Convergencia 494

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Convergência SETEMBRO 2016

ANO LI • Nº 494

Revista da Conferência
dos Religiosos do Brasil – CRB

ISSN 0010-8162
Convergência ISSN 0010-8162

Diretora: Irmã Maria Inês Ribeiro, mad


Editor: Irmão Lauro Daros, fms
Redatora: Irmã Rosa Maria Martins Silva, mscs – MTb 0010693/DF

Conselho
Editorial: Frei Moacir Casagrande, ofmcap
Irmã Helena Teresinha Rech, sst
Irmã Vera Ivanise Bombonatto, fsp
Jaldemir Vitório, sj
João Edênio Valle, svd

Projeto gráfico: Manuel Rebelato Miramontes


Coordenação
de revisão: Marina Mendonça
Revisão: Mônica Elaine G. S. Costa
Impressão: Gráfica de Paulinas Editora
Ilustração da capa: Sergio Ceron

DIREÇÃO, REDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO


SDS, Bloco H, n. 26, sala 507 – Ed. Venâncio II
70393-900 - Brasília - DF
Tel.: (61) 3226-5540 - Fax: (61) 3225-3409
E-mail: crb@crbnacional.org.br
www.crbnacional.org.br
Registro na Divisão de Censura e Diversões Públicas
do PDF sob o n. P. 209/73
Sumário

Editorial

Alegria do Amor 573

Mensagem do Papa

Amoris Laetitia 575

Rosto de Misericórdia

Irmãos e irmãs de criação!


Reciprocidade, solidariedade e gratuidade 578

Mártires / santos

Helder Camara: dom de Deus para os pobres 589

Informe

Mensagem da CBJP e da JPIC 599

Artigos

Ser elegante, dentro de casa!


Irmã Annette Havenne 601

Ousemos acreditar e alegremo-nos!


A misericórdia de Deus ultrapassa
a nossa compreensão!
Tomaz Hughes 608

Sobre Marx, Piketty e os lírios do campo


Pe. Nicolau João Bakker 618

Francisco: timoneiro da esperança


O projeto de uma Igreja em saída
e suas contradições
Paulo Suess 632
Editorial

Alegria do Amor 573

No dia 8 de abril de 2016, o Papa Francisco publicou


Amoris Laetitia, “Alegria do Amor”, Exortação Apostólica
sobre a família. No sexto parágrafo da Introdução, o Papa
explica: “No desenvolvimento do texto, começarei por
uma abertura inspirada na Sagrada Escritura, que lhe dê o
tom adequado. A partir disso, considerarei a situação atual
das famílias, para manter os pés assentes na terra. Depois
lembrarei alguns elementos essenciais da doutrina da Igreja
sobre o matrimônio e a família, seguindo-se os dois capí-
tulos centrais, dedicados ao amor. Em seguida destacarei
alguns caminhos pastorais que nos levem a construir famí-
lias sólidas e fecundas segundo o plano de Deus, e dedicarei
um capítulo à educação dos filhos. Depois me deterei em
um convite à misericórdia e ao discernimento pastoral pe-
rante situações que não correspondem plenamente ao que o
Senhor nos propõe; e, finalmente, traçarei breves linhas de
espiritualidade familiar”.
A seção Rosto de Misericórdia traz o texto “Irmãos e ir-
mãs de criação! Reciprocidade, solidariedade e gratuidade:
aprender a cuidar da Casa Comum com os povos indígenas
da Amazônia”. Os autores nos dizem que “os povos indíge-
nas da Amazônia nos ensinam a cuidar de quatro relacio-
nalidades fundamentais: cuidar de nós mesmos, dos outros
iguais, dos outros seres diferentes da natureza, do planeta e
do cosmos, e, assim, cuidar de nossa relação profunda com
Deus, o Deus da Vida presente em toda sua criação”.
A seção Mártires/Santos candidatos aos altares apresenta
Dom Helder. Pe. Ivanir A. Rampon, com o texto “Hel-
der Camara: dom de Deus para os pobres”, escreve que ele
Alegria do Amor

574 “buscou e viveu profundamente a santidade. É provável que


nos próximos anos seu nome conste no cânon romano”.
Realizou-se, nos dias 29 de abril a 1o de maio de 2016, o
Encontro de Justiça, Paz e Integridade da Criação, em Brasília
– DF. O evento foi uma Aliança estabelecida entre as comis-
sões de Justiça e Paz da CNBB (CBJP – Comissão Brasileira
de Justiça e Paz) e a CRB (JPIC – Justiça, Paz e Integridade
da Criação). A seção Informe publica a mensagem do Evento.
A seção Artigos inicia-se com o texto de Irmã Annette:
“Ser elegante, dentro de casa!”. Esclarece ela: “Convidada a
contribuir, neste mês de setembro, com uma reflexão a par-
tir de uma parábola da misericórdia, decidi sair um pouco
dos trilhos e refletir sobre a elegância”. A autora desdobra
toda a riqueza do conceito de elegância, costurando suas
harmônicas humanas e evangélicas.
Outro texto para o mês da Bíblia é do Pe. Tomaz Hughes:
“Ousemos acreditar e alegremo-nos! A misericórdia de Deus
ultrapassa a nossa compreensão!”. Trata do tema da miseri-
córdia em Lucas. Para o autor, “dentro do conjunto dos escri-
tos bíblicos, talvez seja o Evangelho de Lucas que mais chame
a atenção ao aspecto da misericórdia e compaixão do Pai,
manifestado na pessoa, pregação e ação de Jesus”.
Pe. Nicolau João Bakker, no livro “Sobre Marx, Piketty
e os lírios do campo”, faz um paralelo entre Marx e Pi-
ketty. Informa o autor que “Marx dispensa apresentação,
mas Piketty, para o público da Igreja em geral, ainda é um
tanto desconhecido. Precisamos apresentá-lo brevemente.
Trata-se de um economista francês que, em 2013, publicou
o surpreendente livro O capital no século XXI, que, imedia-
tamente, se tornou o best-seller do ano”.
Paulo Suess oferece o texto “Francisco: timoneiro da es-
perança. O projeto de uma Igreja em saída e suas contradi-
ções”. Expressa Suess: “O projeto do Papa Francisco é con-
figurado por discursos, gestos e práticas de diálogo. A seguir
vou elencar sete eixos desse projeto que realçam uma nova
atratividade do Evangelho para o mundo de hoje”.
Ir. Lauro Daros, marista
Mensagem do Papa

Amoris Laetitia 575

No dia 8 de abril de 2016 foi publicada Amoris Laetitia,


Exortação Apostólica do Papa Francisco sobre a família.
Amoris Laetitia significa “Alegria do Amor”. É um texto de
nove capítulos. O Papa escreve que “em cada país ou região,
é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tra-
dições e aos desafios locais. De fato, as culturas são muito
diferentes entre si e cada princípio geral […], se quiser ser
observado e aplicado, precisa ser inculturado”.
Abaixo, os primeiros 7 parágrafos, que constituem a in-
trodução da Exortação Apostólica.
1. A alegria do amor que se vive nas famílias é também o
júbilo da Igreja. Apesar dos numerosos sinais de crise no
matrimônio – como foi observado pelos Padres sinodais –,
“o desejo de família” permanece vivo, especialmente entre
os jovens, e isto incentiva a Igreja. Como resposta a este
anseio, “o anúncio cristão sobre a família é verdadeiramente
uma boa notícia”.
2. O caminho sinodal permitiu analisar a situação das fa-
mílias no mundo atual, alargar a nossa perspectiva e reavi-
var a nossa consciência sobre a importância do matrimônio
e da família. Ao mesmo tempo, a complexidade dos temas
tratados mostrou-nos a necessidade de continuar a aprofun-
dar, com liberdade, algumas questões doutrinais, morais,
espirituais e pastorais. A reflexão dos pastores e teólogos, se
for fiel à Igreja, honesta, realista e criativa, ajudar-nos-á a
alcançar uma maior clareza. Os debates, que têm lugar nos
meios de comunicação ou em publicações e mesmo entre
ministros da Igreja, estendem-se desde o desejo desenfreado
de mudar tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação
Amoris Laetitia

576 até à atitude que pretende resolver tudo através da aplicação


de normas gerais ou deduzindo conclusões excessivas de al-
gumas reflexões teológicas.
3. Recordando que o tempo é superior ao espaço, quero
reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou
pastorais devem ser resolvidas através de intervenções ma-
gisteriais. Naturalmente, na Igreja, é necessária uma unida-
de de doutrina e práxis, mas isto não impede que existam
maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da dou-
trina ou algumas consequências que decorrem dela. Assim
há de acontecer até que o Espírito nos conduza à verdade
completa (cf. Jo 16,13), isto é, quando nos introduzir per-
feitamente no mistério de Cristo e pudermos ver tudo com
o seu olhar. Além disso, em cada país ou região, é possível
buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos
desafios locais. De fato, “as culturas são muito diferentes
entre si e cada princípio geral […], se quiser ser observado e
aplicado, precisa de ser inculturado”.
4. Em todo caso, devo dizer que o caminho sinodal se
revestiu de grande beleza e proporcionou muita luz. Agra-
deço tantas contribuições que me ajudaram a considerar, em
toda a sua amplitude, os problemas das famílias do mundo
inteiro. O conjunto das intervenções dos Padres, que ouvi
com atenção constante, pareceu-me um precioso poliedro,
formado por muitas preocupações legítimas e questões ho-
nestas e sinceras. Por isso, considerei oportuno redigir uma
Exortação Apostólica pós-sinodal que recolha contribui-
ções dos dois Sínodos recentes sobre a família, acrescentan-
do outras considerações que possam orientar a reflexão, o
diálogo ou a práxis pastoral, e simultaneamente ofereçam
coragem, estímulo e ajuda às famílias na sua doação e nas
suas dificuldades.
5. Esta Exortação adquire um significado especial no con-
texto deste Ano Jubilar da Misericórdia, em primeiro lugar,
porque a vejo como uma proposta para as famílias cristãs,
que as estimule a apreciar os dons do matrimônio e da fa-
mília e a manter um amor forte e cheio de valores como a
generosidade, o compromisso, a fidelidade e a paciência; em
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

segundo lugar, porque se propõe encorajar todos a serem


sinais de misericórdia e proximidade para a vida familiar,
577
onde esta não se realize perfeitamente ou não se desenrole
em paz e alegria.
6. No desenvolvimento do texto, começarei por uma
abertura inspirada na Sagrada Escritura, que lhe dê o tom
adequado. A partir disso, considerarei a situação atual das
famílias, para manter os pés assentes na terra. Depois lem-
brarei alguns elementos essenciais da doutrina da Igreja so-
bre o matrimônio e a família, seguindo-se os dois capítulos
centrais, dedicados ao amor. Em seguida destacarei alguns
caminhos pastorais que nos levem a construir famílias só-
lidas e fecundas segundo o plano de Deus, e dedicarei um
capítulo à educação dos filhos. Depois me deterei em um
convite à misericórdia e ao discernimento pastoral perante
situações que não correspondam plenamente ao que o Se-
nhor nos propõe; e, finalmente, traçarei breves linhas de
espiritualidade familiar.
7. Devido à riqueza que os dois anos de reflexão do ca-
minho sinodal ofereceram, esta Exortação aborda, com
diferentes estilos, muitos e variados temas. Isto explica a
sua inevitável extensão. Por isso, não aconselho uma leitura
geral apressada. Poderá ser de maior proveito, tanto para as
famílias como para os agentes de pastoral familiar, aprofun-
dar pacientemente uma parte de cada vez ou procurar nela
aquilo de que precisam em cada circunstância concreta. É
provável, por exemplo, que os esposos se identifiquem mais
com o quarto e quinto capítulo, que os agentes pastorais
tenham especial interesse pelo capítulo sexto, e que todos
se sintam muito interpelados pelo oitavo. Espero que cada
um, através da leitura, se sinta chamado a cuidar com amor
da vida das famílias, porque elas “não são um problema, são
sobretudo uma oportunidade”.
Rosto de Misericórdia

578 Irmãos e irmãs de criação!


Reciprocidade, solidariedade
e gratuidade
Aprender a cuidar da Casa Comum
com os povos indígenas da Amazônia
O Papa Francisco lançou em 2015 a Encíclica Laudato Si’
(LS) “sobre o cuidado da Casa Comum” e declarou 2016
como o Ano da Misericórdia. A Campanha da Fraternidade
deste ano tem por tema “Casa Comum, nossa responsabili-
dade” e por lema “Quero ver o direito brotar como fonte e
correr a justiça qual riacho que não seca”, citando o profeta
Amós (5,24).
Todas estas iniciativas eclesiais nos encorajam para com-
prometer nosso coração, vida e missão, profeticamente,
com a defesa da vida de todos os seres e com o cuidado da
“Casa Comum”. Provocam-nos a um compromisso mais
afetivo, efetivo, consciente e urgente com a “Mãe Terra”
e o “Bem Viver” – em categorias indígenas –, especial-
mente ali onde as feridas estão mais abertas e a vida mais
ameaçada.
“Qual é hoje a nossa missão comum e profética com a
Amazônia e seus povos?”, perguntava nossa mártir profe-
tiza Ir. Dorothy Stang, assassinada no dia 12/02/2005 em
Anapu (PA).
A etimologia da palavra “misericórdia” vem do latim:
miseratio (compaixão) + cordis (coração). Assim, pode-se
entender literalmente misericórdia como “coração com-
padecido”, “coração cuidadoso” com a necessidade do po-
bre, do próximo necessitado. A misericórdia é um termo
amplo que se refere a benevolência, perdão e bondade em
uma variedade de contextos éticos, religiosos, sociais, le-
gais, e hoje podemos ampliar seu horizonte ao contexto
da “ecologia integral” que nos propõe o Papa Francisco na
Laudato Si’ sobre o cuidado da Casa Comum.
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

As florestas tropicais são órgãos vitais do planeta. Elas


representam 6% da superfície da Terra e concentram 70%
579
das espécies conhecidas. Do total dos bosques primários
no planeta, a Amazônia tem 34%, a bacia do Congo 8% e
as florestas tropicais da Malásia 22%. A investigação cien-
tífica aponta que, de cada três seres vivos conhecidos, um
está na Pan-Amazônia (1/3 da biodiversidade do planeta).
E os pesquisadores afirmam que 1/5 (20%) da água doce
do mundo (não congelada) concentra-se na Amazônia,
isto é, de cada cinco copos de água que um ser humano do
planeta bebe, um vem da Amazônia.
No bioma amazônico habitam cerca de 400 povos indí-
genas. Somam uma população de 3 milhões, falam umas
250 línguas diferentes pertencentes a 50 famílias linguísticas
principais. A enorme biodiversidade da Pan-Amazônia tem
gerado uma grande sociodiversidade. Estes povos indígenas,
com suas cosmovisões holísticas e culturas de reciprocidade,
são os guardiões da floresta.
Por isso, a Amazônia e seus povos indígenas são funda-
mentais, são fontes de sabedoria milenar de reciprocidade
e cuidado, de justiça socioambiental com a humanidade,
o planeta e o cosmos. Esta região é um “órgão vital” que
regula o equilíbrio sistêmico do planeta e assegura o futuro
da humanidade. Assim o afirmam os bispos da Conferência
Episcopal Latino-Americana e Caribenha no Documento
de Aparecida (2007):

Criar nas Américas consciência sobre a importância da Amazô-


nia para toda a humanidade. Estabelecer entre as Igrejas locais
de diversos países sul-americanos, que estão na bacia amazôni-
ca, uma pastoral de conjunto com prioridades diferenciadas para
criar um modelo de desenvolvimento que privilegie os pobres e
sirva ao bem comum (DAp, 475).

Na Laudato Si’ (2015) o papa Francisco insiste nesta


importância estratégica das florestas tropicais e denuncia
Irmãos e irmãs de criação! Reciprocidade, solidariedade e gratuidade

580 a disputa violenta pelo controle destes territórios e seus


recursos naturais por parte das grandes potências e do
grande capital:

Mencionemos, por exemplo, os pulmões do planeta repletos


de biodiversidade que são a Amazônia e a bacia fluvial do
Congo, ou os grandes lençóis freáticos e os glaciares. A im-
portância destes lugares para o conjunto do planeta e para o
futuro da humanidade não se pode ignorar. Os ecossistemas
das florestas tropicais possuem uma biodiversidade de enor-
me complexidade, quase impossível de conhecer completa-
mente, mas quando estas florestas são queimadas ou derru-
badas para desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se
inúmeras espécies, ou tais áreas transformam-se em áridos
desertos. Todavia, ao falar sobre estes lugares, impõe-se um
delicado equilíbrio, porque não é possível ignorar também
os enormes interesses econômicos internacionais que, a pre-
texto de cuidar deles, podem atentar contra as soberanias
nacionais. Com efeito, há “propostas de internacionalização
da Amazônia que só servem aos interesses econômicos das
corporações internacionais” (LS, 38).

