Igbadu
Igbadu
Igbadu
A cabaça da existência
1. O início de tudo............................................................................ 4
2. O orgasmo Cósmico.....................................................................
3. A criação do homem....................................................................
4. O estabelecimento do culto..........................................................
5. A vingança de Orumilá................................................................
6. Um movimento feminista............................................................
7. A decadência de Orumilá.............................................................
8. A sociedade Egungun...................................................................
9. Adaptação de um Itan...................................................................
O autor
A volta ao Orun............................................................................
10. Referências..................................................................................
Capítulo 1
O inicio de tudo
Em um tempo imemoriável, nada mais existia além do Orun1. Em seu palacio de
paredes brancas e transparentes como o alabastro, com imensos salóes, onde almofadóes
brancos como a nevé faziam as vezes de cadeiras, todos os Orixás Funfun, criaturas da mais
alta hierarquia espiritual2, passavam o tempo deliciando-se com frutos e néctares aínda hoje
desconhecidos pelos humanos. Rodeando o palacio, num grande bosque muito bem cuidado,
floresciam todos os tipos de vegetáis que, mais tarde, seriam desenvolvidos na Térra, e todas
as especies animáis ali transitavam em total liberdade, mansos e pacíficos como o local onde
viviam. Ríos de aguas puras e transparentes como cristal banhavam o solos do bosque e, em
determinados pontos, precipitavam-se em forma de cachoeiras, formando piscinas naturais
onde os seus habitantes costumavam banhar-se e divertir-se. A temperatura era sempre
agradável e ninguém sabia o que era calor, frió, fome, sede, ou qualquer tipo de necessidade.
No Orun existiam todas as coisas que existem hoje em nosso mundo, so que de forma
imaterial, mais sutil. Tudo o que ali havia era prototipo do que temos hoje em nosso plano
existencial. Nesse ambiente de total felicidade, nao fosse a ociosidade em que viviam, tudo
estava perfeito. Naquele dia, Olórun se encontrava especialmente alegre. Havia tido uma idéia
que, sem sombra de dúvidas, traria fím ao ocio reinante. Resolverá criar um novo mundo que
seria habitado por seres mortais, mas semelhantes em tudo a Ele próprio, e, para tanto,
precisaría da ajuda de todos os seus fílhos. Sentados em grandes almofadas, os Orixás Funfun,
liderados por Obatalá, o primogénito, e Odudua3, participavam de uma importante reunião,
durante a qual o Grande Deus dava ordens, explicava seus planos e distribuía funçoes. — A ti,
Obatalá, reservei a importante missao de criar o mundo dos mortais, ao qual chamaremos
Aié4. Todos os Orixás teráo funçóes importantes neste projeto, mas deverao agir sob tuas
ordens e orientaçoes. Passo agora as tuas máos o apo-iwa5, o saco da existencia, e as minhas
instruçóes devem ser seguidas á risca, em todos os detalhes. Nada poderá ser modificado, sob
pena de nao se atingir os objetivos a que nos dispomos. Deves seguir em direçao ao local
denominado Opo-Orun-Oun-Aié6, nos limites de nosso reino, onde encontrarás um grande
pilar que une nosso mundo ao vazio do infinito. E neste local que deverás criar o Aié, o
mundo dos mortais. Aqui está o saco da existencia, dentro dele encontrarás o necessário para
bem cumprires tua missáo. Agora va, reúne os Orixás Funfun e segué em frente. Nao te
esqueças de suprir-te do necessário, e guárdate de consumires qualquer tipo de bebida
fermentada durante o teu trajeto! Após receber das Divinas Maos os atributos necessários á
sua missáo, Obatalá curvouse, respeitosamente, enquanto dizia: “Sou muito grato a Meu Pai
pela confiança em mim depositada. Farei com que suas ordens sejam cumpridas e, em breve,
o novo mundo estará pronto para receber os seus habitantes!” Obatalá retirou-se, seguido de
todos os Orixás presentes á reuniáo, com exceçáo de Odudua, única representante do sexo
feminino presente á assembléia. — E eu, Baba mi ? 7 — perguntou Odudua ao Grande Pai. —
Que missáo está reservada para mim neste evento? Ou será que o fato de ser mulher me
desqualifica para coisa táo grandiosa? — Vai-te daqui, Odudua. Nao subestimes a minha
sabedoria nem a tua importancia! É claro que estás incluida nos meus planos. Agora, segué
teu irmáo e obedece suas ordens como se minhas fossem! Junta-te a Elegbará8, ele saberá de
que forma ajudar-te. Do mesmo modo que ninguém pode fitar meu rosto, meus designios
também nao podem ser revelados a ninguém, nem a ti, minha filha dileta! Comovida com as
palavras do Pai, Odudua, deitando-se, beijou-lhe os pés, e murmurou agradecida: — Adukpé
ó, Baba- Mi! Mojubá ó!9 Obatalá, após retirar-se da reuniáo, dirigiu-se incontinente á casa de
Orumilá10, o Senhor da Sabedoria, com a finalidade de ali obter as orientaçoes fornecidas
pelo Oráculo de Ifá11. Era de suma importancia conhecer-se o Odu Ifá e saber que tipo de
vibraçao iría transcorrer na missáo. No interior da sala de adivinhaçáo, Orumilá, vestido com
panos brancos que lhe cobriam somente a parte de baixo da cintura, tendo na cabeça um fila12
e no coló um longo fío de contas verdes e amarelas, sentou-se numa esteira estendida sobre o
solo. Colocando entre suas próprias pernas um tabuleiro redondo de madeira entalhada,
espalhou em sua superficie um pouco de iyerofá, pó mágico destinado as consultas
oraculares13. Sobre a esteira, á sua direita, numa vasilha também de madeira entalhada, viam-
se inúmeros ikins, caroços de dendezeiro consagrados e polidos pelo manuseio constante14,
ao lado, além de ¡números búzios, cránios secos de aves, pequenas pedras arredondadas,
rabos-de-cavalos encastoados em forma de espanadores etc., além de um pequeno rosario, no
qual, oito favas de tamanho e forma idénticos encontravam-se distribuidas, ligadas por uma
corrente de prata, de forma equidistante15. Após acender uma pequena lamparina de algodáo
alimentada por azeite-de-dendé, que foi colocada na frente e á esquerda de um tabuleiro de
madeira, Orumilá retirou a tampa de uma pequena vasilha de barro cheia de agua, e que
estava colocada, de forma igual á lamparina, na frente do tabuleiro, so que do lado direito. Em
seguida, deu inicio a uma longa evocaçáo, em idioma lorubá, a língua dos Orixás. Enquanto
fazia gestos ritualísticos, o Senhor do Segredo aspergía agua, efetuando movimentos que
estavam ligados ao procedimento divinatório que iria acessar. — Ifá ji O! O Orumilá! —
declamou, enquanto esfregava entre as máos os 21 caroços polidos de dendé. Bi oló lokó, ki o
wá le o! Bi oló odó, ki o wá le o! Bi oló lode, ki o la le o! E, batendo com o pe esquerdo sobre
a esteira, prosseguiu: — Mo fi ese re te le bayí! Depois, batendo com o pe direito, disse: Mo fi
ese re te orí ení bayí, mo gbe oká lorí ate Fá, ki o le gbe mi ka lorí ate Fá titi laí! Dito isto,
Orumilá depositou os ikins no centro do tabuleiro e, traçando um círculo no sentido anti-
horário com os dedos medio e anular da máo direita, prosseguiu em sua evocaçáo: — Mo ko
le yi o ka, ki o le ko le yi mi ka, ki o le jeki omó yi mi ka, ki o le jeki owo yi mi ka!
