CARNEIRO, Maria Luiza. Imigrantes Indesejáveis
CARNEIRO, Maria Luiza. Imigrantes Indesejáveis
CARNEIRO, Maria Luiza. Imigrantes Indesejáveis
A ideologia do etiquetamento
durante a Era Vargas
P
Maria Luiza Tucci Carneiro
A REPRESENTAÇÃO DO “OUTRO”
rado dessa documentação demonstra que a tual da pátria e essa diminuição espiritual
convivência com o imigrante por parte de poderia tornar-se, mais tarde, um fator da
alguns segmentos da população brasileira própria redução material da pátria, a saber,
se fez, sempre, limitada por um discurso uma ameaça à sua unidade” 1 (Reis, 1943).
intolerante modelado por teorias eugenistas e
políticas excludentes, principalmente durante Como objeto de análise optamos por ob-
o governo de Getúlio Vargas (1930-1945) e servar o processo de construção das figuras
de Eurico Gaspar Dutra (1946-1954). do judeu e do japonês, que, desde as últimas
A construção da identidade nacional foi, décadas do século XIX, foram estigmatizados
muitas vezes, modelada por valores peculia- e tratados como “indesejáveis” e/ou como
res do pensamento racista moderno que não “raça inferior”. Daí as expressões: perigo
prescindiu das teorias importadas da Europa. semita e perigo amarelo, além de outros
A eugenia conquistou espaço entre as elites perigos como o perigo vermelho/comunista.
que debatiam e pensavam sobre a questão Nos propomos a recuperar as matrizes des-
imigratória interpretada como “problema”, ou se pensamento intolerante que, certamente,
seja: como uma ameaça. Desde a década de colaborou para a persistência de políticas
1920, o estrangeiro passou a ser classificado discriminatórias por parte do Estado brasi-
nas categorias “desejável” ou “indesejável”, leiro instigando manifestações de violência,
selecionado segundo critérios políticos, ét- física e/ou simbólica. Importante avaliarmos
nicos, culturais e religiosos. Autoridades do o potencial dessas imagens enquanto fontes
alto escalão do governo argumentavam que, históricas e meio de conhecimento para a
caso o imigrante não fosse selecionado entre reconstituição dos estigmas e estereótipos
os melhores exemplares, poderia “desfigurar” que povoam o imaginário coletivo.
e “desnaturalizar” a população brasileira, Essa releitura nos convida a lançar um
principalmente se fosse judeu. Segundo afir- olhar crítico sobre os múltiplos discursos
mou Ernani Reis, secretário de Francisco que nos instigam a analisar o passado a
Campos, ministro da Justiça e dos Negó- partir de indagações motivadas pelo pre-
cios Interiores, em seu artigo “Imigração sente. O racismo persiste no contemporâneo
e sentimento nacional”, publicado em 1943 valendo-se das novas mídias que continuam
no jornal carioca A Noite: a manipular o imaginário coletivo, ainda
que com novas roupagens. É fato que, na
“[…] a introdução maciça de populações primeira metade do século XX, existia uma
com o fim de encher os espaços vazios do tensão entre a força das construções imagi-
nosso território, isto é, a introdução de uma nárias e a tentativa institucional de interferir
quantidade tal de imigrantes que superas- na produção de significações. No seu con-
se a nossa capacidade atual de assimilação,
significaria fatalmente a desfiguração e o
desnaturamento, do ponto de vista nacional,
1 Ernani Reis atuou como braço direito de Francisco
de vastas extensões do solo pátrio. Da ten- Campos, ministro da Justiça e Negócios Interiores, ten-
tativa de acrescer demograficamente o país do participado diretamente da elaboração e aplicação
das políticas imigratórias seletivas e excludentes que
resultaria, destarte, uma diminuição espiri- vigoraram durante o Estado Novo (Koifman, 2012).
desta opinião Irineu Evangelista de Souza, no Brasil, desde que aptos para o trabalho.
