Literatura - Record of Lodoss War A Bruxa Cinzenta

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Crônicas da

Guerra de Lodoss
A Bruxa Cinzenta
História

Conceito Original

1
Crônicas da Guerra de Lodoss
A Bruxa Cinzenta

História

Conceito Original
1
Crônicas da Guerra de Lodoss:
A Bruxa Cinzenta
História: Ryo Mizuno
Conceito Original: Hitoshi Yasuda
Ilustrações: Yutaka Izabuchi

Tradução:
Mangekyou54

Nerd, Uai! Vídeos, Games e Tradução


www.nerduai.blogspot.com.br

2
Cem heróis escolhidos lá se aventuraram.
E morreram após desafiarem o labirinto sem fim.
Os corpos ficaram frios, mas as luzes das suas almas brilharam:
Um brilho que não deixou lugar para o mal se esconder enfim.

Sete heróis ousaram desafiar o Rei Demônio.


Seis sobreviveram, e assim o mundo foi salvo.

3
Nosso herói. Um
jovem do vilarejo de
Zaxon que acredita
em justiça acima de
tudo. Ele atuava
como merce-
nário, mas,
após uma
batalha desastrosa, Uma guerreira elfa
decidiu partir numa que controla espíritos
jornada de e elementais. Com 160
crescimento pessoal. anos, ela é a mais jovem
Herdou a espada e a da sua tribo.
armadura do pai. Desesperada com o
lento declínio do seu
povo, abandonou o lar
na floresta para
explorar o mundo
lá fora. Não gosta
de anões.

Um sacerdote do Deus Supremo Pharis e


amigo de infância de Parn. Calmo e sereno,
mas também determinado. Ele e Parn
decidiram enfrentar os goblins que
apareceram perto da vila, mas o resultado
não foi o esperado... 4
Um ladrão de meia-
idade. Depois que um
trabalho da sua
juventude deu errado,
ele foi condenado à
prisão por mais de
vinte anos. Parece
Um feiticeiro brincalhão, mas a
que estudou na fachada social esconde
Academia de uma pessoa muito
Magia de Allan orgulhosa.
antes de se mudar
para Zaxon, onde
vive como professor.
Ele é sempre calmo e
racional. Está em
busca da “sua
estrela”. Ghim é
um velho amigo.

Um artesão de um povoado de anões


localizado ao norte da vila de Tarba. Cabeça-
dura e reservado, ele gosta de uma boa
comida e é forte no álcool. Saiu de casa em
busca da filha de uma amiga. Velho
conhecido de Slayn. 5
6
Índice

I OS AVENTUREIROS 8

II AS SOMBRAS NEGRAS EM ALANIA 24

III RESGATE 54

IV O GRANDE MAGO 85

V A BATALHA FINAL 112

VI A FILHA DE MARFA 130

POSFÁCIO 141

7
Capítulo 1
Os Aventureiros

As paredes de mármore branco do Grande Templo de Marfa brilhavam


com o sol da primavera, bem-vindo depois do longo inverno. Grama nova
espiava em meio aos blocos de neve que insistiam em permanecer e flores de
todas as cores começavam a desabrochar ao longo do caminho que conectava o
templo ao centro da vila.
O templo ficava nos limites da vila de Tarba, na ponta norte de Lodoss.
Algumas centenas de aldeões viviam vidas simples nas planícies entre os cumes
das Montanhas do Dragão Branco, lar dos espíritos de gelo que faziam a
primavera chegar ali depois que nas regiões do sul. Mas em alguns dias a neve
derreteria por completo e jovens casais de toda a ilha viriam receber a bênção da
deusa Marfa para ter um casamento feliz.
Para Neese, a sumo-sacerdotisa, a estação mais agitada estava apenas
começando. Ela e seu visitante estavam sentados em volta de uma pequena mesa
nos aposentos dela. Neese estava acomodada numa cadeira simples de madeira
e vestia uma túnica do mais puro branco na qual tinha sido bordado o emblema
sagrado de Marfa, a deusa de toda a criação. Seus longos cabelos negros tinham
ficado cinzas e rugas profundas explicitavam no rosto os cinquenta anos de
experiência, mas seu porte e comportamento emanavam vitalidade.
- Vai partir numa jornada? – perguntou ela ao visitante com um raro tom
de incerteza.
- Vou. – ele respondeu laconicamente do seu assento do outro lado da
mesa. Ele era robusto e tinha metade da altura de um homem normal, com uma
cabeça desproporcionalmente grande e uma barba cinza muito bem aparada. Era
um anão, uma das raças místicas da terra. Sua pele reluzia com o olhar do sol que
entrava pelas janelas e os olhos cor de âmbar mostravam uma forte determinação.
- Por quê? – perguntou Neese, levantando-se da cadeira e se ajoelhando ao
lado do anão para olhar nos seus olhos. Colocou as mãos nos ombros dele.
- Por nada. Porque eu quero. – disse ele com o seu jeito ríspido de sempre.
Neese conhecia bem os anões. Diziam que seus corações eram feitos de
ferro – e que sua cabeça-dura era o que tornava esses homens diminutos e
aparentemente desastrados tão hábeis com artesanato. Aquele anão em especial
era um excelente artesão que podia transformar pedras comuns em joias
brilhantes, metal mundano em ornamentos cobiçados.
Ela conhecia os anões, e conhecia aquele anão específico. Quando Ghim
decidia alguma coisa, nunca mudava de ideia.

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- Se é por causa da Leylia, não é necessário. Faz tempo que desisti dela. –
disse ela, mas a dor nos seus olhos era notável.
Se havia algum momento em que ela sentia o peso da idade, era quando
pensava na filha. Leylia desaparecera sete anos atrás – indícios de um combate
foram encontrados no templo, evidências de que ela enfrentara um invasor e fora
levada.
Neese estava fora na época, chamada para curar Ghim depois que um
acidente nas minhas dos anões o deixara gravemente ferido. A ausência de Leylia
partiu o coração de Neese, mas a culpa que o velho anão sentia devia ser ainda
maior. Desde o incidente, Ghim vinha ao santuário para ajudar sempre que
podia.
Ghim não respondeu. Anões nunca mentiam – apenas ficavam quietos.
- Não foi sua culpa, Ghim. Aquilo foi uma infeliz coincidência. Não se sinta
responsável. Nem os deuses sabem o futuro completamente. Como nós, mortais,
poderíamos saber? – Neese ofereceu um sorriso, mas Ghim não quebrou seu
silêncio pétreo – Perguntei sobre ela muitas vezes à deusa Marfa. Onde ela está,
se está viva... – ela parou, pensando na resposta que recebera todas as vezes.
- O que Marfa disse? – arriscou Ghim.
- Não foi uma resposta, na verdade. Está mais para uma charada. Ela disse
que Leylia está viva, mas não existe.
- Viva, mas não existe? – Ghim estava confuso. Era uma informação que
não servia em nada para mudar a expressão triste de Neese. Ele a havia conhecido
quando ela chegou ao tempo pela primeira vez. Linda e sábia, irradiando força e
bondade. Ela tinha acumulado uma gama impressionante de títulos: era uma
Santa, um dos Seis Heróis que derrotaram o Rei Demônio na Guerra dos
Demônios, a filha amada da Deusa Mãe-Terra e a Domadora de Dragões, entre
muitos outros. Mas, apesar de tudo isso, não havia arrogância alguma nela, que
tratava a todos igualmente. Ela adorava ver as oficinas dos anões e visitava com
frequência o Reino de Ferro, o povoado anão mais próximo de Tarba. Mesmo os
anões mais rabugentos não conseguiam não sorrir quando conversavam com ela.
Mas seu brilho se esvaiu depois que Leylia desapareceu.
É claro que ele sabia que o desaparecimento não era sua culpa. Mas ele
também sabia que tinha que ir procurá-la. Ele devia tanto a Neese. Nunca teria
paz enquanto ela estivesse sofrendo.
Ele sempre pensou nisso, mas também sabia que não fazia sentido sair sem
nenhuma pista. Mas as circunstâncias haviam mudado recentemente – ele tinha
algo para começar. Um dos anões do povoado tinha acabado de voltar de uma
jornada e comentou que vira uma mulher idêntica a Leylia – e isso apenas dez
dias antes, na cidade de Allan, não muito longe de Tarba. Ghim não hesitou por
um momento. A decisão foi tomada na hora.

9
- Não sou um anão inteligente, mas confio na minha força. Não posso
resolver essa charada, mas arrastar a sua filha pródiga de volta pra casa não
deverá ser uma tarefa muito difícil.
Neese sentiu seu olhar ficar turvo. O anão era sempre muito áspero e sério,
mas, no fundo daquele coração de ferro, havia uma pessoa muito boa. Todos os
anões veneravam a verdade e não pensariam duas vezes antes de arriscar a vida
por uma causa.
Ela ficou em silêncio por um tempo, quase começando a falar várias vezes
e não conseguindo. Enfim fechou os olhos e pegou na mão de Ghim.
- Obrigada. Por favor, traga Leylia para casa.
Os olhos de Ghim se encheram de satisfação.
- Deixe comigo. Prometo que a trarei de volta. Até lá, a charada estranha
da deusa já terá sido resolvida. Eu tenho certeza. – disse ele com vigor.
Neese abraçou carinhosamente o corpo robusto do anão com os seus
braços finos.
- Quando você parte?
- Vou ao povoado buscar algumas coisas e parto imediatamente depois.
- A jornada será perigosa. As coisas não são mais como eram na minha
juventude, mas ainda não estamos em paz. Tome cuidado. – a jornada de Neese
foi numa época de grande morte e destruição, quando demônios selados no
Labirinto Mais Profundo foram libertados para causar caos no mundo. Ela foi
chamada de Heroína, um dos Seis Heróis que salvaram o país, depois da derrota
do Rei Demônio, mas esse título não significava nada para ela. Seu único interesse
era que a humanidade prosperasse em Lodoss de novo.
- Obrigada, Sacerdotisa de Marfa. E me faça um favor, sim? Reze para que
eu consiga decifrar essa charada e trazer a sua filha de volta. Rezar não é comigo.
- Para onde você vai?
- Primeiro para Zexon. Só há uma estrada, afinal, e eu tenho um amigo
chamado Slayn que mora lá. Ainda não pensei no resto. O caminho me guiará.
Estou certo disso.
Algumas horas depois, o artesão anão deu seus primeiros passos ao longo
da estrada. Espessas nuvens cinzentas cobriam o céu acima do seu destino no sul.

Lodoss era uma ilha remota a duas semanas de viagem a sul do continente
Alecrast. A travessia era longa e perigosa o bastante para haver pouco trânsito
entre as duas massas de terra – apenas alguns galeões mercantis esporádicos que
saíam de Raiden, a cidade livre a noroeste de Lodoss. Algumas pessoas do
continente chamavam Lodoss de “Ilha Amaldiçoada”, e era verdade que havia
alguns lugares agourentos lá que faziam jus ao título: a Floresta Sem Volta, o
Deserto de Fogo e Tempestade e Marmo, a Ilha das Trevas, com seus labirintos

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subterrâneos cheios de monstros abomináveis e um forte culto a Phalaris, o Deus
das Trevas. A Guerra dos Demônios de trinta anos atrás aterrorizara a ilha, e fora
precisa uma aliança de elfos, anões e humanos para repelir os demônios de volta
para a sua prisão subterrânea. As cicatrizes da batalha haviam se curado e a paz
havia retornado, mas as histórias daquela época mancharam para sempre a
reputação da ilha.
Mas as pessoas comuns de Lodoss não se importavam muito com o que os
forasteiros pensavam sobre a sua ilha. O dia a dia normal já trazia problemas
demais para elas.
A ilha de Lodoss era dividida em reinos. O mais poderoso era o Reino de
Moss no sudoeste, unificado depois da Guerra dos Demônios por Micenas, um
montador de dragões que se tornou rei. Os países originais eram intensamente
independentes e lutavam entre si o tempo todo, até que a ameaça externa os uniu.
Então os reinos fragmentados, cada um com o nome de uma parte do corpo de
um dragão, se unificaram sob Micenas, o Rei de Highland, o Olho de Dragão. O
herdeiro de Micenas era um montador de dragões chamado Jester, e ele e os doze
montadores de dragão que o serviam eram os pilares centrais de Moss. E assim
ele ficou conhecido como “Micenas, o Rei Dragão Dourado”. Quando Micenas
morreu, Jester herdou seu nome, seu título e o dragão dourado que ele montava.
No centro da ilha ficava Valis, o Sagrado Reino da Justiça. Seu rei era Fahn,
um dos Seis Heróis. Quase todos os seus habitantes adoravam o deus supremo
Pharis, então a Ordem de Pharis tinha poder político. O comando de Valis não
era transferido por sangue. Ao invés disso, o novo rei era um membro dos
Cavaleiros Sagrados ou dos guardiões reais que ascendia ao trono após ser
indicado pela Ordem. Os mandamentos religiosos da Ordem eram lei ali.
A norte de Valis ficava Flaim, o reino do deserto, uma nação nova que se
ergueu após a recente derrota dos bárbaros locais. O povo do deserto era corajoso
e seu rei mercenário e fundador – Kashue – era amplamente respeitado. A terra
era inóspita, mas o jovem país vibrava de esperança.
Kanon, a sudeste, era governado por um rei intelectual. Era conhecido pela
sua beleza natural e pelo clima ameno.
Ao sul se localizava a temida Ilha das Trevas, Marmo, lar de monstros e
criminosos exilados. Por anos, o local fora governado apenas pelo caos, até que
um guerreiro chamado Beld se declarou Imperador e colocou a ilha inteira sob o
seu comando. Ele passou a maior parte dos seus dez anos como regente
esmagando violentamente qualquer rebelião que eclodisse. Mais recentemente,
Marmo parecia em paz – pelo menos de longe.
Alania, ao norte, era um centro de cultura e história. Os cidadãos se
orgulhavam das suas edificações de pedra e do maravilhoso castelo de mármore
construído por anões.

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Em Alania, havia um pequeno vilarejo aninhado nas montanhas da
península a norte de Allan, a capital. Esse vilarejo se chamava Zexon, e seus
moradores levavam vidas simples longe da cultura e do fervor da capital.
Esse vilarejo estava enfrentando um sério problema...

- Eu já disse! Vou matar todos eles!


Bons Encontros, o único bar de Zexon, retumbou quando o punho bateu
na mesa, fazendo gotas de bebidas espirrarem para todos os lados.
Havia um jovem de pé no meio do recinto lotado. Usava uma armadura
de placas e carregava uma espada longa na cintura – uma espada de cabo
comprido para permitir que o usuário a manobre com as duas mãos. Tinha
também um grosso escudo de ferro amarrado nas costas; só precisava de um
elmo para parecer um cavaleiro completo. Mas o peitoral da sua armadura não
tinha brasão, só uma grande marca de raspagem.
- Mas, Parn... – Filmer, o chefe da vila, interviu – Você não pode resolver
isso sozinho. São goblins, e muitos. Por mais que seja um bom espadachim, terá
uma grande desvantagem numérica.
Parn reagiu às palavras com um olhar de desgosto. Não chegaria a lugar
nenhum com aquele bando de covardes.
- É por isso que estou pedindo ajuda! Como o senhor disse, sozinho eu não
tenho chance, e nem mesmo com a ajuda do Etoh. Mas olhe ao redor! Se cada um
aqui pegasse uma arma, seríamos invencíveis! Não deixem um punhado de
goblins assustarem vocês! Pensem no que vai acontecer com a vila se não agirmos
logo! – Parn atiçava a multidão, mas todos continuavam nas suas mesas, evitando
se manifestar.
Um grupo de cerca de vinte goblins escavara uma caverna nas colinas
próximas a Zaxon durante o inverno, quando a neve isolava o lugar. Goblins
eram criaturas de pele avermelhada que tinham aproximadamente o tamanho de
uma criança humana. Por causa do tom de pele, costumavam ser chamados de
“demônios vermelhos”, mas na verdade eram filhos da terra e do solo. Durante
as guerras antigas dos imortais, eles foram invocados pelos deuses das trevas
para servir como sua vanguarda. Os deuses dos dois lados morreram no fim da
guerra, então os goblins sobreviventes não tiveram mais como voltar para o reino
das fadas – e nenhuma escolha a não ser viver vidas primitivas nas montanhas e
florestas.
Humanos e goblins não podiam viver juntos – qualquer contato entre as
duas raças sempre acabava em conflito. E embora os goblins nos arredores de
Zexon não tenham feito mal aos aldeões durante os três meses desde que
chegaram, isso era só questão de tempo, considerando sua reputação ruim.
Parn convocou todos os homens fortes e saudáveis do vilarejo para ajudá-
lo a montar um ataque preventivo. Eles tinham mais de trinta homens, mais que
os goblins. Mas o plano não deu muito certo...

12
- Nada de ruim aconteceu ainda. Talvez nunca aconteça. Por que arriscar
a pele provocando eles? Se não der certo, eles vão atacar a vila. – protestou
alguém.
Parn olhou para o homem com repúdio. Era Zamji, um caçador – Parn
estava contando com a sua habilidade com o arco e flecha.
- Zamji, é perigoso pensar assim. – respondeu Parn – Você já ouviu as
histórias de terror. Quer esperar até algo assim acontecer aqui? Derrotá-los agora
é a nossa única opção!
- Mas, Parn... – agora era Riot, o lenhador. Parn ficou ainda mais abalado.
Riot era o homem mais forte da vila.
Outros murmuraram suas objeções – e nem uma única voz se ergueu para
concordar com ele.
Parn descarregou o punho na mesa de novo. Desta vez, com tanta força
que ela virou, assustando a todos.
- Por que vocês não entendem?! Meu pai enfrentou trinta bandidos
sozinho! Vocês não tem um décimo dessa coragem?!
- Conhecemos bem essa história. Seu pai não se deparou com esses tais
bandidos depois que foi expulso dos cavaleiros? E ainda morreu na luta. –
desdenhou Moro, o dono do armazém do vilarejo. Ele e o dono do bar, o Velho
Jet, eram a maior fonte de fofocas da cidade.
Parn, cujo rosto até então estava vermelho de agitação, ficou pálido.
- O- O que você disse sobre o meu pai?! – ele encarava o homem com claro
ódio.
- Só estou repetindo o que ouvi. Se não é verdade, então por que o brasão
dos Cavaleiros Sagrados foi arrancado da sua armadura? Por que sua mãe teve
que ir embora de Valis e se enfiar aqui no interior?
A mão de Parn já estava no cabo da espada – a vontade de avançar sobre
Moto e arrancar sua cabeça era quase irresistível. Mas sacar sua espada contra
um aldeão claramente não era a coisa certa a se fazer.
- Tudo bem. – disse ele serenamente, tirando a mão da espada – Etoh e eu
cuidaremos disso sozinhos.
Com isso, ele saiu, batendo a porta com força.
Os aldeões ficaram imóveis nos seus assentos até o ranger das dobraduras
de metal parar.
- Ele não pretende ir sozinho mesmo, né? – Riot cochichou para Moto.
- Ele não seria tão maluco. – Moto respondeu sem passar muita confiança.
Todos eles conheciam Parn. Não havia dúvida de que ele seria capaz de fazer
uma burrice como aquela se fosse em nome da justiça.
O chefe da vila ouviu a conversa por um tempo e enfim declarou que a
reunião estava encerrada. Abriu a porta que Parn havia batido e se dirigiu a uma
cabana isolada nos limites da vila.

13
3

Parn chegou em casa furioso, abrindo a porta violentamente com um


chute. O assoalho chiou em protesto quando as placas de metal das botas
pressionou a madeira.
- Como foi, Parn? – perguntou uma voz suave no fundo da sala.
- Como você acha?! – gritou Parn para o rapaz sorridente, o sacerdote Etoh.
Ele vestia uma toga larga e desbotada com uma faixa azul na cintura. O amuleto
de prata em volta do seu pescoço era o talismã de Pharis.
Etoh era amigo de Parn desde criança – seu único amigo, na verdade.
Ambos órfãos, suas circunstâncias os aproximaram apesar das personalidades
opostas. Etoh era muito mais reservado e sempre pensava muito antes de agir.
Mas eles compartilhavam da mesma determinação firme.
Quando tinha dez anos, Etoh começou a fazer trabalhos esporádicos para
um missionário de Pharis. Ele ficou tão impressionado com a doutrina da justiça
que decidiu seguir o missionário quando ele partiu, posteriormente sendo aceito
como aprendiz no Templo de Pharis em Allan, a capital. Quando concluiu o
treinamento e se tornou oficialmente um sacerdote, voltou para o vilarejo.
Etoh levou a mão ao talismã e recitou uma rápida oração para Pharis
enquanto ouvia Parn explodir de raiva.
- Não podemos culpá-los. Não estão habituados a combater. – Alania não
via uma guerra há cem anos. Era o único reino que tinha conseguido evitar
batalhas significativas na guerra mais recente.
- Mas não conseguiremos dar cabo de uma horda de goblins sozinhos. –
respondeu Parn. Sentou-se de qualquer jeito em cima da mesa e tomou um gole
de água do cantil na sua cintura. Estava quente e com gosto de couro. Com um
suspiro, jogou o recipiente vazio na mesa, mas acabou colocando força demais e
ele escorregou na quina. Etoh o pegou, fechou com cuidado e colocou de volta na
mesa. Como já tinha feito milhares de vezes antes.
- Não podemos deixar os goblins continuarem à solta também. Pode estar
tudo bem agora, mas um dia eles serão uma ameaça. – Etoh fechou os olhos e
levantou a mão esquerda como que pregando as palavras de Pharis. Ele não tinha
o seu próprio templo, então suas pregações eram sempre na rua ou no salão de
reuniões do vilarejo. Mas ele era um autêntico sacerdote. Podia conjurar magias
sagradas e até realizar milagres como curar doenças e feridas. Também fora
treinado em combate; as divergências entre a Ordem e o reino significavam que
os guardas públicos não garantiriam a proteção deles, então havia um grupo
específico de Cavaleiros Sagrados.
- Podemos mesmo fazer isso sozinhos? Eles são pelo menos vinte. Dez para
cada. – guerreiros experientes talvez conseguissem matar dez goblins sozinhos,
até vinte ou trinta. Mas Parn sabia que suas habilidades não estavam nesse nível
ainda.

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- Pode haver um jeito... – Etoh murmurou quase que para si mesmo, e Parn
soube que era melhor não interromper. Quando eles estavam juntos, seu trabalho
não era pensar. A função de um guerreiro era aprimorar sua técnica e matar os
inimigos.
Finalmente Etoh se virou para Parn.
- Acho que não é um plano muito bom...
Parn sorriu.
- Então você tem um plano? – disse ele – Perfeito. Vamos lá!

A casa de Slayn, o Caçador de Estrelas, ficava a norte de Zexon. Ele se


mudara dois anos atrás e rapidamente conquistara o carinho dos aldeões com
suas aulas de leitura e escrita.
Ele também era sabidamente excêntrico. Sua pequena casa era abarrotada
de livros e as prateleiras dos seus armários só tinham ervas e garrafas de insetos
secos. À noite ele observava as estrelas e falava sozinho. Em suma, ele era
simplesmente diferente. Por causa disso, a maioria das pessoas era amigável com
Slayn, mas mantinha uma certa distância. Ele não recebia muitas visitas.
Exceto naquele dia, em que ele teve duas. Filmer, o chefe da vila, ficou
surpreso ao ver que já havia alguém lá – e ainda mais quando percebeu que o
visitante não era humano, mas sim um anão.
O anão se apresentou desajeitadamente como Ghim enquanto Slayn lhe
servia uma jarra de cerveja e ficou parado e quieto enquanto Filmer relatava o
que ocorrera na reunião – que Parn e Etoh tinham ido atrás dos goblins sozinhos.
Ele queria que Slayn fizesse alguma coisa.
- Goblins? – reagiu Ghim de repente – São quantos os larápios sujos? Eu
mesmo os farei em pedaços! – com isso, agarrou o grande machado de lâmina
dupla apoiado contra a parede. Com sua armadura de placas que ia dos pés à
cabeça e um elmo firme, ele estava totalmente preparado para a guerra.
Filmer quase caiu da cadeira de susto com a reação inesperada, mas Slayn
mal pareceu se importar.
- Goblins e anões são inimigos desde os tempos antigos. – explicou ele num
tom de voz solene enquanto Filmer tentava recuperar a compostura.
- Eles são ladrões. – rosnou Ghim – Gostam de juntar joias, mas nem sabem
apreciar sua beleza. Desde os dias da antiguidade, já cortamos tantas cabeças de
goblins quanto há estrelas no céu, mas eles continuam infestando este lugar!
- As estrelas são infinitas. – comentou Slayn discretamente – Felizmente,
porém, há apenas cerca de vinte goblins aqui. Mas mesmo isso pode ser demais
para Parn e Etoh. Eles realmente foram sozinhos?
O chefe assentiu e Slayn sorriu um pouco, pensando: Isso não me surpreende
vindo do Parn, mas Etoh costuma usar melhor a cabeça.
- A juventude é o algoz da razão. – murmurou Slayn para si mesmo – Tudo
bem. – continuou ele mais alto – Não podemos abandonar dois rapazes tão

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promissores à própria sorte. Tenho certeza de que podemos dar um jeito nesses
vinte goblins.
- Eu juro pela minha barba. – bufou o anão, já colocando o machado nas
costas.
- Então vão ajudá-los? – perguntou Filmer, visivelmente aliviado – Sou
muito grato aos dois.
- Não há necessidade disso. Esta vila é o meu lar também. – Slayn se
levantou e pegou um cajado de madeira que estava encostado casualmente numa
das paredes. Uma ponta do cajado era estranhamente torta e coberta de uma
escrita misteriosa. Era um Cetro Filosofal, só permitido a feiticeiros da Academia
de Magia, uma guilda de Allan. Feiticeiros aprendiam uma língua antiga para
controlar a mana, a origem de tudo. Encantamentos proferidos nessa língua
podiam liberar uma magia muito mais poderosa.
Quando os aldeões ignoraram o pedido de Parn, Filmer achou que Slayn
poderia ajudá-lo. Encontrar um anão que odiava goblins na casa dele foi um
bônus inesperado.
- Conhecendo o Parn, ele deve ter ido totalmente despreparado. Teremos
que nos apressar, caso contrário poderá ser tarde demais. – Slayn pegou um livro
grosso que tinha algo na mesma língua antiga escrito com letras douradas na
capa. Traduzido, o título seria algo como “Livro de Feitiços de Slayn, o Caçador
de Estrelas”.

Parn e Etoh avançavam cautelosamente pela mata, prestando atenção em


cada movimento à medida em que se aproximavam das colinas onde os goblins
viviam. A região era cheia de rochedos, o que facilitava para eles se esconderem.
Apesar de se locomoverem com cuidado, eles estavam agindo em plena
luz do diz. Goblins viviam na escuridão e abominavam a luz do sol, o que
significava que geralmente saíam à noite e dormiam durante o dia nas suas
cavernas. Parn e Etoh saboreavam o calor do sol da primavera enquanto
prosseguiam.
A primeira parte do plano de Etoh era simples: usar armas de longo
alcance para eliminar quaisquer vigias. Assim eles os pegariam de surpresa.
Manteriam os rochedos atrás de si para impedir que os goblins os cercassem.
Como o sol estava a pino, o inimigo teria um problema a mais.
Parn relutou em atacar à distância, mas acabou concordando. Os goblins
eram criaturas malignas, afinal, e eram muitos para eles se darem ao luxo de ter
uma luta justa.
Ter um plano acalmou Parn, como se saber o que eles queriam fazer fosse
sinônimo de já ter vencido. Etoh, a mente por trás do ataque, ainda estava

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preocupado. Observava o amigo que avançava sem hesitar, com a mão já no cabo
da espada, e levou a própria mão ao seu talismã, recitando uma curta oração.
Quando eles chegaram à caverna, Etoh respirou fundo e olhou para o céu.
A sensação ruim que remoía o seu estômago não era sem motivo.
Lá, diante deles, estavam dois goblins. Tinham forma humanoide, mas só
metade da altura de um homem adulto, e seus braços nus eram finos e tortos
como os galhos de uma árvore seca. Não tinham cabelo e suas cabeças carecas
faziam seus olhos e orelhas já grandes parecerem ainda maiores. Os narizes eram
tão achatados que as narinas pareciam dois buracos no meio da face, e as bocas
eram cortes com presas amareladas e línguas cor de sangue vazando. Usavam
trapos sujos enrolados sobre a pele avermelhada e adagas primitivas se
penduravam nas cordas amarradas na cintura. Cada um deles segurava um
escudo de madeira na mão esquerda e estava um pouco corcunda e piscando sem
parar, provavelmente devido ao forte brilho do sol.
Ainda não tinham notado Parn e Etoh escondidos em meio às rochas.
Estavam entediados, andando de um lado para o outro sem realmente prestar
atenção em nada.
- Parece que vamos ter que improvisar. – cochichou Etoh com um sorriso
forçado. Eles imaginaram que haveria apenas um vigia e, com o arco de Parn e o
estilingue de Etoh, havia uma boa chance de nocautearem um único inimigo de
uma vez. Com dois oponentes, se qualquer um deles errasse o alvo, o plano
fracassaria.
Etoh tirou seu estilingue da bolsa e desajeitadamente começou a reunir
pedras.
- Eu pego o da direita. Você, o da esquerda. – murmurou Parn enquanto
tirava o arco do ombro e apertava a corda. Pegou duas flechas de carvalho e pena
de águia e encaixou uma no arco, puxando a corda. Etoh enfiou uma pedra no
estilingue e se posicionou também.
Ao sinal de Etoh, os dois deixaram as armas voarem.
- Gah! – os goblins grunhiram ao serem atingidos. Os dois balançaram,
mas só um caiu. A pedra de Etoh atingira o goblin no meio da testa e esmagara o
seu crânio, mas a flecha de Parn errou o alvo, se enterrando no ombro direito do
goblin, mas deixando-o vivo.
- Hofurk! – uivou o goblin sobrevivente para a caverna.
Droga! – pensou Parn, rapidamente colocando outra flecha no arco e
disparando. Desta vez, ela perfurou o intestino da criatura, que caiu ao chão
jorrando sangue vermelho escuro.
- Não temos escolha, vamos ter que matá-los um a um agora. – Parn pulou
de trás das rochas, seguido de perto por Etoh. As armaduras rangiam com os
movimentos bruscos. Parn sacou sua espada e apontou para o céu, a lâmina
brilhando com o reflexo do sol.

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Etoh, determinado a pelo menos tentar seu plano, tirou dois frascos de
óleo da bolsa e jogou na caverna. O vidro se quebrou, espalhando um líquido
gosmento por toda a parte. Mas, quando pegou sua pederneira para atear fogo,
percebeu que já era tarde demais – as criaturas hediondas já se lançavam para
fora da caverna. Alguns escorregaram no óleo e caíram e um bateu a cabeça numa
pedra e parou de se mexer, mas o resto continuava vindo.
- Morram! – bradou Parn ao lado dele.
- Parn! Encoste nas rochas pra eles não poderem nos cercar! – gritou Etoh
antes que Parn pudesse mergulhar na briga. Etoh recuou; Parn hesitou por um
momento, mas fez o mesmo.
Os goblins já estavam quase em cima deles. Cada um estava armado com
um machado ou uma adaga, rudimentares e enferrujados e repugnantes. Todas
as lâminas estavam cobertas por um grosso líquido verde.
- Cuidado, as lâminas estão envenenadas! – avisou Parn. Com as rochas
atrás deles, pelo menos a única preocupação eram os inimigos à frente, mas
ambos ainda tinham de enfrentar múltiplos inimigos de uma vez. Não havia
escapatória: o único jeito de sair dali era exterminar completamente os goblins ou
morrer.
Parn manuseava a espada e o escudo habilmente, bloqueando um ataque
enquanto desferia outro. Um goblin não conseguiu bloquear e caiu, com sangue
jorrando do seu ombro. Parn deu cabo definitivo dele com uma estocada nas
costas. Ele podia não ser um veterano experiente, mas era melhor que simples
goblins.
Etoh fora treinado em combate no Templo de Pharis e estava acostumado
a usar clava e escudo, além de magias sagradas de ataque. Com sua armadura
mais leve, ele era mais rápido que Parn – dançava elegantemente em meio aos
golpes dos goblins e despejava a clava com toda a força quando via uma abertura.
O ranger de metal com metal e o som opaco de carne sendo cortada se
misturaram. Um a um, os goblins caíam, mas os sobreviventes não faziam sequer
menção de recuar. Continuavam determinados a proteger o seu lar.
Com a batalha se arrastando, Etoh começou a ficar cansado. Seus braços
pareciam feitos de chumbo. Parn percebeu a queda no desempenho e tentou
protegê-lo, balançando a espada em grandes arcos para ameaçar os goblins que
atacavam seu amigo. Ele também já estava se cansando, mas seu corpo atlético
tinha mais resistência.
Eles haviam dizimado cerca de metade da horda – uma dúzia de corpos
estavam espalhados ao seu redor, poluindo o ar com o fedor de sangue. Mas os
goblins restantes escalavam corajosamente os cadáveres. Talvez sua ira superasse
o medo, ou talvez pudessem sentir o cansaço dos humanos; goblins eram ferozes
quando sentiam o cheiro da vitória.
- Acabou... – murmurou Parn. Suas defesas estavam mais lentas e seus pés
mal se moviam. Etoh foi tomado por um acesso de tosse e caiu contra as rochas.

18
Parn sabia o que tinha que fazer. Jogou o escudo no chão e, empunhando
a espada com as duas mãos, proferiu um brado poderoso para reunir toda a
coragem que tinha. Então se jogou sobre os dois goblins que pretendiam matar o
imobilizado Etoh e avançou como um louco sobre os cinco outros que restavam.
Isso vai ser uma morte honrada?, ele se perguntou. Morrer em batalha devia
ser um fim nobre para um guerreiro. Mas, mesmo assim, a batalha perdida do
seu pai contra bandidos fora considerada desonrosa, forçando Parn e sua mãe a
irem embora de Valis para sempre. Uma doença reivindicou a vida de sua mãe
quando ele tinha dez anos e, desde então, Parn ajudava em plantações e caçava
na floresta para ganhar a vida. Com dezesseis anos, quando finalmente coube na
armadura do seu pai, ele foi para Flaim enfrentar selvagens do deserto como
mercenário; depois disso, voltou para casa, fazendo trabalhos como guarda na
vila ou às vezes acompanhando caravanas, sempre esperando uma chance de
retornar ao campo de batalha. Esse era o seu sonho – ser um cavaleiro, servir a
um rei onde quer que fosse.
Se a minha morte não for honrada, qual terá sido o propósito da minha vida?
De repente, ele sentiu uma dor quente tomar conta do seu braço esquerdo.
Um goblin o pegara por trás. Rangendo os dentes, Parn se virou e o matou. Mas
isso o deixou numa posição desajeitada em que as pernas não suportavam o peso
da armadura. Metal bateu contra rocha numa chuva de faíscas quando ele caiu
de joelhos.
Outro goblin pulou e o apunhalou na coxa esquerda. A adaga se afundou
no músculo e, quando ele tentou tirá-la, cada puxão enviava uma nova onda de
dor pelo corpo de Parn.
Logo, porém, a dor começou a se esvair, e o mundo ficou lento, como se
ele estivesse andando debaixo d’água. O veneno das lâminas funcionava rápido.
Parn tentou ficar de pé, mas não tinha mais forças. Até virar o pescoço para
procurar Etoh parecia um esforço impossível.
Tudo que ele podia ver era o céu azul sem nuvens. De repente, ele se sentiu
estranhamente livre. Deixou cair a espada e relaxou os braços. Aguardou em paz
o goblin sujo que vinha na sua direção enfiar a adaga na sua garganta.
E então uma flecha atravessou o peito do goblin.
Ele caiu imediatamente, como que num passe de mágica. Parn ouviu uma
voz desconhecida falando, mas não conseguiu entender as palavras. Sua visão
começou a enegrecer, a respiração já não era suficiente.
Quando a escuridão tomou conta de tudo, um último pensamento veio à
sua mente.
Agora eu entendo, pai...
E tudo ficou escuro.

- Parece que chegamos no último segundo. – Slayn deixou escapar um


suspiro de alívio quando Ghim derrubou com sua besta o goblin que atacava.

19
Três dos goblins notaram os novos inimigos. Deram um berro estridente e
atacaram, mas Slayn fez um rápido movimento com o cajado e começou a recitar:
- Brisa tranquila que traz o sono...
Os goblins que avançavam tombaram repentinamente, como se tivessem
tido a alma arrancada do corpo. Slayn usara o feitiço Nuvem de Sono, que criava
uma neblina soporífica no ar. Só dois goblins restaram.
Ghim trocou a besta pelo seu machado de batalha e atacou. Com um golpe,
separou a cabeça de um dos goblins do seu corpo – o rosto voou ainda com uma
expressão de choque. Quando o outro se virou em pânico para fugir, o machado
o acertou na lateral, partindo o corpo ao meio e mandando a metade de cima
longe numa chuva de sangue.
- Acabe com os que estão dormindo, por favor. – pediu Slayn enquanto
examinava cuidadosamente os arredores. Nada mais se movia. Ele voltou suas
atenções para o lar dos goblins. Concentrou-se por um movimento e recitou um
curto encantamento, enviando sua mente para dentro da caverna. Avançando
lentamente, procurou por qualquer criatura que ainda pudesse estar escondida.
Quando confirmou que a caverna estava limpa, parou o encantamento e
disse:
- Estamos seguros agora.
- Também já terminei. Estão todos mortos. – disse Ghim ao decepar sem
remorso o último goblin adormecido.
Slayn assentiu e foi até Parn. Ajoelhando-se, pressionou os dedos contra o
pescoço do rapaz. A mão voltou coberta de sangue.
Ele está vivo, pensou Slayn, mas isso é ruim.
- Preciso de ajuda aqui! – gritou ele para Ghim – Temos que levá-lo para
casa agora. Ele não tem muito tempo.

Slayn e Ghim carregaram Parn até a casa do feiticeiro, tiraram a armadura


e o deitaram na cama – ele tinha ferimentos na cabeça e na perna, mas o mais
grave era o ombro. Eles levaram Etoh também. O sacerdote não estava ferido,
mas havia perdido a consciência por usar mais magia do que o seu corpo
aguentava – quando finalmente acordou, fechou sem demora os ferimentos de
Parn com magia de cura, mas a essa altura o veneno dos goblins já estava
correndo pelo corpo dele, e Etoh não sabia nenhum feitiço de desintoxicação. Ele
e Slayn tentaram todos os tratamentos nos quais conseguiram pensar, mas por
vários dias nada pareceu fazer muita diferença.
No terceiro dia depois da batalha, Parn foi tomado por uma febre alta e
sua recuperação parecia impossível. Etoh foi até o córrego várias vezes pegar gelo
para resfriar seu corpo ardente – mas só a própria força e vitalidade do rapaz
conseguiriam salvá-lo.

20
A febre baixou na manhã seguinte, finalmente deixando-o ter um sono
profundo e tranquilo que durou até o anoitecer. Dali em diante, ele se recuperou
depressa – mas ainda ficou limitado à cama por mais três dias.
Era a décima noite desde a batalha com os goblins. Slayn estava sentado
num canto, lendo seus livros antigos como de costume, quando alguém bateu à
porta.
- Ah, são vocês dois. – ele ouviu Ghim dizer na porta.
- Quem é? – perguntou Slayn se aproximando, só para ver Parn e Etoh
parados respeitosamente na porta. Ghim estava oferecendo desajeitadas palavras
de encorajamento, as quais pareceram desconcertar Parn, que respondeu de um
jeito estranhamente travado – Você parece bem melhor. – disse Slayn olhando
Parn de cima a baixo. O rapaz tinha perdido um pouco de peso, mas continuava
saudável e seus olhos mantinham o mesmo brilho da juventude.
- Obrigado por tudo. – disse Parn, curvando-se ante Slayn.
- Você devia agradecer ao seu amigo. Ele deu tudo de si cuidando de você.
Sua vida talvez não tivesse sido salva sem ele. – enquanto falava, Slayn notou
que Parn estava inquieto – Mas parece que você não veio aqui hoje só por causa
de gratidão. Entrem. Só não reparem na bagunça.
- Obrigado. – respondeu Parn. Ele e Etoh trocaram um olhar e assentiram
um para o outro antes de entrar.
Como Slayn advertira, sua pequena casa estava uma confusão, abarrotada
de livros, equipamentos e toda sorte de materiais usados para magia. Quatro
pessoas era gente demais ali e, como não havia cadeiras suficientes, Etoh e Ghim
acabaram se sentando na cama.
Parn corria os olhos pelo lugar. Ele parecia não saber por onde começar,
mas Slayn o encorajou.
- Eu... Eu quero partir numa jornada. – enfim ele disse, ainda hesitante –
Eu nunca quis passar a vida inteira neste vilarejo mesmo, e meu desempenho
contra aqueles goblins foi uma completa vergonha. E aí, quando eu acordo, todo
mundo está me chamando de herói? Ser elogiado por uma coisa que eu não fiz
só me dá raiva de mim mesmo.
- Independentemente de como terminou, você merece ser chamado de
herói pelo que fez. Não seja tão duro consigo mesmo. – respondeu Slayn, mesmo
sabendo que Parn não aceitaria isso.
- Há tanto mal em Lodoss. – continuou Parn – Coisas muito piores que os
goblins. E eu sei que não sou forte o bastante ainda para derrotar esse mal.
Mesmo assim, eu quero ir. Na verdade, é por isso que eu quero ir. E Etoh
concorda comigo. Então decidimos partir juntos. Assim podemos ajudar um ao
outro.
- Então vocês querem aprimorar suas habilidades? – perguntou Slayn –
Faz sentido. Mas por que vieram até aqui me dizer isso?

21
- Queremos que você venha conosco. – disse Parn, sem cerimônias – Você
é um feiticeiro e magia é um instrumento poderoso contra o tipo de coisa que
teremos que enfrentar. Eu ouvi dizer que até existem alguns monstros que são
imunes a tudo, exceto magia! Então... Você poderia se juntar a nós?
Ghim deu uma risada com todas as forças.
- É uma boa ideia, Slayn. E quanto a mim, bom, também estou começando
uma jornada. Acho que não faria mal irmos todos juntos por um tempo. Com
esse feiticeiro e seus truques a bordo, pelo menos nunca passaremos fome.
Slayn olhou firme nos olhos de Parn. Ele reconhecia aquele olhar firme,
decidido. Quando ainda estudava na Academia de Magia em Allan, ele tinha um
amigo – um mercenário com um forte senso de justiça, como Parn. O tipo de
homem que sempre se metia em todo problema possível lutando pelo que achava
certo.
Um dia, ele pediu ajuda a Slayn para se infiltrar na Guilda dos Ladrões.
Era uma empreitada perigosa, mesmo com um mago ajudando, e Slayn recusou
– e tentou ao máximo dissuadir o amigo. No fim, não conseguiu fazê-lo mudar
de ideia e, a contragosto, pelo menos lhe emprestou um anel encantado de
invisibilidade.
Três dias depois, seu amigo estava morto, atingido no peito por uma adaga
envenenada.
Passado algum tempo, ele descobriu que o líder da Guilda – um homem
conhecido pela sua vilania – fora encontrado morto. A Guilda o substituiu por
um líder mais ortodoxo que respeitava o código dos ladrões. Seu amigo tornara
a cidade um lugar melhor. Mesmo assim, Slayn tinha arrependimentos. Ele ainda
desejava ter encontrado um jeito de impedir o amigo naquela última noite em
que o viu vivo.
Ele nunca esqueceria a sinceridade nos olhos do seu amigo. E agora havia
um jovem com o mesmo olhar bem na sua frente, partindo numa jornada para
enfrentar sabe-se lá que tipo de males.
- Vai ser perigoso, não é...? – murmurou Slayn.
- Como? – perguntou Parn, que não conseguiu ouvir o que ele dissera.
- Estou sendo forçado a tomar a mesma decisão outra vez. – Slayn se
perguntou se aquilo era uma obra de Rahda, o deus da sabedoria. Ele sabia que
mesmo que persuadisse Parn a ficar, isso não mudaria nada: sua juventude, seu
senso de justiça e sua incapacidade de entender que às vezes recuar era a melhor
opção acabariam por matá-lo cedo ou tarde.
Mas Slayn era diferente agora. Era mais inteligente e mais vivido, além de
controlar uma magia muito mais poderosa que a de quando vivia em Allan.
Talvez esse jovem ele pudesse proteger.
Slayn fechou os olhos e deixou um silêncio pétreo tomar conta da sala,
para então dizer, resoluto:

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- Tudo bem. Irei com você. – em seguida, abriu os olhos e se voltou para
Ghim – E o Ghim está louco por uma aventura, por algum motivo.
- Hm... – resmungou Ghim, desviando o olhar.
- Mas nada muito perigoso, por favor. Sou um homem pacato. – disse ele
olhando seriamente para Parn. Ghim, porém, deu uma risada.
Etoh e Parn se entreolharam. Eles tinham conseguido o que queriam –
muito embora estivessem estupefatos com isso.