Invertendo o movimento circular de sua mao, continuou: — Mojuba ó! Mojuba ó! Iba xé! Iba
xé! Iba! Neste momento, Orumilá mergulhou as pontas dos dedos da mao direita na agua da
quartinha e, depois, salpicando a agua sobre a térra, saudou —Ile mojuba! Iba xé! Traçando
sobre a esteira, com os mesmos dedos, uma linha imaginaria que, partindo do seu próprio
corpo, chegava até a borda do tabuleiro, Opanifá, recitou: — Mo la onan fun o tororó, ki o le
jeki owo to onan yi wá so do mi! Orumilá mergulhou por mais duas vezes os dedos na agua
da quartinha. Na primeira, aspergindo a agua sobre a térra disse: — Mo xé ile bayi! Na
segunda vez, enquanto salpicava a agua sobre a esteira na qual estava sentado, falou: — Mo
xé até bayi! Em seguida, o adivinho juntou, entre as maos, os ikins que havia colocado dentro
do opon e, enquanto os esfregava, ia rezando: 0. A gun xé ó! A gun xé! Bi akokó gorí iguí a
xé! 1. A gun xé ó! A gun xé! Bi agbe ji a ma xé! 2. A gun xé ó! A gun xé! Bi alukó ji a ma xé!
3. A gun xé ó! A gun xé! Elegbara, iba ó! 4. Ogun xé! Oxum a ma xé! Xangó iba e ó iba! 5.
Obatalá a ma xé! Bogbo Oxá a ma xé! 6. Obá Ayé, ati Obá Orun, iba yin ó! 7. Ború, boiyá,
boxexé, adukpé ó! Em seguida, o adivinho contou os ikins, e dos 21, 16 foram selecionados
para a consulta de Obatalá16. Nesse momento, pressentindo que a cerimónia de abertura do
jogo ja havia terminado, Obatalá pediu permissáo para entrar no aposento sagrado. — Agó
ilé!17— disse ele. — Agó iyé!18— respondeu Orumilá, permitindo o ingresso do Grande
Orixá. — Ború, boiye ó! Grande Adivinho! — saudou Obatalá. — Boxexé ó!19 Senhor das
Vestes Brancas! O que te traz diante de Ifá? — perguntou Orumilá. — A vida me trouxe
diante de Ifá! — respondeu Obatalá. — Que vida? — quis saber Orumilá. — A vida de que
fui, por meu Pai, encarregado de criar em outro plano de existencia! — explicou Obatalá. —
O Oráculo nao se equivoca! Vejamos quais sao os aconselhamentos de Ifá para tua grande
missao, qual o Odu que regerá teus trabalhos e quais sao as tuas determinaçóes! — fínalizou
Orumilá. A sala era simples, e suas paredes formavam um grande círculo, no centro do qual
uma haste de ferro, encimada por um pássaro do mesmo metal pousado sobre uma pequena
bandeja, de cujas bordas pendiam pequenas sinetas, encontrava-se firmemente fincada ao
solo20. No fundo, bem em frente á porta de entrada, uma grande esteira de palha trançada
servia ao mesmo tempo de tapete e de assento para o adivinho e seu cliente. Encostadas á
parede, em toda a volta, 16 pequenas tigelas de barro, pintadas com cores diferentes, serviam
de morada aos 16 genios do Oráculo de Ifá, os Odu-Meji, que determinavam o destino e os
caminhos de todos os seres vivos. Somente Orumilá, o Grande Babalaó, Pai que Possui o
Segredo, conhecia o misterio ali contido e que lhe foi confiado por Olórun nos primordios de
sua existencia. Obatalá, convidado pelo Oluó21, sentou-se na esteira, em frente ao tabuleiro
divinatório. Repondo os ikins dentro do recipiente de onde haviam sido retirados, Orumilá
pegou o rosario opelé e, segurando-o pelo meio, bateu suavemente com suas pontas sobre a
esteira, por tres vezes, lançando-o em seguida ao lado de sua perna direita, enquanto dizia em
voz alta: “Oxá re ó!” 22 Sem hesitar, o adivinho marcou com a ponta do dedo medio da máo
direita, sobre o pó espalhado na superficie do tabuleiro, duas colunas de quatro traços
verticais superpostos, começando da direita para a esquerda, formando desse modo duas
colunas, simultáneamente23. Marcado o signo sobre o opon, Orumilá, pegando uma especie
de sineta entalhada em marfím24, usou-a para golpear a borda do tabuleiro, enquanto fazia a
saudaçáo do Odu que se havia apresentado como responsável pela rnissáo; Ejiogbe25. —
Hekpa Baba!26. O Oráculo nao se aprésenta com bons augurios. Para que a missao seja
coroada de éxito e todos os objetivos, atingidos em sua plenitude, é necessário que seja
oferecido um sacrificio a Exu-Elegbará. Cinco galinhas d'angola, cinco pombos, um camaleao
e uma córrente com 2 mil elos deverao ser oferecidos a ele. Além disso, 200 caracóis igbin
deverao ser sacrificados aos pés de Olórun. So assim tua missao conhecerá o éxito! — disse
Orumilá. — Como? — bradou Obatalá indignado — Eu, o maior de todos os Orixás, o mais
poderoso, senhor da vida e da morte, táo importante que a mim foi confiada a criaçáo da Térra
e dos seres que nela habitarao, devo oferecer sacrificios a Exu para poder realizar o que
desejo? Se assim agisse, se concordasse em oferecer a Exu aínda que fosse um simples ovo de
galinha, com certeza estaría renunciando á minha posiçáo de comando sobre os Orixás e
outorgando a ele, Exu-Elegbará, direitos que a mim pertencem e dos quais nao abrirei máo!
Se Exu quer comer, que me acompanhe em minha missao, que colabore da maneira que lhe
for determinada por mim e, entáo, e somente assim, me disporei a recompensá-lo! — concluiu
Obatalá. — Ifá nao se equivoca, nem pode ser corrompido. O sacrificio foi determinado. Cabe
a ti, Poderoso Senhor, cumpri-lo ou negligenciá-lo. A escolha é tua, como tua é a
responsabilidade pelo que vier a ocorrer de bom ou de mal. Assim disse Ifá! — falou
Orumilá. Levantando-se, Obatalá retirou de sua bolsa alguns cauris27, que entregou ao
babalaó como forma de pagamentó e, sem dizer uma so palavra, retirou-se apressadamente,
tomando a direçáo do patio, onde os Orixás o aguardavam. Em um ampio terrado bem calçado
com pedras lisas e brancas, organizava-se a expediçáo. Ali estavam reunidos, entre outros,
Oluorogbo, Olufan, Eteko, Oguiyan, Oluofín e a própria Odudua28. Oguiyan, Orixá guerreiro
e impetuoso, dava ordens, conferia os suprimentos e mostrava-se empolgado como poucos
com a grande aventura que os aguardava. Em sua cabeça inteiramente raspada, uma especie
de cocar de longos pelos brancos de cabra, que se esparrama-vam sobre suas costas e ombros,
emprestava-lhe um aspecto terrível, agravado pelas pinturas brancas espalhadas por todo o seu
corpo, cuidadosamente feitas com efun, o giz branco recolhido do fundo do rio29. Sobre o
peito, diversos colares de marfim intercalados de contas azul-celeste30, em forma de tubos,
transparentes como o vidro, davam-lhe imponencia e majestade. Na máo direita, uma grande
espada de prata com cabo de marfim esculpido. Na esquerda, um almofariz, também de
marfim, com o qual pilava o inhame, seu alimento favorito. 0. Aviem-se! — gritava excitado
— Ejiogbe, o Odu da Vida, é o signo sob cuja égide estaremos doravante. É necessário, entáo,
que usemos tao-somente roupas brancas, imaculadamente brancas! Obatalá tomou a dianteira,
protegido por um grande pano branco, conduzido por quatro escravos albinos31, e todos o
seguiram formando uma imensa fila. O caminho que separava o Orun do local onde deveria
ser criada a Térra era longo, coberto de areia, e nao se manifestava nele qualquer forma de
vida. Jamáis havia sido explorado por qualquer dos Orixás Funfün, embora já fosse conhecido
por alguns Eboras, Orixás de categoría inferior dentro da rigida hierarquia reinante,
principalmente por Ogun, o Ferreiro do Orun, artesao metalúrgico em cujas oficinas eram
forjados todos os utensilios metálicos entao utilizados, principalmente as ferramentas usadas
pelo Orixá Oko32 em seus trabalhos na lavoura. Apesar do empenho de Oguiyan, e em
decorréncia de sua inexperiencia, a agua que os Orixás levavam em suas cabaças era
insuficiente para supri-los até o final da caminhada, e o Sol, inclemente, provocava-lhes sede,
o que fazia com que o consumo do precioso líquido aumentasse significativamente. Pela
primeira vez os Orixás experimentaram o desconforto da sede e do calor. As areias
escaldantes queimavam seus pés e o suor empapava suas vestimentas brancas, colando-as aos
seus corpos e aumentando aínda maís suas difículdades. Nada havia além da areia que se
perdía no horizonte, fundindo-se ali á abobada cor de laranja, onde o Sol, uma imensa bola
vermelha, dardejava fogo incessantemente. Em poucos dias, todo o estoque de agua se
esgotou por completo. Acostumados que estavam ao conforto e á fartura do palacio de
Olórun, os Orixás foram fíçando para tras, retornando as suas casas, desistindo da missao sem
maiores explicaçoes. Obatalá, no entanto, seguía em frente, dando provas de seu valor e
preocupado apenas em levar a termo a importante missáo que lhe fora confiada por seu Pai.
