Unidade 1 - Princípios Da Pesquisa

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Unidade 1

PRINCÍPIOS DA PESQUISA

1 Considerações iniciais

A linguagem se tornou o pressuposto mais geral para a compreensão


humana e suas formulações teóricas sobre si e o mundo. O
texto, pensado em todas as suas variantes literárias, é a forma mais usada
para apresentar os conhecimentos que os seres humanos formulam. Sua
construção não se basta a si mesma, pois requer a leitura, sua interpretação
e apropriação de sentido pelas novas gerações que chegam ao mundo.
Mesmo com o avanço das imagens como nova forma de comunicação por
meio das mídias sociais, a leitura ainda é fundamental por ser um modo
de desvelamento do humano e do mundo. E a educação tem essa tarefa
de tornar esse desvelar em um sentir em casa no mundo por meio dos
conhecimentos legados pela tradição.
Neste sentido, este texto aborda o papel da leitura, da pesquisa e da
escrita na constituição do sujeito pesquisador. Compreende-se que o ato
de ler não só em termos de quantidade, mas da qualidade do que é lido,
impacta direta e decisivamente sobre o perfil de estudante. O cuidado com
a efetividade dessa prática nas Universidades se torna, então, uma tarefa
primordial para qualificar o seu operar pedagógico. A prática da leitura e
da escrita torna-se de extrema relevância a partir do momento em que o
conhecimento científico advém da leitura e interpretação daqueles que nos
antecederam.
Na obra “Escrever é preciso” (2006), de Mario Osorio Marques,
há uma tese pressuposta de que ler é preciso. Marques (2006, p. 12) afirma:
“Não se apegue à letra desta escrita, mas dela faça trampolim para sua
imaginação criadora. Ler é descortinar muitas leituras possíveis, é dilatar os
horizontes das próprias percepções, horizontes dos muitos mundos abertos
à inventividade criativa”.
A importância da leitura é tema de afirmações de diversos autores
clássicos. Bacon (2007, p. 36) afirma que “a leitura traz ao homem plenitude,
o discurso segurança e a escrita precisão”. Descartes (1999, p. 24), por sua
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vez, afirma que “a leitura de todos bons livros é como uma conversa com
os melhores espíritos dos séculos passados, que foram seus autores, e é uma
conversa estudada, na qual eles nos revelam seus melhores pensamentos”.
Em uma época de inovação tecnológica, com um destaque para a imagem
e para os vídeos, a leitura carece de uma prioridade cotidiana. Bill Gates,
reconhecido como o grande nome da tecnologia comunicacional, que
parece descredenciar a importância da leitura, afirma que “meus filhos
terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os
nossos filhos serão incapazes de escrever - inclusive a sua própria história”.
O desenvolvimento da reflexão a seguir tem um viés filosófico-
literário que busca apresentar o ato de ler, da pesquisa e da escrita como
um desvelamento de si mesmo de um sujeito, dos outros e do mundo. No
encontro demorado com o texto há uma convivência com a humanidade
em seus modos de ser, pensar e viver. O horizonte do percurso que
seguimos é justificar a necessidade da leitura de bons textos, pois apesar
de nossa época ler mais que qualquer outra em função das mídias sociais,
esse “mais” dá indícios de ser menos qualitativamente por ser apenas um
conjunto de informações em alta velocidade que esquecemos rapidamente.

2 Constituição do sujeito pesquisador: conhecimento e produção


colaborativa

O tempo presente é marcado pela comunicação, sobretudo pelo


avanço frenético das tecnologias entendidas como meios de comunicação.
Com isso, uma nova cultura vai se configurando e determinando o modo
de ser do ser humano. Uma nova sociedade vai se constituindo com
perspectivas culturais e sociais segundo aquilo que o ser humano mais se
ocupa. Ainda não se tem clareza do desfecho desse jeito de convivência,
tanto em termos antropológicos quanto sociológicos.
Um dos elementos organizadores está sob forte determinação
dessa sociedade da comunicação, ou como muitos designam, sociedade
da informação, é a educação. É preciso dizer que no essencial está
indeterminado o lugar onde se vai chegar. As tecnologias da comunicação
fazem parte do bojo da educação de forma imprescindível, não porque
ela assim o seja, mas porque o modo geral de organizar do ser humano
4 Fábio César Junges

