Encontro de Dois - (Spin-Off Da - Mariana Silva
Encontro de Dois - (Spin-Off Da - Mariana Silva
Encontro de Dois - (Spin-Off Da - Mariana Silva
Nina ficou no meu encalço antes que eu saísse de casa, até que eu
colocasse a porcaria do presente dentro da mochila. Não duvido que, se
pudesse, ela me seguiria até a sala, apenas para garantir que o pacote será
entregue. Mas ela não pode, então eu tenho a oportunidade de jogar essa
merda no lixo e Kira nunca saberá que um dia um presente foi comprado. E
é o que farei no primeiro intervalo que eu tiver.
Noto os olhares curiosos na minha direção quando caminho em
direção à sala, mas não dou atenção para essa gente fofoqueira.
Para Kira tem sido pior, mas ainda assim tenho uma quota de
holofotes sobre minha cabeça desde o incidente. Alguns engraçadinhos
fazem piada, outros querem demonstrar compaixão, e eu estou de saco
cheio de todos.
Estou prestes a colocar meus fones de ouvido e ignorar toda essa
gente bisbilhoteira quando alguém pousa a mão em meu ombro.
— Então? São e salvo? — Marco, meu amigo e colega de classe,
caminha ao meu lado, com um sorriso de zombaria no rosto.
— Quase. Tenho que cumprir uma detenção.
— Nada de expulsão, então.
— Sem expulsão. Embora meu castigo seja tão perverso quanto uma.
Vou ter que cumprir horas de serviço na biblioteca.
— Ah, não é tão ruim, cara.
— Com a pulguinha.
— Não fode! — Ele faz uma careta de desaprovação.
— Queria que fosse mentira. Mas era isso ou expulsão. Ou seja,
preciso atualizar minha playlist diária com mantras, se eu quiser sobreviver
aos próximos meses com ela no meu encalço.
— Meses? Fala sério!
— Até o semestre acabar, meu amigo. — Puxo-o pelo ombro para
dentro da sala.
Não me dou o trabalho de erguer o olhar e procurar por ela, que com
certeza está sentada na carteira de sempre. A carteira que ela tomou de mim
na primeira oportunidade que teve. É quase um ritual nosso. No primeiro
dia do semestre letivo escolho onde vou me sentar com Marco, e na aula
seguinte ela aparece mais cedo e toma a carteira que escolhi para si.
Pulguinha perversa e trapaceira.
DIAS DE HOJE
— Mais um! — Balanço meu copo vazio para o barman que está
disponível.
— Não acha que já bebeu demais, mocinha? — Ele usa um tom de
voz que mistura advertência e divertimento.
— Acho que ainda não bebi o suficiente! — respondo animada
quando ele me entrega o meu quinto spritz da noite, acenando
negativamente, como se desistisse da repreensão.
Vou até a mesa onde Matteo e Mel estão com mais um grupo de
alunos. Nós conversamos animados, elevando o tom de voz quando a
música do ambiente fica mais alta.
— Posso me sentar aqui com o time dos perdedores? — Reviro os
olhos quando a voz desprezível chega até nós.
Marco, o melhor amigo do babaca, se senta confortavelmente na
mesa, sem que nenhum de nós dê permissão.
É tão arrogante quanto Zayan. Por isso se dão bem.
— Na verdade, não — respondo.
— Qual é, Moretti? Não vou incomodar, prometo. — O sorriso
cretino dele parece dizer o contrário.
— Faz o quê aqui? Cadê seu amigo para você atormentar? — Procuro
pelo infeliz pelo ambiente, até constatar que ele está do lado oposto ao
nosso, jogando algum papo furado para uma inocente.
Os dois parecem estar em clima íntimo. É o que noto quando a mão
de Zayan desce para a cintura dela e ele sussurra algo ao pé do ouvido da
moça, que ri, toda derretida.
— Como você pode ver, ele está ocupado — o vira-lata de Zayan diz.
— Não é da nossa conta. Não temos que aturar sua presença porque
seu amigo está se atracando com uma garota.
— Isso é ciúmes, Kira?
Sou obrigada a gargalhar.
— Pirou?
— Foi o que pareceu. — O loiro dá de ombros.
— Choverá vinho no dia que eu sentir ciúmes de Zayan Castelli.
Ele ergue uma sobrancelha, incrédulo. Problema dele se não acredita.
Eu? Ciúmes de Zayan? Onde Marco bateu com a cabeça?
— Por que não vai procurar outro grupo para atormentar, Marco? —
Faço um gesto de dispensa no ar.
— Vocês são minha galera preferida. Por que procuraria outras
pessoas? — Não consigo dizer se ele fala sério ou se está sendo sarcástico.
— Macché[6]! — Mel bufa.
— Então, sobre o que estamos conversando?