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Capítulo 2
As Sombras Negras em Alania

A floresta terminava numa pequena colina coberta de grama até a altura


dos joelhos que balançava com a brisa da noite.
Próxima às árvores, uma sombria figura cinzenta ergueu as duas mãos;
uma estranha voz se fez ouvir, sendo carregada pelo vento. Um feixe vermelho
cortou o céu, brilhando cada vez mais até se transformar numa enorme bola de
fogo – que seguiu diretamente para as muralhas do grande castelo no topo da
colina.
Um brilho ofuscante deixou o céu todo vermelho, e um momento depois
uma explosão retumbou. As muralhas desabaram e foram engolidas em chamas,
fazendo as sombras do castelo imperial de Kanon, Shining Hill, chiarem e
dançarem.
O Imperador Beld do Império de Marmo observava com toda a solenidade
de um sacerdote que executa uma cerimônia sagrada, montado no seu grande
cavalo negro e vestindo uma armadura vermelha como o sangue e uma capa
negra. Ele era um homem de idade considerável, certamente acima dos sessenta,
mas mantinha a aparência e a mentalidade de alguém no auge da juventude –
graças ao poder da colossal espada na sua cintura.
Beld derrotara o Rei Demônio para conquistar a arma sombria e, desde
então, usou a espada longa e larga para destruir incontáveis vidas. Ela parecia
vibrar de prazer toda vez que encontrava um novo sacrifício.
O próprio Beld às vezes via um demônio quando se olhava no espelho.
Um urro de vitória se formou em meio aos cem cavaleiros atrás dele
quando o castelo queimou, mas a expressão de Beld não mudou. Ele sabia que
aquilo era apenas o começo. As muralhas podiam ter caído, o fogo podia ter
causado caos, mas seus homens ainda eram dez vezes menos numerosos que os
soldados que os aguardavam lá dentro.
Beld avançou lentamente para fora das sombras da floresta, olhando em
seguida para suas tropas, que aguardavam um sinal. Levantou a mão direita e a
desceu com a velocidade de um raio.
Os cavaleiros de armadura negra galoparam para fora do esconderijo e
começaram a subir a colina que levava ao castelo. O barulho da cavalgada só não
era maior que o dos seus berros furiosos.
Beld sacou sua espada. A lâmina negra absorvia e prendia toda a luz,
intimidando mesmo na escuridão de uma noite sem lua. A energia maligna que

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emanava dela pesava o ar ao redor. Ele ergueu a espada e posicionou paralela ao
chão, preparando-se para atacar também.
- Vai participar também, Majestade? – perguntou uma voz atrás dele.
Beld habilmente virou seu cavalo na direção da voz. A mulher ao seu lado
parecia ter pouco mais de vinte anos, com longos e finos cabelos negros e uma
misteriosa tiara na testa – várias fitas douradas agrupadas com uma joia verde
no centro e duas pedras vermelhas, que mais pareciam olhos, nas laterais.
O nome da mulher era Karla, mas Beld não sabia mais nada sobre ela.
Nada exceto que era uma bruxa excepcionalmente poderosa e que estava do seu
lado – o que era tudo que importava.
Wagnard, o feiticeiro da corte, o advertira várias e várias vezes de que os
estranhos poderes mágicos dela eram perigosos. Mas essa mesma magia perigosa
acabara de estraçalhar as muralhas de Shining Hill como se fossem papel.
Beld sorriu e ergueu sua espada para Karla, manuseando-a com uma só
mão.
- A espada anseia por mais sangue. E o humano é o seu favorito.
- É mesmo? – disse ela – Talvez o mesmo possa ser dito sobre você. Afinal,
toda espada reflete o que o seu mestre é. Pelo menos, é o que dizem.
- De fato. – Beld riu, mas quase não era possível ouvir agora que os sons
da batalha já se faziam fortes – Mas também pode-se dizer o mesmo sobre magia.
Suas chamas revelam suas tendências destrutivas. – disse ele, gesticulando na
direção do castelo inflamado.
- Talvez... – Karla sorriu friamente – Muito bem, meu trabalho aqui em
Kanon está feito. Partirei em breve para Valis. Há eventos em andamento e
preciso me preparar para o próximo passo.
- Você é muito ocupada. – respondeu ele – Ouvi dizer que está planejando
alguma coisa em Alania também.
- Sim, tenho muitos planos em andamento. Todos são necessários para
torná-lo o senhor supremo de Lodoss.
- Estou ansioso por isso. – Beld virou o cavalo na direção da batalha e
partiu a toda a velocidade. O animal subiu a colina como um raio, desaparecendo
rapidamente ao longe.
Beld nunca duvidou que venceria.

A cidade de Allan, capital de Alania, ficava a uma distância de cerca de


dez dias de viagem a sul de Zaxon. O castelo localizado lá, Stone Web, era onde
o Rei Kadomos VII e sua família viviam. A cidade era conhecida pela sua rica
história de 400 anos e por ser o centro cultural de Lodoss. As construções e ruas
eram todas de pedra, erguidas pelos anões e jamais modificadas desde os dias da
antiguidade.

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Parn e seus companheiros viajaram para Alania a pedido de Ghim. A ideia
original era fazer um pouso na cidade e depois seguir para o oeste, passando por
Norvis e o Deserto de Fogo e Tempestade, para por fim chegar a Valis por Flaim.
Mas havia uma forte tempestade de areia varrendo o deserto, o que os obrigou a
mudar a rota – o único caminho aberto para Valis era passando por Kanon, ao
sul.
Allan, uma cidade geralmente reconhecida pela sua tranquilidade, estava
no meio de um agitado festival quando eles chegaram. Era uma celebração em
honra ao nascimento do primeiro filho do Rei Kadomos VII, um príncipe nascido
apenas cinco dias antes. As ruas estavam cheias de barracas de comida e havia
multidões por toda parte. O agradável sol de início de verão ajudava a aumentar
a empolgação. Caminhando pelas ruas de pedra, Parn e seus companheiros se
alegravam com o que viam.
- Parece que viemos na época certa. – grunhiu Ghim em meio a bocadas na
coxa de frango que acabara de comprar.
- Sem dúvida. – concordou Parn.
- É tão auspicioso um príncipe ter nascido. O futuro da família real de
Alania agora está garantido. – Etoh olhava ao redor com bênçãos brilhando no
seu rosto.
- Não tenho nada contra festivais, mas estou cansado da jornada. Gostaria
de encontrar uma acomodação antes de mais nada. – Slayn, como sempre, se
arrastava atrás de todos os outros. Eles estavam caminhando desde de manhã
sem descansar, então ele estava sem fôlego – para um acadêmico mais velho
como ele, era difícil acompanhar jovens como Parn e Etoh, ou alguém incansável
como Ghim.
- Você está fora de forma porque lê demais. Precisa fazer mais exercício. –
repreendeu Ghim, jogando uma olhada para Slayn. Este murmurou qualquer
coisa e correu para alcançá-los – Por outro lado, eu estou com muita fome.
Deixando a moleza de lado, precisamos comer alguma coisa em alguma
estalagem, senão vamos todos morrer de fome antes mesmo que possamos ficar
cansados. – continuou Ghim em meio a outra abocanhada no frango.
Como aquela já era a terceira coxa de frango, Etoh estava pasmo com a
barriga sem fundo de Ghim. O anão mal chegava à altura do peito de Parn, mas
comia três vezes mais que ele. Etoh ponderou se os boatos eram verdadeiros – os
boatos de que todos os órgãos do corpo dos anões serviam para digestão.
Seguindo a sugestão de Slayn, os quatro rapidamente encontraram um
lugar para se hospedar: uma estalagem chamada Floresta de Cristal, espremida
discretamente num beco próximo à avenida principal. Apesar do nome poético,
a construção não era nada impressionante – mas, para um grupo com poucos
recursos numa cidade abarrotada de visitantes, era o melhor que se podia
conseguir.

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- Para o festival! – gritou Parn, engolindo o que restava da sua comida e já
puxando Etoh pelo braço. O sacerdote se levantou com uma risada e Ghim seguiu
o movimento.
- E quanto a você, Slayn? – perguntou Ghim ao feiticeiro, que permanecera
no seu assento.
- Não liguem pra mim, vão se divertir. Há um outro lugar onde eu preciso
ir, mas estarei de volta até o anoitecer.
- Oras, como se eu tivesse tempo pra me preocupar com um feiticeiro! Você
vai àquela academia, não é?
Slayn assentiu.
- Então nós já vamos. Mas você realmente devia relaxar de vez em quando.
Vai acabar sufocando no meio de tantos livros.
Slayn começara seus estudos na Academia de Magia de Allan quando
tinha doze anos. Sua mãe era de uma família de classe média da cidade e, ao
planejar o futuro do seu pequeno gênio, usou a influência da família para fazer
com que fosse admitido. Slayn viveu sozinho na cidade durante a maior parte da
sua vida – até que seu amigo foi morto. Temendo a retaliação da Guilda dos
Ladrões, ele fugiu.
Já fazia anos que ele não a via, mas a cidade continuava a mesma. Nada
parecia ter mudado. Subindo o morro que levava à Academia, uma onda de
nostalgia tomou conta dele. A Academia ficava nos limites da cidade, erguida
sobre um morro que dava vista para o porto – uma edificação majestosa feita
inteiramente de mármore negro e tão grande quanto um pequeno castelo. Tanto
ela quanto as torres brancas de Stone Web podiam ser vistas de qualquer lugar
na cidade.
Mas a edificação diante da qual ele se encontrava agora não se parecia em
nada com a das suas lembranças. A parte externa das muralhas estava suja, como
se não fosse limpa há muito tempo – no passado, um espírito conjurado por
magia sempre mantinha o lugar impecável, de ponta a ponta. O portão frontal
também estava diferente, muito bem trancado, e os espartos, seus guardas, não
estavam em lugar algum. Slayn ficou inquieto. O que tinha acontecido ali?
- Samalugan! – sua voz saiu trêmula quando ele proferiu o código para
abrir o portão. Com o ranger desagradável do metal enferrujado, a passagem se
abriu.
O pátio interno estava caindo aos pedaços – ervas daninhas mais altas que
Slayn cobriam o caminho até o prédio e um ligeiro fedor de fezes de animais
pairava no ar. O rosto de Slayn se contorceu numa careta. A Academia de Magia
de Allan era renomada em toda a Lodoss. Ela produzira incontáveis feiticeiros
talentosos ao longo de mais de duzentos anos. Era um lugar de inovação mágica
– e um renascimento, por menor que fosse, daquela civilização perdida de magia,
da antiga cidade de Kastuul.

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- Como isso pode ter acontecido...? – indagou Slayn ao pátio vazio, a voz
mal saindo.

Parn, Etoh e Ghim andavam apressadamente pela avenida principal. Já era


o quarto dia de festival e a cidade parecia estar no auge do fervor. Eles viram
grupos de artistas de rua de todos os cantos de Alania e ouviram trovadores
cantando sedutoras canções de amor. Parn, um rapaz do interior até o último fio
de cabelo, achava tudo impressionante – especialmente as extravagantes roupas
das mulheres. Ghim, como sempre, tomava o cuidado de experimentar todas as
comidas exóticas, e Etoh observava tudo tão alegremente que Parn teve que
perguntar por que ele estava tão feliz.
Etoh se alegrava com o festival por um motivo diferente do dos outros –
simplesmente ver a felicidade das pessoas ao seu redor era suficiente para ele.
Completos desconhecidos trocando tapinhas nas costas como velhos amigos,
música em toda parte, disputas de bebida amigáveis. Testemunhar essas coisas
renovava sua esperança em um mundo pacífico e virtuoso.
Mas então...
- Aquilo é uma briga? – perguntou Ghim de repente, apontando para um
beco ali perto.
- Uma briga? – o olhar de Parn voou para o lugar aonde Ghim apontara.
Lá, ele viu quatro homens corpulentos cercando uma pessoa mais esguia de
longos cabelos loiros e trajes verdes como a grama – É uma mulher! – exclamou
ele, correndo para o beco sem pensar mais um segundo. Com um grito de espanto
e desaprovação, Etoh foi atrás.
- Uma mulher? – murmurou Ghim, seguindo-os relutante – Não deixa de
ser verdade, mas também é uma elfa...

- Desse jeito, vocês nunca vão me pegar! – disse Deedlit, que dançava sem
dificuldade entre os homens que tentavam agarrá-la. Deu uma rasteira em um e
acertou um soco com a mão direita na sua barriga, finalizando com um chute nas
costas quando ele caiu. Mas eles continuavam vindo, cegos demais de raiva para
perceber que não tinham chance. Ela riu por dentro – como aqueles humanos
lentos eram tolos, puxando briga com uma elfa.
- Idiotas. – Deedlit pulou para se esquivar do homem que avançava como
um touro e acertou uma cotovelada nas suas costas quando ele passou.
Quando pousou novamente, ela logo viu que mais dois homens vinham
na sua direção. Pela primeira vez, uma centelha de preocupação passou pela
cabeça dela – eram amigos dos que já estavam ali? Ela correu até o que usava
armadura e desferiu um ligeiro chute giratório nos seus pés.
Ele saltou para trás para desviar, surpreso.
- Ei, eu estou do seu lado! – exclamou ele, levantando as mãos para mostrar
que não tinha más intenções.

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- Do meu lado? – perguntou Deedlit, encarando-o com suspeita. Olhos
ingênuos encontraram os dela. Ele parecia jovem. Acho que não preciso me
preocupar, decidiu ela, piscando para ele.
Nessa hora, um dos homens se levantou e a atacou por trás. Deedlit tentou
se esquivar, mas o soco a atingiu nas costas – o homem aproveitou o momento e
a segurou com força. Um gemido escapou dos lábios dela.
- Quatro homens contra uma mulher?! – berrou o rapaz, que com um
rápido movimento agarrou o homem pelo cabelo, o levantou no ar e desferiu um
soco com toda a força. O homem voou para trás e se esparramou pelo pavimento,
nocauteado. Os outros três não precisaram de mais nada para decidir fugir.
O rapaz manteve a postura de combate até que eles viraram uma esquina
e sumiram. Quando a situação parecia resolvida, se voltou para Deedlit – ela
estava sem fôlego e tossindo depois de quase ter sido estrangulada. Os longos
cabelos loiros cobriam seu rosto.
Deedlit sentiu algo se aproximando e pulou para fora do caminho por
puro instinto. Mantendo uma distância segura, ela se apoiou com dificuldade na
parede e observou seus dois “salvadores”.
Quem tinha se aproximado agora era outro rapaz, este usando uma túnica
branca e muito larga e o que parecia ser um amuleto de Pharis. Quando deu uma
boa olhada nele, o hábito sacerdotal e o rosto amável a fizeram ter certeza de que
estava tentando ajudar.
O sacerdote sorriu e trocou um olhar com o rapaz de armadura, que
também fez um rosto mais amigável enquanto tirava a poeira do seu corpo. O
guerreiro parecia uma boa pessoa, mas conseguira se esquivar do seu chute a
toda velocidade – com certeza era altamente treinado.
- Parece que lhes devo um agradecimento. – disse Deedlit educadamente,
arrumando os cabelos.
- N- Não precisa agradecer... – respondeu Parn, tentando engolir a brecha
que surgiu na sua voz quando finalmente viu o rosto dela.
Ela era tão pequena e magra que no começo ele achou que era uma criança.
Seus olhos azuis em forma de amêndoa eram enquadrados por sobrancelhas
finas e arqueadas. O nariz era pequeno, mas escultural, e os lábios vermelhos se
abriram discretamente quando ela ficou sem fôlego, revelando dentes do mais
puro branco. E as orelhas...

- É uma elfa. – cochichou Etoh. As longas orelhas pontudas não deixavam


dúvida.
- É- É... – concordou Parn. Ela era uma fada silvestre. Agora fazia sentido
ser tão pequena. Elfos eram menores que humanos, e suas fêmeas às vezes até
eram confundidas com crianças.
Ela era a primeira elfa que Parn via e sua beleza ia além de tudo que ele já
imaginara. Ele não conseguia parar de olhar.

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- Não precisa agradecer... – repetiu ele, sem rumo – Só estávamos fazendo
a coisa certa.
- A coisa certa? – bufou Ghim, que acabava de chegar – Isso não era da
conta de vocês.
- Anão! – gritou Deedlit. Disparou um olhar raivoso contra o recém-
chegado, mas se arrependeu na mesma hora. Era uma criatura hedionda, afinal.
O rosto de Deedlit se contorceu de nojo.
- É isso aí, moça elfa. – respondeu o anão, ignorando a reação dela e
continuando a se dirigir aos dois jovens – Ela teria se saído bem sem a sua ajuda.
É assim que os elfos são. Espertos e rápidos. Ladrões natos.
- Que absurdo! – reagiu Deedlit, que se colocou em posição de ataque
como um gato prestes a avançar.
- E orgulhosa demais pro seu próprio bem, aparentemente... – continuou
o anão – Aposto que foi ela que começou a briga.
- Você está pedindo! – Deedlit ia correr para cima dele, mas a mão do
guerreiro de armadura a segurou pelo braço esquerdo.
- Já chega, Ghim! – bradou ele, aparentemente indignado de verdade com
o comportamento do anão.
- Hunf... Tudo bem. Desculpe, minha intenção não era ofendê-la. – o anão
virou as costas – Vocês cuidam disso. Vou voltar pra estalagem. Não gosto de me
relacionar com elfos. – e seguiu pela avenida principal.
O rapaz o deixou ir, desapontado, e então, como que tomando um susto,
soltou o braço de Deedlit.
- Até que enfim você percebeu. – disse ela, soprando a marca vermelha em
forma de mão que ele deixara no seu braço e se perguntando como um guerreiro
podia ter tão pouco controle sobre a própria força. Ela abriu a boca para dar um
sermão, mas o que saiu foi uma risada.
Parn abriu um sorriso torto, encabulado.
- Meu nome é Deedlit. – disse ela – Permita-me lhe oferecer um jantar esta
noite como gratidão.
Parn ficou vermelho quando a elfa lhe jogou um olhar travesso.
- Hã? Mas...
- Não posso deixar você pensando que os elfos não têm educação. – sem
esperar a resposta, que certamente viria cheia de engasgos, Deedlit pegou Parn
pelo braço e começou a andar.

Naquela noite, os bares estavam todos lotados. As barracas das ruas já


haviam fechado e a multidão diminuíra, mas todos que ainda tinham alguma
energia se enfiaram nas tavernas e estalagens. Parn perambulou por várias até
conseguir conquistar um lugar numa mesa de uma pequena taverna.

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Ele ainda estava surpreso com o quão rápido tudo aconteceu. Ele saíra da
Floresta de Cristal com Etoh e Ghim para passear e agora estava bebendo com
uma jovem moça élfica – bom, pelo menos ele achava que ela era jovem, mas,
conhecendo a longevidade dos elfos, não havia como saber a sua verdadeira
idade.
Incitado por Deedlit, ele virava caneca após caneca de cerveja e começou
a falar sobre si mesmo para ela.
- Você está numa jornada? – exclamou ela com um interesse exagerado,
arregalando os olhos. Parn já estava bêbado e não pareceu perceber a reação
forçada – Você, o sacerdote de Pharis e o anão?
- Temos um feiticeiro também. Ele é meio estranho, mas é gente boa, além
de muito forte. Odeio admitir, mas a magia do Slayn é muito mais poderosa que
a minha espada.
Slayn deve ser o nome do feiticeiro, pensou Deedlit consigo mesma e retomou
o rosto de empolgação.
- Está sendo duro demais consigo mesmo. – proclamou ela. Não era um
elogio totalmente falso. Ele fora mais rápido que ela, afinal. Ela sorriu entredentes
enquanto Parn coçava a cabeça, meio sem saber como reagir.
Deedlit estava cansada da sua vida entediante na floresta e recentemente
saíra de casa – o que tornava tudo no mundo humano novo e fascinante. Tolo e
primitivo, sem dúvida, mas ela não podia esperar que os humanos alcançassem
os mesmos padrões élficos. Entender isso era o que tornava tolerável as grosserias
ou dificuldades de vez ou outra.
De todo modo, Deedlit tinha a certeza de que era superior a qualquer coisa
que os humanos pudessem tentar contra ela. Ela sabia que nunca teria ficado em
apuros contra os quatro humanos se o jovem guerreiro não tivesse aparecido e a
distraído. O fato de um humano tão jovem, e que nem era um mestre experiente,
ter se esquivado de um ataque seu feria seu orgulho, então vê-lo se atrapalhar
numa simples conversa com o sexo oposto a fazia se sentir melhor.
A história de Parn continuava a voltar no tempo. Agora ele falava sobre
uma batalha com goblins de um jeito cada vez mais difícil de entender.
- Achei que a gente ia morrer. Mas quer saber? Me senti bem na hora. Meu
pai disse a mesma coisa. Hã... Que coisa? Ah, esqueci... Ah, é! É por isso que eu
estou aqui! Eu e ele temos o mesmo objetivo... Vou pra Valis pra ver. O Rei Fahn
está lá. Ele é um grande herói. E muitos cavaleiros. O meu pai era um deles, sabia?
É por isso que eu quero ser um guerreiro também. Por enquanto eu sou só um
mercenário. Mas trabalhei pro rei de Flaim e ele já foi mercenário que nem eu...
Então eu posso fazer como ele, né? Eu posso ser rei... Não, acho que não, ser um
herói seria melhor...
Enquanto ouvia as divagações do rapaz, Deedlit se atentou a uma coisa
em particular.
- Você vai para Valis para ver o quê? – indagou ela discretamente.

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- Hã? Não sei... – respondeu ele – Ainda não vi.
- Isso me parece mais uma charada.
- Quem mexe com charadas é o Slayn, não eu. – disse Parn – Ele tem um
apelido estranho, “Caçador de Estrelas”. Dizem que é porque ele está procurando
pela sua estrela. Eu gosto do nome que os meus pais me deram. Parn. Mas não
ligo quando alguém me coloca um apelido. – Parn esfregou os olhos e olhou
vagamente para a linda criatura na sua frente – Quer vir com a gente? Vai ser
divertido! Somos um grupo muito legal. O Ghim é ranzinza, mas no fundo tem
um coração bom. O Slayn é esquisito, mas é muito poderoso, mais que a minha
espada até... Ah, espera, eu já disse isso. E o Etoh é tão calmo e inteligente... Ele
vai ser o Sumo-Sacerdote de Pharis algum dia e vai me abençoar quando eu virar
cavaleiro.
Com a noite avançando, Deedlit deduziu que era melhor levar Parn de
volta para as suas acomodações enquanto ele ainda conseguia andar. O rapaz
mencionara que estava hospedado na Floresta de Cristal – talvez ela conseguisse
um quarto lá também.

Quando eles chegaram à Floresta de Cristal, Slayn, Etoh e Ghim estavam


sentados em volta de uma mesa no bar do primeiro andar. Homens bêbados
cantavam o hino nacional e brindavam ao rei.
Slayn viu Parn cambalear para dentro, claramente bêbado e acompanhado
de uma elfa. Levantou-se surpreso da cadeira – Etoh já tinha contado a história,
mas ver com os seus próprios olhos era outra coisa. Ghim bufou seu desprazer e
Etoh só sorriu meio sem jeito.
O feiticeiro se recompôs e analisou a elfa que sorria travessamente. Ela
parecia jovem, mas seus olhos tinham um brilho misterioso. Com discrição, ele
levou a mão ao cajado.
O movimento não passou despercebido a Deedlit. Ela deduziu que aquele
era o famoso Slayn que Parn mencionara. Deslizou a mão esquerda até a cintura
e tocou o cantil pendurado no seu cinto. Lá dentro, ela mantinha a elemental da
água Ondina – não particularmente poderosa, mas capaz de impedir o feiticeiro
de conjurar alguma coisa num primeiro momento. Um momento longo e tenso
se arrastou entre os dois.
Foi Slayn quem desarmou a tensão. Ele estava em alerta desde que soube
da destruição da Academia, mas, assim que teve um momento para pensar,
percebeu que não havia motivo para aquela elfa fazer mal a eles. O grupo não
tinha dinheiro, poder ou status. E embora por um momento ele tenha cogitado a
hipótese de que ela fosse da Guilda dos Ladrões, sabia que um elfo jamais se
juntaria a uma organização dessas.
- Prazer em conhecê-la. – disse Slayn no seu tom de voz solene e gentil de
sempre – Estávamos falando de você agorinha, para dizer a verdade. Obrigado

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por trazer o Parn de volta. – Slayn encostou o cajado novamente na mesa onde
ele estava antes.
- Eu tô bem! – sinalizou Parn meio torto para Slayn.
- Isso é estar bem? Você devia ir pra cama. Etoh, você pode...? – Etoh fez
que sim e se levantou, apoiando Parn no ombro para ajudá-lo a andar.
- Bêbado com cerveja? Patético. – grunhiu Ghim – Ou talvez tenha sido a
exposição à elfa. – continuou, alto o bastante para Deedlit ouvir.
- Comparar a constituição humana à anã não é justo. Os humanos podem
ser fracos fisicamente, mas ao menos não são venenosos como os anões. – Deedlit
sorriu e cumprimentou Ghim graciosamente. O gesto fez o anão rir de verdade.
- Você tem uma língua afiada! Gosto de você. Permita que eu me desculpe
pelo que disse antes. Não é nossa culpa que nossas raças não se dão bem. – o anão
sorriu e levantou a caneca para Deedlit – Um brinde a um velho adversário. Nós
prometemos aceitar um ao outro depois da Guerra dos Demônios, afinal.
- É verdade... – Deedlit concordou meio a contragosto, observando Etoh
carregar Parn para o segundo andar.
- Venha. Sente conosco. – Slayn puxou uma cadeira e gesticulou para que
Deedlit tomasse o lugar. Ela hesitou, mas depois de um momento relaxou e se
juntou a eles – Acho que devemos conversar, para desfazer quaisquer mal-
entendidos. – disse o feiticeiro, olhando nos olhos esmeralda dela.
- S- Sim. – respondeu ela, desviando o olhar do dele – Meu nome é Deedlit.
– e começou a contar sua história como que sob o efeito de magia.

A manhã depois de um festival sempre parece vazia, e as ruas de Allan


naquela manhã estavam muito mais quietas que o normal. Woodchuck vagava
pela cidade, evitando a avenida principal – afinal, manter-se em lugares escuros
e quietos era hábito para um ladrão.
Ele vestia camisa e calça marrom escuro, uma armadura de couro fosco e
botas de couro preto com solas cobertas de pelo, para diminuir o barulho dos
passos. Suas únicas posses eram as roupas no corpo, uma adaga e três facas na
cintura e algumas moedas no bolso.
- Bela piedade essa da Guilda. – resmungou ele, vendo as ruas de Allan
pela primeira vez em vinte e dois anos. Mas ele não estivera fora, viajando esse
tempo todo. Passara as últimas duas décadas dentro das muralhas da cidade.
Esses anos, porém, foram perdidos dentro dos calabouços de Stone Web.
Sua única vista em todo esse tempo fora a cela do outro lado, o velho cansado
preso lá e o guarda mal-humorado que trazia sua comida duas vezes por dia.
Woodchuck respirou fundo o ar fresco da manhã e se perguntou como
conseguira não sufocar naquela masmorra fétida. Ele fora perdoado depois do

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nascimento do príncipe, libertado na hora. Mas tinha perdido vinte e dois anos
da vida, bem como a juventude.
Eu nem cheguei a consumar o furto, pensou ele, indignado. 22 anos antes, ele
invadiu uma mansão, mas cometeu um erro e foi pego. Quando foi colocado
diante do jovem Kadomos VII para ser julgado, bastou o rei olhar para ele para
decretar uma sentença de vinte anos sem nem dar a Woodchuck uma chance de
se explicar.
Com apenas algumas poucas palavras, Kadomos o condenara a viver os
melhores anos da sua vida atrás de grades.
Apesar do recente perdão, ele ainda guardava rancor. Durante o festival,
teve vontade de cuspir nas pessoas que comemoravam – mas controlou o desejo
roubando suas carteiras. Ele não cometeu nenhum erro, mas rapidamente
percebeu que suas habilidades furtivas já não eram mais as mesmas. Ele fora
capaz de exercitar o corpo durante aqueles anos na prisão, mas não havia como
praticar furtos. A idade avançada também reduzia sua agilidade.
A única outra chance para ele seria ir à Guilda dos Ladrões e pedir um
lugar no seu conselho. Mas a liderança da Guilda mudara ao longo dos últimos
22 anos – e o novo líder, que ele não conhecia, o escorraçou, dizendo que teria
que pagar 10 mil moedas de ouro para conseguir o privilégio. Se não tivesse
perdido todos aqueles anos na prisão, Woodchuck poderia ser um alto executivo
na Guilda agora, ao invés de ter que implorar miseravelmente por um lugar.
Woodchuck estava furioso, mas sabia que não podia ser imprudente logo
agora. Deixou a humilhação passar. O líder da Guilda então ficou com pena dele
e lhe deu uma pista para um trabalho que poderia render muito dinheiro.
O problema era que o trabalho era difícil demais para um único ladrão.
- Preciso de companheiros. – murmurou ele para si mesmo – Em especial
de um guerreiro habilidoso. Mas antes, preciso comer também. – disse ele, e nessa
hora viu a placa da Floresta de Cristal.

Parn resmungou e bebeu mais água, na esperança de que conseguisse


engolir o pedaço de pão que estava mastigando. Etoh meditava ao lado dele,
mergulhado em orações matinais que podiam facilmente continuar até a tarde se
não fosse interrompido. Ghim, enquanto isso, continuava devorando seu café da
manhã – ele já estava na segunda porção de pão de milho e na terceira caneca de
cerveja. Deedlit bebericava um vinho doce e beliscava algumas frutas, tentando
não olhar para Ghim. Seu olhar acabou parando na direção de Parn. Slayn bebia
um copo de leite e refletia sobre sua conversa com Deedlit na noite anterior.
A garota élfica estava totalmente decepcionada com os elfos por não
fazerem nada para impedir o lento declínio da raça, o que a motivou a sair de
casa. Slayn estava impressionado com a mentalidade de Deedlit – esse tipo de
impulsividade era raro num elfo, mas Slayn o respeitava.

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Depois de esbravejar sua revolta contra todos os elfos do mundo inteiro,
ela se acalmou, arranjou um quarto e rapidamente se recolheu.
A porta do bar se abriu. Ao olhar na direção, Slayn se arrepiou. O homem
que entrara era claramente um bandido, e claro que devia fazer parte da Guilda.
Slayn o observou atentamente até que ele tomou um assento no balcão.
- Alguma coisa leve, por favor. – disse ele ao barman.
A tensão diminuiu. Slayn voltou a ler seu livro. Parn esfregava a cabeça
para tentar expulsar a horrível ressaca.
- Patético. – riu Deedlit.
- Ah, é. Slayn. – disse Ghim, empilhando seus pratos vazios – Não tive a
chance de perguntar: como foi na Academia de Magia? Valeu a pena perder o
festival pra ir lá?
- Foi horrível. – respondeu Slayn com tristeza. Fechando o livro, ele se
recostou na mesa e contou o que tinha encontrado.
Ele rapidamente descobriu que todas as atividades normais da Academia
tinham cessado. Em desespero, entrou em cada um dos prédios vazios para
investigar. Depois de muito vagar, ele se deparou com Juggle, o antigo Sábio, que
estava cuidando do que restava da Academia sozinho.
Juggle contou que os problemas começaram muitos anos atrás. Um dos
alunos mais talentosos da escola na época era um feiticeiro chamado Wagnard –
sua reputação era tão grande que até Slayn já tinha ouvido falar dele. Era um
homem que conquistara o título de feiticeiro extremamente rápido. Mas, algum
tempo depois, ele começou a buscar algo para quebrar os limites da própria
magia, recorrendo a rituais sombrios relacionados a deuses malignos. Isso ia
contra as leis fundamentais da Academia: de que a magia devia ser usada apenas
para o bem e que magia negra era estritamente proibida.
O diretor da Academia na época era Larcus, um dos grandes feiticeiros
dos tempos modernos. Assim que descobriu o que Wagnard tinha feito, Larcus o
puniu, lançando sobre ele um poderoso feitiço que lhe causaria uma dor terrível
toda vez que tentasse usar magia. Em seguida, o expulsou.
Mas Wagnard persistiu. Ele aprendeu a se concentrar além da dor e usar
magia mesmo assim, louco de vingança contra Larcus e a Academia.
Ele usou sua magia para conquistar uma enorme fortuna em Kanon, viajou
para Marmo com presentes e se tornou o feiticeiro da corte de Beld, o Imperador
das Trevas que conquistara a ilha.
Três anos atrás, Larcus morreu – e após sua morte a vingança de Wagnard
enfim se concretizou. Suas maquinações hediondas rapidamente minaram a
Academia como uma doença. Alunos e feiticeiros eram assassinados nas ruas de
Allan e nenhuma das tentativas da Academia de revidar funcionou. Um dos
mestres foi morto. A biblioteca e a tesouraria foram saqueadas; livros preciosos e
artefatos antigos foram roubados. O que restou foi reduzido a pó num incêndio.

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E com isso, a venerável Academia de Magia foi totalmente destruída. Os
mestres e feiticeiros sobreviventes se espalharam por toda a Lodoss. Só Juggle, o
mais velho de todos eles, ficou para trás.
- Que horror. – disse Etoh, apertando os punhos de raiva.
- Sim, de fato. – disse Slayn, com as mãos nos joelhos – De certa forma, eu
tive sorte de ter saído de Allan, já que assim não me tornei alvo de Wagnard.
- O reino não fez nada? – questionou Etoh.
- O que ele poderia fazer contra poderosas forças ancestrais? Mesmo que
centenas de guardas fossem despachados, nada mudaria esse destino. É esse o
nível da magia de Wagnard.
- Você não está mais em perigo? – perguntou Deedlit com cuidado.
- Provavelmente não. – respondeu Slayn sem se afetar – A Academia foi
destruída. A vingança de Wagnard está completa. Por outro lado, ele ainda deve
ter outros planos diabólicos para executar. Está trabalhando com o Imperador
das Trevas, afinal.
- Não posso perdoar esse Wagnard. – disse Parn de repente. Os outros
olharam para ele e ficaram surpresos quando ele se colocou de pé com um salto
e bateu o punho na mesa – Mas se os feiticeiros sabiam que era ele quem estava
por trás de tudo, por que não lutaram contra ele? Eles tinham magia! Eram tão
covardes assim?!
- Nem todo mundo é como você. – disse Slayn, tentando acalmá-lo – Magia
não é como uma espada. Claro que pode ser usada para matar, mas feiticeiros
não estudam magia para vencer batalhas.
- Mas e quanto ao Wort? Ele era um Sábio e um dos seis que derrotaram o
Rei Demônio! – Slayn não respondeu. Parn estava com aquele mesmo olhar que
sempre fazia quando mencionava os heróis lendários.
- Eu simplesmente não entendo porque não resistiram. – disse Parn, um
pouco mais baixo desta vez – Eu teria...
- “Eu teria enchido esse tal de Wagnard de porrada”, é isso? – disse uma
voz atrás dele. Parn se virou imediatamente, já com a mão no cabo da espada.
- Quem é você?!
- Ops, desculpe ter te assustado. – disse ele, dando um pulo para trás e
levantando as mãos. Era o ladrão que tinha sentado no balcão, que de algum jeito
fora parar no meio deles sem que ninguém percebesse.
Woodchuck estava ouvindo a conversa na mesa – um hábito comum entre
ladrões. Ele sempre fazia isso, já que era uma boa maneira de conseguir pistas
sobre alvos ou descobrir planos lucrativos nos quais ele poderia se enfiar. Até
uma conversa totalmente neutra podia revelar informações úteis.
Claro que daquela vez ele nem precisou se esforçar muito para ouvir. O
volume de Parn tornava tudo mais fácil.
- Eu estava ouvindo você falar e pensei: “Talvez esse rapaz será aquele que
finalmente derrotará o terrível Wagnard!” E eu conheço o lugar perfeito pra você

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começar essa empreitada. E aliviar um pouco dessa raiva. – Woodchuck olhava
para Parn fazendo o seu melhor sorriso de vendedor. A surpresa se derretera do
rosto do jovem e fora substituída por um interesse óbvio.
- É perigoso dar ouvidos a um ladrão. – advertiu Slayn, mais direto que o
normal.
- Eu pensei que você também ia querer ouvir isso, senhor feiticeiro. –
Woodchuck lançou um sorriso convidativo para ele, sabendo que aquele era o
seu momento – Estão dizendo por aí que os tesouros roubados da sua Academia
estão escondidos num certo lugar. Se for verdade, talvez seja possível reconstruir
a sua escola. Você seria considerado um herói.
Apesar da desconfiança, Slayn tinha que admitir que ficara tentado. Ele
sabia que nunca conseguiria realmente reconstruir a Academia, mas recuperar os
livros e tesouros seria um importante começo. E colocaria um sorriso no rosto do
velho Juggle.
Se fosse verdade...
- Olhos para discernir a verdade. – disse ele, conjurando um feitiço. Sentiu
a mágica correr pelo seu corpo e se concentrar nos ouvidos. Estava feito: se o
ladrão mentisse, Slayn saberia imediatamente – Gostaria de ouvir mais sobre o
que você tem a dizer. – disse ele a Woodchuck. Fez um gesto para que o ladrão
se sentasse numa das cadeiras vazias.
Finalmente!, pensou Woodchuck e sorriu ao se sentar. A sorte ainda não me
abandonou!
- Vou dizer o que sei, mas espero um pagamento em troca. – ele começou
com isso e logo mudou de assunto – Nossa, vocês têm uma elfa e um anão? É
uma combinação tão inesperada quanto perigosa.
- Diga logo a sua história. – disse Parn, já impaciente – Eu só saco a minha
espada pela justiça.
- É claro, jovem guerreiro. Eu garanto que isso não manchará o seu bom
nome. – riu Woodchuck.
Isso não foi mentira... – pensou Slayn – Só não foi um elogio sincero.
Quanto mais Woodchuck falava com Parn, mais achava que o rapaz seria
perfeito para o seu objetivo, então decidiu contar tudo a eles.
- Vocês são aventureiros, não são? Sempre admirei pessoas como vocês. –
enquanto falava, ele continuava se relembrando mentalmente: Seja gentil. Esses
caras são o seu passaporte pra vida boa e você está sem opções.

O ladrão atendia por Woodchuck – não era o seu nome verdadeiro, claro,
mas um apelido usado entre a comunidade de ladrões. Parn e companhia foram
para o quarto para conversarem com mais privacidade. Levaram a comida e as

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bebidas, as quais Ghim começou a consumir imediatamente. O quarto era até
grande, mas seis pessoas era um pouco demais.
- Há uma velha mansão na floresta, a cerca de três dias de caminhada para
leste. – começou Woodchuck, bebericando seu vinho – O senhor da mansão bateu
as botas 25 anos atrás, então ela está abandonada. Mas umas pessoas suspeitas
começaram a se reunir por lá ultimamente... Isso começou na mesma época em
que os tesouros da Academia foram roubados. Não são bandidos. Ou, se são, pelo
menos não têm nada a ver com a Guilda. Então um dos meus colegas foi lá dar
uma olhada e viu uma coisa interessante: um elfo negro e um ogro estavam de
guarda do lado de fora. Ele continuou observando e, depois de um tempo, um
homem de armadura chique apareceu. E ele usava o emblema de Marmo.
Um arrepio tomou conta do quarto. Marmo era infame, conhecida como o
lar de elfos negros, ogros e trolls, então a história fazia sentido.
- A Ilha das Trevas? – assustou-se Etoh – Por que estão em Alania? Estão
planejando alguma coisa?
- Não temos como saber. – disse Slayn – Mas se o Imperador Beld é tão
ruim quanto dizem, qualquer coisa pode acontecer.
- Ouvi dizer que ele estava tentando conquistar Kanon. Agora quer Alania
também? – questionou Parn.
- Só podemos especular por enquanto.
Com as palavras de Slayn, Parn cruzou os braços para pensar. Não era
nada impossível que esses guardas fossem uma força de reconhecimento para
um futuro ataque. Talvez Wagnard tivesse destruído a Academia não só por
causa de uma rixa pessoal, mas porque ela representaria uma ameaça ao ataque
de Marmo.
- Acho que devemos investigar isso. – concluiu Parn.
- Por que deveríamos meter os nossos narizes nisso? – perguntou Ghim
rispidamente – Os soldados de Alania é que têm que cuidar disso.
- Nada de soldados. – disse Woodchuck, balançando a cabeça – Essa é uma
informação valiosa! Pensem nas recompensas que vamos ganhar se trouxermos
os tesouros de volta e acabarmos com essa conspiração. Quanto vocês acham que
eu tive que pagar pra Guilda pra que me dissessem isso?
Ele não pagou nada, pensou Slayn, mas não disse ao grupo.
- Um elfo negro e um ogro... É perigoso. Elfos negros usam magia.
- E são elfos. – murmurou Ghim. Deedlit revidou:
- Elfos negros são criaturas malignas e corrompidas, que venderam a alma
ao diabo! Não temos nada em comum!
Elfos como Deedlit odiavam os elfos negros. Segundo a lenda, eles haviam
feito um pacto para servir ao Deus das Trevas. Nas antigas batalhas entre a luz e
as trevas, os elfos e os elfos negros lutaram inúmeras vezes.
Para os humanos, tais batalhas eram mitos, mas no clã de Deedlit ainda
havia alguns anciãos que lutaram nelas vivos. Eles não deixavam as lembranças

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das crueldades que viram desaparecerem: elfos negros matando homens e
mulheres sem piedade, oferecendo virgens como sacrifício ao diabo. Juntando-se
com os hediondos e excepcionalmente fortes ogros, eles comiam os elfos que
capturavam.
- Vou te mostrar como somos diferentes. – bufou Deedlit.
- Eu acho... – Parn se voltou para Slayn com um olhar decidido – Eu acho
que nós mesmos temos que fazer isso. Duvido que os soldados de Alania vão
acreditar em nós sem provas. E não queremos causar pânico espalhando boatos
sobre elfos negros e ogros.
- I- Isso. – adicionou Woodchuck.
- Parece que não temos escolha. – suspirou Slayn – Vamos com o Parn. A
chance de recuperar os tesouros da Academia não pode passar batida. E não
podemos deixar elfos negros e ogros à solta por aí.
- Estou dentro. – disse Ghim simplesmente – Eu mesmo cortarei a cabeça
desse elfo negro. Anões não gostam de elfos negros também. – e deu uma olhada
para Deedlit, que pareceu ofendida por um momento, até perceber que ele só a
estava provocando. Ela respondeu com um sorriso improvisado.
- É assim que se fala! Vai dar certo! – exclamou Woodchuck, sorrindo – E
eu também vou ajudar, é claro. Sou muito bom com estas adagas.
Slayn podia imaginar – ele sabia que a maior coisa a se temer em um ladrão
era uma apunhalada nas costas no escuro. Seu velho amigo era um guerreiro
exímio, mas fora morto antes mesmo que pudesse reagir.
- Você pode ficar com metade da recompensa. É um bom acordo? – Parn
tentou demonstrar que sabia o que estava fazendo.
- Está ótimo. – assentiu Woodchuck, que abriu um largo sorriso. Slayn não
conseguiu deixar de perceber que era uma tentativa descarada de lisonjear o
jovem inexperiente.
Por segurança, ele decidiu ficar sempre atrás do grupo. Era melhor ficar
de olho nesse tipo de coisa, afinal.

Com tudo decidido, o grupo pagou a conta na Floresta de Cristal e seguiu


para a saída de Allan no início da tarde. A estrada para o leste não estava tão
tumultuada quanto a que ligava o norte ao sul, já que o único destino daquele
lado era Margus, uma aldeia de pescadores. O único movimento era uma ou
outra carroça que passava de vez em quando, fedendo a peixe.
Eles caminharam num ritmo confortável, com Parn e Deedlit na frente.
Ghim vinha logo atrás, Woodchuck caminhava com Etoh por alguma razão e
Slayn ficou mais para trás, sempre de olho no ladrão.
Está ficando quente aqui, pensou ele, jogando o capuz na frente dos olhos
para bloquear o sol ardente do início de verão.