Uma imagem que tem percorrido o mundo e ganhado


prêmios internacionais é a da mulher Awá-Guajá amamen-
tando um filhote de porco do mato (queixada). Foi tomada
pelo fotógrafo Pisco del Gaiso em 1992, na sua visita ao
povo Awá-Guajá da família linguística Tupi-Guarani que
habita a Amazônia Brasileira, no Maranhão. Na atualida-
de, a população Guajá é de 500 pessoas, das quais se estima
que cerca de 25 vivam isoladas e não querem contato com
a sociedade envolvente. O território dos Awá-Guajá está
demarcado, porém sofre grandes pressões devido às ma-
deireiras, fazendas e agronegócio que desmataram todas
as terras circundantes a seus territórios e continuamente
invadem, inclusive, as áreas demarcadas para extrair ma-
deira ilegalmente.
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

A Deusa que nos cuida e amamenta! 581


Os dados mais recentes da Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) apresen-
tam 105 referências de indígenas isola-
dos no Brasil, majoritariamente espa-
lhados pela Amazônia. Na Pan-Ama-
zônia a estimativa é de cerca de 145
povos isolados e no mundo uns 165.
O isolamento destes povos é devido à
violência histórica sofrida, infringida
pela “sociedade ocidental civilizada”,
com seu modelo capitalista depredador de desenvolvimen-
to. O Brasil é o país do mundo com maior número de gru-
pos humanos isolados. Isto é uma grande responsabilidade!
O Papa Francisco adverte: “O desaparecimento de uma cul-
tura pode ser tanto ou mais grave do que o desaparecimento
de uma espécie animal ou vegetal” (LS, 145).
O que desperta em nós esta imagem da mulher Awá-Gua-
já amamentando um porquinho do mato? O que ela mo-
vimenta em nossas entranhas mais profundas ao contem-
plá-la? O que “coraçona-razona” o nosso coração-razão ao
deixar-nos tocar por ela? Nesta imagem está contida, de
forma impactante e sintética, a proposta profética e reite-
rativa da “Laudato Si’ sobre o cuidado da Casa Comum”! Tudo
está conectado! (LS: 16, 42, 91, 117, 138, 240 etc.). Todos e
todas estamos profundamente conectados/as. Todos os seres
do mundo são “irmãos e irmãs de criação” (Papa Francisco).
A imagem fala forte em muitos sentidos. A mulher está
“nua” – livre – igual à criança e ao porquinho. Ela fica de
cócoras e com um joelho apoiado na terra. Em atitude ter-
na, simples e humilde de acolhida e adoração, de respeito
ante o mistério grandioso da vida. Olha para o porquinho,
não para seu filho. Está concentrada no pequeno animal.
Ele é o mais frágil e débil neste momento. A mulher não
pega o porquinho e o levanta para amamentá-lo, ficando ela
em pé comodamente. Ela facilita que o porquinho se sinta
cômodo e seguro. Ela desce ao encontro do mais frágil. Ele
Irmãos e irmãs de criação! Reciprocidade, solidariedade e gratuidade

582 fica com duas patas na terra e as outras na coxa de sua “mãe
de leite”, que com cuidado o assegura com a mão direita.
Tranquilamente ele mama. Sente-se protegido e cuidado
pela “mãe” que o alimenta. O rosto da mulher não aparece,
está concentrado no seu novo “filhote”; atenta ao mais frá-
gil e necessitado. Ele é o centro da cena. A mulher, com o
braço esquerdo, assegura seu filho. A criança também está
tranquila e segura. Não estranha o gesto da mãe amamen-
tando o porquinho. Não fica com ciúme, nem disputando
com seu “irmão de leite” o apreciado manjar. Essa partilha
com os outros irmãos e irmãs de criação forma parte do co-
tidiano da vida... A criança aprende, desde muito pequena,
a partilhar até o mais sagrado para ela naquela etapa de vida,
o leite materno. Aprende a partilhar que todos os seres são
“irmãos e irmãs de leite”. Por volta está a floresta, a “Casa
Comum”. A criança observa. Aprende com o testemunho
da mãe que todos os seres que nela habitam estão profun-
damente interligados. Que uns necessitam dos outros. Que
um não pode ser, nem existir, sem os outros. Que na Casa
Comum ninguém sobra. Que cada ser, por mais insignifi-
cante que pareça, é precioso em si mesmo por ser criatura
de Deus (LS, 140).
Investigações antropológicas apontam que os povos que
nascem em regiões desérticas ou semidesérticas, como,
por exemplo, o povo judeu, têm associada e reforçada
uma imagem masculina de Deus. A oração que o povo
semita faz ante a terra seca é: “Derrama, Senhor, a chuva
sobre a terra para que ela fecunde e dê frutos!”. Ao con-
trário, os povos que nascem nas florestas tropicais têm
uma imagem feminina de Deus. Um Deus mulher, Deu-
sa, que acolhe, protege e amamenta diariamente todos
os seus filhos e filhas, todos os seres que habitam em seu
seio, no “útero da floresta”. Se o povo conhece os ciclos
da floresta e do rio, do peixe, das frutas, dos animais etc.,
cada dia a floresta e o rio lhe oferecem aquilo que neces-
sita, o amamentam e alimentam com seus frutos. Se ele
respeita e cuida da floresta e do rio, sem ser ambicioso e
sem explorar mais do que necessita, a floresta e o rio lhe
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

darão generosamente ao dia seguinte o que precisa para


continuar o ciclo da vida. Neste ponto os povos indí-
583
genas são muito sábios! Eles sabem administrar e cuidar
dessa “economia da abundância” que a Mãe Terra gene-
rosamente lhes oferece. Conta Fernando López:

Na minha experiência, a primeira vez que vi uma cena como da


mulher Awá-Guajá foi com o povo Aché Guarani do Paraguai,
na aldeia Chupapoy (1988). Uma mulher ia para o rio com um
pote de barro na cabeça e com seu filhinho pendurado numa
tipoia junto aos peitos. Dois pequenos filhotes de porco-do-
-mato seguiam a mulher. Fiquei encantado. A mulher carregou
água no rio e voltou para sua casa. Os porquinhos voltaram
com ela. Descarregou o pote e se ajoelhou para amamentar os
porquinhos. Quando vi aquele gesto, meu encanto se quebrou.
Exclamei espontaneamente: “Que selvagens são!”. Hoje, 28
anos depois, tenho a certeza de que o selvagem sou eu! Sou eu
quem tem que aprender com os povos indígenas o caminho da
reciprocidade e do cuidado com a Casa Comum e com todos os
seres que nela habitamos como irmãos e irmãs de criação!

É muito normal encontrar estas cenas entre os povos


amazônicos: mulheres que amamentam filhotes de ma-
cacos, veados, porcos do mato, antas etc. Andando pelas
aldeias, sempre encontramos cenas maternas comoventes
como estas.
O que aconteceu em todos estes casos? Quando se pergunta
às mulheres em guarani: “mba’erepa remokambu ichupe?” – “Por
que o amamenta?” –, elas com naturalidade respondem sem-
pre com uma história parecida: “Os caçadores saíram cedo,
antes do amanhecer. Nas primeiras horas do dia não encon-
Irmãos e irmãs de criação! Reciprocidade, solidariedade e gratuidade

584 Este princípio de reciprocidade basilar universal está pro-


fundamente enraizado e entranhado nos povos indígenas.
Especialmente em aqueles povos com menos contato com a
cultura ocidental envolvente. Ao contrário, esta reciproci-
dade primordial está profundamente quebrada no Ociden-
te. Assim o afirma o Papa Francisco (LS, 202):

Muitas coisas devem reajustar o próprio rumo, mas antes de


tudo é a humanidade que precisa mudar. Falta a consciência de
uma origem comum, de uma recíproca pertença e de um futuro
partilhado por todos. Esta consciência basilar permitiria o de-
senvolvimento de novas convicções, atitudes e estilos de vida.
Surge, assim, um grande desafio cultural, espiritual e educativo
que implicará longos processos de regeneração.

O sistema capitalista rompeu o princípio de reciprocidade


entre os seres da criação ao mercantilizar tudo e colocar o
ídolo dinheiro como centro e valor absoluto. “Não se pode
servir a dos senhores” – denunciou Jesus –, “não se pode
servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24).
Os povos indígenas são experiências milenares de cuidado
recíproco da Casa Comum, de Bom Viver e Bom Conviver
com todos os seres que habitam o universo. Deles pode o Oci-
dente reaprender este caminho de sabedoria. Os povos indíge-
nas não são teoria social, eles são experiências vivas de outros
modos de relação e convívio com os seres da Casa Comum.
As relações de reciprocidade e cuidado dos povos in-
dígenas levantam um questionamento muito profundo a
nossa sociedade ocidental, onde se fomenta muito o valor
da solidariedade, porém sem uma cultura da reciprocidade
no cotidiano da vida. Igualmente pode ocorrer dentro da
própria Igreja. Falamos muito do valor da gratuidade e o
vivemos algumas vezes, porém no cotidiano da vida não
somos gratuitos. Uma solidariedade e gratuidade que não
se fundamentam numa atitude e cultura cotidiana da re-
ciprocidade podem ser pura ideologia que justifica nosso
consumismo desenfreado e depredador e que mantém a
injustiça do atual sistema. A reciprocidade e o cuidado são
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

a base em que se sustenta uma verdadeira solidariedade,


gratuidade e misericórdia.
585
Os povos indígenas da Amazônia nos ensinam a cuidar de
quatro relacionalidades fundamentais: de nós mesmos, dos
outros iguais, dos outros seres diferentes da natureza, do
planeta e do cosmos; e assim cuidar de nossa relação profun-
da com Deus, o Deus da Vida presente em toda sua criação.

Quatro relacionamentos fundamentais


no cuidado da Casa Comum

Deus da Vida

1 Eu Outro-Eu

3
4

Outro
Natureza
Cosmos

Os povos indígenas nos ensinam a restabelecer uma sadia


e sustentável relação entre Ecologia, Política e Economia
dentro da Casa Comum que partilhamos com os outros se-
res criados. No atual modelo de desenvolvimento imposto
no Ocidente, a economia se impõe determinando o políti-
co e subordinando o ecológico. Este modelo de “ditadura
do capital” é depredador e suicida. Por outro lado, é falsa
a proposta daqueles que sustentam a ideia de que ecologia,
política e economia estão no mesmo nível de importância e
em relação de igualdade. A relação que os indígenas vivem,
Irmãos e irmãs de criação! Reciprocidade, solidariedade e gratuidade

586 há milhares de anos, e que demonstra de modo irrefutável


sua sustentabilidade é: no “útero da ecologia” (Casa Co-
mum), no mundo de recursos limitados é que devem ser
construídos os projetos políticos viáveis que busquem o bem
comum de todos os seres que habitam o planeta; e a econo-
mia, entendida como “administração da casa”, deve estar a
serviço e subordinada ao bem comum (política), dentro das
possibilidades e limites da Casa Comum (ecologia).
Em outras palavras: dentro do “útero da ecologia”, dos
recursos limitados da Terra, de suas possibilidades e limites,
é que se dão os distintos projetos políticos sustentáveis, aos
quais a economia deve subordinar-se e estar a seu serviço.
Por último, na cosmovisão indígena o mistério da vida no
“útero ecológico” está gerada, vivificada e custodiada pe-
lo(s) Espírito(s)!

O útero da ecologia: três paradigmas


relacionais entre economia-política-ecologia

Não é por acaso que a Igreja procura reconhecer seus


erros históricos na sua relação com os povos indígenas do
continente Ameríndio, Abya Yala (“Terra Madura” em lín-
gua Kuna), e que também reconheça hoje e valorize pro-
fundamente o dom destes povos. No Documento de Apa-
recida (2007) os bispos latino-americanos agradecem: “A
Igreja valoriza especialmente os indígenas por seu respeito à
natureza e pelo amor à Mãe Terra como fonte de alimento,
Casa Comum e altar do compartilhar humano” (DAp 472).
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

Na Laudato Si’ o Papa Francisco anuncia a boa-nova dos


povos indígenas e denuncia os grandes projetos que não res-
587
peitam a vida destes povos e da Casa Comum que habitam:

Neste sentido, é indispensável prestar uma atenção especial às


comunidades aborígenes com as suas tradições culturais. Não
são apenas uma minoria entre outras, mas devem tornar-se os
principais interlocutores, especialmente quando se avança com
grandes projetos que afetam os seus espaços. Com efeito, para
eles, a terra não é um bem econômico, mas dom gratuito de
Deus e dos antepassados que nela descansam, um espaço sagrado
com o qual precisam interagir para manter a sua identidade e os
seus valores. Eles, quando permanecem nos seus territórios, são
quem melhor os cuida. Em várias partes do mundo, porém, são
objeto de pressões para que abandonem suas terras e as deixem
livres para projetos extrativos e agropecuários que não prestam
atenção à degradação da natureza e da cultura (LS, 146).

Afirmava o profeta-mártir Ir. Vicente Cañas, SJ, antes de


ser assassinado (06/04/1987) em Mato Grosso por defender
a vida dos 97 Enawenê-Nawê (contatados por ele e Thomas
Lisboa, SJ, em 1974) que sobravam, vítima da violência dos
fazendeiros: “Entre os cristãos tradicionais é que se deve
encontrar e descobrir algumas Sementes do Verbo. Entre os
Enawenê-Nawê, verdadeiro restinho de Javé, essas sementes
já produzem frutos de vida, de bem-aventurança”.
E como afirma hoje o Pe. Bartomeu Melia (antropólogo
jesuíta especialista no mundo guarani e que morou com Vi-
cente junto aos Enawenê-Nawê): “Estou cansado de ouvir
que os povos indígenas são um empecilho para o desenvol-
vimento... Muito pelo contrário eles são ‘sementes milena-
res de solução’ e ‘fontes de esperança’ para muitos dos graves
problemas que tem gerado o Ocidente com seu sistema ca-
pitalista depredador de desenvolvimento!”.
A Amazônia e seus povos indígenas são fonte de vida, de
sabedoria ancestral no cuidado da humanidade e do planeta!
Os povos indígenas são sementes de solução milenárias e
fontes de esperança para o Ocidente, para a humanidade e
Irmãos e irmãs de criação! Reciprocidade, solidariedade e gratuidade

588 o planeta. Esta visão indígena do “útero ecológico” é total-


mente antagônica com o atual modelo capitalista imposto
pela “ditadura econômica”. Nesta visão “uterina” da Mãe
Terra, é que os povos indígenas vivem os sábios princípios
1 Arizete Miranda do “bem-viver, bem-conviver”, da reciprocidade e do cui-
Dinelly é indígena Sa-
teré-Mawé. Pertence à dado com todos os seres que na Casa Comum convivemos.
Congregação de Nossa
Senhora – Cônegas
Esta perspectiva de vida mais indígena associa intrinseca-
de Santo Agostinho, é mente uma espiritualidade mais conectada, holística e rela-
membro do Conselho cional: “Deus em todas as coisas e todas nele”, diria Inácio
Indigenista Missioná-
rio (CIMI) e fundado- de Loyola. Ou na experiência espiritual de Francisco e Cla-
ra da Equipe Itinerante ra de Assis, que viviam a relação de irmandade com todas as
(1998). Atualmente
coordena um novo
criaturas: “irmão Sol, irmã Lua…”.
projeto itinerante O Ocidente tem perdido este caminho de sabedoria. É
na tríplice fronteira
amazônica de Brasil,
urgente que, com a ajuda dos povos indígenas, o reencontre
Peru e Colômbia, a pelo bem e o futuro da humanidade e do planeta, para que
serviço da Rede Ecle- nossos filhos e filhas, e os filhos de nossas filhas possam con-
sial Pan-Amazônica
(REPAM). E-mail da tinuar a dança da vida na Casa Comum, nossa Mãe Terra!
autora: arizete2013@
gmail.com.
2 Raimunda Paixão Arizete Miranda Dinelly1
Braga é indígena do Raimunda Paixão Braga2
alto rio Solimões. Lei-
ga membro do CIMI,
Fernando López Pérez3
fundou o núcleo da
Equipe Itinerante na
tríplice fronteira de
Brasil, Peru e Colôm-
bia (2004). Atualmente
continua na Equipe
Itinerante no núcleo
de Manaus e colabo-
ra com a REPAM.
E-mail da autora:
raimundapaixao87@
gmail.com.
3 Fernando López é
jesuíta. Fundou a Equi-
pe Itinerante (1998) e
é membro do CIMI,
atuando na equipe de
“Índios em situação de
isolamento”. Também
colabora com a RE-
PAM. E-mail do autor:
jflopezperez@gmail.
com.
Mártires / santos

Helder Camara: 589


dom de Deus para os pobres

[…] Os fracos descobrem que eles se tornam


fortes e invencíveis à medida que
se encontram, que se unem,
não para pisar nos direitos dos outros,
mas para impedir
que pisem em seus direitos fundamentais,
que não são presentes
dos governos ou dos poderosos…
São um presente do Criador e Pai!

(Dom Helder Camara, Sinfonia dos dois mundos).

Dom Helder buscou e viveu profundamente a santidade.1


É provável que nos próximos anos seu nome conste no câ-
non romano. Aliás, temos boas notícias neste sentido. É que
a Arquidiocese de Olinda e Recife enviou à Congregação
da Causa dos Santos o pedido para abrir o processo de bea-
tificação de Dom Helder. O aval da Santa Sé foi ratificado
por meio de uma carta enviada pelo Prefeito da Congrega-
ção dos Santos, o Cardeal Angelo Amato, em menos de dez
dias depois que o responsável pelo Dicastério confirmou o
recebimento do pedido.
Isto é algo maravilhoso, ao menos por dois motivos: a) não
houve bloqueio ao processo, como no caso do Bem-aventu-
1 Ivanir Antonio
rado Dom Oscar Romero; b) o aval, normalmente, é dado Rampon, “Helder
depois de consultas aos diferentes Dicastérios, a fim de ve- Camara: ‘O Dom
da Santidade’ – A
rificar se não há nada contra a ortodoxia da fé e a santidade visão helderiana de
do candidato registrado nos arquivos. Ora, de Dom Helder santidade”.
abundavam denúncias de grupos conservadores, integralis- 2 Ivanir Antonio
Rampon, Francisco e
tas, ligados à TFP, ao governo ditatorial brasileiro e outros.2 Helder: sintonia espiri-
O rápido aval para iniciar o processo de beatificação ajuda a tual, 24-25.
Helder Camara: dom de Deus para os pobres

590 entender o quão ideologicamente injustas e maldosas eram


as denúncias e as acusações ao Dom da Paz acolhidas em
ambientes curiais, embora o Bem-aventurado Paulo VI,
amigo espiritual de Dom Helder, tanto estimasse e estimu-
lasse a atuação pastoral helderiana em prol da justiça, do
amor, da verdade, da paz, da misericórdia…3
A seguir, apresentamos uma breve biografia de Dom Hel-
der. Sobre o Dom, dá para escrever muito e de muitas ma-
neiras. Por exemplo, no livro O caminho espiritual de Dom
Helder Camara,4 acompanhamos a sua caminhada espiritual
desde a sua infância até a sua morte, percebendo quais foram
as constantes de sua espiritualidade e os seus progressos, ou,
em linguagem espiritual helderiana, as suas “conversões”, as
“humilhações” sofridas e as “gentilezas do Senhor”. Além
de acompanhar o caminho espiritual de Dom Helder, o
próprio leitor daquela obra é desafiado a fazer o seu cami-
nho espiritual com o Dom!

Infância e juventude
Dom Helder Camara nasceu no Ceará. Sua família, do
ponto de vista econômico, pode ser definida como pobre.
Porém, do ponto de vista cultural pode-se defini-la como
classe média, uma vez que seu pai era jornalista, sua mãe
professora, seus parentes próximos fizeram cursos superiores,
quando grande parte da população cearense era analfabeta.
A boa experiência humana, religiosa, cultural e espiritual
vivida em sua família contribuiu muito para a sua vida cristã
e sacerdotal. No Seminário da Prainha foi um líder entre
seus colegas, destacando-se nos estudos, especialmente, em
literatura. Muito apreciado pelos professores e reitores, logo
3 Ivanir Antonio após ordenado ocupou cargos de relevância na Arquidio-
Rampon, Paulo VI e cese de Fortaleza. Atuou, inclusive, como “Secretário de
Dom Helder Câmara:
exemplo de uma amizade Educação” do Ceará, o que lhe acarretou problemas com
espiritual. o próprio governo, tornando-se um dos motivos para a sua
4 Ivanir Antonio despedida do Ceará e ingresso na Arquidiocese do Rio de
Rampon, O caminho
espiritual de Dom Helder
Janeiro, onde foi recebido pelo Cardeal Leme como “mais
Câmara. uma preciosa esmeralda”.
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

Militância integralista 591


Nos últimos anos de Seminário e no início de seu sa-
cerdócio, Helder militou no integralismo brasileiro. Essa
militância não deixou de ter traços agressivos, coerciti-
vos e maniqueístas. Mais tarde, Helder chamou esta sua
participação no integralismo de “pecado da juventude”.
Para quem tinha aderido ao integralismo em nome de um
futuro mais humano e católico e como forma de defe-
sa contra o comunismo soviético, era humilhante admitir
que os regimes totalitários de Hitler, Mussolini e outros
instigavam perseguição terrorista e racista contra todos os
opositores, além de alimentarem outra “guerra mundial”.
O nazismo e o fascismo, que inspiraram o integralismo
brasileiro, foram reconhecidos como manifestação da bar-
bárie e da decadência, e não como possibilidade de luta
contra o comunismo e o liberalismo burguês. Foi nesse
período que Helder fez amizade com o grande líder do
laicato brasileiro, Alceu Amoroso Lima, e este lhe indi-
cou o livro Humanismo integral, de Jacques Maritain. Tal
obra, que defende um catolicismo aberto e democrático,
contrário a todas as formas de totalitarismos, “sacudiu” o
pensamento do jovem sacerdote.