Alguns poucos, persistentes como ele, ainda o seguiam. Mas a sede e o calor tornaram-se
insuportáveis... — Ja está na hora de agir— dizia para si mesmo Exu, que de longe observava
a caravana. Acostumado com longas caminhadas, cabeça protegida por um gorro de couro em
forma de cone recurvado, cuja ponta, envergada para a frente, dava-lhe uma aparéncia um
tanto o quanto cómica, Exu seguía de longe a malfadada expedicáo. Um saiote curto, de
tecido leve, nas cores preta e vermelha cobria-lhe as pernas até a altura dos joelhos; no tronco,
um pano preto, com uma das pontas amarrada na cintura e a outra no ombro direito, deixava
aparecer o ombro esquerdo, onde ele apoiava seu cajado de madeira entalhada, o ogó. Era este
instrumento que lhe dava o poder da bilocaçáo, ou o de transportar-se, em fraçáo de segundos,
para os locáis que desejasse visitar, por mais remotos que fossem. Amarradas ao ogó,
inúmeras cabacinhas, de cores diferentes, contendo pos mágicos, presas por tiras de couro
adornadas de búzios, balançavam com seu andar desengonçado. Na cintura, uma faixa
vermelha também adornada de búzios completava sua indumentaria. Pegando o ogó e
girando-o sobre a própria cabeça, fezse envolver num redemoinho que o transportou um
pouco adiante de onde Obatalá se encontrava. Entáo retirou um pó de uma das inúmeras
cabacinhas de que dispunha e despejou-o sobre o solo, de onde surgiu uma palmeira, igui
opé33, que rápidamente atingiu certa altura, e cujas frondosas palmas puderam ser avistadas
por Obatalá, de onde se encontrava. Ao divisar a palmeira, o Grande Orixá rumou
imediatamente em sua direçáo, na certeza de que, no local onde um vegetal crescera de forma
táo exuberante, por certo haveria agua. Depois de caminhar algumas horas, Obatalá, ja sem
forças, chegou junto á palmeira, e grande foi a sua decepçáo ao constatar a falta de agua nos
arredores. Desesperado, sem raciocinar, cravou seu cajado no tronco do vegetal e, recolhendo
numa cabaça a seiva que dali escorria, bebeu com sofreguidao, até sentir-se plenamente
saciado. Ora, o líquido extraído da palmeira possui grande teor alcoólico e, em pouco tempo,
completamente embriagado, o Primogénito de Olórun caiu no mais profundo sonó. Obatalá,
ao beber o sumo fermentado da palmeira, romperá a principal interdiçáo imposta por seu Pai:
—Guarda-te de consumir qualquer tipo de bebida fermentada...34 Um a um, os poucos Orixás
que ainda o seguiam foram chegando e, vendo seu líder completamente embriagado, tentaram
inútilmente acordá-lo, mas, percebendo que isto era impossível, regressaram ao Orun sem ele,
certos de que a missáo fracassara. Ao lado de Obatalá ficou caído o precioso saco da
existencia — o apo-iwá... Depois de certificar-se de que todos ja haviam ido embora, Exu,
aproximando-se sorrateiramente, recolheu o saco e, atirando-o as costas, retornou satisfeito ao
Orun. Parte do seu plano estava cumprido. Afinal de contas, nao era ele o encarregado, por
Olórun, o Senhor de Todas as Coisas, de castigar a qualquer um que negligenciasse os
sacrificios determinados por Ifá? Sendo assim, sua obrigaçáo estava cumprida. Nem mesmo
Obatalá, o fílho preferido de Deus, tinha direito a desobedecer a Lei! — Pai — choramingava
Odudua aos pés de Olórun — meu irmáo perdeu-se no caminho para o Aié. Impetuoso como
ele so, adiantou-se da caravana e, sem ter quem nos guiasse, fomos obrigados a voltar. Além
disso, a agua que levamos era insuficiente para que pudéssemos prosseguir... — Agó, Baba
mi35 — era Exu que, com grande espalhafato, entrava trazendo nas máos o saco confiado a
Obatalá. — Que noticias traz meu mensageiro? — perguntou Olórun — Onde está meu
primogénito, e que fazes com o saco da existencia que a ele entreguei? — As noticias que
trago por certo nao faráo a alegría de meu Pai, e tremo so de pensar em cair no seu desagrado!
— responden Exu. — Fala logo, Exu! Quando te criei, coloquei em ti a ambigüidade de
caráter, a incoeréncia de atitudes e o poder absurdo de punir ou premiar sem o menor senso de
justica! Fala, meu mensageiro. Nada do que digas poderá surpreender-me, pois tudo sei do
que acontecen e do que vira a acontecer. Tudo faz parte dos meus planos, e nada acontece, em
todo o Universo, sem a minha permissáo. O bem e o mal necessitam-se mutuamente para que
possam existir, da mesma forma que a luz nao pode ser percebida se nao existirem as trevas.
Esta é a regra da criaçáo. Todas as coisas que aparentemente se opoem, na verdade se
complementam. Se completam e se integram para que o Plano se manifesté! Fala, entáo, sem
medo, pois tua palavra, como tua açáo, nada mais é do que a confirmaçáo e a realizaçáo do
que está por mim determinado desde sempre. Por acaso nao te outorguei o título de Elegbara,
que significa Aquele que Possui Poder ilimitado? Fala logo, Exu, que noticias trazes de meu
filho Obatalá? — disse Olórun. 0. Como meu Pai sabe, e segundo a Lei, nada se faz sem antes
consultar Orumilá, o Senhor do Oráculo de Ifá. De acordó com esta Lei, antes de partir,
Obatalá consultou Ifá e, na consulta, surgiu Ejiogbe, o primeiro dos 16 Odus, que, depois de
invocado sobre o opon, determinou que tipo de sacrificio propiciatorio deveria ser oferecido
por teu fiIho, para que sua missão chegasse a bom termo. Obatalá, no entanto, impetuoso e
consciente de seu poder, negligenciou o ebó36 e, garantindo-se no seu Axé37, partiu sem
nada fazer! Nem ao menos um banhozinho de ervas, meu Pai! — respondeu Exu. — Aquele
tolo prepotente! — comentou Odudua. — Cala-te, minha filha! Bem sei de tudo o que
tramastes com Exu para que a missáo de teu irmáo malograsse! Prossegue Exu, quero ouvir
tudo de tua própria boca! — continuou Olórun. — Pois é, Baba mi, sem ebó... sabe como é...
