus: o trabalho sob fogo cruzado
[Boitempo, 2020]).
Para Mészáros, a crise estrutural do capital tem
traços e características muito profundas. Uma vez escrevi
um artigo na Folha de S. Paulo, em que falava sobre a
obra dele, e isso nos provocou (a Mészáros e a mim) a
publicar um pequeno livro em que eu faria a apresen-
tação de vários textos e excertos de sua obra, que tratam
da temática da crise estrutural. O livro foi publicado,
chama-se A crise estrutural do capital (2009). Ali se tem
um recorte do que foi produzido até 2009.
A crise estrutural, para Mészáros, não decorre só
da queda tendencial da taxa de lucro, tese fundamental
de Marx. A formulação meszariana fundamental é a
indicação de que a crise estrutural do capital faz com que
o sistema de reprodução sociometabólico do capital se
torne absolutamente destrutivo e incontrolável. É um
sistema expansionista, destrutivo e no limite incon-
trolável.
Mészáros cita dois exemplos, para demonstrar
que não foi possível controlar o capital no século XX. Nos
jornais da social-democracia dos anos 1950 e 1960,
falavam que o mundo dos países do Welfare State cami-
nhava para o pleno emprego. Bom, podemos olhar hoje
120
para o pleno emprego apenas se eliminarmos do mapa a
massa de imigrantes e os bolsões de desempregados que
hoje se espalham por toda a Europa Ocidental e que
compreendem o chamado precariado – autodenominação
que trabalhadores e trabalhadoras mais jovens, no
contexto europeu, utilizam para se definir. O uso dessa
categoria, no Brasil, tem que ser muito rigorosamente
tratado. Ruy Braga faz isso. Nos meus trabalhos, onde
pude falar mais nisso, como no Privilégio da Servidão
(2020), prefiro falar em novo proletariado de serviços.
O sistema de reprodução sociometabólico do
capital se estrutura com base em uma trípode, composta
por: trabalho assalariado, capital e Estado. Esse sistema
se tornou, segundo Mészáros, poderoso, totalizante e
mesmo totalitário. Isto o levou a uma conclusão muito
forte e importante. Vale recordar aqui que Mészáros
nasceu na Hungria, portanto viveu no equivocadamente
denominado "socialismo real", denominação que é, em si,
uma aberração, porque ninguém fala "capitalismo real".
Ou tem socialismo ou não tem, ou tem capitalismo ou
não tem.
Assim, ao estudar a União Soviética e o Leste
Europeu, ele diz fundamentalmente o seguinte: só se
elimina a engrenagem poderosa desse sistema totalizante
se houver a eliminação dos três polos desse tripé: capital,
trabalho e Estado. Não basta eliminar um pé, a proprie-
dade privada, ou dois polos, como propriedade privada e
trabalho assalariado, se eu deixar o terceiro pé, o Estado.
Se assim se proceder, o sistema tende a ser reestru-
turado.
Esta ideia é muito original. Mészáros a elaborou
muito antes da debacle soviética em 1989/91. A URSS
aboliu a propriedade privada e também o trabalho assala-
riado privadamente gerador de mais-valia. O assalaria-
121
mento tinha conformação mais estatizante, não gerava
mais-valia privadamente apropriada, mas gerava o que
ele denominou como mais-valia politicamente extraída. O
Estado se manteve, então, como uma força poderosa. A
conclusão, apresentada por Mészáros pôde constatar é
que a URSS e o Leste Europeu foram incapazes de romper
com a lógica do capital e acabaram por sofrer processo
profundo de demolição e de contrarrevolução.
Mészáros pôde tratar anteriormente do trabalho e
do capital, especialmente em Para Além do Capital, e
agora acaba de ser lançada sua obra póstuma sobre o
Estado, Para Além do Leviatã - Crítica do estado. A
respeito do trabalho assalariado, o primeiro grande
trabalho de Mészáros foi A Teoria da Alienação em Marx
(2016). Sobre o sistema de capital pós-capitalista temos
no livro Para Além do Capital (2002), uma análise densa
e ampla. E Lawrence terá a oportunidade de ler, agora, as
várias páginas que Mészáros deixou sobre a crítica do
Estado.
Mészáros percebia que havia uma lacuna teórica
que precisava ser enfrentada. Ele dizia: não há na história
do marxismo nenhum trabalho profundo que tenha
levado ao fim e ao cabo a tese marxiana e engelsiana do
Estado. Aqui faço, então, uma nota muito breve. Minha
leitura é de que a tese marxiana de crítica ao Estado
começa em 1943. Quando Marx termina a Crítica à
Filosofia do Direito de Hegel (2010), ele escreve uma
Introdução que é sublime.
Essa Introdução foi escrita em fins de 1843 e,
segundo alguns, no início de 1844. Na verdade, a Intro-
dução é uma conclusão, na qual Marx apresenta a ideia
decisiva de que o Estado não é, como dizia Hegel nos
Princípios da Filosofia do Direito (1997), uma entificação
política que vai estruturar e organizar a sociedade civil.
122
Para Marx, o Estado é um ente político que, incapacitado
de estruturar equanimemente a sociedade, vai ser, ao
contrário, responsável pela preservação de sua desigual-
dade. Será sempre um Estado de classe, salvo, diz Marx,
em raríssimos momentos excepcionais da história, em
suas fases de transição.
Nisso, o pensamento de Marx é similar ao dos
anarquistas. A partir de 1843, ele chega a dizer que uma
sociedade emancipada não pode ter vigência se for
estruturada pelo Estado, porque o Estado é uma
entificação que normatiza a desigualdade social e garante
os interesses da classe dominante. Se o nosso horizonte
é o de uma sociedade emancipada, nela não há espaço
para o Estado. Por certo, há todo um debate acerca da
transição, que é outra história.
O projeto Para Além do Leviatã, que Mészáros
desenvolve, tinha inicialmente três volumes: O Desafio
Histórico (v. 1), A Dura Realidade (v. 2) e A Alternativa
Necessária (v. 3). O plano era imenso, trabalhava desde
os gregos até autores contemporâneos. O Leviatã, de
Hobbes, é entendido como sendo a formulação fundadora
do que Mészáros vai mostrar como sendo a base do
Estado burguês do nosso tempo.
Infelizmente, do projeto geral de Para Além do
Leviatã, Mészáros só pôde terminar a primeira parte, uma
vez que em primeiro de outubro de 2017 a morte o levou.
Ele estava completamente empenhado neste trabalho.
Cansei de ver as anotações que ele fazia. Ao começo, era
um volume de 600 páginas. Eu, na minha ingenuidade,
falei "István, tenta escrever um pouco menos, umas 400
vai ser mais fácil para que mais pessoas possam ler".
Só o primeiro volume do livro, que foi publicado
pela Boitempo recentemente, tem mais de 300 páginas.
Lawrence fará uma festa sobre este volume quando puder
123
estudá-lo. Algumas coisas já estão publicadas, em A
Montanha que Devemos Conquistar, mas a grande parte
do livro é original. Há algumas anotações, nos apêndices,
das ideias que István queria desenvolver e que a doença
não lhe permitiu, além da apresentação do plano com-
pleto da obra almejada.
A questão crucial então, que Lawrence está
enfrentando e que é uma questão muito difícil, remete à
teoria do direito. Como posso entender a formulação que
Marx faz acerca da teoria do direito? No Capital (2011),
especialmente quando trata da luta pela redução da
jornada de trabalho, no volume I, Marx é categórico ao
dizer que classe trabalhadora tem que lutar para con-
quistar o direito à jornada de oito horas de trabalho
diário.
Ao mesmo tempo, na Crítica ao Programa de Gotha
(2012), um texto de 1875, afirma que o direito é, em
última instância, uma tentativa formal de equalizar, no
plano jurídico, as profundas desigualdades que se
perpetuam na anatomia da sociedade civil. Ou seja, em
última instância, o direito é legitimador da propriedade,
de tal forma que ele não é elemento em si e por si de
emancipação. Pelo contrário.
Um positivista vai perguntar: como compatibilizar
o Marx de O Capital com o da Crítica ao Programa de
Gotha? Por que Marx diz, em O Capital, ser vital a luta
pela jornada de trabalho, que deve ser consubstanciada
numa lei? Por que Engels afirma, em A Situação da
Classe Trabalhadora na Inglaterra (2008), que a luta mais
importante do movimento cartista era obrigar o parla-
mento a regular a exploração da força de trabalho? Como
compatibilizar essa formulação com a tese presente na
Crítica ao Programa de Gotha, na qual Marx afirma que
124
onde há direito há desigualdade e que só pode haver
direito para normatizar e regular situações desiguais?
A forma como leio Marx indica que há uma
similitude entre as esferas do Estado e do direito. Assim
como o Estado, na obra marxiana, é finito, o direito
também é finito. Assim, o Estado é mediação e o direito
também é mediação. Não por acaso, em outra obra, A
Guerra Civil na França (2011), Marx enfatizou que não se
tratava de eliminar o Estado burguês ao modo anar-
quista, mas de transformá-lo para depois fazê-lo perecer.
Eu citei acima uma clara confluência entre Marx
e o anarquismo. Mas há também uma clara diferença.
Não é possível demolir imediatamente o Estado burguês,
como se fôssemos implodir um prédio em alguns segun-
dos. Marx dizia: é preciso apoderar-se do Estado burguês,
na primeira fase de transição socialista, para depois fazê-
lo fenecer, definhar, perecer.