Desenvolvimento espiritual
Além disso, no Rio de Janeiro, ele teve um grande desen-
volvimento espiritual, tendo o exemplo, o testemunho e a
santidade de São Francisco de Assis como uma referência
fundamental. Mergulhou no método e na mística da Ação
Católica Especializada. O método ver-julgar-agir revelou-
-se eficaz na medida em que ajudava os jovens a refletir so-
bre a própria realidade, identificando os problemas, dando
um juízo à base dos valores evangélicos e tomando decisões 5 Luiz Alberto
operativas para tornar o país mais cristão.5 Estas caracte- Gómez de Souza, A
JUC: Os estudantes
rísticas serão constantes, a partir daí, na espiritualidade do católicos e a política, 63;
então vice-presidente da Ação Católica Brasileira e futuro Nelson Piletti; Walter
Praxedes, Dom Helder
fundador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e Câmara: entre o poder e
do Conselho Episcopal Latino-Americano. a profecia, 165-166.
Helder Camara: dom de Deus para os pobres

592 Bispo no Rio de Janeiro


Sendo muito dinâmico, participativo, carismático nas li-
das pastorais, o Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime
Câmara, quis o Pe. Helder como seu Bispo Auxiliar. Hel-
der foi ordenado Bispo em 1952 tendo por lema “Em Tuas
Mãos” – moto que viveu com profundidade. Grande orga-
nizador do Congresso Eucarístico Internacional, acontecido
no Rio de Janeiro (1955), foi desafiado “a coisas maiores”.
Após o Congresso, atendendo ao apelo profético do Cardeal
Gerlier, Dom Helder começou a investir a sua força mística,
o seu desenvolvimento espiritual, os dons recebidos do Se-
nhor, a sua busca do caminho de santidade, na opção pelos
pobres. Estes provocarão diversas “conversões” no Bispo.
Com eles fará diversas obras no Rio de Janeiro (Cruzada de
São Sebastião, Banco e Feira da Providência…), em Recife
(Banco da Providência, Operação Esperança, Ação Justiça
e Paz, Encontro de Irmãos), na CNBB (Movimento de Al-
fabetização de Base…) e internacionalmente (Grupo Igre-
ja Pobre e Servidora, Pacto das Catacumbas, Peregrino da
Paz, Sinfonia dos Dois Mundos…). O Pontificado de João
XXIII abriu-lhe horizontes. O próprio Papa pediu ao então
Secretário da CNBB e a outros bispos para realizarem um
Plano de Emergência. João XXIII apoiou a linha helderiana
no mundo eclesial brasileiro.6

Arcebispo de Olinda em Recife


Em 1964, Dom Helder foi nomeado pelo amigo Montini,
agora Paulo VI, Arcebispo de Olinda e Recife. Na nova
missão, Dom Helder sabia que devia dar um exigente teste-
munho pessoal caracterizado pela largueza de compreensão,
6 Ivanir Antonio bondade e misericórdia: “A diferença que há entre o fariseu
Rampon, Paulo VI e
Dom Helder Camara: e o santo é sobretudo esta: o fariseu é largo consigo e estrei-
exemplo de uma amizade to com os outros; quer obrigar todo mundo a ir para o céu
espiritual, 49-55
à força. O santo só é exigente consigo: com os pecadores, é
7 Helder Camara,
Revolução dentro da
largo como a bondade divina, sem limites como a miseri-
paz, 27.. córdia do Pai”.7
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

Recentemente também foi publicado pela Comissão Es-


tadual da Memória e da Verdade – que leva o nome de
593
Dom Helder – o dossiê “Prêmio Nobel da Paz: a atuação da
ditadura militar brasileira contra a indicação de Dom Hel-
der Camara”. O dossiê apresenta corrupções efetivadas para
impedir o Prêmio Nobel ao Dom da Paz.
Em breve palavras, podemos dizer que, em Recife, Dom
Helder foi se santificando na ação de Pastor. Sua espiritua-
lidade pastoral é marcada, entre outras, por quatro carac-
terísticas: 1) opção pelos pobres; 2) diálogo com todos; 3)
vivência de uma eclesiologia aggiornada; 4) configuração a
Cristo, o Bom Pastor.

Padre Conciliar – Vaticano II


Antes e depois da transferência para Recife, o Dom foi um
dos Padres Conciliares. O Concílio Vaticano II transfor-
mou-se em uma experiência espiritual decisiva na vida de
Dom Helder Camara. Ele esforçou-se para que o Vaticano
II assumisse a renovação litúrgica, o espírito ecumênico, a
aproximação entre o mundo desenvolvido e o subdesenvol-
vido, a sacramentalidade do Episcopado, e se movesse em
direção do Governo Colegiado da Igreja. Queria superar a
era constantiniana, levando a Igreja aos “perdidos caminhos
da pobreza”. Com prece e ação, ajudava o amigo Paulo VI
nesse momento ímpar da sucessão petrina. Ele foi redator
do Pacto das Catacumbas e o viveu sublimemente. Inclusive,
transformou o Palácio Episcopal em um Centro de Pastoral
Libertadora e foi morar na Igrejinha das Fronteiras. Sobre
como Dom Helder viveu o Pacto das Catacumbas abundam
histórias… O Arcebispo também atuou nas Conferências de
Medellín e a sua participação em Puebla, de certa forma, foi
decisiva para “salvar Medellín em Puebla”.

Testemunho profético
Uma nota especialíssima da santidade de Dom Helder está
na ousadia de ser profeta, e como tal assumiu o compromisso
Helder Camara: dom de Deus para os pobres

594 de falar em nome do Deus dos oprimidos.8 Durante o regi-


me militar, o Arcebispo buscou dialogar com o regime, mas
este foi fechando todas as portas e janelas, pois não suporta-
va a verdade evangélica defendida pelo Arcebispo. É que em
nome do Evangelho de Jesus Cristo, Dom Helder fez uma
profunda opção pelos pobres e se dispôs a dialogar com to-
dos. Essa posição irritava os responsáveis pela ditadura mi-
litar, que o queriam como legitimador religioso do sistema de
opressão.9 A irritação transformou-se em ódio quando, em
maio de 1970, o Arcebispo rasgou a cortina do cinismo e da
mentira na frente de 20 mil pessoas, em Paris, denuncian-
do que havia tortura no Brasil. A partir de então, passou a
ser visto entre os maiores, senão como o maior adversário
político pelo governo autoritário. O governo brasileiro fez
um grande e maldoso “trabalho” para lhe impedir o Nobel
da Paz, e, em 1972, sendo o único candidato favorito, o
governo conseguiu que naquele ano não houvesse premia-
do.10 O regime autoritário não o torturou fisicamente, mas
o golpeou nas lideranças e amigos que foram sendo pre-
sos, torturados e assassinados. Ele, no entanto, foi vítima
de uma campanha de execração nos meios de comunicação
social. Sebastião Ferrarini, no estudo A imprensa e o arcebispo
Vermelho, compilou uma enorme “ladainha de qualificati-
8 Ivanir Antonio vos”, seguramente não completa, atribuída, especialmente
Rampon, Francisco e
Helder:sintonia espiri-
pela direita, ao Dom, no intuito de difamá-lo e execrá-
tual, 112-132. -lo.11 Como o resultado dessa campanha difamatória teve
9 Ivanir Antonio efeito contrário, o governo ditatorial proibiu a imprensa de
Rampon, O caminho
espiritual de Dom Helder
pronunciar o nome de Dom Helder. Foi vítima, então, da
Camara, 302-303. chamada Lei do Gelo. A “cruz” da profecia foi muito pesada
10 Esta investida do para Dom Helder!
governo militar é tra-
tada com detalhes na
introdução do seguin-
te livro: Nelson Pilet-
Peregrino da paz
ti; Walter Praxedes,
Dom Helder Câmara: A partir de 1985, Dom Helder tornou-se Arcebispo Emé-
entre o poder e a profecia rito de Olinda e Recife. Não conseguiu “fazer seu suces-
11 Sebastião Antonio sor”. Sofreu muito pelas atitudes do seu sucessor no governo
Ferrarini, A imprensa
e o arcebispo Vermelho:
da Arquidiocese. De sua parte, viveu a santidade no silêncio
1964-1984, 157-158.. e no sofrimento… Porém, por mais alguns anos continuou
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

sua atuação missionária pelo mundo afora – iniciada na


época do Concílio –, conclamando pessoas, instituições e
595
as “minorias Abraâmicas” para construir a paz, enquanto
fruto da justiça, do amor e do perdão. Fundou movimentos
de paz pelo mundo todo. Recebeu dezenas de doutorados
e outros prêmios importantes devido a sua atuação em prol
dos empobrecidos, da justiça e da paz. Faleceu com noventa
anos e meio, no dia 27 de agosto de 1999.

Místico: as meditações do Pe. José


Tudo o que foi relatado acima torna-se mera cronologia se
não levarmos em conta que Dom Helder era, antes de tudo,
um místico.12 Ele vivia unido à Vida Divina da Santíssima
Trindade e em unidade com Cristo. Cultivava a união mís-
tica principalmente através das Vigílias, da Santa Missa Diá-
ria e da intimidade com Cristo expressa na ação pastoral.
O pensamento de Dom Helder chegava ao público através
de artigos, livros, homilias, programas de rádio e conferên-
cias, com o apoio de amigas e amigos de total confiança,
que formavam uma “Família Espiritual”. Enquanto morou
no Rio de Janeiro, Dom Helder a chamava “Família São
Joaquim” (referência ao Palácio São Joaquim) e, mais tarde,
em Recife, depois de vários nomes, decidiu por “Família
Macejanense”, em referência a Messejena, Fortaleza.
Dom Helder, geralmente, acordava às duas horas da ma-
nhã e permanecia em oração até as cinco, quando retornava
a dormir e acordava as seis para a Santa Missa. Não há como
compreender Dom Helder – sua vida, sua missão, sua pro-
12 Ivanir Antonio
posta – sem afirmar que ele era um místico que às duas da Rampon, O caminho
manhã tinha encontro marcado com a Santíssima Trindade, espiritual de Dom Helder
os Santos e os Anjos do Senhor. Nas Vigílias, transforma- Camara, 397-454.

va tudo em oração, salvava sua unidade com Deus, ajudava 13 Ivanir Antonio
Rampon, O caminho
a humanidade inteira, cultivava o amor, preparava-se para espiritual de Dom Helder
a Missa, escrevia Meditações e Circulares, atualizava-se Camara, 312-322.
teologicamente e fazia comunhão com a Família Maceja- 14 Dom Helder Ca-
mara, Circulares Con-
nense.13 Ele próprio escreveu: “Que seria de mim sem a ciliares, I, 1a Circular,
Vigília…?”.14 de 01/03/1964.
Helder Camara: dom de Deus para os pobres

596 Dom Helder rezava a Missa como se estivesse no céu.


Abundam depoimentos sobre como ele vivia o Mistério
Eucarístico. Para o Dom, a Santa Missa era o momento mais
alto do dia e que se “espalhava para o dia inteiro”… Dizia
que, embora vivesse mergulhado em Deus e unido a Cristo,
na Santa Missa o próprio Cristo vinha celebrar… Comenta-
va que havia recebido do Senhor duas graças especiais – não
que, segundo ele, as merecesse, mas que o Senhor, em sua
infinita misericórdia, lhe havia dado: a de não guardar nada
de ódio no coração e de rezar todos os dias a Santa Missa
como se fosse a primeira, ou seja, sem cair na rotina, no
cansaço, com uma fé simples e profunda!
Durante a jornada, geralmente, dedicava-se a atender e
conversar com as pessoas (lideranças, religiosos, jornalis-
tas… de muitos países). Estava sempre cercado pelos pobres,
pelos excluídos. Nada fazia sem consultar o seu maior Ami-
go. Emprestava seus olhos, ouvidos, boca, coração a Jesus.
Tinha consciência de que sua ação e sua palavra eram ex-
pressão da sua união mística com Cristo. Vivia a sua vida na
presença do amor e da misericórdia do Pai e aberto às inspi-
rações do Espírito Santo. Assim como tantos outros místi-
cos, Dom Helder usou a linguagem poética como forma de
expressar sua experiência espiritual. Chamava seus poemas
de “As Meditações do Pe. José”. Na verdade, Dom Helder
não apenas viveu santamente, mas continua nos iluminando
nas trilhas da espiritualidade libertadora porque se doou,
sublimemente, na ação profética, sacerdotal e pastoral, por
amor a Cristo e a sua Igreja.
Dom Helder não era “religioso”. Era um presbítero dio-
cesano – e depois bispo – que viveu de modo exemplar o
sacerdócio e, por isso, poderia ser declarado como um mo-
delo de santidade para os sacerdotes. Mas embora não fosse
religioso, “é difícil achar um religioso tão religioso como
ele. Muito mais do que muitos religiosos, Dom Helder vivia
pobremente. Assimilou profundamente os pobres e quis ser
pobre como Jesus foi pobre. Deus fez-se pobre e por isso a
pobreza de Dom Helder tinha raízes místicas. […] Não tinha
carro, nem motorista, nem empregada. Não tinha porteiro
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

e abria a porta ele mesmo, ainda que, de nove pessoas que


vinham bater-lhe à porta, nove fossem mendigos…”.15
597

Com planos para a eternidade


Dom Helder Camara disse que tinha planos para eterni-
dade: “Movimentações muito sérias a acertar com os Anjos.
Complots gravíssimos a combinar com Nossa Senhora. Com
Ela no meio, quem poderá temer? […]. Ninguém é mais
louco do que Deus. Ninguém anseia, como ele, por propos-
tas que correspondam ao que há de mais profundo em sua
essência de amor, misericórdia, bondade”.16
Atualmente, o Dom da Profecia deve estar vibrando com
o testemunho profético do Papa Francisco e fazendo “nego-
ciações e complots celestes” pelo Papa das periferias e em prol
de uma Igreja pobre e servidora e de uma sociedade justa,
fraterna, pacífica e ecológica.17 Seguramente, Dom Helder
hoje nos convidaria a ajudar o Papa Francisco na missão de
espalhar e praticar a Alegria do Evangelho, a Cultura do
Encontro, a Revolução da Ternura e o Cuidado com a nossa
Casa Comum.

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SOUZA, Luiz Alberto Gómez de. A JUC: Os estudantes católicos e
a política. Petrópolis:Vozes, 1984.

Pe. Ivanir Antonio Rampon*

* Pe. Ivanir An-


tonio Rampon é
doutor em Teologia
pela Pontifícia Univer-
sidade Gregoriana de
Roma, com tese sobre
o caminho espiritual
de Dom Helder. É
padre na Arquidiocese
de Passo Fundo – RS e
Professor da Itepa Fa-
culdades. Endereço
do autor: Paróquia
São Francisco de Assis,
Rua Aspirante Jenner,
579, Bairro Santa Ma-
ria, CEP: 99070-020.
E-mail do autor:
iarampon@yahoo.
com.br.
Informe

Mensagem da CBJP e da JPIC 599

Brasília (DF), 1o de maio de 2016.


Estimados membros do Episcopado Brasileiro,
Queridas/os Coordenadoras/os Maiores de Congregações
Religiosas e Institutos de Vida Consagrada!
Nós, cristãs/ãos do laicato brasileiro e religiosas/os, re-
unidas/os em Brasília de 29 de abril a 1o de maio, durante
o encontro conjunto da Comissão Brasileira Justiça e Paz/
CBJP, organismo da CNBB, e da Comissão Justiça, Paz e
Integridade da Criação, da CRB-Nacional, reunindo 70
participantes, de 20 Estados brasileiros e DF, saudamos vo-
cês com esperança.
Estamos preocupadas/os com a situação crítica pela qual
está passando o Brasil, que reflete a crise mais ampla em ní-
vel mundial, desde 2008. Estamos comprometidas/os com
as conquistas e avanços sociais que ocorreram nos últimos
trinta anos no Brasil e tememos que ocorra uma ruptura
democrática, com desrespeito à Constituição Brasileira, tão
duramente conquistada. O argumento do combate à cor-
rupção, à qual sempre condenamos, não pode servir de pre-
texto para destituir uma presidente democraticamente eleita
e revogar os direitos alcançados.
Prova dessa perseguição é a criminalização dos povos in-
dígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, pastorais e
movimentos sociais, e suas manifestações públicas pacíficas,
especialmente o CIMI no Mato Grosso do Sul.
Esse espírito se origina no Evangelho de Jesus e no desejo
de vivermos uma Igreja em saída, conforme nos inspira o
Papa Francisco, com seus escritos e testemunho profético.
O apelo que percebemos neste Ano Santo da Misericórdia é
Mensagem da CBJP e da JPIC

600 que nos aproximemos dos mais pobres na sociedade, daque-


las/es inclusive que não se sentem parte da Igreja, visto que
passam pela porta da misericórdia, mas ainda não são acolhidos
em nossas comunidades.
Pedimos, com humildade e veemência, que sejam por-
tadoras/es dessa voz profética, denunciando o golpe à de-
mocracia que se processa no país, solicitando ajuda para os
irmãos do Episcopado do Continente, bem como às Con-
gregações Religiosas do mundo inteiro para que nos forta-
leçam, com orações, apoios, manifestos e ações concretas, a
fim de superar esse momento de dor por que passa a nação
brasileira.
A Igreja se empenhou na iniciativa popular pela Reforma
Política e, por isso, conquistamos o fim da utilização de re-
cursos de empresas nas campanhas eleitorais. Será a primeira
campanha sem o financiamento empresarial. Todavia, para
que tal mudança se efetive, é necessário o empenho para
que denunciemos a corrupção eleitoral, estimulemos candi-
daturas e a escolha consciente de vereadoras/es e prefeitas/
os. Apoiar Pastorais Sociais, grupos de reflexão e de vizi-
nhança, de forma a multiplicar as iniciativas de educação
política e de cuidado com a criação, por meio de escolas de
fé e política, é um bom caminho para esta iniciativa.
Contando com seu apoio, estamos à disposição para servir
a Igreja em mais essa missão profética, com a intercessão de
nossa Mãe, Maria, que nos revela o rosto misericordioso do
Pai nos mais pobres.
Nosso abraço de Paz, na Alegria do Evangelho,

Comissão Brasileira Justiça e Paz – CBJP/CNBB


Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação – JPIC/CRB
Artigos

Ser elegante, dentro de casa! 601

Irmã Annette Havenne*

Da elegância
As comunidades cristãs têm acolhido com muita seriedade
o convite do ano da misericórdia, pelo menos na produção
de textos, artigos, subsídios pastorais. Há o risco de gerar
uma saturação em torno do tema, mesmo na Convergência! Há
também o desafio de ir além do informativo para realmente
entrar num processo de conversão, tomando atitudes e desen-
volvendo habilidades parecidas com as do Pai e de Jesus, seu
ícone: como ser uma VRC movida à misericórdia, na mística
e na profecia, começando em nossas comunidades?
Convidada a contribuir, neste mês de setembro, com uma
reflexão a partir de uma parábola da misericórdia, decidi
sair um pouco dos trilhos e refletir sobre a elegância. Não,
não sou estilista, embora eu aprecie uma roupa que cai bem,
na discreta simplicidade dos lírios campestres!
Mas não estou aqui para falar de tendências para a estação
invernal, e sim para desdobrar toda a riqueza do conceito de
elegância, costurando suas harmônicas humanas e evangé-
licas. Ir à raiz da palavra já inspira e abre novos horizontes,
* Irmã Annette
muito além da superficialidade: Havenne nasceu na
Bélgica. Desde 1976,
Elegância: do latim elegância.1 vive em comunidades
de inserção no Nor-
Bom gosto na escolha das roupas.
deste do Brasil. Exerce
Graça no modo de se apresentar e de agir. seu ministério na área
da formação, acompa-
Harmonia entre o estilo e a interioridade da pessoa. nhamento espiritual
Expressão justa ao traduzir o que se pensa, no uso das palavras. e assessoria junto à
CRB.
Delicadeza no comportamento moral.
1 Dictionnaire Larous-
Distinção, refinamento da pessoa, nas suas relações com os demais. se, 5 volumes. Tradu-
ção livre.
Ser elegante, dentro de casa!