— Sobre como existe tanta gente folgada no mundo. Já notou? — É
Matteo quem responde.
— Eu sei! — Marco finge que o comentário não foi para ele e começa
a reclamar sobre uma colega de turma, contando uma história que ninguém
pediu para ouvir.
Depois disso, ele passa a fofocar sobre os alunos dos outros prédios e
isso parece entreter meus amigos, que magicamente esquecem do quanto
desprezamos o sujeito.
Ok, não é para tanto. Não posso dizer que odiamos Marco. Ele nunca
fez nada de ruim para nós. O defeito dele é ser amigo de quem é.
Mas agora, ouvindo-o narrar sobre o projeto que ele e um colega
desenvolveram de atendimento clínico acessível, Marco parece até legal.
Suportável, eu diria.
— Vou pegar bebida para o meu novo grupo de amigos.
— O que vão dizer de você quando te virem pegar bebidas para os
perdedores? — Matteo sorri e acho que já passou um pouco da conta
quando a fala sai arrastada.
— Vão dizer que eu estou revolucionando o grupo. Finalmente
fazendo de vocês pessoas divertidas. — Marco estufa o peito, convencido.
Ele sai em direção ao bar e eu noto Matteo acompanhá-lo com o olhar
malicioso.
— Não faz isso. — Aponto na direção dele.
— Isso o quê?
— Não se faça de sonso, Matt. Já está querendo dar para ele que eu
sei.
— Quem vê essa cara de boneca sua nem imagina a boquinha suja
que tem.
Mostro a língua para ele antes de dizer:
— É sério. Você sabe que seu esporte favorito é se apaixonar por
homens héteros. Depois fica chorando pelos cantos da biblioteca por um
amor impossível.
— Por que eu te adotei mesmo? — resmunga.
— Porque sou a voz do bom-senso na sua vida. — Sorrio para ele,
que faz uma careta.
— Preciso ir — Carmela anuncia, levantando de súbito.
Ela encara a tela do celular com um sorriso safado e eu já posso
imaginar a razão para a pressa.
— Sério, Mel? — Direciono meu olhar inquisitivo para ela, cruzando
os braços.
— Não tenho culpa se eles e elas me querem, princesa. — Ela ergue
os ombros e sorri convencida antes de mandar dois beijos no ar e sair pela
porta do bar.
Carmela olha distraída para o telefone e por isso não nota quem passa
por ela, entrando pela mesma porta que acabou de sair. O ar foge dos meus
pulmões e tudo ao meu redor perde importância. Meu coração acelera e
meu corpo estremece.
É automática a minha reação. Levanto da mesa em um pulo,
anunciando para Matt e Marco, que se aproxima, que estou indo ao
banheiro.
Eles dizem algo, mas não ouço.
Saio esbarrando nas pessoas que estão no meu caminho, e a distância
entre a mesa e o banheiro parece quilométrica.
Minhas pernas me impedem de ir mais rápido porque estão moles,
prestes a ceder.
Ouço minhas batidas chegarem nos meus ouvidos.
Abro a primeira porta que vejo à minha frente, apenas para encontrar
umas das últimas pessoas que eu desejaria ver nesse momento em uma cena
ainda mais desagradável.
Zayan, que estava quase engolindo a garota ruiva em um beijo quente
e cheio de toques, se afasta dela quando ouve a porta fechar atrás de mim.
— Só pode ser brincadeira — diz, irritado, me encarando como se
pudesse me pulverizar apenas com o ódio que toma o olhar dele. — Esse é
o banheiro masculino. — Gesticula para que eu saia.
Estou tão agitada que não consigo oferecer uma resposta ácida.
— Tem razão... Eu... Eu... Vou... — Aponto para a porta.
Coloco a mão na maçaneta e puxo, saindo para o corredor. Quase
tropeço nas minhas próprias pernas. Minhas mãos estão igualmente
trêmulas ao lado do meu corpo.
Dou apenas dois passos quando percebo que Gregório já está perto
demais.
Volto como um rato encurralado para o banheiro que Zayan está.
Mais uma vez o beijo é interrompido, e quando os dois percebem que
sou eu de novo, ambos reviram os olhos em sincronia.
— Qual seu problema, garota? — ele questiona impaciente.
— Eu juro que eu não quero atrapalhar vocês. Eu só preciso ficar aqui
por um tempo. Só isso. E depois eu saio e deixo os dois em paz.
— Ficar aqui? — Zayan quase grita. — Você está me atrapalhando.
Como sempre. Eu sugiro que você saia do meu caminho, Kira, porque estou
sem paciência nenhuma para você hoje.
— Se não quisesse ninguém te interrompendo, era só trancar a porta!
— exclamo, nervosa.
Por favor, não me pede para sair.
Por favor, me deixe ficar aqui.