De repen- te a agua das cabaças acabou e no caminho escolhido todos os mananciais secaram.
Mas o Sol foi o grande culpado! Brilhou com tal intensidade, com tanto calor, que ninguém
podía; resistir sem um pouquinho de agua, e, assim, todos os Funfún foram ficando para tras,
desistindo, voltando para o conforto do Orun. Nao por que nao quisessem prosseguir, masi
porque nao tinham forças para fazé-lo. Mas Obatalá mostrou-se muito valioso! Cheguei a
temer que conseguisse... isto é, cheguei a temer que desistisse! — falou Exu. — Fala logo,
sem mais rodeios. O que aconteceu com meu fílho? — perguntou Olórun. — Bem, nao sei de
que forma miraculosa uma palmeira havia crescido no meio de coisa alguma, sem agua, sem
térra fértil, um verdadeiro portento!... Ai, Obatalá, coitadinho, torturado pela sede, furou com
a haste do seu cajado o tronco da palmeira “igui opé” e bebeu da sua seiva. Bebeu tanto, mas
tanto, que caiu no mais profundo sonó. Táo embriagado, Pai, que táo cedo nao poderá
acordar. Preocupado com o ocorrido, depois de em vao tentar despertá-lo, recolhi o saco da
existencia e o trouxe para que faças com ele aquilo que for do teu agrado — concluiu Exu. A
espessa franja de pérolas que cobria o rosto do Grande Deus, que nao podia ser visto por
ninguém, escondía a expressao divertida causada pela narrativa de Exu. Olórun sabia de tudo
o que acontecerá. Tudo fazia parte dos seus planos, nos quais seus fílhos, sem saber, eram
simples executores, por isso a encenaçáo de Exu muito o divertía. Tinha um especial carinho
por aquele Orixá, que provera de espirito moleque e zombeteiro, de inteligencia e de astucia
superiores a de qualquer outro Orixá, além de ter a missao de funcionar como o agente
mágico universal, o grande transformador, responsável pelos diferentes aspectos e formas
assumidos pela materia. Concedera-lhe aínda o poder ilimitado de se multiplicar em miríades
de Exus, sendo todos, ele mesmo. Nada viveria, nada teria forma, segundo seus planos, sem
possuir seu próprio Exu, individualizado, mas parte integrante do Exu principal, Agba-Exu38.
E, por este motivo, concederalhe também o título de Ijelu, associando-o ao Okotó, caramujo
cónico formado por espiráis que se desenrolam infinitamente. Dentre os inúmeros poderes
conferidos a Exu, Olórun permitiu que este se desdobrasse em 1.201 unidades, podendo,
sempre que quisesse, acrescentar a este número mais uma unidade, o que eleva ao infinito a
possibilidade de desdobramento de Exu. E ai está contido o misterio de sua associaçáo ao
número 139. — Odudua — disse Olórun com suavidade, dirigindo-se á princesa, prepara-te,
pois a ti confiarei a missão que Obatalá nao conseguiu levar a termo. Reúne teu povo e parte,
o mais rápidamente possível, em direçáo ao Océano do Nao Ser, onde deve ser criada a Térra.
Leva contigo o saco da existencia e procede de acordó com as orientaçóes que, na tua
presença, dei a Obatalá — ordenou. Erguendo-se e fazendo urna profunda reverencia, Odudua
falou comovida: — Adukpé ó, Olodumaré! Agirei de acordó com tua vontade, e nada será
capaz de me fazer falhar na missão que agora me confias! Antes, porém, peço que me
permitas consultar o Oráculo para saber sob a égide de qual Odu estarei durante minha
trajetória. — Nao precisas de minha permissáo para consultar Orumilá, o babalaó, pois esta é
a minha lei. Agora parte com as minhas bénçáos! — exclama Olórun. — Vem comigo, Exu,
preciso de tua ajuda, pois bem sei que sem ela nada se faz. Convoca todos os Eboras para
seguir ao meu lado, pois sem eles nao serei capaz de levar a bom termo a minha tarefa. Agó,
Senhor do Universo. Preciso partir — concluí Odudua. De costas para a saída, Exu e Odudua,
de máos dadas, retiraram-se, persignando-se respeitosamente. Ansiosa, Odudua dirigiu-se ao
patio do palacio, onde Ogun e Oxóssi40 aguardavam suas ordens. — Agora vou consultar Ifá.
Enquanto isso, reúnam todos os Eboras para nos auxiliar em nossa missáo. Precisaremos da
colaboraçáo de todos, e nao posso dar-me ao luxo de dispensar qualquer tipo de ajuda. Desta
forma, se algum dos Funfun quiser participar, digam-lhe que será bem-vindo ao nosso grupo!
— concluí a princesa. E, com determinaçáo, Odudua saiu ao encontró de Orumilá, o adivinho.
Precisava de suas orientaçoes. Nao se atrevería, como seu irmáo, a seguir viagem sem antes
oferecer os sacrificios determinados pelo oráculo. Ja no interior do Igboduifá 41, a casa de Ifá,
Orumilá, depois dos procedimentos de praxe, lançou o opelé para Odudua. Duas colunas de
sinais duplos foram marcadas na superficie do Opon, e o sacerdote exclamou em voz alta:
“Mi kan Oyeku Meji!”42 Pegando seu instrumento de marfím, o irofá, Orumilá fez a
saudaçáo do Odu Oyeku Meji43, que se apresentara como responsável pela consulta e por
toda a missão. Terminada a reza em Iorubá, Orumilá lançou por duas vezes consecutivas o
Opelé e, depois de fazer novas marcas sobre o tabuleiro, bradou exultante: — Iré O44!
Princesa, apesar de prenunciar vitória, o caminho que te conduz é o mesmo percorrido por
Iku, a morte. Irás criar um mundo composto de materia perecível onde, um dia, criaturas
semelhantes a nos e ao nosso Grande Pai iráo habitar, em corpos materiais, feitos da mesma
esséncia daquele mundo. A Iku45 cabera a missão de devolver á Térra os seus corpos, após
retirar deles o Espirito, que pertence ao nosso Pai Olodumaré, aquele cujo rosto nao pode ser
fitado por ninguém e cuja origem reside nele mesmo. E necessário que, a partir de hoje,
passes a usar roupas inteiramente negras, pois esta é a cor do Odu que te dará caminho.
Criarás e reinarás sobre a Térra sob a influencia de Oyeku Meji, Odu que representa a
saturaçáo da materia em sua densidade absoluta, o que induz á busca do retorno á
espiritualidade, mudança inexorável que so pode ser obtida pela morte! — concluiu Orumilá.
Assustada, Odudua balbuciou: — Como, Grande Olhador, sendo eu uma rainha, terei que
submeter meu reino aos caprichos de Iku, pai da tristeza e do pranto? — perguntou Odudua.
— Esta é a determinaçáo de Olórun, sementé agora revelada por Ifá. Iku é o Orixá mais fiel
dentre tantos que habitam o Orun. E o único dentre nos que jamáis deixará de cumprir
integralmente sua missão, sem se deixar corromper encontrando os seres vivos onde quer que
se escondam, sem distinguir ricos de pobres, fortes de fracos, homens de muiheres. Todos
aqueles que viverem materialmente, um dia seráo montados por ele, da mesma forma que um
cavaleiro monta em seu cávalo. E o único Orixá que um dia tomará a cabeça de todos os seres
humanos, sem querer saber qual é a sua religiáo ou sua condiçáo social. E nao te espantes
quando, no futuro, vires alguns homens ansiarem pela chegada de Iku, certos de que somente
ele poderá aliviá-los de suas mazelas e dos sofrimentos impostes pelo encarceramento do
espirito na materia. E, embora tenham a certeza de que somente Iku poderá reconduzi-los ao
Orun, onde desfrutarao dos beneficios de Nosso Pai, nao teráo o direito de invocá-lo para
praticar o suicidio ou o assassinato de seus semelhantes. Aqueles que agirem desta forma
estarao condenados a vagarem como espectros, sem descanso, no mundo das trevas. Assim
disse Ifá! Para que tua missáo chegue a bom termo, deves oferecer á Elegbara um sacrificio
composto de cinco galinhas d'angola, cinco pombos, um camaleáo e uma corrente com 2 mil
elos. Além disso, 200 caracóis igbin46 deveráo ser sacrificados aos pés de Olórun. — Assim
farei, Poderoso Adivinho! Aqui estáo os 16 cauris com os quais pago a consulta, pois bem sei
que, todo aquele que provoca o ruido feito pela corrente de opelé, tem que pagar por isso.