Este é o movimento difícil do direito, meu caro
Lawrence. Por que nós lutamos por ele? Quem é a favor
aqui de que tudo seja desregulamentado, de que não
tenha nenhuma regulação do trabalho, nenhum direito?
Ninguém, em hipótese nenhuma. Mas isso não deve nos
levar a cair no fetiche do Estado ou no fetiche do direito.
E a pista que Lawrence persegue, mais ampla-
mente desenvolvida em sua tese de doutorado, e que está
bem sintetizada neste ensaio, mostra como Mészáros dá
caminhos para desenvolver esta reflexão. O Estado deve
se tornar supérfluo e desnecessário, disseram certa vez
Marx e Engels, tão logo o sistema de classes também
tenha sido eliminado. Ele assim se torna quando você eli-
mina a desigualdade, existente enquanto vigora o sistema
da propriedade privada e do trabalho assalariado.
A pista que Lawrence trabalha vai ganhar uma
nova energia em seus estudos. Pode colocar um período
125
para mergulhar nessa nova obra de Mészáros, incon-
clusa. Além das categorias que ele com felicidade já
desenvolveu, como as ilegalidades destrutivas, irá
encontrar muitos elementos para seguir a discussão
nesta nova obra.
Uma última nota: no plano metodológico, há uma
discussão bastante importante. Diz: "Para examinar
dimensões individuais e coletivas desta problemática,
este trabalho não 'adota' o método dialético. Busca, em
outro sentido, operá-lo". Farei uma sugestão para refletir.
Penso que operar o método não é a expressão marxiana-
mente mais precisa. Penso que não se trata nem de
adotar, nem de operar o método.
No texto mais excepcional de Marx sobre o tema,
que está publicado em sua conhecida Introdução de 1857,
no item com o título o Método da Economia Política (2011),
ele se pergunta como perquirir as conexões mais íntimas
da matéria? No posfácio da segunda edição d'O Capital,
como Lawrence discutiu, ele distingue percurso de inves-
tigação e percurso de exposição e retoma esse debate
central na dialética marxiana, qual seja: como perquirir
as conexões mais íntimas da matéria na investigação e,
depois, como fazer sua exposição? O que é mais do que
“operar” com o método, porque a ideia de “operar” o
método pode indicar uma ideia mais instrumentalizante,
que, creio, não é a leitura que faço de Marx.
Lawrence retoma Michel Thiollent. Devo dizer que
foi meu professor na UNICAMP, entre 1976/77. Francês
que veio para o Brasil, gostou do país e ficou aqui. Até
onde eu saiba, é professor aposentado da Universidade
Federal do Rio de Janeiro e foi importante para o núcleo
crítico de estudos do trabalho existente na Engenharia de
Produção da UFRJ. A sugestão adicional que eu faço aqui
é que procure ler as pistas decisivas de Lukács em seus
126
textos de maturidade, que não chegam a ser abordados.
Lawrence basicamente trabalha com os textos de juven-
tude de Lukács, o Lênin (2012) e o História e Consciência
de Classe (2012). Devo acrescentar que não vejo uma
“ruptura epistemológica” entre os textos de juventude e
os de maturidade em Lukács, mas a efetiva equação entre
ontologia e epistemologia Lukács só consegue realizar em
Para uma Ontologia do Ser Social (2018). Indico aqui
particularmente o capítulo sobre Marx, que termina o
livro 1, e em especial o item referente ao Método na
Economia Política. Intitulado Os princípios ontológicos
fundamentais de Marx, dá ricas pistas que, penso, vão
ajudar muito a entender as tensões e relações entre
ontologia e epistemologia. Há, lá, uma equação difícil
entre a epistemologia e o objeto. O capítulo anterior ao de
Marx, que é o capítulo sobre Hegel, com o título A falsa e
a verdadeira ontologia de Hegel, ajuda muito nessa
intelecção.
Por fim, a tese central de Lawrence é de que esta-
mos vivendo uma época de ilegalidades expandidas e
contratualidades espoliativas, que encontra seu momento
especial com os levantes de Junho de 2013. Um momento
em que, como ele diz, as greves vinham se ampliando e o
descontentamento com relação ao governo do Partido dos
Trabalhadores se acentuava.
Temos que tratar com cuidado essa questão, mas
estou de acordo. Se estamos no inferno hoje, não significa
que o purgatório seja o nosso paraíso, para utilizar algu-
mas metáforas religiosas. Os governos do PT fizeram o
exercício de conciliação de classes, que Lawrence desen-
volve bem. Lembro das rebeliões e do esgarçamento
gerado por todo aquele processo, primeiro pela Copa das
Confederações, depois pela Copa do Mundo, protestos
sintetizados com a palavra de ordem "Não Vai Ter Copa".
127
Cita a crise estrutural e penso que poderia seguir
nesta linha. Estávamos vivendo um momento: a crise
iniciada em 1973, se acentuou fortemente em 2008 e
2009 e aqui chegou alguns anos depois. Vivíamos, então,
no cenário global, uma era de rebeliões, que começou com
a Tunísia, e que não se converteu em uma era de revolu-
ções. Isso gerou uma resposta muito dura do capital, que
foi o advento do que venho chamando, inspirado em
Florestan Fernandes (e lembrando Herbert Marcuse),
como era da contrarrevolução preventiva, de amplitude
global, que ocorre mesmo quando não havia risco de
revolução.
A partir deste momento, o cenário global abriu-se
fortemente para o mundo do trabalho uberizado e
plataformizado. Daqui para frente não é “menos direitos”,
mas sim “sem direitos”. Sobre as Jornadas de Junho de
2013, faltam pesquisas, há muito dissensos, como foi
bem dito, e muita coisa ainda temos para estudar.
Um outro aspecto do trabalho que eu gostaria de
destacar é o conceito elaborado de permissividades
constitucionais, decorrentes de um Estado crescente-
mente autocrático. Vai bem, pela leitura do Florestan, ao
utilizar o termo autocracia. Sugiro, neste ponto, conti-
nuar não utilizando a categoria "autoritarismo", que é
uma categoria liberal. Estado autoritário é aquele que não
é nem totalitário nem democrático. Seu fundamento
teórico é a teoria liberal.
A pista do Florestan, da autocracia burguesa,
permite pensar que nós temos a combinação de uma
autocracia burguesa com uma política devastadoramente
neoliberal. Ou seja, Lawrence fornece um conjunto de
pistas empíricas que possibilita aprofundar novos cami-
nhos para compreender as liberdades contratuais exerci-
das, bem como o desenvolvimento destrutivo de ilegal-
128
dades expandidas e contratualidades espoliativas. Essas
minhas sugestões são para incentivar a continuidade
nesta linha de pesquisa.
Debates e perguntas
Bárbara Freitas
É um prazer imenso estar aqui. Sou a Bárbara,
orientanda de mestrado do Professor Lawrence no PPGD/
UFBA. Em continuidade à pergunta do João Victor: este
véu despido de qualquer civilidade, a partir de 2013,
avança nas contrarreformas previdenciária e trabalhista.
O processo de avanço neoliberal continua, em um
contexto de Estado Social não alcançado. O que acontece
agora, por exemplo com a MP 1045?
Súllivan Pereira
Sou Súllivan, fui orientanda da Professora Isabela
Fadul e hoje sou orientanda da Professora Renata Dutra.
Agradeço à oportunidade do espaço e ao professor
Lawrence especialmente, por colocar sua tese para
críticas. Entendo que o direito do trabalho está longe de
se opor ao capitalismo, por uma vertente marxiana. É
129
uma forma de viabilizar o capitalismo. Entrei na univer-
sidade em 2014 e, desde então, as coisas só pioram. Ao
mesmo tempo, ficamos presos à reivindicação do artigo
7º da Constituição. Estamos em um momento de não
acordo, não respeito nem às normas mínimas colocadas
em um contexto já neoliberal e flexibilizatório de algumas
relações laborais. Como fugimos desse paradigma de
afirmar o direito do trabalho, numa sociedade capitalista,
sem cair num caráter reformador e de apenas defesa da
Constituição?
Ricardo Antunes
Vou tentar fazer os comentários de três pontos, de
forma breve, em diálogo aberto.
Constituição de 1988, lembro como se fosse hoje.
A meu juízo, foi a década mais importante da luta de
classes no Brasil, tirante 1960-64, que também foi muito
importante. Em certo sentido, a década de 1980 teve
movimentos de maior amplitude do que 1964. Tivemos
quatro greves gerais, criação do PT, da CUT, do MST.
Enquanto o movimento sindical europeu refluía enorme-
130
mente, o nosso avançava, com um sindicato de classe
mais arraigado nas suas bases, seja a base metalúrgica,
seja a base de trabalhadores rurais, seja o funcionalismo
público.
Na Constituinte, houve um claro momento em que
o pântano foi jogar, para usar uma expressão clássica de
Lênin, para o que hoje denominamos centrão. Um
exemplo disso foi que as classes dominantes não conse-
guiram impedir o direito de greve. Como não conseguiram
impedir esse preceito na Constituição, transferiram para
a regulamentação complementar, como Lawrence lem-
brou bem a respeito do tema da greve, com as categorias
essenciais e não essenciais, por exemplo.
Alguns dos pilares do atrelamento do sindicato ao
Estado nós não conseguimos impedir, como a unicidade
sindical e o imposto sindical, entre outros, mas foi um
momento muito importante da luta de classes no Brasil.