assim o é e está sendo. Não há como negar as vantagens e facilidades que


as mesmas proporcionaram para palestras, cursos, oficinas, explicações de
temas e assuntos diversos, aulas presenciais ou não, enfim, para as mais
diversas formas de educação e formação.
Com todos os avanços dos meios de comunicação de massa,
sobretudo da TV, a imagem acabou substituindo as leituras não apenas no
campo das notícias, mas da própria cultura. Outrossim, a universalização
e globalização de todo o tipo de informação e formação pela internet
transformou toda a forma de pesquisa, em que a maioria dos alunos não
lê no sentido literário, apenas acessa mensagens, e não escreve quase nada,
apenas copia e transforma algumas partes daquilo que está na internet.
Uma nova forma de percepção e representação da realidade marca a
sociedade atual. Trata-se, em verdade, da passagem de uma cultura moderna,
realista, narrativa, descritiva para uma cultura visual, cinematográfica,
intermitente, fragmentada. A questão, no fundo, é de uma nova maneira
de ver o mundo e de representá-lo que mudou o sentido da educação e
da formação na vida das pessoas pela tecnificação em todos os recantos da
pesquisa e do trabalho.
A nova cultura tem modificado, entre outros fatores, basicamente
a relação dos sujeitos com o tempo e o espaço. O tempo, dessa forma,
não é mais, como, por exemplo, na fotografia, capturado num instante
pontual, estático, mas pode parar, inverter-se, repetir-se, fazer avançar ou
retroceder a ação, dando forma à simultaneidade. Da mesma forma que
se tem uma noção de tempo fluente, intemporal, ritual e cíclico, também
se têm mudanças significativas na noção de espaço. Se antes o espaço era
tomado como limitado, estático, homogêneo e fixo, na cultura visual ele
vem assumindo um caráter ilimitadamente dinâmico e fluído.
Decorre daí que a leitura dos textos, entendida dentro da atual
percepção da realidade, num olhar não muito reflexivo, revelar-se-ia sem
grande valor e alcance e, por que não dizer, obsoleta, afinal de contas é
formada de palavras inscritas que não mais se alteram. Segundo Deleuze
(2020), em entrevista passada na TV Futura, esse é o motivo central de
um empobrecimento da literatura em nível mundial. O autor reclama
porque isso é uma manifestação do empobrecimento da capacidade de
criatividade, de compreensão do sentido e da vida do ser humano, que
está sendo relegada à marginalidade pela agilidade e facilidade dos meios e
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tecnologias da informação.
Essas mudanças de formas de representação abrem, portanto,
questionamentos quanto ao lugar e o alcance que o ato de ler tem em
nosso meio. Tendo presente essa problemática, procuramos desenvolver
uma perspectiva de compreensão positiva do ato de ler, tendo como base
o pensamento do filósofo francês Ricoeur. A fim de satisfatoriamente
desenvolvê-la, o caminho de uma determinada compreensão de ser humano
às possibilidades do texto precisa ser percorrido. É essa proposta que está
em questão com a iniciativa de mobilizar os pesquisadores para a leitura a
partir de uma compreensão do seu sentido e de suas potencialidades.
Partimos da compreensão de que a posição do ser humano não
está dada, não é deduzida, nem é uma intuição de si a si, mas precisa ser
retomada através das suas obras. Se, na cultura moderna, o ser humano
se encontra no centro focal e tudo é percebido a partir do ver humano,
com a nova cultura visual, o sujeito perdeu suas forças. Onde quer que
o ser humano compreenda algo, compreende a partir do horizonte da
linguagem que marca o acesso a si, ao outros e ao mundo. É a partir dela
que se torna possível o conhecimento, valorações, tomada de posições no
mundo. A linguagem é muito mais que um código do qual nos utilizamos
para o exercício da comunicação, é todo um histórico de sentido no qual
os sujeitos emergem como tais e se tornam responsáveis pela renovação do
mundo.
Essa noção não se constitui na erradicação do sujeito, mas em
uma relativização; é assentado no plano da linguagem, deixando de ser
uma verdade primeira, de fundamento, para tornar-se tarefa, resultado.
É o desejo de uma transparência absoluta, de uma perfeita coincidência
de si consigo mesmo, que é transferido para um horizonte sempre mais
longínquo enquanto horizonte de sentido.
O sujeito, desse modo, somente se compreende “retomando o
sentido das palavras de todos os homens” (RICOEUR, 1986, p. 46).
Contudo, a retomada do sentido das palavras de todos os homens não pode
ser absolutizada. A compreensão, possibilitada pela exegese dos signos,
apenas pode produzir fragmentos, sabidamente parciais, dessa exegese de
si e do ser mediado. Procuramos tirar consequências metodológicas dessa
análise para a problemática aqui apresentada, pois a linguagem tem muitos
modos de ser e estar. Na hermenêutica, o texto é um modo privilegiado.
6 Fábio César Junges