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O grupo seguiu o caminho por dois dias inteiros e chegou à entrada da
floresta no terceiro.
- Aqui estamos nós. – Woodchuck apontou para uma trilha que adentrava
a floresta – Isto nos levará à mansão.
- Quanto tempo pra chegar lá? – perguntou Parn.
- Cerca de uma hora.
- Que lugar peculiar pra construir uma casa. – murmurou Deedlit, olhando
saudosamente para as árvores.
- Sabe-se lá o que passa na cabeça desses ricaços. – respondeu Woodchuck.
- Teremos que tomar cuidado daqui em diante. – disse Slayn, com a voz
abafada sob o capuz. O sol estava a pino e o rosto dele completamente encoberto.
- É... – concordou Parn – Vamos indo.
Deedlit não perdeu tempo e o seguiu.
Eles andaram em fila na trilha, com Parn na frente abrindo bem o caminho
para que todos pudessem segui-lo sem dificuldade. A floresta emanava vida, e o
cheiro das folhas era refrescante. Exceto para um deles: Slayn escorregava sempre
que havia lama e seu manto agarrava nos galhos e estava ficando todo rasgado.
O que era um problema sério, já que não havia mais nenhum lugar onde fosse
possível comprar Linha Filosofal em Allan.
Quando chegaram perto da mansão, eles diminuíram o ritmo para andar
o mais silenciosamente possível. Mesmo assim, o metal das armaduras de Parn e
Etoh ressoava.
Ghim se gabara antes de que a armadura de mithril que usava não fazia
barulho como as comuns. Deedlit também usava uma armadura sobre as roupas,
mas embora ela parecesse de metal a princípio, na verdade era couro escurecido.
Fora tingido de roxo usando uvas silvestres e era decorado com um complexo
padrão.
Finalmente a grande mansão se revelou. Eles se esconderam nas moitas e
espiaram a entrada.
A coisa mais óbvia diante deles era o ogro imenso que protegia a porta. O
outro guarda, o elfo negro, tinha metade da sua altura – mas o brilho maligno
nos seus olhos era inconfundível. O ogro segurava um tacape gigantesco, o elfo
negro, uma lança.
- O que nós vamos fazer? – murmurou Parn para os companheiros. O
esconderijo limitava a visão, mas, se se aproximassem mais, seriam descobertos
na hora – Arco e estilingue?
- Não funcionou nem com goblins. – respondeu Etoh, relembrando o dia
fatídico – Nunca daria certo com oponentes como esses.
- Alguma ideia melhor então? – perguntou Parn, um pouco agressivo por
ter sido lembrado do fracasso vergonhoso.
- Magia não vai funcionar. – disse Slayn – Elfos negros são resistentes.

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- Em troca de venderem a alma ao diabo. – completou Deedlit, com um
tom de voz de desprezo. Ela sacou o florete da bainha e levou a outra mão à faca
escondida na ombreira, que fora banhada em um veneno de paralisia. Ghim
desamarrou o machado de batalha das costas.
- Eu acho... que tenho uma ideia. – Slayn se manifestou.
- Vamos ouvi-la. – estimulou Parn.
- Um feitiço que afeta indivíduos não funcionará num elfo negro. Mas eu
posso usar magia para atrair a atenção deles para outro lugar.
- Uma ilusão. – Deedlit sorriu.
- Sim, mas apenas em som. Se qualquer um dos guardas deixar o posto,
não precisaremos enfrentar os dois de uma vez, e talvez consigamos derrotar um
sem fazer alarde.
- E se os dois saírem?
Slayn riu da pergunta de Parn:
- Aí nós entramos direto.
- Sem dúvida. – sorriu Ghim, discretamente empolgado.

Slayn se concentrou no matagal atrás da mansão. Murmurou um feitiço,


fez um festo complicado com uma mão e a moita balançou violentamente.
- Slayn! – exclamou Parn, surpreso. Mas sua voz não saiu do esconderijo
deles. Ao invés disso, podia ser ouvida na direção da moita que Slayn agitara, do
outro lado. Ambos os guardas se viraram na direção e em seguida o elfo negro
dirigiu um breve comando ao ogro numa língua estranha. O ogro fez que sim e
pegou o tacape, enquanto o elfo negro pegou a lança e correu na direção do som.
- Uau, isso é muito conveniente. Você vai ter que me ensinar algum dia. –
disse Woodchuck com um sorriso – Seria um truque e tanto pros trabalhos de
furto.
- Ao meu sinal... – Slayn começou a falar, mas Deedlit já estava agindo. Ela
olhou para Parn, piscou e correu como um gato para a entrada. Parn congelou
por um momento, pego de surpresa pela ousadia dela.
- Gentis espíritos da floresta, aquele ogro é meu amigo. – sussurrou ela
enquanto corria. Era um feitiço numa língua diferente da que Slayn usava. O ogro
abriu a boca para rugir, mas no instante em que o feitiço foi concluído ele parou,
completamente sem rumo.
Na mente da criatura, tudo estava normal: Deedlit era sua querida amiga.
Ela parecia muito mais agradável que aquele elfo negro que vociferava ordens o
tempo todo.
O ogro tinha o dobro do tamanho de Deedlit e era todo feito de uma carne
deformada. Usava apenas um pano rasgado sobre algumas partes do corpo. Suas
garras afiadas e nariz desfigurado enojaram Deedlit.

42
- Bark! – murmurou ela. Significava “feio” em élfico. Sem perder tempo,
ela acelerou mais, aproximando-se do monstro com o florete apontado direto
para o seu coração.
O monstro olhava sem reação para ela quando a lâmina se afundou no seu
peito. Naquele momento, o ogro finalmente a reconheceu como um inimigo, mas
era tarde demais – Deedlit usou todo o peso do seu corpo para puxar a espada
de volta do corpo do ogro. Sangue vermelho escuro jorrou da ferida como uma
fonte. Deedlit pulou para não se sujar e se virou para seguir o elfo negro.
- Deed, cuidado! – o aviso de Parn trouxe sua atenção de volta e ela saltou
por puro reflexo. Atrás dela, o ogro moribundo esticara o braço, quase a pegando.
O monstro se revirou e tentou ficar de pé. Ele ainda tinha força considerável. Se
a tivesse atingido, poderia ter causado danos graves. Sangue escorria da boca
dele toda vez que ela se abria na tentativa de urrar.
Deedlit sentiu um suor frio escorrer pelas suas costas e seu corpo delicado
murchou como um galho ao vento. Ela não conseguia dar o golpe final.

O elfo negro sabia que fora enganado. Podia ouvir o ranger de armaduras
desconhecidas ao longe. Mas a ausência de sons de batalha deixava claro que o
ogro já estava derrotado. Retornar ao seu posto agora seria arriscado.
- Pequenos espíritos invisíveis, concedam-me sua forma. – disse ele. Ao
terminar o feitiço, sua imagem desapareceu. Invisível, ele correu, cautelosa e
silenciosamente, de volta para o seu posto.
- O elfo negro não voltou. – disse Parn, olhando preocupado ao redor.
Deedlit estava como uma sombra atrás dele, finalmente tendo se recuperado do
ataque de pânico. O ogro podia ter conseguido atacar mesmo depois de ter o
coração perfurado, mas, depois que Ghim decepou sua cabeça, finalmente parou
de se mexer. Quase, pelo menos. O corpo ainda se contorcia às vezes, um sinal
da sua vitalidade extrema. Etoh, Woodchuck e Slayn se reuniram perto de Parn,
que começou a direcioná-los – Ghim e Deedlit, entrem logo na mansão. Quem
quer que esteja lá dentro, já deve ter ouvido os barulhos. Eu cuidarei do elfo
negro.
- Não seja idiota! Você não é páreo para a magia de um elfo negro! – se
opôs Deedlit – Você entra. Deixe isso comigo e com o feiticeiro. – ela deu um
passo à frente, empurrou Parn na direção da porta e puxou a rolha do seu cantil
– Puro e nobre espírito da água... Seus olhos podem ver o elfo negro. Onde ele
está? Deve estar se escondendo. – Ondina, o pequeno espírito azul, se esgueirou
para fora do cantil. Espalhou-se como um pedaço de tecido e flutuou pelo lugar.
Ali, pensou Slayn, apontando seu cetro para a área em que o espírito se
concentrou. Ele proferiu um feitiço de desativação, um capaz de anular qualquer

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magia, e gesticulou com o cetro. Uma forte luz branca emanou da sua ponta e
voou até onde Ondina estava.
O elfo negro reapareceu de repente. Ele amaldiçoou seu azar, tendo de
enfrentar uma elfa e um feiticeiro, ambos equipados com magias poderosas. Mas
ele ainda tinha sua lança. A elfa era pequena e esguia e o feiticeiro parecia frágil.
Ele ainda tinha uma chance se levasse a luta para o corpo a corpo.
A ideia caiu por terra no instante seguinte, quando ele foi tomado por uma
onda de dor. Três adagas haviam se fincado nas suas costas. Virando-se para trás,
viu a figura de um ladrão que trajava preto sorrindo um sorriso de deboche.
- Ótimo, ainda não perdi o jeito. – comentou Woodchuck. Suas três facas
ainda estavam cravadas nas costas do elfo negro. Três ferimentos profundos, mas
não fatais.
Deedlit avançou ferozmente. O elfo negro a viu se aproximando e se virou
para interceptar o ataque com sua lança, mas Deedlit saltou para a esquerda,
esquivando-se e ao mesmo tempo esticando a parte superior do corpo para cravar
seu florete no dorso dele. Talvez o elfo negro fosse capaz de se desviar de um
ataque como esse se não estivesse ferido, mas as facas nas suas costas limitavam
o desempenho. Ele desmoronou sobre si mesmo, com seu grito de morte ecoando
pela floresta.

Parn, Ghim e Etoh adentraram a mansão, mas mal deram um passo e já se


depararam com quatro inimigos. Os homens foram claramente pegos de surpresa
– não usavam armadura, mas todos estavam equipados com armas e escudos. E
eram hábeis o bastante para causar problemas a Parn e Ghim.
- Luz sagrada! – evocou Etoh erguendo a mão esquerda em oração. Ela
brilhou forte por um momento, cegando todos os quatro oponentes, mas sem
afetar Parn e Ghim, que desviaram o olhar na hora. Aproveitando a distração,
cada um rapidamente deu cabo de um inimigo, e os outros dois ficaram sem
rumo. Nessa hora, Deedlit, Woodchuck e Slayn chegaram, dando cabo deles num
piscar de olhos.
A mansão parecia estar vazia. Depois de verificar o que os guardas tinham
nos bolsos, eles começaram a vasculhar os cômodos. Só no primeiro andar havia
quatro, mas eles não encontraram nada fora do normal. Tudo que havia lá era
comida e algumas garrafas de vinho.
- Isso por si só já é um tesouro! – satisfeito, Ghim enchia sua mochila com
toda a comida que conseguia colocar lá.
- Vou verificar o segundo andar. – informou Parn, subindo as escadas. A
mansão parecia limpa e bem cuidada, além de ter mobília nova. Pelo jeito, os
novos “moradores” tinham transformado a edificação abandonada num lar
confortável.
Deedlit seguiu Parn até o segundo andar num galope.
- E aí?

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- Não vi nada ainda. Tome cuidado.
- Você também. – Deedlit deu uma espiada no corredor. O sol da tarde
brilhava através da janela, focalizando duas portas, uma das quais estava aberta
– Vamos entrar?
- É claro. – contando até três, adentraram de um pulo.
A sala ainda fedia aos homens que estavam ali até há pouco. Era uma sala
grande, com uma mesa retangular no centro cercada por oito cadeiras. Algumas
delas estavam reviradas de qualquer jeito, provavelmente porque os homens se
assustaram com o barulho e saíram às pressas.
- O que é aquilo? – perguntou Deedlit ao ver alguns documentos na mesa.
Ela se aproximou e pegou as quatro folhas de papel.
- O que diz? – Parn se aproximou e olhou por sobre o ombro dela. A pele
impecável do pescoço esguio o distraiu por um momento. Foi preciso chacoalhar
a cabeça para focar a atenção.
- O que foi? – perguntou Deedlit.
- N- Nada. – disse Parn, tentando se concentrar nos papéis.
Os documentos eram referentes a Kadomos VII, o Rei de Alania.
Primeiro eles listavam fatos bem conhecidos: o rei era um ávido caçador,
e a floresta ao redor da mansão era um dos seus lugares de caça prediletos. Em
geral ele só levava alguns acompanhantes consigo nas caçadas.
Aparentemente aqueles homens haviam subornado um dos guardas do
rei – seu nome e uma descrição detalhada vinham no fim da página.
- O que é isso? – perguntou Parn, com as mãos tremendo.
- Eu acho que... é um plano de assassinato. – respondeu Deedlit.
- Deve ser. Isso é horrível.
Deedlit concordou com um movimento de cabeça. Estava evidente que o
plano seria bem-sucedido se chegassem a colocá-lo em prática.
Ela enrolou o pergaminho e guardou. Parn estava abalado demais com o
que vira, então ela assumiu a liderança.
- Vamos para a próxima sala.
A julgar pela arquitetura da mansão, a sala ao lado tinha que ser muito
menor que a primeira. Parn levou a mão à maçaneta e a girou com cuidado, mas
a porta estava trancada. Mesmo tentando usar a força, ele não conseguiu abri-la.
- Não está dando certo. – disse Parn para Deedlit. Em seguida, correu até
a escada – Slayn! Woodchuck! Venham aqui! A porta está trancada! – Parn correu
de volta sem esperar, e Deedlit tentou abrir a porta algumas vezes também, mas
sem sucesso.
- Boa ideia chamar o ladrão e o feiticeiro. – disse ela, olhando pelo buraco
da fechadura. Parn sorriu discretamente, orgulhoso.
- Não bote a cara num buraco de fechadura. – disse Woodchuck secamente
enquanto se aproximava junto com Slayn e Ghim – Uma flecha venenosa pode
vir voando no seu olho.

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Deedlit deu um pulo para trás.
- Tudo bem deixar o Etoh sozinho? – perguntou Parn, preocupado.
- Não tem mais ninguém aqui. Ele vai ficar bem. – disse Ghim, que logo
começou a encarar a porta.
- Pelo jeito, não tem nenhuma armadilha. – Woodchuck inspecionou a
fechadura e inseriu um fio de arame, movendo-o em todas as direções. A cada
mexida ele batia perto da maçaneta, prestando atenção no som.
Slayn parou atrás dele e resmungou alguma coisa.
- Algo errado? – indagou Ghim.
Slayn fez que sim e disse:
- A porta está encantada.
- É o que parece. – disse Woodchuck, saindo da frente do feiticeiro – Ela
não está trancada, e também não consigo encontrar nenhuma armadilha. Ou seja,
só pode ser coisa da sua alçada.
Com um gesto lento, Slayn conjurou um feitiço de destrancamento e bateu
à porta com seu cetro. A porta rangeu por um momento e então se abriu para
dentro. E uma luz de repente se acendeu lá. Parn imediatamente levou a mão à
espada, mas Slayn o apaziguou:
- Não se preocupe, é só um mecanismo mágico rudimentar. Uma luz que
se acende toda vez que alguém entra. – ele deu um passo adiante e começou a
examinar a sala.
Não havia ninguém lá dentro, só uma velha e requintada escrivaninha nos
fundos e estantes dos dois lados.
- Livros da Academia? – Slayn chegou mais perto, abrindo um guarda-
louças que, além de taças de vidro, também estava cheio de pergaminhos. Mas
suas esperanças se transformaram em decepção – Não...
Era frustrante, mas não inesperado. Se ele estivesse no lugar de Wagnard,
teria tomado o cuidado de levar os objetos mágicos roubados para um lugar mais
distante e seguro.
- Ah, um baú de tesouros! – exclamou Woodchuck, correndo até a caixa de
madeira próxima à escrivaninha – Agora sim falaram a minha língua!
Slayn começou a abrir cuidadosamente as gavetas da escrivaninha. Numa
delas, encontrou uma adaga lindamente ornada e uma carta. Ao abri-la, deparou-
se com apenas algumas curtas sentenças:

Tudo está correndo perfeitamente aqui.


Como estão as coisas do seu lado?
O contato deve ser feito pelo método de sempre.
- Karla

- Isso não nos diz muita coisa. – murmurou Slayn consigo mesmo e
guardou a carta. Voltando a atenção aos companheiros, viu que Ghim olhava

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fixamente para ele. Não, não para ele, mas para acima dele. Slayn seguiu o olhar
do anão até a parede dos fundos.
Lá estava pendurado o retrato de uma linda mulher. Ela usava um vestido
roxo decotado e uma tiara na testa. Estava sentada na frente de cortinas do mais
forte vermelho, e uma janela mostrava uma vista detalhada lá fora.
A pele da mulher era tão clara quanto a de Deedlit, mas seus cabelos eram
da cor da meia-noite. Ela parecia olhar diretamente nos olhos de Slayn.
Essa é Karla...?, ele ponderou. O nome parecia familiar, mas ele não sabia
explicar por quê. Olhou novamente para Ghim, que continuava fixado no retrato,
totalmente perdido.
- Parece... Parece com ela...

Três dias depois, eles estavam de volta à Floresta de Cristal. Os planos


encontrados foram entregues aos guardas do castelo, e eles foram presenteados
com mil moedas de ouro pela façanha.
Parn estava muito animado – não por causa do dinheiro, mas porque fora
reconhecido pelo que fizera. O guarda traidor fora colocado na cadeia, o plano
para assassinar o rei fora frustrado e Parn até fora elogiado pelo Duque Persia, o
Primeiro-Ministro. Entre um gole de cerveja e outro, ele cantarolava uma música.
- Ei, eu poderia continuar com vocês? – perguntou Woodchuck a Parn –
Você viu que eu sou útil, não é? E eu acho que nos damos bem. Minha vida vai
ser muito mais interessante se eu estiver perto de vocês.
- Não vejo por que não. – respondeu Parn simplesmente. O ladrão havia
sido indispensável para o sucesso deles e era óbvio que suas habilidades seriam
valiosas na jornada – Só não viole nenhuma lei.
A festa continuou até a noite, com todos, exceto Deedlit e Slayn, bebendo
consideravelmente.
- Mas 600 moedas pelas joias é muito pouco. – reclamou Woodchuck outra
vez.
- Não, esse é o valor de mercado. – interviu Ghim. Woodchuck queria
barganhar, mas Ghim fechou o negócio rapidamente, e não era uma boa ideia
discutir o preço de joias com um anão. De todo modo, os livros e pergaminhos
foram comprados a um preço inesperadamente alto por um feiticeiro que os
outros conheciam, então Woodchuck não podia ficar de mau humor demais.
Verdade fosse dita, o único do grupo que não estava animado era Ghim.
Ele ficou sentado levemente distante dos outros, bebendo vinho distraidamente.
Justo quando a festa estava no auge, um homem entrou na estalagem
correndo. Todos se viraram para ver o que era. Quase sem fôlego e cambaleando,
ele finalmente disse:

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- T- Temos problemas... – o homem engasgou – Kanon caiu. Foi Beld... O
Imperador Beld de Marmo.
- O quê?! – o bom humor de Parn rapidamente se converteu em desespero.
Levantou-se da cadeira num salto.
- Então começou. – murmurou Slayn sem se alterar – Isso logo fará a guerra
se espalhar por toda a ilha.
Um arrepio gelado correu pelo grupo todo, e a festa acabou.

A notícia chegou a Kadomos VII em Stone Web, e o Rei imediatamente


convocou seus nobres para uma reunião de emergência. Kanon e Alania eram
aliados desde a fundação de Kanon há 250 anos, e casamentos entre suas famílias
reais eram comuns – o mais recente, inclusive, fora o da mãe de Kadomos VII,
que era da família real de Kanon.
Isso fazia da invasão de Marmo um grande insulto à família real alaniana,
e vários vassalos menores foram categóricos ao dizer que eles deveriam declarar
guerra a Marmo imediatamente. Também havia tratados a considerar – o Rei
Fahn de Valis engendrara uma Conferência dos Reinos na qual eles juraram lutar
juntos no caso de qualquer invasão.
Mas Kadomos VII não mandou nenhuma tropa a Kanon. Decidiu apenas
fechar as estradas do sul, se preparar para uma invasão e esperar. Ordenou que
o exército não recrutasse nenhum mercenário e nem que reforçasse a milícia, para
não provocar Beld. Sua inércia basicamente reconhecia Beld como o novo dono
de Kanon.
No dia seguinte, ao ler a proclamação oficial, Parn rangeu os dentes de
raiva.
- Por quê?! – berrou ele, esquecendo-se de que estava em público. Slayn
levou a mão ao seu ombro com delicadeza, no intuito de acalmá-lo.
- O que faremos agora?
- São todos uns covardes! – soltou Parn, e Slayn pôde até ver lágrimas nos
seus olhos. Depois de limpá-las com uma mão, o jovem já tinha um olhar ardente
de determinação outra vez.
- Vamos para Valis. – disse ele.
- Mas as estradas estão fechadas e a tempestade de areia do deserto ainda
não cessou. É impossível chegar a Valis agora.
- Nós vamos dar um jeito. Nem que tenhamos de atravessar a Floresta Sem
Volta. – disse ele, sem hesitação.
- Você está falando sério? – Etoh se opôs – Parn, você sabe o quanto aquele
lugar é perigoso. O nome é “Floresta Sem Volta” porque ninguém volta!
- Então eu serei o primeiro! – proclamou Parn.
- Dizem que tem uma maldição élfica antiga lá. – adicionou Ghim, olhando
de relance para Deedlit.
- Parn... – começou Slayn, que pretendia oferecer algum conselho.

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- Na verdade, eu acho que é uma boa ideia. – disse Deedlit, que até então
apenas observava – Vamos pela floresta. É o caminho mais rápido, afinal.
- Você pode nos fazer passar?
- É claro. – disse Deedlit num tom orgulhoso enquanto olhava para Ghim.
– Sou uma elfa. Antiga ou moderna, somos todos uma raça só.

Eles deixaram Allan três dias depois da notícia da queda de Kanon.


Seguindo a ideia de Deedlit, partiram numa rota que os levaria direto até
a Floresta Sem Volta. Tirando Parn, ninguém estava feliz com o plano. Aquele
nome sinistro não era uma lenda: ao longo dos últimos séculos, ninguém que
entrou lá conseguiu sair. Muitos heróis corajosos decidiram encarar o desafio da
floresta, mas o resultado era sempre o mesmo. A Floresta Negra continuava
invicta, destruindo toda vida que entrasse no seu domínio.
Ninguém sabia exatamente que perigos a Floresta Negra escondia – podia
ser uma maldição élfica ou só fauna e flora letais.
Ninguém sabia. Exceto, talvez, as vítimas.
Quando o terceiro dia nasceu, eles já podiam ver a floresta ao longe. Mas,
ao invés de adentrar logo que se aproximaram, Deedlit os manteve na estrada,
contornando o amontoado de árvores.
Depois de mais dois dias seguindo a estrada, Deedlit parou o grupo com
uma exclamação empolgada:
- Aqui! – proclamou ela.
Os outros a encararam com rostos céticos e exaustos. Deedlit suspirou de
decepção com a reação deles, mas se recompôs e apontou para a floresta. Ali,
quase imperceptível, havia uma pequena trilha, quase tomada pela natureza
devido ao pouco uso.
- O caminho do qual falei começa aqui. Mas, não importa o que aconteça,
prometam me obedecer: vocês não podem dormir na floresta de jeito nenhum. E
tentem não ficar muito surpresos. Emoções fortes afetam as árvores.
- É só isso que precisamos fazer? – indagou Parn.
- Sim. É só me obedecer que logo estaremos em Valis. – disse Deedlit, sem
uma gota de dúvida – Vamos.
Apesar da confiança da elfa, a ansiedade do resto do grupo crescia mais à
medida que a floresta se descortinava. Seguiram a trilha por cerca de uma hora,
até que enfim chegaram a uma abertura nas árvores.
Até ali, a floresta parecia normal – embora houvesse uma tensão crescente
e uma vaga sensação de perigo por toda parte.
Ao final do caminho havia dois pinheiros idênticos. Sua altura, rigidez e
até as dobras dos galhos eram exatamente iguais. O espaço entre eles parecia até
um portão.

50
- Chegamos. É por aqui que passaremos. – Deedlit mal conseguia conter a
satisfação na sua voz – Lembrem do que prometeram, hein? Não saiam de perto
de mim, senão a “maldição élfica” vai pegar vocês. Fom alanis katoru! – proferiu
ela em élfico. A vista do outro lado das árvores se distorceu e sumiu, e um brilho
dourado tomou seu lugar – Sigam-me, antes que o portão se feche.
Dizendo isso, Deedlit pulou na luz. Parn respirou fundo e fez o mesmo,
seguido por Etoh, Ghim e Woodchuck. Slayn foi por último. Resignou-se ao seu
destino, fechou os olhos e correu para o brilho.
- Opa! – ele bateu em alguma coisa e quase deixou o cetro cair. Ao abrir os
olhos, deu de cara com as costas de Woodchuck.
- Não me assuste assim. Quase tive um ataque do coração. – reclamou o
ladrão.
- Onde estamos...? – perguntou Slayn, fascinado demais para registrar o
que os companheiros estavam dizendo.
Era uma floresta dourada e reluzente, com uma grama do mais puro verde
que se estendia até onde os olhos alcançavam. As vinham espinhosas e cipós
grossos que se via por toda parte antes haviam sumido, e o chão tinha uma
camada de folhas caídas que amaciava o caminhar.
- Esta é a Floresta Sem Volta?! – Parn quase engasgava – Parece até que é
um outro mundo.
Um outro mundo...? Slayn refletiu sobre as palavras de Parn e finalmente
entendeu:
- Isto é outro mundo! É isso, não é, Deedlit? – apoiando o cetro no chão,
ele olhou para cima. Não era possível ver o sol, e o firmamento inteiro parecia
brilhar.
- O que significa isso? – perguntou Parn se virando para Slayn.
O feiticeiro olhou para Deedlit e escolheu as palavras com cuidado:
- Poucas pessoas sabem disso, mas o mundo se divide em três domínios.
Um é onde nós, humanos, vivemos. Os feiticeiros o chamam de mundo material.
O segundo é onde vivem os espíritos. Este se divide em seções, mas o termo geral
é mundo espiritual. E por fim, há um mundo intermediário que conecta o mundo
físico ao espiritual. É o mundo das fadas. É onde nós estamos agora.
- Não pensei que sabia de tudo isso. Eu poderia ter explicado antes, mas
não tinha certeza se humanos entenderiam. – disse Deedlit – Mas sim. Como você
disse, este é o mundo das fadas.
- Mas, Deedlit, os elfos não perderam o lar? Pensei que eles estavam presos
ao mundo físico e não podiam mais voltar ao mundo das fadas. Como você está
aqui?
Antes de responder, Deedlit deu um pulo. Um pulo tão alto que os outros
mal conseguiram acreditar naquilo. E pousou delicadamente de volta.
- É melhor começarmos a andar. – disse ela, fazendo um gesto para que a
seguissem. Mas ela mesma não estava andando, e sim flutuando ligeiramente

51
próxima ao chão. Com o grupo em movimento, respondeu à pergunta de Slayn
– Nós nunca perdemos o nosso lar. Na verdade, eu vivo no mundo das fadas.
- Entendi... – respondeu ele, parecendo ter uma epifania – Você é uma elfa
superior. Eu não fazia ideia... Pensei que todos tivessem morrido.
Ele não podia acreditar no que estava vendo. Elfos superiores eram lendas.
Assim como os povos dos reinos antigos supostamente tinham uma cultura
altamente avançada, os elfos também tinham sua própria raça ancestral superior.
Mas encontrar um deles, cara a cara...
- Ainda não. – disse Deedlit – Estamos a caminho disso, mas ainda temos
tempo. Só desapareceremos quando os deuses forem esquecidos e os dragões
forem engolidos pela terra.
Parn estava confuso. Ele não entendia muito bem o que estava sendo dito,
mas parecia que Deedlit era especial, mesmo entre os elfos.
- Os anões também viviam no mundo das fadas antigamente. Pelo menos
é o que dizem. – comentou Ghim – Mas fomos embora há muito tempo, porque
descobrimos os prazeres da terra. Não estou falando desse ouro que consome os
tolos, mas do verdadeiro ouro. – ele ergueu seu machado, mas a lâmina havia
sumido – Fadas não gostam de ferro. – resmungou ele – Ele não existe aqui.
Ao ouvir isso, Parn verificou o próprio equipamento. Só então se deu conta
de que estava sem armadura. Só restava a cota de malha que usava por baixo.
- Mas eu ainda sinto o peso. – questionou ele.
- Não se preocupe. – Deedlit interviu para acalmá-lo – O ferro não pode
existir aqui, mas na prática, o que isso significa é que, se trouxer alguma coisa,
ela ficará invisível. Assim como acontece com os espíritos que vão para o mundo
material. – Deedlit apontou para frente – Mas é melhor nos apressarmos. Não
podemos ficar aqui mais que o necessário. – e com isso, aumentou o ritmo. Parn
correu para alcançá-la.
- Por que ela está com tanta pressa? – perguntou a Slayn, que vinha logo
atrás.
- É simples. – disse o feiticeiro – O tempo passa mais devagar aqui que no
nosso mundo. Se nos perdermos, centenas de anos poderão se passar lá.
- O quê?! – gritou Parn, empalidecendo na hora – Deedlit, nos tire daqui!
- Hã?! Eu não quero ficar mais velho ainda! – berrou Woodchuck, que
claramente não entendeu o que Slayn tinha dito.
- Desde o começo estou dizendo pra irmos logo. – respondeu Deedlit. A
situação era irritante por um lado, mas por outro ela não conseguia deixar de
achar graça no desespero de Parn.

Deedlit os guiou pela floresta por mais um tempo. Enfim parou e disse
algumas palavras em élfico. As mesmas árvores idênticas apareceram e, quando
as atravessaram, eles estavam de volta ao mundo material.
Já era noite lá fora.

52
- Mas o sol estava a pino quando entramos... – disse Parn com uma voz
cheia de surpresa e dúvida. Levou a mão às placas da armadura para ter certeza
de que tinham voltado e exalou um suspiro de alívio.
O esforço contínuo cobrou o preço e ele desmontou no chão, respirando
pesadamente. Um brilho súbito se fez atrás dele e uma luz pálida iluminou o
manto azul de Slayn.
- Quantos dias se passaram? – Slayn tirou o capuz e olhou ao redor. Graças
à luz, ele podia ver que estavam cercados de colinas e que a Floresta Sem Volta
agora estava atrás deles. Na escuridão, ela parecia ainda mais ameaçadora e
mística, como se pudesse agarrá-los e estrangulá-los com seus tentáculos.
- Pela distância que percorremos, provavelmente três dias. Poderíamos ter
saído mais rápido se vocês não ficassem perdendo tempo.
- Para mim, já foi uma alegria ter tido a oportunidade de ver isso. Por mais
assustador e estranho que tenha sido. – disse Slayn. Muitos humanos já tinham
entrado no reino das fadas, mas poucos conseguiram voltar vivos. Ele se levantou
e limpou a sujeira do manto.
- Onde estamos? – perguntou Etoh com ansiedade.
- A cerca de três dias a leste de Valis. – disse Deedlit – Podemos cruzar as
colinas a sudoeste para chegar à estrada que liga Kanon a Valis. Mas acho que
seria melhor viajarmos pelas montanhas a oeste. Assim evitaremos sermos pegos
na guerra com Marmo. – e olhou para as estrelas para se orientar melhor.
- Vamos indo então. – disse Woodchuck, que ainda parecia nervoso com
tudo que tinha acontecido.
- Sim. – concordou Parn – Já é noite, mas não estou com sono. Vamos em
frente até ficarmos cansados. Espero que estejam todos preparados pra escalar
uma montanha!
Ninguém se opôs, então eles se reorganizaram rapidamente e começaram
a subida.
- Não esperava perder todo esse tempo... – disse Etoh, olhando para o céu
da noite e se perguntando quantas orações matinais e vespertinas tinha perdido.
- Nem eu. É esquisito, né? – disse Woodchuck – A lua está no meio do céu,
mas eu não estou nem um pouco cansado. Mas com fome estou.
- Eu tenho a sensação de que não como há três dias. – disse Ghim, e enfim
todos riram.

53
Capítulo 3
Resgate

O sol estava a pino no terceiro dia depois que eles chegaram à estrada que
liga Kanon a Valis. Embora a estrada fosse larga e bem cuidada, a terra
montanhosa que ela cortava dificultava a caminhada com suas constantes e
íngremes subidas. O sol do verão os surrava impiedosamente, e o zumbido
constante de cigarras podia ser ouvido ao longe por todo o caminho.
Slayn estava quase desmaiando por causa do calor que fazia pesar ainda
mais a fatiga.
- E ainda vai ficar mais quente. – disse ele, suspirando profundamente por
baixo do capuz. Só de pensar que ainda tinham o dia inteiro pela frente ele ficava
deprimido.
- Bom, verão é isso. – Woodchuck debochava do estado patético de Slayn.
- O que é isso? – Deedlit parou de repente – Parecem marcas de ferradura.
A não ser que esta estrada esteja excepcionalmente mal cuidada. – ela se abaixou
e correu os dedos pelo chão – Sem dúvida são marcas de ferradura. Um grande
número de cavalos passou por aqui. Estavam vindo de Valis.
- Então Valis decidiu agir... – um sorriso se abriu no rosto de Etoh – O
exército sombrio de Marmo vai contra tudo que Pharis representa. Eu sabia que
eles lutariam!
- É claro! – gritou Parn, triunfante – O Rei Fahn e seus Cavaleiros Sagrados
nunca deixariam Beld impune! Agora é questão de tempo até ele cair!
Espero que você esteja certo, pensou Slayn. Ele não estava convencido de que
as coisas seriam resolvidas tão facilmente. Os cavaleiros de Valis de fato eram
formidáveis, mas o exército de Marmo era cheio de monstros que podiam usar
os poderes das trevas. O recente confronto com o elfo negro deixou claro o quão
letais eles podiam ser – Slayn sabia que, sem a ajuda de Deedlit e Woodchuck,
nunca teria sobrevivido. Um arrepio correu pela sua espinha, fazendo-o suar
desconfortavelmente no calor do verão. Esta guerra vai ainda se arrastar por muito
tempo, pensou, mas não disse nada. Não queria estragar o bom humor de Parn.
Eles saíram das montanhas no dia seguinte. O terreno ficou mais nivelado,
o que tornava a caminhada muito mais fácil, mas o clima de sol sem nuvens
continuava a atormentá-los. Como sempre, Parn e Deedlit iam na frente, seguidos
por Ghim, depois Woodchuck e Etoh, e por fim Slayn na retaguarda. Ele tentava
acompanhá-los como podia, ofegando o tempo todo e se apoiando no cetro para
andar.

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Uma pitoresca paisagem pastoril se estendia por todas as direções. Eles já
haviam cruzado a fronteira de Valis, e as longas extensões de terra verdejante
continham várias casas modestas e uma ou outra mansão. Mas, por mais que eles
andassem, não aparecia uma alma viva. Os moradores ou estavam se escondendo
dentro de casa, com medo de uma possível batalha, ou já tinham fugido.
- Valis já deve estar em guerra com Marmo. – disse Etoh para Woodchuck
– Devem estar a leste daqui, já que não vimos nenhum soldado ainda.
- Quer dizer que Valis está vencendo? – indagou Woodchuck.
- Provavelmente... – respondeu Etoh.
- Valis tem que estar ganhando. – disse Parn sem nem se virar para eles.
Algo à frente chamou a atenção de Woodchuck:
- Atenção! – berrou ele, apontando para o longe – Tem algo vindo!
O grupo inteiro ficou tenso, mas Slayn disse:
- Vamos continuar andando. Eles suspeitarão se agirmos estranho.
- Tem razão. – respondeu Parn, apertando os olhos para tentar ver. Havia
uma nuvem de poeira. Cavaleiros e uma carruagem. O calor que emanava da
estrada distorcia os contornos, mas parecia ser uma caravana mercante. Ou será
que era parte das linhas de suprimento de Valis?
O grupo retomou a caminhada e tentou permanecer calmo. Ninguém disse
uma palavra – manteve o ritmo normal enquanto a caravana se aproximava.
- Senhora Karla, tem pessoas à frente. – uma voz nervosa interrompeu as
meditações de Karla. Ela abriu os olhos e levantou o veda-sol da carruagem.
- Hm? – com o ligeiro som, um dos mercenários que acompanhavam a
carruagem se aproximou.
- Há um grupo a pé vindo na nossa direção. Parecem armados, mas há
uma criança com eles.
- Uma criança? Não tenho certeza do que isso implica. Não são soldados
de Valis, então?
- Provavelmente não...
- Ótimo. Se não fizerem nada, não façam também. Mas fiquem alerta.
Karla se recostou no seu assento de novo, sentindo a carruagem balançar.
Estamos tão perto, pensou ela com um suspiro e um olhar para a garota sentada ao
seu lado. A garota olhava cegamente para frente, sem nenhum sinal de vida nos
olhos. Karla sorriu, satisfeita, e fechou os olhos para ponderar sobre seu próximo
movimento.

A caravana se aproximava mais e mais, movendo-se num trote ligeiro. À


medida em que ficava possível vê-la melhor, Parn começou a ficar preocupado.
A suntuosa carruagem de dois cavalos vinha acompanhada de sete cavaleiros de
armaduras nada uniformes. Eram claramente mercenários, mas também estava
óbvio que aquilo não era um grupo de mercadores, já que era uma carruagem de

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passageiros, com pouquíssimo espaço para bagagem. A opulência do transporte
sugeria que os passageiros eram nobres.
Os mercenários pareciam curiosamente desconfortáveis com a carruagem
que flanqueavam.
- O que você acha? – indagou Parn de modo que só Deedlit pudesse ouvir.
- Não sei... É um grupo estranho... Mas qualquer um pensaria o mesmo de
nós.
- É verdade. – respondeu ele com um sorriso, lançando um olhar sobre a
bizarra mistura de companheiros e rapidamente se recompondo, pois a tensão
dos dois grupos ficava mais e mais forte. Todos estavam em total alerta, confusos
com a aparência um do outro e prontos para o pior.
Como estava a pé, o grupo de Parn abriu caminho para a carruagem
passar.
- Dia quente hoje, hein? – disse Woodchuck ao cumprimentar o cavaleiro
que vinha à frente do comboio. Parn ficou impressionado; o comentário pareceu
quebrar um pouco o clima pesado.
- Deve estar difícil pra vocês, a pé. – adicionou outro cavaleiro, com um
sorriso de alívio.
- Nem me fala. – brincou Woodchuck – Queria estar no seu lugar.
E cada um seguiu seu caminho. Quando a carruagem passou ao seu lado,
Slayn a avaliou com cuidado, até tirando o capuz para ver melhor. Era refinada,
e ele pôde identificar duas figuras lá dentro – a julgar pelas roupas, deviam ser
mulheres. Antes que pudesse ver mais, um dos cavaleiros se colocou na frente,
bloqueando sua visão. Tem alguém ali que não podemos ver?, ele se perguntou, agora
cheio de suspeitas.
- Você quase estragou tudo. – disse Woodchuck a ele quando o grupo já
estava longe o bastante.
- É muito estranho. Será que não sabem que estão indo na direção de um
campo de batalha? – comentou Parn, voltando para a estrada.
- Identifiquei duas pessoas na carruagem. Mulheres, eu acho. – disse Slayn,
ainda observando a comitiva.
- Mulheres? Droga, eu devia ter dado uma olhada. – brincou Woodchuck,
que começava a andar de novo, dando de ombros. Os outros voltaram a entrar
em formação.
- Foi estranho o cavaleiro ter se dado ao trabalho de bloquear o meu campo
de visão. – murmurou Slayn enquanto andava. À frente dele, Woodchuck ergueu
as mãos, e exclamou, exasperado:
- De novo?!
- O que foi? – perguntou Slayn. Ele havia colocado o capuz de novo para
se furtar ao sol implacável, mas teve de voltar atrás diante daquilo. Woodchuck
simplesmente apontou para a estrada. Havia outra nuvem de fumaça – outro

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grupo a cavalo. Levando em conta o tamanho da nuvem de fumaça e o nível de
barulho, o grupo vinha rápido.
- Parecem cavaleiros de Valis. – disse Woodchuck. Sua visão era aguçada
– Cavalos e armaduras brancas. As únicas pessoas que se vestem assim são os
Cavaleiros Sagrados.
- Os Cavaleiros Sagrados de Valis?! – gritou Parn, apertando os olhos para
tentar ver o grupo. Embora ainda estivessem longe, ele podia ver que os cavalos
eram brancos.
Os galantes montadores conduziam os corcéis com elegância, galopando
como uma rajada de vento. Parn se afastou da estrada. Ele não sabia lidar bem
com os sentimentos complicados que nutria para com aqueles cavaleiros – tanto
admiração quanto raiva. Olhou para a armadura deles e comparou com a sua,
velha e abatida pelo tempo, mais próxima do marrom que do branco, mas ainda
mantendo a mesma forma. O centro do peitoral reluzia em prata, um símbolo da
desgraça do seu pai. Ele se lembrou do que Moto, o dono da loja lá no vilarejo,
havia dito. E da vergonha que havia sentido.
Que esperanças o meu pai depositou nessa armadura branca?
Quanto mais eles se aproximavam, mais e mais as emoções tomavam conta
dele.
- O que foi? – cochichou Deedlit no ouvido dele. O tom de voz preocupado
o fez se recompor.
- Nada. Eu estou bem. – Parn se virou para ela com uma expressão gentil
no rosto, respirou fundo e ergueu a cabeça. Focou toda a sua atenção mais uma
vez nos cavaleiros que se aproximaram.
Os cinco cavaleiros pararam quando chegaram aonde Parn estava. Slayn e
Etoh fizeram um cumprimento respeitoso, e Parn a saudação dos cavaleiros.
- De onde estão vindo? – perguntou um dos cavaleiros, vindo à frente.
- Somos viajantes de Alania. – respondeu Slayn, ainda com a cabeça baixa
– Estamos tentando escapar da guerra em Kanon.
- Exato. – complementou Woodchuck.
- Vocês fugiram de Kanon? – o cavaleiro parecia ter suas dúvidas – Não
sei se posso acreditar nisso. Com licença... – ele começou a recitar uma oração.
Slayn estava impressionado. Por ser um Cavaleiro Sagrado, o homem possuía
habilidades de combate e também podia invocar a magia sagrada de Pharis. Mas
aquilo não seria uma ameaça – qualquer encantamento de Pharis seria inofensivo.
Etoh, por sua vez, que até então permanecera imóvel ao lado dele, olhou
com reprovação para o cavaleiro:
- Vai invocar a magia sagrada assim? É blasfêmia usar os poderes sagrados
contra aqueles que não demonstram ameaça. Meu nome é Etoh, sou um sacerdote
de Pharis do templo de Allan.
- Não havia percebido que um de vocês era um sacerdote de Pharis. O
senhor tem razão. Minha conduta de recorrer a Pharis tão apressadamente foi

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indevida... Mas o senhor esclareceu as nossas dúvidas. Pedimos desculpas pela
grosseria. Vamos continuar no nosso caminho... – o cavaleiro se preparou para
retomar a cavalgada.
- Estão com pressa por causa da carruagem que acaba de passar por aqui?
– perguntou Slayn.
- O quê? – o cavaleiro puxou as rédeas abruptamente, fazendo o cavalo se
erguer e relinchar em protesto.
- Há pouco, nos deparamos com um grupo bastante suspeito. Quem eram
eles?
- Isso é uma questão de segurança nacional. Esqueçam o que viram.
Slayn protestou, mas o cavaleiro o ignorou e partiu. O grupo desapareceu
como um raio, deixando apenas uma nuvem de poeira para trás. Parn só se
manifestou quando eles já estavam fora de vista:
- O que foi tudo isso?
- Estou preocupado. – disse o feiticeiro – A caravana era muito estranha, e
os cavaleiros estavam com pressa demais...
- Acho que devíamos segui-los. – disse Parn.
- Não cabe a mim decidir. Mas, se você quer a minha opinião, eu diria que
é melhor não nos envolvermos. – Slayn tentou responder do modo mais racional
possível, mas duvidava que suas palavras causariam algum efeito. Parn sempre
seguia o seu coração.
- Aqueles cavaleiros disseram que era uma questão de segurança nacional.
Se está relacionado à caravana... – Parn cruzou os braços, pensando.
- Essa não, o Parn está pensando. E está sério. – resmungou Ghim – Vamos
encarar de uma vez: vamos ter que andar o caminho inteiro de volta nesse calor.
– sem dizer nem mais uma palavra, deu meia-volta e começou a andar.
- Ai, que saco. – disse Woodchuck, já começando a seguir o anão. Virando-
se para Parn, exortou: – Por que ainda está pensando? Mesmo que todos nós nos
recusássemos, você iria assim mesmo, não é? Então chega de perder tempo.
- Parece decidido. – disse Deedlit, correndo até Parn e estendendo a mão
para ele – Vamos. Não é seu estilo ficar ponderando tanto antes de agir.
- O quê? Que mentira! – protestou Parn, mas aceitou a mão de Deedlit –
Eu sou um homem muito sério e ponderado. Eu sempre penso muito bem antes
de agir!
- Ô, se é! – debochou Woodchuck.
- É melhor nos apressarmos, ou os perderemos de vista. – disse Slayn, se
preparando. Ia ser uma marcha difícil.
- Ai, seria tão bom se tivéssemos cavalos também! – comentou Deedlit da
sua posição à frente do grupo. Seus longos cabelos flanavam às suas costas,
reluzindo como um arco-íris sob o sol do verão.