— Eu vou buscar alguma bebida — a ruiva diz, entediada, passando
por mim.
— Se eu perder minha foda da noite, a culpa é sua. — Ele aponta
irritado na minha direção, quando ela já não está mais aqui.
— Ok, ok. Já entendi. — Dispenso o comentário sem querer entrar
em uma discussão.
Ando de um lado para o outro do banheiro, tentando pensar em uma
alternativa. Procuro por janelas, mas não há nenhuma aqui. Abro as cabines
dos banheiros para ver se tem outra saída, mas não encontro nada.
Zayan recosta o corpo na pia e cruza os braços, analisando meus
movimentos com curiosidade.
— Qual o seu problema, pulguinha? Não rebateu minha fala com
alguma baixaria.
— Tem alguma saída de ar por aqui? — Encaro o teto, buscando por
uma rota de fuga.
Logo em seguida pego meu telefone no bolso, digitando com rapidez
uma mensagem para o meu irmão.
Kira
Lembra que eu disse que estaria
em um bar? Pode me buscar aqui?
Vou enviar o endereço.
Dante
Posso sim.
Me envia a localização.
Matt
Eu estou bem, Kiki.
Desculpa ter insistido para você ir.
Kira
Não tem que se desculpar.
Eu aceitei ir.
E não tinha como sabermos
que ele iria aparecer.
Só queria que ele sumisse de vez, sabe?
Matt
Eu sei.
Vamos fazer algo quanto a isso.
Eu não respondo depois disso. Porque por mais que eu queira, não
tem nada que possamos fazer, que eu possa fazer, a não ser manter uma
distância segura dele.
Do garoto que me apresentou o céu.
E em seguida me levou até o inferno.
— Desfaça essa carinha brava, Mel. Não combina com você. —
Cutuco a melhor amiga de Kira, que está sentada na minha frente.
Estamos na biblioteca. Eu tenho uma carga horária de serviço a
cumprir. Quanto à Carmela, arrisco dizer que nos visita, a mim e a Kira, em
algumas tardes, apenas para garantir que eu não provoque sua amiga e ela
me estapeie mais uma vez.
— Ainda odeio você. — Ela oferece uma carranca.
— Não odeia não. — Sorrio com zombaria para ela. — Eu salvei sua
Barbie. Mereço os créditos. — Apoio o antebraço cruzado sobre a mesa,
esperando uma resposta.
— Carregá-la sobre os ombros, enquanto ela se debate, não parece
muito uma salvação. — Me encara, desafiando-me.
— Um pequeno detalhe. — Encosto o corpo de volta na cadeira,
dispensando o comentário, abanando a mão no ar.
— Você é um idiota, sabe disso.
— Por que exatamente?
— Eu preciso mesmo explicar?
— Do que estamos falando? — Marco questiona, sentando-se ao meu
lado e largando a mochila na superfície.
— Do quão babaca seu amigo é.
— Não há nenhuma novidade nisso. — Dou um tapa na nuca dele
pelo atrevimento, e ele se limita a rir.
— E o rosto? — questiono, analisando o roxo enorme embaixo do
olho direito dele.
— Melhor, impossível. Isso aqui é só um detalhe. Marcas de guerra
— diz, quase se divertindo.
— E que história é essa de você se misturar com os perdedores agora?
— pergunto com uma falsa repreensão na voz.
— Eu estou bem aqui — Carmela protesta.
— É brincadeira, Mel.
— Essa é a hora que vocês me explicam que merda foi aquela no bar?
— Matteo se senta ao lado de Carmela, olhando na minha direção e
esperando uma resposta.
Encaro-o de volta, estudando o garoto.
— Não precisa ter ciúmes, Zayan Castelli. — Carmela me chuta por
debaixo da mesa. Fuzilo a infeliz com o olhar, e ela está sorrindo.
— Ciúmes?
— Tenta negar, bebê. Quero ver. — É Marco quem diz, sorrindo
como o bom filho da puta que consegue ser.
Não falo nada, apenas encaro o bibliotecário que ainda está aqui,
próximo à Mel, esperando uma resposta minha.
— Por que não vai atrás da sua pulguinha? Ela vai saber te explicar
tudo.
— Claro. Já aproveito e conto para ela tudo que ouvi. — Ele levanta
da mesa e eu faço o mesmo, consumido pela raiva.
— Você não se atreveria! — Aponto na direção dele.
— Ei, fica calmo, cara. — Marco me puxa pela mão, para que eu me
sente, e Matteo faz o mesmo. — Matteo não vai fazer nada disso.
— Quem garante que não? — Ele ergue uma sobrancelha em desafio.
Carmela me olha como se esperasse que eu dissesse algo.
— Eu não confio nele — respondo ao pedido silencioso dela. A
resposta de Matteo é bufar.