Uma das principais características do texto é a sua referência, de


ser sempre a respeito de algo. Não há texto, por mais fictício que seja,
que não tenha uma referência, que não vá ao encontro da realidade, que
seja somente para a sua própria glória. Há sempre linguagem em ação e,
consequentemente, deve ter um referente. Afinal, os textos falam de coisas,
de acontecimentos, de estados de coisas, que são evocados, mas que não
estão aí. Os textos são construções argumentativas em torno de alguma
coisa. A respeito de quê? De um mundo possível de ser e habitar. O texto,
para Ricoeur, transcende o discurso descritivo, constatativo, para não dizer
ordinário, e atinge o mundo em um segundo nível, o mundo possível.
É o apagamento da referência de um primeiro nível que liberta um
poder de referência para aspectos de nosso ser-no-mundo. Essa dimensão
referencial tem uma consequência importante para o conceito de
interpretação: “interpretar é explicitar o modo de ser-no-mundo exposto
diante do texto” (RICOEUR, 2000, p. 121); é explicitar as referências
não situacionais que sobreviveram ao retraimento e que, portanto, são
ofertadas como modos possíveis de ser, como dimensões simbólicas de
nosso ser-no-mundo. O que se dá a compreender é o que aponta para um
mundo possível, em termos de referência não ostensiva do texto. Os textos
revelam ao sujeito mundos possíveis e maneiras possíveis de se orientar nas
situações de cada dia.
Ao entrar em contato com o texto, “o sujeito encontra uma proposta
de mundo, de um mundo que eu possa habitar e nele projetar meus possíveis
mais próprios” (RICOEUR, 2000, p. 122). O mundo do texto não é o
mundo da linguagem cotidiana. Constitui, em verdade, uma espécie de
distanciamento com o real. O texto, como tal, produz um distanciamento
na maneira habitual de apreender a realidade. O referente está em ruptura
com a linguagem ordinária, a fim de que se abram novas possibilidades
de ser-no-mundo. O texto, desse modo, visa o ser, no entanto, “não
sob a modalidade do ser-dado, mas sob a modalidade do poder-ser. Por
isso mesmo, a realidade quotidiana é metamorfoseada graças ao que
poderíamos chamar de variações imaginativas que a literatura opera no
real” (RICOEUR, 2000, p. 123).
O mundo do texto, contudo, não se limita apenas a metamorfosear
a realidade cotidiana. Além de introduzir um distanciamento entre o ser-
dado e o poder-ser, libertando, dessa forma, o leitor da imediatidade fática
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e conduzindo-o ao mundo possível, o texto é mediação para a compreensão


de si mesmo. Essa abordagem coloca em cena a subjetividade do leitor que
com ele entra em contato. A subjetividade do leitor é deslocada. É nesse
nível que a mediação do texto se deixa compreender melhor. Pois se, de
fato, a primeira preocupação não é descobrir uma intenção escondida no
texto, mas expor um mundo diante dele, então podemos dizer que o leitor
se compreende em face do texto.
Ao invés de projetar as suas próprias crenças e preconceitos sobre o
texto, o leitor é instruído pelo mundo do texto. Daí em diante, o texto não
é submetido às capacidades finitas de compreensão de um leitor dado. Não
põe a significação do texto sob o poder do intérprete. Longe de dizer que
a compreensão é uma constituição de que o sujeito teria a chave, Ricoeur
defende que a interpretação é o processo pelo qual há o desvelamento
de novos modos de ser e de ver, que proporcionam ao sujeito uma nova
capacidade de se compreender e compreender as relações. Se existe algum
projeto, é a referência do texto que é o projeto de um mundo.
Justamente ao fazer referência a um segundo nível, o texto não se
satisfaz com o imediatamente dado. É de sua própria natureza transcender o
imediato. O alcance dessa perspectiva somente pode ser percebido se se vai
além do que se apresenta empiricamente. Enquanto que o mundo empírico
se apresenta como fato, o texto refere-se a este mundo apenas como um dos
mundos possíveis. A questão é deslocada do objeto como fato para o mundo
como possibilidade.
Os textos têm a ver, desde o início, com a constituição rigorosa da
realidade desse mundo possível que é aberto pelo ato da leitura. Tem a ver
com a passagem do visível do fato à invisibilidade real da sua possibilidade
que permite pensar para além do visível. Sua leitura e elaboração são, por
isso, atividades dinamizadoras em que o próprio ser humano se constitui
como autor de sua vida e de seu mundo.
Pela leitura a imaginação ganha todo o seu sentido e toda a sua
importância para a educação. A avalanche de imagens é uma forma de
atrofiar a capacidade de imaginar. Sua consequência direta é a incapacidade
de produzir textos e copiar decisivamente todos os trabalhos na internet. É
o livro que requer que imaginemos a situação, a realidade, os sentimentos,
as alegrias e dores que são elaboradas por um autor. Nos outros meios de
comunicação eles são dados, as imagens estão prontas. Isso é uma visão
8 Fábio César Junges