o Visconde de Mauá4. “Indígenas da Ásia ou da África somente
A consolidação da imagem do Brasil co- mediante autorização do Congresso Nacional
mo nação branca e civilizada dominou os [...]”. Essa exceção foi corrigida pela Lei n.
discursos proferidos durante o Congresso 97, de 5 de outubro de 1892, que permitia a
Agrícola de 1878. Uma série de impressos livre entrada de imigrantes chineses e japo-
cuidaram de documentar os diferentes apar- neses em território nacional, desde que não
tes pró e contra os chineses e favoráveis à fossem “indigentes, mendigos, piratas, nem
adoção de uma política imigratória seletiva. sujeitos à ação criminal em seus países”.
Foi sob esse viés que se instalou um debate Cobrava-se, mais uma vez, a aptidão para
de cunho racial, econômico e político que os trabalhos em qualquer indústria (Dezem,
ficou conhecido como “a questão chinesa” 2005, pp. 70-2; Demoro, 1960, p. 59).
(1879). Discursos panfletários colocaram em Tendo em vista o modelo ideal de “bom
cena as qualidades positivas do branco eu- trabalhador”, o governo de Floriano Peixoto
ropeu em oposição aos perfis negativos dos enviou uma missão diplomática ao Oriente
chins e dos negros. Para os abolicionistas, o Médio com o objetivo de incentivar a vinda
chinês era pior que o negro: “avaro, viciado de imigrantes para o Brasil. O encarregado
em jogo e ópio, infanticida por convicção José da Costa Azevedo, Barão de Ladário,
e ladrão por instinto”. (Azevedo, 1987, pp. optou pelos japoneses (“mais trabalhadores e
90 e 147; Bosi, 1992). econômicos”), pois os chineses, na sua opi-
No calor das mudanças efetivadas entre nião, eram “um mal moral para o Brasil”. Tal
1888 e 1889, em meio à Abolição da es- veredito direcionou os olhares para o Japão.
cravatura e à Proclamação da República, a O debate no Senado e na Câmara dos Depu-
política imigratória ganhou forma, revelando tados – cujos anais registraram as diferentes
o ideal de branqueamento como parte do opiniões acerca de uma política imigratória
projeto étnico-político defendido pelo recém- restritiva – culminou com a assinatura do
-empossado Governo Provisório. Sob o signo Tratado de Amizade, Comércio e Navega-
da nova ordem republicana, foi promulgado ção em 5 de novembro de 1895, sanciona-
o Decreto n. 528, de 28 de junho de 1890, do pela Presidência da República em 27 de
regulamentando a introdução de imigrantes novembro de 1896 (Abranches, 1918, p. 494
apud Dezem, 2005, p. 72; Anais, 1896). No
entanto, as barreiras do preconceito contra
4 Foi a partir de 1879 que um discurso racista emergiu os asiáticos se faziam pulsar em cada estado
em meio ao debate político sustentado por imigran-
tistas e abolicionistas. Muitos tinham como referência de maneira diferenciada: o estado de São
a entrada no Rio de Janeiro, em 1814, de cerca de 200
a 500 coolies ou culis chineses trazidos de Macau por
Paulo, ao contrário de Minas Gerais, que
D. João VI para trabalhar no cultivo de chá em áreas admitia asiáticos, permitia apenas a entrada
experimentais. O fracasso dessa experiência dispersou
parte desses colonos para Minas Gerais e São Paulo; de imigrantes brancos, privilegiando os eu-
outros permaneceram no Rio de Janeiro, ocupando a ropeus, americanos e os canarinos/africanos
região entre o Morro do Castelo e o mar e ao longo
da Rua da Misericórdia. Em 1877, a Sociedade Impor- (Lei Estadual n. 365, de 1895, p. 6).
tadora publicou a obra As conveniências e vantagens
à lavoura brasileira pela introdução de trabalhadores
A partir de 1886, após a criação da Socie-
asiáticos – da China (apud Dezem, 2005, pp. 26-30). dade Promotora da Imigração pelo governo de
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