Habitus Conservatorial
Habitus Conservatorial
Habitus Conservatorial
Notas Introdutórias
O Habitus Conservatorial
História incorporada, feita natureza, e por isso esquecida como tal, o habitus
é a presença operante de todo o passado do qual é o produto: no entanto, ele
é o que confere às práticas sua independência relativa em relação às
determinações exteriores do presente imediato. Essa autonomia é a do
passado operado e operante que, funcionando como capital acumulado,
produz história a partir da história e garante assim a permanência na
mudança que faz o agente individual como mundo no mundo.
Logo, as percepções que estes alunos trazem para o curso superior são resultado de
incorporações realizadas no contato com a família, com amigos, com a escola (seja ela a
escola regular ou escolas especializadas no ensino musical). E podem ser reforçadas e
oficializadas pelos currículos e práticas no ensino superior.
Metodologia de Pesquisa
ensinar o que aprendeu e passar [esse conhecimento] nas melhores condições que direcionar-
se.”
A docência aqui é considerada o ápice do aprendizado musical: ponto alto de um
desenvolvimento que permite ao indivíduo passar adiante aquilo que aprendeu; ao mesmo
tempo em que é possível notar uma preocupação didática, ao ressaltar que o conhecimento
deve ser “passado” nas “melhores condições” possíveis.
A representação do conceito de ensinar está bastante próxima do que Roldão (2007,
p. 95) chama de postura tradicional do “professor transmissivo”, um entendimento que, para a
autora, deixou de ser socialmente útil e profissionalmente distintivo dessa função, uma vez
que estamos, hoje, num tempo de alargado acesso à informação e no qual as sociedades se
estruturam em torno do conhecimento enquanto um capital global. Esta visão do professor
estaria ligada a um tempo em que o acesso ao conhecimento era limitado a um pequeno
número de pessoas, que o professavam e o “liam” para os demais:
Perguntamos também a opinião dos alunos sobre o que deveria ser privilegiado na
formação deste professor de música. Grande parte das respostas (36,4%) levou em
consideração uma formação pedagógica, evidenciada por termos como “didática”,
“pedagogia”, “maneiras e etapas de como ele futuramente irá ensinar”. Um aluno respondeu
dizendo que nenhum aspecto deveria ser privilegiado, “O ideal seria o educador com
conhecimento pedagógico musical (teoria e prática) em um nível igual”, que, de certa forma,
rompe com a ideia do mestre de ofício. Ainda outro aluno reconhece essa figura e a nega
como ideal de professor (ainda que percebendo o professor como aquele que transmite
conhecimento), afirmando que deve-se priorizar “A didática, pois percebemos que existem
profissionais excelentes, mas que não tem didática para repassar seus conhecimentos”.
Entretanto, outras influências do habitus conservatorial podem ser claramente
percebidas nas respostas. Podemos observar a ideia de que, na licenciatura, o professor
aprenderá “A arte de poder passar a verdadeira cultura adiante”. A concepção de uma
“verdadeira cultura”, uma cultura legítima que deva ser passada adiante é característica do
conservatório, que oficializa a música erudita e a considera superior a todas as outras1.
A centralidade da teoria musical e da prática instrumental, além da técnica e da
história da música na formação do professor de música também são indícios da ação do
habitus conservatorial: [Deve-se priorizar, na formação do professor de música] “Teoria
musical, percepção e pedagogia”; “Técnica e prática instrumental, teoria musical”, “Teoria,
técnicas, história da música”.
Quando perguntados com quais estilos musicais os alunos gostariam de trabalhar no
curso de Licenciatura em Música, 59% deles se referiram à música erudita. E 72,7% dos
alunos afirmaram ser a música erudita o estilo com o qual acreditam que irão trabalhar
durante todo o curso. Assim, podemos observar que os alunos ingressam no curso já cientes
da centralidade ocupada pela música erudita no currículo da licenciatura. Pode-se especular, a
partir disso, uma possível ligação da música erudita com o ensino superior explicada pelas
propriedades legitimadoras do esquema de valoração musical apresentados por Green (1988):
complexidade, universalidade, eternidade e originalidade.
1
Inferimos que “verdadeira cultura” na resposta deste aluno refere-se à música erudita a partir de suas outras
respostas ao questionário.
Estas características estão presentes nas respostas dos alunos à questão que explora o
valor em música: questionou-se se existe algum estilo de música mais importante (dotado de
maior valor artístico/cultural) do que outros e o porquê disso.
A complexidade e a eternidade da música erudita, tida como a-temporal e a-histórica,
pode ser observada em: “Eu considero a música erudita. Essas músicas que faz[em] muito
sucesso no momento (como por exemplo ‘Ai se eu te pego’) são esquecidas com o tempo,
porém a música erudita é muito bem elaborada e permanece sendo admirada por tempos”.
Ainda a complexidade aparece como razão para o maior valor da música erudita em: “Erudita,
devido a aprofundação (sic) do estudo e da prática”.
Já a universalidade, como a capacidade da música expressar a condição humana, fica
evidente em: “Blues e erudito, porque pra mim expressa a alma”. A originalidade, por sua
vez, entendida como o rompimento com a convenção para se estabelecer normas estilísticas
que influenciarão futuras gerações, é também apontada como razão do maior valor da música
erudita em: “Talvez o erudito, porque foi o começo de tudo”.
31,8% das respostas apontam a música erudita como dotada de maior valor do que as
outras músicas. Entretanto, é interessante observar um equilíbrio relativo com outras
afirmações, como a de que o valor da música depende do gosto – que corresponde a 36,4%
das respostas; e a de que o valor da música está relacionado ao contexto em que está inserida
– 22,7% das respostas.
A percepção da música erudita como dotada de maior valor, aliada ao fato de que
esta irá nortear o trabalho com música no ensino superior, compromete a formação de um
professor que deveria, em atendimento à legislação educacional vigente, respeitar, valorizar e
trabalhar com a diversidade cultural característica do país.
Notas Finais
A partir da análise das respostas coletadas, foi possível identificar, em muitas delas,
forte presença do habitus conservatorial orientando percepções e concepções sobre música e
seu ensino. O que fortalece a hipótese de que o habitus conservatorial está presente no senso
comum, transcendendo os muros das instituições de ensino musical e sendo incorporado
desde os primeiros processos de sociação.
Referências
BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.
GIL, Antonio Carlos. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 5 ed. São Paulo: Atlas, 1999.
GREEN, Lucy. Music on Deaf Ears – Musical meaning, ideology and education. Manchester:
Manchester University Press, 1988.
GREEN, Lucy. Why ideology is still relevant for critical thinking in Music Education. Action,
Criticism & Theory for Music Education, vol. 2, n. 2, p. 1 – 24, 2003.
JARDIM, Vera Lúcia Gomes. Da arte à educação: A música nas escolas públicas 1838 –
1971. 2008. 322f. Tese (Doutorado em Educação). São Paulo, Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 2008.