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Um pouco mais à frente, Deedlit parou de repente e levou as mãos em
concha aos ouvidos.
- O que foi isso? – disse ela, com uma voz preocupada.
- Aconteceu alguma coisa? – perguntou Parn. Ele olhou ao redor, mas não
viu nada de estranho.
- Quieto. – ordenou Deedlit – Estou ouvindo algo naquela direção, mas sua
armadura faz barulho demais.
Parn congelou na hora, não ousando sequer respirar. A audição dos elfos
era famosa. Diziam que eles eram capazes de captar o menor sussurro do menor
animal a quilômetros de distância.
- Sons de combate... Gritos, o clangor do metal. Não há dúvida.
- Os Cavaleiros Sagrados estão lutando! Temos que ir! – Parn começou a
correr, seguido de perto por Deedlit – Eles devem estar lutando com a caravana.
Os Cavaleiros Sagrados podem estar em número menor, mas mercenários não os
derrotariam...
- Não podemos ter certeza disso. Vamos depressa!
- Certo!
- Eu vou na frente! – disse Deedlit, que parecia dançar à frente dele. Ela era
rápida e ágil e, com sua armadura leve, muito mais rápida que ele. A armadura
pesada de Parn o atrasava, e logo Etoh, Slayn e Woodchuck o alcançaram. Ghim
ficara ainda mais para trás, tentando vencer as limitações das suas pernas curtas.
- Avise antes de sair correndo! – reclamou Etoh, quase sem fôlego.
- Os Cavaleiros Sagrados estão lutando!
- Devíamos ver o que está acontecendo antes de tomar uma atitude. – disse
Slayn, também com esforço.
Deedlit teve que parar para os outros a alcançarem, mas estava inquieta.
Os sons da batalha estavam muito mais notáveis agora que eles se aproximaram,
e ela já podia distinguir algumas sombras em movimento frenético à frente. Ali!,
disse ela para si mesma, fixando o olhar nas sombras. Naquele mesmo momento,
uma luz vermelha reluziu, e uma fração de segundo depois um estrondo se fez
ouvir, alto como uma avalanche. Deedlit gritou de dor e caiu ao chão, tapando os
ouvidos.
- Que barulho foi esse? E aquela luz vermelha?! – gritou Parn, que corria
até onde Deedlit estava. Colocou uma mão no ombro da elfa, mas manteve seus
olhos treinados na batalha, tomando cuidado para não perder nada. Slayn quase
engasgou quando os alcançou:
- Aquela luz... Tenho quase certeza de que era uma magia de fogo.
- Magia? Mas quem usou? Os guerreiros que protegiam a carruagem ou os
Cavaleiros Sagrados de Valis? – Deedlit falava se apoiando em Parn, mas suas
palavras foram dirigidas a Slayn.
- Não faço ideia. Mas é uma magia perigosa. É proibida pela Academia de
Magia e só pode ser ensinada a um mestre ou alguém de sabedoria equivalente.

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Não reconheci nenhum dos guardas da carruagem ou dos Cavaleiros Sagrados,
então não creio que tenham frequentado a Academia... Embora seja possível que
um deles estivesse disfarçando sua aparência. Dito isso, feiticeiros geralmente
não gostam de usar espadas. Mas Wagnard de Marmo poderia ser uma exceção.
- Você acha que Wagnard estava na carruagem?! – gritou Parn.
- Mas quem estava na carruagem não eram duas mulheres? – questionou
Woodchuck, franzindo a testa.
- Wagnard é uma mulher?
- Esperem... A batalha acabou. – Deedlit se pôs de pé, ainda segurando a
mão de Parn – Não ouço mais os sons do combate.
- O quê?! Quem venceu?
- É óbvio que eu não tenho como saber isso só pelos sons da luta! Espere,
vou perguntar ao vento.
- Ao vento? Fala da Sílfide? – disse Slayn – Meu feitiço de clarividência nos
dará mais respostas.
- Espera, por que você não usou isso antes? – perguntou Woodchuck – Por
que ficou guardando até agora?!
- Vou ter que dar razão pro ladrão. – concordou Ghim, enfim alcançando-
os.
- A magia não deve ser usada indiscriminadamente. – tendo respondido,
Slayn controlou sua respiração e começou a recitar um encantamento na língua
antiga.

O feitiço de Slayn foi ativado em total silêncio. Era uma habilidade capaz
de aprimorar a visão humana em muitas vezes, mas demorava um pouco para o
cérebro se acostumar com ela. Slayn olhou para o céu, fechou os olhos, ajustando
a visão, e enfim olhou para a estrada adiante. Quando finalmente viu a cena que
se descortinava ali, deixou escapar um gemido.
- Isso é horrível...
O chão estava tingido de preto; corpos carbonizados espalhados sobre a
terra fumegante. Ele quase podia sentir o fedor acre da carne queimada. Slayn
voltou sua atenção para a carruagem. Havia uma mulher de vestido roxo diante
dela, movendo as mãos celeremente e dando ordens aos homens. Usava uma
tiara na testa – claramente uma relíquia de algum reino antigo – e vários anéis
pesados que muito provavelmente não eram meras joias. O cetro em suas mãos
não era o de um Sábio, mas era feito de um carvalho de qualidade e inscrito com
runas mágicas que ele não conseguia decodificar. Deve ter sido ela quem conjurou a
magia, pensou Slayn.
- Como está? – ele ouviu Parn perguntar.

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Slayn respondeu sem tirar os olhos da mulher, sabendo que seria muito
difícil reajustar a linha de visão:
- Os cavaleiros de Valis foram derrotados. As únicas pessoas se movendo
agora são os quatro guerreiros da carruagem e uma mulher. Deve ter sido ela
quem usou a magia. – Slayn fez uma pausa breve e então continuou – Para ser
capaz de destruir os Cavaleiros Sagrados de Valis assim... Ela deve ter poderes
formidáveis.
- Como isso pôde acontecer...? – murmurou Parn.
- Eu não sei, mas aconteceu. – respondeu Slayn, direto. Examinou com
cuidado a área em volta da carruagem mais uma vez e voltou a se concentrar na
mulher, que ainda dava ordens.
Ela parecia mais nova que Slayn e era muito bonita. Não se pode confiar
na aparência de um usuário de magia, é claro, especialmente se for mulher, mas
o comportamento é algo mais difícil de disfarçar, e ela gesticulava de um modo
jovial. Era possível que ela fosse tão jovem quanto parecia.
Slayn estava surpreso por nunca ter ouvido falar de uma feiticeira tão
poderosa... Mas, olhando para ela, ele não conseguia deixar de pensar que o seu
rosto parecia familiar. Ela o vira recentemente...
- Lembrei! – exclamou ele de repente – É ela que estava no retrato! Aquele
retrato na mansão abandonada perto de Allan! O vestido púrpura, a tiara... Até
as roupas eram as mesmas. Se não me engano, seu nome era Karla... Ghim, você
se lembra? Você ficou bastante tempo observando o retrato.
- Eu nem sei do que você está falando... E não posso ver essa mulher agora,
então do que adianta me perguntar? – resmungou Ghim, e então disse – Vamos
logo pra lá. Ela é o inimigo, certo? Temos que capturá-la antes que escape. – e já
pegou o machado das costas.
- É! – acompanhou Parn – Aposto que ela foi enviada por Marmo pra se
infiltrar em Valis! Ela deve ter feito alguma coisa muito horrível se os Cavaleiros
Sagrados estavam atrás dela! – e, com isso, Parn começou a correr.
- Espere! – ordenou Slayn, estranhamente incisivo. Parn parou na mesma
hora, como se tivesse sido pego por um feitiço.
- O que vamos conseguir atacando assim? – questionou o feiticeiro – Ela é
poderosa demais para nós. Já esqueceu? Ela acaba de aniquilar cinco Cavaleiros
Sagrados.
- Mas... – Parn começou a protestar, mas o olhar severo de Slayn o deteve.
- Se quer jogar sua vida fora, não o impedirei. – continuou Slayn – Mas isso
não é coragem. Você precisa viver para alcançar os seus objetivos. Vamos deixar
o orgulho de lado desta vez e esperar uma oportunidade.
- Mas e se essa oportunidade nunca vier? – foi Ghim, não Parn, quem falou.
Ele falava baixo, mas de um jeito intenso.
- Eu só estou dizendo que agora não é a hora. Por que isso mexe tanto com
você, afinal? Eu entenderia se fosse o Parn...

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- Tenho os meus motivos. – murmurou Ghim, já começando a correr em
direção ao campo de batalha de novo. Parn olhou para Slayn como quem pede
desculpas e foi atrás de Ghim. Deedlit e Etoh os seguiram.
- Deixou ele bravo, hein, senhor bruxo? – debochou Woodchuck, chegando
perto dele – Eu, pelo menos, concordo com você, então vamos ficar quietinhos
aqui, sim? - a voz do ladrão no ouvido de Slayn era quase como um demônio
envenenando os seus pensamentos.
- Não posso fazer isso. – respondeu Slayn, mais para convencer a si mesmo
– Não cometerei o mesmo erro de novo. – Slayn segurou o cetro com força e foi
atrás dos outros. Levantou o capuz para poder ver melhor, e um bafo de ar quente
atacou seu rosto. Mesmo assim, ele continuou avançando, apesar do calor e da
luz, correndo desesperadamente para alcançá-los.
Que bando de babacas, pensou Woodchuck consigo mesmo, começando a
caminhar lentamente, muito atrás dos outros.
Para melhor ou pior, as preocupações de Slayn não deram frutos. Quando
eles chegaram à cena da trágica batalha, a carruagem já tinha ido embora. Ghim
queria continuar a perseguição, mas Parn não queria simplesmente abandonar as
vítimas. Além do mais, eles nunca alcançariam uma carruagem a pé. Mas Ghim
só se acalmou quando Slayn comentou que eles teriam de acampar à noite. Todos
eles pretendem atacar a carruagem, pensou Slayn. Sabendo que o que estava por vir
era inevitável – que teria de usar magia para destruição –, ele começou a revisar
os feitiços de fogo que conhecia.
Parn estava boquiaberto com o horror daquela cena. Deedlit se encolheu
atrás dele, arriscando apenas um rápido vislumbre às vezes. Suas mãos pequenas
tremiam. Murmurou palavras de luto em élfico, e seus olhos se encheram de
lágrimas.
O fogo intenso havia deixado a estrada preta. Havia oito corpos, cinco em
armaduras de Valis. Vários cavalos também haviam caído vítimas das chamas.
Etoh se abaixou e examinou cada cadáver. Seu rosto, geralmente gentil, se
transformou num de raiva e pena. A pele carbonizada dos corpos se soltava com
o toque, revelando uma carne vermelha. Que seus assassinos sejam julgados em nome
de Pharis, sua mente gritava. Quando chegou ao último corpo, ele se assustou ao
ver que ainda estava quente.
- Ele ainda está vivo! – gritou Etoh. Ele podia ver o peito do homem se
movendo ligeiramente com a respiração.
Todos correram e se amontoaram em volta de Etoh e do homem.
- Se ele não parar de respirar, talvez eu ainda consiga fazer alguma coisa.
– disse Etoh, olhando para Parn como que em sinal.
- Pessoal, afastem-se. – disse Parn – Deixem o Etoh trabalhar.
Deedlit não parecia muito satisfeita, mas Slayn a acalmou:
- Etoh usa a magia de Pharis.
Parn continuou:

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- Vamos enterrar essas outras pobres almas. Não podemos simplesmente
deixá-los aqui.
Ghim concordou em silêncio e desamarrou seu machado. O lado oposto
ao da lâmina tinha uma ponta afiada em formato de gancho. Ele segurou o
machado com esse lado para baixo, escolheu um lugar adequado e o cravou firme
no chão. A garra de aço rasgou a terra, abrindo o solo. Enquanto isso, Parn
encontrou uma tábua de madeira e começou a cavar. O pequeno buraco cresceu
rapidamente.
Slayn se sentou de costas para a estrada, para não ter que ver aquela cena
horrível, olhando, ao invés disso, para os lindos campos que se estendiam à
frente. Perguntas borbulhavam na sua cabeça. A bruxa, é claro, era a principal
preocupação, mas o comportamento de Ghim também o incomodava. O anão
ficara claramente transtornado com o retrato na casa abandonada. Como ele
podia dizer que tinha esquecido agora? Para alguém que demonstrava pouco
interesse em qualquer coisa que não fosse comida, de repente ele resolvera atacar
como se o mundo dependesse disso. Por que Ghim se importaria tanto com os
capangas de Marmo? Também havia o fato de que era estranho por natureza um
anão decidir partir numa jornada. Geralmente eles preferiam passar a vida toda
no subsolo, aperfeiçoando sua arte. Mas Ghim andara pesquisando, lendo livros
antigos e mapas de Lodoss. Será que Ghim tinha algum objetivo que não revelara
a eles? Será que ocultava alguma pista?
Os encantamentos de Etoh continuavam a ecoar, enquanto Ghim, Parn e
Deedlit cavavam os túmulos. Eles carregaram os corpos com o máximo respeito
que conseguiram e cravaram as espadas dos cavaleiros no chão para servirem de
marcas. Um pouco longe dali, enterraram os corpos dos guardas da caravana.
Enquanto o trabalho ingrato continuava, o sol começou a se pôr, e o céu azul deu
lugar à escuridão.
- Essa bruxa usou uma magia sabendo que mataria os próprios soldados?
– perguntou Parn amargamente.
- Acho que não. – respondeu Deedlit – Verifiquei os corpos, e os guerreiros
da caravana morreram de ferimentos de espada. A magia foi conjurada depois
que eles morreram. A parte do corpo deles que estava em contato com o chão não
foi queimada.
- Mesmo assim... Mesmo que eles já estivessem mortos, não posso aceitar
alguém usando magia contra o seu próprio povo.
- A magia nunca deveria ser usada para a destruição, em circunstância
alguma. – disse Slayn – Mas o que vamos fazer agora?
- Vamos atrás deles, é claro! – declarou Parn com completa certeza. Ao
lado dele, Ghim concordou.
- Você quer enfrentar essa bruxa? – perguntou Slayn, só para ter certeza –
Ela é poderosa o bastante para massacrar vários oponentes com um só ataque.
Me desculpe por dizer isso, mas você não acha que está se superestimando?

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- Talvez. – disse Parn, dando de ombros – Mas não podemos deixar isso
ficar assim.
- Digamos que a derrotemos. – disse Woodchuck, nada empolgado – O
que vamos ganhar com isso? Eu não vou trabalhar de graça.
- A recompensa virá de dentro do seu próprio coração. – respondeu Etoh,
se aproximando deles.
Woodchuck se virou na direção do sacerdote. Etoh estava claramente
exausto devido ao esforço dedicado à magia, mas o esforço valera a pena – atrás
dele, tremendo um pouco devido à dor, mas já de pé, estava o único cavaleiro de
Valis sobrevivente. Parn pareceu reluzir.
- O Rei de Valis recompensará vocês. – disse o cavaleiro, com dificuldade.
- Você pode nos dizer o que aconteceu? – indagou Parn.
O homem fez que sim:
- Eu sou um Guarda Imperial de Valis. Meu dever era proteger a Princesa
Fianna.
- Princesa Fianna, a Princesa de Valis?! – interrompeu Parn, surpreso.
- Deixe ele terminar. – repreendeu Deedlit.
- Sim, exatamente. A Princesa Fianna é a única filha do Rei Fahn. Essa
guerra causou um efeito profundo nela. Ela queria motivar os nossos homens nas
linhas de frente. Todos no castelo, incluindo o Rei, foram contra a ideia. Mas a
Princesa insistiu. Ela fugiu...
O cavaleiro parou por um momento, então Deedlit o impeliu:
- Então vocês estavam atrás dela?
- Isso mesmo. Descobrimos que um mercador a havia ajudado a escapar.
Descobrimos para onde estavam indo e os alcançamos para levá-la de volta... E
esse foi o resultado... Matamos alguns dos guardas que nos atacaram quando nos
aproximamos da carruagem. Quando chegamos mais perto, aquela mulher saiu
de lá. Ela recitou algumas palavras estranhas e, assim que terminou, houve uma
grande explosão. Eu fui derrubado do cavalo e, embora me envergonhe admitir,
a verdade é que desmaiei por causa da dor...
Woodchuck chegou perto e disse, cara a cara com o homem:
- Vai ter mesmo uma recompensa?
- Se vocês conseguirem resgatar a princesa, eu prometo que receberão o
que quiserem.
Dez mil moedas de ouro. As palavras flutuavam na cabeça de Woodchuck.
O valor de que ele precisava para se tornar um executivo da Guilda dos Ladrões.
Só preciso fazer isso dar certo, pensou ele, já indo buscar suas coisas. Pelo jeito, eu
também sou um babaca.
O grupo parou por alguns minutos para conversar. Parn e Etoh já tinham
decidido ajudar, é claro, com ou sem recompensa. Ghim e Deedlit não tinham
objeções, e falar em recompensa imediatamente colocou Woodchuck a bordo.

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Slayn ainda estava preocupado, mas sua decisão também já estava tomada: ele
faria tudo o que fosse preciso para deter aquela bruxa.
Parn foi até o cavaleiro e, representando o grupo todo, ofereceu ajuda
formalmente.
- Obrigado. – disse o cavaleiro, fazendo uma mesura. Ao erguer a cabeça,
olhou na direção que a carruagem havia seguido com raiva nos olhos, como se
seu sentimento de alguma forma pudesse alcançar a mulher que estava tão longe.
Parn também estava irado, mas não tanto quanto o cavaleiro. Deedlit olhava para
ele sem entender completamente. Como ele era capaz de absorver o sentimento
dos outros como se fosse seu? Como podia arriscar a vida por uma causa alheia?

A noite estava escura, iluminada apenas pelas estrelas. Deedlit sabia que
os humanos teriam dificuldades. Evocou então uma magia elemental, entoando:
- Seres brilhantes que vivem na noite, reúnam-se aqui e revelem-se... – uma
pequena bola de luz começou a flutuar sobre a cabeça dela, ficando cada vez mais
reluzente. Era o Fogo-Fátuo, o elemental da luz.
Slayn recitou o seu próprio feitiço, e uma luz mágica começou a brilhar na
ponta do seu cetro. Assim, guiados pelas iluminações mágicas, eles deixaram o
fedor de morte do campo de batalha para trás, seguindo a estrada para o leste
acompanhados pelo cavaleiro de Valis. Mas a apreensão continuava presente
entre eles.

Já era tarde da noite quando eles encontraram a carruagem, estacionada


na frente de uma velha mansão – uma construção de dois andares protegida por
uma cerca. O cavaleiro disse a eles que todos os cidadãos de Valis que habitavam
aquela região haviam evacuado para a cidade de Adan para escapar da guerra; a
ocupante da carruagem, portanto, devia saber que o lugar estaria vazio e por isso
o escolheu para fazer seu pouso. Os cavalos dormiam sobre feno.
- Estamos com sorte. Eles não sabem que estão sendo perseguidos. – disse
Slayn e murmurou uma frase para extinguir sua luz mágica. Deedlit também
liberou seu elemental da luz, que oscilou algumas vezes e desapareceu na noite.
- O que a gente faz agora, senhor cavaleiro? – perguntou Parn, sacando a
espada com cuidado para não fazer barulho.
- Não há necessidade de truques. Se invadirmos a casa agora, vamos pegá-
los enquanto estão dormindo. Temos uma boa chance de vitória. - o cavaleiro se
empinou, olhando para a entrada, e tentou colocar a respiração sob controle.
Estava sinistramente quieto, sem nenhum som a não ser o das armaduras
quando eles se moviam. Um feixe de luz podia ser visto por uma rachadura na
porta. Parecia que havia um guarda lá dentro. O cavaleiro avançou com cuidado,
seguido de perto por Parn, Ghim e Deedlit. Os outros três vinham mais atrás.

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- Tomem cuidado... – sussurrou Slayn. Suas mãos estavam ensopadas de
suor. E quem podia culpá-los? Eles estavam prestes a desafiar uma bruxa muito
mais poderosa do que ele.
Quando eles chegaram perto da porta, o cavaleiro brandiu a espada e
começou a correr. O som acordou os cavalos, que reagiram com um relincho
estridente. O cavaleiro não hesitou; usou o impulso para derrubar a porta com
um chute e saltar para dentro. Parn e Deedlit vieram logo atrás, e Ghim se juntou
a eles um momento depois.
Os dois guardas claramente não esperavam um ataque. Olharam para os
invasores sem saber bem o que fazer, e se desajeitaram ao tentar pegar as espadas.
- Deed e eu cuidaremos desses dois! Você e Ghim vão pro segundo andar!
– gritou Parn, posicionando o escudo. Avaliou o guarda da esquerda com o olhar
e o provocou com um manejo da espada. Deedlit correu para o lado direito e
estocou o outro homem com seu florete. Quando as espadas se cruzaram, Ghim
e o cavaleiro de Valis já estavam subindo as escadas.
O segundo andar era um mezanino que se sobressaía sobre a grande sala
do primeiro andar. Havia cinco portas do lado direito; uma delas se abriu, e uma
mulher em trajes noturnos saiu de lá.

Karla acordou com o som dos cavalos relinchando. Ela não esperava um
ataque, mas não estava despreparada. Soldados de Valis? Jogou o cobertor longe e
se cobriu rapidamente com uma camisola de marfim. Antes mesmo de terminar
de amarrar a faixa, já ouvia passos no segundo andar. Karla abriu a porta e saiu
para o mezanino, feliz por ter deixado as luzes acesas. Um dos cavaleiros de Valis
de mais cedo havia sobrevivido de algum modo e vinha correndo na sua direção.
Um anão portando um machado de batalha vinha logo atrás. Ela sabia que tinha
de ficar calma. Provavelmente o cavaleiro era o mais formidável dos dois, já que
tinha sobrevivido a um ataque que ela tinha certeza que seria letal. Ela precisava
ser cautelosa. Usarei a minha magia mais poderosa para eliminá-lo. Karla ergueu as
duas mãos e movimentou num padrão complexo, recitando na língua antiga.
- A mana é a fonte de tudo. Tudo nasce da mana, tudo se conecta através
da mana, tudo retorna à mana! – com o encantamento completo, apontou para o
cavaleiro. Uma luz ofuscante foi disparada da sua mão e o atingiu bem no peito.
O corpo dele irradiou um brilho e se desfez numa névoa reluzente. Não sobrou
nada. Nem o corpo, nem a armadura, nem a espada.
Surpreso, Ghim arregalou os olhos, mas não titubeou. Não deu tempo para
ela evocar outro feitiço. Atacou sua cabeça com toda a força, usando o lado cego
do machado. Mas ela anteviu o ataque. Saltou agilmente para trás, se recompôs
e começou a conjurar outra magia. Enquanto ela recitava, Ghim se preparou para
atacar novamente, sabendo que teria tempo suficiente antes que ela terminasse o
encantamento.
Mas, quando viu o rosto dela, ele congelou, boquiaberto.

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É igualzinha a ela...
A bruxa concluiu o encanto, e uma neblina branca se ergueu em volta de
Ghim, cercando-o. Ele tombou imediatamente, inconsciente.
- Ghim! – gritou Slayn do primeiro andar. Ele sabia que seria inútil, mas
tentou conjurar Nuvem de Sono assim mesmo. A atenção de Karla se voltou para
o feiticeiro lá embaixo, que parecia estar tentando afetá-la com um feitiço. Uma
versão inferior do que ela mesmo havia usado. Os dois mercenários deixados lá
como guardas haviam sido derrotados, e um jovem guerreiro e uma elfa subiam
as escadas. Num canto, ela também podia ver um tipo de sacerdote e um ladrão.
Karla decidiu que não precisava matar esses intrusos. Ao invés disso, evocou a
mesma magia que usara no anão. A neblina branca se ergueu novamente, se
espalhando pela escada e pelo primeiro andar.
Etoh sabia que estava sendo atacado com magia, então pediu a proteção
divina de Pharis e tentou permanecer consciente. A magia não se dissipou, e ele
pôde ouvir Parn e Deedlit caírem lá em cima, enquanto Slayn caía ali embaixo.
Woodchuck não chegou a cair, pois já havia se emburacado em algum lugar para
se esconder, mas Etoh concluiu que já devia estar dormindo também. Ele sentiu
seu corpo ficar pesado. Caiu de joelhos e não conseguia mais se mexer. Invocou
cada gota de força de vontade que possuía para impedir que sua consciência se
esvaísse na escuridão. A visão estava turva e ele não conseguia sentir os dedos.
Era como se os seus sentidos estivessem fragmentados. Não havia dor, mas ele
rezou para Pharis para que a perda de sensações não o dominasse. Ele venceu a
batalha. Conseguiu se manter acordado, mas fingiu que o feitiço funcionara. Se
ele e os companheiros não iam ser mortos, era melhor aproveitar a chance.
Karla desceu as escadas devagar, avaliando os intrusos caídos. Outros dois
mercenários emergiram da porta mais distante, com armas em mãos. Pareceram
ficar surpresos com a cena que viram.
- O- O que aconteceu, senhora Karla? – perguntou um deles.
- Estou certa de que você pode adivinhar. – ela respondeu – Se vocês se
consideram mercenários, deviam estar sempre preparados para a batalha. Teriam
acabado como esses dois se eu tivesse demorado um pouco mais para acordar. –
Karla então apontou para os atacantes – Não podemos deixá-los aqui. O efeito da
magia não durará para sempre. Prendam-nos lá em cima, em qualquer quarto
que não seja o da garota. E não se esqueçam de tirar todas as armas deles e colocar
em outro cômodo.
Isso cuidaria dos intrusos. Eles não conseguiriam escapar de um quarto
trancado com magia. Mas o que ela faria agora? Só restavam dois mercenários, e
seria difícil passar pelas linhas de frente de Valis com tão poucos, especialmente
levando a princesa consigo. Ela trouxera mercenários de Marmo porque sabia
que sacrifícios seriam necessários cedo ou tarde, mas agora estava preocupada.
Parecia melhor voltar a Kanon e convocar os seus próprios subordinados.

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Ao mesmo tempo, ela se perguntava se aqueles intrusos não poderiam ser
convertidos à sua causa. Eles a haviam impressionado com a sua sutileza, e uma
elfa e um feiticeiro seriam companheiros formidáveis. Se eram só aventureiros,
ela tinha certeza de que conseguiria persuadi-los se usasse as palavras certas.
Com uma boa oferta de recompensa, eles certamente se tornariam seus aliados.
Se eram sensíveis e ambiciosos, talvez até entenderiam e se juntariam a ela de
bom grado. Esse tipo de aliado era o mais útil. Ela tinha muitos espalhados por
Lodoss, cumprindo missões em seu nome.
Ela não conseguira assassinar o Rei de Alania, mas desta vez seu objetivo
estava quase cumprido. Quando a Princesa Fianna estivesse nas mãos do exército
de Marmo, o jogo mudaria a favor deles. O Rei Fahn de Valis não era do tipo que
jogaria o reino fora pela filha. Ele não hesitaria em sacrificá-la em nome da justiça.
Mas, ter a princesa como refém, talvez executada, destruiria a moral dos soldados
e cavaleiros de Valis. A guerra estava equilibrada até agora, com ambas as forças
possuindo o mesmo poder militar. Uma queda de moral poderia mudar tudo a
favor de Marmo. Karla tomou sua decisão: sua maior prioridade era convocar
seus subordinados para conseguir ajuda. Ela subiu ao segundo andar para ver
como estavam as coisas, e os mercenários estavam acabando de colocar o último
dos intrusos no quarto.
- Pronto. – disse um deles – Então, ahn... E agora?
- Seria perigoso demais continuar neste estado. O forte na fronteira é uma
das maiores bases de guerra de Valis, e é possível que tenha sido informado sobre
nós. Precisamos de mais poder humano para cruzá-lo. Vou voltar a Kanon para
buscar reforços.
- Concordo que precisamos de mais pessoas, mas o que vamos fazer até a
senhora voltar?
Os mercenários estavam preocupados. Eles sabiam que seria um trabalho
perigoso, mas não esperavam que tantos dos seus morressem. Haviam ouvido
falar dos poderes temíveis da bruxa e acreditavam que eles os salvariam. Agora,
não conseguiam deixar de pensar que estavam sendo abandonados.
- Não se preocupem, voltarei logo. Por ora, fiquem aqui de olho na garota
e nos intrusos. Invocarei um guarda mágico para o quarto deles, então vocês não
precisarão interagir. Só tomem cuidado para que nada aconteça à garota. – ela os
olhava fixamente enquanto falava – Se soldados de Valis atacarem, vocês podem
fugir ou se render. Não os culparei e prometo resgatá-los da prisão. Mas, se vocês
deixarem este lugar por qualquer outro motivo... – ela continuava encarando-os,
com o rosto ainda mais sério – Não importa onde se escondam, - disse – eu os
encontrarei, e suas vidas estarão perdidas.
Os dois homens engoliram em seco e rapidamente disseram que estava
entendido.
- Ótimo. – disse Karla, sorrindo – Precisarei de alguns momentos para me
preparar, mas partirei em seguida, sem demora. Espero estar de volta o mais

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depressa possível. – e, virando-se para a porta – Só por precaução, vou lhes dizer
como destrancar a porta dos intrusos. Digam a palavra “Lasta” e a porta se abrirá.
Sem essa palavra, nada funcionará, nem mesmo tentar destruir o próprio quarto.
Magia a deixará ainda mais forte, tão resistente quanto ferro ou rocha.
Em seguida, Karla começou a conjurar feitiços. Ao terminar o primeiro, as
portas se fecharam lentamente. Para o segundo, tirou uma presa de dragão do
seu cabelo e jogou no chão do mezanino. Ela se espatifou, e uma massa branca
cresceu no lugar. A massa se tornou um esqueleto armado, totalmente imóvel
com sua espada em mãos. Os mercenários recuaram de medo.
- O- O que é aquilo?! – gaguejou um deles.
Karla emitiu um comando para o esparto na língua antiga e então disse:
- Não se preocupem. Embora esse guerreiro esquelético exista unicamente
para lutar, ele não os atacará. Apenas os nossos inimigos. Ele é mais forte e mais
leal que vocês, pois não conhece o medo. Por isso, ele nunca titubeará e nem
fugirá.
Os dois mercenários estavam tão chocados com o aparecimento do esparto
que não perceberam o insulto. Trocaram um olhar e silenciosamente juraram ficar
longe daquele quarto a todo custo.
- Partirei agora. – disse Karla – Fiquem alertas. – e, com isso, se recolheu
ao seu quarto. Quando reemergiu, trajava seu vestido púrpura usual e carregava
um cetro na mão direita. Desceu ao primeiro andar, que ainda estava repleto de
sangue, e conjurou um feitiço com intensos gestos manuais. Quando o ritual foi
concluído, desapareceu.
Os dois mercenários suspiraram fundo e começaram a arrastar os corpos
dos companheiros para fora para enterrá-los.

Etoh esperou até a conversa terminar para se levantar. Olhou ao redor com
cuidado. Seu corpo ainda estava entorpecido por causa do feitiço, e ele estava
exausto, tanto física quanto mentalmente. Não só eles haviam feito uma marcha
pesada no dia anterior, como também ele tivera de usar uma magia sagrada de
alto nível. Mas não havia tempo para pensar nisso. Eles precisavam fugir o mais
rápido possível. Ele ouvira a conversa inteira entre a bruxa Karla e seus capangas,
e sabia que a única chance de escapar era enquanto ela estava fora.
Eles precisavam se apressar, mas não havia nada que ele pudesse fazer
sozinho. Etoh sabia que os companheiros estavam vivos, graças ao discreto som
de respiração e o movimento dos peitos. Poderia tentar acordá-los, mas, como
estavam inconscientes devido ao efeito de uma magia, decidiu que seria mais
seguro esperar até acordarem naturalmente.
Etoh se sentou de joelhos e se entregou a reflexões. Karla fora enviada pelo
Império de Marmo e encabeçara atividades secretas em Kanon e Valis. Mas Slayn

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nunca tinha ouvido falar dela. Mas em Marmo havia um feiticeiro poderoso –
aquele que chamavam de Wagnard. Será que ele havia se disfarçado de mulher?
Quem quer que ela fosse, era bizarro eles terem se envolvido em dois dos seus
planos. Era coincidência demais... Seria aquilo um teste dos deuses? A ideia fez
Etoh se sentir um pouco melhor. Significava que Pharis estava olhando por ele.
Levou duas horas para os outros acordarem. Ghim foi o primeiro, depois
Deedlit, Parn, Slayn e Woodchuck. Quando todos recobraram a consciência, ele
contou tudo que havia ouvido. Quando terminou, Etoh se dirigiu a Parn:
- O que devemos fazer agora?
- Precisa mesmo perguntar? – disse Parn – Salvar a Princesa Fianna e sair
daqui antes que aquela bruxa volte! – ele balançava a cabeça, ainda um pouco
zonzo por causa da magia.
- Certo. Quanto antes, melhor. – disse Deedlit – Está muito tarde; aqueles
dois homens devem estar cansados. Pelo menos um deve estar dormindo. – ela
levou a mão à proteção de ombro e sacou a adaga que escondia lá. Felizmente,
eles não tinham percebido o truque.
- Isso vai ser meio complicado se essa é a nossa única arma. – comentou
Woodchuck, olhando para a adaga – O esqueleto que está lá fora é bem forte, não
é?
- Um esparto? Eles são mais habilidosos que guerreiros medianos. – disse
Slayn. Era devido à sua proeza que os espartos eram usados como sentinelas na
Academia de Magia. Slayn se aproximou cautelosamente da porta e espiou pela
rachadura. Lá estava o esqueleto armado, vigiando a porta com seus olhos vazios.
Ele se voltou ao grupo – Sem dúvida é um esparto.
Parn se levantou, apertando os punhos.
- Seja o que for, o único jeito é derrotá-lo. – disse.
- Isso pode ser usado como arma. – num movimento inesperado, Ghim
arrancou um pé da mesa que estava no quarto – Não é nada de mais, mas pode
servir de porrete. Melhor que nada, pelo menos.
Parn pegou dois dos “porretes”, e Etoh um. Deedlit ficou com sua adaga,
embora soubesse que não seria muito útil contra um esqueleto. Aproximou-se da
porta e se preparou para pular para fora.
- Deixe isso comigo e com o Ghim. – disse Parn, brandindo seus dois pés
de mesa.
Ghim e Parn se posicionaram lado a lado na frente da porta, com Etoh
alguns passos atrás. Quando sentiram que estavam prontos, Etoh disse a palavra
mágica que Karla revelara aos guardas: “Lasta”. A porta se abriu lentamente, e o
esparto apareceu do outro lado. Parecia saber que havia chegado a hora de
cumprir seu propósito. Ergueu a cimitarra que carregava numa mão e o escudo
circular que tinha na outra.
Ghim e Parn pularam para enfrentar o esparto. No primeiro ataque, Parn
mirou na sua cabeça desprotegida, mas uma rápida defesa com o escudo defletiu

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o golpe. O esqueleto revidou, manuseando a cimitarra como um espadachim de
primeira classe. De algum jeito, Parn conseguiu se defender com o pé de mesa da
mão esquerda, ao mesmo tempo em que estocava com o da direita, mas também
esse ataque foi bloqueado.
De fato, o esparto bloqueava tudo que ele tentava. E, embora Parn também
conseguisse bloquear as investidas dele, a cada vez o pé de mesa ficava mais
desgastado. Não vai durar muito mais, pensou ele, já com um suor frio escorrendo
na sua testa. Atrás dele, tendo quebrado o seu próprio pé de mesa em dois, Ghim
esperava uma abertura. Era o estilo de luta favorito dele – garantir a vitória com
um único golpe. Ele seguia calmamente os movimentos do esqueleto, avaliando-
o. Duvidava que o monstro fosse cair ante o golpe daquele porrete improvisado...
Mas havia um jeito. Parn só precisava aguentar mais um pouco.
- Ghim, o que você está fazendo?! O Parn está em perigo! – gritou Deedlit,
atrás dele.
- Quieta! – gritou ele de volta – Os anões têm o seu próprio jeito de lutar.
Etoh e Deedlit estavam de prontidão atrás de Parn, prontos para entrar na
batalha se necessário. Mas torcendo para que não chegasse a isso.
- Não vou durar muito se isso continuar! – exclamou Parn em desespero
quando um pé de mesa foi atingido e finalmente se partiu em dois. A cimitarra
passou direto por ele e atingiu o tronco de Parn, chocando-se com a armadura
dele. Deedlit gritou e desviou o olhar.
Mas o momento pelo qual Ghim esperava havia chegado. O esqueleto não
estava preparado para o choque contra a armadura. Ele perdeu o equilíbrio e a
postura. Assim que começou a se recompor, Ghim entrou em ação. Correu para
baixo do esqueleto e atacou o braço que segurava a espada. Atingiu em cheio o
seu úmero, que se espatifou com um ruído seco – muito embora o pé de mesa de
Ghim também tenha quebrado.
A cimitarra do esparto caiu ao chão. Ghim também se desfez da sua arma,
agora inútil. Com um grito de guerra impressionante, investiu contra o esparto,
usando o próprio corpo como arma. O esqueleto tentou bloquear com o escudo.
Houve um estalo repugnante e, ainda que Ghim tenha feito uma careta por causa
da dor aguda que correu pelo seu ombro, não diminuiu o ritmo. Sem perder o
impulso, empurrou o esparto para cima, içando-o ao ar. O esqueleto balançava
os membros, mas não conseguia fazer contato com nada. Com outro urro furioso,
Ghim carregou o esparto até o corrimão do mezanino e o lançou lá embaixo.
O esparto se debateu, tentando se colocar de pé de novo, mas, depois de
alguns momentos, seus membros esmagados caíram inertes ao chão, e ele parou
de se mexer.
- Conseguimos! – disse Parn, abrindo um sorriso. Ghim sorriu de volta,
mas não havia tempo para comemorar:
- Parece que os nossos belos adormecidos acordaram.

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Parn correu até ele e olhou para baixo. Os dois mercenários já estavam no
corredor do primeiro andar, um armado com uma espada, o outro carregando
uma lança. Pareciam apreensivos com o estado do esqueleto, mas, ao notarem
que os inimigos estavam desarmados, subiram correndo as escadas.
- Deixem isso comigo! – exclamou Deedlit, tomando a frente. Brandiu a
adaga e rapidamente conjurou um feitiço. O ambiente foi engolido pela escuridão
por um momento, e então o espírito da luz se manifestou. A pequena esfera
brilhante avançou festivamente na direção da escada.
- Vou buscar as nossas armas! – exclamou Etoh e saiu em disparada. Elas
provavelmente estavam no quarto ao lado do que eles foram presos. O Fogo-
Fátuo dançava alegremente pela escadaria, entre Deedlit e os mercenários. A elfa
preparou sua adaga.
- O que é isso? – perguntou o mercenário que usava espada, desferindo
um ataque experimental contra a esfera de luz. No instante em que a lâmina fez
contato com a luz, ele gritou de dor e rolou escada abaixo, apertando a mão
direita – Fogo-Fátuo havia desferido um poderoso choque contra ela antes de
desaparecer.
O homem de lança parou por um momento, distraído com os gritos do
companheiro. Foi um erro fatal. Deedlit deixou sua adaga voar, e ela se enterrou
bem no meio da garganta do homem. O outro superou a dor na mão e se levantou
para desafiar Deedlit, mas, antes que pudesse fazer qualquer coisa, ela pegou a
lança do morto e deu cabo dele. Quando Etoh chegou com as armas, já havia
terminado.
- Aqui está o seu florete, Deedlit. – disse Etoh, entregando a arma. Ele não
conseguia esconder a cara de surpresa. Deedlit embainhou o florete na cintura,
arrumou o cabelo com as mãos e se voltou para Parn:
- E agora?
- Vamos resgatar a princesa, é claro. – declarou, voltando para o mezanino.
Não demorou muito para eles encontrarem o quarto no qual a Princesa
Fianna estava sendo mantida. Estava trancado, e eles não detectavam nenhum
barulho ou luz lá dentro. Parn e Woodchuck trocaram um olhar. O ladrão tomou
a frente, tirou um arame do bolso e inseriu na fechadura.
- Parece que não tem nenhuma armadilha. – comentou. Girou o arame
algumas vezes e logo se ouviu um click. Parn abriu a porta. A luz fraca do
mezanino iluminava a parte inicial, mas depois ficava tudo escuro. Ele ia entrar,
mas Deedlit o impediu.
- Este é o quarto de uma princesa. – sussurrou – Vocês, homens, vão ter
que ficar de fora.
Deedlit entrou no quarto. Com sua excelente visão noturna élfica, podia
identificar uma silhueta pequena e trêmula escondida atrás da cama. Deedlit não
culpava a princesa por estar com medo. Com um suspiro, abriu os braços.