— Você está se mordendo, achando que ele quer Kira, isso sim. —
Mais um sorriso maldoso se forma no rosto dessa abusada.
— Que se dane Kira e ele! Eu estou dizendo que não confio nele e
ponto.
Ela acena em negação, como se não acreditasse no que eu digo.
— Perdi meu tempo aqui. — Matteo se levanta mais uma vez.
E é apenas por não querer de forma alguma que ele conte para Kira
tudo que aconteceu naquele bar, que eu abro a boca.
— Senta aí, Matteo — ordeno. Ele para de andar e volta, jogando o
corpo na cadeira. — Vou te contar tudo que aconteceu. Mas nosso acordo é
que você não vai abrir essa boca grande para Kira. Ela nunca pode saber o
que aconteceu. Entendeu?
— Isso vai depender do que você contar. — Mas que moleque
inconveniente!
— Ele não vai contar — Carmela diz, com o tom de voz firme. Em
seguida encara o amigo, séria. — Você não vai contar.
Eles ficam nessa troca de olhares por cinco segundos, antes de Matteo
ceder.
— Fala — diz, enfim.
E então eu falo. Sobre tudo.
— Você está bem? Mal tocou sua comida hoje — Nina questiona
quando estamos na mesa de jantar.
Hoje somos só eu e ela, já que meu pai está trabalhando até tarde e
Lorenzzo sumiu por aí. Deve estar na casa de algum colega, fazendo
alguma merda, sem dúvidas.
— Sim, Nina. Só pensando.
— Pensando em quê? — ela especula, tentando soar indiferente.
— Nada de mais. — Cutuco o tomate no prato.
— Está pensando na garota que te estapeou, não é? — Ergo o olhar
para minha madrasta e encontro um sorriso divertido em sua face.
— Estou pensando em como eu queria colocá-la em um foguete e
mandá-la para a Lua, para ela nunca mais voltar. — Sorrio com ironia.
— Você odeia ela tanto assim? Ou odeia que ela seja uma boa pessoa
e sabe que está errado em provocá-la?
— É sério isso? — Ela acena positivamente e espera uma resposta
minha. — Eu sou o psicólogo aqui, lembra? — Desvio o assunto.
— Você nem mesmo se formou, Zay. Não fuja da minha pergunta.
— Eu odeio que ela exista.
Os olhos negros dela se arregalam até quase saírem de órbita. Ela
entende de imediato a sinceridade das minhas palavras e se assusta com
elas. Posso ver a decepção, pouco a pouco, tomando a feição de Nina, e isso
me agonia.
Me dói que ela enxergue essa parte minha, que ela veja quão fodido
eu sou, a ponto de quebrar alguém, que eu magoo as pessoas
intencionalmente, que eu ajo com o propósito de destruir.
Mas sempre foi assim, não é?
A começar pelo meu nascimento. Minha vinda ao mundo foi o que
fez essa família se despedaçar.
Encaro o chão enquanto caminho para dentro da escola. Ouço o
carro do meu pai se afastar atrás de nós, mas não me viro para me
despedir.
— Já sabe, não é, vermezinho? — Sinto o hálito quente do meu irmão
próximo ao meu ouvido e me encolho, querendo fugir para longe dele. —
Se alguém dessa escola souber que temos o mesmo sangue, vai sofrer as
consequências, pirralho.
Em seguida ele se afasta.
Caminho apressado, indo em busca da minha sala, tentando passar
despercebido pela multidão de alunos.
Eu e Lorenzzo não sabíamos, mas esse seria o dia que iríamos
conhecer nossa madrasta pela primeira vez. Meu pai nos avisou no almoço
que iria trazer alguém. No jantar, a mulher esguia, de cabelos e olhos negros
e um sorriso cativante nos foi apresentada.
Eu amei Nina no instante em que a vi. Amei Nina no segundo que ela
se ajoelhou para ficar da minha altura, abriu os braços e perguntou se podia
me envolver com eles.
Nina me abraça forte e eu retribuo. O abraço dela é calmo e
aconchegante, como se ela estivesse me prometendo algo com esse gesto.
Me prometendo que pela primeira vez alguém irá me ver de verdade, sem
nenhuma tristeza ou desprezo no olhar.
Ela fica assim por um longo momento, me aninhando, até que nos
afastamos. Ela pede o mesmo para Lorenzzo, mas ele recusa. Ele a rejeita.
Nina tem tristeza na feição, mas não se deixa abalar.
— Tudo bem. — Ouço ela dizer ao meu pai. — As coisas se ajeitam
com o tempo.
As coisas nunca se ajeitaram em relação a Lorenzzo. Nem comigo,
nem com Nina. Ele sempre nos desprezou.