mercadológica, onde a propaganda dos produtos tem como carro chefe a


lei do menor esforço possível.
Aquilo que os olhos não leram, os ouvidos não escutaram e a
racionalidade ainda não entendeu, isso a educação preparou para aqueles
que a amam. A nós aprendizes, porém, foi facilitado pelos educadores. Pois
os educadores sondam todas as possibilidades de compreensões, até mesmo
a profundidade da vida em educação. Nós não recebemos a educação em
si, mas a educação que vem por meio de testemunho de educadores, a fim
de que reconheçamos os dons e graças que a formação permite dar sentido
à vida, para uma vida com sentido.
Mas após o Fiat político deva vir o Fiat literário, a emancipação do
mundo intelectual, vacilante soa a ação influente de uma literatura
ultramarina. Mas como? É mais fácil renegar uma nação, que
uma literatura. Para esta não há gritos de Ipiranga; as modificações
operam-se vagarosamente; e não se chega em um só momento a um
resultado. (Assis, 2020, p. 39).

3 Conhecer e aprender pela pesquisa

Como ficou visto anteriormente, uma das características do discurso


como evento é a sua referência, isto é, é sempre a respeito de algo. Sabe-se
que a passagem da fala para a escrita afeta o discurso de diversas maneiras.
Fica alterado, especialmente, a sua referência, pois, não há mais situação
comum, em que possa ser mostrado o objeto referido. Neste sentido,
a questão que se coloca é esta: o que ocorre com a referência quando o
discurso se torna texto?
A passagem da fala para a escrita altera a referência ao ponto
de a tornar problemática. No discurso oral, a referência se dá no poder
de mostrar a realidade comum dos interlocutores, isto é, a referência se
dá na função ostensiva do discurso. E, ainda, se não se pode mostrar a
coisa referida, pode-se, pelo menos, situá-la em relação à rede espaço-
temporal à qual pertencem os interlocutores. Enfim, é “o ‘aqui’ e o ‘agora’,
determinados pela situação do discurso, que conferem a referência última
a todo o discurso” (RICOEUR, 1977, p. 47).
Este fundamento da situação dialógica é abalado pela escrita. Com
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a escrita já não há mais situação comum entre escritor e leitor, ficando,


dessa forma, abolida as condições de mostração. Para Ricoeur, é graças aos
limites impostos pela abolição do caráter mostrativo que torna possível
o fenômeno “literatura” e, com efeito, possibilita o desenvolvimento do
papel maior de toda a literatura, a saber, “destruir o mundo”.
Não há discurso, por mais fictício que seja, que não tem referência,
que não vá ao encontro da realidade, que seja somente para a sua própria
glória. Ricoeur (2000, p. 31) afirma que “a linguagem só tem referência
quando usada” . No caso do discurso escrito, isto é, do texto, há linguagem
em utilização e, consequentemente, deve ter um referente, mesmo que
não haja situação comum entre autor e leitor. Sendo assim, os textos falam
de coisas, de acontecimentos, de estados de coisas, de caracteres, que são
evocados, mas que não estão aí. E, no entanto, os textos são a respeito de
alguma coisa. A respeito de que? São a respeito de um mundo, que é o
mundo desta obra.
Aqui, a minha tese é a de que a abolição de uma referência de
primeira categoria, abolição operada pela ficção e pela poesia, é a
condição de possibilidade para que seja libertada uma referência
de segunda categoria que atinge o mundo, não apenas ao nível
dos objeto manipuláveis, mas no nível que Husserl designava pela
expressão Lebenswelt e Heidegger pela de ser no mundo. (Ricoeur,
1989, p. 121).