Levantando-se, depois de colocar os búzios sobre a esteira, Odudua curvou-se respetosamente
diante de Orumilá, dizendo: — Boru, Boiye ó! — Boxexé ó!, segué em paz em busca do teu
destino! — exclamou Orumilá. Imediatamente, a jovem princesa providenciou seu ebó.
Primeiro, ofereceu a Exu as cinco galinhas d'angola, os cinco pombos, o camaleáo e a
córrente de 2 mil elos que Ogun forjara pessoalmenre para ela. Exu devolveu-lhe, entáo, uma
galinha, um pombo, o camaleáo e a corrente, da qual retirou um elo que, colocando no próprio
braço, passou a usar como adorno. — Quando chegarmos á metade do caminho, solta com
vida estes animáis, eles te seráo de grande valia. A corrente leva contigo, pois também te será
útil no momento certo — falou Exu. Em seguida, Odudua, após banhar-se com o sumo de
ervas frescas, dirigiu-se ao palacio de seu Pai, que a repreendeu por nao haver ainda partido.
— Como? Ainda nao seguiste para realizar a missão que te confiei? — disse ele. — Perdáo,
meu Pai! Nao poderia partir sem antes oferecer os sacrificios propiciatorios determinados por
Ifá. Aqui estáo os 200 igbins que me foi ordenado oferecer-te, espero que os aceite e que esta
oferenda possa tornar meus objetivos propicios — explicou Odudua. Recebendo a oferenda,
Olórun devolveu um dos caracóis á sua filha e, abrindo a almofada apéré-odu, em que sempre
está sentado, para em seu interior depositar os igbins, notou que nao havia colocado, no saco
da existencia, uma pequena cabaça contendo térra, que imediatamente entregou a Odudua. No
patio, os Orixás, interrompendo suas atividades, nao queriam acreditar no que viam. Odudua,
vestida inteiramente de negro, e com vestes masculinas!... — Ogun, Senhor da Guerra e dos
Caminhos, tu seguirás na frente indicando a direçao que devemos tomar. Sob tua orientaçáo
chegaremos mais rápidamente ao local determinado por meu Pai nos limites do Orun, onde
fundaremos Aié, o mundo material — disse ela. — Teus desejos sao para mim como ordens
de Olórun. Seguirei á frente de nossa gente e providenciarei para que nenhum obstáculo possa
interromper nossa jornada. A teu servido coloco a espada que forjei, com minhas próprias
maos, especialmente para esta missão — disse Ogun. — E tu, Ossáim, ja estás pronto para a
viagem? Onde está Aroni, o anão desprovido de uma das pernas que sempre te acompanha e
que te serve de escudeiro?47 — perguntou Odudua. — Estou pronto, lyá Male!48 Aroni
recolhe, neste momento, as sementes das plantas que espalharei sobre a Térra que irás criar, e
que iráo fornecer alimentos e medicamentos as especies que ali viveráo. Apenas me reservarei
o direito de manter comigo o segredo da utilizaçáo litúrgica destas plantas porque mais tarde
irei transmiti-lo a uns poucos escolhidos, nos quais eu tiver inteira confiança — falou Ossáim.
— E tu, Oxóssi, Senhor da Caça, ja preparaste nosso suprimento? Lembra-te de que serás o
encarregado de providenciar alimentos com fartura, nao so para nos, como também, e
principalmente, para os seres que habitaráo o novo mundo — lembrou Odudua. — Eu te
saúdo, Odudua, Senhora da Vida e da Morte, Grande Ventre do Universo! Os suprimentos ja
foram providenciados e nada nos faltará, como nada faltará aos homens que souberem seguir
as regras da natureza, respeitando-a e resguardando-a da destruiçáo que eles mesmos faráo
surgir sobre a Térra — disse Oxóssi. — Entáo vamos! Ogun, da a ordem de partida! —
exclamou Odudua. Erguendo sua espada, Ogun ordenou que, em nome de Olórun, todos o
seguissem ordenadamente e, assim, a expediçáo partiu rumo ao desconhecido. Encarapitado
no alto de um toco de árvore, Exu, divertido, a tudo assistia... — O que achas de tudo isto? —
perguntou Orumilá que, sem ser percebido, aproximara-se de Exu. — O que acho? Nao acho
nada! Tenho é certeza de que acabou o nosso sossego e a nossa boa vida. A partir de agora, so
trabalho, trabalho e mais trabalho! — constatou Exu. — Existe uma coisa, Exu, que nao ousei
revelar a Odudua durante a sua consulta. Uma coisa que talvez fizesse com que ela desistisse
de seus planos, preferindo ficar aqui no Orun, no conforto em que sempre viveu... — disse
Orumilá. — E que coisa táo grave é esta? — interrompeu Exu. — Será que sou
suficientemente confiável para saber? — Claro que es, caso contrario eu nao teria tocado no
assunto. Na consulta de Odudua, após haver encontrado Oyeku Meji, lancei por duas vezes
meu opelé, e dois Odus vieram á minha presença portando diferentes mensagens, que
complementavam o recado de Oyeku. Primeiro surgiu Odi Meji49 avisando que, para que a
vida possa surgir no novo mundo, os Orixás deveráo abdicar, talvez para sempre, do
privilegio de viverem no Orun. No inicio, viveráo da forma espiritual em que agora vivem,
mas, com o tempo, em contato permanente com a materia grosseira que iráo criar, deveráo,
também, possuir um corpo desta mesma materia, sujeitando-se entáo a todas as necessidades
impostas por ela. E, presos a corpos materiais, nao haverá meios de regressarem ao Orun. Na
outra jogada do opelé, encontrei Iwori Meji50, Odu que fala dos caminhos da espiritualidade
e que determina a liberaçáo do espirito do jugo da materia. Este Odu estabelece uma ligaçáo
entre o Orun e o Aié, significa literalmente cortar a cabeça, o que pressupóe o rompimento
dos liames do espirito com seu corpo material, ou, melhor dizendo, com os corpos que iráo
compor um ser humano, que seráo em número de quatro, incluido ai a forma espiritual,
partícula desprendida de Nosso Pai e que será conhecida como Ipori. Somente Ipori, por ser
divino, será imortal. Os outros corpos — Emi, o sopro de vida. Ara, a forma material densa, e
Ojiji, a forma telúrica, guardiáo criado pela própria Térra e encarregado de devolver a ela a
materia emprestada para a confecçáo do Ara — serio submetidos á açáo de Iku, a Morte. Mas
Ipori, uma vez liberado de seus corpos, deverá regressar ao Aié, tantas vezes quantas se
fizerem necessárias, para que o processo de evoluçáo seja completo. Alguns deles, depois de
muitás passagens por diferentes corpos, se revoltaráo e, reunidos mas impotentes para
evitarem seus próprios renascimentos, formaráo um grupo denominado Egbe Orun Abiku,
nasceráo e provocaráo a própria morte, de forma precoce, causando luto, dor e sofrimento as
familias as quais venham a pertencer. Estes espíritos se autodenominaráo Abikus — os
Nascidos Para Morrer. Um culto será revelado aos homens pelo meu Oráculo, ensinando-os
de que forma, por meio de uma complexa liturgia, poderáo evitar a açáo maléfica destas
crianças malditas que, por intermedio de um pacto, concordaráo em viver o período de vida
normal dos seres humanos. — Se é assim, Oluó, nos, Orixás, uma vez assumin-do o corpo
material, também estaremos sujeitos a morrer? — perguntou Exu. — Para que morramos,
sequer é necessário que tenha-mos uma forma material. Os deuses, com exceçáo de Olórun,
estaráo passíveis da morte, assim que a raça humana aflorar em toda a plenitude de sua
inteligencia. Os humanos teráo o poder de decisáo sobre nossos destinos. A eles cabera o
direito de decidir se continuaremos vivendo ou se devemos morrer — disse Orumilá. — Mas
como, Orumilá? De que forma poderáo eles determinar a nossa morte? — perguntou mais
uma vez Exu. — A partir da criaçáo destes seres, cada um de nos deverá estabelecer entre eles
o seu próprio culto, determinando a liturgia, as regras de procedimento, enfím, tudo aquilo
que é inerente aos nossos atributos individuáis. Os humanos, querido amigo, se multiplicaráo
e se espalharao sobre a Térra. Os grupos, uma vez separados e distanciados, perderáo o
contato entre si, esqueceráo sua origem comum e, adaptando-se ao ambiente em que vivem,
criaráo culturas diferentes, falarao línguas diferentes e promoveráo guerras entre si, olvidando
que sao irmaos, filhos de um Deus Único e Absoluto, Olodumaré, Olórun ou Olófín, nao
importando que nome eles lhe déem. Em cada cultura seremos cultuados sob nomes
diferentes, e em diversas formas ritualísticas. Aqueles, dentre nos, cujos cultos se
extinguirem, estarao condenados á morte pelo esquecimento do homem, o senhor da criaçáo.