E naquela noite, depois que ela foi embora, meu irmão me deu mais
uma prova de que sempre seria assim. Ele sempre sentiria por mim o mais
cru e perverso ódio, aquele capaz de cegar e de fazer alguém cometer
loucuras. Capaz de machucar. E foi isso que ele fez comigo. Sempre. Mas
especialmente naquela noite doeu de uma forma agoniante.
Estou com meu irmão na cozinha. Estamos apenas nós dois, pois meu
pai foi levar Nina no carro que está estacionado na frente da casa. Estou
lavando a louça e meu irmão me observa. Estremeço, porque sei que ele
está buscando uma brecha para me magoar. E já antecipo o comentário
doloroso que ele fará.
— É tudo culpa sua. — Me calo, tentando ignorar o asco presente na
voz dele. — É culpa sua que essa vagabunda está na nossa casa! — Bate
com força no tampo de mármore da pia e eu pulo de susto. — Foi você que
matou nossa mãe e agora tem uma mulher desconhecida dentro dessa casa.
Seu verme!
As lágrimas descem sem impedimento pelo meu rosto e minha visão
fica turva quando o choro me consome.
— Não vai chorar, seu bosta! — Lorenzzo berra e avança. Segura a
gola da minha camisa. Está furioso e eu sou o alvo de sua ira. Ele espuma
e treme, nervoso, e eu me sinto pequeno, fraco e inútil perto dele. Me sinto
um verdadeiro verme. — Você não tem o direito de chorar!
Mas não consigo me segurar quando meu corpo convulsiona e os
soluços me tomam. Quero dizer que mesmo que não a tenha conhecido,
sinto falta dela. Sinto falta da mamãe. Que eu não sou esse monstro. Que se
eu pudesse escolher, escolheria ter morrido no lugar dela. Mas não consigo
falar nada.
Só consigo chorar.
— Eu vou te dar um bom motivo para chorar, seu merda! — Antes
que eu entenda o que está acontecendo, ele levanta a tampa da chaleira,
que estava aquecendo água para o chá no fogão ao lado.
E eu sinto a dor mais excruciante alcançar meus ossos quando ele
derrama a água fervente sobre meu peitoral.
A sensação é de que fogo foi ateado sobre minha pele. Dói. Dói
muito. E eu berro de dor, desesperado, tentando de alguma forma cessar o
calor torturante que me toma.
Meu grito deve ter chegado ao meu pai, porque ouço a voz dele
distante, junto com a voz de Nina. Mas a consciência começa a me
abandonar, porque meu corpo não suporta a agonia da queimadura se
espalhando.
— Deve ter tropeçado. — É a última coisa que ouço Lorenzzo dizer
antes de eu desmaiar.
— Tem certeza que não tem mais ninguém para fazer isso? — Kira
questiona Matteo, ignorando minha presença.
— Tenho, Kiki. Sinto muito, mas todos os motoristas da faculdade
estão ocupados. E eu preciso desses livros aqui hoje mesmo.
— Posso ir sozinha — ela tenta argumentar.
— Você não dirige.
— Ele pode ir sozinho.
— Zayan não vai saber verificar se a encomenda está certa ou não.
— Hey! — protesto só por diversão. Estou louco para os argumentos
dela se esgotarem, e então poderemos ir logo.
— Viu? Ele também não quer isso — Kira diz e Matteo me encara
com cinismo.
— Me desculpe, mas Angelina precisa desses livros para hoje. E só
tem vocês dois disponíveis. Prometo te recompensar. — O olhar dele pousa
em mim por um segundo e eu entendo que eu serei a pessoa a recompensá-
lo.
— Anda, Kira. Não estou por sua conta. — Pouso a mão na lombar
dela e a garota se afasta em um pulo.
— Tira a mão de mim, babaca!
— Kira, ninguém tem tempo para a sua pirraça! — exclamo, irritado
com a reação dela.
A garota está me tratando como se eu tivesse algum tipo de doença
contagiosa.
Ela olha para Matteo e o biquinho de irritação se forma no rosto dela.
O tom avermelhado toma as maçãs do rosto, e com isso sei que está furiosa.
— Anda, vamos acabar com isso logo. — Passa por mim furiosa, e eu
começo a sorrir.
— Seja um bom garoto. Ou será um garoto morto. — Matteo dá um
último aviso, que me faz erguer os braços em rendição.
— Eu sei me defender, Matteo! — Kira diz, já um pouco distante,
mostrando que ouviu o amigo.
Ele me lança um olhar de alerta, antes de eu me virar para alcançá-la.
Nós vamos em direção ao meu carro, que já está parado no
estacionamento, próximo à biblioteca. Destravo e abro a porta do motorista,
enquanto ela entra do lado do passageiro.
— Então... — Tento começar uma conversa, mas ela é rápida ao ligar
o som e colocar no volume mais alto.
Abaixo o volume novamente e ela faz menção de levar a mão ao
aparelho mais uma vez.