73
- Está tudo bem, Alteza. Meu nome é Deedlit. Eu e meus amigos viemos
resgatar você. Por favor, saia daí. Não há motivo para ter medo. – ela fez uma
pausa, esperando uma resposta, mas a garota não disse nada. Deedlit só ouvia o
som da sua respiração rápida e tensa.
- Lauma adonia moile de Pharis. – era Etoh, falando da porta. Deedlit voltou
o olhar para ele.
- Moiro rahm. – respondeu a voz rouca de uma mulher – Tem um clérigo
de Pharis aí?
- Na verdade, ainda sou só um sacerdote. – respondeu Etoh, fazendo uma
mesura em direção à escuridão.
- Viemos resgatar você, então venha conosco, por favor. – repetiu Deedlit.
Uma pequena sombra trajando uma camisola branca surgiu atrás da cama e
começou a caminhar até ela, embora ainda um pouco hesitante. Mas, assim que
viu o hábito de sacerdote de Etoh, com o símbolo sagrado de Pharis, ela começou
a correr, passando direto por Deedlit e pulando nos braços dele.
Etoh cambaleou para trás, e Parn teve que apoiá-lo para que não caísse.
Parn ficou vermelho quando viu a garota de perto – sua camisola era quase
transparente. Deedlit deu uma bronca nele e tirou a própria capa para cobrir a
moça. Etoh também estava desconcertado, mas não parou de consolá-la.
- Vossa Alteza, – disse ele – precisamos sair deste lugar imediatamente.
Não sabemos quando a bruxa voltará, então precisamos partir o mais depressa
possível. – ao ouvir isso, Slayn se afastou para buscar as coisas deles, com Ghim
e Woodchuck seguindo o exemplo.
- Maravilha. Outro passeio de madrugada. - reclamou Woodchuck. Ele
não tinha se certeza se era por causa do longo dia de caminhada ou ainda por
efeito do feitiço, mas ele se sentia muito mais cansado que o normal.
- Pode ficar dormindo aqui se quiser, caso não se importe com a presença
da bruxa. – disse Ghim – Todos estão cansados. Pare de reclamar.
- Tá bom, tá bom. – balbuciou Woodchuck.
- O que acham de usarmos aquela carruagem? – disse Deedlit descendo as
escadas. Parn foi atrás dela para ajudar.
- Boa ideia.
A princesa fez menção de ir atrás de Deedlit e Parn, mas Etoh a impediu.
- Não se preocupe, Vossa Alteza. Nós cuidaremos disso. Pode se preparar
para a partida com calma enquanto isso. – com isso, Etoh também foi atrás deles.
A Princesa Fianna voltou para o quarto. Uma vez lá dentro, só então se
deu conta de o quanto o seu traje era impróprio. Seu rosto corou. Se Elmore, o
Camareiro-Mor, descobrisse que ela havia abraçado um sacerdote jovem vestida
daquele jeito, a bronca seria imensa. Mas, deixando a vergonha de lado, ela estava
muito agradecida pela presença do sacerdote. É claro que estava aliviada por ter
sido resgatada, mas com certeza ficaria ansiosa perto de tantas pessoas estranhas.
Ouvir alguém recitar as orações de Pharis era como ter um gostinho do lar. Os

74
outros pareciam tão bizarros para ela... Jamais ela vira gente como eles no Castelo
Roid. Ela tremia. Queria ir para casa.
Antes, ela queria viajar até as linhas de frente para motivar as tropas. Ao
invés disso, só conseguiu ser enganada e capturada. Magia a mantinha subjugada
e cativa durante o dia, e à noite os guardas tornavam impossível escapar. Ela já
havia praticamente se resignado ao seu destino: o de ser levada para Marmo e
ser usada como refém. Mas o onisciente e onipotente Pharis não a abandonara.
Enviara anjos para salvá-la, muito embora eles não fossem exatamente como ela
esperava. Fianna fez o sinal de Pharis no peito e ofereceu uma oração de gratidão.
Em seguida, rapidamente trocou a camisola pelo vestido dobrado sobre a mesa.
Eles são a minha única esperança, ela disse a si mesma, mas ainda não conseguia se
livrar da dúvida arraigada em seu coração.
Quando Etoh chegou lá fora, Deedlit estava tentando acalmar um cavalo
inquieto numa língua que ele nunca ouvira. Um outro cavalo já estava amarrado
na carruagem, aguardando tranquilamente. Parn conduzia outro, selado e pronto
para partir. Deedlit se aproximou de Etoh, levando o cavalo agora calmo, e disse
ao sacerdote:
- Etoh, durma um pouco na carruagem. Você parece exausto.
- Mas... – ele tentou se opor, mas a elfa balançou a cabeça em negativa.
- Você será mais útil entrando nessa carruagem, se enrolando no cobertor
e dormindo. – Deedlit falava de um modo gentil, mas firme. Assim que acordou
da magia de sono, ela percebeu que Etoh estava completamente exaurido. Seu
rosto parecia o de um doente, pálido e cadavérico. Etoh assentiu e, sem dizer mais
nada, subiu na carruagem. Procurou um canto para se acomodar e, um instante
depois, caiu num sono profundo, como se a magia de Karla só tivesse sido adiada.
Vestida e pronta para partir, a Princesa Fianna se apresentou e subiu na
carruagem, seguida por Deedlit. Parn obrigou Ghim, apesar dos protestos deste,
a se contentar com um cavalo. O anão esbravejava seu descontentamento a uma
altura absurda. Woodchuck ficou com as rédeas da carruagem; Slayn foi sentado
ao lado dele. Todos estavam exaustos, mas o desejo de ir para bem longe de Karla
fazia o cansaço sumir. Eles não sairiam vivos se a encontrassem de novo, e, com
sua magia poderosa, talvez ela até já soubesse que eles haviam escapado. Com
essa possibilidade assustadora pairando no ar, eles partiram.
O cetro de Slayn projetava uma leve luz no caminho à frente. Ainda faltava
muito para o amanhecer, e o objetivo deles, a cidade de Adan, estava ainda mais
distante. A jornada pela escuridão pareceu durar uma eternidade, mas por fim o
céu se iluminou ao leste e o sol da manhã se ergueu sobre o horizonte. A tensão
diminuiu um pouco com sua chegada. Parn começou a cochilar, mesmo estando
cavalgando, e Ghim teve de mantê-lo acordado, pois tinha medo de seguir pelo
mesmo caminho. Woodchuck passou as rédeas para Slayn e rapidamente caiu no
sono. Slayn deixou os cavalos à vontade, confiando que eles seguiriam a estrada,
e essencialmente apenas segurava as rédeas. Eles estavam passando por campos,

75
e a estrada tinha árvores dos dois lados, cujas folhas pareciam se abrir ao máximo
para receber a bênção do sol. Ao longe, várias galinhas.
- Ainda falta muito pra chegarmos a Adan? – perguntou Parn a Slayn, se
esforçando para manter os olhos cansados abertos sob a luz do sol. Slayn fez que
sim.
- Acredito que não chegaremos antes do meio-dia. E será outro dia quente.
- Devíamos parar pra descansar.
- Concordo. – disse o feiticeiro – Estamos exaustos, e os cavalos também.
Seria bom descansar na sombra durante o calor do dia e continuar ao anoitecer.
– apesar das palavras, eles não pararam. Não sabiam se a bruxa estava atrás deles,
afinal. Por volta do meio-dia, porém, os cavalos começaram a espumar pela boca,
e eles tiveram de parar.
Etoh e Woodchuck já estavam acordados a essa altura. Deedlit e a Princesa
Fianna acordaram logo depois e emergiram da carruagem. O grupo escolheu
uma grande árvore próxima da estrada e acampou sob os seus galhos. Ghim
desmontou, aliviado por sentir a terra debaixo dos seus pés novamente. Parn se
esticou ao lado dele e imediatamente começou a roncar. Deedlit o observava com
um olhar curioso. Slayn começou a cochilar assim que se sentou.
- Ainda não saímos da floresta. – disse Etoh, lento e lânguido – Só teremos
escapado de verdade das garras de Karla quando alcançarmos o exército de Valis.
Estaremos seguros quando chegarmos a Adan, então só precisamos ficar atentos
e continuar avançando. – Etoh olhou para Parn, que roncava, e depois Slayn, que
estava sentado, mas dormindo profundamente – Antes de descansarmos, acho
que devemos decidir quem vai cavalgar agora e quem vai conduzir. Eu posso
ficar com o segundo.
- Eu cavalgo, então. – ofereceu-se Deedlit – A princesa pode continuar na
carruagem, mas Slayn e Parn deveriam se juntar a ela. Wood pode conduzir com
você, Etoh. Acha que o Ghim caberia entre vocês?
- Não com a minha circunferência. – respondeu o anão.
- Então você pode vir comigo. A sela tem espaço suficiente para dois. Só
não encoste em mim, senão eu te jogo do cavalo.
- Pode ter certeza de que não precisa se preocupar com isso. – respondeu
Ghim, sério.
- Vamos descansar aqui só mais um pouco. – disse Etoh – Não podemos
perder mais tempo. Pelo menos, não devemos estar muito longe da cidade. – ele
olhou para o sol que se permitia ver parcialmente em meio aos galhos e folhas. O
deus supremo Pharis governava o sol, e sua luz era a bênção dele... Mas o calor
já estava quase intolerável. Seria uma tarde difícil.

76
5

O grupo partiu pouco depois que o sol chegou ao apogeu, na parte mais
quente do dia. O cavalo que carregava Deedlit e Ghim ia na frente, seguido pela
carruagem comandada por Etoh. Não havia onde a bruxa se esconder em pleno
dia, mas, ainda assim, eles não conseguiam deixar de sentir que estavam sendo
observados. Parn e Slayn provavelmente sentiam o mesmo, mesmo dormindo –
espremidos sem nenhum conforto na carruagem, eles grunhiam a cada sacolejo
na estrada.
- Está faltando pouco agora. – murmurou Etoh, olhando para o céu. Havia
várias nuvens grandes em formato de pilar no oeste. Provavelmente choveria
naquela noite, mas eles já deveriam estar em Adan até lá.
Etoh olhou para a estrada atrás de si. Não havia ninguém lá. Ao se virar
para a frente de novo, porém, percebeu uma mancha negra no céu. Ele piscou
para limpar os olhos. Continuava lá.
Ele teve um mau pressentimento.
Woodchuck estava totalmente distraído, olhando sem muita atenção para
a imutável paisagem rural. Seu único pensamento era a recompensa da família
real de Valis. O Cavaleiro Sagrado que prometera a recompensa tinha morrido,
mas devolver uma princesa para a família com certeza valia alguma coisa. Ele
poderia usar o dinheiro para se tornar um executivo da Guilda dos Ladrões de
Alania. Ou talvez abrisse uma estalagem em algum lugar. Ou poderia até passar
o resto da vida sem fazer nada.
Isso o fez sorrir por um momento, mas a ideia durou pouco. Com certeza
ele era capaz de fazer mais. Se ele se convencesse a ficar satisfeito com uma vida
pequena dessas, nunca faria valer os vinte e tantos anos que passou na prisão. Eu
tenho que fazer algo grande...
Os pensamentos foram interrompidos por uma cutucada.
- Woodchuck... O que você acha que é aquilo? – perguntou Etoh.
Woodchuck olhou para onde o sacerdote apontava, espremendo os olhos.
- Aquele ponto preto? - indagou – Hm. Está muito longe, então não sei
dizer. Mas deve ser um pássaro. – e bufou, irritado por Etoh ter interrompido sua
fantasia feliz para fazer uma pergunta idiota.
- Só um pássaro? – questionou Etoh. Seu coração batia forte, e o sentimento
ruim não ia embora – Vamos acordar Slayn e Parn, por precaução. É impossível
aquilo ser um simples pássaro. Está muito longe. Seja o que for, é grande. E está
ficando maior. Acho que está vindo na nossa direção!
Woodchuck olhou de novo. Realmente, o pássaro parecia estranhamente
grande.
- Tomara que não seja um dragão! – disse ele com a voz trêmula enquanto
abria a pequena janela – Slayn! Parn! Acordem! Temos um trabalho pra vocês! –

77
e sacou a própria adaga, embora soubesse que seria inútil contra o quer que fosse
a coisa que vinha na direção deles.
- Ah! – gritou Etoh, parando a carruagem no meio da estrada. Deedlit se
virou para trás com um olhar de questionamento.
- Hm? O que foi? – perguntou Slayn sonolento, colocando o rosto na janela.
Ele ainda estava um pouco zonzo, mas, ao ver a expressão de alarme no rosto de
Woodchuck e Etoh, se dirigiu para a parte de fora da carruagem, colocando o
capuz para escapar do sol opressor.
- Veja! – Etoh apontou, e Slayn seguiu a direção com o olhar.
- Não consigo dizer daqui... – balançou a cabeça e sussurrou um feitiço sob
o capuz. Concentrou-se na massa negra de novo e ficou boquiaberto – Aquilo é
um roca! É um pássaro lendário, extremamente raro e visto apenas no deserto a
leste de Flaim. Dizem que são mensageiros dos deuses... Mas por que haveria um
aqui?!
- Um roca?! Mas como?! – Etoh gritava – Só pode ser a bruxa transformada!
Olhem o tamanho dele! – o comportamento geralmente calmo do sacerdote fora
totalmente subjugado pelo medo que os poderes de Karla causavam.
- Faz sentido. – admitiu Slayn. Pegou o cetro e começou a se preparar para
conjurar um feitiço.
Assim que Parn e Fianna emergiram da carruagem, o roca passou voando
sobre eles, bateu as imensas asas e pousou no meio da estrada. O movimento das
asas lançou uma grande nuvem de fumaça no rosto deles, que tiveram de fechar
e esfregar os olhos para conseguirem voltar a enxergar. Quando enfim abriram
os olhos de novo, o pássaro gigante havia sumido. E em seu lugar estava uma
mulher de vestido púrpura que segurava um cetro na mão direita. Ela avançou
lentamente na direção deles, com um ligeiro sorriso no rosto, como se tivesse
encontrado um brinquedo novo.
A bruxa Karla parou bem perto deles. A tiara, cujas gemas pareciam olhos,
brilhava na sua testa.
- Acho que não se passou tempo suficiente para eu dizer que estava com
saudades. – disse ela, com uma voz convidativa.
Parn sacou a espada e se colocou à frente da carruagem, pronto para entrar
em batalha e proteger os outros. Slayn mantinha o cetro de prontidão e recitava
um feitiço mentalmente, batendo o pé para conseguir se concentrar.
- Por que você está aqui? – perguntou Etoh com uma voz quase inaudível.
À luz do dia, ele podia ver o rosto pálido e admiravelmente belo da bruxa. Seus
cabelos negros como o carvão, que pareciam absorver a luz. Magia poderosa
emanava de todo o seu ser. E, muito embora ele não conseguisse se livrar do
medo que sentia, podia pelo menos controlá-lo. Ele se recusava a se render ao
poder dela.

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Slayn achou que ela parecia estranhamente triste. Mas, um instante depois,
os olhos da mulher já pareciam fatais e cruelmente inteligentes. Os lábios rubros
começaram uma dança encantadora.
Parn ouviu um sussurro curiosamente musical. Manteve-se em guarda,
com espada e escudo em posição, determinado a encarar a magia dela com todo
o seu corpo. Ele se enchia de raiva ao pensar que todo aquele poder era usado
para cometer injustiças. Mas, de alguma forma, as estranhas palavras da bruxa
amaciaram o ódio que ele sentia. Parn piscou. A bruxa sorria para ele. Não era
aquela expressão gélida de antes, seu olhar era cheio de tolerância e paciência,
como o de uma deusa de misericórdia. Parn percebeu que ela nunca faria mal a
ele. Não havia motivo para empunhar uma arma contra ela.
- Fique alerta! – avisou Slayn – Ela está enfeitiçando você!
A voz pareceu ter vindo de muito longe, mas fez Parn recobrar os sentidos
plenos, e ele se colocou em prontidão de novo.
- Não vamos cair nos seus truques, bruxa! – exclamou, furioso. Começou
a atacar tudo ao seu redor loucamente, como se tentasse destruir a teia de aranha
que o cercava. Etoh achou que Parn a atacaria ali mesmo, mas o jovem guerreiro
simplesmente retornou à postura original, com os olhos travados na bruxa.
- Vocês roubaram a garota da mansão e têm força de vontade o bastante
para resistir à minha magia... Vejo que são aventureiros de grande valor. – Karla
os observou com admiração genuína por um momento, que logo foi sobrepujada
pelo olhar gélido – Seria um desperdício matá-los. Querem se juntar a mim? Não
creio que entendam agora, mas tudo que estou fazendo é pelo bem de Lodoss.
Posso lhes dar tudo que desejam: riqueza, fama, conhecimento, ou talvez mesmo
uma esposa?
- Sem chance! – berrou Parn, furioso.
- Se não desejam nada, tudo bem. Entreguem a garota e saiam daqui agora.
Caso se recusem, não terei piedade. Vocês morrerão aqui, e de seus corpos só
restarão as cinzas.
Karla moveu as mãos e recitou feitiços, um após o outro, numa melodia
tão natural que mais parecia o correr de um rio. A cada encantamento, uma esfera
vermelha aparecia diante dela e começava a girar, como se estivesse viva.
- Inacreditável... – murmurou Slayn, com um tom de voz mergulhado no
desespero – Cada esfera dessas é uma magia de fogo. Só uma seria o bastante
para matar todos nós.
- Não tem nada que possamos fazer? – indagou Parn.
- Não. Eu precisaria usar todas as minhas capacidades mentais para criar
só uma esfera dessas.
- Então não tem outro jeito. – Parn estava decidido. Ele preferia morrer
lutando como seu pai a morrer em desgraça. Forçou-se a se acalmar, avaliou a
distância entre si mesmo e a bruxa, ergueu a espada na altura do ombro e
apontou para o peito dela.

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Deedlit percebeu o que ele pretendia, engoliu em seco e abriu a boca para
protestar.
- Espere! – gritou uma voz. Estava trêmula, mas resoluta – Se eu for com
você, você os poupará?
A Princesa Fianna deu um passo à frente. Etoh observou admirado como
ela encarava a bruxa seriamente, sem desviar o olhar, com todo o orgulho e
dignidade reais. Mas também viu como os seus ombros esguios tremiam. Ele se
curvou discretamente para cochichar à princesa:
- Vossa Alteza, nós vamos ganhar tempo. Ela não usará qualquer magia
que possa lhe causar dano. Se todos atacarmos juntos, podemos distrai-la por
tempo suficiente para que Vossa Alteza fuja. Pegue o cavalo, galope para dentro
da floresta e de lá siga para Adan. Tenha fé na proteção de Pharis. – Etoh ergueu
os braços – Agora vá! – exclamou, e a luz sagrada de Pharis piscou sobre a sua
cabeça. Por um momento, um raio de luz ofuscou até mesmo o sol, e a bruxa foi
obrigada a desviar o olhar.
Fianna olhou para Etoh sem a menor ideia do que fazer.
- Vá! – gritou o sacerdote, e Fianna correu para o cavalo.
Slayn convocou a escuridão para envolver a princesa, bloqueando-a do
campo de visão da bruxa. Começou então a preparar sua próxima magia. Deedlit
também já agia:
- Indomável donzela dos ventos, pare as vibrações do ar e sufoque todos
os sons! – disse ela, conjurando uma magia de silêncio onde a bruxa estava. Em
seguida, sacou o florete. Parn e Ghim já estavam correndo. Karla fez um gesto
com as mãos para lançar as bolas de fogo sobre eles. Mas, quando abriu a boca,
não saiu nenhum som. Ela reconheceu a magia élfica da Sílfide, a elemental do
vento.
Tolos impertinentes! – Karla tocou o anel que usava num dos dedos da mão
esquerda e ergueu proteções mágicas invisíveis ao seu redor. Recuou um pouco
para sair da área afetada pela magia da elemental. Parn correu para impedir sua
fuga. Cravou a espada em seu peito, mas a lâmina foi detida por uma parede
invisível. O impacto causou um forte recuo, que quase fez com que ele deixasse
a espada cair.
- Se querem tanto assim morrer, realizarei o seu desejo! – finalmente capaz
de falar, Karla se concentrou e expandiu a muralha de magia ao seu redor para
invocar o próximo feitiço em ser interrompida. Parn e Ghim foram lançados para
trás. Parn lutou para resistir à força inexorável, indignado com a própria
fraqueza. Ele sabia que não tinham como vencer.
Mas então, naquele momento de total desespero, uma nuvem de poeira se
ergueu ao longe na estrada.
O olhar de Slayn continuava aprimorado, devido à magia de clarividência,
então foi fácil para ele ver o que se aproximava. Tirou o capuz e, empolgado,
chamou por Etoh e Woodchuck, que estavam escondidos debaixo da carruagem:

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- É a Ordem de Cavaleiros de Valis! Estão em pelo menos vinte! E aquele
manto... É um feiticeiro da Academia! Deve ser o Lorde Elm, o feiticeiro da corte
de Valis!
Com uma rápida oração de gratidão a Pharis, Etoh repassou a informação
a Parn com toda a força dos seus pulmões.
- Incrível! – o rosto de Parn se encheu de luz. O desespero e a desesperança
haviam desaparecido.
Karla também ouviu – não, o insuportável sacerdote a fez ouvir. Uma forte
raiva correu pelo seu corpo, mas se dissipou rapidamente. Acho que o destino está
do lado deles. Olhando para trás, começou a conjurar outro feitiço. Era verdade o
que o sacerdote havia dito: um grupo de cavaleiros armados galopava em sua
direção a toda velocidade, clamando pela Princesa Fianna. Karla sorriu.
- Agradeçam à sua boa sorte. Só não deixem isso subir às suas cabeças. E
não apareçam nunca mais na minha frente. Milagres não se repetem. – ela
dissolveu a parede de magia e ativou outro feitiço. Um que pareceu muito
diferente dos de antes, recitados na língua antiga. Verdade fosse dita, era muito
parecido com as orações de Etoh.
- Aquilo é a magia sagrada de Marfa! – disse Slayn para Etoh, surpreso.
E, antes que qualquer outra coisa pudesse ser dita, Karla desapareceu. O
sorriso continuou no seu rosto até o último segundo.
- Ela deve ser uma sacerdotisa de Marfa. – avaliou Slayn – A magia que ela
conjurou agora é conhecida como “Retorno” e só pode ser usada por devotos de
Marfa.
Etoh se perguntou por que um feiticeiro estaria mais familiarizado com
magia sagrada do que um sacerdote como ele. Ele ouvira dizer que a maioria dos
feiticeiros adorava Rahda, o deus do conhecimento. Mas nunca tinha visto Slayn
rezar.
- Uma sacerdotisa de Marfa? – perguntou Ghim com um olhar grave ao se
aproximar do feiticeiro. Este fez que sim, um pouco surpreso com o interesse do
anão:
– E de alto nível. Pelo menos, a julgar pelo nível da magia que usou.
- Eu sabia! – exclamou Ghim.
- Do que está falando? – indagou Slayn – Você sabe de alguma coisa, não
é? Vem escondendo algo de nós.
- Não estou escondendo nada. – respondeu Ghim, ríspido. Sua barriga se
revirava de emoção. Havia felicidade e raiva borbulhando juntas – Eu só não
achei que pudesse ser verdade... Como ela está usando magia? E por que estaria
do lado de Marmo?

82
6

Slayn suspirou aliviado e caminhou até Parn. Ele conhecia Elm do tempo
da Academia, apesar de não conviverem diretamente; eles tinham uma diferença
de idade de quase uma década. Elm era um prodígio. Seu poder rivalizava com
o de Wagnard. Além disso, era um devoto fervoroso de Pharis. Parecia natural
ele ter sido recebido de braços abertos como feiticeiro da corte em Valis.
Slayn se curvou para o feiticeiro de meia-idade que liderava os cavaleiros.
- Há quanto tempo, Lorde Elm. – disse – O senhor se lembra de mim?
Slayn, o Caçador de Estrelas.
Os cavaleiros estavam desconfiados, mas bastou Lorde Elm vislumbrar o
manto, o cetro e o rosto magro de Slayn para abrir um sorriso.
- Eu me lembro de você. Seu rosto e sua voz são muito característicos. Você
cresceu.
- Obrigado.
- Desculpe-me se sou indiscreto, mas o que você faz aqui? Decidiu partir
numa jornada depois que a Academia fechou?
- Algo nesse sentido. – disse Slayn, driblando a pergunta – O senhor está
em busca da Princesa Fianna?
- Estamos atrás de um grupo de mercadores que a sequestrou. Mas como
você sabe? Vocês a viram?
Slayn assentiu.
- É uma longa história, mas ela está conosco. A bruxa com quem lutávamos
é quem a havia sequestrado, mas nós a resgatamos.
Como que aproveitando uma deixa, a princesa emergiu de trás da cortina
de escuridão de Slayn. No fim, ela escolhera não escapar sozinha. Os cavaleiros
comemoraram, aliviados e verdadeiramente felizes; alguns até desmontaram e
correram até ela.
- Parece que somos nós que devemos nos curvar para você. – disse Elm –
Slayn, eu nem sei como agradecer. Não fazia ideia de que você havia se tornado
um feiticeiro tão capaz. A propósito, já encontrou a sua estrela?
- Ainda não. – respondeu Slayn – Mas não agradeça apenas a mim. Nós só
conseguimos resgatar a princesa graças a esse rapaz. – e apontou para Parn – Sem
as habilidades e a força de vontade dele, nós nunca teríamos chegado até aqui.
- É mesmo? – disse Elm, prontamente descendo do cavalo – Então eu devo
agradecer a você também. Qual é o seu nome?
- Parn. – respondeu ele, fazendo a saudação dos cavaleiros – Sou filho de
Tessius, um Cavaleiro Sagrado de Valis. – o próprio Parn ficou surpreso por ter
dito isso; mas, uma vez que estava feito, os observou com atenção para medir
qual seria a reação. Cavaleiros de Valis deveriam saber por que seu pai morrera.
- Tessius, o Cavaleiro Sagrado? – Elm falou de um jeito mais severo do que
ele esperava. Isso o preocupou – Isso é verdade? Você é mesmo filho de Tessius?

83
- Sim. Esta armadura é a prova. Pode estar suja, mas ainda é a armadura
oficial da Ordem de Cavaleiros de Valis.
- Parece mesmo com ela. – disse Elm, olhando-o de cima a baixo.
- Não há dúvida, Lorde Elm. – interviu um dos Cavaleiros Sagrados – A
armadura dele é igual à nossa.
- Deve ser verdade. – disse outro – Por que alguém tentaria se passar por
filho de Tessius?
- O que você quer dizer com isso? – interrompeu Parn – Por favor, me diga.
Como o meu pai morreu? Minha mãe não dizia nada, só que eu devia acreditar
nele. Mas o que os outros dizem é que ele teve a morte de um covarde...
Elm se aproximou de Parn e colocou a mão no seu ombro afetuosamente.
- O seu pai realmente desobedeceu ordens, mas ele nunca foi um covarde.
O dever de Lorde Tessius era patrulhar a fronteira norte, juntamente com outro
cavaleiro, e relatar a descoberta de quaisquer inimigos que encontrasse. Mas,
quando descobriu que uma pequena aldeia estava para ser saqueada, Tessius
mandou o outro cavaleiro fazer o relatório e ficou para trás para enfrentar os
invasores sozinho. Eles eram muitos, não havia chance. Mesmo assim, ele não
hesitou. E, graças ao que ele fez, o dano à aldeia foi mínimo.
- Isso é verdade? – a voz de Parn falhava.
- Sim. A bravura dele deveria ser digna de louvor. Mas as leis da cavalaria
são absolutas, sem exceção. Então o rei teve de privá-lo do título de cavaleiro por
desobedecer ordens. Mas os que sabem a verdade sempre admiraram a coragem
dele.
- A atitude do Lorde Tessius foi de uma honra sem igual. – disse um dos
cavaleiros – Esses boatos deturpados se espalham porque não podemos falar a
verdade abertamente... Mas você acha mesmo que algo assim manteria o nome
de um cavaleiro vivo por tanto tempo? – o rapaz quase parecia ter inveja do filho
de Tessius.
- Fico feliz por você. – disse Deedlit, pegando no braço de Parn.
- E outra vez Lorde Tessius nos traz honra – continuou o cavaleiro. Porque
entre aqueles que resgataram nossa princesa sequestrada está ninguém menos
que seu filho! Só pode ser Pharis quem guia seus passos!
- Então o meu pai não cometeu uma desonra, afinal... – pela primeira vez,
Parn sentiu uma explosão de orgulho por vestir a armadura que pertencera ao
seu pai, o homem que escolheu a coisa certa. A mesma escolha que ele teria feito.
Parn olhou para o céu brilhante e fez uma oração – Eu agradeço pelo sangue do
meu pai, que corre nas minhas veias.
Em resposta, ele podia sentir o espírito do seu pai olhando por ele.

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Capítulo 4
O Grande Mago

Depois de oito dias de viagens sem incidentes, o grupo chegou a Roid, a


capital imperial de Valis. As ruas da cidade ferviam com grandes multidões, e
para todos os lados havia uma abundância de lojas. O país podia estar em guerra,
mas isso era uma preocupação distante para os moradores da cidade.
Como ela fora construída num delta, as construções eram baixas, e até as
torre do castelo real, embora se destacassem em meio à paisagem urbana, eram
menores que as de Alania e Kanon. Ao contrário desses lugares, o castelo de Valis
era um complexo horizontal, cercado por um fosso e uma muralha de pedra, que
ocupava grande parte da área central da cidade.
Esgueirando-se para fora do castelo, ruas se estendiam e se trançavam de
jeitos aparentemente aleatórios, e as fachadas simples, mas regulares, tornavam
difícil para os novatos encontrar o caminho até os portões do castelo. Também
havia canais cortando a cidade, mais obstáculos à locomoção. Valis podia ter sido
erguido sobre uma planície, mas a disposição da cidade fazia dela uma fortaleza.
- Esta é Roid? É menor do que eu esperava. – comentou Deedlit com
desdém, sem se preocupar que Elm pudesse ouvir. Parn se virou para ela com
um olhar de desaprovação.
- É pequena comparada à grande cidade de Allan. Mas posso prometer a
vocês que os cidadãos daqui são os mais leais de toda a Lodoss. – Elm parou e
cumprimentou a multidão na frente deles, que curvou a cabeça e abriu passagem.
Após uma longa cavalgada, o grupo enfim chegou aos portões do castelo, cruzou
a ponte levadiça e adentrou o átrio. Uma vez lá, desmontaram. Era costume andar
pelo resto do caminho.
A carruagem que levava a Princesa Fianna também parou, e ela desceu
devagar, segurando com cuidado a bainha do vestido. Os guardas do castelo, ao
vê-la, chamaram seu nome e acenaram, radiantes com seu retorno. Fianna acenou
de volta com um sorriso tímido.
Elm encaminhou a princesa até o castelo, acompanhado por um pequeno
grupo de cavaleiros. Outro cavaleiro guiou o grupo de Parn a um salão ricamente
decorado para esperarem. A mobília consistia de sofás de felpo e uma grande
mesa importada do continente. Um guarda-louças de porta de vidro armazenava
bebidas aparentemente caras, além de várias taças. Uma parede inteira era
ocupada por um imenso quadro que retratava uma batalha com um demônio, e
a janela na parede sul era feita de vitrais com a imagem do deus supremo Pharis.
Aquele único cômodo era quase do tamanho da casa de Slayn.

85
- Acho que não devemos nos servir antes que alguém apareça. – disse Parn
para Deedlit, mais como que esperando uma indicação do que fazer. Deedlit nem
respondeu; apenas se acomodou no sofá enquanto Parn continuava a observar as
garrafas. Os licores caros não interessavam a Ghim; ele estava quieto num canto,
mexendo com uma peça de artesanato anão.
- Este lugar me deixa ansioso. – comentou Slayn, mas sem perder o tom de
voz comedido. A mobília não o interessava, e ele já pensava em tirar um livro da
bolsa para se distrair.
- Também não me sinto à vontade num lugar chique desses. – reclamou
Woodchuck ao se sentar desconfortavelmente no sofá – Me sinto como que preso
numa prisão de ouro... Não me dá nem vontade de beber. Tomara que eles não
demorem muito.
Bem nessa hora, houve uma batida na porta e dois cavaleiros entraram.
Woodchuck quase caiu do sofá de susto com o som. O grupo não conseguiu
conter uma risada ante à reação exagerada dele.
- Vossa Majestade, o Rei, está pronto para recebê-los. Por favor, sigam-me.
– os soldados fizeram uma mesura e acenaram para eles. Ser tratado de modo tão
cortês por soldados reais de repente fez Parn se preocupar. A mão que segurava
a espada tremia, e ele só conseguia pensar que sua armadura se encontrava num
estado deplorável. Ele tentou limpar as partes mais sujas com um tecido, mas era
tarde demais para fazer algo significativo.
Enquanto eles seguiam para a sala do trono, Parn se impressionava cada
vez mais com o tamanho do castelo, olhando tudo ao seu redor avidamente, como
se tentasse absorver cada parte daquilo. Em dado momento, eles passaram por
um grupo que usava uma armadura diferente da dos cavaleiros de Valis. Os dois
grupos se cumprimentaram em silêncio e trocaram olhares atentos.
- Viu aqueles cavaleiros? – cochichou Slayn para Etoh.
- Vi. O que tem eles?
- Devem ser de Flaim, o reino do deserto. Eles tinham o símbolo da águia
no ombro direito.
- A Ordem de Cavaleiros de Flaim? Será que também estão em guerra com
Marmo?
- Se estiverem, são boas novas. – respondeu Slayn. Os Cavaleiros de Flaim
eram renomados por sua bravura em toda a Lodoss. O reino tinha começado
como uma tribo do deserto conhecida como Tribo da Tempestade. Durante anos,
ela permaneceu em guerra com outro grupo do deserto, a Tribo do Fogo, também
conhecida simplesmente como “selvagens”. Alguns anos atrás, porém, a Tribo da
Tempestade enfim conquistou uma vitória decisiva, coroou um rei e estabeleceu
a nação de Flaim. Diziam que o Rei Kashue, chamado também de Rei Mercenário,
era um espadachim sem igual. Sem dúvida, Flaim seria um aliado poderoso na
guerra contra Marmo.

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Depois de muito andar e passar por inúmeros corredores que pareciam
todos iguais, o grupo finalmente chegou à sala do trono. Esperaram do lado de
fora por alguns momentos, até que a entrada foi concedida. A sala do trono era
grande e aberta, imponente e majestosa. Um tapete vermelho corria pelo chão de
pedra até as escadas do trono. Na parede atrás dele, pendurava-se um enorme
retrato do rei, com a cruz de prata, o brasão de Valis, e o símbolo sagrado de
Pharis ao seu lado. Cavaleiros de Valis, cortesãos e mulheres em lindos vestidos
estavam alinhados dos dois lados do caminho. Parn quase ficou zonzo com tudo
aquilo. Eu sou o filho de um Cavaleiro Sagrado, pensou consigo mesmo, tentando
fazer o melhor possível para cruzar o tapete com confiança.
O Rei Fahn estava sentado diante deles, no trono. Usava uma toga feita
sob medida e tinha uma barba que não deixava nada a desejar à de um anão. Ele
tinha pelo menos sessenta anos; as rugas no seu rosto eram um testemunho das
suas incontáveis façanhas. Quando se voltou para os seis aventureiros, seu olhar
era como o oceano, intenso, gentil e irresistível. Sentindo aqueles olhos sobre si,
Parn quase se sentiu sufocado. Colocou-se de joelhos, e os companheiros fizeram
o mesmo.
Havia vários outros ao lado do lendário rei. Primeiro Elm, o feiticeiro da
corte, que havia se trocado e colocado um magnífico manto branco. Depois havia
um homem mais velho que vestia uma toga com o símbolo de Pharis – Genart, o
sumo-sacerdote do templo de Pharis. Etoh estava encantado por dividir o mesmo
espaço que um homem tão sagrado. Um outro homem de coroa se sentava num
trono temporário ao lado do Rei Fahn. Slayn notou o emblema de águia nas suas
vestimentas.
Aquele deve ser o Rei Mercenário, Kashue...
O Rei Mercenário tinha barba negra e olhos afiados como os de uma ave
de rapina. Seu assento ao lado do Rei de Valis indicava que era visto como um
igual, então Flaim devia ter a intenção de se unir a Valis na guerra contra Marmo.
A voz do rei ressoou pelo salão, gentil, mas pomposa:
- Vocês devem ser os aventureiros que resgataram a minha filha. Como rei
e como pai, eu lhes agradeço do fundo do coração. Minha filha deveria estar aqui
para agradecer pessoalmente também. Perdoem sua ausência; ela está oferecendo
orações de penitência no Templo de Pharis para expiar seus pecados. Ela errou,
mas isso não diminui em nada a importância do que vocês fizeram. Por favor,
aceitem isto como agradecimento. – com essas palavras, um dos cortesões se
aproximou de Parn com um saco pesado, ajoelhando-se e oferecendo-o a ele com
palavras de respeito. Parn decidiu que seria desrespeitoso recusar, então fez uma
mesura e recebeu a recompensa.
- Obrigado. – o saco era pesado. Sem dúvida, havia muitas moedas de ouro
ali. Isso deixará o Wood feliz, pensou ele, e passou o prêmio para as mãos do ladrão.
- Não há necessidade de agradecer. Posso ser o rei, mas também sou um
pai cuja filha acaba de ser salva por vocês. Sou eu quem deve agradecer. – e,

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voltando-se para a multidão – Quero que todos aqui saibam que punirei minha
filha, não como seu pai, mas como rei. Por ter saído do castelo sem permissão e
causado todo esse transtorno, ela passará os próximos dois meses confinada aos
seus aposentos, privada de contato humano. – os presentes ficaram surpresos
com as palavras, mas a maioria assentiu em concordância. Um confinamento de
dois meses era um castigo severo, mas não era nada que pudesse fazer mal a ela
– Quanto à mulher que a sequestrou, parece ser uma bruxa a serviço de Marmo.
Elm e minha filha já fizeram seus relatos. Eu gostaria de ouvir o que vocês têm a
dizer também. São os únicos que sobreviveram a um confronto com ela, afinal.
Parn lançou um olhar para Slayn. Este fez que sim com a cabeça e começou
a falar, não sem antes fazer uma mesura:
- Meu nome é Slayn. Como o Lorde Elm, estudei com o grande Professor
Larcus na Academia de Magia de Alania. A magia da bruxa Karla era diferente
de tudo que eu já vi. Ela conjurava na língua antiga e também era capaz de usar
a magia sagrada da Deusa da Terra, Marfa, além de manusear feitiços de nível
extremamente alto com facilidade. Eu diria que seu poder mágico supera até o
do falecido Professor Larcus. Peço desculpas pela sinceridade, mas nem mesmo
o Lorde Elm conseguiria pulverizar cinco Cavaleiros Sagrados com apenas um
feitiço.
- Devo concordar. – disse Elm – As magias de fogo são as mais poderosas,
mas, mesmo assim, não imagino nossos cavaleiros sendo derrotados com apenas
uma.
- Mas foi exatamente o que aconteceu. – enfatizou Slayn. Um burburinho
corria pela multidão. Era difícil de acreditar que Marmo tinha uma bruxa desse
nível como aliada, mas, se fosse verdade...
- Silêncio. – Fahn ergueu a mão direita e o barulho parou – Então você está
dizendo que essa bruxa é mais poderosa que o nosso fiel Elm?
- Temo que sim. – respondeu Slayn, ajoelhando-se em seguida para indicar
que não tinha mais nada a dizer.
- Mais poderosa que Elm, considerado o melhor pupilo de Larcus? De fato,
é uma bruxa temível. Você sabe quem é ela, Elm? Seu nome era Karla, correto?
- Eu também achei a história de Slayn difícil de acreditar, então me esforcei
ao máximo para tentar descobrir alguma coisa a respeito dela. Foi então que me
lembrei de uma lenda.
- Uma lenda? Do que se trata?
- Há muito tempo, quando um reino antigo governava estas terras, a magia
era muito mais poderosa do que é agora. Os magos daquele tempo eram fluentes
na língua antiga que nós usamos para conjurar feitiços hoje. Nós provavelmente
pareceríamos bebês balbuciando para eles. Quando o reino caiu, todos os seus
usuários de magia sofreram o mesmo destino... Exceto, dizem, por uma única
bruxa, que conseguiu sobreviver. Seu nome era Karla. Desde então, uma bruxa
chamada Karla apareceu várias vezes ao longo da história de Lodoss.

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Fahn fez um sinal de desaprovação com a cabeça. Ergueu a mão esquerda
e apontou o dedo para Elm:
- Está sugerindo que essa bruxa da lenda é a mesma que sequestrou a
minha filha? É claro que mudar a própria aparência não seria nada difícil para
uma bruxa, mas, para a sua teoria funcionar, ela precisaria ter mais de 500 anos.
- Não tenho nenhuma prova. É só uma possibilidade. – respondeu Elm –
Mas, agora que o Professor Larcus se foi, talvez o único que possa saber a verdade
seja o mago Wort.
Fahn riu.
- Aquele velho maluco?
- Não nego que ele seja um pouco excêntrico, mas é muito sábio. E eu não
consigo pensar em qualquer outra maneira de averiguar a verdade a respeito da
identidade dela.
- Sim, você pode ter razão. Mas quem subirá as montanhas de Moss para
perguntar a ele? A guerra com Marmo tem tudo para piorar. Não podemos abrir
mão de nenhum soldado.
Elm se voltou para o rei com um olhar sério:
- Se Karla é mesmo uma sobrevivente do reino antigo, enfrentaremos uma
magia muito além do que qualquer um de nós jamais imaginou. Eu soube que
Shining Hill foi tomada quando um meteoro gigante caiu do céu, destruindo suas
muralhas. Nem mesmo Wagnard, o feiticeiro da corte de Marmo, tem tal poder.
Precisamos saber com o que estamos lidando.
- Você parece acreditar mesmo nisso... – Fahn abriu um sorriso torto para
Elm e assentiu – Mas não podemos mandar qualquer um nessa missão. O velho
nunca sai da sua torre na montanha e odeia visitas. Para chegar lá, quem quer
que enviemos terá de passar pelas ruínas dos anões ao sul, o Túnel do Mal. Ele
está infestado de ogros e dragões. – o rei se voltou para um homem que usava
um elmo elegante – Leonis, preciso que escolha alguém adequado entre os...
- Eu posso fazer isso. – intrometeu-se Parn. Ele não tinha certeza total de
que devia se candidatar, mas, uma vez que o fez, chegou à conclusão de que era
a escolha certa. – Se o senhor escolher um dos seus Cavaleiros Sagrados, ficará
um buraco nas suas defesas que não será fácil de cobrir. Eu poderia ficar aqui
como mercenário, mas isso seria muito menos útil para Valis.
Fahn olhou para o rapaz ajoelhado à sua frente e se sentiu jovem de novo.
- É ele o filho de Tessius? – cochichou para Elm.
- Sim. – cochichou Elm em resposta.
Parn lembrava o Cavaleiro Sagrado Tessius tanto no rosto quanto na voz.
E provavelmente também na personalidade, já que acabara de se voluntariar para
um trabalho sem pompa, porém vital, descartando o serviço honroso da batalha
na linha de frente. Fahn achava que o rapaz pediria para se tornar um cavaleiro
de Valis. Elm havia mencionado que Parn era muito capaz e o recomendara para
o posto – muito embora houvesse muito que ele precisaria aprender.

89
Sua bravura ao resgatar Fianna o fazia digno do título, e ele era filho de
Tessius. Mas, se fosse feito cavaleiro só por causa disso, os cavaleiros mais novos,
que nunca tinham ouvido falar de Tessius, poderiam se indignar. Eles passaram
anos treinando como escudeiros, afinal, e só obtiveram a honra de se tornarem
cavaleiros quando suas habilidades e caráter foram reconhecidos. Mas, se Parn
cumprisse essa missão, esses cavaleiros teriam de aceitá-lo. Nem todo mundo
conhecia Tessius, mas todos conheciam as ruínas dos anões. O túnel era uma das
partes mais perigosas de Lodoss, quase tanto quanto a Floresta Sem Volta.
- Parn. – começou o rei – Eu sinto muito por Tessius. Não pudemos fazer
as honras no seu funeral, e a dificuldade da situação fez com que sua mãe fosse
embora de Valis. Eu gostaria que você, pelo menos, pudesse lutar comigo como
um honrado cavaleiro. Mas você precisa passar num teste para ingressar na nossa
Ordem. Eu o enviarei com uma carta para Wort. Mostre-me que pode cumprir
essa missão e eu o convidarei para servir comigo.
- Juro pela minha vida! – disse Parn, com o coração quase explodindo de
alegria.
- A jornada para a mansão de Wort será difícil. Como eu disse, você terá
de atravessar ruínas repletas de criaturas mortais, e a bruxa pode ir atrás de você
de novo. Mesmo assim, pretende ir?
- É claro! – respondeu Parn. Ele se sentia um herói. Um herói modesto, sim,
mas isso parecia combinar mais com ele, de todo modo.
- Excelente! Não sinto tanta esperança assim há muito tempo. – o Rei Herói
sorriu e bateu palmas – Hoje é um grande dia. Primeiro recebemos a visita do Rei
do Deserto, um homem de justiça, e agora a do corajoso filho de Tessius. Não
tenho nenhuma dúvida de que sairemos vitoriosos desta guerra. Vamos festejar!
Teremos um banquete esta noite!
A multidão vibrou. As portas duplas foram abertas e os servos saíram da
sala do trono para começar os preparativos. Quando chegou a hora, o banquete
foi servido e tocou-se música.
Kashue, o Rei de Flaim e convidado de honra, não tinha nem trinta anos.
Ele era conhecido desde a juventude por suas façanhas, e havia derrotado a Tribo
do Fogo, sua inimiga, e estabelecido o Reino de Flaim quando tinha pouco mais
de vinte anos. Foi coroado “Rei Mercenário” em referência ao começo dos seus
dias de batalha, em que atuava como mercenário, mas suas habilidades, tanto
como espadachim quanto como governante, eram incríveis. Apesar de o seu país
ter menos de uma década, o coração do povo era um com o do Rei Kashue.
Os selvagens do deserto, adoradores do Deus das Trevas, Phalaris, viviam
em guerra com a Tribo da Tempestade e com o Reino de Valis. Imediatamente
após a fundação do novo país, o novo rei enviou um mensageiro em busca de
uma aliança com Valis, e o próprio Kashue veio pessoalmente comemorar o
sexagésimo aniversário do Rei Fahn. Fahn dizia que sua amizade com Kashue
transcendia o tempo.

