Convergencia 494
Convergencia 494
Convergencia 494
ANO LI • Nº 494
Revista da Conferência
dos Religiosos do Brasil – CRB
ISSN 0010-8162
Convergência ISSN 0010-8162
Conselho
Editorial: Frei Moacir Casagrande, ofmcap
Irmã Helena Teresinha Rech, sst
Irmã Vera Ivanise Bombonatto, fsp
Jaldemir Vitório, sj
João Edênio Valle, svd
Editorial
Mensagem do Papa
Rosto de Misericórdia
Mártires / santos
Informe
Artigos
582 fica com duas patas na terra e as outras na coxa de sua “mãe
de leite”, que com cuidado o assegura com a mão direita.
Tranquilamente ele mama. Sente-se protegido e cuidado
pela “mãe” que o alimenta. O rosto da mulher não aparece,
está concentrado no seu novo “filhote”; atenta ao mais frá-
gil e necessitado. Ele é o centro da cena. A mulher, com o
braço esquerdo, assegura seu filho. A criança também está
tranquila e segura. Não estranha o gesto da mãe amamen-
tando o porquinho. Não fica com ciúme, nem disputando
com seu “irmão de leite” o apreciado manjar. Essa partilha
com os outros irmãos e irmãs de criação forma parte do co-
tidiano da vida... A criança aprende, desde muito pequena,
a partilhar até o mais sagrado para ela naquela etapa de vida,
o leite materno. Aprende a partilhar que todos os seres são
“irmãos e irmãs de leite”. Por volta está a floresta, a “Casa
Comum”. A criança observa. Aprende com o testemunho
da mãe que todos os seres que nela habitam estão profun-
damente interligados. Que uns necessitam dos outros. Que
um não pode ser, nem existir, sem os outros. Que na Casa
Comum ninguém sobra. Que cada ser, por mais insignifi-
cante que pareça, é precioso em si mesmo por ser criatura
de Deus (LS, 140).
Investigações antropológicas apontam que os povos que
nascem em regiões desérticas ou semidesérticas, como,
por exemplo, o povo judeu, têm associada e reforçada
uma imagem masculina de Deus. A oração que o povo
semita faz ante a terra seca é: “Derrama, Senhor, a chuva
sobre a terra para que ela fecunde e dê frutos!”. Ao con-
trário, os povos que nascem nas florestas tropicais têm
uma imagem feminina de Deus. Um Deus mulher, Deu-
sa, que acolhe, protege e amamenta diariamente todos
os seus filhos e filhas, todos os seres que habitam em seu
seio, no “útero da floresta”. Se o povo conhece os ciclos
da floresta e do rio, do peixe, das frutas, dos animais etc.,
cada dia a floresta e o rio lhe oferecem aquilo que neces-
sita, o amamentam e alimentam com seus frutos. Se ele
respeita e cuida da floresta e do rio, sem ser ambicioso e
sem explorar mais do que necessita, a floresta e o rio lhe
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016
Deus da Vida
1 Eu Outro-Eu
3
4
Outro
Natureza
Cosmos
Infância e juventude
Dom Helder Camara nasceu no Ceará. Sua família, do
ponto de vista econômico, pode ser definida como pobre.
Porém, do ponto de vista cultural pode-se defini-la como
classe média, uma vez que seu pai era jornalista, sua mãe
professora, seus parentes próximos fizeram cursos superiores,
quando grande parte da população cearense era analfabeta.
A boa experiência humana, religiosa, cultural e espiritual
vivida em sua família contribuiu muito para a sua vida cristã
e sacerdotal. No Seminário da Prainha foi um líder entre
seus colegas, destacando-se nos estudos, especialmente, em
literatura. Muito apreciado pelos professores e reitores, logo
3 Ivanir Antonio após ordenado ocupou cargos de relevância na Arquidio-
Rampon, Paulo VI e cese de Fortaleza. Atuou, inclusive, como “Secretário de
Dom Helder Câmara:
exemplo de uma amizade Educação” do Ceará, o que lhe acarretou problemas com
espiritual. o próprio governo, tornando-se um dos motivos para a sua
4 Ivanir Antonio despedida do Ceará e ingresso na Arquidiocese do Rio de
Rampon, O caminho
espiritual de Dom Helder
Janeiro, onde foi recebido pelo Cardeal Leme como “mais
Câmara. uma preciosa esmeralda”.