— Meu carro, minhas regras — aviso, segurando o pulso dela e o
afastando do objeto.
— Odeio você. — Kira vira o rosto para a janela, emburrada.
— E o céu é azul, pulguinha. — Dirijo para fora da faculdade,
pegando a avenida que nos leva para o centro de distribuição de
encomendas.
Silêncio total no carro.
Anda, Kira. Reage. Faça algo. Grite comigo mais uma vez.
— Preparada para o debate?
— Zayan, que merda! Pode só dirigir? Eu não quero e não tenho nada
para conversar com você. — Ela aponta para a rua.
Arrisco olhar para o lado, e a expressão que encontro no rosto
delicado dela me pega desprevenido.
Não é ódio, não é fúria, não é desprezo.
É angústia. Há algo de novo no olhar de Kira que me desconcerta. Eu
não estava preparado para ver a guarda dela baixa.
— Qual o problema? — questiono, perdido.
— Acho que nós dois sabemos a resposta para essa pergunta.
— Além de mim, qual é o problema?
— Meu único problema é você, Zayan. Exclusivamente você. Tudo
na minha vida é ótimo. Mesmo que não seja perfeito, ainda assim, é
excelente. Exceto você. Você é o único transtorno que tenho que enfrentar.
— Kira, a gente se provoca, discute e se odeia desde sempre. Por que
isso de repente virou algo maior do que sempre foi?
— É exatamente esse o problema, Zayan! — Ela se exalta e vejo que
está se segurando para não chorar. Não, Kira. Por favor, chorar não. Eu não
consigo lidar com isso, você sabe bem. — É essa a merda do problema.
Sempre foi assim, desde o instante em que seus olhos pousaram em mim. A
primeira coisa que você soube me oferecer foi desprezo. Eu fui gentil te
oferecendo minhas anotações e você me dispensou com grosseria. O que te
fez me odiar tanto? Tem que haver uma explicação racional para tamanho
desafeto. — O tom de voz dela é suplicante.
Claro que tenho uma justificativa. Ninguém dispensa alguém que mal
conhece assim. Mas essa é uma pergunta que Kira nunca terá uma resposta.
Ela não precisa saber o quão fodida minha história é. É melhor para nós
dois que seja assim.
— Se não tem nenhuma explicação para me dar, então me deixe em
paz, Zayan. Fingir que eu não existo é o melhor que pode fazer por nós
dois. Você pode ser inconsequente e imune ao caos que somos juntos, mas
eu não. Eu sou sensível, eu choro de ódio, eu vejo uma parte minha que
abomino brotar sempre que você está por perto. E eu não quero isso para
mim. Quero ser melhor do que toda essa merda.
— Está dizendo que isso tudo não me afeta?
— Não parece. Parece que eu sou a única exausta disso tudo.
— Eu posso não estar cansado, mas isso não quer dizer que você é a
única incomodada aqui. Só que nós somos assim, Kira. Temos que ser
assim.
— Não! Eu posso escolher fazer diferente. Por mim. Eu posso
escolher ter um pouco de paz de espírito. Posso escolher ignorar cada
provocação infantil sua. E você sabe que eu sou capaz disso. Fiz isso nas
últimas semanas e eu nunca estive tão leve. Irei continuar até que você
desista.
— Não vou desistir, sabe disso.
— Azar o seu. — Ela vira o rosto, emburrada.
Linda, não me ignore. Por favor. Preciso disso, não vê? Preciso das
suas provocações.
— Tudo bem, Kira. Você quer bandeira branca? Então vamos lá. —
Eu mudo a rota e pego a rua à direita.
— O que você está fazendo? Nós temos uma encomenda para buscar.
— Relaxa, pulguinha. Temos tempo.
Viro mais algumas ruas até chegar ao destino final.
— O que isso significa? — questiona, irritada, olhando para a calçada
onde estaciono.
— Você quer paz. Posso te oferecer algumas horas de paz. Vamos.
Vou te levar para tomar o melhor gelato de Florença. — Aponto para a
fachada da gelateria protegida por um toldo lilás e azul-claro, do outro lado
da rua.
— Quem disse que eu quero? — Ela cruza os braços, me desafiando.
Ah, então agora eu consigo o que eu quero. Quando eu decido ser
gentil, um verdadeiro cavalheiro, ela me entrega desafio.
— Vamos, Kira. Eu não vou fazer isso de novo. Sua chance é essa.
— Ganho o que com isso, Zayan? Um gelato? Posso comprar quando
eu quiser. — Claro, porque a princesinha do papai e do irmão tem sempre o
que quer, quando quer.
— Vamos brincar. Um jogo de perguntas e respostas. Não é isso que
deseja? Respostas?
— Vai me responder mesmo?