602 Temos aí um itinerário que vai da expressão exterior, a


roupa, passa pela graça do corpo e da ação, segue na coe-
rência que harmoniza o parecer, o fazer e o ser, até chegar
à busca da autenticidade nas palavras, no comportamento e
finalmente no trato respeitoso e amoroso nas relações. De-
cididamente, a elegância nos leva do mundo da alta costura
ou do brechó, passando por orientações que humanizam as
relações, até o coração do Evangelho: o amor de cuidado
consigo mesmo, com Deus, com os outros, com o planeta!
E assim, pela porta do dicionário, entramos na parábola
inserida, tal delicada flor, em Mt 18,23-33. Convido vocês
a reler e a redescobrir o texto, não apenas como a parábola
do servo impiedoso ou cruel, mas como a parábola da fina
elegância de Deus e da suprema deselegância do seu servo,
que pode ser minha, nossa também!

O contexto de Mt 18
Sem pretensão exegética, mas com respeito à dinâmica do
texto, vale lembrar que estamos aqui diante do chamado
discurso eclesial, ou discurso para a comunidade, ou ainda dis-
curso para a Igreja, sendo Mateus o único evangelho a usar
esta palavra.
Anteriormente, no mesmo evangelho, houve outro dis-
curso se referindo à Igreja enquanto comunidade dos dis-
cípulos/as enviados/as em missão (Mt 10). Aí parece que a
preocupação é com as relações internas, portanto, entre os
cristãos, diante da institucionalização, dos conflitos e da sua
possível resolução pela violência e os abusos de poder... De
fato, é dentro de casa que muitas vezes passamos a ser des-
leixados/as e a usar roupas surradas, com a desculpa de que
não importa, que podemos ser nós mesmos/as, ao natural.
Por isso o título desta reflexão: Ser elegante, dentro de casa!
O nosso “sorriso de aeromoça” e a saudação: “paz para esta
casa” fazem parte do kit básico para as visitas pastorais ou va-
lem também entre nós, traços genuínos da alegria que expe-
rimentamos ao voltar para nossa casa e ao partilhar com nossos/
as irmãos/as de comunidade? Como passar da experiência de
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

conviver para o compromisso com a comunidade? Eis o que


a parábola da elegância tem para nos ensinar!
603

A parábola da fina elegância de Deus


Em clima de leitura orante, na perspectiva da misericórdia
como elegância divina, gostaria de propor-lhes esses ques-
tionamentos, com carinho e grato coração:
A fina elegância de Deus: A misericórdia do Pai para comigo:
Reflexão diante de 174.000 kg de ouro!
Um rei decidiu acertar as contas Que bênçãos, benefícios tenho
com seus servos. recebido?
Apresentaram-lhe um que lhe devia Posso contar?
10 mil talentos.
Como não tinha com que pagar, Posso retribuir, mesmo ao preço da
o senhor mandou que fosse vendi- minha vida, dos meus bens?
do junto com a mulher, os filhos e
com tudo que possuía para pagar a
dívida.
O servo caiu de joelhos aos pés do Já experimentei paciência, bondade,
senhor e suplicou:
“Tem paciência comigo e eu te pa- compaixão, benevolência do Pai?
garei tudo!”
Compadecido, o senhor soltou o Acolho seu perdão? Eu me perdoo?
servo e perdoou a dívida.
Compadecido, o senhor soltou o Acolho seu perdão? Eu me perdoo?
servo e perdoou a dívida.
A suprema deselegância do servo: Verificando minha elegância:
Reflexão diante de 30 g de ouro!
Ao sair, aquele servo encontrou um Nas relações com os/as
companheiro que lhe devia 100 companheiros/as:
denários.
Desdramatizar, redimensionar
Agarrou-o e o sufocou, dizendo: Respeitar, tratar com amor fraterno
“Paga o que me deve!”.
Caindo aos seus pés, o companheiro Ser paciente, compaixonado/a
suplicava-lhe:
“Tem paciência comigo e eu te pa- Perdoar do fundo do coração (v. 35).
garei tudo!”
Mas o outro negou e o pôs na prisão Deixar que o/a outro/a seja!
até que pagasse a dívida (Mt 18,23-30).
Ser elegante, dentro de casa!

604 E o fim da parábola?


“Os companheiros ficaram profundamente tristes e fo-
ram informar o senhor de tudo. Então, mandando vir o
servo, o senhor lhe disse: “Servo mau, eu te perdoei toda
aquela dívida porque me tinhas suplicado. Não devias, tu
também, compadecer-te do teu companheiro como eu
mesmo me compadecera de ti?”. Cheio de cólera, seu se-
nhor o entregou aos verdugos até que pagasse tudo o que
devia. Assim vos tratará meu Pai celeste, se cada um de
vós não perdoar a seu irmão do fundo do coração” (Mt
18,31-35).
Desproporção incrível entre as duas dívidas!2 Contraste
ainda mais incrível entre as duas reações: passamos da fina
elegância para a suprema deselegância do servo que assusta
e entristece seus companheiros de serviço. Parece que o fim
da parábola é um desastre. Tudo começou tão bem, mas
termina com todos “de mal” e sem querer mais saber de
perdão, inclusive o rei, supostamente representando o Deus
da misericórdia infinita!
Contradição com o que Jesus acaba de anunciar? Justiça
oposta à misericórdia? Na realidade não é a única pará-
bola que nos coloca diante das consequências das nossas ati-
tudes e opções. Quando recusamos nos abrir para iniciar
um processo de perdão em relação ao irmão/ã, pomos
limites a nossa capacidade de receber o já oferecido per-
dão de Deus.
Em vez de nos deter na imagem de Deus como um rei
irado, por que não usar nossa imaginação para inventar um
novo fim para a sempre viva parábola?
• E se os companheiros tivessem chamado o servo desele-
gante para falar?
• E se tivessem suplicado ao rei um agir diferente?
• E se tivessem feito um mutirão para pagar a dívida?
2 Bíblia de Jerusalém,
• E se experimentássemos reescrever a parábola dentro da
nota em Mt 18,24. nossa comunidade de vida?
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

Uma comunidade movida a misericórdia… 605


Para muitos/as de nós o ano da VRC ajudou a perceber
melhor o essencial da nossa vocação e missão e a desejar vol-
tar a experiência fundante do mistério de Deus e do chama-
do de Jesus em nossas vidas. Como foi bonito o congresso
da VRC com seu caminho mistagógico! Como foi rica a
reflexão e a partilha entre formadores/as no Seminário de
Fortaleza! Como foi forte o apelo lançado no Congresso das
Novas Gerações: “Lázaro, vem para fora”, escolhe a vida,
partilhe sua alegria, ouse a vida consagrada a Jesus e para o
povo!
Mas nada disso tomará feições concretas e duradouras se
não nos decidirmos agora por um convívio regado a miseri-
córdia em nossas comunidades. A memória viva do coração
do Mestre só se mantém acolhendo e repartindo entre nós
o perdão que fez pulsar aquele coração até o entregar para
nós. A chave que abre a porta santa do ano da misericórdia,
não para entrar na basílica São Pedro ou em nossa catedral
diocesana, e sim para sair às periferias existenciais, é esta:
viver de perdão recebido e dado.
A psicologia está aqui para comprová-lo: em qualquer área
da personalidade, somente uma pessoa que faz uma expe-
riência pessoal tem flexibilidade para mudar ideias e atitudes,
para sair dos benditos (!) preconceitos, paradigmas, ideolo-
gias engessadas. Experimentar o perdão recebido de Deus
muda nossa visão e nossas atitudes diante das “enormes”
ofensas de “30 gramas” que achamos não ter condições ou
obrigação de perdoar.
Somos homens e mulheres consagrados/as que vivem em
comunidades de discípulos missionários, conscientes de ser
pecadores/as perdoados/as por Deus e repartindo seu perdão
entre si e com o povo. Somente essas experiências profun-
das e concretas do perdão de Deus e da misericórdia entre
nós nos capacitam para ser portadores/as humildes, leves e
alegres de uma boa notícia: não ao julgar, não ao condenar,
sim ao perdão, sim ao dom! (Lc 6,36-37)
Ser elegante, dentro de casa!

606 Estamos vivendo sempre mais, inclusive em nossas comu-


nidades de fé, num mundo líquido, com relações fluidas. Isso
também pode ser uma chance para a vida espiritual e nossa
conversão permanente: não para viver light e desfazer com-
promissos sem se importar, mas para desfazer-se com leveza
dos sentimentos que nos maltratam e envenenam a comuni-
dade: dor, raiva, tristeza, rancor, ressentimento, fechamento,
vingança. Para parar de alimentar, num silêncio de vítima
ferida, pensamentos mortíferos que nos colocam para baixo e
nos fazem ver os outros como algozes ou inimigos.
Li num velho livro de espiritualidade3 – às vezes ainda
servem – que o santo Cura d’Ars pedia a Deus “um cora-
ção líquido”, como o coração dos grandes santos. Não, ele
não tinha lido Zygmut Bauman; ele intuía que um coração
líquido não era um coração descompromissado, era um co-
ração que deixava fluir o rio da misericórdia divina, não o
retendo para si.

Uma palavra para a liderança


Há também no capítulo 18 de Mateus uma palavra espe-
cialmente direcionada aos dirigentes da comunidade-Igreja.
Afinal, é Pedro quem faz a pergunta sobre a aritmética do
perdão. Parece que o serviço de liderança nos faz sentir de
modo agudo o peso das misérias pessoais e nos faz sofrer
mais com os limites nossos e dos irmãos/as.
A tentação de dar ouvidos aos companheiros/as entristeci-
dos/as e fofoqueiros/as, de reagir duramente, de usar a auto-
ridade para consertar as pessoas, de desanimar achando que
não tem mais jeito… podem minar energias, ferir corações
e quebrar relações.
Por que não acolher o convite a olhar também a liderança
com um novo olhar, e a fazer dela, segundo a bela expressão
3 Cura d’Ars,
de Roger Schutz,4 “um serviço de misericórdia”? Pode ser
Pregações. que o maior abuso de poder seja a falta de perdão e de mi-
4 SCHÜTZ, Roger. sericórdia para com os companheiros/as... a começar pelos
Dinâmica do provisó- mais complicados/as.
rio. São Paulo: Duas
Cidades, 1967.
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

Enfim, para terminar com um desafio elegante, que tal pro-


curar um novo hábito, um novo visual para incentivar a VRC
607
a caminhos de transformação? Vejam a proposta de Paulo que
entendia de comunidade e tinha uma cultura refinada:

Revesti-vos de sentimentos de compaixão, de benevolência, de


humidade, de paciência. Suportai-vos uns aos outros, e se al-
guém tiver alguma queixa contra o outro, perdoai-vos mutua-
mente. Como o Senhor vos perdoou, fazei o mesmo também
vós e acima de tudo revesti-vos de amor!” (Cl 3,12-14).

Questões para ajudar a leitura individual


ou o debate em grupo:
1. O artigo abriu alguma nova perspectiva ou lembrou
um aspecto relevante a respeito da misericórdia?
Qual?
2. Que convite(s) Jesus faz para nossa comunidade
através da partilha em torno da primeira pergunta?
3. Percebo que alguma atitude minha deixa a comu-
nidade triste ou preocupada, às vezes? Gostaria de
pedir perdão por isso?
4. A pergunta três poderia ser retomada pela comu-
nidade num momento celebrativo de reconciliação.
608 Ousemos acreditar
e alegremo-nos!
A misericórdia de Deus ultrapassa
a nossa compreensão!

Tomaz Hughes*

No início do ano, recebi um convite para assessorar um


encontro sobre o tema “A Misericórdia na Bíblia”. Res-
pondi que só poderia aceitar se o encontro fosse bem pro-
longado, pois, para fazer jus ao tema, teríamos que percor-
rer toda a Bíblia, desde a primeira página de Gênesis até o
último capítulo do Apocalipse, pois a misericórdia de Deus
é constante em todas as reflexões e experiências do Povo
de Deus. Já se expressou isso na última frase do último li-
vro escrito do Primeiro Testamento, quando o autor bí-
blico, escrevendo na diáspora judaica em Alexandria, faz
uma belíssima profissão da sua fé: “Sim, ó Senhor! De to-
* Pe. Tomaz dos os modos engrandeceste e tornaste glorioso o teu povo.
Hughes, SVD, é ir-
landês, religioso-mis-
Nunca, em nenhum lugar, deixaste de olhar por ele e de
sionário da Sociedade o socorrer” (Sb 19,22). De maneira mais contundente ain-
do Verbo Divino.
Radicado no Brasil há
da, essa experiência se torna a tônica dos escritos do Novo
43 anos, atua especial- Testamento, expressões da experiência do Novo Povo de
mente na formação Deus, comunidade discípulo-missionária de Jesus Cristo. O
bíblica nas bases e é
assessor bíblico da fato de a insistência do Papa Francisco sobre a misericórdia
CRB e do CEBI. De- como característica fundamental de Deus ter sido acolhida
dica-se a cursos e re-
tiros bíblicos em todo
com tanta alegria e quase espanto, como se fosse algo novo,
o país. Tem publicado talvez seja uma indicação do quanto abandonamos o Evan-
diversos artigos em
Convergência, Estudos
gelho e a figura de Jesus de Nazaré, muitas vezes substituin-
Bíblicos e publicações do esses elementos essenciais da fé por leis, moralismos e
da VRC, e é autor do doutrinas muitas vezes abstratas, enquanto esquecemos da
livro Paulo de Tarso:
discípulo-missionário de ternura, compaixão e misericórdia do Pai, encarnadas em
Jesus (Ed. Pão e Vinho Jesus. Dentro do conjunto dos escritos bíblicos, talvez seja
2015). E-mail do au-
tor: thughes@netpar.
o Evangelho de Lucas que mais chama a atenção ao aspecto
com.br. da misericórdia e compaixão do Pai, manifestado na pessoa,
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

pregação e ação de Jesus. Obviamente, o Terceiro Evange-


lho não tem o monopólio desse tema, que perpassa todos
609
os escritos neotestamentários, mas lhe dá um relevo muito
especial. O motivo disso talvez se ache no contexto em foi
composto e na experiência da comunidade a qual foi desti-
nado, em primeiro lugar.

Misericórdia em uma sociedade cruel


Lucas escreve para comunidades urbanas do império gre-
co-romano, da tradição paulina. Sendo assim, os membros
apresentam um raio X da mistura de etnias, culturas, e
tradições religiosas que eram características das cidades da
Grécia e Ásia Menor da época. Embora, sem dúvida, hou-
vesse a presença de judeus e prosélitos, a maioria era forma-
da de pessoas oriundas do paganismo, ou seja, das muitas
religiões que abundaram na região. Sem dúvida a maioria
era formada de gente escravizada ou das camadas mais bai-
xas da sociedade, com uma minoria letrada e abastada em
termos econômicos. Podemos recordar as palavras de Pau-
lo quando escreveu à comunidade de Corinto: “entre vo-
cês não há muitos intelectuais, nem muitos poderosos nem
muitos da alta sociedade” (1Cor 1,26). A situação era bem
diferente daquela da comunidade de Mateus, por exemplo,
onde também havia pagãos convertidos, mas onde a maioria
era proveniente do judaísmo com a sua longa experiência
da misericórdia de Deus. Majoritariamente os participantes
das comunidades lucanas vinham de uma cultura religiosa
de paganismo, que ainda dominava, cujos deuses não eram
nem misericordiosos nem compassivos. Pelo contrário,
eram caprichosos, capazes de fazer o que queriam com os
humanos, com requintes de vícios e crueldade. Mesmo no
nível inconsciente, essa origem cultural deve ter dificulta-
do – e muito – a capacidade de acreditar num Deus que era
cheio de compaixão.
Assim, tornou-se urgente demonstrar que o único Deus
verdadeiro estava na contramão de uma sociedade religiosa
de crença contrária. Mateus, por exemplo, não tinha que
Ousemos acreditar e alegremo-nos!

610 enfrentar essa dificuldade em demonstrar um Deus de mi-


sericórdia. O perigo de seus leitores era diferente – era de
acreditar muito na misericórdia de Deus para com o seu
povo, dando direito aos “bons” de julgar, rejeitar e ser duros
com os que se consideravam “pecadores”, por não caberem
dentro das normas das práticas judaicas da Lei. Por isso, em
Mateus achamos outra ênfase: “aprendam o que significa
‘Eu quero misericórdia e não o sacrifício’” (Mt 9,13).

Capítulo 15 de Lucas
Talvez não exista no Novo Testamento um capítulo que trate
tão intensivamente do tema de misericórdia como Lucas 15.
O texto é composto de três parábolas que, somente a título de
conveniência, podemos denominar neste artigo como “A ove-
lha perdida e achada”, “A moeda perdida e achada” e “O filho
perdido e achado”. Cabe aqui umas observações preliminares
referentes ao uso de parábolas nos evangelhos. Em primeiro
lugar, para que provoque o efeito desejado no seu ouvinte (ou
leitor), uma parábola deve usar imagens e símbolos conheci-
dos. Como Jesus falava no ambiente rural palestinense de dois
mil anos atrás, naturalmente usava imagens daquele contex-
to – muitas vezes alheias à experiência dos ouvintes moder-
nos, frequentemente oriundos de contextos urbanos. Assim,
com certa facilidade o ouvinte moderno corre o risco de não
entender bem o sentido da parábola. Na sua forma original,
a parábola não trazia uma explicação como conclusão. Cabia
ao ouvinte descobrir o sentido da história. Por isso Jesus fre-
quentemente terminava desafiando: “Quem tem ouvidos para
ouvir, ouça!”. Como a parábola trabalha com símbolos, pode
ser polissêmica, ou seja, capaz de comportar diferentes explica-
ções, conforme a realidade do interlocutor. Para que fique mais
clara a meta de Lucas em escrever este capítulo, é importante
que o aprofundemos na sua integridade, ou seja, como obra
literária que tem uma estrutura e uma organização interna.
A chave da sua interpretação, com certeza, achamos nos pri-
meiros três versículos, que nos definem o contexto, o motivo
e os destinatários primários do texto: “Todos os cobradores de
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

impostos e pecadores se aproximavam de Jesus para escutá-lo.