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016
Desenvolvimento espiritual
Além disso, no Rio de Janeiro, ele teve um grande desen-
volvimento espiritual, tendo o exemplo, o testemunho e a
santidade de São Francisco de Assis como uma referência
fundamental. Mergulhou no método e na mística da Ação
Católica Especializada. O método ver-julgar-agir revelou-
-se eficaz na medida em que ajudava os jovens a refletir so-
bre a própria realidade, identificando os problemas, dando
um juízo à base dos valores evangélicos e tomando decisões 5 Luiz Alberto
operativas para tornar o país mais cristão.5 Estas caracte- Gómez de Souza, A
JUC: Os estudantes
rísticas serão constantes, a partir daí, na espiritualidade do católicos e a política, 63;
então vice-presidente da Ação Católica Brasileira e futuro Nelson Piletti; Walter
Praxedes, Dom Helder
fundador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e Câmara: entre o poder e
do Conselho Episcopal Latino-Americano. a profecia, 165-166.
Helder Camara: dom de Deus para os pobres
Testemunho profético
Uma nota especialíssima da santidade de Dom Helder está
na ousadia de ser profeta, e como tal assumiu o compromisso
Helder Camara: dom de Deus para os pobres
va tudo em oração, salvava sua unidade com Deus, ajudava 13 Ivanir Antonio
Rampon, O caminho
a humanidade inteira, cultivava o amor, preparava-se para espiritual de Dom Helder
a Missa, escrevia Meditações e Circulares, atualizava-se Camara, 312-322.
teologicamente e fazia comunhão com a Família Maceja- 14 Dom Helder Ca-
mara, Circulares Con-
nense.13 Ele próprio escreveu: “Que seria de mim sem a ciliares, I, 1a Circular,
Vigília…?”.14 de 01/03/1964.
Helder Camara: dom de Deus para os pobres
Bibliografia
CAMARA, Helder. Circulares Conciliares, I – de 13/14 de ou-
tubro de 1962 a março de 1964, II – de 12 de setembro a
22/23 de novembro de 1964, III – de 10/11 de setembro a
7/8 de dezembro de 1965. Obras Completas de Dom Helder.
Recife: CEPE, 2009.
_______. Circulares Interconciliares, I – de 11/12 de abril a 9/10 15 José Comblin, Dom
de setembro de 1964, II – de 23/24 de novembro de 1964 Helder e a Vida Religio-
sa, 501-502.
a 17/18 de abril de 1965, III – de 18/19 de abril a 31 de
16 Dom Helder
agosto/1o de setembro de 1965. Obras Completas de Dom Camara, Circula-
Helder. Recife: CEPE, 2009. res Interconciliares
_______. Circulares Pós-Conciliares, I – de 9/10 de dezembro I, Circular 284 de
28-29/08/1965.
de 1965 a 30/31 de maio de 1966, II – 31 de maio/1o de
junho a 26/27 de dezembro de 1966, III – de 31 de de- 17 Ivanir Antonio
Rampon, Francisco e
zembro de 1966/1o de janeiro de 1967 a 29/30 de julho de Helder: sintonia espiri-
1967. Obras Completas de Dom Helder. Recife: CEPE, 2011. tual, 132.
Helder Camara: dom de Deus para os pobres
Da elegância
As comunidades cristãs têm acolhido com muita seriedade
o convite do ano da misericórdia, pelo menos na produção
de textos, artigos, subsídios pastorais. Há o risco de gerar
uma saturação em torno do tema, mesmo na Convergência! Há
também o desafio de ir além do informativo para realmente
entrar num processo de conversão, tomando atitudes e desen-
volvendo habilidades parecidas com as do Pai e de Jesus, seu
ícone: como ser uma VRC movida à misericórdia, na mística
e na profecia, começando em nossas comunidades?
Convidada a contribuir, neste mês de setembro, com uma
reflexão a partir de uma parábola da misericórdia, decidi
sair um pouco dos trilhos e refletir sobre a elegância. Não,
não sou estilista, embora eu aprecie uma roupa que cai bem,
na discreta simplicidade dos lírios campestres!
