CIAVATTA - Trabalho Como Pricípio Educativo
CIAVATTA - Trabalho Como Pricípio Educativo
CIAVATTA - Trabalho Como Pricípio Educativo
1. Introdução
Gostaríamos de iniciar esta reflexão pensando sobre nossos trabalhos na vida familiar, na vida profissional, no
trabalho organizativo do Movimento. Pensar sobre as ações que executamos nesses trabalhos, o que pensamos e o
que sentimos em relação a cuidar da casa, dos filhos, da roupa, da comida; cuidar da terra, dos animais, executar
serviços administrativos, de transporte e tantos outros; preparar reuniões, escrever textos e tudo o mais que nos
cabe em diferentes situações.
Cada um de nós assume diferentes papéis e continua sendo o mesmo e não sendo o mesmo, na medida em que
essas diferentes ações nos modificam ao serem executadas. O verso de Milton Nascimento, certamente sem
nenhuma intenção filosófica, expressa a dialética que é um fato permanente no mundo natural e em nossas vidas. A
concepção dialética tem por princípio o movimento de transformação de todas as coisas, de modo que afirma que
“o ser é e não é ao mesmo tempo”, porque se transforma. O trem da chegada é o mesmo trem da partida...
Uma outra reflexão preliminar importante é ver como o trabalho vem sendo debatido nas últimas décadas no
mundo ocidental. Desde meados dos anos 80, a sociologia pôs em questão a centralidade da categoria trabalho para
as análises sociais (Offe, 1989). Mas esta não era apenas uma questão das ciências sociais. Já no final da década,
acompanhando a evidência da crise de emprego que se anunciava na Europa ocidental e a desintegração do mundo
socialista, um alto funcionário do Estado americano (Fukuyama, 1992), proclama o “fim da história”. Mais
recentemente, o grupo Krisis lançou um manifesto sobre o “fim do trabalho”.
No entanto, toda evidência do mundo, vivida por nós, deixa claro que a sobrevivência do ser humano depende de
meios de vida obtidos mediante o trabalho ou algum tipo de ação sobre os recursos naturais, sobre o meio em que
vivemos. Nesse intercâmbio com a natureza, o ser humano produz os bens de que necessita para viver, aperfeiçoa a
si mesmo, gera conhecimentos, padrões culturais, relaciona-se com os demais e constitui a vida social.
Sem nos alongarmos sobre a história do trabalho, nas formas de escravidão, de servidão e de trabalho assalariado
na sociedade burguesa, queremos dizer que o trabalho, como atividade fundamental da vida humana, existirá
enquanto existirmos. O que muda é a natureza do trabalho, as formas de trabalhar, os instrumentos de trabalho, as
formas de apropriação do produto do trabalho, as relações de trabalho e de produção que se constituem de modo
diverso ao longo da história da humanidade.
É inocência pensar que o trabalho é sempre bom. Ele o é em certas condições. Mas quais são estas condições?
Duas vertentes contraditórias sobre o que pensamos, sentimos e vivenciamos (mesmo inconscientemente) em
relação ao trabalho fazem parte do ideário cultural de nossa sociedade.
Uma dessas vertentes tem origem no pensamento religioso, segundo o qual o trabalho dignifica, valoriza e
enobrece o homem, ao mesmo tempo em que disciplina o corpo e eleva o espírito. De outra parte, no Brasil, como
em outros lugares do mundo, temos conhecimento e repudiamos as condições de trabalho de milhões de
trabalhadores, condições que são de privação na vida pessoal, na vida familiar e nas demais instâncias da vida
social. São condições advindas das relações de exploração do trabalhador, de alienação ou de expropriação de seus
meios de vida, de seu salário, da terra onde vive e de suas possibilidades de conhecimento e de controle do
processo do próprio trabalho.
Estas breves reflexões iniciais são importantes para se pensar em que medida o trabalho é princípio educativo. O
trabalho, enquanto ação que praticamos, muda as nossas vidas. Mas muda como? Partimos da idéia de que o
trabalho pode ser ou não educativo dependendo das condições em que se processa.
2. O trabalho na sociedade capitalista
O que é o trabalho? O trabalho humano efetiva-se, concretiza-se em coisas, objetos, formas, gestos, palavras,
cores, sons, em realizações materiais e espirituais. O ser humano cria e recria os elementos da natureza que estão
ao seu redor e lhes confere novas formas, novas cores, novos significados. De modo que o trabalho é o fundamento
da produção material e espiritual do ser humano para sua sobrevivência e reprodução (Ianni, 1984).