Em outras palavras, o culto dos homens, suas oferendas e preces, representarao o nosso
alimento, a nossa possibilidade de sobrevivencia — explicou Orumilá. — Quer dizer, entáo...
— começou a falar Exu. — Quer dizer que os deuses morreráo quando seus cultos deixarem
de existir; quando os homens, abandonando-os, se esquecerem de que eles existem, que sao
forças vivas, dotadas de poder e de axé. Depois que o homem, adquirir por meio da sebedoria
todo o poder que lhe está reservado, e compreender que Olórun vive nele e que para o adorar
basta interiorizar o culto. Que o verdadeiro templo de Deus é seu próprio corpo. Que respeitar
a si mesmo e aos seus semelhantes como manifestaçao material de Deus e síntese de toda a
natureza é praticar a verdadeira religiáo, ai nos, Orixás, Eboras, Anjos, Arcanjos, Devas,
Pitris, ou qualquer que seja o nome pelo qual nos venham a conhecer, morreremos e
retornaremos ao Orun para usufruir dos seus prazeres — continuou Orumilá. — É, Grande
Senhor do Segredo, mas enquanto esse momento nao chega, tratarei de estabelecer meu culto
entre os hornens, e podes crer que me divertirei muito á custa deles e de sua ignorancia —
comentou Exu. — Trata disto com seriedade, Exu. Bem sabes da tua importancia dentro do
sistema, e seja qual for o culto, a qualquer que seja o Orixá, estarás também sendo cultuado de
forma muito especial. Nenhum procedimento religioso será aceito sem que tu sejas
homenageado em primeiro lugar. Tu, com certeza, serás o último de nos a sucumbir diante de
Iku, pois, a partir do momento em que isso ocorrer, tudo no Universo se desintegrará. As
formas materiais deixaráo de existir e o vazio absoluto tomará conta de todos os espaços. —
Tu, Exu, es a energía que reúne os átomos, possibilitando a diferenciaçáo da materia e, por
este motivo, todas as coisas e todos os seres vivos possuiráo uma parte de ti, e, para tanto,
deverás multiplicar-te infinitamente, sem perder a qualidade e o poder de tua esséncia
primordial, por isto teu nome — Exu — significa esfera — explicou Orumilá. — O que me
dizes, Mestre dos Sabios, me assusta e ao mesmo tempo me envaidece. Nao gostaria, a pesar
de tudo, de ser obrigado a modificar meu caráter ou ter que abandonar o meu jeito brincalháo
de encarar os acontecimentos, por mais serios que sejam — falou Exu. — Como poderlas
deixar de ser como es, se esta é a vontade de Olórun? É ai que reside o teu poder. Sentimento
algum irá, jamáis, alterar a tua conduta ou a tua maneira de ser. Por este motivo deverás
funcionar como arbitro, policial, carrasco e dispensador. Serás o premio ou o castigo, nao so
dos seres materiais, como também das entidades espirituais, todos, com exceçáo de Nosso Pai,
seráo submetidos á tua açáo. Serás visto por muitos como um espirito rebelde, que contesta o
poder de Olodumaré e, em muitos casos, servirás de arma do homem contra ele próprio, que,
associando-te ao mal, tirará partido da ignorancia de seus semelhantes para manipulá-los e
explóra-los das mais diversas formas. Alguns dos teus fiéis, mesmo sem a plena compreensáo
de tua verdadeira funçao, usaráo teus nomes, para praticar o mal, e diversos também iráo
confundir-te, com as Ajes,51 espirites femininos ligados á prática condenável da magia negra
e da feitiçaria — continuou Orumilá. — Saberei como tratar esta gente! Ah, sem dúvida que
saberei... — exclamou Exu. — Tenho certeza de que saberás, pois es sabio em tuas
molecagens. Agora, chega de conversa. Acompanhemos a caravana, pois Odudua conta com
nossa ajuda e nao podemos faltar-lhe — concluiu Orumilá. Tendo Ogun como batedor, a
caravana prosseguia decididamente no caminho que os conduzia ao grande destino. Oxóssi
distribuía os alimentos com muita equidade e parcimónia, e Oxum52, Orixá da beleza,
abandonando seus rompantes de vaidade feminina, cuidava da agua, economizando-a ao
máximo para que nao faltasse. A jornada era longa e o destino incerto... Traduçáo da
evocaçáo feita por Orumilá na abertura do jogo. Ifá, eu te evoco! Oh, Orumilá! Se vocé foi
para o campo, volte para casa! Se foi para o rio, volte para casa! E, se estiver caçando, volte
para casa! Eu bato meu pe esquerdo no chao para que teu pe esquerdo fique junto a mim. Eu
seguro teu pe direito e, para que isto aconteça, bato meu pe direito no chao. Eu construo uma
casa ao redor de ti, para que possas construir uma casa ao meu redor. So tu podes prover-me
de muitos filhos. So tu podes conceder-me muito dinheiro! Eu te reverencio! Eu te reverencio!
Eu me curvo diante de ti! Eu presto reverencias á Térra. Eu abro um caminho pelo qual o
dinheiro vira a mim. Eu refresco a térra. Eu refresco a esteirá. Permita-me subir e permanecer
no alto, Enquanto o akokó for o maior entre as árvores. Subir e permanecer! Enquanto o agbe
assim o permitir. Subir e permanecer. Enquanto o alukó me der permissáo. Subir e
permanecer! Eu reverencio a Elegbara. Que Ogun me dé permissáo. Que Oxum me dé
permissáo. Salve Xangó! Salve!. Que Obatalá me dé permissáo. Que todos os Orixás me
déem permissao. Reís da Térra e Reis dos Céus. Me déem seu consentimento!. Orumilá indica
o ebó. Orumilá recebe o ebó. Orumilá aceita o ebó!. Eu lhes agradeço!.