Mas não estou aqui para falar de tendências para a estação
invernal, e sim para desdobrar toda a riqueza do conceito de
elegância, costurando suas harmônicas humanas e evangé-
licas. Ir à raiz da palavra já inspira e abre novos horizontes,
* Irmã Annette
muito além da superficialidade: Havenne nasceu na
Bélgica. Desde 1976,
Elegância: do latim elegância.1 vive em comunidades
de inserção no Nor-
Bom gosto na escolha das roupas.
deste do Brasil. Exerce
Graça no modo de se apresentar e de agir. seu ministério na área
da formação, acompa-
Harmonia entre o estilo e a interioridade da pessoa. nhamento espiritual
Expressão justa ao traduzir o que se pensa, no uso das palavras. e assessoria junto à
CRB.
Delicadeza no comportamento moral.
1 Dictionnaire Larous-
Distinção, refinamento da pessoa, nas suas relações com os demais. se, 5 volumes. Tradu-
ção livre.
Ser elegante, dentro de casa!
O contexto de Mt 18
Sem pretensão exegética, mas com respeito à dinâmica do
texto, vale lembrar que estamos aqui diante do chamado
discurso eclesial, ou discurso para a comunidade, ou ainda dis-
curso para a Igreja, sendo Mateus o único evangelho a usar
esta palavra.
Anteriormente, no mesmo evangelho, houve outro dis-
curso se referindo à Igreja enquanto comunidade dos dis-
cípulos/as enviados/as em missão (Mt 10). Aí parece que a
preocupação é com as relações internas, portanto, entre os
cristãos, diante da institucionalização, dos conflitos e da sua
possível resolução pela violência e os abusos de poder... De
fato, é dentro de casa que muitas vezes passamos a ser des-
leixados/as e a usar roupas surradas, com a desculpa de que
não importa, que podemos ser nós mesmos/as, ao natural.
Por isso o título desta reflexão: Ser elegante, dentro de casa!
O nosso “sorriso de aeromoça” e a saudação: “paz para esta
casa” fazem parte do kit básico para as visitas pastorais ou va-
lem também entre nós, traços genuínos da alegria que expe-
rimentamos ao voltar para nossa casa e ao partilhar com nossos/
as irmãos/as de comunidade? Como passar da experiência de
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016
Tomaz Hughes*
Capítulo 15 de Lucas
Talvez não exista no Novo Testamento um capítulo que trate
tão intensivamente do tema de misericórdia como Lucas 15.
O texto é composto de três parábolas que, somente a título de
conveniência, podemos denominar neste artigo como “A ove-
lha perdida e achada”, “A moeda perdida e achada” e “O filho
perdido e achado”. Cabe aqui umas observações preliminares
referentes ao uso de parábolas nos evangelhos. Em primeiro
lugar, para que provoque o efeito desejado no seu ouvinte (ou
leitor), uma parábola deve usar imagens e símbolos conheci-
dos. Como Jesus falava no ambiente rural palestinense de dois
mil anos atrás, naturalmente usava imagens daquele contex-
to – muitas vezes alheias à experiência dos ouvintes moder-
nos, frequentemente oriundos de contextos urbanos. Assim,
com certa facilidade o ouvinte moderno corre o risco de não
entender bem o sentido da parábola. Na sua forma original,
a parábola não trazia uma explicação como conclusão. Cabia
ao ouvinte descobrir o sentido da história. Por isso Jesus fre-
quentemente terminava desafiando: “Quem tem ouvidos para
ouvir, ouça!”. Como a parábola trabalha com símbolos, pode
ser polissêmica, ou seja, capaz de comportar diferentes explica-
ções, conforme a realidade do interlocutor. Para que fique mais
clara a meta de Lucas em escrever este capítulo, é importante
que o aprofundemos na sua integridade, ou seja, como obra
literária que tem uma estrutura e uma organização interna.