— Sim. Mas é um jogo, então haverá regras. — Abro a porta e saio
do carro, sabendo que a curiosidade dessa pequena Barbie falará mais alto.
Não erro. Ela abre a porta e sai, saltitante. Como pode mudar de
humor tão rápido apenas por conseguir fazer alguém se dobrar às vontades
dela?
Abro a porta da gelateria que Nina costumava me trazer quando eu
era mais novo. Uma pontada de nostalgia me envolve quando miro a mesa
de fundo, à direita, desocupada. O nosso lugar de sempre. Nunca
mudávamos, porque é o assento de frente à janela e que nos dá uma visão
ampla de todo o movimento do lado de fora. Passávamos horas aqui,
assistindo as pessoas passando, criando histórias fantasiosas para cada um
dos transeuntes.
— Você já veio aqui antes, não é mesmo? — Kira questiona ao meu
lado.
— Já começamos as perguntas, pulguinha? Ainda não disse as regras.
— Gostaria que não me chamasse assim. — Ela franze a testa,
irritada, indo até a vitrine.
Kira abaixa o tronco levemente, analisando melhor as opções de
sabor. Parece concentrada, pensando no que vai escolher. Já eu, sei bem o
que quero.
— Limão siciliano, por favor — peço à atendente que está disponível.
— Por que isso não me surpreende? — Kira diz, ainda encarando o
vidro atentamente. — Azedinho, igual seu humor. — Ela gira a cabeça
levemente para mim, com um sorriso tímido.
Então eu posso ganhar um desses também: um repuxar leve no canto
dos lábios atrevidos, direcionado a mim. É bom saber.
— Deixa eu adivinhar. Você está procurando algo de tutti frutti?
— Pistache. — Ela ergue o corpo e faz o pedido à funcionária.
Nossos gelatos são preparados e eu pego a casquinha, indo até a mesa
do fundo.
— Quer contar sobre esse lugar?
— Já começamos as perguntas? — repito, me ajustando no banco.
Kira escolhe se sentar de frente a mim e toma uma porção da sobremesa.
— Quais são as regras?
— Você tem direito a cinco perguntas. Eu tenho direito a não
responder uma delas. Mas não posso voltar atrás na escolha que fizer, seja
ela qual for. E depois eu poderei fazer o mesmo — explico enquanto sorvo
o gelato azedo e refrescante.
— E se eu não quiser?
— Então não temos um trato, linda.
— Você realmente me acha linda?
— Já começamos...
— Sim, sim. Já começamos as perguntas. O que quer dizer que eu
aceitei as condições — ela diz, impaciente, me fazendo sorrir. — Anda,
responde.
— Sim, eu acho você linda. Não me dói dizer. É uma constatação de
fatos.
Ela se surpreende com a forma como sou direto e sincero. Os olhos
dela se arregalam, enquanto Kira engole lentamente a porção de sorvete que
havia sorvido. As bochechas enrubescem de vergonha.
— Certo... — As sobrancelhas se unem. — Não espere que eu vá
retribuir o elogio.
— Nunca esperaria — retruco, me divertindo com o desconcerto dela.
— Próxima.
— Por que você chorou aquele dia? — Meu sorriso se vai e encaro
Kira. Não há pena no olhar dela e agradeço por isso. Encontro apenas
curiosidade genuína.
Mas não é algo que me sinto confortável para dividir com ninguém.
Menos ainda com ela.
— Próxima pergunta. — Gesticulo no ar para que ela pule essa
indagação.
— Mas...
— Próxima — corto o protesto, fazendo o biquinho teimoso surgir
nos lábios dela.
Essa boca.
Não posso ignorar a forma como meu corpo reage a ela. À Kira. Meu
corpo reage à Kira de uma forma catastrófica. É essa a palavra certa. Tentei
ensiná-lo a odiar cada parte dessa garota, tentei fazê-lo entender que não
podemos ansiar por sentir a textura da pele dela contra a minha, por sentir o
cheiro de tutti frutti de perto, mas meu corpo e minha mente racional
parecem não se comunicar muito bem. E agora eu olho para o beicinho que
se formou no rosto delicado e entendo o perigo que é estar perto dessa
garota.
Porque minha mão formiga e quase se move, pronta para tocar os
lábios em formato de coração.
— Com quem você costumava vir aqui? — Ela me tira do meu
momento de devaneio.
— O que te faz pensar que eu vinha com alguém aqui?
— Já está fazendo perguntas, Zayzay? — rebate, com um sorriso
atrevido.
— Vinha aqui com Nina. Minha madrasta.
— Sei bem quem é. — O sorriso no rosto dela se alarga e eu sei no
que ela está pensando. Naquela merda de xampu infantil. Eu gosto do
cheiro, é isso. Não preciso dela enchendo o saco por causa de um
cosmético.