Capítulo 2
O orgasmo cósmico
— Senhora! Senhora! — era Aroni, o anão de uma so perna, que, saltitante, mas veloz, e sem
abandonar seu cachimbo de casca de caracol, aproximava-se com noticias da frente da coluna
que se adiantara alguns quilómetros. — Ogun manda avísa-la que, de onde se encontra, ja é
possível divisar os limites do Orun! O deserto termina abruptamente e, a partir daí, nada mais
existe, a nao ser as trevas! Suplica que te apresses, pois agora cabe a ti executar as ordens de
Olórun! — Ja vou, ja vou Aroni! — respondeu Odudua mal humorada — Justo agora, que
resolví descansar um pouco! — disse Odudua. O ponto havia sido atingido, e Odudua,
esquecendo a fadiga, conclamou a todos que a seguissem o mais rápidamente possível ao
local onde Ogun, o batedor, se encontrava. Excitados, todos caminhavam entoando cánticos
de louvor a Ogun, tendo á frente a Senhora das Vestes Negras que, a partir daquele momento,
assumia o comando. Algumas horas depois o grupo se juntou a Ogun, e o que eles viram
deixou-os mudos e assombrados. Diante deles o deserto de areia terminava, como se fosse a
borda de um imenso tabuleiro que se estendia infinitamente á direita e á esquerda. Até mesmo
a abobada cor-delaranja terminava naquele local, e a luz vermelha do Sol nao penetrava
naquele espaço incomensurável, como se uma parede negra impedisse sua passagem. Adiante,
o nada, o vazio absoluto, aquilo que chamavam, sem nunca terem conhecido, o Océano do
Nao Ser. Um grande abismo, indecifrável e tenebroso, se abria no limite do deserto. Em cima,
trevas. Embaixo, trevas. Adiante, trevas. E os Orixás, aterrorizados, persignaram-se diante do
desconhecido e, humildemente, rostos colados ao solo, exaltaram a grandiosidade de Olórun,
representada ali pelo assombroso misterio que se descortinava. Por algum tempo
permaneceram assim, corpos estendidos sobre o solo, amedrontados diante do ignoto.
Conheciam Olórun, privavam de sua deliciosa companhia, mas aquele era o seu lado ainda
nao manifestado. Dele nada sabiam, a nao ser que tinham que lhe dar forma, preenchélo de
vida, de luz e de calor. Mas, como fariam isto? Seriam eles suficientes para táo grandiosa
missáo? Apenas uma certeza os consolava e os enchia de coragem e confiança: Deus tudo
sabe! Odudua foi a primeira a erguer-se e, ordenando que todos se pusessem de pe, colocou
no chao o saco da existencia. Nao podia perder mais tempo. — Ossáim! Arranja-me uma
cabaça, a maior de que dispuseres. Corta-a ao meio, retira do seu interior todas as sementes e
impurezas e coloca-a aos meus pés! Ato continuo, retirou do saco da existencia a cabacinha
branca e, suspendendo-a sobre a própria cabeça, murmurou contrita: “L'ojú Olófin! L'ojú
Olórun! L'ojú Olodumaré! A ma xé! Iba é ó, iba!”53 Em seguida, Odudua derramou sobre a
palma da máo direita, estendida, o pó branco nela contido e soprou-o com força em direçáo ao
vazio. O pó, espalhando-se no ar, transformou-se, miraculosamente, em um pombo branco, o
mesmo que, depois de oferecido a Exu, lhe foi devolvido. A bela ave voou trevas adentro, e,
por onde passava, espalhava o pó, branco como suas penas. Imediatamente surgiu no espaço
uma suave brisa que, aumentando de intensidade, transformou-se em forte ventanía, formando
um turbilháo que se chocava furiosamente contra as trevas, envolvendo-as em redemoinhos,
abrindo brechas, tomandoa e substituindo-a por luz. Por onde passava o vendaval, as trevas
cediam espaço á luz. Em algum tempo, todo o espaço ácima da linha do horizonte estava claro
e iluminado, e a abobada celeste que o encimava era de um azul claro e profundo. Estava
criado o elemento Ar, e com ele nascera a luz. Virando-se para uma das mulheres que fazia
parte do grupo, Odudua ordenou: — Oiyá, comanda o vento, cavalga-o e domina-o para que
possa servir fielmente aos nossos planos! — disse ela. Uma bela jovem, inteiramente vestida
de vermelho, coló ornado de incontáveis colares de coral, adiantou-se do grupo e, curvando-se
diante da princesa negra, falou: — Farei segundo a tuá vontade Iyátemi54, os ventos se
submeteráo as minhas ordens, pois assim desejas! — falou a princesa. E, erguendo os braços
em direçáo ao céu, fez com que o vento se acalmasse ¡mediatamente. Depois de depositar a
pequena cabacinha branca dentro da grande cabaça que Ossáim havia colocado aos seus pés,
Odudua retirou do saco da existencia, a cabacinha de cor azul e, agindo da mesma forma,
soprou o pó contido em seu interior, desta vez para a parte de baixo do abismo.
Imediatamente o pó transformou-se no grande caramujo igbim que lhe havia sido devolvido
por seu Pai, escolhido entre os 200 que faziam parte de sua oferenda. O caramujo pairou no
espaço, como que flutuando, e dele comecou a jorrar agua, como de uma cachoeira, e, em
pouco tempo, o caramujo desapareceu em direçáo ao abismo, onde a agua se acumulava e
crescia em quantidade, formando um océano onde, momentos antes, nao havia coisa alguma.
As aguas, agitadas pelo vento, formaram gigantescas vagas que se chocavam contra o imenso
paredáo rochoso, agora visível, que determinava o limite do Orun. Extasiados diante da visáo
das aguas revoltas, os Orixás permaneciam mudos e circunspectos. Somente Odudua, tomada
de uma energía que até entáo desconhecia possuir, continuava em seu trabalho. — Yemanjá!
— disse, dirígindo-se a uma mulher de roupas brancas. — Assume o comando do Elemento
Agua. Separa-o da maneira que melhor te convier e mande nele, de forma que possa ser útil
aos nossos designios. — Divide este comando com Oxum. Que ela se encarregue da agua
doce que, em forma de rios, cortará, em todas as direçóes, a Térra que estamos criando,
umidificando-a e tornando-a fértil para que os seres que nela venham a habitar possam viver
com todo o conforto. Adiantando-se, a bela senhora de seios fartos, cobertos apenas por
¡números colares de pérolas e contas de cristal, curvou-se respeitosamente diante de Odudua
e, pegando pelas máos a uma jovem dengosa que havia distribuido a agua consumida pelos
Orixás durante a viagem, assim falou: — Adukpé, Grande Maé da Térra! Eu e Oxum, minha
filha, nos encarregaremos do Elemento Agua e daremos conta, satisfatoriamente, de nossa
incumbencia. Se me permitires, Senhora, criarei cachoeiras lindas como as que existem no
Orun, e com os rios que me ordenaste criar, bordarei a superficie da Térra, tornando-a bela,
além de aprazível. Nestes lugares, Máe, pretendo estabelecer meu culto, e, com o ouro contido
no leito dos meus ríos, criarei para mim mesma inúmeras jóias e adornos, com os quais
ressaltarei minha beleza e minha feminilidade, se assim me permitires — disse Yemanjá. —
Faz da maneira que melhor te convier, tens a minha permissao! — concordou Odudua.