Mas os fariseus e os doutores da Lei criticavam Jesus, dizen-
611
do: ‘Esse homem acolhe pecadores e come com eles!’ Então
Jesus contou-lhes esta parábola”. Lucas destaca o fato de que,
exatamente as pessoas que eram excluídas como impuras pela
religião oficial da época, correram para ouvir Jesus – obvia-
mente porque se sentiam acolhidas e amadas por ele, pois lhes
transmitia a certeza da misericórdia de Deus para com todos.
Isso despertou fortes críticas contra Jesus por parte das lideran-
ças religiosas – representadas aqui pelos fariseus e doutores da
Lei. Seria importante refletirmos sobre o motivo dessas críti-
cas, pois, contrariando uma visão que existe frequentemente
no meio dos cristãos, esses homens normalmente não eram
malvados ou de má vontade. Pelo contrário, muitos entre eles
seguiram a risco todas as minúcias da Lei do Senhor, e dedi-
cavam-se extraordinariamente às práticas do judaísmo do seu
tempo. O Deus deles era o Deus de Jesus, o Deus dos ante-
passados, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, o Deus de Israel.
Porém, havia um elemento que distinguia a sua experiência
de Deus daquela de Jesus. Para eles, Deus era o Santo, e por
isso rejeitava o pecador. Para Jesus, também Deus era o Santo,
e por isso fazia de tudo para que o pecador não se perdesse.
Para essas lideranças, como Jesus comia com pecadores (na cul-
tura de então, o ato de comer com alguém colocava a pessoa
no mesmo nível dos comensais), então ele não podia ser de
Deus. Para Jesus, comer com essas pessoas era a demonstração
do verdadeiro rosto de Deus, compassivo e misericordioso, que
não rejeita ninguém. Por isso ele conta essas parábolas, que no
contexto do capítulo 15 estão dirigidas em primeiro lugar aos
fariseus e legistas, para contestar a sua visão de Deus e revelar
a verdadeira identidade da divindade – misericórdia e compai-
xão. É precisa então levar esses versículos em conta ao lermos
cada uma das três parábolas.

A ovelha perdida e achada


As três parábolas do capítulo só achamos em Lucas. Há
uma bem semelhante aos versículos 4-7 em Mt 18,12-14,
Ousemos acreditar e alegremo-nos!

612 mas uma leitura atenta demonstrará diferenças fundamen-


tais. O contexto mateano é o “Discurso Eclesiológico” e a
parábola é dirigida aos discípulos, às lideranças das comuni-
dades, e não aos fariseus e doutores da Lei. No contexto do
capítulo 18, Mateus parece estar pensando nos “pequenos”,
ou seja, nos membros mais simples da comunidade que cor-
rem o risco de se perder por causa do desprezo (v. 10) ou
do excesso da severidade dos dirigentes (v. 21), de que po-
deriam ser vítimas. Na verdade Mateus não trata de ovelha
“perdida” mas “desgarrada”, que saiu da comunidade por
causa do mal-estar causado pelas atitudes dos chefes. Lu-
cas, porém, fala claramente da ovelha “perdida”, o pecador
que se perdeu no seguimento de Jesus. Vale notar que am-
bos os termos encontramos na denúncia de Ezequiel contra
os maus pastores de Israel, quando ele se queixa que eles
“não trazem de volta as que se desgarraram e não procuram
aquelas que se extraviaram” (Ez 34,40). Frequentemente as
parábolas, por serem tão conhecidas, sofrem uma certa ba-
nalização na sua interpretação. No v. 4, Jesus pergunta aos
ouvintes se, tendo cem ovelhas e perdendo uma, não dei-
xariam os noventa e nove no campo para procurar a perdi-
da. A nossa tendência é responder automaticamente “sim”...
porque não somos pastores. Na Palestina de Jesus nenhum
pastor faria isso! Seria loucura! Um pastor que terminasse o
ano com noventa e nove ovelhas sadias para o abate, tendo
perdido somente uma, teria achado o ano o mais produtivo
da sua vida. Correr atrás da perdida, só um louco faria! É
exatamente isso que Jesus quer dizer – Deus faz loucuras
por amor e misericórdia. Ele não se sossega enquanto ainda
tem uma ovelha perdida, pois quer a vida plena, a salvação,
para todas. O nosso Deus é um Deus “que faz loucuras por
amor!”. Jesus aqui está bem na tradição do profeta Deute-
ro-Isaías, quando, em Is 55,10-11, Deus cutuca seu povo
dizendo “Os meus projetos não são os projetos de vocês, e
os caminhos de vocês não são os meus caminhos… tanto
quanto o céu está acima da terra, assim os meus caminhos
estão acima dos caminhos de vocês, e os meus projetos estão
acima dos seus projetos”. Na parábola a alegria do pastor
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

(imagem de Deus), quando resgata a ovelha perdida, não


tem proporção com o valor do achado, humanamente fa-
613
lando. Deus não age como nós, Deus não tem os critérios
dos fariseus e doutores da Lei. Deus é pura misericórdia e
por isso “enlouquecido pelo amor”.

A moeda perdida e achada


Uma das características do Terceiro Evangelho é ser o
Evangelho da Fraternidade e Igualdade Homem/Mulher.
Com certeza, para desafiar a sua comunidade, mergulhada
em uma sociedade machista que marginalizava a mulher, a
recuperar a prática de Jesus, Lucas não perde oportunidade
de enfatizar a condição igual de ambos os sexos como dis-
cípulos-missionários de Jesus. Assim sendo, depois de retra-
tar Deus pela imagem de um pastor, Lucas o revela agora
através da imagem de uma mulher que tinha dez moedas
e perdeu uma. De novo, a cena é tipicamente palestinense.
As casas pobres dos camponeses, feitas de barro, não tinham
janelas, para que ficassem mais frescas. A única abertura era
uma porta estreita e baixa. Assim, perdendo uma moeda
dentro da casa escura, a mulher “acende uma lâmpada, var-
re a casa e procura cuidadosamente, até encontrar a moeda”.
Quando a acha, chama as amigas para festejar com ela a
recuperação de uma única moeda… podemos imaginar que
faz festa gastando mais do que o valor da moeda achada!
Novamente, há desproporção entre a alegria dela (imagem
de Deus) e o valor da moeda achada, humanamente falando.

O pai e os dois filhos


O capítulo 15 contém um dos textos religiosos mais co-
nhecidos do mundo – que comumente, talvez inadequada-
mente, intitulamos “O filho pródigo”. Na verdade, uma lei-
tura cuidadosa demonstrará que na verdade a figura menos
importante do texto é o “filho pródigo”. Fundamentalmen-
te a parábola põe em relevo duas atitudes diante da realidade
da fraqueza humana – a do pai (vivida na prática por Jesus)
Ousemos acreditar e alegremo-nos!

614 e do filho mais velho (que encarna a atitude dos fariseus e


doutores da Lei!). É importante lembrar que os primeiros
três versículos do capítulo estão também ligados a esta pa-
rábola – é por causa da atitude dos fariseus e escribas que
Jesus conta essa história. Infelizmente, como estamos muito
acostumados com essa parábola desde a infância, com fre-
quência não prestamos atenção ao texto e arriscamos perder
muita da riqueza que contém. A cena inicial nos mostra o
filho mais jovem pedindo que o pai reparta a herança entre
os seus dois filhos, e o rapaz saindo da casa. A nossa reação
normalmente é de indignação – vai esbanjar a herança que
o pai trabalhou tantos anos para ajuntar. A tendência é de
avaliar o delito do filho mais moço na ótica financeira –
típico dos valores da nossa sociedade atual. Na verdade, o
erro do rapaz é muito mais grave. Pois, até os dias de hoje,
a não ser por orientação jurídica, o normal em uma família
é repartir a herança do pai depois da sua morte. No fundo,
o filho está dizendo ao pai que este só tem valor para ele
morto! E como não morre, então que divida os bens. Até
na nossa sociedade neoliberal pós-moderna uma tal atitude
seria um escândalo no seio de uma família. Imaginemos
então em uma sociedade patriarcal como a do tempo de
Jesus – seria difícil para os seus ouvintes imaginar maior
insulto, ofensa, rejeição da própria pessoa do pai! Depois
de esbanjar tudo, o filho cai na desgraça no meio de uma
fome que assolava o país onde se encontrava e teve que se
submeter a um trabalho duro, cuidando de porcos em uma
fazenda. Novamente precisamos levar em conta a diferença
cultural entre os ouvintes de Jesus e os leitores modernos.
Em muitas regiões do nosso país é normal que as famílias
se dediquem totalmente ou pelo menos parcialmente a sui-
nocultura. Sem dúvida um trabalho duro e sujo, mas uma
sujeira que se resolve com banho e uma troca de roupa.
Nada demais para nós. Mas é preciso recordar que, para a
cultura judaica do tempo de Jesus, o porco era considerado
o mais impuro dos animais, diante de Deus, e que tocar em
porcos deixava as pessoas em um estado de profunda impu-
reza diante do Senhor. Trabalhar como o rapaz era a maior
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

degradação imaginável de um judeu. Estava no fundo do


poço mesmo, em todos os sentidos.
615

Gratuidade no perdão – Nem imaginar


Dos porões da humanidade, o rapaz procura uma saída:
“Vou encontrar meu pai e dizer a ele: ‘Pai, pequei contra
Deus e contra ti; já não mereço que me chamem teu filho.
Trata-me como um dos teus empregados’” (vv. 18-19). Fi-
nalmente, podemos pensar, ele “criou vergonha” e vai se hu-
milhar. Tomemos cuidado para que não percamos o cerne
da questão. Por que não vai pedir para ser recolocado com a
dignidade de filho? Porque lhe parece inconcebível que pu-
desse existir um amor tão gratuito da parte do pai. O filho
usa um raciocínio diferente: “não mereço que me chamem
teu filho” – desloca a questão da área da gratuidade para a de
“merecimento”. É o raciocínio deste mundo, não de Deus
nem de quem realmente ama. Pois, quando se trata de “me-
recimento”, se torna questão de retribuição, ou, quando mui-
to, de justiça. Elimina a gratuidade, a misericórdia, a compai-
xão. Resolvido, o moço faz o que decidiu – volta à casa do
pai. Agora o enfoque do texto cai sobre a figura e a ação do
patriarca. Enfatiza que, quando o filho “ainda estava longe,
o pai o avistou e teve compaixão” (v. 20b). Como o avistou,
se estava ainda longe? Porque o pai estava esperando que vol-
tasse! A parábola não nos diz se se passaram semanas, meses
ou anos até a volta... só nos mostra o pai esperando com pa-
ciência e amor. Ressalta a reação dele: “teve compaixão, saiu
correndo e o cobriu de beijos” (v. 20b). Nenhuma palavra
de recriminação, de reprovação, de correção, só a alegria do
reencontro em ambiente de compaixão. De fato, o filho diz
ao pai aquilo que tinha ensaiado – enfatizando o fato de que
não ousava pedir para retornar como filho, mas que estava
somente pedindo um emprego, por piedade. É importante
notar o que o pai responde ao moço – simplesmente não res-
ponde! Pois a lógica do “merecimento” é estranha ao pai. A
sua realidade é a lógica do amor, gratuidade, misericórdia e
perdão. Em lugar de se perder em uma discussão estéril sobre
Ousemos acreditar e alegremo-nos!

616 “merecimento”, o pai manda preparar uma festa, “porque


este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido
e foi encontrado” (v. 24).

Uma reação contrária


Talvez nos pareça que a parábola deveria ter terminado
aqui – com todos alegres e em ritmo de festa. Mas, se termi-
nasse, não teria alcançado a sua meta, que era de questionar
a atitude dos fariseus e doutores da Lei e demonstrar que
eles não estavam testemunhando a misericórdia e a compai-
xão do Deus que eles pregavam. Por isso entra em cena ago-
ra o filho mais velho. Ao saber do motivo da festa, enche-se
de cólera e ressentimento e se recusa a adentrar no local da
festa! Notável é a reação do Pai: “o pai, saindo, insistiu com
ele” (v. 28). O pai sai atrás do filho mais moço, mas também
atrás do mais velho! É sempre o pai que toma a iniciativa,
que é o protagonista da reconciliação. (Notemos a mesma
atitude em Jesus – come nas casas dos pecadores, mas tam-
bém nas casas dos fariseus e escribas!). Mas o mais velho
rejeita a visão do pai. A partir da sua autorreferencialidade,
confiante na própria justiça, ele rejeita não somente o ir-
mão, mas também o pai, pois a lógica do amor e gratuidade
não entra na sua cabeça. Vale notar a linguagem diferente
do pai e do filho mais velho. O irmão primogênito recla-
ma: “Quando chegou esse teu filho, que devorou seus bens
com prostitutas, matas para ele o novilho gordo” (v. 30). O
linguajar do pai compassivo é bem outro: “Era preciso fes-
tejar e nos alegrar, pois este teu irmão estava morto e tornou
a viver; estava perdido e foi encontrado” (v. 32).

Em que Deus acreditamos?


Todo esse capítulo desafia um tipo de religião que di-
vide a humanidade em “justos” e “injustos”, e que com
facilidade cria grupos que “confiam na sua própria justiça
e desprezam os outros” (cf. Lc 18,9). Frequentemente essa
visão faz com que escondamos o verdadeiro rosto de Deus,
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

que é compaixão e misericórdia, para substitui-lo com uma


projeção de nós mesmos, severos, moralistas, duros com os
617
fracos. Jesus era a presença encarnada do Deus misericor-
dioso e irradiava essa experiência de Deus onde andasse. É
importante que cada cristão faça a experiência da misericór-
dia e compaixão de Deus na sua vida, para depois testemu-
nhar esse verdadeiro Deus nas suas relações diárias. Vale a
pena recordar as palavras do Documento de Aparecida: “O
discípulo-missionário há de ser um homem ou uma mulher
que torna visível o amor misericordioso do Pai, especial-
mente para os pobres e pecadores” (DA 147). Nisso consiste
essencialmente o seguimento de Jesus!

Questões para ajudar a leitura individual


ou o debate em grupo:
1. Em clima de oração, partilhe a sua experiência do
Deus que é Misericórdia.
2. A nossa comunidade Provincial/local é um espaço
da prática de misericórdia? Como melhorar?
3. Como posso ser sinal da presença misericordiosa de
Deus no meu dia a dia?
618 Sobre Marx, Piketty
e os lírios do campo

Pe. Nicolau João Bakker*

Introdução
Marx dispensa apresentação, mas Piketty, para o público
da Igreja em geral, ainda é um tanto desconhecido. Preci-
samos apresentá-lo brevemente. Trata-se de um economis-
ta francês que, em 2013, publicou o surpreendente livro
O capital no século XXI que, imediatamente, se tornou o
best-seller do ano. “Um livro fantástico”, observou o Prê-
mio Nobel americano Paul Kruger. “Extraordinária pes-
quisa histórica”, acrescentou o conhecido economista bra-
sileiro Antônio Delfim Netto. O famoso diário inglês The
Guardian não deixou por menos: surgiu “o rockstar da eco-
* Pe. Nicolau João
Bakker é missionário
nomia”, sentenciou.
verbita (SVD), forma- E nós, religiosos, religiosas, padres, leigos ou leigas da
do em Filosofia, Teo-
logia e Ciências So- Igreja temos algo a ver com isso? Sim, muito. É a razão do
ciais. Atuou sempre na nosso artigo. Assim como Karl Marx, economista do sécu-
pastoral prática, rural
e urbana. Representa
lo XIX, teve grande influência sobre o pensar e o agir das
a CRB no Conselho diferentes sociedades, assim também Thomas Piketty terá
Estadual de Proteção forte influência sobre o pensar e o agir das sociedades nas
a Testemunhas (Pro-
vita-SP). Atualmente próximas décadas. Nunca devemos esquecer que o sistema
atua na Paróquia S. econômico de uma sociedade constitui o “eixo” a partir
Arnaldo Janssen, em
Diadema-SP. Além de
do qual as engrenagens sociais se movimentam. Todas as
cartilhas populares, instituições de uma sociedade podem ser analisadas a partir
publicou diversos deste eixo, inclusive a Igreja, a Vida Religiosa e a Pastoral.
artigos pastorais em:
REB, Vida Pastoral, Qual a ânsia mais profunda que habita os seres vivos na
Verbum, Grande Sinal e opinião dos biólogos evolucionistas? Simplesmente: viver,
Convergência. E-mail
do autor: nijlbak-
conviver e sobreviver da melhor forma possível! Quando
ker@hotmail.com. Richard Dawkins escreveu seu livro O gene egoísta (1976),
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

ele deixou claro que, em qualquer espécie viva, os genes


egoístas e altruístas se articulam entre si para preservar a
619
“Vida”. Com base nesta ânsia biológica, as sociedades se or-
ganizam e “se institucionalizam” para obter êxito. Hoje, a
Economia e a Política são as expressões laicas deste anseio
humano. As diferentes espiritualidades humanas e as insti-
tuições “eclesiais” são sua expressão religiosa. No Concílio
Vaticano II, a Igreja se conformou com a direção laica do
mundo, mas não deixou de afirmar que a Igreja está aí para
indicar o rumo (GS 73-76).
Também a Vida Religiosa está aí para oferecer “vida
plena” ao mundo ( Jo 10,10). Será que Piketty tem algo a
contribuir? Logo mais o veremos. Quanto a Marx, todos
sabemos que, fazendo da religião um ópio, ele se tornou,
por muito tempo, o inimigo número 1 da Igreja. Hoje,
um século e meio depois, o julgamento é, digamos, mais
matizado. Não se pode negar que também Marx – como
nós – sonhava com o que ele dizia ser o “Homem Novo”.
Também ele se batia por uma Nova Sociedade. Como, na
época, as espiritualidades reinantes se voltavam quase ex-
clusivamente para o cuidado da alma ou do espírito, Marx
tachou a Igreja de alienada... não sem um bocado de razão.
Vivesse hoje na América Latina, talvez pudesse ser um com-
panheiro de caminhada. Sua análise econômica (e política),
no entanto, foi muito perspicaz. Piketty mostrará alguns
equívocos, mas não o supera. Veremos que a ambos faltou
entender melhor por que os insignificantes lírios do campo
se vestem tão bem.

Qual a análise que Piketty faz do capitalismo?