O trabalho ou as atividades a que as pessoas se dedicam são formas de satisfazer as suas necessidades que, por sua
vez, são os fundamentos dos direitos estabelecidos na vida em sociedade. Que direitos são estes? São os direitos de
toda pessoa e alguns especiais das crianças e dos jovens – direitos pelos quais os trabalhadores vêm lutando
duramente nos últimos séculos.
São os direitos civis ou individuais: direito à liberdade pessoal e à integridade física, à liberdade de palavra e de
pensamento, direito à propriedade, ao trabalho e à justiça. São os direitos políticos, como o direito de participar do
exercício do poder político como membro investido da autoridade política ou como eleitor. São os direitos sociais
como o direito ao bem-estar econômico, ao trabalho, à moradia, à alimentação, ao vestuário, à saúde, à participação
social e cultural, à educação e aos serviços sociais.
Ora, o que presenciamos, em nossa sociedade, não é o compromisso básico e fundamental com esses direitos, não é
o compromisso com o homem ou com a criança. Ou em outros termos, o sujeito das relações sociais em uma
sociedade capitalista não é o homem ou a criança. O sujeito é o mercado, é o capital. O grande sujeito é a
acumulação do capital.
As condições de produção da mercadoria envolvem a divisão e a hierarquização do trabalho dos indivíduos, que
vão fazer parte de um processo de trabalho que é coletivo. A divisão do trabalho não só potencia, dinamiza a
capacidade produtiva mas, também, limita o trabalhador a tarefas cada vez mais "parciais", mais "simples", tarefas
que restringem, no trabalhador, o uso de sua sensibilidade, de sua criatividade, para executar com rigor aquilo que
a máquina pede.
Na cidade, conforme a herança do início do século passado, pelo taylorismo e o fordismo, com a divisão de tarefas
e a administração científica do trabalho, acontecem as linhas de montagem e o trabalho mecanizado. Mais tarde,
com o toyotismo e a automação, a microeletrônica, a cooperação, o modelo “flexível” de produção e de relações de
trabalho. Em um caso ou em outro, os trabalhadores perdem a visão do todo, destinam-se a cumprir tarefas
coordenadas de trabalho. Na produção flexível, são estimulados a socializar seu saber sob a ideologia de terem
patrões e empregados (chamados de “colaboradores”) os mesmos interesses na produtividade e na competitividade
da empresa.
A história da sociedade industrial é uma história de lutas dos trabalhadores contra a imposição da disciplina do
trabalho, da disciplina de quartel, da organização e racionalização dos processos de trabalho, que levam ao
esvaziamento completo dos interesses e motivações pessoais no ato de trabalhar.
Não obstante o universo maravilhoso da ciência e da técnica no mundo, hoje, não obstante toda riqueza gerada que,
supõe-se, deve facilitar a sobrevivência do ser humano, temos de reconhecer que há uma extrema desigualdade na
distribuição desses benefícios e, também, das formas históricas de trabalhar, de produzir esses bens. A introdução
dos avanços tecnológicos (em termos de máquinas e equipamentos, do desempenho de funções diferenciadas, do
uso de sementes geneticamente modificadas – todos frutos de relações sociais e não apenas questões técnicas), a
distribuição das tarefas, as opções sobre o tempo livre, o estudo e o lazer trazem novas questões para discussão dos
processos humanizadores no trabalho.
No campo, pela secular opressão na apropriação da terra e pela dureza do trabalho braçal, por seu uso subordinado,
ou nas minas embrutecedoras, nos lixões, nas cidades, há trabalhos que são como que alienação de vida, seja pela
divisão social do trabalho (trabalho físico, manual ou intelectual, concepção e planejamento versus execução), seja
pela desqualificação das tarefas, pela especialização, pela repetição, seja pela perda de controle do trabalhador
sobre o próprio trabalho ou pela subordinação do esforço humano a serviço da acumulação do capital. Estas são
formas de trabalho que se constituem num princípio educativo negativo, deformador e alienador. O que significa
que o capitalismo educa para a consecução de seus fins de disciplina, subordinação, produtividade.
3. O trabalho como princípio educativo
É falso, e há evidência disso, que todo trabalho dignifica. São de Lukács (1978) algumas idéias importantes para
esta análise. A produção da existência humana e a aquisição da consciência se dão pelo trabalho, pela ação sobre a
natureza. O trabalho, neste sentido não é emprego, não é apenas uma forma histórica do trabalho em sociedade, ele
é a atividade fundamental pela qual o ser humano se humaniza, se cria, se expande em conhecimento, se
aperfeiçoa. O trabalho é a base estruturante de um novo tipo de ser, de uma nova concepção de história.