No século XX, a década de 1980 está entre as mais
expressivas de nossa história. Agora, Graça lembrou
bem: eu já escrevia na grande imprensa àquela época e,
se eu fosse parlamentar, eu também não teria votado na
Constituição de 1988; teríamos recusado. O PT, naquele
momento, percebeu que houve uma armação do centrão,
e por isso foi crítico em relação à proposta de Constituição
aprovada.
Uma segunda nota é para dialogar diretamente
com Graça e Lawrence. Mudei meu modo de ver a utili-
zação do termo “precariado” quando entrei neste debate
na Europa. Passei a ver esse termo como uma auto-
definição dos partícipes daqueles movimentos. De minha
parte, entretanto, mantenho o que escrevi em O Privilégio
da Servidão (2020): prefiro denominá-lo como novo
proletariado de serviços, que me parece uma melhor
conceitualização pensando na realidade brasileira, do
131
que o definir como precariado. Por certo, todos aqui
estamos de acordo que não se trata de “uma nova classe”.
O tema levaria a um debate longo, vou dar apenas
uma pista. Nós nunca tivemos aristocracia operária no
Brasil. Vejam que Marx, Engels, Rosa, Lênin, Trotsky
cansaram de falar da aristocracia operária na Europa. A
partir da erosão do Estado de Bem-Estar Social, cujo
alcance se ateve a um grupo restrito de países, você tem
o nascimento de um novo segmento do proletariado
europeu que se encontra cada vez mais à margem da
legislação social protetora do trabalho.
Na Itália, são trabalhadores e trabalhadoras que
recebiam salário por voucher; em Portugal, o que eles
chamavam de recibos verdes; na Inglaterra, o proleta-
riado que nasce com o zero hour contract. O problema é
encaixar tudo que sai lá fora aqui. Eu excluo Ruy Braga
disso, pois ele é um pesquisador muito cuidadoso. Não
faz sentido falar em um precariado, tal como existe na
Europa, como se ele se reproduzisse igualmente no
Brasil, dotado de um enorme fosso em relação ao proleta-
riado estável que se desenvolveu com a socialdemocracia.
Nos debates que participei especialmente em
Portugal e na Itália, o movimento muitas vezes se definia
como precariado e havia um confronto aberto entre este
setor e os representantes das centrais sindicais. Eu
olhava aquilo e pensava que, no Brasil, estamos distantes
disso, pois aqui não há classe trabalhadora que não seja
precarizada. Daí o cuidado que temos que ter, quando
vamos usar conceitos distintos. Eu não recuso a denomi-
nação de forma ampla, mas não vejo facticidade dela no
Brasil, tal qual ela existe na Europa.
De qualquer forma, nós reconhecemos que, com a
expansão e privatização dos serviços, o bolsão dos mais
precarizados tornou-se um laboratório para precarizar
132
ainda mais o proletariado nos serviços, na indústria e no
agronegócio. Conceitualmente, entendo que a precari-
zação é uma processualidade. A noção de precariado traz
uma questão empírica, conceitual e nos obriga a pensar
na desigual e combinada divisão internacional do tra-
balho. Vale recuperar a tese rica de Marx, que Trotsky tão
bem aprofundou, segundo a qual o mundo do trabalho é
desigual e combinado.
O proletariado europeu viu o nascimento de um
polo que não para de se expandir, autodenominado
precariado. Por isso, também não gosto da divisão que os
diferencia pela qualificação. Eu conversei com trabalha-
dores e trabalhadoras ultraqualificadas e elas eram tão
precárias (em relação à ausência de direitos) quanto
muitos imigrantes sem maior qualificação. Quase todos
os meus colegas entre 35 e 50 anos que trabalham na
universidade na Europa, seja Itália, seja Portugal, seja
Inglaterra, quase todos são precários, não estão na
carreira efetiva das universidades, mas perambulam de
uma parte a outra atrás de convênios que lhes permitam
trabalhar por um determinado período de tempo.
Exemplifico com a pessoa que está em Veneza e
faz um projeto. O projeto é aprovado, ela consegue
recurso, trabalha um ano e o projeto acaba. Ela vai para
Nápoles, porque conseguiu um sindicato que apoia um
novo projeto; termina o projeto em Nápoles e vai para
outro lugar. Não consegue ficar como professor ou
professora estável. Com funcionários das universidades
onde trabalhei ocorre algo similar. Há funcionários
estáveis em pouco número e vários intermitentes, que
trabalham algumas horas por dia ou semana. Esse traço
nos ajuda também a pensar o precariado europeu.
Última coisa que quero falar, me beneficiando da
leitura da tua tese, de um ano e meio atrás. Você não diz
133
que a precarização começa em 2013 e é importante
salientar aqui. A precarização estrutural do trabalho em
escala global começa pra valer, em escala planetária, a
partir da crise de 1973 e se acentua em 2008. É possível
pensar 2013 como um momento importante dessa
mutação, que é um processo. Em 2013, tudo que era
sólido começou a derreter. As lutas sociais, o governo do
PT, as direitas colocando a tropa na rua... Bolsonaro foi
o único candidato, em 2018, que dizia que era contra o
sistema.
Com relação à última questão, da Súllivan, eu
diria que esta é uma questão complexa. Se formos ler o
Pachukanis, no fundo o direito é burguês. O direito nasce
quando você tem que criar algo para dizer que a
propriedade é intocável. Agora, é o direito burguês em
uma sociedade que tem luta de classes e este elemento é
decisivo, pois nela há contradição.
Engels estava errado, em 1844, quando disse que
a classe trabalhadora teria que conquistar, pressionar e
lutar para que a lei da jornada de oito horas fosse obtida?
Não, ele não estava errado. O que acho que é importante
e talvez possa te ajudar é o seguinte: direito e Estado são
categorias de mediação e, portanto, de transição. Em
uma sociedade efetivamente emancipada, não há lugar
para eles.
A mesma similitude me permito fazer em relação
ao Estado. A ideia de transformar o Estado burguês em
um Estado comunal está claramente indicada nas obras
Guerra Civil na França (2011) e Crítica ao Programa de
Gotha (2012), que podem dar boas pistas. Você recorre ao
Estado, mas deve demolir os elementos que tipificam o
Estado burguês e avançar não para seu fortalecimento,
mas seu perecimento. Por certo, esse é um processo de
134
transição muito complexo e tem a ver também com as
condições particulares de cada país.
Qual a proposta da Comuna de Paris? Não tem
exército permanente, não tem Judiciário permanente, os
mandatos dos representantes são revogáveis a qualquer
tempo e não a cada quatro anos. Quer dizer: você começa
a desestatizar, demolir os aparatos de repressão do
Estado, até que, em uma suposta sociedade sem classes,
o Estado possa definhar.
Agora, veja bem: em uma sociedade emancipada
e sem classes, nós precisamos de uma lei que nos obrigue
a almoçar, jantar e tomar café da manhã? Não. Essa
normatização só existe quando precisamos preservar as
desigualdades. Temos que pensar a finitude do direito e
do Estado junto à processualidade dada pela luta de
classes. Isso porque ambos foram criados para legitimar
a propriedade privada e a sociedade burguesa. Aquela
emancipada, ou terá outro desenho, ou emancipada não
será.
Referências
135
LUKÁCS, Gyorgy. História e Consciência de Classe. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
136
Rompendo Dualidades:
contratualidade espoliativa e a precarização
social do trabalho como regra
Graça Druck 1
Primeiras considerações
137
dade da pesquisa e a dedicação no campo do trabalho.
Saúdo a interlocução que fazem com o debate das
ciências sociais, que é uma marca do grupo, especial-
mente com a sociologia do trabalho. Quero aqui fazer
primeiro esta saudação ao grupo.
Quem me apresentou o Lawrence, não sei se ele
lembra, foi o próprio Ricardo Antunes. Não pessoalmente,
mas ano passado o Ricardo disse assim: “Graça, eu
conheci um rapaz lá do Paraná, que fez concurso aí pra
UFBA, ele deve entrar por esse período, parece que ele
está quase entrando aí na UFBA. Vocês não sabem quem
é este rapaz...”. Ele fez um alto elogio: “(...) vocês estão
ganhando aí uma figura excelente, vai ser uma grande
contribuição”. E aí eu fiquei curiosa com a novidade. Logo
depois a Isabela me disse: “Olha, está entrando mesmo,
teve a homologação do concurso e o Lawrence vai entrar”.
Pensei que deveria ser o rapaz de quem o Ricardo havia
falado e era o próprio.
Ainda não tive um convívio mais próximo com o
Lawrence, a não ser nas atividades virtuais do grupo de
pesquisa Trabalho, Precarização e Resistências. Nos vi-
mos muito rapidamente nas manifestações, foi o mo-
mento em que a gente se conheceu pessoalmente. Mas eu
quero em primeiro lugar dizer que, deste pouco tempo
que a gente conhece o trabalho do professor Lawrence,
sua disposição, sua combatividade em todos os planos,
no plano acadêmico, no plano político, já está compro-
vado, com uma incrível rapidez, que foi um ganho muito
grande para a Universidade, para o nosso grupo de
pesquisa, para a Faculdade de Direito e para o grupo que
vocês constituíram.
138
1. Sobre a análise sociopolítica e a concepção de
“contratualidade espoliativa”
139
gente tem uma tradição, ao discutir o mercado do
trabalho no Brasil, em nos prendermos a uma determi-
nada dualidade entre trabalho formal e trabalho informal.