Durante quinze anos, com diferentes equipes altamente
especializadas, Piketty pesquisou, passo a passo, a evolução
do capitalismo dos últimos trezentos anos, utilizando para
isso as fontes mundiais mais confiáveis. Traz todos os resul-
tados em gráficos e tabelas que, além de muito didáticos,
são também muito consistentes. É difícil contestar esses da-
dos objetivos. Como aborda um amplo período histórico,
Sobre Marx, Piketty e os lírios do campo

620 iremos nós também apresentar a tese de Piketty de acordo


com fases históricas específicas, mas, antes, devemos, por
algum momento, entrar na sala de aula e aprender com Pi-
ketty o que é “renda nacional”. A renda nacional se divide,
tradicionalmente, em “renda do capital” e “renda do tra-
balho”. Quem tem um capital, seja uma terra produtiva,
um imóvel, uma fábrica, um equipamento, ou então um
capital meramente financeiro, como depósitos bancários,
fundos de aposentadoria, ações, juros, títulos públicos ou
privados, dividendos, etc., sempre terá a possibilidade de
fazer o capital render alguma coisa. Somando a renda anual
de todos os proprietários de capital de um país, obteremos a
“renda do capital” daquele país. Por outro lado, quem não
vive de capital, vive de salário. Somando o valor de todos os
trabalhos assalariados (incluindo trabalhos não assalariados),
obteremos a “renda do trabalho” do país. Juntando capi-
tal e trabalho teremos a “renda nacional” (não incluímos
a “renda externa líquida”, por ser em geral insignificante).
Muito bem. Vejamos agora o que nos mostram os gráficos
de Piketty.

O capitalismo antes da Primeira Guerra Mundial


(até 1914)
Piketty mostra que, na época de Marx, e até a Primei-
ra Guerra Mundial, a renda nacional estava extremamente
concentrada nas mãos de poucos possuidores de capital. Na
Europa em geral, em 1910, o estoque do capital nacional, a
preço de mercado, valia a soma de seis a sete anos de renda
nacional. Um patamar nunca mais visto. As rendas do ca-
pital (exclusivamente) representavam de 35 a 40% da renda
nacional, e a renda do trabalho de 60 a 65%. O capital pode
ser dividido entre público e privado. No caso, estamos ape-
nas falando do capital privado. Marx não pôde fazer uma
análise de longo prazo, mas via muito bem o fortalecimento
do capitalismo industrial de seu tempo e o baixíssimo nível
dos salários, então estagnados. Se olharmos para a riqueza
em geral, incluindo também as heranças recebidas no pas-
sado, os 10% mais ricos da população possuíam até 90% da
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

riqueza total do país (ficando 50 a 60% disto apenas para o


centésimo – o “1%” – superior). Resumindo: não existia
621
uma classe média, uma vez que a quase totalidade da rique-
za estava nas mãos de poucos abastados.

O capitalismo no tempo das duas Guerras Mundiais


(1914-1945)
A partir da Primeira Guerra Mundial, o capitalismo eu-
ropeu muda, significativamente, de fisionomia. O valor do
estoque do capital privado nacional despenca, algo jamais
imaginado por K. Marx. Se antes valia entre seis e sete anos
de renda nacional, em 1945 valia apenas entre dois e três
anos, dependendo do país. O patamar mais baixo da his-
tória. A renda do capital que antes representava em torno
de 35 a 40% da renda nacional baixou para menos de 20%,
e a renda do trabalho subiu de 60 a 65% para quase 80%.
Olhando novamente para a riqueza em geral, podemos ob-
servar que os 10% mais ricos da população, que antes pos-
suíam até 90% da riqueza total, agora possuem por volta
de 75% (o centésimo superior, sozinho, 30%!). O que mais
chama a atenção é o valor do estoque do capital nacional,
que baixou violentamente. O que aconteceu? Evidente-
mente, as duas guerras fizeram um grande estrago, mas não
foi somente isso. A crise da bolsa de Nova York, em 1929,
baixou o valor das ações, a revolução bolchevique (1917)
criou insegurança e os sindicatos se tornaram mais fortes. O
fator principal, porém, foi o fato de os países introduzirem,
na primeira metade do século XX, um forte imposto pro-
gressivo sobre a renda. É preciso prestar atenção a este fato,
porque é o que, até certo ponto, “controla” o capital (ou
o capitalista) de forma permanente, sem interferência dos
imprevistos históricos. Resumindo: o capital balançou e o
trabalho mostra a cara.

O capitalismo nos “Trinta anos gloriosos” (1945-1975)


Durante quase dois séculos, os economistas (e os políticos)
se posicionavam em dois campos opostos: ou se era um li-
beral, ou se era um marxista. Deu na “guerra fria” da qual
Sobre Marx, Piketty e os lírios do campo

622 os mais idosos, ou idosas, entre nós ainda se lembram. Não


que não houvesse vozes divergentes, mas elas eram pouco
ouvidas. Depois da Segunda Guerra Mundial, porém, entre
1945 e 1975, surgiram na Europa – para facilitar a compreen-
são, ficamos com o exemplo europeu, embora Piketty mos-
tre muitas outras realidades – os assim denominados “Trinta
Gloriosos” que deram aos países europeus um novo rosto.
Foi quando o capitalismo industrial realmente se generalizou,
criando raízes profundas. Se o crescimento anual médio da
economia por habitante, normalmente, não passava de 1 ou
2%, nos Trinta Gloriosos alcançou de 3 a 4% (1950-1970).
Essa pequenina diferença nos números representa, no longo
prazo, uma enormidade em recursos a mais para os países
em questão. Novas tecnologias e uma educação generalizada
geraram um aumento constante na produtividade, o que pos-
sibilitou uma melhor distribuição dos lucros, também fruto
de um operariado mais aguerrido. Já vimos que a crise da
bolsa de Nova York e as duas guerras mundiais, entre outras
razões, ensinaram aos países o caminho do imposto progres-
sivo sobre as rendas. Além do mais, a forte inflação engoliu
boa parte das imensas dívidas públicas do pós-guerra. Tudo
colaborou para o surgimento do tão falado Well-fare State
(Sociedade do Bem-Estar Social) europeu. Para muitos, o ca-
pitalismo se tornou, definitivamente, a única proposta séria.
Com um pouco de presença do Estado (alguma estatização,
impostos progressivos e apoio bancário especial nas crises),
tudo estaria resolvido da melhor forma para sempre.
Vejamos o que nos mostram os gráficos de Piketty sobre
este período: o valor do capital privado subiu de 2 anos
de renda nacional para 2,5 anos de renda nacional; a renda
exclusiva do capital na renda nacional sobe para 21% e a
renda do trabalho desce para 79%. O décimo superior das
altas rendas detinha 75% da riqueza total do país em 1945 e
um pouco mais de 60% em 1975. Aparentemente oscilações
modestas. Qual então a grande novidade? A novidade é que,
nesse período, mesmo se mantendo a renda do trabalho per-
to dos 80%, houve uma forte diminuição da desigualdade
entre os trabalhadores. Veja isto melhor no próximo tópico.
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

A evolução recente do capitalismo (1975 até hoje) 623


O capitalismo mundial passou por uma grande “virada”
a partir da década de 1970. A Europa em geral entrou num
longo processo de estagflação (estagnação + inflação), con-
vencendo muitos economistas (e políticos) que algo esta-
va errado. Criou-se forte ojeriza à presença do Estado na
economia. Os governos Thatcher/Reagan introduziram
a nova onda neoliberal, com forte redução de impostos e
uma liberalização generalizada das restrições ao capital (em
especial ao capital financeiro globalizado). Os gráficos de
Piketty mostram que, neste novo período, o valor do capital
privado sobe de 2,5 para 4 a 6 anos de renda nacional, de-
pendendo do país, com clara tendência de subir ainda mais
nas próximas décadas. Nos países desenvolvidos em geral,
a renda do capital se estabiliza agora em 30% da renda na-
cional e a renda do trabalho em 70%. Observa Piketty: “O
desenvolvimento de uma verdadeira ‘classe média patrimo-
nial’ constitui a principal transformação estrutural da distri-
buição da riqueza nos países desenvolvidos no século XX”.
E: “Estamos assistindo à volta triunfal do capital privado
nos países ricos desde os anos 1970, ou, mais do que isso,
ao ressurgimento de um novo capitalismo patrimonial”. Se
em 1910 os 10% mais ricos da Europa detinham a quase to-
talidade da riqueza nacional (até 90%), em 2010, o décimo
superior possuía 60% da riqueza total (o centésimo superior,
sozinho, 25%!); o grupo do meio quase 35% e os 50% mais
pobres algo pouco acima de 5%. Diz Piketty: “A metade
inferior da população dos países desenvolvidos é tão pobre
hoje quanto era no passado”. Nos Estados Unidos, a desi-
gualdade é ainda maior, ficando os 50% mais pobres com
miseráveis 2% (o décimo superior com 72%!).
Falando somente da renda do trabalho, Piketty faz distin-
ção entre desigualdade baixa, média e alta. Como exemplo
de desigualdade baixa cita o caso dos países escandinavos de
1970-1980, para desigualdade média a Europa (2010) e para
desigualdade alta os EUA (2010). Os resultados são os seguin-
tes: os 10% mais ricos dos países escandinavos recebem 20%
da renda do trabalho (o 1% mais rico 5% e os 9% seguintes
Sobre Marx, Piketty e os lírios do campo

624 15%); na Europa, os 10% mais ricos recebem 25% (o 1% mais


rico 7% e os 9% seguintes 18%); nos EUA, os 10% mais ricos
recebem 35% (o 1% mais rico 12% e os 9% seguintes 23%).
Os 40% do meio recebem 45% nos países escandinavos, 45%
na Europa e 40% nos EUA. Os 50% mais pobres recebem
35% nos países escandinavos, 30% na Europa e 25% nos EUA.
Um/a observador/a menos atento/a poderia pensar: se os
capitalistas (em geral) ficam com 30% da renda nacional,
ainda sobram 70% para quem vive do trabalho. Nada mal!
Na verdade, nada mais enganador do que isso. Trata-se
sempre de um pequenino grupo de capitalistas que enri-
quece muito, em oposição a uma imensa maioria que apenas
vê o navio passar. Piketty tem o grande mérito de mostrar,
com dados convincentes, a grande e crescente disparidade
entre os possuidores do capital, como também entre os pos-
suidores dos salários. Em 1987, os bilionários eram cinco em
cada cem milhões de habitantes adultos do mundo; em 2013
eram trinta. Estão sentados sobre pilhas e pilhas de dinhei-
ro, investidas frequentemente em especulação financeira
sem nenhuma relação com qualquer produção significativa.
Nos EUA, um grande grupo, publicamente, fez um apelo
ao Presidente Obama para aumentar seus impostos, sinal
evidente da anormalidade da situação. No mundo do traba-
lho, o centésimo ou milésimo superior, em geral executivos
das grandes corporações ou “experts” de grandes fundos de
investimento, chegam a ganhar facilmente cem vezes mais
do que a média salarial do país. Isto sem relação alguma com
um suposto (ou alegado) aumento de produtividade útil. O
sistema “enlouqueceu”, diz Piketty. A perspectiva de futuro
é especialmente alarmante se levarmos em conta que, de
1987 a 2013, as maiores riquezas mundiais cresceram, em
média, já descontada a inflação, 6-7% ao ano, contra 2,1%
ao ano para a riqueza média mundial por habitante adulto.

Entre Marx e Piketty, com quem ficamos?


No século XIX, o século de Karl Marx, o capitalismo
industrial se espalhou por toda a Europa, dando altos lucros
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

aos capitalistas, enquanto os salários, extremamente baixos,


ficaram estagnados. Não é preciso entrar em detalhes, to-
625
dos sabemos das péssimas condições de trabalho na época.
Marx, observador atento da situação, chegou à seguinte
conclusão: os capitalistas estão criando os seus próprios co-
veiros! A concorrência entre os proprietários do capital os
obriga a procurar os mais altos lucros possíveis, e o caminho
mais óbvio é baixar os salários o mais que puderem. O re-
sultado final de tudo isso só pode ser um grande confronto
entre proprietários e trabalhadores. Mais cedo ou mais tarde
ocorrerá a revolução operária e então surgirá uma Nova
Sociedade, sem exploração do ser humano. Marx não teve
o mesmo privilégio de Piketty de poder fazer uma análi-
se de longo prazo, nem teve às mãos a mesma quantida-
de de dados objetivos. Percebeu o processo permanente de
acumulação do capital mediante os lucros, mas não podia
imaginar o aumento permanente da produtividade com sua
possibilidade de distribuir os lucros entre faixas cada vez
mais amplas da população operária. Marx também não po-
dia prever o surgimento de um Estado Social mediante a
aplicação sistemática de impostos progressivos sobre as ren-
das e a criação de políticas públicas generalizadas.
Em O capital no século XXI, Piketty reúne uma quantidade
impressionante de dados históricos e elabora uma proposta
diferente de Marx. Diz, explicitamente, que muito cedo foi
vacinado contra a falácia dos economistas marxistas que, ao
invés de partir de dados objetivos, se prendem à ideologia.
Não questiona os eventuais altos lucros nem o mercado livre.
Pelo contrário, saúda-os como necessários e indispensáveis.
Até as desigualdades sociais são bem-vindas, desde que “fun-
dadas na utilidade comum”, conforme a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa (1789). Para
o autor, o Iluminismo e a Modernidade deram ao mundo
ocidental os valores da democracia (em especial a democracia
“meritocrática”) e da justiça social que devem ser prestigia-
dos. Mas como harmonizar o mercado livre e a justiça social
no contexto de uma “acumulação infinita” do capital? Esse
é o ponto central do livro. Piketty observa que Marx errou
Sobre Marx, Piketty e os lírios do campo

626 ao falar dos coveiros, uma vez que o capitalismo não entrou
em colapso. Muito pelo contrário, está hoje mais forte do
que nunca. Mas Marx acertou, ele diz, quando afirma que o
capital tende a uma acumulação sem limites. Diversas vezes
Piketty faz questão de observar que não existem mecanismos
naturais dentro do sistema capitalista que vão na direção de
uma superação espontânea das desigualdades. Em seus grá-
ficos encontramos a presença constante de uma “linha em
forma de U”: antes da Primeira Guerra Mundial, uma li-
nha reta, lá nas alturas, quando o capital alcança sete anos
de renda nacional; em seguida uma forte queda com a vinda
da crise da Bolsa, das guerras, do estatismo e dos impostos
altamente progressivos; e a partir de 1950 uma nova tendên-
cia ascendente com a linha agora já beirando os seis anos de
renda nacional. Só existem forças “externas” para controlar a
voracidade do capital, afirma Piketty.
É justamente aí que entra sua proposta central de um “im-
posto progressivo sobre o capital”. O autor lamenta o atual
“extremismo meritocrático” e o abandono dos pesados im-
postos progressivos sobre a renda a partir da introdução da
economia neoliberal. Especialmente nos países anglo-sa-
xões, esses impostos chegaram a 90%, justamente os países
que agora mais os rejeitam. Além do imposto progressivo
sobre as rendas, o autor insiste no aperfeiçoamento do im-
posto sobre a herança. Particularmente no contexto de uma
quase estagnação do crescimento populacional, as heranças
recebidas (contra o espírito da democracia meritocrática que
valoriza o fruto do trabalho) representam parte crescente da
riqueza nacional. Mas Piketty insiste especialmente no im-
posto progressivo sobre o próprio capital, a fim de impor
controle sobre sua acumulação sem fim. O autor reconhece
a grande dificuldade de sua aplicação concreta, uma vez que
a maior parte do capital não é mais constituída, como antes,
de capital imobiliário, mas de um capital financeiro que não
obedece a limites geográficos. Uma pesquisa recente indica
que em torno de 10% destes ativos se encontram em paraísos
fiscais, fora da legalidade. Por isso, Piketty insiste na imperio-
sa necessidade de uma legislação mundial (ou ao menos leis
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

continentais), com um cadastro fidedigno das riquezas indi-


viduais e declarações de renda dentro da realidade. Tudo isso
627
requer um avanço enorme em gestão democrática, com total
transparência, inclusive governamental e bancária.
Quais os dados objetivos que, na opinião do autor, com-
provam a acumulação infinita do capital, algo que Marx
também defendeu, embora de forma mais intuitiva? Entre-
mos na sala de aula de Piketty mais uma vez. Seu argumen-
to mais comum é definido como “r > g”, onde r representa
a taxa média do “rendimento” (ou retorno) do capital (antes
dos impostos) e g a taxa média de crescimento econômico
por habitante. Cada vez que a taxa média de rendimento
do capital num determinado país é maior que a taxa média
de crescimento econômico por habitante, o capital daquele
país se acumula nas mãos dos capitalistas. Pode haver enor-
me diversidade no rendimento dos diferentes proprietários
(e até prejuízos), mas o conjunto dos capitalistas, em média
e a longo prazo, aufere uma parte cada vez maior da renda
nacional. Qual a força das pesquisas de Piketty? Elas de-
monstram que, em todos os países e em qualquer época, as
taxas médias de rendimento do capital, mesmo descontados
os impostos, sempre foram maiores do que as taxas médias
do crescimento econômico. Portanto, apenas fatores exter-
nos e impostos podem impor um controle ao sistema. O
controle mais eficaz, para Piketty, é um imposto progressi-
vo sobre o capital de qualquer origem.