A chave da sua interpretação, com certeza, achamos nos pri-
meiros três versículos, que nos definem o contexto, o motivo
e os destinatários primários do texto: “Todos os cobradores de
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016
Introdução
Marx dispensa apresentação, mas Piketty, para o público
da Igreja em geral, ainda é um tanto desconhecido. Preci-
samos apresentá-lo brevemente. Trata-se de um economis-
ta francês que, em 2013, publicou o surpreendente livro
O capital no século XXI que, imediatamente, se tornou o
best-seller do ano. “Um livro fantástico”, observou o Prê-
mio Nobel americano Paul Kruger. “Extraordinária pes-
quisa histórica”, acrescentou o conhecido economista bra-
sileiro Antônio Delfim Netto. O famoso diário inglês The
Guardian não deixou por menos: surgiu “o rockstar da eco-
* Pe. Nicolau João
Bakker é missionário
nomia”, sentenciou.
verbita (SVD), forma- E nós, religiosos, religiosas, padres, leigos ou leigas da
do em Filosofia, Teo-
logia e Ciências So- Igreja temos algo a ver com isso? Sim, muito. É a razão do
ciais. Atuou sempre na nosso artigo. Assim como Karl Marx, economista do sécu-
pastoral prática, rural
e urbana. Representa
lo XIX, teve grande influência sobre o pensar e o agir das
a CRB no Conselho diferentes sociedades, assim também Thomas Piketty terá
Estadual de Proteção forte influência sobre o pensar e o agir das sociedades nas
a Testemunhas (Pro-
vita-SP). Atualmente próximas décadas. Nunca devemos esquecer que o sistema
atua na Paróquia S. econômico de uma sociedade constitui o “eixo” a partir
Arnaldo Janssen, em
Diadema-SP. Além de
do qual as engrenagens sociais se movimentam. Todas as
cartilhas populares, instituições de uma sociedade podem ser analisadas a partir
publicou diversos deste eixo, inclusive a Igreja, a Vida Religiosa e a Pastoral.
artigos pastorais em:
REB, Vida Pastoral, Qual a ânsia mais profunda que habita os seres vivos na
Verbum, Grande Sinal e opinião dos biólogos evolucionistas? Simplesmente: viver,
Convergência. E-mail
do autor: nijlbak-
conviver e sobreviver da melhor forma possível! Quando
ker@hotmail.com. Richard Dawkins escreveu seu livro O gene egoísta (1976),
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016
626 ao falar dos coveiros, uma vez que o capitalismo não entrou
em colapso. Muito pelo contrário, está hoje mais forte do
que nunca. Mas Marx acertou, ele diz, quando afirma que o
capital tende a uma acumulação sem limites. Diversas vezes
Piketty faz questão de observar que não existem mecanismos
naturais dentro do sistema capitalista que vão na direção de
uma superação espontânea das desigualdades. Em seus grá-
ficos encontramos a presença constante de uma “linha em
forma de U”: antes da Primeira Guerra Mundial, uma li-
nha reta, lá nas alturas, quando o capital alcança sete anos
de renda nacional; em seguida uma forte queda com a vinda
da crise da Bolsa, das guerras, do estatismo e dos impostos
altamente progressivos; e a partir de 1950 uma nova tendên-
cia ascendente com a linha agora já beirando os seis anos de
renda nacional. Só existem forças “externas” para controlar a
voracidade do capital, afirma Piketty.
É justamente aí que entra sua proposta central de um “im-
posto progressivo sobre o capital”. O autor lamenta o atual
“extremismo meritocrático” e o abandono dos pesados im-
postos progressivos sobre a renda a partir da introdução da
economia neoliberal. Especialmente nos países anglo-sa-
xões, esses impostos chegaram a 90%, justamente os países
que agora mais os rejeitam. Além do imposto progressivo
sobre as rendas, o autor insiste no aperfeiçoamento do im-
posto sobre a herança. Particularmente no contexto de uma
quase estagnação do crescimento populacional, as heranças
recebidas (contra o espírito da democracia meritocrática que
valoriza o fruto do trabalho) representam parte crescente da
riqueza nacional. Mas Piketty insiste especialmente no im-
posto progressivo sobre o próprio capital, a fim de impor
controle sobre sua acumulação sem fim. O autor reconhece
a grande dificuldade de sua aplicação concreta, uma vez que
a maior parte do capital não é mais constituída, como antes,
de capital imobiliário, mas de um capital financeiro que não
obedece a limites geográficos. Uma pesquisa recente indica
que em torno de 10% destes ativos se encontram em paraísos
fiscais, fora da legalidade. Por isso, Piketty insiste na imperio-
sa necessidade de uma legislação mundial (ou ao menos leis
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016
Paulo Suess*
Do centro da Igreja recebemos hoje sinais de esperança,
gestos de misericórdia, incentivos de solidariedade e con-
vites de participação na construção de um mundo novo
sem violência e de uma Igreja “em saída”, servidora sem
medo. Desde a chegada do Papa Francisco (sem desmere-
cer seus antecessores) vivemos uma nova primavera ecle-
sial, não sem contradições, mas com liberdade de falar,
igualdade de ser e possibilidade de participar. O sonho
juvenil dos anos 1960 parece realizar-se agora com um
Papa que se dirigiu aos voluntários da 28a Jornada Mundial
da Juventude (28/07/2013) pedindo “que sejam revolucio-
nários; eu peço que vocês vão contra a corrente; sim, nisto
peço que se rebelem: que se rebelem contra esta cultura do
provisório que, no fundo, crê que vocês não são capazes de
assumir responsabilidades, crê que vocês não são capazes
de amar de verdade”.