90
O Rei Mercenário comandava a atenção da festa inteira – jovens cavaleiros
se reuniam ao seu redor para ouvir sobre as suas conquistas heroicas, e mulheres
nobres tentavam chamar a atenção do rei, que era solteiro. Os cavaleiros também
se amontoavam em volta de Parn, tratando o filho de Tessius como um amigo
que não viam há muito tempo, elogiando-o por sua bravura ao arriscar a vida
pela princesa e desejando-lhe segurança na jornada à torre.
Multidões haviam se formado ao redor de Deedlit e Ghim também, já que
raramente se via elfos e anões na corte de Valis. Choviam perguntas a Deedlit,
sem a menor pausa para resposta, e a elfa mal conseguia esconder sua confusão.
Ela respondia superficialmente e se perguntava como as humanas aguentavam
usar aqueles vestidos tão desajeitados. Ghim não tinha paciência para os olhares
curiosos, mas conseguia distrair as pessoas com as suas habilidades de artesão.
Ele avaliava as joias das moças e fazia ajustes em algumas peças, deixando-as
mais chamativas. Era como se um ateliê ambulante tivesse brotado no salão, e as
donzelas de Valis apareciam uma após a outra trazendo mais e mais joias.
Algumas moças também se aproximaram de Etoh, que agora usava seu
hábito de sacerdote. Em Valis, os sacerdotes de Valis eram mais respeitados até
que cavaleiros. O Sumo-Sacerdote Genart veio cumprimentá-lo pessoalmente e
ofereceu um posto no Templo do Grande Pharis em Roid. Genart explicou que
estava reformulando a ordem de Pharis com a ajuda do Rei Fahn, mas as coisas
não estavam avançando tão bem quanto o planejado. A ordem de Pharis vivia de
acordo com a disciplina e a lei; como efeito colateral, a organização tendia a dar
prioridade aos mais velhos ou com mais tempo de dedicação ao invés de àqueles
com mais habilidade – hábitos ultrapassados que o sumo-sacerdote pretendia
mudar. Pediu ajuda a Etoh, e o jovem sacerdote aceitou com prazer. Afinal, se
Parn se tornasse um cavaleiro de Valis e Etoh entrasse na ordem de Pharis, eles
poderiam continuar a trabalhar juntos.
Slayn, vestindo uma túnica novíssima, estava profundamente envolvido
numa discussão séria com Elm a respeito da identidade da bruxa, a guerra com
Marmo e o governo de Valis. A Academia de Magia ensinava mais que apenas a
própria magia; seus alunos também eram instruídos em diversas disciplinas
acadêmicas, todas consideradas necessárias para se governar bem um país. Como
era o único feiticeiro educado na Academia em Valis, Elm raramente tinha uma
chance de discutir essas coisas com um par. Ele tinha a intenção de organizar um
conselho de feiticeiros na corte, mas Valis era desconfiado com relação à magia.
Poucos jovens queriam ser magos, certamente não o bastante para formar uma
escola. Elm era um devoto fervoroso de Pharis e leal a Valis, o que fazia dele um
caso ainda mais raro. Embora não fosse sua intenção original, Slayn logo estava
oferecendo conselhos a ele.
O banquete ficava mais animado e barulhento com o passar da noite. Mas,
enquanto a maioria dos companheiros se divertia em meio a palavras de gratidão
e infinitas ofertas de vinho, havia um que permanecia sozinho. Woodchuck podia

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sentir os olhares de desprezo e desgosto. Quase podia ouvir os cochichos sobre a
sua ocupação e se perguntava: em que o meu papel nisso tudo é diferente do do Parn?
E sombrias brasas de ressentimento começaram a cintilar na sua mente.

O banquete continuou até tarde da noite, sendo sucedido por um baile.


Parn e seus companheiros não conseguiam acompanhar os detalhes das maneiras
da corte, então acabaram se afastando para um canto do salão, bebendo e
conversando entre si como se estivessem num refúgio particular.
- Então agora o Parn vai nos arrastar pro meio das montanhas de Moss,
hein? – disse Deedlit em tom de decepção, mas, no fundo, a verdade é que ela
estava feliz por a sua jornada com aquelas pessoas continuar. Se Parn se tornasse
um cavaleiro de Valis, ela não teria mais nenhuma desculpa para se manter por
perto.
- Desculpa. Olha, eu não quero forçar ninguém a entrar nessa. Eu gostaria
muito de ter a companhia de vocês, mas sei que todos têm seus objetivos. Nós
acabamos de ganhar uma recompensa e tanto, então entendo que talvez não
queiram arriscar a vida de novo. Estou preparado pra ir sozinho. – a resposta de
Parn foi quieta e determinada, e seus olhos nunca se desviaram dos de Deedlit.
Deedlit ficou sem reação. Ela esperava que Parn ficasse bravo ou pelo
menos surpreso com o comentário, e aí ela poderia graciosamente se oferecer
para ir com ele, exigindo gratidão em troca. Mas a intensa determinação dele não
deu espaço para isso. Ela o envolveu nos seus braços esguios e lhe deu um suave
beijo na bochecha.
- Você se tornou um verdadeiro guerreiro. – disse ela – Você venceu, por
enquanto. Eu vou com você.
- Eu também vou. – exclamou Ghim, empolgado – E nem venha agradecer.
Isso é um problema meu também.
- Irei com você de bom grado desta vez. – era a vez de Slayn – Não posso
perder uma chance de conhecer Wort.
- Eu preciso mesmo dizer alguma coisa, parceiro? – indagou Etoh com um
sorriso radiante.
Todos então se voltaram para Woodchuck.
- Calma, calma. Se tem grana envolvida, eu não deixo passar. Vou com
vocês. Sei que vão precisar de mim, mesmo. – ele falou descontraidamente,
escondendo seus pensamentos mais sombrios. Mesmo que a gente volte vivo, só
vocês é que vão receber agradecimentos. Woodchuck se virou para o centro do salão
para que ninguém reparasse no seu descontentamento. Os outros seguiram seu
olhar.
No centro do grande salão, o Rei Kashue dançava graciosamente com uma
das nobres. Ele era rei há pouco tempo, mas já havia dominado por completo a

92
etiqueta e o decoro da corte. As mulheres mais mexeriqueiras fofocavam sobre
onde ele teria tido aulas. Algumas especulavam que ele poderia ser o terceiro
príncipe de Kanon, que fugira há mais de sete anos, ou um nobre do continente
que teria chegado a Lodoss num naufrágio. O próprio Kashue nunca falava sobre
sua origem. Quando perguntavam sobre o seu passado, ele respondia que o
presente era tudo.
O Rei Fahn ficou pouco no banquete, recolhendo-se cedo. Sem a tensão da
presença do rei, a cerimônia e a formalidade da festa se afrouxaram nas horas
mais adiantadas da noite.
Woodchuck, Ghim e Slayn escaparam discretamente para os seus quartos,
mas Parn ficou para trás. Ele não queria que a noite acabasse. A multidão ao seu
redor foi diminuindo até que a única que restava ao seu lado era Deedlit, muito
mais animada que de costume. Ela não tinha comido ou bebido muito e quase
não falara com ninguém. Também tinha recusado todos os convites de dança dos
cavaleiros, dizendo que os elfos não tinham esse costume. Mas ela parecia feliz
parada ali, ao lado dele.
Etoh tentara ir para o seu quarto várias vezes, mas sempre era impedido
por alguma moça, às vezes pedindo conselhos de Pharis, às vezes querendo ouvir
mais sobre as suas aventuras.
- Ele é tão popular. – comentou Parn, observando o amigo.
- É claro. Ele não é nada feio e, com o tamanho da devoção a Pharis aqui,
não é surpresa nenhuma um sacerdote jovem chamar a atenção. – recostando-se
na parede ao lado de Parn, Deedlit deixou escapar uma risada.
- Posso me juntar a vocês?
A pergunta repentina interrompeu a bolha de tranquilidade dos dois, o
que irritou Deedlit. Ela encarou o recém-chegado com um olhar furioso.
- O que você quer? – bufou ela.
- Que elfa brava. – disse ele, em tom jovial.
Parn estava sem reação. O homem que se aproximara deles era o Rei de
Flaim em pessoa.
- M- Me perdoe. – desculpou-se rapidamente Parn, fazendo uma mesura.
- Calma. – respondeu o rei – Não precisa se preocupar com o decoro. Eu
também já fui um espadachim de aluguel como você.
- Tem alguma coisa que eu possa fazer pelo senhor? – Parn não conseguia
não ficar nervoso, mas a descontração de Kashue ajudava um pouco. Deedlit, por
outro lado, não fazia nenhuma questão de esconder seu descontentamento.
Fechou a cara e os lábios, jurando não dirigir uma só palavra a ele.
- Nada em particular. – respondeu o rei – Eu só estava com vontade de
conversar com um guerreiro jovem sobre as suas aventuras.
- C- Claro... – disse Parn.

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Ele começou a contar a história de como haviam resgatado a princesa.
Enquanto falava, observava atentamente o Rei de Flaim, tentando identificar em
que eram diferentes, acreditando que poderia se tornar um homem melhor se
mitigasse essas diferenças.
Kashue parecia estar se divertindo com a história de Parn, até oferecendo
conselhos nas cenas de batalha com base nas suas próprias experiências. Ele tinha
um enorme conhecimento de técnicas de luta, tendo sobrevivido a inúmeras
contendas caóticas. Até se ofereceu para uma sessão de treino com Parn no dia
seguinte.
Quando a história de Parn terminou, a voz serena de um trovador ecoou.
O homem tocava um alaúde e recitava uma canção sobre façanhas heroicas – um
poema épico sobre a guerra contra os deuses demônios.

Foi trazido a este mundo pelo nosso erro mais temível


O Rei Demônio cuja história eu lhes conto.
Em seu caminho ele deixava um rastro de destruição horrível.
Com seus reinos destruídos, o mundo foi reduzido a escombro.

Mas a luz então se reuniu para contra ele travar uma guerra.
Os humanos se ergueram, armados com escudo e espada.
Os elfos e seus arcos, vindos da mais distante floresta.
E os anões se juntaram a eles, com seus machados em brasa.

As forças da luz, um remoto raio de esperança,


Baniram a horrenda escuridão destas terras.
Um brado de triunfo ecoou por toda a distância,
Além das montanhas, do oceano, do céu e das florestas.

Um labirinto colossal escondia o supremo demônio;


Sua última fortaleza, a cidade dos condenados.
De um portal secreto escondido pelo seu trono,
Estendia-se a mão diabólica de dedos desalmados.

Cem heróis escolhidos lá se aventuraram


E morreram após desafiarem o labirinto sem fim.
Os corpos ficaram frios, mas as luzes das suas almas brilharam:
Um brilho que não deixou lugar para o mal se esconder enfim.

Sete heróis ousaram desafiar o Rei Demônio.


Seis sobreviveram, e assim o mundo foi salvo.
O cavaleiro, o herói real cuja espada é nosso patrimônio.
Fahn de Valis, cavalheiresco e bravo.

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O guerreiro, Beld, que desferiu o golpe de misericórdia
E em seguida viu a própria alma se perder.
A sacerdotisa, Neese, filha de Marfa, que não conhece a discórdia,
E o mago, Wort, que sabia tudo que há para se saber.

Havia também um anão – Flebe, o último da sua estirpe antiga,


O rei de um velho país de pedra, que não mais conhecemos –
E por fim, a pessoa sem nome há tanto tempo desaparecida.
Juntos, deram fim ao mal, então a eles brindemos.

A canção terminou, e houve um momento de silêncio. Então alguém bateu


palmas e logo todos fizeram o mesmo. Os cavaleiros de Valis gritavam o nome
do seu rei herói e exortavam a queda de Beld, o Imperador das Trevas.
Parn sabia que os eventos da canção realmente haviam ocorrido – a batalha
épica contra os demônios acontecera poucas décadas atrás – e agora, outra guerra
estava prestes a estourar em Lodoss, e entre dois dos heróis dessa última guerra.
Que destino irônico, ele não conseguia deixar de pensar. Por que Beld abandonou sua
natureza heroica e virou imperador da ilha das trevas? E por que destruiu Kanon? Parn
não conseguia entender.
A dança foi retomada, sem previsão de parar. Kashue ignorou as donzelas
que ansiavam por um parceiro, aparentemente mais interessado em continuar o
diálogo com Parn, que, por sua vez, não conseguia imaginar coisa melhor. Ele
tinha a atenção pessoal de um rei lendário que começou como mercenário, como
ele. Parn continuava arrebatado, absorvendo cada palavra do que o rei dizia.
Deedlit havia dado as costas a eles, mas ouvia a conversa. As danças no
salão a faziam se lembrar do dia em que conheceu Parn, no festival de Allan. E
também despertavam pensamentos nostálgicos com relação ao seu lar na floresta.
Ela esperava ficar entediada e decepcionada com os humanos, mas parecia
que havia folhas de verdade e inspiração espalhadas pelas vidas curtas deles. Ela
levaria algum tempo para processar tudo que descobriu. Deedlit olhou mais uma
vez para Parn, que ainda conversava com Kashue, e se pegou pensando que não
se importaria de passar algum tempo observando como a vida daquele jovem
humano se desenrolaria.

Um hediondo e corcunda soldado goblin marchava de um lado para o


outro na frente do portão do castelo. O Imperador Beld de Marmo observava, se
perguntando o que era menos normal, a aparência distorcida do goblin ou o seu
próprio coração distorcido. A espada demoníaca na sua cintura balançou, como
que reagindo. Beld segurou o cabo com força, como se estivesse estrangulando
um inimigo odiado.

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- O que foi? – disse uma voz atrás dele – Estranho encontrá-lo perdido em
pensamentos no meio do dia. – era Wagnard, mago da corte e conselheiro mais
importante de Beld.
- Estava pensando no quão hediondo é aquele goblin que nos serve como
guarda. Shining Hill já foi considerado o mais belo castelo de Lodoss. Agora veja
o que ele se tornou com o seu novo mestre. – a capa negra de Beld balançava atrás
da sua armadura vermelho-sangue. A espada demoníaca emitiu outra sinistra
onda de reação.
- Soube que os planos de Karla em Valis fracassaram.
- Sim. Mas não importa. Eu derrotarei Fahn sem recorrer a truques baratos.
Beld se voltou para o seu conselheiro. Wagnard vestia um manto negro.
Havia um boato de que ele havia tingido seus antigos trajes da Academia com o
sangue de um elfo negro. Como os elfos negros, Wagnard usava a magia negra
de Phalaris. Fisicamente, ele também era muito mais forte que a maioria dos
feiticeiros, além de ser um ótimo espadachim. Levando em conta que, em geral,
sua classe odiava espadas, ele podia ser considerado quase um herege. Mesmo
com todo o poder que possuía, porém, Wagnard só usava magia em último caso.
Na verdade, ele quase nunca conseguia fazer isso. Seu mestre, Larcus, o havia
submetido ao efeito de um feitiço proibido: sempre que ele conjurava uma magia,
por mais simples que ela fosse, seu corpo era acometido por uma dor terrível.
Qualquer pessoa normal perderia a consciência imediatamente ao ser submetida
a uma dor tão intensa, mas Wagnard aprendeu a resistir a ela. Agora ele era capaz
até de realizar rituais complexos, de horas de duração.
Era essa força de vontade sinistra que fazia Beld ter total confiança nele. E
foi graças a ela também que ele ganhou o título de “Mago Negro”.
- A bruxa falhou em Alania também. Parece que seus planos não são tão
eficazes quanto suas magias.
- Acha mesmo? Ela sempre foi cuidadosa, com planos dentro dos planos.
Ela ainda diz que tudo ao redor de Valis vai se autodestruir.
- Parece bom demais para ser verdade.
- Você não tem algo a me dizer, Wagnard? Pensei ter visto um mensageiro
chegar a cavalo.
- O senhor vê tudo, Majestade. – disse Wagnard, abrindo um sorriso seco
– Sim, eu recebi um relatório do espião que havia deixado em Valis. O Rei Kashue
de Flaim chegou lá recentemente com cem cavaleiros. Parece que o Rei Fahn quer
trazer a batalha até nós.
- Então esse dia chegou. – Beld sorriu e olhou para o céu – Esconda o sol
durante a batalha. Os goblins não gostam da sua luz.
- Entendido. E onde está a bruxa agora?
- Ela deve estar em Moss. Disse que tinha algo a terminar lá, e também que
queria ver um velho amigo.

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- Atarefada como sempre. Por que ela trabalha conosco, afinal? O que ela
quer?
- Boa pergunta. Mas você não acha interessante não saber? – com isso, o
Imperador deu meia-volta e se dirigiu ao interior do castelo. Os passos pesados
ecoavam pelas paredes de pedra. Wagnard seguiu o seu senhor, tão silencioso
quanto as sombras.

Nas profundezas das montanhas de Moss, Parn e seus companheiros se


esforçavam para vencer o íngreme caminho. Duas semanas haviam se passado
desde que o grupo deixou Roid. Eles haviam cruzado as ruínas do reino de pedra
dos anões, enfrentando criaturas malignas pelo caminho, e agora estavam perto
da torre de Wort. Mas, como o caminho era perigoso, eles tinham de parar com
frequência e avaliar os arredores para evitar uma queda. Todos suavam.
- Que lugar horrível pra morar. – reclamou Deedlit, que se apoiava num
galho para andar.
- Concordo. Esse Wort não é um velho? Como ele vive aqui? – questionou
retoricamente Woodchuck.
Eles escalavam a borda de uma montanha pedregosa onde quase não se
via grama. Antes, Slayn fora abalado por uma forte rajada de vento e escorregou
por uma encosta. Woodchuck teve que puxá-lo de volta com uma corda. Etoh
curou suas feridas sem demora, mas a experiência deixou o feiticeiro receoso e
mal-humorado. Desde o incidente, ele estava tão focado nos seus passos que mal
dizia uma palavra.
- É aquilo? – perguntou Woodchuck da sua posição à frente do grupo. Ele
se empertigou e usou uma mão para fazer sombra para os olhos, olhando para a
paisagem distante. Deedlit conseguiu distinguir o que podia ser a ponta de uma
torre; mas também podia ser o cume de uma montanha. Slayn deu início a um
sussurro. Todos reconheceram o feitiço de clarividência, então esperaram pelo
veredicto.
- Não há erro: é uma torre de pedra. – disse ele, empolgado. Rapidamente
conjurou um feitiço de flutuação para confirmar, elevando-se até os pés estarem
quase no nível da cabeça de Woodchuck. – Podemos chegar lá em um quarto de
dia. – continuou, mas ninguém pareceu ficar particularmente aliviado. Àquela
altura, até algumas poucas horas a mais de caminhada eram tempo demais.
- Vamos descansar mais um pouco e depois vamos em frente. – disse Parn,
sentando-se numa pedra ali perto. Sacou uma toalha de mão e enxugou a testa
ensopada; não havia como escapar do calor do verão, especialmente quando se
era um homem dentro de uma armadura.
Mal sabiam eles que estavam sendo observados naquele exato momento.
Não muito longe do local de descanso, no alto da torre que haviam acabado de
ver, dois feiticeiros observavam uma imagem dentro de uma bola de cristal.

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- Foram esses que conseguiram levar a melhor sobre você? – disse em tom
de desdém um homem idoso. Ele trajava um manto cinza e tinha longos cabelos
do mais puro branco, muito embora outrora, na juventude, fossem negros como
um corvo. Não havia nada que escondesse as rugas no seu rosto envelhecido,
mas seus olhos ainda possuíam aquele brilho da curiosidade.
- Diga o que quiser, Wort. Mesmo eu nada posso fazer contra o destino. –
respondeu a segunda figura. Ela usava um vestido púrpura e seus lábios tinham
em volta de si um delicado contorno vermelho. As joias na pequena tiara na sua
testa brilhavam como um par de olhos. Ela parecia mais reflexiva que indignada
com a imagem que viam.
Era a bruxa, Karla.
O cômodo quase sem iluminação da torre circular tinha apenas uma mesa
e quatro cadeiras. Havia duas portas. Uma era simplesmente a entrada, enquanto
a outra era uma porta de vidro que levava a uma sacada com vista para toda a
Moss – até o distante Lago Acima das Nuvens. Mas a bola de cristal no centro da
mesa permitia que os feiticeiros vissem mais longe até do que isso. Manipulada
da maneira correta, ela podia mostrar qualquer lugar de Lodoss.
- O que pretende fazer? Vai até lá acabar com eles? – indagou Wort, com a
boca retorcida como se tivesse mordido algo amargo.
Karla reagiu com um sorriso fascinante. Ela usara seu espelho mágico da
verdade para descobrir o próximo destino do grupo de Parn. Terminando o que
tinha para fazer em Moss, ela seguiu para a torre dois dias antes da vinda deles
para esperá-los, e agora, finalmente, essa hora havia chegado.
- Você faz isso parecer fácil. – disse ela – Mas eles são surpreendentemente
sagazes. Especialmente aquele feiticeiro. Ele pode ser jovem, mas é muito capaz.
Eu posso ter sido negligente, mas eles já frustraram os meus planos duas vezes
até agora.
- Considerando os seus 500 anos de experiência, isso faz deles um bando
bastante impressionante. Espero que não os mate antes que eu tenha a chance de
conhecê-los.
- Então quer dizer que posso matá-los depois?
- Desde que fora da minha vista. – respondeu Wort, com o olhar fixado no
rosto de Karla.
- Tem algum lugar em Lodoss que você não consiga ver? – questionou ela,
abrindo outro sorriso e voltando seus olhos frios para o ancião – Enquanto você
tiver essa bola de cristal, acho difícil. Mas fique tranquilo, Wort. Não vou matá-
los por simples capricho. Não faz o meu estilo. De todo modo, meu trabalho em
Moss está feito. Contanto que eles me deixem em paz, eu não farei nada. Mas... –
Karla fez uma pausa, dirigindo o olhar novamente para a bola de cristal – Será
que eles vão me perdoar? E, se não... Se esses viajantes quiserem lutar... Eu tenho
o direito de me defender, não?
- Eu não poderia impedi-la.

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- Não se preocupe. Eu não quero enfrentá-los. Gosto deles. Ficaria muito
mais satisfeita se se aliassem a mim. Mas tenho certeza de que tentarão me vencer
de novo. Aquele jovem guerreiro me odeia do fundo do coração.
- O que você está tramando agora? – perguntou Wort, sério.
- Hm, do que está falando? – respondeu ela.
- O que você vê quando olha para ele?
- Ele é igual a você ou Fahn antigamente. Guiado pelo destino, superando
obstáculos mortais, correndo sem hesitação rumo ao seu objetivo. Um dia, tenho
certeza de que nos tornaremos inimigos mortais.
Wort não respondeu.
- Tenho certeza de que eles perguntarão onde eu estou. Pode dizer. Você
sabe onde eu vivo, não?
- É claro. – respondeu Wort, desanimado – Cumprirei a minha promessa.
Não ajudarei Fahn. E, em troca, você cortará relações com Beld. Se nós dois nos
envolvermos nessa batalha, só traremos mais mortes a ambos os lados. Mas eles
não têm nada a ver com esse acordo.
- Vai me atacar por causa dessas pessoas que nem conhece? Isso vai contra
tudo em que você acredita, Grande Mago Wort. Você é o único que sabe o quanto
é inútil lutar contra mim.
- Eu sei... – ele acreditava que era invencível numa disputa de magia. Mas
não pôde vencer a bruxa, porque fazer isso significaria a sua própria destruição.
E nem mesmo Wort sabia como neutralizá-la sem matá-la.
- É uma pena. – disse Karla, levantando-se da sua cadeira e olhando uma
última vez para os aventureiros na bola de cristal. Ela então correu a mão pela
superfície da esfera, e a imagem desapareceu na escuridão – Muito bem, está na
hora de começar os preparativos. Separarei algumas bebidas e me encarregarei
de preparar a refeição pessoalmente. Eles são meus convidados também, então
nada mais justo que eu cozinhar. Avise se quiser comer algo em específico, Wort.
Minhas habilidades culinárias são impressionantes.
- Não são suas. Essas habilidades pertencem à mulher que está sob o seu
controle. – revidou Wort.
- Exatamente. Mas este corpo pertence a mim agora. Leylia, a sacerdotisa
de Marfa, não existe mais. Tanto em corpo quanto em mente, eu sou Karla.
Wort evitou o olhar dela e ativou a bola de cristal novamente. Desta vez,
ela mostrou o rosto de Beld. Continuava o mesmo de quando eles entraram juntos
no Labirinto Mais Profundo para derrotar o Rei Demônio. A espada demoníaca
que ele empunhava o mantinha jovem. Ele era apenas alguns anos mais novo que
Wort, então já devia estar idoso, mas fora congelado no tempo por uma maldição
– a mesma maldição que o impelia a se tornar o regente supremo que unificaria
Lodoss.
Naquela batalha final contra o Rei Demônio, uma sacerdotisa de Pharis
sacrificou a vida para salvar Beld. Ela confiou a ele o seu último desejo: a paz

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eterna em Lodoss. O único jeito de conseguir isso era se um grande rei unificasse
a ilha. Beld estava tentando realizar esse desejo.
A sacerdotisa se chamava Flaus, e ela, Wort e Beld viajaram por toda a
Lodoss juntos. O coração de Beld morreu com ela; sua alma ainda vagava no
fosso eterno que havia nas profundezas do labirinto. Tudo que restava dele era
uma carapaça, cujo único objetivo era concretizar as últimas palavras dela através
da conquista.
Fahn também tentou realizar o sonho de Flaus – mas de outro jeito. Beld e
Fahn queriam a mesma paz para Lodoss, mas os caminhos que escolheram para
chegar até ela não poderiam ser mais diferentes. E o sonho não parecia nem perto
de se realizar. Que loucura estúpida. Wort sentia a raiva crescer dentro de si, e o
alvo dela era a bruxa cinza que se acomodara na torre sem a menor cerimônia.
Essa mulher, única sobrevivente do reino antigo, manipulara os sentimentos dos
seus amigos só para manter um equilíbrio no mundo – o triunfo não do preto ou
do branco, mas do cinza entre eles. Wort quase podia ver o resultado da batalha
que estava por vir. Ele não tinha como mudá-lo e Karla sabia disso, então veio
impedi-lo de tentar impedir. E Wort concordou com os seus termos.
A bruxa vivia nas sombras da história, usando bravos heróis como peões
no seu jogo. Sua existência era a razão de Lodoss nunca ter se unificado desde os
tempos antigos.
Wort continuou a observar o Imperador de Marmo. Seu olhar era de pena.

- Até que enfim, chegamos!


Parn caminhava exausto, quase não conseguindo mais se manter de pé.
Mesmo depois que eles avistaram a torre, chegar lá demorou mais do que o
esperado. Havia tantos desvios e retornos na trilha da montanha que eles até já
suspeitavam que o velho mago tinha feito de propósito.
Com o passar do dia, Parn tinha ficado cada vez mais irritado com o mago
e toda aquela situação. Além do cansaço físico, o fato de alguém com todo o poder
que ele tinha ter escolhido uma vida de reclusão não fazia sentido para ele.
- É exatamente como o Rei Fahn disse. – reclamou Parn inúmeras vezes ao
longo do dia – É um velho cabeça-dura que odeia todo mundo.
Deedlit começou concordando toda vez que Parn falava isso, mas, com o
tempo, isso ficou tão entediante que ela perdeu a paciência:
- Se o odeia tanto assim, por que não volta pra Roid? – eles viajaram em
total silêncio a partir daí.
Esse tipo de briga tinha se tornado mais comum entre eles. Parn estava
ficando mais assertivo, o que significava que também estava mais questionador.
E, para cada coisa nobre que saía da sua boca, vinha algo igualmente imaturo em
seguida. Ela não desgostava dessa parte dele necessariamente, mas ela a deixava

101
confusa. Para cada dois passos que Parn dava rumo ao seu verdadeiro potencial,
parecia dar outro passo para trás. Mas, mesmo assim, ele estava diferente desde
que eles saíram de Roid. Inspirado pelos reis Fahn e Kashue, ele finalmente era
algo mais próximo de um líder.
Slayn também tinha notado a mudança em Parn. Tinha a sensação de que
não precisava mais intervir tanto com conselhos. Ele disse aos outros que, depois
que aquela jornada terminasse, ia ajudar Ghim a encontrar o que quer que ele
estivesse procurando. O feiticeiro estava convencido de que Parn tinha começado
a trilhar o caminho certo e já praticamente podia ver o futuro: ele se tornaria um
cavaleiro de Valis, e Etoh iria para o Templo de Pharis em Roid. Slayn e Ghim
continuariam sua jornada, e Woodchuck... Bom, quem sabe o que Woodchuck
faria a seguir?
Deedlit também não tinha certeza do que fazer. Se Parn fosse nomeado
cavaleiro, não haveria motivo para continuar com ele. Mas ela não queria viajar
sozinha, e não tinha nenhuma intenção de voltar para casa. Ela simplesmente não
sabia o que fazer. Tentava repetir para si mesma que não valia a pena ficar se
preocupando – talvez, quando aquela missão acabasse, as coisas se ajeitassem
sozinhas.
Por fora, a Torre do Mago era simples e sem qualquer decoração. Parecia
mais uma torre de vigia de um castelo qualquer. Ficava empoleirada no cume de
uma montanha rochosa e inóspita, e eles não conseguiam deixar de se perguntar
como alguém podia viver ali.
Quando eles chegaram à porta dupla que levava ao interior da torre, já
estavam completamente sem fôlego. As maçanetas tinham o formato de dragões.
Parn ergueu a mão para bater, mas, antes que pudesse fazer isso, a porta se abriu
lentamente sozinha.
- Opa! – exclamou Parn, dando um passo para trás – Hm... Então ele tem
senso de humor? Isso pode matar alguém do coração.
O lado de dentro da torre era escuro. Eles quase não conseguiam enxergar,
mas de repente as luzes se acenderam sozinhas.
- Mas que droga é essa?
- É simplesmente magia. Ele é um mago, afinal.
- Ele gosta é de se exibir! – reclamou Parn.
- Vamos ver o que tem mais à frente. Ficar gritando aqui não vai dar em
nada. – disse Deedlit, caminhando em direção a um corredor – Olá! – exclamou
– Eu sou a elfa Deedlit, e estou aqui numa missão do Rei Fahn de Valis! – sua voz
ecoou na torre vazia. As únicas coisas que havia lá dentro eram uma escadaria
que descia e outra que subia em espiral ao longo da parede, a qual dava numa
porta.
Deedlit esperou, mas ninguém respondeu ao seu chamado.
- E agora? – indagou ao ansioso Parn.

102
- Tomara que ele não tenha saído. – respondeu ele, temendo até cogitar a
hipótese. A ideia de que eles podiam ter ido ali só para o mago não estar em casa
não tinha a menor graça.
- Parece que tem alguém lá em cima. Ouço vozes.
Slayn abaixou o capuz e se aproximou.
- Também sinto magia aqui. Feitiços que só um grande mago conseguiria
conjurar. – ele se aproximou cuidadosamente da escadaria em espiral e pisou no
primeiro degrau para testá-lo. Sob os seus pés, a escada de repente emitiu o brilho
de uma luz azul e começou a subir sozinha – Puxa, que conveniente. Gostaria que
fizessem algo parecido no castelo de Valis. Aquelas escadas me deram muito
trabalho. – Slayn olhou para Parn e sorriu enquanto subia.
Eles passaram três dias no castelo depois do baile, dias profundamente
significativos para Slayn e Parn. Slayn teve a chance de conferir os valiosos e raros
livros da coleção de Elm, e Parn, como Kashue prometera no baile, recebeu lições
de esgrima do próprio rei. Etoh foi indicado como clérigo oficial pelo Sumo-
Sacerdote Genart e designado a servir à corte de Valis quando voltasse. Os dois
queriam ajudar nos afazeres nacionais. Ghim tinha pegado dez moedas de ouro
da recompensa deles e forjado alguma coisa na ferraria do castelo. Só Deedlit e
Woodchuck tinham passado aquele tempo no ócio.
A escadaria móvel carregava Slayn rapidamente para cima.
- Não vá sozinho! – exclamou Parn, pulando a bordo desesperado.
Acho que isso não pode nos fazer mal, pensou Woodchuck ao dar o seu passo.
Os outros três vieram logo em seguida.
A plataforma na frente da porta era pequena – claramente não tinha sido
feita para seis pessoas. Eles se amontoaram lá de um jeito nada confortável por
um momento, até que Parn falou:
- Com licença! - gritou – Meu nome é Parn. Sou um guerreiro errante. Vou
entrar. – ele empurrou a porta; essa não abria sozinha. Do outro lado havia uma
passagem em espiral, uma descida leve em chão de pedra. Parn seguiu em frente,
com os outros atrás. Mas desta vez só foi preciso dar uma volta ao redor da torre
até eles chegarem a um par de portas lado a lado. Ouvindo com atenção, era
possível identificar vozes vindo da porta do lado direito. Parn se perguntou como
podia haver alguém que visitaria um lugar desses. Bom, alguém além deles.
- Com licença... Nós chamamos, mas ninguém respondeu, então acabamos
entrando... Eu sou Parn, um guerreiro errante. – ele anunciou para quem quer
que fosse de novo.
- Entre aqui logo! – respondeu uma voz rouca e mal-humorada. Só podia
ser o Grande Mago Wort.
Parn respirou aliviado ao descobrir que Wort estava em casa. Entrou na
sala devagar, já fazendo uma mesura. Mas, quando ergueu a cabeça, não pôde
acreditar no que viu.
- K- Karla... – disse ele com um fio de voz quase engolido pelo silêncio.

103
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Uma mão de Deedlit voou até a boca. A outra instintivamente segurou o
florete.
- Por que você está aqui? – indagou ela, pálida.
- Vocês não vão lutar aqui! – exclamou o velho homem, incisivo. Com as
suas palavras, Deedlit sentiu os seus músculos congelarem com o poder de uma
fonte externa. Finalmente, Karla falou:
- Não se preocupem, eu não pretendo lhes fazer mal. Só queria mais uma
chance de conversar com vocês. Vamos, entrem.
A mesa no centro da sala tinha uma taça para cada um deles, com várias
garrafas de vinho, cervo assado numa bandeja e uma pilha de frutas e legumes
frescos. Os magos claramente os estavam esperando.
- Tudo bem, vamos ouvir o que você tem a dizer. – concordou Parn. Ele
ainda estava em choque, mas recebeu as palavras de Karla como um desafio.
Cruzou a sala e se sentou, preparado para sacar a espada a qualquer momento.
O olhar de ódio nunca deixou o seu rosto.
Ghim também puxou um assento prontamente, enquanto os outros quatro
ficaram para trás, ainda sem reação. Woodchuck se acomodou o mais longe de
Karla que conseguiu, tentando passar despercebido.
Um silêncio desagradável tomou conta da sala.
Karla ofereceu uma bebida, não sem antes servir a si mesma e beber, para
provar que não estava envenenada.
- As taças e o vinho são da minha coleção pessoal, então não se preocupem.
– interviu o velho homem.
- Vamos conversar primeiro. – disse Parn, se curvando para a frente – O
que você está fazendo aqui? Como sabia que estávamos vindo?
Karla sorriu para o guerreiro furioso e se assentou na cadeira ao lado dele.
Ghim continuava observando, inspecionando-a da cabeça aos pés. Karla dirigiu
um rápido olhar a ele antes de se voltar para o guerreiro:
- Eu não preciso responder isso... Mas responderei. Um dos motivos de eu
estar aqui é que Wort e eu somos velhos amigos. Lutamos juntos uma vez, lado
a lado. O outro motivo é que eu queria ver vocês de novo. Quanto a como eu
sabia que estavam vindo para cá, é a coisa mais simples de todas... – Karla apoiou
os cotovelos na mesa e estalou os dedos. A maioria deles era adornado com anéis
de diferentes formas e tamanhos. Eles sabiam, graças à batalha anterior, que não
eram simples joias. A bruxa podia usar magias poderosas com o auxílio deles.
- Você disse que queria conversar com a gente?
- Tenho uma proposta. Como disse antes, eu valorizo muito todos vocês.
Não se juntariam a mim? Eu ficaria feliz em deixar os nossos infelizes encontros
prévios para trás.
Os olhos de Parn se arregalaram de raiva. Ele abriu a boca para gritar, mas
se conteve por respeito a Wort.

105
- Pronto, já ouvi. – disse ele – Mas você achou mesmo que concordaríamos?
Nós nunca trabalharíamos pra Marmo. – sua voz era claramente de raiva, mas
ele conseguiu pelo menos não gritar. Era inacreditável que ela o considerasse tão
baixo a ponto de achar que venderia a alma assim.
- Parece que houve um mal-entendido entre nós. – respondeu Karla em
meio a um suspiro. Balançou sua taça, cujo líquido vermelho refletia as luzes da
sala – Eu não trabalho para Beld. Cooperei com ele por um tempo, mas o meu
objetivo é nobre. Você já ouviu falar do reino antigo, não? Era uma civilização
mágica que prosperava em Lodoss e, na verdade, em todo o mundo de Forcelia.
Mas você sabe o verdadeiro motivo por trás do seu desaparecimento?
- Diz a lenda que uma magia poderosa ficou fora de controle. – respondeu
Slayn, entrando na conversa – Mas isso foi há muitos e muitos séculos, então não
temos como saber a verdade. – ele olhou para Deedlit para ver se ela tinha algo a
acrescentar, mas a elfa fez que não.
- Eu ainda não tinha nascido, e os elfos não prestam muita atenção no que
acontece com os humanos. – explicou ela.
- Em suma, o seu feiticeiro tem razão. Nos últimos anos do reino, os magos
construíram um dispositivo enorme que geraria um poder mágico inexaurível
que poderia ser usado à vontade. Implantando uma pequena bola de cristal na
testa, por sua vez conectada a esse dispositivo além do tempo e do espaço, todos
poderiam acessar esse poder mágico infinito. A experiência foi um sucesso e a
civilização floresceu, dando início a uma era de grande inovação mágica. Cidades
inteiras foram erguidas no céu ou em meio ao oceano. Eles tinham total controle
do mundo espiritual, usando até dragões como servos. Mas os magos perderam
a capacidade de usar magia sem o dispositivo. Quando tentaram conjurar um
novo feitiço, o dispositivo não suportou e foi destruído. E, com isso, não havia
mais ninguém capaz de usar magia. Pouco tempo depois, selvagens começaram
a atacar com todas as forças. Os magos, agora sem poder, não tinham como se
defender e foram massacrados. Em menos de cinco anos, tudo que eles haviam
construído foi reduzido a nada...
Parn ouvia a tudo de braços cruzados. Seu olhar estava tão intensamente
travado no rosto pálido e nos olhos azuis da bruxa que parecia até que ele tinha
se esquecido de piscar. Um longo momento se passou. Quando se deu conta de
que Karla provavelmente estava esperando uma resposta, disse:
- E daí? – ele não entendia por que ela tinha contado aquela história.
- Não compreende por que o reino caiu na ruína? – indagou ela, fechando
os olhos e revivendo a sua memória. Imagens dos grandes magos, assassinados
um após o outro, ressurgiram na sua mente como se fosse ontem. Sua memória
nunca se esvaía, porque sua existência era a própria memória – O mundo nunca
deve depender de um único poder. Não importa o que seja, algum dia ele sairá
do controle e causará uma catástrofe. O reino antigo pereceu tentando estabelecer
uma civilização mágica suprema, mas a magia não é o único poder perigoso. Os

106
ideais de Fahn, a ambição de Beld... ambos são igualmente perigosos. Sempre
deve haver um equilíbrio. Se ele for quebrado, a destruição é inevitável. Mas é
impossível manter um equilíbrio perfeito... A balança sempre tombará para um
lado ou outro. Mas e se ela for eternamente empurrada para um lado e para o
outro, de modo que nenhum deles possa vencer em definitivo? – Karla fez uma
pausa, balançando a taça de vinho e acompanhando o líquido com os olhos. Em
seguida, continuou: – Se você observar individualmente os diversos momentos
da história, vai parecer que um lado estava sempre vencendo. Mas, se considerar
o panorama maior, verá que sempre houve um equilíbrio. Eu venho agindo ao
longo de muitas eras para proteger a balança, porque isso é o melhor para Lodoss.
A fé de Fahn na luz da lei, o poder destrutivo de Beld... Se qualquer um deles se
tornar uma força dominante, Lodoss se estabilizará sob um único poder. Mas essa
estabilidade não durará para sempre. No futuro, quando ela inevitavelmente
ruir, a destruição será tão grande que a guerra entre os deuses não será nada em
comparação, e a civilização entrará em colapso outra vez. Isso pode até causar o
fim do mundo. Você precisa entender que o que eu estou dizendo é verdade. –
disse ela – Então eu vou pedir mais uma vez: junte-se a mim para salvarmos o
mundo da destruição.
- Isso é tudo? – perguntou Parn, sem levantar o tom de voz. Karla assentiu,
esperando silenciosamente pela sua resposta – Então eis a minha resposta: não.
Nós não vamos ajudar você. Talvez exista alguma verdade no que você disse,
mas quem sabe? E, de todo modo, não importa o motivo, brincar com o coração
e a vida das pessoas nunca é certo! Quantos morreram nas batalhas que você
causou?! – Parn se levantou e bateu o punho na mesa. Uma taça vazia caiu e rolou
até uma garrafa de vinho.
- Mesmo que ainda mais vidas sejam perdidas quando o dia da destruição
chegar? – questionou Karla, inabalada. O olhar furioso de Parn não era o bastante
para assustá-la.
- Mesmo que isso seja verdade, um único humano não devia ter o direito
de manipular o destino! Isso cabe aos deuses!
Karla simplesmente assentiu e se levantou. Todos ficaram em guarda, mas
ela os ignorou e foi direto para a porta.
- Então não temos mais o que discutir. Se não concordam com o que faço,
tudo bem. Tentem me impedir, se quiserem. Acabarei com vocês num instante.
- Então vamos resolver isso aqui e agora! – gritou Parn, já com as mãos na
espada.
- Eu já disse, ninguém vai lutar aqui! – disse o Grande Mago, áspero. Karla
ergueu a mão direita, preparada para receber o ataque de Parn. Mas, antes que
ela pudesse ativar seus anéis mágicos, Ghim segurou o rapaz.
- Parn, espere! Espere, por favor!
- O que está fazendo, Ghim?! Vai deixar a Karla escapar?!

107
- O Ghim só está dizendo que aqui não! – disse Deedlit, ajudando o anão
a segurá-lo.
- Pedimos desculpas, Grande Mago Wort. – disse Slayn ao ancião, fazendo
uma mesura.
- Vocês deviam cuidar das suas vidas. – disse Karla com um olhar frio e se
virou para ir embora.
- Posso perguntar uma coisa? – perguntou Slayn. Karla parou e olhou para
trás.
- O que é?
- Você realmente viveu por 500 anos? Não existe nenhuma magia capaz de
conceder a juventude eterna. Pelo menos, não que a Academia conheça.
- Por que quer saber? Vai procurar essa magia se descobrir que ela existe?
- Eu não sei. Mas estou surpreso por você ter vivido tanto tempo, mesmo
sendo uma bruxa do reino antigo. Mesmos nos textos antigos, nunca vi qualquer
menção a um feitiço de imortalidade. O simples fato de algo assim existir já seria
uma grande motivação para os feiticeiros.
- Que maneira interessante de pensar.
- Você acha? – disse ele – Talvez não tão interessante quanto você. Com os
seus poderes, deve haver outros métodos de salvar o mundo da destruição.
- Não há. Eu não sou onipotente. Só posso afetar o equilíbrio desta ilha, e
só posso existir assim porque sempre fiquei escondida nas sombras da história.
Se eu tivesse me revelado uma única vez, alguém teria me matado. Meu papel
nesta era moderna acabou. Já está tudo em andamento, então eu recuarei para as
sombras até ser necessária de novo... – Karla se voltou para a porta novamente –
Wort, vou me retirar agora. Bravos aventureiros, que vocês recebam as bênçãos
de Marfa.
E enfim ela abriu a porta e saiu. Ghim, ainda segurando Parn, continuou a
encarar a porta até o som dos passos desaparecer.
- Grande Mago Wort. – disse Parn, voltando o olhar furioso para o ancião
– Eu tenho muitas perguntas pra você. É por isso que estamos aqui.

Depois que Karla saiu, Deedlit se acomodou na cadeira agora vazia. Pegou
uma taça e se serviu um pouco de vinho. Atrás dela, Etoh emitiu um suspiro de
profundo alívio. Sem Karla ali, o clima estava significativamente mais leve, mas
encontrá-la tinha sido um choque tão grande que ninguém pôde se recuperar de
imediato.
Parn estava em conflito. Depois do que aconteceu, ele não podia confiar
no ancião – ele parecia tão ruim quanto Karla. Wort não parecia preocupado com
as suspeitas de Parn. Pegou uma taça de vinho e um pedaço de carne da bandeja
e começou a comer.