Como se fossem quase opostos, como se se constituíssem
em separado, fatias ou espaços extremamente diferentes,
que se opõem dentro de uma determinada realidade do
trabalho brasileiro.
Considero que a formulação sobre contratualida-
des espoliativas rompe com essa dualidade porque ela vai
mostrar que o campo do formal, daquilo que se torna legal
a partir atuação do Estado e do Poder Judiciário, especi-
almente, é a expressão do que a gente tem discutido como
um processo de precarização social do trabalho, que vem
atingindo a todos os trabalhadores.
Ou seja, as contratualidades espoliativas rompem
com a dualidade de se pensar o trabalho formal como se
fosse o trabalho protegido (e não precário) e o campo do
trabalho não protegido como se fosse o campo dos sem
direitos (e precário). Então esta é uma grande contri-
buição da tese de Lawrence, pois é preciso compreender
melhor os processos históricos em curso e romper com
essas dualidades.
No debate que tenho desenvolvido sobre preca-
rização do trabalho, um dos meus objetivos é exatamente
romper com as dualidades e mostrar a ideia, que eu vou
desenvolver mais para a frente, da precarização do traba-
lho como um processo, como um movimento, e é um
movimento contínuo que atinge absolutamente a todos os
segmentos de trabalhadores. Lógico que com uma hetero-
geneidade e hierarquização no interior desse processo,
mas é um processo social geral, não só brasileiro, mas
também mundial.
Quando classifica essas contratualidades, este
tipo de relação contratual, como espoliativas, penso que
140
Lawrence se inspira em vários autores, dentre eles, o
David Harvey (2004), que analisa o capitalismo contem-
porâneo e a acumulação por espoliação. Acho fundamen-
tal compreender essa historicidade do capitalismo, dife-
renciando momentos e conjunturas e mostrando que a
espoliação representa um violento retrocesso.
A ideia da violência no sentido da destruição
daquilo que já tinha sido avançado, que já tinha sido
construído, que já tinha se conquistado. Então esse
elemento é muito importante, de se pensar a espoliação
no processo brasileiro, exatamente neste sentido. Está lá
numa notinha de rodapé que quando se usa o termo
mercantilização trata-se da acumulação por espoliação.
Isso indica, na minha opinião, que a ideia de espoliação
como violência, negação e retirada de direitos, ou seja,
um processo destrutivo, caracteriza o formato que o
capitalismo assumiu nas últimas décadas, sob a
hegemonia neoliberal.
141
crise da democracia liberal burguesa, um processo em
que as instituições mais típicas estão sendo questio-
nadas, como o Poder Judiciário, Poder Legislativo e Poder
Executivo; todo o conjunto de instituições que formam o
aparato do Estado está sendo colocado em questão, das
mais diferentes formas. Uma crise que é mundial e que
tem desembocado em movimentos ou mesmo governos de
cunho fascista ou neofacista.
Então, a meu ver, esta é uma discussão impor-
tante: pensar a crise da democracia burguesa, a crise do
Estado liberal e como expressão dela também o neofas-
cismo. Este é um dos pontos que eu acho importante ser
aprofundado nas próximas pesquisas.
É feita também menção ao neoliberalismo e a este
processo, para compreender a violência do capital no
processo de acumulação por espoliação. O neoliberalismo
tem um lugar de destaque nisso, porque ele se constitui
em um novo arranjo, em uma nova configuração, vamos
dizer assim, de tudo. Das relações econômicas, mas não
só econômicas; também no plano da subjetividade mês-
mo, das relações entre as classes, da relação e da
constituição do formato do Estado.
Nós temos um Estado, hoje, que é um Estado
tipicamente neoliberal e nisso ele é muito diferente do
Estado Social, dos chamados Estados do Bem-Estar
Social. Lawrence levanta essa discussão. A discussão que
faz sobre o Estado é superimportante no debate geral no
campo marxista e o Mészáros, sem dúvida nenhuma, tem
contribuições decisivas aí. Mas tem uma discussão que
eu não sei se o Mészáros faz neste último livro, que é a
discussão sobre as mudanças que o Estado vem so-
frendo, pelas quais ele vai se metamorfoseando, também
como expressão das correlações de forças, do embate, das
lutas de classe.
142
O Estado de Bem-Estar Social foi constituído no
pós-Segunda Guerra Mundial, limitado a alguns países
europeus e, se não foi uma experiência em toda a Europa,
muito menos nos países da periferia, que é o nosso caso
aqui. Mas ele é fruto de um formato de Estado com um
conjunto de direitos, inclusive de disputas políticas, de
disputas de classe, em que se refletiu ali um pacto social,
uma relação na qual se constituiu um determinado tipo
de Estado e de política.
A minha preocupação está muito nisso, de a gente
pensar um pouco a relação entre a estrutura e as conjun-
turas históricas. Sem dúvida nenhuma, vem sendo
destruído aquele Estado social ou Estado social-
democrata, porque o Estado que nós temos hoje no
mundo inteiro tem uma diferença enorme. Vamos pegar
aqui o caso brasileiro, em que nem chegou a se constituir
um Estado de Bem-Estar Social, nos moldes dos estados
europeus: a diferença é enorme, imensa, porque esse
Estado neoliberal mostra sem dúvida nenhuma o
aprofundamento da crise do capital. Ele é um Estado que
gera uma completa destruição social.
No Brasil, o neoliberalismo se instala com força
nos anos 1990, no governo do Fernando Henrique
Cardoso. Nos governos do PT há um arrefecimento das
políticas neoliberais, mas não houve uma ruptura com o
neoliberalismo e, a partir do golpe de 2016, sem dúvida
nenhuma há um recrudescimento, uma radicalização
violenta do neoliberalismo no Brasil. Com a eleição do
Bolsonaro, ocorre o casamento do neoliberalismo com o
neofascismo, quer dizer, não poderia ser coisa pior do que
isso, então acho que é um elemento importante pensar
essas conjunturas históricas que vão metamorfoseando a
configuração do Estado.
143
Para entender isso, eu acho que aí teria que entrar
um elemento que está e não está no texto; ele está
implícito nas análises, que é a discussão sobre classes
sociais. Onde estão as classes sociais? Como – nesta
disputa que existe pelo direito, nestas possibilidades que
são constituídas a partir do Poder Judiciário, das contra-
tualidades espoliativas, da contrarreforma trabalhista ou
da nova reforma trabalhista com a Medida Provisória
1045 que, felizmente, foi derrotada, – se estabelecem
determinadas correlações de força entre as classes so-
ciais, que muitas vezes, a gente tem uma certa dificul-
dade de expor em nossas análises?
Embora tenhamos um conceito de classe, ou um
conceito de Estado numa perspectiva marxista, temos
dificuldades para analisar como isso se expressa no
campo histórico e nas formações sociais. Acho que este é
um elemento importante de se pensar mais, esta relação
entre as classes. Por exemplo, a análise que Lawrence faz
da Constituinte de 1988, em que usa Florestan
Fernandes e outros autores que fazem um balanço da
Constituinte. Bom, eu não tenho nenhuma grande leitura
sobre isso, li poucos textos a respeito, lembro inclusive
que na época o PT não assinou, estão lembrados?
144
desgaste e de crise do próprio regime militar, eu fico me
perguntando o seguinte: seria possível outra Consti-
tuinte, com outros direitos, naquele processo histórico,
naquela conjuntura histórica que nós vivíamos?
Na realidade, a impressão que eu tenho hoje é de
que todos nós de certa forma caímos um pouco em alguns
fetiches, como o fetiche da Constituinte. Nós estamos
vendo que as ações do Estado neoliberal estão destruindo
todos aqueles direitos que estavam lá na Constituição de
1988 e Lawrence passa a ter um debate de preservar
quase de forma absoluta a Constituição de 1988. Então
eu acho ótimo, porque está mostrando que não é bem
assim, que a Constituição deixou brechas ou permissivi-
dades, que ela tem um conjunto de elementos que são
contraditórios e que ela mesma aprovou. Eu fico me
perguntando: houve ou não houve conquistas naquele
momento?
No campo das relações de trabalho, temos
dificuldades de identificar grandes avanços, é verdade.
Mas na área dos direitos sociais, eu cito o caso do SUS,
Sistema Único de Saúde, por exemplo, que tem uma
importância crucial a meu ver, ainda mais em uma
sociedade como a brasileira. O SUS representa, simboli-
camente e na sua existência real, na sua prática, aquilo
tudo que é antineoliberal. Eu tenho acompanhado um
pouco e lido sobre o “movimento da reforma sanitária”,
que gerou o SUS. Outro dia assisti a uma live com alguns
dos principais dirigentes do movimento da reforma
sanitária. Ali estavam o Gastão Wagner, da UNICAMP, o
Jairnilson Silva Paim, do ISC (Instituto de Saúde
Coletiva/UFBa), a Sonia Fleury, que foi professora da
FGV no Rio. Todos intelectuais, pesquisadores, profes-
sores e militantes.
145
O SUS foi fruto de uma grande luta, uma grande
militância, mas havia divergências no interior deste
movimento e um grande debate interno. Eu acho que a
gente deveria dar uma lida no que se produziu sobre a
reforma sanitária. Apesar de o termo ser “reforma
sanitária”, tinha perspectivas no interior deste movi-
mento de ruptura com a ordem do capital e com aquele
Estado. Havia uma perspectiva socialista no interior da
luta e do movimento. Acho interessante se pensar sobre
isso, também do ponto de vista da forma como se
organizou. Foi um movimento horizontalizado, pois parti-
cipavam as universidades, instituições científicas,
centrais sindicais, sindicatos, movimentos sociais, ou
seja, um movimento que é fundamental buscar resgatar
nos dias de hoje.