Sobre Jesus e os lírios dos campos


Depois de dialogar exaustivamente com Marx e Piketty,
vem agora a incômoda pergunta: e nós com isso? Qual a
mensagem que estes autores trazem para a Vida Religio-
sa, a Igreja, a Pastoral? Iniciemos pelo seguinte ponto: se
nossa missão principal, de fato, é “dar vida” ao mundo, e
“vida em abundância” como Jesus afirmava, então deve-
mos em primeiro lugar entender o nosso mundo. É preciso
saber como ele funciona, o que o faz prosperar e também
o que pode causar-lhe dano. Mais acima já falamos que a
Sobre Marx, Piketty e os lírios do campo

628 economia é o “eixo” do mundo. Não conhecemos o mun-


do se não conhecemos o eixo que o faz girar. Tudo isso é
mais importante ainda se queremos realmente “dar rumo”
ao nosso mundo. É o que a Igreja, no seguimento de Jesus,
sempre pretendeu fazer, e é o que o Vaticano II pede ex-
plicitamente à Igreja e à Vida Religiosa. Na verdade, não
somos nós que escolhemos o rumo. Quem dá o rumo é o
próprio Jesus Cristo, mediante sua Palavra e seu Espírito.
Mas será que são realmente os economistas que entendem
o nosso mundo? Marx, sem dúvida, foi um economista pers-
picaz que percebeu muito bem com quantos paus se faz uma
canoa. Percebeu, principalmente, que quem não tem a ma-
deira não faz canoa alguma. Mas a visão de Marx estava limi-
tada ao olhar do tempo. Piketty mostra alguns dos seus equí-
(a)
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CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

Jesus conhecia bem este mundo. O capitalismo é tão an-


tigo quanto o próprio ser humano. Já lembramos dos genes
629
egoístas e altruístas de Richard Dawkins. A “Vida” precisa
de ambos para florescer, mas facilmente os genes egoístas
atropelam os altruístas. A tradição judaico-cristã começa
com a advertência de Moisés: é preciso escolher entre a bên-
ção e a maldição (Dt 11,26-28). Jesus complementa: nesta
terra há cabritos e ovelhas. Apenas às ovelhas – os “benditos
do Pai” – é oferecida a herança do Reino (Mt 25,31-46). Os
lírios do campo estão aí, pequenos e insignificantes, mas,
se Deus veste tão bem o que é insignificante, para que se
preocupar tanto? Apenas “os gentios deste mundo” têm ma-
nia de destruir celeiros e construir maiores. “Não tenhais
medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado de vosso Pai
dar-vos o Reino” (Lc 12,13-32).
É vital para nós – e para o mundo – perceber que Jesus não
é o único a levantar esta mensagem. Ele mesmo segue as pe-
gadas dos profetas que o antecederam. As tradições judaica,
islâmica e cristã, todas bebem da mesma fonte. Talvez não
seja por acaso que ela surgiu quando as primeiras civiliza-
ções humanas acumularam riquezas, construindo pirâmides
e torres de Babel. Bem cedo Moisés alertou os hebreus para
não recaírem nesta maldição. Sim, havia a saudade das ce-
bolas do Egito, mas para que se preocupar tanto e encher a
dispensa, se Deus manda o maná da terra todas as manhãs
para cada um/a colher à vontade? E a longa lista dos profe-
tas, não estavam todos preocupados com os altares erguidos
a deuses estranhos? Javé apenas quer misericórdia, e não sa-
crifícios. Tomemos a mística judaica, sufi ou cristã; o rumo
apontado é um só: a felicidade humana não depende do
tamanho do bolso. Melhor nem levar duas túnicas, nem se-
quer andar de mula, como aconselhava São Francisco. Aliás,
todas as místicas do mundo bebem da mesma grande fonte
que é a inerente contingência e miserabilidade humanas. Só
existe um lugar onde o coração humano pode descansar:
em Deus (cf. S. Agostinho). Para aqueles (ou aquelas) que se
alimentam de uma fé já mais secularizada poderíamos dizer
também: todo ser humano, mesmo o que pensa ter deixado
Sobre Marx, Piketty e os lírios do campo

630 sua fé para trás, busca, às vezes desesperadamente, um sen-


tido mais profundo para sua existência. Este sentido nunca
está ao alcance da mão. Nesta terra são encontradas apenas
“vaidades” (Ecl 1,1-18). O melhor está sempre no “além”,
no Outro, na alteridade. Esta mesma espiritualidade “hu-
mana” encontramos também nos mais belos pensamentos
de Lao Tsé, mestre original do taoísmo (do “Caminho”)
chinês, ou nas diferentes vertentes budistas. Religiosidade
não é um privilégio cristão, é o oxigênio que mantém vivas
as sociedades.1
Piketty é um economista generoso, com um bocado de
genes altruístas. f Tmr36 (s T*[(c)11 (h)-29 (i365o)0.4.7 5 (m b)-0.9
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

narrativo-simbólica do Evangelho. Não entende por que


os lírios do campo se vestem tão bem. O mundo ocidental,
631
seja periférico ou central, deixou à margem as religiões, a
espiritualidade. Quem cria o mundo, todos os dias, é Deus,
e Deus faz isto através do seu Espírito, presente na religio-
sidade humana (de todas as religiões). Jesus o intuiu mui-
to bem: os frágeis lírios do campo continuarão florescendo
apenas quando o mundo abrir espaço para o Reinado de
Deus. O capital no século XXI nos remeteu à década de 1970,
quando, no quarto ano de Ciências Sociais, fizemos nos-
sa pré-especialização em economia, escrevendo uma tese
sobre “o PIB e a FIB”: o Produto Interno Bruto é meio; a
Felicidade Interna Bruta é fim. Um fim que deve ser respei-
tado também no decorrer do processo para que as mais pro-
fundas utopias humanas (sempre religiosas), um dia, possam
tornar-se realidade.

Questões para ajudar a leitura individual


ou o debate em grupo:
1. Diz o texto que a economia é o “eixo” da vida so-
cial. Como você vê esta questão pessoalmente?
2. Piketty faz uma forte crítica ao neoliberalismo eco-
nômico. Qual o ponto central de sua argumentação?
3. Para a Igreja em geral, e a Vida Religiosa em par-
ticular, qual a mensagem que deve ser priorizada?
632 Francisco:
timoneiro da esperança
O projeto de uma Igreja em saída
e suas contradições

Paulo Suess*
Do centro da Igreja recebemos hoje sinais de esperança,
gestos de misericórdia, incentivos de solidariedade e con-
vites de participação na construção de um mundo novo
sem violência e de uma Igreja “em saída”, servidora sem
medo. Desde a chegada do Papa Francisco (sem desmere-
cer seus antecessores) vivemos uma nova primavera ecle-
sial, não sem contradições, mas com liberdade de falar,
igualdade de ser e possibilidade de participar. O sonho
juvenil dos anos 1960 parece realizar-se agora com um
Papa que se dirigiu aos voluntários da 28a Jornada Mundial
da Juventude (28/07/2013) pedindo “que sejam revolucio-
nários; eu peço que vocês vão contra a corrente; sim, nisto
peço que se rebelem: que se rebelem contra esta cultura do
provisório que, no fundo, crê que vocês não são capazes de
assumir responsabilidades, crê que vocês não são capazes
de amar de verdade”.
O Papa Francisco não participou do Vaticano II (1962-
1965), mas se torna cada vez mais o executor dos anseios
profundos daquele tempo. Com o peso do seu ministério e
* Paulo Suess estu- com jovialidade franciscana, ele faz uma releitura dos tex-
dou nas Universidades
de Munique, Lovaina tos, descobre partes até hoje negligenciadas e percebe a ne-
e Münster, onde se cessidade de ler os novos sinais do tempo numa perspectiva
doutorou em Teo-
logia Fundamental.
pós-conciliar.
Atualmente é assessor Francisco resgata o esquecido e antecipa o novo no hori-
teológico do CIMI
e do COMINA, e zonte do mundo. Com liberdade aponta para “questões fe-
professor no ciclo chadas” pelos seus antecessores e procura brechas nas quais
de pós-graduação
em Missiologia, no
a ortodoxia não marginaliza a misericórdia. É importante
ITESP. que esse “seu” projeto seja acolhido pelo povo de Deus,
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

não como ruptura, mas em continuidade com a tradição


do magistério da Igreja em permanente transformação.
633
Como fontes, que Francisco mais cita para fundamentar
seus “voos próprios” com “fidelidade e audácia” (DAp 11)
e em harmonia criativa com o dossiê doutrinal do passa-
do, pode-se destacar: o Vaticano II, Paulo VI, Aparecida,
o magistério local de conferências episcopais do mundo
inteiro e, cada vez mais, o magistério de João Paulo II e
Bento XVI.

O projeto e seus sete eixos


O projeto do Papa Francisco é configurado por discursos,
gestos e práticas de diálogo. A seguir vou elencar sete eixos
desse projeto que realçam uma nova atratividade do Evan-
gelho para o mundo de hoje.

A alegria
O Papa Francisco fez da “Exortação apostólica Evangelii
gaudium” (EG) um texto programático de seu pontificado,
enfocando uma Igreja missionária e transformadora (cf.
EG 27). Do “Documento de Aparecida” (DAp), Francisco
trouxe o binômio “fidelidade e audácia” para a cátedra de
Pedro (DAp 11), que significa abertura “à ação do Espírito
Santo” (EG 259). O Espírito, que é Pai dos pobres, convi-
da a Igreja a reconhecer a força salvífica” (EG 198) da vida
dos pobres, que “nas suas próprias dores conhecem Cristo
sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar
por eles” (EG 198). E o Papa confessa “que as alegrias mais
belas e espontâneas, que vi ao longo da minha vida, são as
alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a que se
agarrar” (EG 7). Essa alegria é missionária; nos conquis-
ta e converte ao Evangelho (cf. EG 21). O despojamento
da vida do Papa Francisco, seguindo as pegadas do pobre
Jesus do presépio e da cruz, é a fonte de sua alegria conta-
giante (cf. EG 181). No Evangelho de Francisco não tem
lugar para “profetas de desgraças” (EG 84) e “prisioneiros
da negatividade” (EG 159).
Francisco: timoneiro da esperança

634 A realidade
Também na questão da realidade, Francisco é um discípu-
lo de Aparecida que “faz uso do método ‘ver, julgar e agir’”
(DAp 19). A realidade interpela aos cristãos; cobra coerência
com os imperativos do Evangelho, que por sua vez exigem
“um compromisso com a realidade” (DAp 491). Esse com-
promisso nos conduz “ao coração do mundo”, onde abra-
çamos “a realidade urgente dos grandes problemas econô-
micos, sociais e políticos da América Latina e do mundo”
(DAp 148). Anúncio, gestos e práticas simbólicas do Papa
Francisco apontam para uma evangelização integral: “Toda
autêntica missão unifica a preocupação pela dimensão trans-
cendente do ser humano e por todas as suas necessidades
concretas” (DAp 176; cf. EG 88).
Francisco retoma em muitas páginas da EG esse fio con-
dutor da integralidade e assume a teologia indutiva da Gau-
dium et spes (GS), partindo da vida concreta da humanidade,
das alegrias e esperanças, das tristezas e angústias, “sobre-
tudo dos pobres e de todos os que sofrem” (GS 1). Francis-
co estimula “ler os sinais dos tempos na realidade atual”
(EG 108) e interpretá-los como mensagens que Deus envia
a partir do mundo secular à sua Igreja (cf. GS 44,1; Pacem in
terris!). A encarnação na realidade tem dois desdobramen-
tos, conhecimento e ação: por um lado, a inculturação e a
assunção dessa realidade; por outro lado, o discernimento
necessário para transformar essa realidade através de “obras
de justiça e caridade” (EG 233).
Francisco convida a comunidade missionária com realismo e
poesia a “envolver-se”, “acompanhar” e “frutificar” a partir da
vida real. Os discípulos missionários tocam “a carne sofredora
de Cristo no povo” e “contraem assim o ‘cheiro de ovelha’”
(EG 24) e a poeira da estrada: “Na sua encarnação, o Filho de
Deus convidou-nos à revolução da ternura” (EG 88).

O encontro
Em uma videomensagem do dia 7 de agosto de 2013, o Papa
Francisco pergunta a um interlocutor argentino: “‘Quando
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

você dá uma esmola, olha nos olhos da pessoa a quem você


dá a esmola?’ – ‘Ah, não sei, não me dou conta disso.’ – ‘En-
635
tão você não encontrou a pessoa. Você jogou a esmola e foi
embora. Quando você dá a esmola, você toca a mão ou joga
a moeda?’ – ‘Não, jogo a moeda.’ ‘E então não o tocou. E se
não o tocou, não o encontrou. Aquilo que Jesus nos ensina,
antes de tudo, é encontrar-se e ajudar encontrando’”. Para
Francisco, o encontro tem um caráter sacramental.
Nosso “ir ao encontro” abre a porta para que, aquele que
foi encontrado por nós, se encontre com Jesus. Nosso “ir
ao encontro” é a atitude de deixar Deus, através de nós,
“atrair” os fugitivos de sua bondade e verdade. A Igreja
deve aceitar essa liberdade incontrolável da Palavra, que é
eficaz a seu modo [...], superando as nossas previsões e que-
brando os nossos esquemas” (EG 22). A salvação oferecida
por Deus “é obra da sua misericórdia. Não há ação humana,
por melhor que seja, que nos faça merecer tão grande dom.
Por pura graça, Deus atrai-nos para nos unir a si” (EG 112).

A missão
Seguindo Aparecida, o Papa Francisco propõe à Igreja
universal constituir-se “em estado permanente de missão”
(DAp 551, EG 25) – além-fronteiras e sem fronteiras (cf. EG
11; 25; 27; 32). Na Jornada Mundial da Juventude (Celam,
28.07.2013, n. 3), o Papa explicou duas dimensões da mis-
são: a programática e a paradigmática. “A missão programá-
tica […] consiste na realização de atos de índole missionária”
(envio de missionários, orações, coletas). “A missão paradig-
mática, por sua vez, implica colocar em chave missionária”
todas as atividades pastorais das Igrejas.
A missão – “Igreja em saída” (EG 22ss) para as periferias
do mundo – pressupõe conversão. A “conversão pastoral”
permanente faz parte do “estado permanente de missão”.
Francisco sonha com “uma Igreja capaz de redescobrir as
entranhas maternas da misericórdia. Sem a misericórdia,
poucas possibilidades temos hoje de inserir-nos em um
mundo de ‘feridos’, que têm necessidade de compreen-
são, de perdão, de amor” (CNBB, JMJ, 27/07/2013, n. 4).
Francisco: timoneiro da esperança

636 A conversão pastoral é concreta, comunitária, revolucioná-


ria, radical. Ser radical nos leva à raiz do Evangelho e de
volta a Jerusalém: “Nada é mais alto do que o abaixamento
da Cruz, porque lá se atinge verdadeiramente a altura do
amor!”. Nada é “mais forte que a força escondida na fragili-
dade do amor” (CNBB, JMJ, 27/07/2013, n. 3).

A misericórdia
A proximidade de Deus misericordioso na vida faz parte
da biografia do Papa Francisco e está presente em seu lema
episcopal: “Olhou-o com misericórdia e o escolheu” (mise-
rando atque eligendo), que resume a ação de Deus em sua vida:
“Jesus viu um homem, chamado Mateus, sentado à mesa de
pagamento dos impostos, e lhe disse: ‘segue-me’”. É na casa
de Mateus, na casa de um marginal social, que Jesus defende
a misericórdia para com publicanos e pecadores contra o
rigorismo dos fariseus: “Misericórdia é que eu quero, e não
sacrifício” (cf. Mt 9,13; Os 6,6).
Foi na festa litúrgica de São Mateus, no dia 21 de setem-
bro de 1954, Dia dos Estudantes e do início da primave-
ra, que Jorge Mario Bergoglio sentiu de um modo especial
o chamado misericordioso daquele Deus, que “saiu ao seu
encontro e o convidou a segui-lo”. Mais tarde, em sua úl-
tima entrevista radiofônica antes de ser eleito Papa, diria
sobre essa experiência que fez nascer sua vocação sacerdotal:
“Deus me priorizou. […] Senti como que se alguém me
agarrasse por dentro e me levasse ao confessionário”.
Com esse lema, Francisco traz um recado para a Igreja
que o escolheu: “Nós não podemos podar a misericórdia
de Deus com a tesoura do legalismo. Misericórdia, porém,
não significa nem autocomplacência com vícios internos
da Igreja nem autorreferencialidade com uma espécie de
‘narcisismo teológico’”. A graça do chamado de Deus e sua
misericórdia com a fragilidade daquele que foi chamado são
o primeiro “Leitmotiv” na vida de Mario Bergoglio. O de-
safio existe na aceitação do passado. Só pode ser redimido o
que foi assumido (cf. Puebla n. 400). Desde Davi, passando
por Pedro, Paulo e Agostinho, a missão dos eleitos nunca
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

acontece por causa de seus méritos, mas por causa da miseri-


córdia de Deus que não dispensa processos permanentes de
637
conversão e discernimento.
O “Ano Santo da Misericórdia” foi iniciado no dia 8 de
dezembro de 2015, dia jubilar do encerramento do Concí-
lio Vaticano II (1965). No simbolismo eclesial, essa coinci-
dência do jubileu de ouro do Vaticano II com a abertura da
Porta Santa na Basílica de São Pedro como “Proclamação
do Jubileu Extraordinário da Misericórdia” nos lembra que
o Vaticano II não era um evento que foi encerrado com
novas fórmulas e formalismos, mas que continua sendo um
processo que precisa passar sempre de novo pela peneira da
memória e da porta da misericórdia.
Esquecimento e rigidez pós-conciliares produziram, em
muitos momentos, um ponto final do Concílio. Com o
Papa Francisco veio uma ventania do Espírito Santo para
superar o ponto morto da estagnação e para “dobrar o que
endureceu” (cf. Sequência de Pentecostes: “flecte quod est ri-
gidum”). A Porta Santa foi aberta para o reencontro com
o Concílio e para a missão como saída (cf. EG 20ss) até as
periferias do mundo.
O Papa nos lembra de Tomás de Aquino, que afirma: “A
misericórdia é a maior de todas as virtudes: ‘É por isso que
se diz que é próprio de Deus usar de misericórdia e é, sobre-
tudo nisto, que se manifesta a sua onipotência’” (EG 37). Na
misericórdia, Deus se faz pequeno como no presépio e na
cruz. Na misericórdia está embutida a gratuidade da diaco-
nia, o perdão permanente, a ruptura com o sistema capita-
lista na base do binômio custo-benefício e sem misericórdia
e a esperança que tem sua raiz na fidelidade de Deus.

A sinodalidade
Durante o Sínodo dos Bispos de 2015 sobre “A vocação e
a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”
foi comemorado, no dia 17 de outubro de 2015, o cinquen-
tenário da instituição do Sínodo no final do Vaticano II.
Naquele dia, o Papa pronunciou um discurso programático
Francisco: timoneiro da esperança

638 sobre o espírito da sinodalidade no seu pontificado e “como


dimensão constitutiva da Igreja”: “Desde o início do meu
ministério como Bispo de Roma, pretendi valorizar o Síno-
do, que constitui um dos legados mais preciosos da última
sessão conciliar”. Valorizar significa também “aperfeiçoar”,
porque nem sempre esses Sínodos até hoje realizados con-
seguiram cumprir a sua tarefa que, segundo Paulo VI, seria
“repropor a imagem do Concílio Ecumênico e refletir o seu
espírito e o seu método” (Paulo VI, Discurso, 30/09/1967).
Para sincronizar nossas opiniões divergentes, sentimos
nesse Sínodo sobre a Família “a necessidade e a beleza de
‘caminhar juntos’”. Esse caminho sinodal vai forjar “uma
Igreja da escuta” recíproca. Cada um de nós “tem algo a
aprender. Povo fiel, Colégio Episcopal, Bispo de Roma:
cada um à escuta dos outros; e todos à escuta do Espírito
Santo”. Todo o povo participa da função profética de Cris-
to. “O que se refere a todos, de todos deve ser tratado” (cf.
LG 12). Nesta questão, o Papa Francisco já marcou a sua
posição na Exortação Evangelii gaudium, alertando para uma
participação mais partilhada na Igreja: “Não se deve esperar
do magistério papal uma palavra definitiva ou completa so-
bre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mun-
do. Não convém que o Papa substitua os episcopados locais
no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem
nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de
proceder a uma salutar ‘descentralização’”.
Por causa dessa convicção, o Papa queria “que o Povo
de Deus fosse consultado na preparação do duplo encontro
sinodal sobre a família”. […] “O caminho da sinodalidade
é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do
terceiro milênio”. Hoje, o mundo invoca “participação, so-
lidariedade e transparência na administração”. O caminhar
junto da Igreja poderia ajudar a sociedade civil “a edificar-
-se na justiça e na fraternidade”. No final do Sínodo, muitos
setores do povo de Deus lamentaram os esparsos resultados
nas proposições finais. Já na Evangelii gaudium o Papa adver-
tiu: quantos não aceitam “a custosa evolução dos processos
e querem que tudo caia do Céu” (EG 82)!
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

A inovação desse Sínodo não estava na reformulação dou-


trinal, mas na assunção do princípio da sinodalidade. Onde
639
o Papa poderia interferir, graças à sua autoridade ministerial,
ele não interferiu. A sinodalidade, quer dizer, o princípio da
participação na construção do caminho comum, só pode ter
resultados a longo prazo, desde que seja também assumido
na escolha dos bispos e na administração das Igrejas locais.