108
- Não o culpo por desconfiar de mim. – começou Wort, com a boca cheia
de comida – Tudo que posso dizer é que sou o primeiro e único Wort, e não sou
aliado de Karla.
Olhando para Parn, ele ergueu a taça, como que sugerindo um brinde; em
resposta, o olhar do rapaz se encheu de ainda mais fúria. O ancião continuou sua
fala, ignorando a mudança de humor dele:
- Há alguma verdade no que ela diz. É verdade que uma vez lutei ao seu
lado. Mas Fahn, Beld e Neese também o fizeram. Nós cruzamos juntos o Labirinto
Mais Profundo. Mas, naquela época, Karla não era a bela mulher que é hoje. Era
um guerreiro mascarado atrás de uma armadura pesada... – Wort fez uma pausa,
correndo o olhar pela sala.
- O quê?! Como?! – exclamou Parn – Eu conheço a saga dos Seis Heróis...
O último deles, o guerreiro mago sem nome... Era a Karla?! Ela foi um dos heróis
da Guerra dos Demônios?!
- Não há como negar que os demônios mudaram o equilíbrio do mundo...
– Slayn falou calmamente, mas os olhos arregalados explicitavam seu verdadeiro
estado de espírito.
- Espera, o que isso significa? – questionou Woodchuck, confuso.
- Como o jovem disse, Karla era o guerreiro mago, um dos Seis Heróis. –
Wort riu e levou a taça à boca – Parece que vocês achavam que ela passou esses
últimos 500 anos com a mesma aparência. Estão enganados. Nunca existiu uma
magia capaz de fazer isso, nem mesmo no reino antigo. Ela é poderosa, mas
mesmo os maiores magos da antiguidade só conseguiam prolongar suas vidas
por 200 anos, no máximo. A questão é que Karla descobriu um jeito de driblar
esse limite.
- É controlar o corpo de outra pessoa? – murmurou Ghim, afundando na
sua cadeira.
- Ghim! – Slayn ficou surpreso com o palpite certeiro de Ghim, mas fazia
um estranho sentido, considerando o comportamento do anão recentemente –
Então você está pronto pra nos contar qual é a sua verdadeira missão?
- Sim. – disse o anão com resolução – Está na hora.
- Nunca imaginei que um anão seria o primeiro a perceber! – disse Wort
em meio a outra risada – Você estudou a magia antiga?
- É claro que não. Minha raça não tem nada a ver com magia.
- E mesmo assim você foi o primeiro a chegar à verdade. Meus parabéns.
– continuou Wort – Como esse anão altamente inteligente diz, Karla transferiu
sua mente para um objeto e continuou a existir por todos esses anos controlando
qualquer pessoa que entrar em contato com ele. Vocês viram a tiara na testa dela?
Aquela é a verdadeira forma de Karla. Muito embora seja discutível se ela está
realmente viva ou não, sua mente não mudou nada nos últimos 500 anos. Desde
que ela abandonou o seu corpo original. Eu não a consideraria humana. Ela é um
fantasma.

109
- Então a mulher que sempre vimos é uma vítima de Karla. – disse Parn.
Ele estava começando a acreditar no ancião, pelo menos um pouco. Pegou um
pouco de comida e aceitou uma taça de vinho quando Deedlit ofereceu.
- Exatamente. Quando o corpo de Karla é destruído, a tiara lança um feitiço
que toma o controle da mente de quem o destruiu. A magia é tão poderosa que
ninguém consegue escapar. E por isso Karla nunca poderá ser derrotada. Mesmo
que alguém consiga vencê-la, só se tornará a próxima Karla.
- Não quero matá-la. Prometi que levaria aquela garota de volta pra casa.
– disse Ghim, num tom fúnebre.
- Fala da mulher que Karla está controlando? – indagou Slayn.
- Sim. Eu sei quem ela é. Não consegui acreditar quando vi aquele retrato,
e mesmo depois que a encontramos pessoalmente eu ainda tinha dúvidas. Mas,
quando ela conjurou uma magia sagrada de Marfa, eu soube que era verdade. O
nome dela é Leylia e é filha de Neese, a sumo-sacerdotisa de Marfa, que também
foi uma dos Seis Heróis. Neese é minha amiga. Eu prometi que levaria a sua filha
perdida de volta pra casa se pudesse. – Ghim suspirou – Isso também explica a
charada que ela me deixou: a sua filha está viva, mas não existe. Isso realmente
descreve a Leylia no estado atual dela. Afinal, Karla não está viva, mas com
certeza existe.
- Então essa é a sua história... – suspirou Slayn, tomado de admiração.
- Espera... Então não tem como derrotar a Karla? Mas não podemos deixar
o que aquela bruxa fez ficar por isso mesmo! – gritou Parn, frustrado.
- Você não ouviu nada que foi dito aqui? – bufou Deedlit – Não podemos
lutar contra ela! Mesmo que vençamos, a magia da tiara vai possuir um de nós!
- Mas então como vamos resgatar a garota?! – exclamou Ghim, olhando
para todos com um rosto de súplica.
- Talvez exista um jeito. – disse Wort, olhando para cada um deles, um por
um – É muito perigoso, mas não impossível se tiverem coragem. – ele se levantou,
foi até uma parede de pedra e a tocou. A parede rangeu e se abriu, revelando
uma pequena sala cheia do que parecia uma bagunça inútil. Wort desapareceu
dentro da sala, mas continuou falando – A magia da tiara se ativa quando o corpo
é destruído, então vocês só precisam tirar a tiara dela sem matá-la.
- É mais fácil falar do que fazer. – interviu Etoh, falando na direção da sala
– Com certeza você sabe o quanto isso seria difícil. A bruxa usa magias antigas
poderosas. Capturá-la vai ser muito mais difícil do que matá-la.
- Obviamente. – respondeu Wort. Eles podiam ouvir o barulho de coisas
sendo jogadas para todos os lados – Ah, achei! – exclamou ele, aparentemente
satisfeito; logo emergiu da sala com uma varinha na mão – Como o sacerdote
disse, vocês não têm chance se a enfrentarem diretamente. E, com todo o respeito,
vocês não são heróis como Beld e Fahn. Mesmo o seu feiticeiro aí não é tão bom
na língua antiga quanto eu. – Wort jogou a varinha na mesa casualmente – Então
eu vou lhes dar essa varinha mágica. É uma relíquia do reino antigo.

110
- O que ela faz? – indagou Slayn, pegando a varinha com grande interesse.
Não era feita de nenhum metal ou madeira que ele reconhecia, e havia runas
antigas entalhadas nela – Teura...? É um encantamento?
- Sim. Creio que vocês a acharão muito útil. Ela anula qualquer magia ao
seu redor. Claro que isso significa que vocês também não poderão usar as suas.
- Então nós podemos usar isso pra impedi-la de usar magia e capturá-la
viva! – disse Parn, empolgado.
- E aí vai ser a minha deixa. – declarou Woodchuck – Posso me esgueirar
atrás dela e arrancar aquela coisa da testa. – ele tinha ficado entediado com toda
aquela conversa, mas soube que finalmente era a sua vez de brilhar – Mas o que
vamos fazer com a tiara? – indagou – Destruir? Vender? Parece que é uma joia
valiosa.
- O mais sábio seria destruí-la enquanto a magia da varinha está em efeito.
Se não neutralizarmos essa tiara, quem sabe quando ela fará outra vítima?
- Mas não tem nenhum jeito de resistir ao controle dela? Tipo, se apoderar
dos poderes mágicos dela, mas sem perder a consciência? Talvez exista um jeito
de sobrepujar o feitiço de dominação. Assim nós teríamos um pouco da magia
antiga de volta.
- Está louco, ladrão? – bradou Wort para Woodchuck – Se fosse possível
resistir ao feitiço, então sim, essa pessoa obteria todo o conhecimento e a memória
de Karla. E o valor disso é inestimável. Mas não é possível. Pense bem. Muitas
das pessoas que Karla dominou ao longo dos anos deviam ser poderosas. Elas a
derrotaram, afinal. Mas todas sucumbiram ao poder da tiara. Não alimente essas
ideias tolas.
- Se você diz... – disse Woodchuck, dando de ombros.
- Isso é tudo que tenho a lhes dizer. Voltem até Fahn e contem tudo a ele.
E, principalmente, uma coisa deve ficar clara: eu não tomarei lados, e Karla não
ajudará Beld também. Mas vocês podem lutar como acharem melhor.
- Pode nos dizer mais uma coisa? – perguntou Parn, se inclinando até ele.
- O quê?
- Nos diga onde encontrar Karla.

111
Capítulo 5
A Batalha Final

Quando entardeceu, o sol escaldante foi substituído por um céu cheio de


nuvens escuras. Relâmpagos reluziram, e grandes gotas de chuva começaram a
cair. O soldado de guarda nos portões do castelo de Roid nem teve tempo de se
equipar com seu traje de chuva – ao invés disso, se refugiou rapidamente no
telheiro para continuar seu trabalho de um lugar protegido. Ele ficou tenso ao
ver um amontoado de sombras se aproximar em meio à chuva.
- Quem vai lá? – questionou ele para as seis figuras.
- Meu nome é Parn. – respondeu a sombra mais à frente, tirando o capuz
para mostrar o rosto, que imediatamente ficou ensopado – Viajamos à mansão
do Grande Mago sob ordens do Rei Fahn. Por favor, informe Vossa Majestade do
nosso retorno.
- Sir Parn! – exclamou o guarda, aliviado. Já havia se passado mais de um
mês desde a partida deles de Roid – Que alegria vê-los bem! Vou mandar abrirem
o portão. – o guarda saiu do telheiro, ignorando a chuva, e fez um gesto para que
o que estava do outro lado do fosso baixasse a ponte levadiça.
Fahn estava num conselho de guerra com Elm e Kashue quando recebeu
a notícia e solicitou que os aventureiros fossem levados até lá. Mas, antes disso,
eles foram encaminhados a uma sala onde havia roupas secas e toalhas quentes
para que pudessem se secar. Quando terminou de se trocar, Parn notou que um
criado se aproximava carregando alguma coisa. Seus olhos se arregalaram.
- O que é isso? – indagou, olhando para a armadura que o criado trazia.
Não era o peitoral que o seu pai usava, mas sim um branco com um símbolo
prateado reluzente: uma cruz.
- São ordens de Vossa Majestade. – respondeu o servo com uma mesura.
- Fico feliz por você. – disse Deedlit com um sorriso doce. Ela agora usava
um vestido verde amarrado com uma fita de ceda na cintura. Parn sorriu para
ela ao afivelar a nova armadura. Quando embainhou a espada do seu pai, o
encaixe foi tão perfeito que parecia que a armadura tinha feito sob medida para
ser usada com ela.
- Vamos. – disse ele, acenando para os amigos.
Slayn vestia uma toga branca idêntica à de Elm. Etoh, uma bata clerical de
Pharis, e também havia sido presenteado com um bastão cerimonial. Ghim
trocou as roupas de baixo, mas se manteve com sua armadura de mithril, bem
como com o machado de batalha. Woodchuck se trocou, mas também colocou
sua própria armadura de volta; secou o traje de couro e as botas na lareira.

112
O grupo seguiu até a sala onde o Rei Fahn aguardava, que ficava em uma
das torres do castelo. Não havia janelas, e eles não conseguiam nem ouvir a forte
chuva que caía lá fora. Mesmo assim, uma brisa agradável fazia com que o lugar
não parecesse abafado.
Deedlit olhou para o teto, aparentemente dividida.
- Obrigada pelo seu trabalho duro. – murmurou.
Parn olhou para ela, intrigado.
- É a Sílfide? – perguntou Slayn.
Deedlit fez que sim e ergueu a mão direita. A brisa parou por um instante,
mas depois retornou. A elemental do vento estava presa naquela sala graças a
algum tipo de feitiço, provavelmente trabalhando para impedir que qualquer
som entrasse ou saísse. Não era o mesmo tipo de magia que Deedlit usava. Era
magia antiga, ligada a um dispositivo mágico criado na época do reino antigo.
Usuários de elementais como Deedlit os controlavam para conjurar feitiços, ou
às vezes confinavam um em um objeto para que os seus poderes pudessem ser
usados depois. Mas eles nunca escravizariam ou explorariam um elemental por
centenas de anos. Deedlit não conseguia evitar de ficar um pouco ressentida com
aquilo, mas tentou não demonstrar.
Havia uma mesa redonda no centro da sala, e Fahn, Kashue e Elm estavam
sentados ao redor dela. Sobre a mesa havia uma garrafa, várias taças de vinho e
um mapa da região ao redor de Roid com muitas linhas desenhadas.
- Vocês se saíram muito bem. – declarou o Rei Fahn. O grupo se curvou ao
receber o elogio. Kashue se levantou do seu assento e foi até Parn, analisando-o
de cima a baixo.
- Essa armadura de Cavaleiro Sagrado combina com você. – disse sorrindo,
e apertou a mão de Parn com firmeza – Não tenho mais nada a ensinar. Eu sabia
que vocês conseguiriam, mas foi uma jornada difícil, não foi?
- Foi. – concordou Parn – As ruínas do reino de pedra estavam cheias de
monstros. Acho que um dia nós deveríamos trabalhar com Moss para dar cabo
deles de uma vez por todas.
- Que ousado. – disse Kashue, rindo alto dessa vez.
- Muito bem... – Fahn fez um gesto para que Parn se aproximasse – Parn
será empossado na Ordem dos Cavaleiros em breve, mas, por ora, temos outros
assuntos a discutir. Eu gostaria que Parn, Lorde Slayn e Lorde Etoh ficassem aqui
e se juntassem ao nosso conselho de guerra. O resto de vocês pode se acomodar
como quiser e clamar suas recompensas. Agradeço de todo o coração por terem
ajudado Parn a cumprir sua missão.
- Não fui com ele por causa de recompensas! – disse Deedlit, irritada. Seu
estômago estava se revirando. As palavras de Fahn faziam parecer que Parn não
era mais um deles.
- Eu também não agi por interesse. Não quero nenhuma recompensa. Dê
a minha parte para ele. – disse Parn, apontando para Woodchuck.

113
- Ei, valeu. – declarou o ladrão sem nenhuma cerimônia.
- Vocês são livres para dividirem seus espólios como quiserem. – disse o
rei, voltando suas atenções para o mapa. Os guardas escoltaram Deedlit, Ghim e
Woodchuck para fora, e as portas se fecharam atrás deles.
- Foi preparada e servida uma refeição para vocês no quarto de hóspedes.
– informou uma criada educadamente.
- Imaginei. – disse Woodchuck. Encarou mais uma vez as portas fechadas,
mas seguiu a criada sem questionar.
- Ai, que saco! – reclamou Deedlit enquanto caminhavam.
- Você perdeu todo o senso de educação? – criticou Ghim.
- Fui influenciada depois de passar tanto tempo com você. – disparou ela
de volta.
- Não fique reclamando. – interviu Woodchuck – Pelo menos vamos poder
encher a pança.
- É verdade. – respondeu Ghim com um suspiro – Mas eu acho que aquele
conselho vai demorar...

- E pensar que Karla era o guerreiro mago o tempo todo... – murmurou


Fahn, que em seguida ficou em silêncio, perdendo-se em pensamentos. Era um
choque descobrir que estava sendo usado há tanto tempo nos planos de Karla,
mas, quanto mais ele pensava, mais fazia sentido. Durante aquela guerra com os
deuses demônios, Karla, um guerreiro mascarado na época, tentou usar todos ao
seu redor como peões, incluindo todos os seus companheiros e até os próprios
deuses demônios. Agora, ela roubava o futuro de uma jovem moça e impedia a
unificação de Lodoss. Na cabeça de Karla, Fahn e Beld haviam saído daquela
guerra preparados para unificar a ilha, então ela usou de intrigas para jogar um
contra o outro, levando-os à destruição mútua. Mas, mesmo sabendo disso, ele
não tinha mais como evitar a batalha que estava por vir. O confronto com Beld
era inevitável.
- O Grande Mago Wort disse que Karla não vai mais ajudar Marmo, mas
não tenho certeza se devemos confiar nele... – disse Parn, hesitante.
- Se a bruxa é tão obcecada assim com o equilíbrio, então ela não tem mais
motivo para lutar por Marmo. – respondeu Kashue, com um sorriso amargo.
- Ouvimos alguns boatos durante a jornada. Está tão ruim assim?
- Sinceramente, sim. – Kashue apontou para o mapa e começou a explicar
a situação.
Naquele mês em que eles estiveram fora, o rumo da batalha tinha mudado
várias vezes. O primeiro grande momento foi quando Moss e Alania entraram na
guerra como aliados de Valis. Em particular, Jester, o Olho de Dragão, regente de
Highland, correra à ajuda deles antes mesmo do resto do Reino de Moss. Ele tinha

114
decidido se juntar a eles com base no seu próprio senso de justiça, e, sendo o líder
dos montadores de dragão, representava um poder militar considerável. Os treze
montadores de dragão subiram nas suas montarias e dizimaram o assentamento
de Marmo ao sul de Kanon; sem perder tempo, seguiram direto para Marmo em
si e atearam fogo à cidade portuária localizada na ponta norte da ilha.
Quando a notícia se espalhou, o povo de Lodoss ficou confiante e começou
a desejar que todos os países entrassem na batalha. O resto de Moss e Alania se
manifestaram enfim e cercaram Kanon pelo norte e pelo mar. Muitos pensaram
que o destino de Marmo estava selado, e em dado momento parecia que as forças
aliadas chegariam a Shining Hill, o castelo real de Kanon. Mas uma nova sucessão
de incidentes abalou a aliança.
O primeiro foi o assassinato de Kadomos VII, Rei de Alania, pelo seu irmão
mais novo, o Duque Laster. A família real inteira foi morta, incluindo o príncipe
recém-nascido, e Alania mergulhou numa feroz guerra civil entre apoiadores do
Duque e seus opositores. Ao mesmo tempo, uma das facções de Moss, Venon
Escama de Dragão, se rebelou de repente contra o castelo do governante de Moss,
Harkane Chama de Dragão. Em Flaim, a Tribo do Fogo emergiu dos seus velhos
esconderijos nas montanhas para atacar a capital, Blade, enquanto o rei estava
ausente. Como se não bastasse, um exército de elfos negros, liderados pelo Chefe
Luzeev, aportou de Marmo em terra firme. Como os exércitos de Alania e Moss
tinham voltado para casa para resolver os problemas internos dos respectivos
países, o de Valis teve de enfrentar sozinho a magia negra dos elfos. Se Kashue
não tivesse ajudado, o exército de Valis teria sido aniquilado.
Apesar da rebelião dos selvagens do deserto, Kashue não mandou suas
tropas de volta. Ele sabia que poderia acontecer um ataque enquanto estivesse
fora, então deixou o país nas mãos do seu braço direito, Shadam. Todos em Flaim
eram guerreiros corajosos, então ele tinha confiança de que prevaleceriam contra
a ameaça mesmo sem a sua ajuda. Com isso, o exército de Valis conseguiu recuar
sofrendo casualidades mínimas. Mas o exército de Marmo o seguiu e já havia
cruzado a fronteira de Valis, saqueando vilas e queimando campos pelo caminho.
Os exércitos aliados de Valis e Flaim montaram uma última linha de defesa nas
planícies ao leste de Roid, e o exército de Marmo, comandado pelo Imperador
Beld em pessoa, se aproximava. A batalha final era iminente.
- Isso é horrível. – suspirou Parn quando a explicação de Kashue terminou.
Tudo havia corrido exatamente de acordo com o plano de Karla. Parn impedira
o assassinato do Rei de Alania por acaso, mas nunca imaginou que o próprio
irmão dele faria um motim. Karla manipulou eventos em Flaim e Moss também,
mergulhando metade de Lodoss em guerras civis. Valis e o Rei Fahn, Marmo e o
Imperador Beld... Agora eles teriam de se enfrentar sozinhos, como ela desejava.
A bruxa já devia saber o tempo todo que o resultado seria esse.
- Mesmo que Karla apareça para ajudar Marmo, nada pode mudar o que
temos que fazer agora. Mas será um pouco menos pior se as palavras de Wort

115
forem verdadeiras. Parn... Sua primeira batalha como Cavaleiro Sagrado será
crucial para o destino de Lodoss.
- Estou preparado. – respondeu ele com orgulho.
- Por ora, não se prepare para o pior. – disse Kashue, tentando apaziguar
a ansiedade de Parn – Concentre-se apenas em sobreviver à batalha à sua frente,
e isso naturalmente o fará crescer como guerreiro. Só os tolos morrem em vão.
- Exatamente. Não faz sentido morrer em busca de heroísmo. – concordou
Fahn.
- Ah, sim. Claro. – Parn abaixou a cabeça, encabulado.
- Rei Fahn, pode deixá-lo comigo? – disse Kashue – Ele nunca lutou como
Cavaleiro Sagrado antes. Seu estilo é mais próximo do do povo do deserto. Eu
gostaria que ele assumisse o comando dos mercenários recém-recrutados do meu
exército.
- É uma boa ideia. Você vai aprender muito vendo o Lorde Kashue lutar.
Ouvi dizer que já trabalhou como mercenário do deserto também. Você se sentirá
mais à vontade lá do que num regimento militar com o qual não está acostumado.
Talvez não seja o que você esperava, mas terá que aceitar por enquanto.
- Nem passou pela minha cabeça me opor. – respondeu Parn rapidamente.
A Ordem de Cavaleiros de Valis era famosa pela união e trabalho em equipe. Ele
sabia que só atrapalharia caso se juntasse a ela sem treinamento.
- Agora, Lordes Etoh e Slayn, temos algo a discutir com vocês dois.
- O que seria? – indagou Etoh, se ajeitando na cadeira.
- Lorde Genart o indicou para ser clérigo da corte, mas você aceitou?
- Sim, humildemente. – Etoh levou a mão ao peito e se curvou.
- Ótimo. Então você cuidará de todas as cerimônias religiosas da corte de
agora em diante. E você, Lorde Slayn, que planos tem? O Rei Kashue mencionou
que gostaria de tê-lo como mago da corte...
Slayn, surpreso, se virou na direção de Kashue e fez uma mesura.
- Estou honrado, mas há algo que preciso fazer. Perdoe-me, mas não posso
servir a ninguém enquanto não resolver isso.
- É a situação do Ghim? – perguntou Etoh discretamente.
- Sim... – confirmou Slayn.
- Que pena, eu tinha gostado de você. Mas, se tem uma missão, eu entendo.
Mas tenha em mente que os portões do castelo de Flaim sempre estarão abertos.
- Obrigado. – respondeu ele fazendo outra mesura.
- Eu também estou preocupado com o Ghim. – disse Etoh, meio em tom
de desculpas – Mas tenho que cumprir o meu dever de servo de Pharis.
- Não se preocupe conosco. Tomaremos cuidado.
- O oponente é aquela bruxa. – o estômago de Parn se revirava só de pensar
nela.
- O Woodchuck vai ajudar, então daremos um jeito. – respondeu Slayn,
inabalado.

116
- Então eu quero ir também. – disse Parn com determinação – Estou certo
de que o Rei Fahn me permitirá sair para matar Karla.
- Matar Karla? É isso que pretendem fazer? – Fahn franziu a testa – Isso é
muito imprudente. Vocês sabem do que ela é capaz.
- O Grande Mago Wort nos deu uma arma capaz de neutralizá-la. – Slayn
rapidamente informou os reis a respeito da varinha mágica.
- Entendo... Então talvez vocês consigam derrotá-la. Não podemos deixar
esse fantasma do reino antigo continuar tratando Lodoss como um brinquedo.
Quando a hora chegar, usaremos todo o poder de Valis para derrotá-la, e, se ela
aparecer na batalha que está por vir, não hesitem em usar essa varinha. – Mas,
embora dissesse isso, Fahn não achava que ela apareceria na batalha. Ela saberia
os riscos que se corre nesse tipo de conflito.
- Se a bruxa aparecer, eu mesmo a matarei. – disse Kashue casualmente.
Em seguida adicionou, rindo: – Assim a minha corte ganhará um mago brilhante.
- Beld é a nossa preocupação mais imediata. – disse Fahn – Marmo dividiu
seu exército em três e está avançando para cá pelas planícies orientais. Teremos
que dividir nossas forças em três também para enfrentá-lo. Eu assumirei o centro
com Leonis, Elm ficará com o flanco direito, e o Rei Kashue com o esquerdo. Cada
um deve dar cabo de uma unidade inimiga.
- Vamos simplesmente atacá-los com tudo que temos?
- O inimigo não tem mais recursos para preparar uma emboscada. O cerne
das suas forças agora é o exército de monstros liderado pelos elfos negros. Os
magos serão alocados na sua unidade, Rei Kashue, para que possam enfrentá-los.
Eles são mais perigosos que os Cavaleiros das Trevas da unidade central, e muito
mais que os guerreiros selvagens da Floresta das Trevas da direita.
- Também irei com Parn. – ofereceu-se Slayn – Também sou um usuário
de magia, e até fui condecorado com um hábito de Sábio. Não gosto de lutar, mas
não posso dar as costas a essa luta. Então usarei os meus feitiços para ajudar Parn
e o Rei Kashue.
- Os sacerdotes guerreiros de Pharis também vão lutar? – perguntou Etoh.
- É claro. – afirmou Fahn – O Lorde Genart declarou que esta é uma batalha
entre o Deus Supremo Pharis e Phalaris, o Deus das Trevas. Os Cavaleiros
Sagrados do Grande Templo de Pharis participarão.
- Então eu posso ir com eles? Treinei técnicas de combate quando estava
no Templo de Alania.
- Sim, você também pode se alocar na unidade da esquerda. – após dizer
isso, Fahn se virou na direção de Kashue e fez um gesto para encerrar o conselho
de guerra.
- Uma última coisa, Vossa Majestade. Quando começaremos a operação?
– indagou Kashue.

117
- Depois de amanhã, ao meio-dia. Envie um mensageiro às linhas de frente.
– com as palavras de Fahn, Elm abriu a porta e saiu rapidamente para cumprir
suas ordens. Parn o seguiu, tenso.
Tinha começado.

Era chegada a hora da batalha final.


Parn nunca vivenciara um confronto de exércitos de tamanha magnitude
antes. Ele cavalgava ao lado de Kashue e os cavaleiros de Flaim, observando as
nuvens ameaçadoras que se formavam no céu do oriente.
- O tempo estava tão bom antes... – o sol havia desaparecido na cortina de
nuvens. Mas não havia umidade no ar, então não parecia que ia chover. Era um
comportamento muito estranho para o clima.
- Eles devem ter invocado aquelas nuvens com magia. – comentou Slayn
de trás deles. Ele caminhava com cuidado para não ser pisoteado pelos cavalos.
A batalha claramente o preocupava, então Parn estava evitando incomodá-lo.
Etoh caminhava atrás de Slayn, com os sacerdotes guerreiros de Pharis
marchando em fila atrás dele, como um grupo de peregrinos. Deedlit cavalgava
um pouco atrás de Parn; ela decidira de última hora que ia participar da luta.
Woodchuck, porém, tinha ficado para trás no castelo – um campo de batalha não
era lugar para um ladrão como ele. Quanto a Ghim, Leylia era a única coisa que
importava para ele.
- Uma batalha de grande escala como esta não é como os conflitos com os
quais vocês estão acostumados, que tendem a culminar em disputas um contra
um. – disse Kashue, oferecendo seus conselhos como sempre – Você deve estar
sempre vigilante e manter o controle do ritmo da batalha. Precisa saber se os seus
aliados estão em vantagem ou perdendo terreno. Mesmo o espadachim mais
capaz morrerá no campo de batalha se não estiver ciente do que acontece ao seu
redor. – Kashue franziu – Nossos oponentes usam magia negra e elemental. Não
temos ideia do que eles podem fazer, então esteja preparado para golpes baixos.
Comunique-se com seus aliados usando códigos e considere qualquer um que
não puder responder como inimigo. Ainda que alguns aliados sejam sacrificados
com isso, o dano será menor a longo prazo. Não é uma estratégia bonita, mas foi
assim que eu sobrevivi.
Parn entendia o significado por trás das palavras. Não desperdice a sua
vida. Só arrisque se valer a pena.
Quando os sinos de Roid soaram o meio-dia, Fahn fez um movimento com
a espada para declarar o início do ataque. Cornetas e tambores se fizeram ouvir,
transmitindo o sinal para o exército inteiro. Kashue também ouviu. Com um
brado, ordenou que os cavaleiros e soldados avançassem pela planície para
atacar o acampamento inimigo. A batalha tinha começado.

118
Urros furiosos dos soldados de ambos os lados ecoaram, seguidos pelo
ranger de espadas. Logo já se podia ouvir gritos de morte, à medida em que o
campo de batalha se transformava em um mar de carnificina.
- Deed, não fique pra trás! – exclamou Parn para a elfa. Sacou sua espada
e avançou com o cavalo.
- Sigam-me! – ordenou Kashue – Não deem tempo para que eles conjurem
magias! – mas, antes que pudessem fazer qualquer avanço significativo, uma
unidade de cavaleiros negros apareceu no alto de uma colina e avançou para a
lateral do exército de Flaim, quase exatamente na posição de Parn.
- Nós cuidaremos deles! – disse Parn, já virando o seu cavalo. Se aqueles
cavaleiros atrapalhassem a formação deles, a desvantagem se arrastaria por toda
a batalha.
- Deixa comigo! – clamou Deedlit, liberando Ondina do cantil na cintura.
A elemental da água flutuou por um tempo e se agarrou no rosto do cavaleiro
que vinha à frente como uma tela. Sem conseguir respirar, ele caiu do cavalo,
tentando removê-la.
Um momento depois, houve uma imensa explosão no meio da formação
dos cavaleiros das trevas – uma magia de fogo de Slayn. Vários cavaleiros foram
feitos em pedaços, e muitos mais foram derrubados da montaria. Mas os restantes
continuavam avançando bravamente.
Então, bem quando o primeiro cavaleiro ia cruzar espadas com Parn, todos
deram meia-volta e bateram em retirada.
- Eles eram só uma distração. – alertou Slayn – Os elfos negros estão por
aqui, escondidos.
Parn concordou e se colocou à frente da unidade, tomando a iniciativa:
- Protejam o feiticeiro! Ele nos dirá onde os elfos estão!
Os sacerdotes guerreiros de Etoh fizeram uma barreira ao redor de Slayn
com seus escudos.
- Obrigado. – murmurou o feiticeiro. De trás da muralha de escudos, ele
pôde identificar de onde os elfos negros estavam vindo e conjurar feitiços para
neutralizar sua invisibilidade.
- Ali! Peguem eles! – exclamou Parn, apontando para os elfos negros agora
visíveis com sua espada. Ele galopou na direção deles e aproveitou o impulso
para atropelar um. Os mercenários do seu esquadrão não perderam tempo em
fazer o mesmo, abatendo os oponentes sem dificuldade. O poderoso exército de
mercenários de Flaim fora liderado pelo próprio Kashue no passado, e não perdia
em nada para a Ordem de Cavaleiros. Atualmente ele era comandado pelo braço
direito de Kashue, Shadam.
- Não se afastem da infantaria! – bradou Kashue – Protejam os usuários de
magia! – ao ouvir a ordem, Parn virou seu cavalo de volta para Slayn e Etoh. Eles
já estavam no acampamento inimigo, mas, por mais que avançassem, não havia

119
sinal do adversário. Ele só via monstros equipados com arcos se locomovendo
em pequenos grupos em diversos pontos da colina.
Os monstros eram fracos, mas o alcance das flechas os tornava perigosos.
Parn pegou uma flecha da sua própria aljava e, mirando cuidadosamente, a fez
voar numa parábola em direção ao inimigo. Sua intenção era só assustar, mas foi
um golpe de sorte: ela acertou um dos monstros bem no meio do peito. Vários
dos arqueiros inimigos devolveram fogo. Parn ergueu o escudo para proteger o
rosto.
- Sílfide, espírito do vento... – Deedlit convocou a elemental do vento, que
criou uma forte rajada com o seu comando. As flechas mudaram de rumo e se
enterraram inofensivas no chão. Deedlit assumiu uma posição mais à frente da
unidade, expandindo a influência de Sílfide para proteger melhor os soldados.
Parn correu até ela.
- Não se exponha tanto! – exclamou ele.
- A Sílfide cuidará dos arqueiros. – respondeu ela – Você não devia ir atrás
dos seus próprios inimigos? – e fez um gesto com o florete. Parn o seguiu com os
olhos, só para ver Kashue, o Rei Mercenário, à frente dos Cavaleiros de Flaim. Ele
abria caminho majestosamente por entre as fileiras inimigas.
- Uau... – sussurrou Parn, embasbacado. As habilidades de Kashue com a
espada eram ainda mais impressionante do que os boatos sugeriam. Cada vez
que ela se movia, outro inimigo caía. Os cavaleiros às suas costas eram veteranos
da longa guerra com os selvagens do deserto e conseguiam acompanhar o ritmo
do rei.
- Não fiquem pra trás! – bradou Parn para os seus soldados, já avançando
também – Sigam o Rei Kashue! O inimigo está tentando escapar!
- É bom ver que você está vivo! – disse Kashue a Parn, freando seu cavalo.
Alguns dos cavaleiros do deserto estavam feridos, mas nenhum tinha morrido.
No esquadrão de Parn, dois haviam sido mortos pelos elfos negros, mas todos os
demais continuavam ilesos.
- Havia menos elfos negros do que eu esperava. – comentou Kashue.
- Os outros devem estar com problemas.
- Então temos que limpar esta área para ir atrás deles. – um dos cavaleiros
adicionou.
- De fato. – respondeu Kashue – Não temos nada a temer de alguns poucos
elfos negros. Vamos acabar com eles sem perder nem um segundo! Sigam-me!
Parn cavalgava ao lado de Kashue, à frente. Choveram flechas inimigas,
mas ele não sentiu medo. Estar perto de um herói de verdade como Kashue o
fazia se sentir seguro e poderoso. Ele sabia que seria capaz de quebrar os próprios
limites só por sentir a aura de um guerreiro tão magnífico. Isso sem contar que
os elementais de Deedlit estavam fazendo o seu trabalho, defletindo as flechas
para trajetórias estranhas que não passavam nem perto de acertá-los.

120
De repente, várias bolas de fogo apareceram à frente, e logo tomaram a
forma de serpentes.
- É a Salamandra, o espírito do fogo! Cuidado, ela cospe fogo! – advertiu
Deedlit. Parn preparou o escudo e começou a galopar rumo a uma das serpentes
de fogo. A espada na sua mão direita brilhou em azul.
- Slayn? – ele sentiu um alívio ao ver o brilho na espada. Seu amigo bruxo
a havia fortalecido com um feitiço. A lâmina brilhante cortou sem dificuldade o
dorso da salamandra quando ele passou galopando. O monstro de fogo sumiu
sem deixar sequer fumaça para trás.
- Atacar! – Parn ergueu a espada e avançou a toda velocidade. As chamas
das salamandras tinham derrubado vários soldados dos cavalos, mas os demais
conseguiram chegar às fileiras inimigas, desmantelando-as.
- Ataquem enquanto eles estão abalados! Tenham fé na proteção divina de
Pharis! – exclamava Etoh. Seus sacerdotes guerreiros vinham logo atrás dos
cavaleiros, ajudando os aliados não só com magia sagrada, mas também com os
golpes certeiros dos seus bastões.
- Estou exausto. – Slayn arfava ao lado dele – Correr assim logo depois de
conjurar um feitiço? Não vou durar.
Etoh se virou para e empalideceu quando viu o estado de Slayn. Chamou
um dos sacerdotes curandeiros e o instruiu a cuidar de Slayn. O sacerdote tocou
o corpo do feiticeiro e começou a rezar para Pharis. Num instante, sua respiração
e seus batimentos voltaram ao normal.
- A magia de Pharis é mesmo útil. – comentou Slayn, impressionado – Eu
agradeço. Já me sinto muito melhor. E eles ainda precisam de mim. – sem hesitar,
Slayn ergueu seu cetro e recitou uma magia antiga. Balançou o cetro para o lado
uma vez e vários dos inimigos foram lançados ao chão.
- É aquela magia do sono que você tinha comentado? – perguntou Etoh.
- Sim. Cheguei à conclusão de que magias de apoio como essa às vezes são
até mais úteis que as que causam dano. Numa batalha dessa proporção, mesmo
um momento de desatenção pode ser fatal. – respondeu Slayn enquanto corria os
olhos pelo campo de batalha ao seu redor.
Etoh concordou. Ambos os exércitos já tinham perdido a formação, o que
significava que agora era cada um por si e a prioridade era apenas sobreviver.
Não muito longe deles, era possível ver Parn e Deedlit brandindo suas espadas
lado a lado. O sacerdote não pôde deixar de sorrir, pensando no quão longe o seu
amigo impulsivo havia chegado.
- A área está limpa! – a voz de Kashue retumbou acima de todos os outros
barulhos – Sigam para o sul para auxiliar a força principal do Rei Fahn! Reúnam
as tropas que saíram da formação! Os que estão a pé devem ir mais devagar. Não
conseguirão lutar se estiverem exaustos de tanto correr. Cavalaria à frente, depois
os sacerdotes guerreiros e os magos. A infantaria armada ocupará a retaguarda.

121
Só bebam água no caminho. Vocês lutarão melhor se estiverem com um pouco
de fome. – e com isso, o exército começou sua marcha pelo campo pisoteado.
O flanco esquerdo do exército inimigo, já destruído pelo grupo de Kashue,
provavelmente era uma isca. Quase todos os elfos negros estavam no esquerdo,
onde rapidamente liquidaram a unidade de Elm. O próprio Elm caíra vítima da
espada de um elfo negro. Esse inimigo triunfante então avançou para se juntar à
batalha no centro, e isso deu uma grande vantagem ao seu lado – até que Kashue
chegou. Com os dois lados novamente equilibrados, o campo mergulhou em total
caos...

Não era uma batalha sagrada. Soldados dos dois lados caíam mortos, um
após o outro. Era apenas matança, pura e sem fim. Dois kobolds correram para
cima de Parn, meio enlouquecidos de medo. Foram despachados sem problemas.
Apesar de tudo em que Parn acreditava, ao ver aqueles corpos no chão, palavras
escaparam da sua boca:
- Isso é horrível. – Parn e Deedlit desmontaram de seus cavalos. Os dois
estavam suados e cobertos de lama e sangue dos inimigos. Etoh e Slayn ainda
continuavam com eles, mas a maioria dos sacerdotes guerreiros e mercenários se
espalhara pelo campo. Até Parn já tinha entendido que não haveria vencedor
naquela batalha. Só a morte sorriria no final. Involuntariamente, ele se perguntou
quando seria a vez de ele ou Deedlit cair, manchando o chão de vermelho com o
seu sangue, exatamente como aqueles pobres kobolds. O único sentimento que
ainda se fazia presente ali era desesperança. Mesmo assim, toda vez que Parn via
outro inimigo, sua espada se movia praticamente sozinha, em ânsia de sangue
fresco.
Nessa hora, ele viu o Rei Fahn de longe. Ele tinha desmontado e, junto com
alguns Guardas Reais, enfrentava uma multidão de goblins. Mais atrás, Parn
pôde ver um guerreiro que trajava uma armadura vermelha com a insígnia de
Marmo. Aquele claramente não era um mero mortal.
- Rei Kashue, lá está o Rei Fahn. – avisou Parn.
Kashue tinha abandonado seu cavalo ferido e lutava a pé, empunhando a
espada longa com as duas mãos. Restavam apenas alguns cavaleiros de Flaim ao
lado dele – alguns certamente haviam morrido, outros se separaram do líder na
confusão. O Rei Mercenário seguiu o olhar de Parn. Sua expressão rígida ficou
menos severa por um momento, quando viu Fahn, mas em seguida seus olhos se
arregalaram.
- Aquela armadura vermelha... Deve ser o Beld. – ao dizer essas palavras,
Kashue correu até Fahn. Parn tentou vencer a exaustão e o seguiu usando todas
as suas forças.

122
- Rei Fahn! - gritou, cortando ao meio os goblins que surgiam no caminho
e chutando-os para o lado para alcançar o senhor a quem tinha jurado lealdade
no dia anterior.
- Parn! Que bom que você está bem. E o Rei Kashue também.
- Sobrevivi até agora, de algum modo. – respondeu Kashue, abatendo um
dos hediondos monstros – Que bom que o senhor está bem, Majestade. – Kashue
matou o último goblin e se aproximou de Fahn – O Imperador Beld está ali.
- Eu percebi. – respondeu Fahn, mordendo os lábios ao ver que a sombra
vermelha se aproximava lentamente. Havia um ligeiro sorriso na boca de Beld.
E, por um momento, pareceu até que a lâmina negra na sua mão exibia uma certa
satisfação.
- Aquele é... o Imperador Beld? – Parn achou que seria esmagado pela aura
opressora do Imperador.
Beld estava chegando perto. Tão perto que eles poderiam correr até ele
para começar uma luta, se quisessem. Parn cogitou a ideia por um momento, mas
Deedlit o segurou, fazendo que não com a cabeça.
- Não morra à toa. Não temos chance contra ele.
Slayn concordou. Mandou todos ao seu redor se afastarem e começou a
preparar alguns feitiços defensivos. Parn concordou, não porque achava que não
podia vencer, mas porque aquela claramente era uma batalha de reis.
- Finalmente nos encontramos, Fahn. Não o vejo desde a queda do deus
demônio, não é? – a voz de Beld era mais calma e refinada do que Parn esperava.
Fahn levantou a mão para impedir Kashue de intervir. Pegou sua espada e deu
um passo à frente.
- De fato, não. – respondeu ele. A espada sagrada na sua mão brilhava com
uma aura branca e pura, o escudo com uma cruz prateada estava erguido alto. O
rei começou a avançar lentamente na direção de Beld.
- Desde que lutamos lado a lado, tenho a curiosidade de saber quem sairia
vencedor num duelo. Tenho sorte de ser seu inimigo agora. Podemos lutar com
todas as nossas forças. – Beld também começou a avançar, balançando a espada
para trás e para frente num movimento que parecia avaliar seu alcance.
- Eu nunca senti o mesmo. – respondeu Fahn – Ter que enfrentá-lo assim
é uma jogada muito estranha do destino, e eu gostaria que fosse diferente. Mas
aceito o desafio assim mesmo. – ele apontou a espada para o céu e cumprimentou
Beld – Ninguém deve interferir! – exclamou Fahn. Então, num instante, ele saltou,
manejando a espada lateralmente.
Beld previu o ataque e manejou sua própria espada na altura do ombro
com a velocidade de um relâmpago. A força por trás do golpe parecia capaz de
rachar a terra, mas Fahn simplesmente o bloqueou com seu escudo, afastou a
lâmina com um empurrão e investiu contra o dorso de Beld mais uma vez. Com
um som metálico assustador, a espada se chocou contra a armadura de Beld, e
faíscas voaram.

123
124
Beld deixou escapar um grunhido. A espada de Fahn tinha cortado a sua
armadura, mas era impossível saber se a lâmina chegara ao corpo.
- Nada mau, meu velho! – mais uma vez, Beld atacou com toda a sua força.
A imensa espada cortou o ar como um tufão negro. Mas Fahn se esquivou com
maestria, num movimento quase imperceptível.
À medida que o duelo prosseguia, um burburinho irrompeu em ambos os
exércitos. Os dois cruzavam espadas repetidamente, o som do aço ressoava pelo
ar. Assistir àquilo deixava Parn sem reação. As habilidades deles pareciam muito
próximas, e nenhum parecia odiar o outro. Um desavisado quase poderia achar
que eram só dois amigos praticando.
- O Rei Fahn e o Imperador Beld sempre foram o completo oposto um do
outro, tanto em atitude quanto em filosofia. – cochichou Kashue para Parn – Ouvi
dizer que, no passado, eles foram companheiros de guerra. O destino pode tê-los
feito inimigos, mas talvez esses sentimentos não tenham mudado, mesmo agora.
- Eu concordo. – disse Etoh discretamente – O Imperador Beld não parece
realmente mau a meu ver. Acredito que seu coração é puro. Não consigo deixar
de pensar que Karla está por trás de tudo isso.
- Wort disse que ambos desejavam proporcionar uma paz duradoura para
Lodoss, ainda que seus métodos sejam diferentes. – murmurou Slayn – Esse ideal
de paz é uma ameaça para Karla. Se ela é a causa dessa batalha, é uma tragédia
ainda maior.
Até os goblins mortos, estirados aos pés deles, eram dignos de pena. Se
tivessem ficado nas suas cavernas, não teriam tido um fim tão violento. O campo
de batalha inteiro estava paralisado – Fahn e Beld eram as únicas coisas que se
moviam até onde o olhar alcançava. Muito embora poucos tivessem sobrevivido
para assistir.
Fahn era ligeiramente mais habilidoso com a espada, mas era um homem
velho, e, à medida que o duelo se prolongava, começou a chegar ao limite da sua
resistência e força. Beld, por outro lado, ganhara a juventude eterna da espada
que portava. Com Fahn ficando mais lento, os ataques de Beld agora passavam
pelo seu escudo, atingindo a armadura com um clangor abafado todas as vezes.
- Não... – grunhiu Kashue, quase agindo para intervir. Um dos guardas de
Beld sacou sua espada e apontou para ele, em advertência.
- É tão covarde assim pra interferir no duelo?!
Kashue congelou. A honra do Rei Fahn exigia que ele lutasse sozinho.
- Rei Fahn! – exclamou Parn, angustiado. Kashue tinha voltado sua atenção
para o guarda, mas, ao ouvir a voz de Parn, se concentrou no duelo novamente.
Era uma cena agoniante.
A espada de Fahn estava cravada no ombro esquerdo de Beld, de onde o
vermelho escorria fartamente. A espada de Beld havia perfurado o peitoral da
armadura do Rei Fahn tão profundamente que até a capa atrás dela havia sido
cortada.