Existe uma discussão de que o movimento da
reforma sanitária teria sido cooptado. A reforma sanitária
virou o SUS e morreu como movimento, no momento em
que o SUS se estabeleceu a partir da Constituinte de
1988. Então há essa discussão, que é um elemento
contraditório, porque ao mesmo tempo em que se tem
uma conquista, que é o Sistema Único de Saúde, ela
representa também aquilo que era possível dentro da
ordem do capital, dentro da ordem burguesa naquele
momento.
Se a gente achar que as perspectivas de saída da
atual crise estão nos sindicatos e nos partidos, estaremos
compartilhando de mais um fetiche. Porque é certamente
um fetiche; a gente fetichiza muito o sindicato, assim
como a gente fetichiza muito os partidos. Evidente que
sindicato e partido, em uma sociedade democrática, são
fundamentais e necessários, mas insuficientes, ainda
mais no momento de crise da democracia. Então pensar
nesta horizontalidade que constituiu alguns movimentos,
146
dentre eles este movimento da reforma sanitária, é
bastante interessante.
Essas são algumas questões nas quais o trabalho
de Lawrence me fez pensar. Questões sobre neoliberalis-
mo, democracia, Estado, o caso da constituinte brasi-
leira, a sua preocupação permanente sobre o ponto de
vista de um método para o Direito do Trabalho e a sua
própria concepção de Direito do Trabalho, que está posta
aí e que eu acho extremamente importante. Esta discus-
são que faz sobre a relação contratual, o que isso
representa de fato, tanto no ponto de vista de uma teoria,
como sobre o ponto de vista destas mudanças que vêm
ocorrendo no plano da regulação, especialmente sobre o
trabalho.
Sobre as manifestações de junho, não sei se o
Ricardo vai lembrar, mas em pleno 2013 houve um con-
gresso da ALAST (Associação Latino-Americana do
Trabalho), que foi na USP. Nele, propusemos uma mesa
sobre o que estava acontecendo, eu, o Ricardo e o Marco
Aurélio Santana do Rio, uma mesa fora da programação,
porque a programação já tinha saído. Eu lembro que as
manifestações foram em junho e o congresso foi em julho,
uma data bem próxima, ainda no calor dos aconteci-
mentos. A mesa foi muito concorrida, tinha muita gente,
todo mundo querendo debater. O tom da mesa, na época,
foi muito nesta perspectiva que Lawrence coloca. Ou seja,
junho como uma grande revolta popular, uma grande
rebelião, mas os participantes da mesa também mostra-
vam as contradições internas que o movimento tinha
tomado, em função de posturas negativas em relação aos
movimentos organizados; uma má vontade com os parti-
dos e com os sindicatos, que apareceu no interior do
movimento e que foi alimentada pelos setores liberais,
começou a se expressar nas manifestações. Acho que são
147
colocados os aspectos principais, mas para mim o mais
importante de tudo colocado ali foi sua tese de que as
manifestações de junho são um marco no sentido de que
elas representam um ponto de inflexão e esgotamento da
política democrático popular, com a negação dos gover-
nos do PT e o caminho aberto para o neoliberalismo, para
a retomada e o reforço das políticas destrutivas no campo
social.
A ideia do mito da austeridade é outra coisa
impor-tante de se pensar e discutir, pois este debate
sobre a austeridade está vinculado à sua compreensão do
Estado destrutivo e ele se alimenta de uma certa ideologia
da austeridade no sentido da moralização, do equilíbrio
das contas públicas, o que é um grande mito e um grande
equívoco. Na realidade, as políticas de austeridade são as
políticas permanentes de ajuste fiscal do neoliberalismo,
políticas de classe que tem por objetivo penalizar os
trabalhadores, subtraindo direitos, privatizando bens
públicos e transferindo recursos públicos para os bancos.
Penso que o elemento principal do que apresentas é este
marco, no sentido de que se esgotou uma era e se abriu
outra no país.
148
flexível. Penso que é preciso tomar um certo cuidado com
essa denominação. Não acho uma boa formulação.
Considero que o Ricardo Antunes (2018) é mais cuida-
doso quando se refere ao precariado. A origem do termo
vem da combinação entre proletariado e precário, e o que
me preocupa é que a noção de precariado parece
substituir a de proletariado, dando margem a compre-
endê-la como nova classe.
Embora autores como Ruy Braga e Giovanni Alves
não considerem que se trata de uma nova classe, como
defende Guy Standing (2013), mas a definem como um
novo segmento da classe, eu acho que a formulação não
é útil para a gente. Quando a gente denomina o
precariado pensando nos novos trabalhadores precariza-
dos – a exemplo dos trabalhadores de plataforma,
uberizados, digitalizados, enfim, a servidão digital e o
proletariado de serviços, como define Ricardo Antunes,
produto de uma nova organização capitalista do trabalho,
propiciada pelas tecnologias de informação – corre-se o
risco de uma visão reducionista da precarização do
trabalho.
Penso que existem dois grandes movimentos em
curso. Um movimento constituído pela regulamentação
do Estado, através das contrarreformas, e o outro movi-
mento dado pelas tecnologias de informação, que definem
uma nova forma de organização do trabalho. Embora
tenham naturezas diferentes, ambos querem negar a
existência do trabalho assalariado, ou seja, querem
encobrir a relação capital-trabalho, e negar, portanto, a
própria condição de classe dos trabalhadores. Assim, a
precarização do trabalho, também como estratégia de
dominação, atinge todos. Então a denominação “preca-
riado” implica numa separação: só compõem este
precariado os trabalhadores jovens, por exemplo, que não
149
tiveram ainda emprego, que só fazem “bicos”, ou que
agora estão uberizados etc. Como se os demais
trabalhadores, inclusive os servidores públicos, nós, não
fossem também precarizados.
Por isso que eu não gosto desta formulação e
insisto em dizer que é um processo de precarização do
trabalho, que é geral, atinge absolutamente a todos os
segmentos, mesmo que em graus diversos. Porque não se
pode reduzir a precarização social do trabalho aos limites
da lei, ou seja, ao campo do Direito do Trabalho. A partir
das pesquisas empíricas realizadas no Brasil, a gente
definiu um conjunto de dimensões da precarização do
trabalho. Uma delas e, sem dúvida nenhuma a mais
importante, é a do campo dos direitos e do Direito do
Trabalho (nas formas contratuais, de vínculo, de
emprego, de trabalho); mas há outras dimensões, como o
local de trabalho (nas formas de organização e gestão do
trabalho); a saúde dos trabalhadores (adoecimentos e
acidentes); a representação sindical (pulverização e
enfraquecimentos dos sindicatos); e a capacidade coletiva
de reação dos trabalhadores. Ou seja, como eu tenho
escrito, há múltiplas dimensões do processo e eu acho
importante a gente pensar nesta precarização social como
esse movimento, esse processo que atinge a todos,
mesmo que de forma heterogênea, hierarquizada e assim
por diante.
Então era isso que eu queria comentar e, por fim,
quero fazer uma pergunta bem provocativa sobre as
perspectivas que estão colocadas. Nós estamos em uma
situação, no Brasil, em que a gente teve no dia 18 de
agosto o chamado para uma greve geral do setor público
e privado. Pela primeira vez eu vi as centrais sindicais,
praticamente todas, aderirem a este chamado e em cima
da reforma administrativa (PEC 32), da reforma do
150
Estado proposta pelo governo. Isso nunca tinha aconte-
cido, porque em vários momentos houve mobilização e
greve dos servidores públicos e as centrais sindicais
nunca tiveram forte presença, quando não estiveram
ausentes.
Ao mesmo tempo, a greve geral foi um movimento
muito fraco, aquém das expectativas. Então fica a ques-
tão: como é que estão colocadas as perspectivas de
resposta a esta violenta crise política, uma crise política
do governo Bolsonaro, em termos do embate das classes
sociais e dos movimentos possíveis no próximo período?
5. Debates e perguntas
Bárbara Freitas
É um prazer imenso estar aqui. Sou a Bárbara,
orientanda de mestrado do Professor Lawrence no PPGD/
UFBA. Em continuidade à pergunta do João Victor: este
véu despido de qualquer civilidade, a partir de 2013,
avança nas contrarreformas previdenciária e trabalhista.
O processo de avanço neoliberal continua, em um
contexto de Estado Social não alcançado. O que acontece
agora, por exemplo, com a MP 1045?
151
Súllivan Pereira
Sou Súllivan, fui orientanda da Professora Isabela
Fadul e hoje sou orientanda da Professora Renata Dutra.
Agradeço à oportunidade do espaço e ao professor
Lawrence, especialmente, por colocar sua tese para
críticas. Entendo que o direito do trabalho está longe de
se opor ao capitalismo, por uma vertente marxiana. É
uma forma de viabilizar o capitalismo. Entrei na univer-
sidade em 2014 e, desde então, as coisas só pioram. Ao
mesmo tempo, ficamos presos à reivindicação do artigo
7º da Constituição. Estamos em um momento de não
acordo, não respeito nem às normas mínimas colocadas
em um contexto já neoliberal e flexibilizatório de algumas
relações laborais. Como fugimos desse paradigma de
afirmar o direito do trabalho, numa sociedade capitalista,
sem cair num caráter reformador e de apenas defesa da
Constituição.