Yemanjá e Oxum, erguendo as maos, lançaram sobre as aguas o seu Axé, e estas
imediatamente se acalmaram. O océano revolto aplacou-se e tornou-se sereno como um
grande lago de aguas azuis e transparentes. A cabacinha azul foi colocada dentro da grande
cabaça, ao lado da branca, e a pintada de preto foi retirada do saco, passando em seguida pelo
mesmo procedimento imposto as que a sucederam. O pó preto soprado por Odudua pousou na
superficie da agua e, sobre ele, surgiu urna galinha d'angola que ¡mediatamente pós-se a
ciscar, espalhando o pó que, em contato com a agua, transformou-se em lama, que se foi
espalhando em todas as direçóes. E, logo, um mar de lama, impossível de sustentar qualquer
coisa, substituiu as aguas que anteriormente ocupavam aquele espaço. Virando-se para uma
Iabá55 integrante do grupo, vestida de azul e branco, Odudua deu novas ordens: — Nana,
anciá dos Orixás, assume o comando da lama para que, separada da agua, surja a térra, sólida
e firme para ser habitada. A lama é o elemento primordial de nossa criaçáo. Tudo vira déla, e
tudo a ela será devolvido depois de cumprida a missáo que for destinada a cada ser e a cada
coisa. Serás, portante, encarregada desta funçáo: devolver á lama o que déla provém. Como
símbolo desta outorga, deves construir, com tuas próprias máos, um cetro de fibras das folhas
de dendezeiro, enfeixadas e atadas com tiras de couro ornadas de búzios. A ponía superior
deverá ser dobrada para baixo e presa ao corpo do cetro, formando o símbolo do poder
ancestral feminino do qual serás tu, Nana, a representante entre os humanos. Teu fílho,
Xamponan, será, a partir de agora, conhecido pelo nome de Obaluaié, que significa O Senhor
da Térra. Ficará ele encarregado ate recolher e devolver á Térra os Ojijis e os Aras dos seres
viventes. Possuirá, como tu, um emblema-símbolo desta atribuiçáo, confeccionado com os
mesmos elementos, e da mesma forma que o teu, tendo, como única diferencia, a ponta ereta,
como um falo, símbolo do poder ancestral masculino. A este símbolo será dado o nome de
Xaxará. Munido deste fetiche, poderá ter controle absoluto sobre as doenças que se instalaráo
sobre a Térra, dizimando todas as formas de vida que aqui existiráo. Poderá, com isto, curar
ou espalhar as doenças entre os homens e os animáis. O interior da Térra pertencerá a Onilé, e
tudo que nela estiver contido, seja material ou espiritual, fícará sobre o seu comando. Onilé
deverá ainda estabelecer o culto a Egungun,56 mas isto so depois que o primeiro homem
criado for levado por Iku — ordenou Odudua. Os tres Orixás convocados colocaram-se ao
lado de Odudua, prontos para agir. — Aguardem um pouco! — falou a princesa. — Para que
possam agir satisfatoriamente precisaráo da ajuda de um quarto elemento, o Fogo, e, retirando
do saco a cabaça vermelha, soprou seu conteúdo, como ja fizera antes. O pó vermelho, uma
vez espalhado sobre a lama negra e mole, metamorfoseou-se em um camaleao, que começou a
lançar labaredas pela boca, tornando-se, ele mesmo, incandescente. O fogo propagou-se sobre
a lama e, em pouco tempo, nada mais havia que nao estivesse tomado pelas chamas. As aguas
ali contidas transformaram-se em vapor que, subindo ao céu, formou pesadas nuvens, escuras
e carregadas de eletricidade. Uma tempestado eclodiu, com os elementos se manifestando em
toda a sua pujança. Raios riscavam o céu, clareando a escuridáo provocada pelas nuvens
densas. Uma chuva torrencial desabou sobre as chamas que cobriam todo o abismo. Cursos
d'água se foram formando, e, através deles, o líquido corria em direçáo aos locáis mais baixos,
onde se acumulava. O fogo, combatido pela chuva, abria brechas e penetrava no solo,
formando grandes bolsas, onde a materia incandescente transfórmava-se em magma
vulcánico, expelindo gases que, explodindo portentosamente, provocavam tremores de térra e
com isso surgiram as montanhas e os abismos que ¡mediatamente eram invadidos pelas aguas
enlouquecidas. O vento, furioso, acoitava as aguas, criando ondas gigantescas que invadiam e
retomavam os espaços perdidos para a térra. Estava estabelecido o caos, e nele ocorria o
orgasmo cósmico, que daría surgimento á vida sobre o mundo novo. — Exu, assume o
comando do fogo e nomeia tantos auxiliares quantos forem precisos para controlá-lo — gritou
Odudua em meio á confusáo estabelecida. — E pra ja, minha Rainha! — respondeu Exu e,
fazendo uso do poder que lhe foi conferido, passou a dar ordens: —Aganju, encarrega-te da
lava incandescente, prende-a nas entranhas da Térra e nao permitas que saia dali, a nao ser
que assim desejes. Doravante, Aganju, tu reinarás sobre o magma vulcánico, semelhante em
tudo ao teu caráter irascível. E tu, Xangó, reinarás sobre o fogo manifestado na superficie da
Térra e que pode ser controlado com muito mais facilidade, principalmente aquele produzido
pelo efeito dos raios, fogo celeste que ficará sobre o controle de Oyá, a Senhora dos Ventos.
Desta forma. Grande Obá, serás representada pelo som do trováo que é sempre precedido pelo
raio, da mesma forma que o fogo é resultado da sua açáo sobre a térra — estabeleceu Exu. E,
assim, Exu distribuiu aos companheiros o comando sobre o elemento Fogo em suas diferentes
manifestaçoes. Os Orixás movimentavam-se em todas as direçóes, controlando e organizando
a situaçáo que, lentamente, foi ficando sob seu dominio. Quando tudo se acalmou, Odudua
pegou a cabaça contendo a térra que lhe fora entregue por Olórun, e que havia ficado
esquecida dentro de sua almofada. Nesta térra, especialmente preparada pelas máos de Deus,
eram encontrados os embrióes das diversas formas de vida que iriam habitar aquele mundo.
Odudua pegou a corrente de 2 mil elos, prendeu-a firmemente á borda do abismo e, com a
térra miraculosa dentro da cabaça que estava amarrada á sua cintura, desceu, destemida, em
direçáo ao desconhecido. No meio da descida, parou e gritou para o camaleáo: — Ole? Kole?
(A térra está firme? A térra nao está firme?) Como resposta, o reptil, que ja. havia retomado
sua forma original, andou em todas as direçoes, mostrando que o solo já podía ser pisado com
total segurança. Sem mais delongas, a Princesa Negra desceu até o chao e, ao pisá-lo,
imprimiu nele a marca de seus pés, o Ese Ntayé Odudua57. O que encontrou, foi, de certa
forma, decepcionante. Uma enorme extensáo de solo lamacento, cortado por correntes d'água,
montanhas, de cujos topos jorravam torrentes de lavas incandescentes que iam,
inevitavelmente, desembocar em grandes extensoes cobertas pelas aguas, provocando, no
encontró, estrondos assombrosos e imensas nuvens de vapor que, subindo, acumulavam-se até
a saturaçáo, para cair, em seguida, em forma de chuvas monumentais. O vapor formado por
diversos tipos de gases espalhava-se por toda a superficie, impedindo que se enxergasse
qualquer coisa que estivesse a mais de 10 metros de distancia. Nenhum sinal de vida. Tudo
era desolaçáo! Depois de certifícar-se de que o solo estava firme, Odudua començou a jogar,
em sua superficie, a térra que lhe fora entregue por seu pai e que, os quatro animáis, símbolos
dos quatro Elementos, trataram de espalhar em todas as direçoes. Estava plantada a sementé
da vida. Os Orixás vieram em seguida á Odudua, e cada um tratou ¡mediatamente de dar
continuidade ao trabalho de organizaçao do novo mundo. Ossáim e Aroni, entregaram ao
pombo as sementes das plantas que haviam trazido do Orun, e este as espalhou sobre a térra.
O camaleáo e o igbim, por sua vez, ajudavam no desenvolvimento dos embrioes da vida
animal, selecionando-os de acordó com suas aptidóes, para viverem sobre a térra ou dentro
das aguas. Enquanto isso, a galinha d'angola cuidava de alimentá-los e dar-lhes condiçóes de
se reproduzirem. Multo tempo se passou e muito trabalho foi preciso para que a Térra
assumisse o aspecto desfijado, coberta de verde e habitada por todos os espécimes do reino
animal. Finalmente, o cenario estava pronto para o surgimento.