125
Um momento depois, Fahn tombou.
- Rei Fahn! – gritou Parn de novo, virando-se para o homem de armadura
vermelha com um olhar cheio de ódio – Como ousa?! – exclamou ele, e correu até
Beld com espada em mãos.
Mas o guerreiro que impedira Kashue se interpôs no caminho de Parn – o
que foi a sua salvação, pois, caso contrário, Beld o teria matado com um só golpe.
Os outros guardas que estavam observando usaram o ataque de Parn como um
sinal para retomar a luta.
- Eu sou Kashue, Rei de Flaim! Beld, Imperador de Marmo, eu serei o seu
próximo oponente!
Até então, Beld estivera olhando passivamente para o corpo de Fahn, mas,
com o desafio de Kashue, voltou-se para o homem com um sorriso indiferente.
- Eu aceito. – disse.
Sem perder mais um instante, Kashue cortou superficialmente a armadura
vermelha de Beld.
- É só isso? – perguntou Beld, ignorando o ataque. Ele desceu sua espada
negra como carvão sobre a cabeça de Kashue num movimento ágil, mas o Rei
Mercenário desviou no último momento e atacou de novo. Sua espada rompeu
facilmente a armadura de Beld. Kashue sentiu que a lâmina afundou no músculo
do quadril esquerdo de Beld.
- Essa sua espada encantada é deveras interessante. – comentou Beld, sem
qualquer indício de estar sentindo dor.
- Não tanto quanto a sua. – respondeu Kashue. Sua espada longa tinha se
originado na época do reino antigo, e tinha um encantamento que permitia que
cortasse qualquer armadura como se fosse papel.
- E pensar que um homem como você se tornaria capacho de Fahn. – disse
Beld, em tom de desprezo.
- Você acha que me conhece?! – Kashue se enfureceu – Eu respeitava Fahn,
me importava com ele. Eu nunca conseguiria ser um rei sagrado como ele era.
Sou um rei mercenário, cujo caminho só se abre à base de força. Mesmo assim,
eu nunca serei um rei demônio como você!
Kashue manuseava a espada longa agilmente, pressionando Beld com um
massacre sem fim. Beld bloqueada cada investida com sua espada negra.
- Você tem alguns truques inteligentes, mas faz acrobacias demais... Tem
certeza de que está mesmo tentando me derrotar? Ou só está se exibindo para os
seus convidados?
O rosto de Kashue ficou ainda mais rígido com as palavras de Beld. Este
aproveitou a abertura para contra-atacar, mirando a garganta de Kashue. Quase
ele não conseguiu desviar, precisando se jogar ao chão para evitar um ferimento
sério.
Kashue rolou pelo chão e usou o próprio movimento para se colocar em
pé de novo e estocar. Beld havia dado um passo à frente com outro ataque pesado

126
– mas parou momentos antes de ser empalado pela espada de Kashue, notando
algo de estranho no último segundo.
- Meu público gosta de reviravoltas inesperadas. – Kashue sorriu, guardou
a espada e assumiu outra postura. Beld também abaixou sua espada.
- Achou mesmo que me enganaria com aquele número circense?
- Você achou que sabia tudo sobre mim por ter trocado golpes com minha
espada, mas existe muito mais em mim. Eu tenho orgulho de toda a minha vida.
Não escondo de onde vim.
- Você é um homem muito mais interessante do que eu suspeitava. Mas,
depois de uma batalha com Fahn, esta luta não é capaz de me empolgar. – Beld
levou a mão ao ombro que Fahn havia perfurado. Doía, mas não era nada que ele
não pudesse tolerar. Sua perna esquerda ainda suportava o seu peso.
- Que pena. Mas isso não muda o fato de que ela vai ser lembrada como
uma das minhas façanhas depois que eu te matar. – disse Kashue, empunhando
a espada horizontalmente.
- Tente. – Beld ergueu a espada acima da cabeça com as duas mãos – Não
teria graça se você nem tentasse.
- Hoje eu darei fim à era dos heróis. Quero que o meu povo viva uma vida
agradável e chata. – disse Kashue, avançando contra Beld como um raio.
Ele já tinha visto como Beld lutava. A força e a intuição dele eram sobre-
humanas, e sua espada se movia como uma besta selvagem. Cada movimento
era poderoso, pesado e preciso – ele não se importava com graça. Mas Kashue
também pôde perceber que era um pouco mais rápido que ele. E, com o encanto
da sua espada, ele não precisava aplicar muita força: o mero contato cortaria a
armadura do inimigo. Esticar completamente o braço e girar o punho enfraquecia
o ataque, mas a ponta da espada se moveria mais rápido. Em sua mente, Kashue
visualizava a si mesmo desviando da espada negra e decepando a cabeça de Beld.
Ele praticamente já via a cena.
Mas então, como que lendo os seus pensamentos, Beld ficou mais rápido.
Então ele tinha outro truque na manga. Mas Kashue estava disposto a morrer.
Do jeito que as coisas estavam, parecia certo que ele e Beld acabariam matando
um ao outro. Ele suspeitava que Beld também sabia que esse era o resultado mais
provável. Um pensamento correu pela mente de Kashue: morrer ali significaria
ser chamado de herói, como o Rei Fahn e o Imperador Beld foram.
Mas não era para ser. Do nada, uma única flecha mergulhou no ombro de
Beld. Isso fez o rumo da sua espada mudar. Kashue desviou por um fio de cabelo.
Seus olhares se encontraram. As pupilas de Beld se alargaram quando ele
percebeu o que estava prestes a acontecer. Guiado por esse olhar, Kashue atacou.
A lâmina rasgou o pescoço do Imperador das Trevas e mandou sua cabeça pelos
ares. O corpo decapitado caiu sobre o corpo de Fahn.
- Majestade! – o guerreiro com quem Parn lutava parou ao ver o golpe final
de Kashue.

127
- Kashue, Rei de Flaim, seu covarde! – exclamou o guerreiro, com uma voz
cheia de desprezo – Meu nome é Ashram! Lembre-se disso! Um dia, eu o farei
pagar! – ele correu até onde a cabeça de Beld havia caído, a pegou e começou a
recuar, deixando o campo de batalha com os outros guardas logo atrás.
Por um momento, Parn pensou em atacar Ashram, mas, apesar da ameaça,
ele não seria capaz de atacar um inimigo pelas costas. Ele embainhou a espada.
Ashram tinha sido um oponente difícil, e Parn mal conseguira sair vivo da luta
contra ele. Ele só tinha conseguido se defender até a luta ser interrompida. Parn
se sentia patético. Sabia que precisava encontrar um jeito de ficar mais forte se
quisesse proteger as pessoas que amava.
Kashue se aproximou, abatido e exausto. Todo o seu vigor de sempre tinha
sumido. Parecia que até o Rei Mercenário tinha os seus limites.
- Que bom que o senhor está bem. – disse Parn, fazendo uma saudação.
Kashue suspirou.
- Eu o derrotei de maneira desonrosa. Não é assim que eu queria que fosse,
mas foi assim que aconteceu. Agora cabe ao destino me julgar. – ele franziu para
Parn – Sei que vai ser uma tarefa ingrata, mas preciso que você leve o corpo de
Fahn de volta para Roid. – Kashue acenou para o grupo de Parn e disse: – Sabe...
Conhecer vocês foi a única coisa boa que essa guerra proporcionou. Espero que
venham visitar o meu país quando tiverem uma oportunidade. Será uma alegria
recebê-los.
Ele ficou em silêncio por um momento para honrar os dois heróis mortos
à sua frente. Então, sem dizer mais nenhuma palavra, deu meia-volta e começou
a guiar seus cavaleiros restantes rumo ao longo caminho de volta para Flaim,
onde outra guerra o aguardava.
O crepúsculo tomava conta do campo de batalha. Parn olhava sem reação
para o corpo dos dois heróis, vagamente consciente de que aquelas mortes eram
mesmo o fim de uma era.
- Não posso perdoar Karla por isso. – rosnou Slayn. Ninguém jamais o vira
tão furioso antes.
- Aconteceu exatamente o que aquela bruxa planejou. – comentou Etoh –
Marmo e Valis estão exaustos, e há guerras civis acontecendo em toda a Lodoss.
Apesar da influência de Pharis na ilha, vai demorar muito pra termos qualquer
paz aqui... Mas esse é o meu trabalho. Vou ajudar o Mestre Genart a reconstruir
Lodoss.
- Você vai conseguir. – disse Deedlit, assentindo. Então se virou para Parn
e o envolveu no abraço mais apertado que conseguiu dar. Um momento depois,
Parn a abraçou de volta, acariciando suas costas delicadamente. E se esforçando
para respirar dentro daquele aperto voraz aplicado por ela.
De repente, ele deu um grito:
- Karla!

128
Proferir aquela única palavra parecia uma libertação de todas as emoções
doentias que borbulhavam dentro dele. Sua voz se perdeu no campo de batalha,
pois não havia mais ninguém para ouvi-la.
O sol estava se ponto, banhando o solo em outra camada de vermelho.
- Parece que Elm está morto. – disse Slayn simplesmente, se perguntando
quem teria sobrevivido – Mas e o feiticeiro da corte de Marmo, Wagnard? Será
que ainda está vivo? – com Beld morto, eles não faziam ideia do que aconteceria
com Marmo. Mas o mesmo valia para Valis sem Fahn. O futuro de toda a Lodoss
parecia um caos.
- Vamos para casa. – murmurou Deedlit para Parn, numa voz envolta em
lágrimas – Roid estará segura. Vamos reagrupar lá. Eu não... Tem tristeza demais
aqui. Até esses goblins mutilados no chão me dão pena. Eu sei que, se por acaso
eles voltassem à vida, nós teríamos que lutar com eles de novo, mas... Se possível,
tudo que eu mais gostaria agora era que eles se levantassem e fossem embora.
- Sim. – concordou Slayn, gentil – Vamos voltar, Parn. Ainda estamos vivos
e os vivos podem fazer mais do que os mortos. Vamos voltar e lidar com as
consequências dessa batalha da melhor maneira que pudermos.
Mas Slayn não conseguia deixar de se questionar também. Ele não sabia
se era isso mesmo que queria. A lembrança daquele amigo voltou à sua mente.
Antes ele tinha tanta certeza de que havia uma separação absoluta entre bem e
mal. Mas não havia mais qualquer justiça em Lodoss agora. O mal não existia. A
ilha estava coberta por uma maldição cinzenta, forçada a manter um equilíbrio
eterno. O grito de Parn expressara exatamente o que Slayn queria dizer. “Karla”.
Slayn sentiu um arrepio só de pensar no nome.
- Nunca a perdoarei. Você nem devia existir.

Eles levaram os restos de Fahn para Roid. O exército de Marmo também


tinha atacado a capital, destruindo e saqueando parte dela. A cidade já estava de
luto por isso, mas a notícia da morte do seu Rei Herói, seu símbolo de justiça,
pareceu transformar a tristeza em desespero. Os verdadeiros reis de Lodoss eram
a desordem e o caos agora.
Genart, o sumo-sacerdote do Templo de Pharis em Roid, assumiu o papel
de guardião do povo por um tempo, liberando as riquezas e suprimentos do
templo para ajudar as vítimas da guerra. Esse gesto fez muito para manter o país
de pé. Apesar de as provisões só atenderem a Roid e as regiões vizinhas, foram o
suficiente para impedir que Valis desmoronasse.
Parn e seus amigos tinham muito a fazer. Havia uma grande demanda por
guerreiros, magos e sacerdotes. Deedlit, Ghim e até Woodchuck também fizeram
muito pela ordem pública de Valis. Quando eles se deram conta, um mês inteiro
já tinha se passado. Valis começava a se acalmar, e, quando finalmente as pessoas
começaram a sorrir de novo, o grupo já tinha desaparecido, como se nunca tivesse
estado ali.

129
Capítulo 6
A Filha de Marfa

Próximo ao limite norte dos mangues que se estendem a noroeste de Roid


fica o Lago Lenoana, também conhecido como Lago Inerte. Os companheiros
estavam a dez dias de Roid quando desembarcaram numa pequena ilha no centro
do lago. Eles tinham apenas um objetivo: confrontar Karla, a Bruxa Cinzenta,
uma sobrevivente do reino antigo que havia mergulhado Lodoss numa guerra
brutal.
Slayn segurava firme a varinha dada pelo Mago Wort. Sua magia, segundo
ele, seria capaz de neutralizar a de Karla. Os seis avançavam mudos pela neblina,
nenhum ousando falar. Era comum o lago ficar nebuloso: raramente a luz do sol
chegava até ele, especialmente no inverno. Diziam que as ruínas de uma cidade
do reino antigo jaziam lá no fundo.
- Este é mesmo o lugar perfeito para aquela bruxa viver. – comentou Parn,
que observava tudo com cautela.
Logo, uma velha mansão se destacou em meio à névoa. A construção de
dois andares era totalmente cinza – uma cor que tinha tudo a ver com quem a
habitava. Os ouvidos atentos de Slayn perceberam que Ghim corria as mãos pelos
bolsos. Curioso, se aproximou, captando apenas um vislumbre de ouro antes que
sumisse na roupa.
- É uma nova arma? – indagou. O anão era habilidoso em criar ferramentas
precisas, as quais frequentemente usava como armadilha ou arma. Ghim hesitou
por um momento, mas então mostrou o objeto que tinha na mão – Um prendedor
de cabelo? – Slayn estava confuso – É uma bela peça, mas parece simples demais
comparada ao que você costuma fazer.
Após examinar mais um pouco, o feiticeiro devolveu o prendedor a Ghim.
O ornamento de fato parecia um pouco simples para o padrão dos anões. Sua
base tinha um arco-íris de joias ordenadas na forma de uma estrela, e um padrão
preciso fora gravado no resto dele. Mas, fora isso, a única outra coisa digna de
nota era que o metal tinha sido muito bem polido. Por outro lado, havia espaços
onde mais joias ou enfeites mais elaborados poderiam ter sido adicionados.
- Fiz isso durante nossa estadia no castelo de Roid. – disse Ghim – Você
pode achar simples, mas eu o considero a minha obra-prima. Acessórios desse
tipo não devem ser mais refinados que isso. Por que ele deveria ser mais bonito?
O que importa é quem o usa. Quando um ornamento se conecta com seu dono
em perfeita harmonia, o resultado é ainda mais brilhante. Uma joia de verdadeira
beleza só a mostra quando é usada.

130
- Entendi... – disse Slayn, hesitante. Na verdade, ele não entendia de fato o
que o amigo queria dizer.
- Estou prestes a cumprir minha missão. – disse Ghim – Eu vou libertar a
Leylia do poder daquela tiara e mandá-la de volta para a Neese em Tarba.
- Então você veio aqui com a intenção de... – murmurou Slayn, voltando o
olhar para a mansão cinza diante deles. Ela ficava ainda mais assustadora devido
ao silêncio total ao redor. Parecia que não havia ninguém lá. Eles achavam que já
teriam sido atacados àquela altura.
Parn e Etoh vistoriaram os arredores com cuidado; ambos estavam tensos
com a possibilidade de uma emboscada. Ninguém fazia ideia de quantos aliados
Karla poderia ter, mas eles sabiam que ela conseguira conduzir várias missões
simultaneamente por toda a Lodoss.
Ela tinha que ter muitas pessoas sob o seu comando.
Slayn conjurou um feitiço, enviando seus olhos da mente para investigar.
Ele ficou surpreso ao não encontrar nenhum guarda em volta da mansão.
Continuou a busca, agora esgueirando sua mente para dentro da construção. Ele
esperava ser repelido por uma barreira encantada, mas entrou facilmente e pôde
verificar cada cômodo sem ser incomodado.
- Encontrei! – exclamou ele, com uma voz trêmula – Vejo a Karla. Ela está
num salão no segundo andar, vestindo armadura e segurando uma arma. Ela...
está olhando pra cá. Tenho certeza que ela me notou. Ela está sorrindo... – Slayn
fechou os olhos da mente e estremeceu – Acho que ela pretende abandonar este
lugar. Não tem mais ninguém lá dentro, e a maioria dos cômodos está vazia.
- Então ela está esperando por nós... – Parn sacou a espada lentamente.
Mesmo de fora, eles podiam sentir a fúria dela. Para uma bruxa do reino
antigo, as pessoas de Lodoss não passavam de descendentes de selvagens. Mas,
no decorrer dos últimos meses, Parn e seus amigos destruíram vários dos seus
planos, criticaram toda a sua filosofia e agora pretendiam matá-la. Sem dúvida
ela queria puni-los pessoalmente por tamanha insolência, e nunca tinha passado
pela sua cabeça, nem por um segundo, que poderia perder. Esse raciocínio podia
ser um ponto fraco.
- Muito bem, vamos começar! – exclamou Parn, empunhando a espada.
- Não se esqueça: não viemos aqui pra matá-la! – disse Ghim, olhando para
Parn.
- Eu sei. – disse Parn – Posso lutar sem fazer nada mortal. – ele voltou um
olhar para Woodchuck, que estava quieto atrás do grupo, e adicionou: – De todo
modo, o papel principal hoje é do Woodchuck.
Eles tinham planejado o ataque com muito cuidado. Primeiro, Slayn usaria
a varinha para neutralizar a magia de Karla. Feito isso, Parn, Deedlit e Ghim a
enfrentariam mano a mano para mantê-la ocupada, protegidos por Etoh. Isso
daria a Woodchuck a chance de que ele precisava: ele se esgueiraria atrás de Karla

131
e removeria a tiara da sua cabeça. Era um trabalho vital e perigoso para o qual
Woodchuck se oferecera voluntariamente.
Parn abriu a porta da frente. O grupo entrou e subiu as escadas de pedra
até o segundo andar. Eles não estavam mais agindo com a cautela extrema de
antes; sabiam que, se Karla quisesse pegá-los numa armadilha, no mínimo teria
guardas na mansão. Foram direto para o cômodo onde ela esperava, cientes de
que a batalha pelo destino de Lodoss seria travada lá. Se perdessem, Lodoss
ficaria amaldiçoada para sempre, presa naquele cinzento equilíbrio entre bem e
mal.
Parn segurou as maçanetas da porta dupla e a abriu. Atrás dela havia um
grande salão construído como uma sala de trono, com paredes e chão feitos de
mármore branco e polido. Bem no fundo do salão, estava Karla.
- Estava esperando vocês. – sua voz límpida ecoou pelo grande salão. Ela
du um passo à frente e pareceu fixar o olhar em cada um deles, um de cada vez
– Já passou da hora de acabar com isso. Venham! – ela estendeu os braços, e sua
mão direita segurava uma adaga que emitiu uma luz mágica.
- Karla! – gritou Parn, movido por uma explosão de raiva – Sua bruxa vil!
Você brinca com o destino das pessoas!
Deedlit e Ghim correram atrás dele, tentando acompanhar a investida. Era
o momento pelo qual Slayn esperava:
- Teura! – exclamou ele distintamente, conjurando a magia da varinha. Um
grande poder mágico começou a emanar dela.
Karla ergueu uma mão para invocar uma magia do fogo contra os três
guerreiros que vinham na sua direção. Um brilho vermelho ardente se formou
nos seus dedos graciosos, deixando um rastro de chamas ao ser lançado. A bola
de fogo era grande e poderosa o bastante para matar todos eles. Mas, pouco antes
de alcançá-los, oscilou como a chama de uma vela ao ser confrontada pelo vento.
- O que é isso?! – por um instante, Karla ficou surpresa. Mas ela tinha visto
de relance que o feiticeiro manuseava uma varinha... Será que ele tinha criado
um campo que neutralizava magia? O rosto do Grande Mago piscou na mente
dela. Diversos objetos mágicos haviam sido criados nos dias de glória do reino
antigo. A própria Karla criara muitos além da sua tiara. Ela sabia que sua magia
era poderosa, mas sempre havia um jeito de revidar. Por outro lado, eles não
conseguiriam selá-la por muito tempo com um truque tão simples.
Ignorando o inimigo que avançava, Karla se concentrou para tentar fazer
outra magia.
- A mana é a fonte de tudo! Só magia pode selar magia. E só magia pode
libertá-la! – assim que ela terminou de falar, um ruído seco se fez ouvir. A varinha
mágica se esfarelou na mão de Slayn. Imediatamente ele sentiu um arrepio. Ele
sabia que Karla tentaria usar alguma magia para resistir ao efeito da varinha, mas
ela deveria continuar funcionando enquanto o seu poder não se esgotasse. Mas
Karla simplesmente destruiu a própria varinha. Quanto poder mágico não seria

132
necessário para se fazer algo assim? Slayn não podia sequer imaginar, mas de
uma coisa ele tinha certeza: o plano tinha falhado.
- Tomem cuidado! – exclamou ele – Ela destruiu a barreira mágica! – mas
Parn, Deedlit e Ghim já estavam perto o bastante para cruzar espadas com ela.
Etoh rezou por proteção divina, pronto para conjurar magia sagrada assim
que necessário. Enquanto esperava, notou uma sombra correndo silenciosamente
junto à parede. Boa sorte, pessoal, pensou.
Com um urro, Parn atacou Karla pela direita, mirando a mão que segurava
a adaga. Karla bloqueou facilmente. Deedlit, na esquerda, estocou contra a perna
esquerda da bruxa com seu florete, mas ela desviou com um movimento simples.
O tempo todo ela continuava conjurando uma magia em concentração total. Parn
e Deedlit não pararam de fazer pressão, sabendo que era tudo que podiam fazer.
Eles não tinham esquecido o aviso de Wort de que não podiam matá-la, mas não
podiam pegar leve. Se dessem uma única abertura a ela, a adaga os mataria, sem
sequer a necessidade de magias.
Depressa, Wood! – pensou Parn. O ladrão era a única esperança deles.
- Acorde, Leylia! O que a Neese te ensinou?! – gritou Ghim da sua posição
à frente de Karla. Sua voz fez o salão inteiro estremecer. Ele apenas olhava para
Karla, nem se incomodando em assumir uma postura de batalha.
Karla ficou surpresa pelo anão conhecer o corpo que ela controlava, mas
sabia que seus esforços seriam em vão. Sete anos antes, ela havia ido a Tarba para
tomar o tesouro do Grande Templo de Marfa para si mesma. Ela subestimou a
sacerdotisa que o protegia e, como consequência, o corpo que ocupava morreu.
A sacerdotisa era extremamente capaz. Sobreviveu à magia mais poderosa de
Karla e depois a apunhalou no coração. Mas agora a consciência e a memória
dessa mulher não existiam mais. Seu corpo e sua mente pertencem a mim, pensou
Karla enquanto continuava a recitar seu feitiço, jamais errando qualquer palavra.
Como sua magia tinha sido selada, ainda que por apenas alguns momentos, ela
queria acabar com eles usando-a.
- Lembre, Leylia! Lembre dos ensinamentos de Marfa! O amor por toda a
vida e toda a natureza! – continuou o anão – Lembre de por que você casou todos
aqueles jovens, de por que representava a deusa do matrimônio! Você nunca ia
querer trazer o caos a Lodoss! Nunca destruiria tantos casais e famílias numa
guerra sem sentido!
Karla não parou de recitar, mas ela tinha a impressão de que o encanto
estava demorando muito mais que o normal. As palavras do anão eram muito
mais incômodas que os ataques incessantes dos outros dois. Quando Karla ainda
ocupava seu corpo original, também era uma seguidora de Marfa. Assumir o
controle do corpo de Leyla a tinha conectado com a deusa através da alma da
sacerdotisa, o que a permitiu usar a magia de Marfa. Ela não sabia por que ouvir
o nome da deusa a incomodaria agora, mas, toda vez que o anão falava, uma
sensação estranha e alienígena borbulhava dentro dela. Uma forte dor de cabeça

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tomou conta dela. Seria possível que a sacerdotisa de Marfa estivesse recobrando
algo de si e tentando expulsar Karla?
Finalmente, Karla completou seu encantamento.
- Silêncio! – exclamou ela. Sua mão esquerda foi envolvida por um sinistro
brilho vermelho, que ela apontou para o peito do anão. Ele não tentou desviar.
- Lembre, Leylia! – gritou ele, agarrando o punho de Karla. O brilho voou
da mão de Karla para o corpo do anão, onde desapareceu como se tivesse sido
absorvido. O anão, de olhos abertos, mas já incapaz de ver, caiu lentamente para
trás.
Agora ele jazia, inerte na morte.
- Ghim! – gritou a elfa, claramente chocada. Estranhamente, porém, Karla
também sentiu um choque semelhante reverberar pelo seu corpo.
- Ghim...? – as palavras saíram contra a sua vontade. A cabeça rodava, a
dor aumentava a cada momento. Qualquer possibilidade de conjurar uma outra
magia tinha se esvaído.
Naquele momento, uma sombra negra se ergueu atrás dela.
- Peguei você! – um clamor de vitória ecoou. Slayn e Etoh viram acontecer.
O ladrão, com suas mãos ágeis e precisas, arrancou a tiara da cabeça de Karla. Os
longos cabelos negros, até então presos, se soltaram numa massa desorganizada.
Karla emitiu um grito sem voz e desmoronou no chão como uma boneca cujas
cordas foram cortadas.
- Ghim! – exclamou Parn, tomando o corpo lânguido do anão nos braços.
Ele podia sentir seu calor se esvaindo.
Parn chamou o nome dele várias vezes, tentando reacender o seu espírito.
Etoh correu até eles, já rezando para Pharis. Slayn levou a mão o peito e apenas
observou, quieto e solene. Com lágrimas nos olhos, Deedlit apontou seu florete
para a mulher inconsciente no chão. Em pânico, Slayn a segurou.
- Me solta! – berrou Deedlit, com a voz ecoando pelo salão – Ela matou o
Ghim! Ela tem que morrer!
- Acha mesmo que o Ghim iria querer isso? – questionou Slayn, mantendo
a calma – Ele sacrificou a vida para salvá-la. Eu tinha as minhas suspeitas, mas
não sabia o verdadeiro objetivo de Ghim até hoje. Ele nunca me disse. Mas... Anos
atrás, ele se machucou num acidente nas minas. Neese, a mãe dessa mulher, foi
chamada para cuidar dele e salvou sua vida. Mas, enquanto Neese estava fora,
sua filha desapareceu. Deve ter sido então que ela foi possuída pela Karla.
Deedlit deixou o florete cair ao chão, tremendo. Delicadamente, Parn a
envolveu num abraço. Ela apoiou o rosto no peito dele e fechou os olhos para
tentar segurar as lágrimas.
- Não adianta... – disse Etoh com um suspiro. Com cuidado, colocou as
mãos de Ghim sobre o seu peito. Slayn baixou o olhar e orou pela alma do amigo,
que poderia descansar em paz agora.

134
- Pobre Ghim... – Deedlit não conseguia olhar. Enterrou o rosto no peito
de Parn, soluçando. Provavelmente era a primeira vez que um elfo chorava por
um anão em toda a história de Lodoss.
Slayn se virou para Woodchuck:
- Vamos acabar com isso. Acabar com Karla. Wood, por favor. Jogue essa
tiara no chão e a destrua. Assim Lodoss finalmente ficará livre dessa maldição de
uma vez por todas.
Enquanto tudo acontecia, Woodchuck não tinha movido um músculo. Ele
olhava para o anão imóvel, confuso com o vazio que sentia no seu coração. Mas,
quando Slayn se dirigiu a ele, saiu do transe e deu um passo incerto para trás.
Deedlit sentiu que havia algo errado. Sacou o florete.
- Wood? O que você está pensando? Não pode ser! – disse ela bruscamente.
- É... É isso mesmo. – respondeu Woodchuck, afastando-se dos outros com
alguns passos rápidos.
- O que você está fazendo? Destrua-a logo! – Parn o observava, confuso.
- Vocês não sabem como é... ficar acorrentado numa prisão por vinte anos.
É, eu fiz coisas ruins. Sou um ladrão. Mas era o meu único jeito de sobreviver. Eu
nunca tive a coragem ou a força do Parn, nem a inteligência ou oportunidade de
estudar a língua antiga como o Slayn. Os deuses me abandonaram antes mesmo
de eu aprender a pensar, então não pude seguir nem Pharis, nem Marfa e nem
Rahda... Só a Guilda dos Ladrões me entendeu e me aceitou. – os olhos dele se
abriram mais – Mas, com essa tiara... até eu posso ser forte. Eu vou controlar o
poder da Karla... e me vingar do mundo que nunca me quis! O mundo que tirou
a minha juventude! Todos se lembrarão do nome do Grande Woodchuck Jay
Lancard!
- Wood! Não seja idiota! – berrou Parn, ficando pálido.
- Parn, você é um cara legal. – disse Woodchuck, com uma voz quase como
a de sempre – É incrível, você não tem um único osso desonesto no seu corpo.
Mas você devia aprender a não confiar tanto nas pessoas, senão alguém como eu
vai aparecer e te apunhalar pelas costas. E Deed, a fada da floresta, abençoada
com juventude e beleza eternas... Você era tão insuportável no começo, mas no
fim eu aprendi a gostar de você. Etoh, o nobre, Slayn, o sábio, e o anão cabeça-
dura. Viajar com vocês foi muito divertido, sabiam? Fomos um bom time. Eu
sempre os receberei de braços abertos.
- Wood, você está brincando, não é?! – gritou Parn – Mas isso não é o tipo
de brincadeira que se faça!
- Adeus, Parn. Eu queria conseguir ser como você.
Com isso, Woodchuck correu até a janela. Abrindo-a, virou-se para trás
para olhar para eles uma última vez.
- Wood! – o grito de Parn fez o salão inteiro tremer e ecoou nos ouvidos de
Woodchuck.

135
136
O ladrão sussurrou adeus uma última vez e pulou pela janela. Parn correu
até ela, mas, quando chegou lá, Woodchuck já havia desaparecido na floresta.
- Wood, seu idiota. – grunhiu Parn, abaixando a cabeça. Lentamente, ele
se aproximou do corpo de Ghim de novo, ajoelhou-se ao lado da sua cabeça e fez
o sinal de Pharis. Segurou outra vez as mãos do amigo, agora frias – Eu juro que
vou vingar você. – e, levantando-se e olhando para os companheiros restantes: –
Eu vou atrás dele. Não acho que ele será capaz de controlar a Karla. Cuidem do
resto.
- Eu vou junto. – disse Deedlit – Alguém tem que cuidar da sua retaguarda.
A próxima Karla será sorrateira. – ela pulou e aterrissou delicadamente ao lado
de Parn.
- Obrigado. – disse Parn com um sorriso encabulado – Ahn... Olha, Deedlit,
não ria, mas eu sempre quis ser visto como um herói, ser uma das pessoas sobre
quem as pessoas contam histórias ou cantam músicas. Mas acontece que eu não
sou esse tipo de pessoa. Eu devia estar voltando pra Valis agora, pra lutar como
cavaleiro e trazer a paz de volta a Lodoss. Mas... Eu não posso ficar parado, sem
fazer nada, enquanto aquela bruxa rasteja pelas sombras da nossa história...
Deedlit concordou em silêncio. Ela sabia que ele queria ser um herói desde
aquela primeira conversa embriagada. E, embora ela não o tivesse considerado
particularmente heroico na ocasião, as coisas eram diferentes agora.
- Talvez o seu nome não entre pra história... Mas o povo de Lodoss contará
histórias sobre a sua cabeça-dura por anos. – disse ela, sorrindo.
- Eu sinto muito, Parn... – Etoh se aproximava com um rosto atormentado
– Eu quero ajudar você, mas... Eu jurei dedicar a vida a Pharis. Tenho que voltar
a Roid para reconstruir Valis e a Ordem de Pharis.
Parn respondeu assentindo e abrindo um sorriso, em seguida apertando a
mão do amigo de infância.
- Eu também não posso ir com vocês. – disse Slayn – Preciso levar Leylia
de volta a Tarba para realizar o desejo de Ghim.
- O Ghim deu a vida por ela. Por favor, leve-a para casa em segurança. –
disse Parn, apertando a mão de Slayn também – Adeus. – Então tomou a mão de
Deedlit e os dois partiram, lado a lado.
- Não consegui salvar nem o Ghim, nem o Woodchuck. – murmurou Etoh,
amaldiçoando a própria impotência. Voltou-se uma última vez para o corpo do
anão e ofereceu uma oração para a sua alma descansar em paz – Isso é tudo que
eu posso fazer por ele. Deixo o resto com você, Slayn.
- Acho que isso é um adeus. – disse Slayn, acenando em despedida.
- Slayn, o Caçador de Estrelas. Espero que encontre o que está procurando.
– disse Etoh abrindo um sorriso cálido e acenando de volta. Então deu meia-volta
e partiu.

137
2

Slayn era a única pessoa que ainda se movia dentro da mansão de Karla.
Ficou sentado ao lado do corpo de Ghim por um bom tempo, esperando paciente.
A expressão do anão parecia uma de satisfação, como se ele tivesse morrido com
orgulho da vida.
- Ah, quase esqueci... – Slayn mexeu no bolso de Ghim e pegou o objeto de
ouro. O prendedor de cabelo foi a última coisa que o anão criou com as suas mãos,
então o feiticeiro queria garantir que ele chegasse à pessoa à qual era destinado.
Guardou a peça no seu próprio bolso e voltou a esperar Karla, ou melhor, Leyla,
recobrar a consciência.
Não demorou muito. Pouco tempo depois, ela começou a se mexer e a abrir
os olhos.
- Você está bem? – perguntou Slayn gentilmente, olhando nos olhos dela –
Como se sente?
A mulher olhou para ele. Slayn viu o próprio rosto refletido naquelas duas
esferas azuis. Ela era linda. E parecia completamente diferente de quando estava
sob o controle de Karla. A bruxa podia ter controlado seu corpo e mente, mas não
pôde dominar sua natureza – e a verdadeira beleza vinha da alma.
- Q- Quem é você...? – indagou ela, claramente confusa – O que eu estou
fazendo aqui? – um momento depois, seu rosto ficou pálido e sua expressão se
tornou uma de tomento.
Slayn sabia o que devia estar acontecendo: ela estava se lembrando de tudo
que tinha feito sob o comando de Karla. Slayn sentiu uma profunda compaixão.
Parecia cruel ela ter que carregar essas lembranças. Mas esse era o seu destino, a
provação que ela precisava superar.
Leylia se colocou de pé com dificuldade e deu uma rápida olhada ao redor.
Um momento depois, viu o corpo de Ghim e estremeceu.
- Ghim... O gentil artesão anão... – ela murmurou, com uma voz seca. Seus
olhos já se enchiam de lágrimas – Eu me lembro... A sua voz... Ela me alcançou
quando eu dormia na escuridão, presa nas profundezas da minha própria mente.
Eu achei que tinha sido apenas um pesadelo... Mas é real... – ela correu até o corpo
do anão e desmoronou sobe ele. Segurou sua mão, tentando encontrar alguma
vida no corpo que nunca mais falaria. – Eu queria que fosse tudo um sonho... Que
fosse um pesadelo do qual eu pudesse acordar no templo em Tarba. Mas... Mas
esta é a realidade... – um soluço subiu pela sua garganta, e logo ela chorava e se
amaldiçoava.
Slayn ficou quieto, esperando as lágrimas lavarem a tristeza dela.
Leylia achou que choraria para sempre, mas aos poucos as lágrimas foram
diminuindo, até parar.
- O que eu fiz nunca poderá ser expiado. – disse ela, com uma voz trêmula,
mas sem mais lágrimas – Matei Ghim e muitos outros... E trouxe guerra a Lodoss.

138
Como eu posso pagar por um pecado tão horrível?! – ela olhava para o homem
de manto ao seu lado, desesperada por respostas.
- Viva. – respondeu ele, simples, mas firmemente. Seus olhos eram gentis,
mas ela não via pena neles, apenas uma profunda sabedoria e compreensão. Ao
vê-los, a dor no coração dela pareceu diminuir um pouco. – Esse pecado não é
seu. – continuou ele – Não foi você quem fez todas aquelas coisas. Foi a Karla, a
bruxa do reino antigo. Você deveria esquecer tudo isso, se pudesse... Embora eu
suspeite que isso não seja possível. – seu olhar se tornou mais grave – Então você
deve confrontar isso. Salve tantas vidas quanto puder. Faça tudo que puder para
trazer paz a Lodoss. Sendo uma sacerdotisa de Marfa, você pode fazer muito.
Mas, antes de tudo isso, volte para Tarba e tranquilize sua mãe. O único objetivo
de Ghim em toda essa história era levar você para casa.
Leylia ouvia em silêncio, mas mordia os lábios com tanta força que já saía
sangue.
- Está bem. – respondeu. Ele tinha razão. Sua morte não resolveria nada, e
a guerra estava apenas começando. – Eu dedicarei o resto da minha vida a servir
Lodoss... Assim que voltar para casa e reencontrar minha mãe.
Slayn assentiu e abriu um sorriso para ela.
- Eu irei com você, Sacerdotisa de Marfa. Meu nome é Slayn, o Caçador de
Estrelas, e sou um feiticeiro da Academia de Magia. Eu gostaria de ajudá-la.
- Eu me lembro de você. – disse ela – Lembro de tudo que aconteceu nos
últimos sete anos.
O coração de Slayn sofria por Leylia. Seria difícil para ela superar aquela
dor, mas seu sorriso voltaria um dia. Ele a ajudaria. Não podia manusear uma
espada como Parn, mas sua magia sem dúvida seria útil. Slayn tomou a mão de
Leylia e a ajudou a sair da mansão. No caminho, conjurou feitiços de combustão
em vários pontos, e logo a construção inteira foi engolida pelas chamas.
Naquele fogo, a alma de Ghim partiria em paz e chegaria ao mundo onde
os habitantes da terra descansavam.
Eles permaneceram diante da mansão até que a última chama se apagou.
Depois disso, começaram a caminhar, com Slayn guiando. A neblina diminuiu, e
a luz do sol do início do outono brilhou sobre eles.
Em dado momento, Slayn se lembrou do prendedor de cabelo que estava
no seu bolso. Após pegá-lo e olhá-lo mais uma vez, se voltou para Leylia:
- Posso...? – perguntou, e, quando ela assentiu, colocou o enfeite no seu
cabelo. O gesto foi seguido de um suspiro – O Ghim tinha razão... – assim que foi
colocado nela, o ornamento, que parecia tão simples antes, começou a reluzir. Ele
absorveu a luz e converteu num arco-íris, como se finalmente tivesse encontrado
o lugar ao qual pertencia – A beleza da harmonia. – disse ele e explicou: – Ghim
fez esse prendedor de cabelo pra você.

139
Slayn se deu conta de que não conseguia desviar o olhar daquele rosto. O
prendedor fazia um forte contraste com o seu cabelo extremamente negro, e, ao
refletir sobre isso, um novo pensamento cruzou a mente dele:
Acho que encontrei a minha estrela.

140
Posfácio
por Hitoshi Yasuda

Lodoss era uma ilha remota a duas semanas de viagem


a sul do continente Alecrast. [...]
Algumas pessoas do continente
chamavam Lodoss de “Ilha Amaldiçoada”...

Isso me traz tantas lembranças... Seja se você leu esse livro em japonês
quando saiu pela primeira vez ou virou fã depois, essa passagem provavelmente
sempre esteve em algum cantinho do seu coração.
Quando eu abri o livro, achei que encontraria essa passagem de imediato,
mas na verdade ela só aparece no começo da segunda seção do capítulo 1. Achei
que eu lembrava bem da estrutura do livro, mas a memória é uma coisa estranha
– eu me equivoquei um pouco. Mas acho que isso era de se esperar, já que já se
passaram 25 anos desde que Crônicas da Guerra de Lodoss: A Bruxa Cinzenta foi
publicado originalmente.

Crônicas da Guerra de Lodoss: A Bruxa Cinzenta foi lançado no Japão em 10


de abril de 1988, logo depois que a Kadokawa Sneaker Books foi fundada. Na
época, o gênero “light novel” ainda era novo (representado apenas pela Asahi
Sonorama Books), então a Sneaker Books foi meio que uma pioneira.
Antes disso, o meu envolvimento nessa indústria era como tradutor de
ficção científica, então eu não tinha como saber como um título desse novo campo
se sairia. A ansiedade e a expectativa praticamente não me deixavam dormir (tá,
eu admito que também estava sob pressão por causa do prazo para a entrega da
tradução de Dragonlance, que foi publicado mais ou menos ao mesmo tempo).
Dizem que às vezes o medo é pior que o próprio perigo. Mas, assim que lançado,
Crônicas da Guerra de Lodoss: A Bruxa Cinzenta sumiu das prateleiras, e a série foi
concluída depois de sete livros e cinco arcos de história. Depois do primeiro livro,
os seguintes saíram de modo muito mais tranquilo. O gênero se expandiu, e
agora, um quarto de século depois, o que começou com Crônicas da Guerra de
Lodoss evoluiu para “light fantasy" e o próprio “light novel” que conhecemos
hoje.
Como a maioria das pessoas provavelmente não conhece os bastidores, eu
gostaria de explicar a minha relação com o Ryo Mizuno, o Crônicas da Guerra de
Lodoss e esse novo gênero.
Primeiro, o romance em si é uma criação do Ryo Mizuno, o autor. Todavia,
durante o processo de criação, as pessoas que faziam parte do Grupo SPE (ou do

141
seu predecessor), como eu, ofereceram contribuições através de partidas de RPG
e “replays”.
Os jogos de RPG dos quais eu estou falando aqui não são os videogames
que fazem tanto sucesso no Japão. Estou falando da sua forma raiz, os RPGs “de
mesa”, que usam dados e papéis. Um RPG de mesa é, primeiramente e antes de
mais nada, um jogo, mas, idealmente, tem uma história robusta e interativa no
seu âmago, e os jogadores se tornam os personagens e assumem um papel ativo
no desenrolar dessa história. As pessoas que gostam dos RPGs eletrônicos em
geral têm alguma familiaridade com eles. Mas, como são a forma original, os
RPGs de mesa superam os eletrônicos em termos de versatilidade e realismo
(embora exijam muito mais trabalho). Você vai entender se ler um “RPG replay”,
que é basicamente o relato de uma sessão de RPG de mesa.
Então Crônicas da Guerra de Lodoss primeiro foi jogado como um RPG de
mesa – Ryo Mizuno descreveu esse mundo maravilhoso, e nós o pegamos e
expandimos com amor. Ele ganhou mais visibilidade através de um novo
formato chamado “replay RPG” (adaptado pelo Ryo Mizuno e eu mesmo), e
conquistou reconhecimento geral com o romance Crônicas da Guerra de Lodoss
(que o Ryo Mizuno reescreveu completamente).
Eu acho que isso torna Crônicas da Guerra de Lodoss único. Um mundo que
começou na cabeça do Ryo Mizuno foi lapidado ao ser usado como cenário de
um RPG de mesa. Compartilhar essa história com outras pessoas deu à luz o novo
formato – os replays. Então ele passou por outra rodada de reescrita nas mãos do
criador original, que transformou a aventura num verdadeiro romance.
Para mim, os RPGs de mesa são jogos, mas também são histórias criadas
em grupo. Então eu acho que é um formato em que o inconsciente coletivo se
manifesta mais facilmente. Quando ele é adaptado como replay ou romance, o
processo não é simplesmente descartar os elementos que fariam dele um jogo. O
grupo reúne tudo o que há nele, as partes mais marcantes e memoráveis ficam,
enquanto os elementos desnecessários são retrabalhados. Eu acho que isso se
intensificou à medida que Crônicas da Guerra de Lodoss passava por novos
processos de adaptação.
Todo formato tem os seus próprios charmes, é claro. É fascinante ver esse
mundo comum se expressar de tantas maneiras diferentes.
Depois disso, os romances seguintes expandiram mais ainda o mundo de
Ryo Mizuno. A continuação, Crônicas da Guerra de Lodoss 2: O Demônio Ardente,
foi um grande poema lírico escrito sem passar primeiro pelo formato de jogo. A
série então retornou às suas raízes de RPG de mesa na parte 3... Lodoss continuou
a mudar assim até o fim.
Espero que as pessoas continuem a se divertir com essa série clássica ao
serem reapresentadas a ela nesta nova edição de Crônicas da Guerra de Lodoss: A
Bruxa Cinzenta.

142
Ryo Mizuno nasceu em 1963 em Osaka. Seu primeiro livro, Crônicas da Guerra de
Lodoss: A Bruxa Cinzenta, foi publicado em 1988 pela Kadokawa Sneaker Books.
Escritor e designer de jogos, ele é o autor da série Lodoss, sua franquia-irmã Rune
Soldier, a série de ficção científica Starship Operators e a série de fantasia Crônicas
da Guerra de Gancrest.

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