152
Graça Druck
Acho que o Ricardo já respondeu a preocupação
que Súllivan levanta. Na conjuntura em que nós estamos,
defender o Direito do Trabalho, defender a Constituinte,
defender o Estado de Direito é extremamente revolucio-
nário. Estamos em uma situação de Estado de exceção,
então essa é uma questão que a gente precisa pensar.
Contra este Estado de exceção eu vou defender, sim,
aquilo que já tinha conquistado, sem perder a perspectiva
de ir mais além.
Evidentemente é preciso fazer a crítica aos limites
deste Estado de Direito, aos limites do próprio Direito do
Trabalho, mas eu me agarro e defendo com unhas e
dentes os direitos contra as reformas trabalhistas e da
previdência; é uma postura que nós precisamos ter.
Ricardo citou Engels e Marx e O Capital, quando discute
a necessidade de regulamentar a jornada de trabalho e
uma legislação fabril, que eram fundamentais para
garantir o mínimo de condições de trabalho, até mesmo
para que os operários pudessem lutar.
No caso do Brasil, é preciso pensar um pouco
sobre a situação do país como país dependente, país da
periferia, um país subordinado dentro desta globalização.
Ou seja, acho que o Lawrence apontou uma questão
muito interessante para a qual a gente tem que olhar.
Como é que ocorrem movimentos de avanços, como o que
está acontecendo no Chile com a Constituinte? Acho que
é importante a gente olhar para outras experiências na
própria América Latina.
A gente sempre faz muita referência ao mundo
europeu e pouco à América Latina, e eu me incluo nisso.
Nós, brasileiros, fazemos isso, então é preciso olhar mais
as experiências latino-americanas sob todos os aspectos.
A Argentina mesmo tem movimentos riquíssimos, como
153
os piqueteiros, um forte movimento de desempregados, o
movimento das fábricas recuperadas que são formas de
organização muito criativas e diferentes das formas
tradicionais de organização, que tiveram um papel muito
importante, mas não foram suficientes para barrar a
força do neoliberalismo.
São movimentos que se mantiveram, que têm uma
certa sustentação. Eles não se esgotaram mesmo na era
neoliberal. Tu vais para a Argentina... Eu adoro muito ir
à Argentina, a Isabela fez um pós-doutorado e morou lá.
É uma loucura aquela Buenos Aires. Tem manifestação
de rua todos os dias, é uma coisa impressionante. Há
uma combatividade permanente. É uma situação muito
diferente do caso brasileiro, historicamente etc., mas a
gente precisa olhar mais para os países da América
Latina.
Eu acho que é isso, Súllivan: não adianta tu
quereres botar abaixo o Estado burguês, abaixo o capita-
lismo, sem perguntar qual é o contexto, qual é a
conjuntura histórica que nós estamos vivendo, quais são
as condições que nós temos e que estão colocadas para a
gente. O Brasil nunca teve um Estado Social efetivamen-
te. Teve um conjunto de políticas sociais, historicamente
muito limitadas, mas o neoliberalismo entrou destruindo
tudo. O restabelecimento de um Estado Social na conjun-
tura mundial que nós vivemos, não só brasileira, vai
depender de muita luta e de muitas rupturas.
Por isso que eu brinco: olha, lutar contra este
Estado de exceção e pelo restabelecimento do Estado de
Direito é uma luta revolucionária hoje, diante do contexto
que nós estamos vivendo, e não uma luta reformista. É
lógico que depende muito da perspectiva de cada um. Se
o limite é a social-democracia, que seja o limite da social-
154
democracia, mas quem acha que é possível superar tem
que colocar esta perspectiva.
A segunda questão, do João Pedro, ele fala da
limitação das formas mais tradicionais de organização. A
questão dos sindicatos e partidos em relação com o
Estado... Tem que relativizar um pouco isso, embora
evidente que pesa, especialmente o caso dos sindicatos.
Mas vejam, o Ricardo acabou de falar que nos anos 80
tivemos grandes mobilizações com os sindicatos ainda
atrelados ao Estado. No entanto, isso não foi um impedi-
mento para que se construísse a CUT, por exemplo.
Embora a CUT tenha sido fruto de um movimento que
nasceu por fora da legislação sindical e se constituiu
como movimento.
Por isso que eu digo que, às vezes, a gente
fetichiza muito os sindicatos. Se olharmos mais as dire-
ções sindicais na relação com o Estado, mais do que a
instituição sindical, veremos que no período dos governos
petistas, houve um grau de cooptação das direções
sindicais arrasador. E eu até entendo que um dirigente
sindical petista ou lulista tivesse dificuldade de criticar o
Lula. Dei aula para vários, tanto no curso de Ciências
Sociais, como em formações mais amplas, e eles tinham
dificuldade de criticar o Lula, porque o Lula era a
representação maior da classe trabalhadora. Na cabeça
deles, era a grande liderança do partido e naquele
momento o Presidente da República.
Havia uma dificuldade enorme de fazer este
enfrentamento e eu até compreendo isso. Mas o problema
foi a forma como o PT foi atuando, que não foi só durante
o processo em que o Lula foi Presidente da República,
mas mesmo antes. Quer dizer, o partido foi se institucio-
nalizando cada vez mais, foi abandonando o trabalho de
base, trabalho este ocupado hoje por grande parte das
155
igrejas evangélicas. E este é um dos grandes problemas
de base de sustentação do governo Bolsonaro e do bolso-
narismo no Brasil.
O PT e as igrejas católicas tinham trabalhos de
base importantes e foram substituindo esse trabalho pela
militância no governo e no aparato partidário. Então
temos um processo que mudou radicalmente esta relação
com os movimentos de base propriamente ditos, que de
certa forma está sendo retomado agora. É verdade, há
segmentos importantes de esquerda ou setores mais
progressistas, próprios da igreja católica, que estão
retomando estes movimentos de base, que eu acho que
são fundamentais.
Mas as direções políticas, tanto dos sindicatos
como do partido que esteve no poder, o PT, acabaram
contribuindo muito para uma situação de transformação
e, vamos dizer assim, de fragilização do sindicato. É
verdade também que a própria reestruturação do capita-
lismo levou a isso. Evidente que todo o processo de
reestruturação produtiva que a gente vem sofrendo há
décadas levou a uma fragmentação violenta da classe
trabalhadora e, portanto, das suas representações
sindicais. Então temos os dois movimentos aí que
precisam ser analisados.
Referências
156
ALVES, G. Precariado e “proletaróides” – Uma nota
metodológica. 2014. Disponível em:
<http://blogdaboitempo.com.br/>. Acesso em: 05 abr
2022.
157
Ilegalidades Destrutivas e Luta por Direitos
159
investigação que forneça elementos para pensar o direito
do trabalho na situação política brasileira. Uma pesquisa
que ganha sentido quando coletiva e em diálogo com
nossa práxis cotidiana.
Este processo me desafiou bastante e eu fico feliz
que o resultado dele, na formulação sobre contratual-
dades espoliativas e mobilizações coletivas, traga elemen-
tos para a nossa discussão sobre o presente e o futuro
das lutas sociais em nosso país. A conversa com a
professora Graça e o professor Antunes me honram e me
dão energia para a continuidade dos trabalhos, pela
generosidade com que leem e apostam conjuntamente na
elaboração que venho construindo.
Eu vou tentar responder, mas as minhas respos-
tas são em alguma medida uma concordância com o que
foi trazido então sobre o método lukacsiano e uma certa
tradição marxista hegeliana, como podemos chamar
aqueles que temos alguma relação com a reflexão de
Lukács sobre o Estado. Tenho feito aproximações cuida-
dosas e iniciais, então recebo com muita alegria a
indicação de leitura dos textos da Ontologia do Ser Social
(2018), porque de fato sou muito mais próximo de Lênin
(2012) e de História e Consciência de Classe (2003).
Foram os dois textos que eu li com mais cuidado e sobre
os quais pude fazer uma revisão dos comentadores.
Estamos falando de grandes autores e grandes
textos. A aproximação à Ontologia eu comecei algumas
vezes, mas entendo que uma reflexão mais madura é um
desafio de longo prazo, preferencialmente a ser realizado
junto ao grupo de pesquisa, com outros colegas. Já
tivermos esta experiência no Núcleo de Direito Coopera-
tivo e Cidadania, do PPGD/UFPR, quando lemos
Mészáros por dois anos. A publicação do novo livro de
Mészáros também nos provoca a reeditar esse tipo de
160
iniciativa. Na tese, tentei elaborar uma interpretação
sobre elementos de teoria do Estado que Mészáros
trabalha na Montanha que Devemos Conquistar (2015), no
Para Além do Capital (2011), em algumas palestras e em
outros escritos, nos quais trabalha com a ideia de
ilegalidades destrutivas, algo que certamente é revisitado
no novo livro.
Agradeço também pela indicação a respeito do
verbo operar. Concordo que o método e as técnicas de
pesquisa não se reduzem a instrumentos, manejados
para uma análise específica. Em outro sentido, merece
relevo a diferença estabelecida no posfácio d’O Capital
(2011), entre modo de investigação e modo de exposição.
Tentei abordar esta diferença no texto e concordo que o
desafio da pesquisa não é apresentar um conjunto de
estudos crus, mas os resultados de um processo de
investigação, na forma de um movimento do objeto nas
suas conexões internas.