Ecologia integral (LS)


Depois de dirigir-se, na Exortação apostólica Evangelii
gaudium, aos membros da Igreja, na Encíclica “Laudato Si’
sobre o cuidado da casa comum”, o Papa Francisco entra em
diálogo com toda a humanidade sobre o futuro do planeta
Terra. Séculos atrás, os ricos eram ameaçados pela revolta
dos pobres e as revoluções dos oprimidos. Hoje, ricos e po-
bres são ameaçados pela revolta do planeta Terra. “O am-
biente humano e o ambiente natural degradam-se em con-
junto” (LS 48) e exigem uma “ecologia integral” (LS 137ss).
Os ricos precisam solidarizar-se com os pobres num novo
estilo de vida e adotar um outro modelo de desenvolvimento
para em conjunto, então, partilhar os bens da terra e tornar
sua qualidade de vida sustentável para todos. Somente uma
“ecologia humana” (LS 5, 148, 152, 155s), que antes de tudo
deve ser uma “ecologia integral” (LS, cap. IV), pode frear a
degradação socioambiental e climática. Ela exige “conversão
ecológica” (LS 5, 216-221) e a globalização da responsabi-
lidade. A reflexão ecológica aprofunda e amplia as questões
sociais e a opção pelos pobres: “Não há duas crises separadas:
uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa
crise socioambiental” (LS 139). A ameaça da crise única pode
acelerar um novo contrato socioambiental da humanidade.
Os sete eixos (alegria, realidade, encontro, missão, miseri-
córdia, sinodalidade, ecologia integral) do projeto de Fran-
cisco apontam para uma Igreja-caminhão que ainda carrega
fardos desnecessários e lixo que se acumularam no decor-
rer dos séculos: pessimismo, desconhecimento da realida-
de, desencontros, eclesiocentrismo, rigidez, autoritarismo,
autorreferencialidade etc. Talvez não exista esse caminhão
Francisco: timoneiro da esperança

640 com sete eixos. Talvez seja melhor falar em sinais que apon-
tam para um processo de purificação da Igreja. Podemos
compreender os eixos do projeto de Francisco como sacra-
mentos, sinais salvíficos da presença de Deus, do seu perdão,
acolhimento e envio.

O projeto e seus obstáculos


A Igreja “em saída” encontra obstáculos previsíveis. O Papa
Francisco prefere “uma Igreja acidentada, ferida e enlameada
por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fecha-
mento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças.
[…] Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o
medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma
falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes
implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, en-
quanto lá fora há uma multidão faminta” (EG 49). A Igreja
“enlameada” pelo encontro com os sobreviventes das lutas
sociais não está em contradição com a Igreja imaculada. É a
Igreja dos mártires que vem da grande tribulação e que lavou
“as suas vestes no sangue do Cordeiro” (Ap 7,14). A saída exi-
ge “prudência e audácia” (EG 47), “coragem” (EG 33, 167,
194) e “ousadia” (EG 85, 129). Audácia, coragem e ousadia
podem ser prudentes? O Papa responde: “Ousemos um pou-
co mais no tomar a iniciativa” (EG 24)!

Imperativos de vigilância
Nos imperativos da EG percebem-se resistências internas
à “Igreja em saída”. A quem se dirige o Papa Francisco ao
nomear essas tensões ou para estimular sua própria vigi-
lância? Com quem pode contar nessa luta ad intra? Lobos e
ladrões parecem ameaçá-lo quando pede:
• “Não deixemos que roubem nosso entusiasmo missio-
nário!” (EG 80).
• “Não deixemos que nos roubem a alegria da evangeli-
zação!” (EG 83).
• “Não deixemos que nos roubem a esperança!” (EG 86).
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

• “Não deixemos que nos roubem a comunidade!” (EG 92).


• “Não deixemos que nos roubem o Evangelho!” (EG 97).
641
• “Não deixemos que nos roubem o ideal do amor fraterno!”
(EG 101).
• “Não deixemos que nos roubem a força missionária!”
(EG 109).
Quem ameaça o Evangelho, a alegria da evangelização,
a esperança, o amor fraterno, a comunidade, a força e o
entusiasmo missionários? Quem são os inimigos internos
da Igreja?
Francisco assume a reestruturação da missão do DAp e
aponta para uma metodologia com cinco pilares que mar-
cam a pastoral em chave missionária (EG 33ss):
(a) a bandonar o cômodo critério pastoral: “fez-se sempre as-
sim” (33), que exige que todos sejam “ousados e criativos
nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o es-
tilo e os métodos evangelizadores das respectivas comu-
nidades” (EG 33);
(b) “ouvir a todos”, que, às vezes, exige caminhar “à frente
para indicar a estrada e sustentar a esperança do povo”
(EG 31); outras vezes é mais indicado manter-se “no
meio de todos com a sua proximidade simples e mise-
ricordiosa, e, em certas circunstâncias, se deverá cami-
nhar atrás do povo, para ajudar aqueles que se atrasaram
e, sobretudo, porque o próprio rebanho possui o olfato
para encontrar novas estradas” (EG 31);
(c) “sair de si ao encontro do outro” (cf. 179) aponta para uma
Igreja missionária, uma Igreja “em saída”. Ela aprendeu
essa saída de figuras bíblicas, como Abraão e Moisés, de
profetas e apóstolos. “Naquele ‘ide’ de Jesus, […] todos
somos convidados a aceitar esta chamada: sair da própria
comodidade e ter a coragem de alcançar todas as perife-
rias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20, cf. 30).
“A Igreja ‘em saída’ é uma Igreja com as portas abertas”
(EG 46) e despojada. A missão é o antídoto da munda-
nidade espiritual que cultiva “o cuidado da aparência” e
se coloca num círculo de giz da autorreferencialidade (cf.
Francisco: timoneiro da esperança

642 EG 8, 94, 95). A autorreferencialidade é o oposto da “al-


ter-referencialidade”, que põe os interesses de Jesus Cris-
to na frente dos próprios interesses (Fl 2, 21; cf. EG 93).
(d) encarnar-se (inculturar-se) no universo do outro, porque nele
“está o prolongamento permanente da Encarnação para
cada um de nós” (EG 179). Está na lógica da encarnação
na diversidade cultural pensar o cristianismo pluricultural.
(e) Quando a pastoral assume a prioridade da missão, “o
anúncio concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais
importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais
necessário” (EG 35). “Por que complicar o que é tão
simples? As elaborações conceituais hão de favorecer o
contato com a realidade que pretendem explicar, e não
afastar-nos dela” (EG 194).
Nos verbos acima mencionados encontram-se os impera-
tivos missiológicos:
• no “abandonar” será enfrentado o desafio do tradicionalismo
e do “apegar-se” ao sobrepeso de culturas hegemônicas;
• no “ouvir” será contestado o desafio do autoritarismo, que
é incapaz de ouvir os outros, e a reserva contra a partici-
pação do povo de Deus;
• no “sair” será invocada a abertura de portas, caminhos e
novos estilos de encontro;
• no “encarnar-se” será desafiado o colonialismo que im-
põe o próprio como normativo e trata o outro como
tutelado;
• no “concentrar-se” ao essencial, a Igreja vai ao encon-
tro do povo simples, contestando atitudes que procuram
substituir o Evangelho pela Lei e que fazem do direito
canônico e do conhecimento de todos os meandros dou-
trinários os pré-requisitos preferenciais para a escolha dos
seus quadros de comando.

Contradições no Sínodo
No Sínodo dos Bispos reunidos na XIV Assembleia Ge-
ral Ordinária, sobre “A vocação e a missão da família na
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

Igreja e no mundo contemporâneo”, mostrou-se a contra-


dição entre a Eucaristia “alimento para os fracos” e media-
643
dora da graça, e uma compreensão da participação na mesa
eucarística que já pressupõe o estado de graça. Resumida-
mente: os divorciados que vivem em segundo casamento
podem comungar ou não? A demonstração teológica que
a comunhão nessas circunstâncias não significa abrir mão
da indissolubilidade do sacramento matrimonial, mas sim o
reconhecimento da vulnerabilidade desse sacramento, ainda
não encontrou um consenso eclesial.
Em seu discurso de encerramento (24/10/2015) do Sí-
nodo, o Papa Francisco se referiu, delicadamente, a essas
discordâncias, criticando a “hermenêutica conspiradora”, “a
perspectiva fechada” e “métodos não inteiramente benévo-
los”. Trata-se de modelos eclesiais quase opostos. Diante da
ameaça de uma cisma, o Papa Francisco e o setor eclesial
que ele representa são obrigados a recuos estratégicos.

Thomas Münzer
Quem são esses assaltantes e ladrões que querem roubar
as dádivas da nossa fé? Quem são os que se opõem a uma
“Igreja em saída”? Às vezes, o Papa parece ser prisioneiro da
própria instituição que representa. Friedrich Engels lamen-
ta a sorte de um líder de um movimento revolucionário,
como a do teólogo da revolução Thomas Münzer (1490-
1525), cuja consciência é mais avançada do que a do povo
que representa: “O pior que pode acontecer […] é ser for-
çado a encarregar-se do governo num momento em que o
movimento ainda não amadureceu suficientemente […]. O
que ele pode fazer contradiz seus princípios […], o que ele
deve fazer, é impossível de realizar. […] Quem chega nessa
situação, está irremediavelmente perdido”.1 A fragilidade do
Papa Francisco, provavelmente, está em sua pertença a dois
setores que ele representa: o povo simples e desorganizado,
1 Cf. ENGELS,
que tem pouca representatividade na Igreja; mas também Friedrich. As guerras
o setor ao qual ele mesmo pertence, na hierarquia integra- camponesas na Alema-
nha. Lisboa: Editorial
da em estruturas cristalizadas. Dos trilhos de representação Presença, 1975, p.
(do povo de Deus) e pertença (à estrutura hierárquica) que 142s.
Francisco: timoneiro da esperança

644 deveriam, no sonho de Francisco, dar sustento ao mono-


trilho de uma “Igreja pobre para os pobres” (EG 198), ou,
melhor, para uma “Igreja pobre dos pobres”, emergem con-
tradições, conveniências, opções pelo mal menor.

Pedido de perdão na Bolívia


Em seu discurso aos movimentos populares na Bolívia, no
dia 9 de julho de 2015, o Papa Francisco pediu perdão aos
povos indígenas pelos “muitos e graves pecados contra os
povos nativos da América, em nome de Deus”. O Papa pede
“humildemente perdão, não só para as ofensas da própria
Igreja, mas também para os crimes contra os povos nati-
vos durante a chamada conquista da América” (cf. Vaticano,
09/07/2015, n. 3.2.).
Ao pedido de perdão segue, como é costume em documen-
tos que passaram pela “revisão” curial, um “porém” sobre a
graça que superabundou na desgraça, um autoelogio eclesial
sobre “tantos bispos, sacerdotes e leigos que pregaram e pre-
gam a Boa-Nova de Jesus com coragem e mansidão”. Estes
arautos da evangelização, segundo o mesmo discurso de Fran-
cisco, “deixaram impressionantes obras de promoção humana
e de amor, pondo-se muitas vezes ao lado dos povos indígenas
ou acompanhando os próprios movimentos populares mesmo
até ao martírio”, não sem lembrar que “a nossa fé é revolucio-
nária, porque a nossa fé desafia a tirania do ídolo dinheiro”.
No descompasso do “pedido de perdão” ao lado da “au-
torreferencialidade”, colocando lado a lado posturas da
teologia e pastoral da libertação do século XX e “impres-
sionantes obras de promoção” do século XVIII, que fize-
2 LAS CASAS, Frei
Bartolomé de. Brevíssi- ram os índios trabalhar no regime da encomenda colonial,
ma relação da destruição percebe-se que o Papa permitiu enxertos em seu discurso
das Índias: o paraíso
destruído. Porto
que o enfraqueceram profundamente. A teologia colonial
Alegre: L&PM, 1984. considerou os índios não como sujeitos de culturas, mas
SUESS, Paulo (org.). como objetos da natureza e por isso os chamou de “los na-
Conquista espiritual da
América Espanhola: turales”. O dominicano Bartolomé de las Casas documentou
200 documentos – Sé- as crueldades genocidas dessa conquista. Sua luta contra a
culo XVI. Petrópolis:
Vozes, 1992. Cf. os
exploração da força de trabalho dos índios e a de Antonio
Documentos n. 57-60 Montesinos foram lutas solitárias.2
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

Canonização de Junípero nos Estados Unidos 645


Ao pedido de perdão na Bolívia, acompanhado pelo aplauso
dos índios presentes no evento, segue, sob o protesto de muitos
indígenas dos Estados Unidos e do México, a canonização de
Frei Junípero Serra, no dia 23 de setembro, em Washington.
Quem era o franciscano Junípero (1713-1784) e a quem
serve sua canonização? Filho de pequenos agricultores, nas-
ceu em Petra, na ilha Maiorca. Tornou-se franciscano e
chegou a lecionar teologia na Universidade de Palma. Em
1749, Junípero chega com 20 frades no Vice-Reino da Nova
Espanha (México). Depois da expulsão dos jesuítas da Nova
Espanha (1767/68) por Carlos III, os franciscanos assumem,
sob a responsabilidade de Junípero Serra, o cuidado dos in-
dígenas na península Baixa Califórnia, que na época ainda
pertencia ao império da Espanha. Os frades percorreram os
vastos territórios de presença indígena, ergueram capelas e
cabanas, convidaram os índios a morarem perto para poder
ensiná-los catequese e fixá-los à terra através de noções de
agricultura e pecuária. Os confrades de Junípero se tornam
fundadores de uma vasta rede de missões nas quais os ín-
dios, progressivamente, passaram de donos da terra para in-
quilinos das missões onde eram forçados a ficar e trabalhar.
Quem fugiu, foi trazido de volta por soldados e castigado.
Hoje, os índios falam de “atrocidades”, “etnocídio” e “mito-
logia das missões”, criada pelos não indígenas da elite católica 3 “Índios dos EUA
regional, que propulsionou a canonização de Junípero Serra. levantam dúvidas
sobre a santidade
Andrew Galvan, historiador e curador da “Missão Dolores”, de Junípero Serra”,
fundada por Junípero em 1776, pergunta: “Se eu sei o que reportagem de Carol
aconteceu com os meus antepassados, como posso ser devoto Pogash (The New York
Times, 21/01/2015),
de Junípero Serra?”. E Galvan cita uma carta “na qual o padre republicada em IHU,
Serra ordenava chicotadas para os índios desobedientes”.3 Notícias, 23/01/2015.
Cf. tb. a entrevista de
Desde que o Papa Bento XVI, por ocasião da beatifica- Thomas Reese com
ção de João Paulo II, esclareceu que a pessoa beatificada Roberto Senkewicz:
“Junípero Serra, santo
ou canonizada necessita ter vivido apenas uma virtude he- ou não?”, in: Natio-
roicamente, não precisamos discutir a santidade de Juní- nal Catholic Reporter
(15/05/2015), republi-
pero que, certamente, mais que uma virtude, viveu heroi- cada por IHU, Notí-
camente. O que precisa ser discutido é a oportunidade de cias, 28/05/2015..
Francisco: timoneiro da esperança

646 sua canonização. Muitos dos “Santos Padres”, por exemplo


Agostinho e Ambrósio, hoje, seguramente, não seriam mais
canonizados devido a muitos dos seus sermões e atitudes
antijudaicas.
Portanto, a pergunta correta no contexto da canonização
de Junípero é: Cui bono (A quem beneficia)? Um Santo Juní-
pero vai fortalecer as lutas dos povos indígenas hoje ou vai le-
gitimar o paternalismo e autoritarismo dos seus tutores e en-
fraquecer as lutas dos povos indígenas pelo reconhecimento
de seus direitos, de suas culturas e por sua autodeterminação?

Condor ou avestruz?
Depois de um longo inverno eclesial, o Papa Francisco
foi eleito para devolver à Igreja a esperança da primavera. O
Papa dos Pampas Argentinos nos falou, em muitas ocasiões,
do óbvio, dos vícios burocráticos enraizados, de doutrinas
cristalizadas e da necessidade de mudanças. As mudanças
climáticas de agora exigem inovações práticas. Com quem
ele pode fazer essas reformas?
Francisco vive uma solidão institucional muito grande. Seus
críticos na Cúria já não falam mais em off, mas em público,
como o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que
numa entrevista ao periódico La Croix, no início de abril, de-
clarou que sua Congregação deve dar a devida “estruturação
teológica” ao magistério do Papa Francisco. Em qualquer re-
partição pública esse funcionário seria imediatamente afastado.
A força deste pontificado está no apoio popular e no reco-
nhecimento da sociedade civil mundial, conquistados pelos
gestos simbólicos e reais, humanos e evangélicos, pela lin-
guagem simples e direta e o horizonte pastoral relevante para
toda a humanidade. Francisco restabeleceu o primado da
pastoral sobre a teologia, não contra a teologia. A teologia
permanece pano de fundo, ancilla Domini, serva do Senhor.
Quantas vezes Francisco deve ter repetido o diálogo entre a
estátua de bronze de Pedro, que se encontra na Basílica de São
Pedro, e o Senhor, escrito pelo poeta espanhol Rafael Alberti:
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016

Diz, Jesus Cristo,


por que me beijam tanto os pés?
647
Sou São Pedro aqui sentado,
em bronze imobilizado,
não posso olhar para o lado
nem dar um pontapé,
pois tenho os pés
gastados, como vês.
Faz um milagre, Senhor!
Deixa-me descer ao rio,
voltar a ser pescador […].

Como um condor, em voo livre, Francisco desceu dos


Andes latino-americanos e pousou nas colinas de Roma,
onde se encontrou com avestruzes que não sabem voar.
Quando aparecem dificuldades, eles correm ou escondem
sua cabeça na areia.
Em seu discurso final, no último dia do Sínodo
(24/10/2015), o Papa se refere à essa “cabeça na areia” de
sinodais e colaboradores curiais: precisamos abordar as difi-
culdades, disse o Papa “sem medo e sem esconder a cabeça
na areia”.
A metáfora explica muitas dificuldades de Francisco, e
ele nos pergunta: “Como posso trabalhar com avestruzes,
que não sabem voar, que correm na hora do perigo e es-
condem a cabeça na areia?”. “Como posso trabalhar com
gente sem sonhos e consciências anestesiadas? Com cola-
boradores que têm medo de tudo e procuram a sua salva-
ção na fuga? Com um clero que não quer ver as realidades
e põe a cabeça na areia?”
O paradigma da “Igreja em saída” não é uma receita nem
aponta para um aplicativo virtual. É um horizonte que nos
faz caminhar de esperança em esperança, em meio a pedras
e sonhos.
Francisco: timoneiro da esperança

648 Questões para ajudar a leitura individual


ou o debate em grupo:
1. Como se pode reconstruir um Plano Pastoral ou
Estatutos Congregacionais a partir dos sete eixos do
projeto do Papa Francisco?
2. Quais são as causas das contradições que permeiam
o projeto de uma Igreja em saída?
3. Quais são os benefícios da “sinodalidade” para a
Igreja universal e quais são as resistências e eventuais
prejuízos? Qual é o caminho que a coerência com o
Evangelho nos indica e por quê?

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