Longe de dizer que o texto não tem um mundo, Ricoeur afirma


que é pelo texto que “o homem e só o homem tem um ‘mundo’ e não
apenas uma situação” (Ricoeur, 2000, p. 47). Um “Welt” e não apenas
um “Umwelt”. Para nós, o mundo é o conjunto das referências abertas
pelos textos. Neste sentido, quando se fala em mundo da Grécia, não é
para designar o que foram as situações para eles que as viveram, mas para
designar as referências não situacionais que sobreviveram ao retraimento e
que, portanto, são ofertadas como modos possíveis de ser, como dimensões
simbólicas de nosso ser-no-mundo.
Como foi visto, o apagamento da referência de um primeiro nível,
liberta um poder de referência para aspectos de nosso ser-no-mundo. Esta
dimensão referencial tem um consequência importante para o conceito
de interpretação. Se não se pode mais recorrer a intenção do autor e não
se limitar a reconstruir a estrutura de uma obra, então o que permanece
10 Fábio César Junges

a ser interpretado? Para Ricoeur, “interpretar é explicitar o modo de ser-


no-mundo exposto diante do texto” (Ricoeur, 1989, p. 121). O que se
dá a compreender é o que aponta para um mundo possível, em termos de
referência não ostensiva do texto. Pois, na medida que Ricoeur afirma que
o papel da maior parte da literatura é destruir (des-Struo) o mundo, ele
faz essa afirmação com o objetivo de destacar esse mundo do possível que
o texto oferece. Os textos revelam ao sujeito mundos possíveis e maneiras
possíveis de se orientar nas situações de cada dia.
A teoria da compreensão de Ricoeur, tal como defendida por
Heidegger, já não está ligada a compreensão de outra pessoa, mas tem uma
significação ontológica: “é a resposta de um ser lançado no mundo, que
nele se orienta, projetando os seus possíveis mais próprios” (Ricoeur, 1989,
p. 39). Desta compreensão heideggeriana, Ricoeur (1989, p. 122) conserva
a ideia de “projeção dos meus possíveis mais próprios” e aplica-a à teoria
do texto. Assim, ao entrar em contato com o texto, o sujeito encontra uma
proposta de mundo, de um mundo que eu possa habitar e nele projetar
meus possíveis mais próprios”.
O mundo do texto não é o mundo da linguagem cotidiana.
Constitui, em verdade, uma espécie de distanciamento com o real. O
texto, como já ficou assinalado, produz um distanciamento na nossa
maneira habitual de apreender a realidade. O referente está em ruptura
com a linguagem ordinária, a fim de que se abrem novas possibilidades
de ser-no-mundo. O texto, dessa forma, visa o ser, no entanto, “não sob
a modalidade do ser-dado, mas sob a modalidade do poder-ser. Por isso
mesmo, a realidade quotidiana é metamorfoseada graças ao que poderíamos
chamar de variações imaginativas que a literatura opera no real” (Ricoeur,
1989, p. 123).
O mundo do texto, contudo, não se limita apenas a metamorfosear
a realidade cotidiana. Além de introduzir um distanciamento entre o ser-
dado e o poder-ser, libertando, dessa forma, o leitor da imediatidade fática
e conduzindo-o ao mundo possível, o texto é mediação para a compreensão
de si mesmo.
Esta abordagem coloca em cena a subjetividade do leitor. Prolonga
o quarto caráter do discurso, a saber, de ser dirigido a alguém. No discurso
oral o auditório é definido pelo próprio diálogo, enquanto que o discurso
escrito “franqueia-se aos seus leitores e, assim, cria o seu próprio frente a
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frente subjetivo” (Ricoeur, 1989, p. 123).