Sobre as questões que a professora Graça levanta,
eu também agradeço muito. Na defesa do memorial no
concurso público para professor de Direito do Trabalho
da Faculdade de Direito da UFBA, mencionei que
pretendia participar do grupo Trabalho, Precarização e
Resistências, coordenado pela professora. Isso obvia-
mente era uma ousadia, pois não sabia se eu seria aceito,
mas já sabia que gostaria muito de participar deste
espaço e do TTDPS. Conhecidos como espaços de
excelência, comprometidos com a crítica marxista do
processo de precarização social do trabalho, são espaços
cuja produção há muito constroem as condições de
possibilidade para que meu trabalho exista e faça
sentido. Fico muito feliz com o acolhimento generoso que
recebi e com as discussões que temos feito desde então,
sob a coordenação da professora.
161
É fundamental pensar que a Constituição de 1988
– eu concordo com a professora – tem avanços. Ela
desenha um Estado Social, em especial no campo da
seguridade social, e tem importantes avanços no reco-
nhecimento e proteção de povos tradicionais e originá-
rios. Concordo também que o movimento sanitarista
merece atenção. O tema escapou aos objetos de estudo
que até então desenvolvi, mas tenho muita curiosidade
de investigá-lo de forma mais profunda.
Na tese e no texto, direcionei um olhar para o
campo do trabalho na Constituinte e, nesse universo, me
parece que tivemos aquilo que Orlando Gomes e Elson
Gottschalk (1995) denominam como uma espécie de
constitucionalização do que já havia na CLT, acompa-
nhado de uma leitura da Constituição conforme a CLT,
em inversão interpretativa ou hierárquica sublinhada
pela professora Aldacy Coutinho (2016), uma referência
fundamental. Vale dizer que, na prática, logo após a
Constituinte já começou a se desenvolver o movimento de
desconstitucionalização dos direitos sociais do trabalho,
em disputa legislativa e hermenêutica sublinhada, entre
outros, por Souto Maior (2017).
Souto diz que logo após a constituinte tivemos já
a Lei de Greve que a limita, sob o pretexto de regula-
mentação, e faz um estudo dos primeiros textos nas
Revistas do Trabalho da LTR. Mostra como os doutrina-
dores juslaboralistas, logo após a Constituinte, já vinham
dizendo que a Constituição tinha adotado a negociação
coletiva como centro ou tinha adotado a ideia de
flexibilização como centro do ordenamento juslaboral.
Isso me parece demonstrar, por um lado, que a
constituinte manteve brechas, aberturas, permissivida-
des constitucionais, como venho discutindo a partir de
162
Florestan, ao não dotar de rigidez os direitos sociais do
trabalho, como fez em outras áreas.
Podemos ilustrar com o tema, por exemplo, da
despedida arbitrária ou sem justa causa e, também, pela
ausência de uma uniformização do trabalho sob o regime
de emprego, com a cisão entre trabalhadores e trabalha-
doras urbanas, por um lado, e trabalhadoras domésticas,
por outro. Esta ambiguidade ou amplitude da liberdade
contratual é explorada desde a década de 1990, cresce e
ganha contornos definitivos e mais robustos na contrar-
reforma trabalhista. O crescimento é processual e encon-
tra especial força nos precedentes do Supremo Tribunal
Federal que fornecem um salto de qualidade à espoliação
contratual legalizada ou à legalização da violência em
desenhos institucionais discriminatórios do trabalho.
O João Victor Marques da Silva, doutorando do
PPGD/UFBA e membro do nosso grupo de pesquisa,
estudou na sua dissertação de mestrado a diferenciação
que a Constituinte estabelece entre o empregado urbano
de maneira geral e a empregada doméstica. Concluiu que
essa diferenciação representa uma larga permanência do
passado colonial escravocrata do nosso país, que não foi
alterado pela Constituinte e também não o foi pela Lei
Complementar 150/2015 (SILVA, 2016). Para entender a
lei de 2015 e suas contradições, precisamos direcionar
um olhar para os processos políticos de 2013 e de 2014,
que dão continuidade a paradoxos que também podem
ser observados na Lei de Cooperativas de Trabalho, de
2012, na Lei do Salão Parceiro, na regulamentação do
estágio...
A Lei Complementar 150/2015, nesse sentido,
constitui avanços contraditórios, pois garante uma série
de direitos à empregada doméstica, mas mantém no seu
centro a diferenciação entre empregada e diarista. Man-
163
tém a diarista fora da produção laboral, ou seja,
regulamenta e legaliza a discriminação contra este
conjunto de trabalhadoras, o que responde à divisão
sexual e racial do trabalho.
Assim como o movimento sanitarista pode nos
trazer lições da experiência diferenciadas em relação ao
campo do trabalho na Constituinte, existem outras
experiências vívidas da classe trabalhadora com as quais
podemos aprender e pensar o futuro. Uma que me parece
central é a Constituinte chilena. Os protestos que
ocorreram no Chile nos últimos anos e a correlação de
forças que se estabelece naquele país se destacam na
situação política de retrocessos que vivemos em escala
global.
Se nosso país vizinho deve ser compreendido
como berço da relação entre neoliberalismo e autocracia,
ele também vive agora uma Constituinte que tem pers-
pectivas de avanço, ainda que com contradições. No
mínimo, coloca novamente em pauta a discussão sobre a
possibilidade de vencer o neoliberalismo a partir da
mobilização social – o que não é pouco, mas não podemos
subestimar a força com que a direita está na política e
disputará esse espaço.
A questão do neofascismo ou protofascismo não
foi objeto direto da minha tese. O tema que contribui para
minha compreensão do papel político exercido pelo
Supremo Tribunal Federal consiste na conjugação entre
neoliberalismo e neoconservadorismo, no campo das
decisões judiciais. No campo dos direitos LGBTI+ é
possível observar uma mudança de um primeiro período
em que havia promoção progressiva de direitos, sob
tensão assimilacionista, para um período em que há um
reconhecimento expandido de direitos acompanhado do
164
neoliberalismo neoconservador, como discute Roger
Raupp Rios (2022).
Sobre os atos, posso compartilhar algumas intui-
ções. A meu ver, eles foram muito mais fortes ali em maio,
junho, julho; de certa forma, o tempo foi se espaçando
entre as mobilizações e uma compreensão de setores de
que aqueles atos eram um fim em si mesmo, como uma
propaganda, uma performance, e não como uma agitação
para construir outras mobilizações e intensificar a
pressão sobre empresas e governo.
Isso demonstra, em alguma medida, uma posição
de não levar os atos até as últimas consequências, e sim
utilizá-los como forma de desgaste do governo para as
eleições de 2022. Esta seria a minha percepção hoje, sem
deixar de reconhecer que eles são muito importantes. A
fraqueza das mobilizações pode ser lida a partir de uma
certa caracterização programática, nominada por Rosa
Luxemburgo (2015) como jardim de infância parlamen-
tar, ou seja, a ideia de esperar a próxima eleição para que
seja possível avançar na consciência social.
A busca por uma consciência social mais efetiva é
um dos problemas centrais do nosso tempo e não temos
outro caminho senão a mobilização pela base. É impor-
tante a expressão de unidade entre as cúpulas, mas ela
não pode dispensar a unidade pela base e a construção
de projeto, porque o bolsonarismo seguirá presente na
sociedade brasileira, mesmo após as eleições. Permane-
cerá o desafio de construir uma saída efetiva para a crise.
Nesse sentido, a provocação de Isabela Fadul
sobre as Jornadas de Junho de 2013 é muito interes-
sante. Fico feliz por chegar à UFBA e ser recepcionado por
um grupo de pessoas que não apenas compartilha valores
e compreensão do mundo, mas também inquietações e
uma participação ativa nos espaços de reorganização da
165
classe trabalhadora. Em 2012, quando Isabela e Graça
estavam fortes na greve docente na UFBA, eu estava no
último ano de minha graduação em Direito na Universi-
dade Federal de Pelotas e construía o comando de greve
geral da UFPEL. Fui formado politicamente em relação
estreita com a militância do ANDES-SN e fico feliz por
poder continuar aprendendo com essa militância aguer-
rida, coerente e consistente.
Assim como na UFBA, o processo de mobilização
e vitória de oposições sindicais foi forte em outros lugares
naquele ano. Para ficar em um exemplo emblemático,
lembro da greve dos garis do Rio de Janeiro, que foi uma
greve em um setor bastante precarizado da classe
trabalhadora. As mobilizações demonstravam uma insa-
tisfação com a precarização social das condições de
trabalho e de vida, mas de uma forma ativa, de enfren-
tamento, de não conformação com os partidos e orga-
nizações da ordem.
Sobre o processo de precarização, concordo com
Graça de que temos apenas uma classe trabalhadora;
não temos um novo setor, a ser cindido e autonomizado.
O que gosto na formulação do Ruy Braga (2012) é a ideia
de que existe uma alta rotatividade, no precariado, não
como uma condição exterior à relação salarial, mas sim
como um permanente trânsito entre possibilidade de
exclusão socioeconômica e aprofundamento da explora-
ção. Nesse sentido, Ruy trabalha com uma processua-
lidade que nos ajuda a romper dualidades que a
professora Graça bem destaca. O destaque dado ao tema
da rotatividade, aliado à discussão sobre a juventude
trabalhadora, fornece importantes chaves para pensar a
insegurança social que atinge toda a classe trabalhadora
brasileira, por meio de políticas de Estado ativas, como a
contrarreforma do ensino médio, a BNCC, a Emenda
166
Constitucional do Teto de Gastos, além das contrar-
reformas do trabalho e da previdência.