O Papa Francisco não participou do Vaticano II (1962-
1965), mas se torna cada vez mais o executor dos anseios
profundos daquele tempo. Com o peso do seu ministério e
* Paulo Suess estu- com jovialidade franciscana, ele faz uma releitura dos tex-
dou nas Universidades
de Munique, Lovaina tos, descobre partes até hoje negligenciadas e percebe a ne-
e Münster, onde se cessidade de ler os novos sinais do tempo numa perspectiva
doutorou em Teo-
logia Fundamental.
pós-conciliar.
Atualmente é assessor Francisco resgata o esquecido e antecipa o novo no hori-
teológico do CIMI
e do COMINA, e zonte do mundo. Com liberdade aponta para “questões fe-
professor no ciclo chadas” pelos seus antecessores e procura brechas nas quais
de pós-graduação
em Missiologia, no
a ortodoxia não marginaliza a misericórdia. É importante
ITESP. que esse “seu” projeto seja acolhido pelo povo de Deus,
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016
A alegria
O Papa Francisco fez da “Exortação apostólica Evangelii
gaudium” (EG) um texto programático de seu pontificado,
enfocando uma Igreja missionária e transformadora (cf.
EG 27). Do “Documento de Aparecida” (DAp), Francisco
trouxe o binômio “fidelidade e audácia” para a cátedra de
Pedro (DAp 11), que significa abertura “à ação do Espírito
Santo” (EG 259). O Espírito, que é Pai dos pobres, convi-
da a Igreja a reconhecer a força salvífica” (EG 198) da vida
dos pobres, que “nas suas próprias dores conhecem Cristo
sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar
por eles” (EG 198). E o Papa confessa “que as alegrias mais
belas e espontâneas, que vi ao longo da minha vida, são as
alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a que se
agarrar” (EG 7). Essa alegria é missionária; nos conquis-
ta e converte ao Evangelho (cf. EG 21). O despojamento
da vida do Papa Francisco, seguindo as pegadas do pobre
Jesus do presépio e da cruz, é a fonte de sua alegria conta-
giante (cf. EG 181). No Evangelho de Francisco não tem
lugar para “profetas de desgraças” (EG 84) e “prisioneiros
da negatividade” (EG 159).
Francisco: timoneiro da esperança
634 A realidade
Também na questão da realidade, Francisco é um discípu-
lo de Aparecida que “faz uso do método ‘ver, julgar e agir’”
(DAp 19). A realidade interpela aos cristãos; cobra coerência
com os imperativos do Evangelho, que por sua vez exigem
“um compromisso com a realidade” (DAp 491). Esse com-
promisso nos conduz “ao coração do mundo”, onde abra-
çamos “a realidade urgente dos grandes problemas econô-
micos, sociais e políticos da América Latina e do mundo”
(DAp 148). Anúncio, gestos e práticas simbólicas do Papa
Francisco apontam para uma evangelização integral: “Toda
autêntica missão unifica a preocupação pela dimensão trans-
cendente do ser humano e por todas as suas necessidades
concretas” (DAp 176; cf. EG 88).