O problema que se coloca é bem conhecido pela hermenêutica
tradicional, em especial, a romântica. É o problema da apropriação ou
da aplicação do texto à situação do leitor. Em Ricoeur (1989, p. 123),
contudo, este tema da apropriação se transforma, pois “graças à distanciação
pela escrita, a apropriação já não tem nenhuma característica de afinidade
afetiva com a intenção de um autor”. A apropriação, como aqui referida,
“é compreensão pela distância, compreensão na distância” (Ricoeur, 1989,
p. 123).
O texto, exatamente na medida que não responde mais ao seu autor,
responde ao sentido, isto é, a relação leitor com o mundo do texto toma o
lugar da relação do leitor com o autor e, com efeito, a subjetividade do leitor
é deslocada. É, nesse nível, que a mediação do texto se deixa compreender
melhor. Pois, se, de fato, a primeira preocupação da hermenêutica não é
descobrir uma intenção escondida no texto, mas expor um mundo diante
dele, então, pode-se dizer, que o leitor compreende-se em face do texto. Ao
invés de projetar as suas próprias crenças e preconceitos sobre o texto, o
leitor é instruído pelo mundo do texto.
Daí em diante a hermenêutica não submete a interpretação
às capacidades finitas de compreensão de um leitor dado. Não põe a
significação do texto sob o poder do intérprete. Longe de dizer que a
compreensão é uma constituição de que o sujeito teria a chave, Ricoeur
defende que a interpretação é o processo pela qual há o desvelamento de
novos modos de ser, que proporciona ao sujeito uma nova capacidade de
se compreender. Se existe algum projeto, é a referência do texto que é o
projeto de um mundo. Compreender, portanto, é “compreender-se diante
do texto” (Ricoeur, 1989, p. 125), é receber do próprio texto um novo
modo de ser. Ricoeur (1989, p. 124), contudo, vai ainda mais longe e
afirma:
[...] do mesmo modo que o mundo do texto só é real na medida
em que é fictício, é necessário dizer que a subjetividade do leitor
só se produz a si mesma na medida em que é posta em suspenso,
irrealizada, potencializada, do mesmo modo que o próprio mundo
que o texto desenvolve.

Por fim, a leitura/interpretação é um diálogo com a humanidade


12 Fábio César Junges

em que se torna possível uma reconstrução de sentidos de convivência. A


importância da leitura manifesta-se, sobretudo, nesta potencialidade de
compreender-se no mundo como um habitar qualificado em sua própria
casa. Os saberes que a escola têm por tarefa de apresentar para as novas
gerações se dá por meio de uma conversa que requer releitura e interpretação
como uma forma de construção de significados em espaços-tempos novos.
Ler, assim, é mais que um encontro com um conjunto de palavras, é um
estar em relação consigo e com o mundo de uma forma privilegiada, aberta
e capaz de perfectibilidade humana.

4 Pesquisa, escrita e pensamento: autorreflexão e emancipação

A relação intrínseca entre pesquisa, escrita e pensamento


desempenha um papel crucial na busca do conhecimento e na emancipação
do ser humano. Os pensamentos de Pedro Demo, Hans-Georg Gadamer
e Paul Ricoeur oferecem abordagens valiosas para compreender como a
autorreflexão nos conduz à emancipação intelectual e pessoal.
Pedro Demo enfatiza a pesquisa como um meio para aprofundar
nosso entendimento do mundo e de nós mesmos. Para Demo, a pesquisa
deve ser uma jornada de autorreflexão, onde o pesquisador se compromete
a questionar suas próprias premissas, visões de mundo e limitações. Essa
prática de questionamento incessante permite uma análise crítica e um
diálogo constante com o conhecimento produzido, incentivando uma
emancipação gradual do pensamento.
Em sintonia com Demo, Hans-Georg Gadamer, filósofo
alemão e hermeneuta, defende a importância da hermenêutica como
uma ferramenta essencial para a compreensão profunda da realidade.
Através da interpretação, o indivíduo se aproxima do objeto de estudo
e, simultaneamente, se envolve numa autointerpretação contínua. Essa
autorreflexão é fundamental para reconhecer nossos próprios preconceitos e
pressupostos, permitindo-nos transcender as limitações de nosso horizonte
cultural e alcançar uma visão mais ampla e inclusiva do mundo.
Já Paul Ricoeur destaca a escrita como um exercício essencial de
expressão e compreensão do pensamento. Para Ricoeur, a escrita é uma
forma de diálogo consigo mesmo e com o leitor, sendo um processo de
Unidade 1 - Princípios da pesquisa 13

autorreflexão e autorrevelação. Ao escrever, desvendamos nossas próprias


ideias e damos sentido ao que pensamos, promovendo a emancipação do
conhecimento latente em nossa mente.
Assim, a autorreflexão é uma peça fundamental no processo de
pesquisa, escrita e pensamento, conforme destacado por Pedro Demo,
Gadamer e Ricoeur. Esses pensadores nos convidam a questionar,
interpretar e escrever com consciência crítica, o que nos leva não apenas
a uma compreensão mais profunda do mundo, mas também a uma
emancipação intelectual e pessoal, permitindo-nos contribuir ativamente
para o desenvolvimento da sociedade e da humanidade como um todo.