O destaque de Graça é importante, porque a
insegurança que experiencia o precariado não é cindida
das demais. Um exemplo que nos ajuda a pensar isto é o
serviço público. Pela nossa luta, não passará a proposta
de contrarreforma administrativa do governo Bolsonaro.
Mas isso não significa que os trabalhadores e as trabalha-
doras estatutárias não sofram com o empobrecimento
geral da classe trabalhadora, mediante a inflação e o
endividamento, nem que suas condições de trabalho
estejam imunes a esse processo. Como discuti com valo-
rosos colegas em outros textos 1, os vínculos temporários
crescem na administração pública, mediante espoliações
contratuais, e resultam na transição do serviço público
para o trabalho público, não raro mediante contratual-
dades privadas hibridizadas.
É preciso fazer alguma coisa e recuperar a
musculatura dos movimentos sociais, como dizia Chico
de Oliveira. A problematização de Isabela mais uma vez
nos ajuda, ao afirmar que as oposições sindicais são um
importante objeto de estudo para a compreensão do
potencial de fortalecimento de nossa força social. O
exame das mobilizações parciais por direitos pode repre-
sentar uma ampliação do campo do direito sindical. Não
se trata de atribuir desimportância aos sindicatos e a
suas direções tradicionais, pois essas entidades, com
todas as limitações do corporativismo renovadas pela
contrarreforma trabalhista, são ainda uma forma estru-
turada de mediação entre capitalistas e trabalhadores, o
167
patrimônio mais avançado que a classe trabalhadora
conseguiu formular, junto com os partidos.
Até onde compreendo, não se trata de fazer
escolhas entre direções, oposições e bases sindicais, mas
de observar de forma ampliada as dinâmicas de formação
de consciência e de mobilização coletiva, para além dos
indicadores de greve oficiais, por exemplo. Na minha tese,
não tive como objeto analisar as oposições sindicais
durante o período que antecede e sucede as Jornadas de
Junho de 2013, mas não resta dúvida de que é um tema
que merece ser explorado de forma sistemática e que
enriqueceria nossa compreensão da situação política
brasileira.
Por fim, quero conversar com as perguntas que
foram colocadas por graduandos, mestrandos e douto-
randos do Direito da UFBA. Primeiro com o João Victor,
que pergunta se pensar 2013 como este momento de
transição da situação política não relativiza ou diminui
as contrarreformas neoliberais das décadas de 1990 e
2000. Ou, ainda, em que medida 2013 não representa um
acentuamento da linha neoliberal, ora despida de
qualquer véu de civilidade.
Quero concordar com o que Ricardo falou antes.
Não é como se não tivesse neoliberalismo antes, como se
não houvesse o Estado atuando destrutivamente antes.
O que me parece importante salientar sobre 2013 é que
nós temos uma mudança no ciclo político, uma mudança
que envolve sobretudo as questões referentes ao que
Graça denomina direção da classe trabalhadora.
Nós tínhamos a direção da classe trabalhadora e
o projeto democrático popular crescendo de 1990 a 2000,
com aumento do peso da institucionalidade na “estra-
tégia da pinça”, com as concessões decorrentes desse
modo de fazer política. Em 2013, esta estratégia de poder
168
é colocada diante do seu limite, que já vinha sendo
acumulado pelas greves e pela atuação das oposições
sindicais e movimentos populares nos anos anteriores. O
que transparece é que a principal direção da classe
trabalhadora não tinha mais condições de segurar a
revolta das ruas e essa revolta passa a se tornar
independente do Partido dos Trabalhadores.
Salientar o esgotamento de uma estratégia pro-
gramática, dado pelos sinais de alteração na situação
política, significa pensar como a democracia de cooptação
também deixa de ser útil às classes dominantes no país.
Daí surgem as condições de possibilidade de realizar um
golpe jurídico-parlamentar contra a Presidenta Dilma. O
PT não cumpria mais seu papel, pelo menos não como
antes, de impedir que setores da classe trabalhadora se
revoltassem contra a alta carga de violência a que eram
submetidos.
Ao invés de acentuar a importância da mobi-
lização popular e de seu poder para alterar a correlação
de forças do Congresso Nacional, em 2013, a resposta do
Partido dos Trabalhadores fez uma escolha pela aus-
teridade. Reafirmou, portanto, que a democracia de
cooptação não respondia aos setores em luta e, pelo
contrário, era aliada dos cortes de gastos e do aumento
do controle social, como o apoio à Lei Antiterrorismo
demonstrou.
Observar que há uma radicalização deste cenário
de insatisfação não é o mesmo que afirmar que 2013
representa o começo do neoliberalismo. O que me parece
essencial é assinalar como o fortalecimento do neolibe-
ralismo se encontra com uma inflexão na democracia de
cooptação, com uma mudança de qualidade no tipo de
disputa política que, de certa forma, vinha se desenvol-
vendo até então.
169
Alguma coisa saía do lugar em 2013 e a partir dali
a nova carne não poderia ser comida com os velhos garfos,
como diz Brecht (2012). Por isso, o período posterior
acentua o neoliberalismo, mas em um terreno de luta de
classes e de correlação de forças sensivelmente distinto
do da década de 1990. Temos, a partir de então, o avanço
das ilegalidades destrutivas e de uma regulação social
espoliativa do trabalho. Isto é novo e somente é possível
porque a resistência organizada ficou mais fraca do que
na década de 1990. São novamente ataques, mas conju-
gados com a perda da musculatura dos movimentos
sociais e populares, para relembrar novamente Chico de
Oliveira.
Não vou me prolongar nas demais questões,
devido ao horário. Concordo com Súllivan que devemos
fazer a defesa dos direitos sociais; penso que como
resultantes da luta e como um direito de classe, no
sentido discutido por Mario de La Cueva, ou seja, como
uma imposição de classe, dos trabalhadores sobre os
capitalistas. No momento em que vivemos, a luta por
direitos, com todas as suas contradições, vem crescendo
– para dialogar com João Pedro. Não temos estudos
quantitativos que fechem a discussão a esse respeito,
mas é preciso reconhecer uma maior politização e pola-
rização da sociedade, que não encontra alternativa de
transformação real e, ao mesmo tempo, organiza atos de
proporções enormes, se compararmos a década que se
inaugura em 2013 com aquela imediatamente anterior.
Isto é mais política, e não menos política.
No entanto, é preciso levar a defesa de direitos até
as últimas consequências; não reduzir as mobilizações
contra a extrema direita a uma disputa de governo,
simplesmente. Penso que esta é uma linha de equilíbrio
difícil, sobre a qual caminhamos em 2021 e seguiremos
170
em 2022, porque os protestos muitas vezes são
performáticos.
Devemos ser aqueles que levam até o fim a luta
pelos direitos sociais e exigir deste e de próximos gover-
nos a revogação da reforma trabalhista, da Emenda
Constitucional do Teto de Gastos, da reforma da previ-
dência, da reforma do ensino médio, da lei da ditadura
civil-militar que limita a autonomia universitária e regula
a lista tríplice... Devemos exigir isto de qualquer governo
e não, apenas, defender o retorno do que tínhamos antes.
Não podemos nos iludir e apenas escolher uma velo-
cidade maior ou menor em uma marcha de redução de
direitos. Nossa investigação crítica deve nos vaticinar
sobre o potencial de alteração das reformas dentro da
ordem na democracia restrita brasileira, como discutiu
Florestan Fernandes.
Ao formular a categoria contratualidades espo-
liativas, busquei acentuar o avanço destrutivo do Estado
no campo social como reforço de seu papel de mediação
metabólica, para relembrar Mészáros. Como bem nos
ensinou o autor húngaro, esta mediação se dá por meio
de correções parciais e estas correções estão longe de
configurar uma solução definitiva para os problemas
reais da classe trabalhadora. Se a hostilidade se expande
como regra, nossa luta e investigação coletiva devem dar
visibilidade a este processo e conhecer a multiplicidade
de elementos que caracterizam o grau de violência
crescente nas relações de trabalho.
Nesse sentido, tentei estabelecer uma conversa
com as questões colocadas, mas todas elas alimentam
dúvidas e problemas de pesquisa que merecem uma
agenda coletiva de estudos. Por isso, mais convido para a
continuidade do diálogo do que respondo de forma
definitiva. Esta partilha generosa de inquietações e a
171
influência construtiva que vocês exercem sobre meu
trabalho me dão certeza de que as categorias que formu-
lamos suscitam um bom campo de perguntas sobre o
Brasil como problema. As respostas somente podem ser
dadas pela classe trabalhadora em luta e, nestes espaços,
também nos encontraremos e aprenderemos.
Referências
172
LUXEMBURGO, Rosa. A Revolução Russa. In:
SCHÜTRUMPF, Jörn (Org.). Rosa Luxemburgo ou O
preço da liberdade. Traduções: Isabel Loureiro, Karin
Glass, Kristina Michahelles e Monika Ottermann. São
Paulo: Expressão Popular, coedição Fundação Rosa
Luxemburgo, 2015.
173
SOUTO MAIOR, Jorge. História do direito do trabalho no
Brasil: curso de direito do trabalho, volume I. São Paulo:
LTr, 2017.
174