Francisco retoma em muitas páginas da EG esse fio con-
dutor da integralidade e assume a teologia indutiva da Gau-
dium et spes (GS), partindo da vida concreta da humanidade,
das alegrias e esperanças, das tristezas e angústias, “sobre-
tudo dos pobres e de todos os que sofrem” (GS 1). Francis-
co estimula “ler os sinais dos tempos na realidade atual”
(EG 108) e interpretá-los como mensagens que Deus envia
a partir do mundo secular à sua Igreja (cf. GS 44,1; Pacem in
terris!). A encarnação na realidade tem dois desdobramen-
tos, conhecimento e ação: por um lado, a inculturação e a
assunção dessa realidade; por outro lado, o discernimento
necessário para transformar essa realidade através de “obras
de justiça e caridade” (EG 233).
Francisco convida a comunidade missionária com realismo e
poesia a “envolver-se”, “acompanhar” e “frutificar” a partir da
vida real. Os discípulos missionários tocam “a carne sofredora
de Cristo no povo” e “contraem assim o ‘cheiro de ovelha’”
(EG 24) e a poeira da estrada: “Na sua encarnação, o Filho de
Deus convidou-nos à revolução da ternura” (EG 88).
O encontro
Em uma videomensagem do dia 7 de agosto de 2013, o Papa
Francisco pergunta a um interlocutor argentino: “‘Quando
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016
A missão
Seguindo Aparecida, o Papa Francisco propõe à Igreja
universal constituir-se “em estado permanente de missão”
(DAp 551, EG 25) – além-fronteiras e sem fronteiras (cf. EG
11; 25; 27; 32). Na Jornada Mundial da Juventude (Celam,
28.07.2013, n. 3), o Papa explicou duas dimensões da mis-
são: a programática e a paradigmática. “A missão programá-
tica […] consiste na realização de atos de índole missionária”
(envio de missionários, orações, coletas). “A missão paradig-
mática, por sua vez, implica colocar em chave missionária”
todas as atividades pastorais das Igrejas.
A missão – “Igreja em saída” (EG 22ss) para as periferias
do mundo – pressupõe conversão. A “conversão pastoral”
permanente faz parte do “estado permanente de missão”.
Francisco sonha com “uma Igreja capaz de redescobrir as
entranhas maternas da misericórdia. Sem a misericórdia,
poucas possibilidades temos hoje de inserir-nos em um
mundo de ‘feridos’, que têm necessidade de compreen-
são, de perdão, de amor” (CNBB, JMJ, 27/07/2013, n. 4).
Francisco: timoneiro da esperança
A misericórdia
A proximidade de Deus misericordioso na vida faz parte
da biografia do Papa Francisco e está presente em seu lema
episcopal: “Olhou-o com misericórdia e o escolheu” (mise-
rando atque eligendo), que resume a ação de Deus em sua vida:
“Jesus viu um homem, chamado Mateus, sentado à mesa de
pagamento dos impostos, e lhe disse: ‘segue-me’”. É na casa
de Mateus, na casa de um marginal social, que Jesus defende
a misericórdia para com publicanos e pecadores contra o
rigorismo dos fariseus: “Misericórdia é que eu quero, e não
sacrifício” (cf. Mt 9,13; Os 6,6).
Foi na festa litúrgica de São Mateus, no dia 21 de setem-
bro de 1954, Dia dos Estudantes e do início da primave-
ra, que Jorge Mario Bergoglio sentiu de um modo especial
o chamado misericordioso daquele Deus, que “saiu ao seu
encontro e o convidou a segui-lo”. Mais tarde, em sua úl-
tima entrevista radiofônica antes de ser eleito Papa, diria
sobre essa experiência que fez nascer sua vocação sacerdotal:
“Deus me priorizou. […] Senti como que se alguém me
agarrasse por dentro e me levasse ao confessionário”.
Com esse lema, Francisco traz um recado para a Igreja
que o escolheu: “Nós não podemos podar a misericórdia
de Deus com a tesoura do legalismo. Misericórdia, porém,
não significa nem autocomplacência com vícios internos
da Igreja nem autorreferencialidade com uma espécie de
‘narcisismo teológico’”. A graça do chamado de Deus e sua
misericórdia com a fragilidade daquele que foi chamado são
o primeiro “Leitmotiv” na vida de Mario Bergoglio. O de-
safio existe na aceitação do passado. Só pode ser redimido o
que foi assumido (cf. Puebla n. 400). Desde Davi, passando
por Pedro, Paulo e Agostinho, a missão dos eleitos nunca
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016
A sinodalidade
Durante o Sínodo dos Bispos de 2015 sobre “A vocação e
a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”
foi comemorado, no dia 17 de outubro de 2015, o cinquen-
tenário da instituição do Sínodo no final do Vaticano II.