5 A pesquisa como modo humano de acessar o conhecimento e


transformá-lo: curiosidade, criatividade e saber

A pesquisa é uma poderosa ferramenta humana para acessar o


conhecimento, compreender a realidade e transformar a sociedade. Nesse
processo, a curiosidade, a criatividade e o saber desempenham papéis
fundamentais, impulsionando o ser humano a desvendar novos horizontes
e superar desafios. Autores como Pedro Demo e Mario Osorio Marques
enaltecem a importância da pesquisa como um meio de construir saberes
significativos e de impacto.
Pedro Demo defende que a pesquisa é um caminho essencial
para a construção do conhecimento autêntico e emancipatório. Para
ele, a curiosidade é a mola propulsora da pesquisa, pois é a partir
do questionamento inquieto que o indivíduo busca respostas, novas
informações e entendimentos mais profundos. A curiosidade nos incita a
explorar territórios desconhecidos, desafiando os limites do conhecido e
do estabelecido.
Nesse contexto, a criatividade desempenha um papel crucial na
pesquisa. Mario Osorio Marques destaca que a criatividade é a capacidade
de estabelecer conexões inovadoras entre ideias, conceitos e experiências.
É através da criatividade que podemos elaborar metodologias inovadoras,
propor soluções originais para problemas complexos e abrir novos horizontes
de compreensão. A pesquisa criativa nos leva além dos caminhos habituais,
desafiando-nos a experimentar, ousar e explorar novas perspectivas.
14 Fábio César Junges

Ao conduzir uma pesquisa, o indivíduo busca não apenas a


acumulação de informações, mas sim o desenvolvimento de um verdadeiro
saber. Esse saber não se restringe apenas ao conhecimento teórico, mas
incorpora a vivência, a experiência e a reflexão sobre a realidade. Pedro
Demo ressalta que o saber não deve ser uma mera reprodução de conteúdos,
mas uma construção coletiva e contextualizada, capaz de iluminar questões
sociais relevantes e contribuir para a transformação da sociedade.
A pesquisa, portanto, não se limita a um processo acadêmico
ou científico isolado. Ela é um modo humano de estar no mundo, de
se envolver com a realidade e de buscar compreendê-la em toda a sua
complexidade. A curiosidade, a criatividade e o saber se entrelaçam nessa
jornada intelectual, permitindo ao pesquisador transcender limites, romper
barreiras e, assim, contribuir para a construção de um conhecimento que
seja genuinamente significativo e transformador.
Em síntese, a pesquisa é uma expressão da natureza curiosa e criativa
do ser humano, que busca constantemente desvendar os mistérios do
mundo à sua volta. Ao transformar o conhecimento adquirido em saberes
relevantes e contextualizados, a pesquisa se torna uma poderosa ferramenta
de mudança e de progresso, impulsionando o desenvolvimento pessoal e
coletivo, e construindo uma sociedade mais consciente e comprometida
com o avanço do saber.

Referências

ASSIS, Machado. Crítica literária. Disponível em: Domínio Público.


Acesso: dez. 2020.

BACON, Francis. Ensaios. Petrópolis: Vozes, 2007.

DELEUZE, Gilles. Abecedário Gilles Deleuze. Disponível em: https://


escolanomade.org/wp-content/downloads/deleuze-o-abecedario.pdf.
Acesso: dez. 2020.

DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural,


1999.

MARQUES, Mario Osorio. Escrever é preciso. Ijuí: UNIJUÍ, 2006.


Unidade 1 - Princípios da pesquisa 15

RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações. Lisboa: Rés, 1986.

RICOEUR, Paul. Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II. Lisboa:


Edições 70, 2000.

RILKE, Rainer Maria. Elegias de Duíno. São Paulo: Globo, 2001.

ROCHA, João Cezar. Machado de Assis: por uma poética da emulação.


São Paulo: Civilização Brasileira, 2013.

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