É a consciência moldada por esse agir prático, teórico, poético ou político que vai impulsionar o ser humano em
sua luta para modificar a natureza (ou para dominá-la, como se dizia no passado, antes que se tomasse consciência
da destruição que o homem vem operando sobre o planeta). Diferente dos animais, a consciência do ser humano é
a capacidade de representar os seres de modo ideal, de colocar finalidades às ações, de transformar perguntas em
necessidades e de dar respostas a essas necessidades. Os seres humanos agem através de mediações, de recursos
materiais e espirituais que eles implementam para alcançar os fins desejados.
O que nos permite fazer a distinção entre duas formas fundamentais de trabalho: o trabalho como relação criadora,
do homem com a natureza, produzindo a existência humana, o trabalho como atividade de autodesenvolvimento
físico, material, cultural, social, político, estético, o trabalho como manifestação de vida; e o trabalho nas suas
formas históricas de sujeição, de servidão ou de escravidão, ou do trabalho moderno, assalariado, alienado na
sociedade capitalista. Há relações de trabalho concreto que atrofiam o corpo e a mente, trabalhos que embrutecem,
que aniquilam, fragmentam, parcializam o trabalhador.
Ocorre, ainda, um fenômeno insuficientemente estudado que é o processo de circularidade entre necessidade do
trabalho precoce e o desemprego e a oferta de iniciação profissional. É possível perceber o crescimento do número
de instituições assistenciais e programas governamentais que, à vista da necessidade de um contingente cada vez
maior de pessoas desocupadas ou em trabalhos ambulantes, precários, oferecem-lhes oportunidade de algum
aprendizado e os responsabilizam para criar novas formas de trabalho, de empreendimentos ou de serem
“empregáveis”.
É essa complexidade, na particularidade das situações vividas, que nos cabe examinar na sua expressão fundante,
criativa e nas formas históricas, opressoras, do trabalho, inclusive do emprego assalariado, que está em queda e
pode vir a desaparecer para dar lugar a outras formas de relações sociais na produção da vida. Algumas perguntas
devem ser feitas. No caso da infância e da juventude, é preciso saber se esses meninos e meninas que trabalham na
rua, ou "boys de empresas", necessitam, para seu desenvolvimento, de trabalho ou de educação? Ou em que
medida a submissão precoce ao trabalho na empresa é educativa, é recurso de desenvolvimento de todas as suas
potencialidades, ou uma acomodação? É possível harmonizar as necessidades imperiosas da sobrevivência com
uma boa formação "em serviço"? O que ocorre no campo com o trabalho familiar, com o trabalho da mulher? Sua
distribuição na vida doméstica e produtiva é compatível com as necessidades de desenvolvimento lúdico, físico e
emocional das crianças e dos adolescentes? É possível manter nesses trabalhos o nexo psicofísico do trabalho
profissional qualificado, de qualidade, que exige a participação ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa do
trabalhador?
Essas perguntas orientaram muitas discussões sobre a questão da educação politécnica, da escola unitária e do
trabalho como princípio educativo nos anos 1980, para a elaboração da educação na nova Constituição aprovada
em 1988, e para a nova LDB que tramitou no Congresso, proposta pela sociedade civil organizada.
Ontem como hoje, do ponto de vista educativo, o esforço das forças progressistas deve caminhar no sentido da
escola unitária (Gramsci, 1981), onde se possa pensar o trabalho de modo que o sujeito não seja o mercado e, sim,
o mercado seja uma dimensão da realidade social (Frigotto, 1980). Trata-se de pensar o trabalho em outro contexto
social, no qual o trabalhador produza para si, e no qual o produto do trabalho coletivo se redistribua igualmente,
projeto que se contrapõe à forma capitalista de produção e aponta para a constituição de novas relações sociais e de
um projeto de homem novo. Trata-se de opor-se a uma visão reducionista, utilitarista, atrofiadora e,
essencialmente, restritiva de formação humana.
Bibliografia
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SAVIANI, Dermeval. A nova lei da educação. LDB, trajetória, limites e perspectivas. 8a. ed. São Paulo: Autores
Associados, 2003.
Notas
1- Síntese do texto discutido com os participantes do Seminário Nacional de Formação – MST, realizado na Escola
Nacional Florestan Fernandes em março de 2005.
2- Licenciada em Filosofia, Doutora em Ciências Humanas (Educação), Professora Titular Associada da
Universidade Federal Fluminense.
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