Naquele dia, o Papa pronunciou um discurso programático
Francisco: timoneiro da esperança
640 com sete eixos. Talvez seja melhor falar em sinais que apon-
tam para um processo de purificação da Igreja. Podemos
compreender os eixos do projeto de Francisco como sacra-
mentos, sinais salvíficos da presença de Deus, do seu perdão,
acolhimento e envio.
Imperativos de vigilância
Nos imperativos da EG percebem-se resistências internas
à “Igreja em saída”. A quem se dirige o Papa Francisco ao
nomear essas tensões ou para estimular sua própria vigi-
lância? Com quem pode contar nessa luta ad intra? Lobos e
ladrões parecem ameaçá-lo quando pede:
• “Não deixemos que roubem nosso entusiasmo missio-
nário!” (EG 80).
• “Não deixemos que nos roubem a alegria da evangeli-
zação!” (EG 83).
• “Não deixemos que nos roubem a esperança!” (EG 86).
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016
Contradições no Sínodo
No Sínodo dos Bispos reunidos na XIV Assembleia Ge-
ral Ordinária, sobre “A vocação e a missão da família na
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016
Thomas Münzer
Quem são esses assaltantes e ladrões que querem roubar
as dádivas da nossa fé? Quem são os que se opõem a uma
“Igreja em saída”? Às vezes, o Papa parece ser prisioneiro da
própria instituição que representa. Friedrich Engels lamen-
ta a sorte de um líder de um movimento revolucionário,
como a do teólogo da revolução Thomas Münzer (1490-
1525), cuja consciência é mais avançada do que a do povo
que representa: “O pior que pode acontecer […] é ser for-
çado a encarregar-se do governo num momento em que o
movimento ainda não amadureceu suficientemente […]. O
que ele pode fazer contradiz seus princípios […], o que ele
deve fazer, é impossível de realizar. […] Quem chega nessa
situação, está irremediavelmente perdido”.1 A fragilidade do
Papa Francisco, provavelmente, está em sua pertença a dois
setores que ele representa: o povo simples e desorganizado,
1 Cf. ENGELS,
que tem pouca representatividade na Igreja; mas também Friedrich. As guerras
o setor ao qual ele mesmo pertence, na hierarquia integra- camponesas na Alema-
nha. Lisboa: Editorial
da em estruturas cristalizadas. Dos trilhos de representação Presença, 1975, p.
(do povo de Deus) e pertença (à estrutura hierárquica) que 142s.
Francisco: timoneiro da esperança
Condor ou avestruz?
Depois de um longo inverno eclesial, o Papa Francisco
foi eleito para devolver à Igreja a esperança da primavera. O
Papa dos Pampas Argentinos nos falou, em muitas ocasiões,
do óbvio, dos vícios burocráticos enraizados, de doutrinas
cristalizadas e da necessidade de mudanças. As mudanças
climáticas de agora exigem inovações práticas. Com quem
ele pode fazer essas reformas?
Francisco vive uma solidão institucional muito grande. Seus
críticos na Cúria já não falam mais em off, mas em público,
como o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que
numa entrevista ao periódico La Croix, no início de abril, de-
clarou que sua Congregação deve dar a devida “estruturação
teológica” ao magistério do Papa Francisco. Em qualquer re-
partição pública esse funcionário seria imediatamente afastado.
A força deste pontificado está no apoio popular e no reco-
nhecimento da sociedade civil mundial, conquistados pelos
gestos simbólicos e reais, humanos e evangélicos, pela lin-
guagem simples e direta e o horizonte pastoral relevante para
toda a humanidade. Francisco restabeleceu o primado da
pastoral sobre a teologia, não contra a teologia. A teologia
permanece pano de fundo, ancilla Domini, serva do Senhor.
Quantas vezes Francisco deve ter repetido o diálogo entre a
estátua de bronze de Pedro, que se encontra na Basílica de São
Pedro, e o Senhor, escrito pelo poeta espanhol Rafael Alberti:
CONVERGÊNCIA – Ano LI – Nº 494 – setembro 2016