— Nenhuma palavra em relação a isso, pulguinha — aviso,
mordiscando um pedaço da casquinha.
— Eu realmente gostaria que você não usasse esse apelido.
— Barbie Vida Universitária é melhor?
— Você pode me chamar de linda. — Sorri, convencida.
— E alimentar seu ego? Sabe dos estragos que o ego mal
administrado pode trazer?
— Só queria que você fosse mais gentil.
— Tira esse biquinho do rosto, Moretti. Não vai me convencer de
nada assim.
— Você é um chato — suspira alto. — Por que decidiu cessar fogo?
— Não é um cessar fogo. É uma pausa.
— Não vou empunhar mais nenhuma arma.
— Seu ódio é maior que isso, linda. — Ela estreita o olhar na minha
direção. — Não foi você que pediu para eu te chamar assim?
— Desde quando você me entrega o que eu quero? Acabou de dizer
que não te convenço de nada.
— Tem razão. Retiro o que eu disse. Nada de “linda” para você. — A
resposta que recebo é um dedo do meio. Estamos chegando lá. Estamos
voltando ao nosso normal.
— Qual é a parte triste da sua história, Zayan?
Eu travo. Engulo em seco o último pedaço do gelato, quando ela usa
um tom de voz contido e compassivo para fazer uma pergunta tão profunda
e íntima.
Eu deveria saber que ela não ia desistir tão fácil. De uma forma ou de
outra, a garota mimada e persistente na minha frente iria chegar à parte
mais dolorida do meu âmago.
E agora que neguei responder a primeira pergunta, ela faz outra,
consciente de que as respostas para as duas se encontram.
Me colocou em uma armadilha, pulguinha. Isso não se faz. Qual seu
objetivo? Por que quer tanto saber de mim, Kira?
— Não tem escolha, a não ser responder — diz impaciente, quando
fico um tempo em silêncio.
— Eu sei. Mantenho minha palavra. Só é... Porra, Kira! É pessoal.
Como você compartilha algo pessoal com sua inimiga número um? —
questiono, nervoso.
— Sou melhor que isso, Zayan. Não vou usar essa informação para
atingir você.
— Não confio em você.
— E eu não confio em você. Mas eu estou aqui, mesmo sabendo que
você pode me estrangular e se livrar facilmente do meu corpo.
— Não seria estrangulamento.
— Envenenamento?
— Sim. Mais limpo, não acha? E você? Afogamento, aposto.
— Em um lago bem gelado de preferência. Adoraria ver você
implorar por oxigênio enquanto seguro sua cabeça bem fundo. — Ela sorri,
maléfica. — Viu? Não é sobre confiança, é sobre manter sua palavra. Você
é um inimigo leal, não é?
— Touché, Kira — respondo sem nenhum humor. — Minha mãe teve
uma gravidez saudável, pelo menos é o que meu pai fala. Não teve nenhum
problema. Ela fez o acompanhamento pré-natal e teve todo cuidado e
atenção necessários. Mas então, um dia, ela passou mal. A pressão dela
subiu. Eclâmpsia. Os médicos tentaram de tudo para salvar nós dois, mas só
eu sobrevivi. — Sinto a amargura pesar na minha fala.
Você matou ela, seu merdinha. É, eu sei, Lorenzzo. E eu sinto o peso
da culpa dessa tragédia a cada maldito dia da minha vida.
— Você se responsabiliza por isso.
— Suas perguntas acabaram, Kira.
— Eu não fiz uma pergunta. Eu afirmei.
— Não é da sua conta — respondo com irritação. Maldita hora que
decidi abrir minha boca.
— Zayan... — O tom de voz dela é cauteloso. Mal noto o movimento
de Kira até que a mão leve dela pousa no meu braço. Ela está me
consolando.
— Não, Kira! — Seguro o punho dela e afasto do meu corpo, olhando
o movimento das pessoas do lado de fora da janela.
Não preciso da compaixão de ninguém. As coisas aconteceram como
aconteceram e eu fui sim a causa da morte dela. Ninguém pode mudar isso.
— Ainda vai fazer suas perguntas? — Kira indaga, baixinho. Está
deslocada, posso perceber.
Solto o ar pesadamente. Ela não precisa ser punida apenas porque
carrego uma história trágica. Não preciso descontar minha raiva na garota.
O único ressentimento que pesa em meu peito é comigo mesmo.
— Claro que sim. — Alivio meu tom de voz. — Não vai escapar do
interrogatório. — Tento sorrir, mas ela não me acompanha, ainda analisa
cada gesto meu. — O que seu ex fez a você?
— Passo. — Ela dispensa a pergunta com um gesto no ar. Claro que
ela passaria.
— Você tem que responder as outras quatro. Entende isso?
— Sim, eu sei. Ainda assim, eu passo. — E lá está o franzido na testa,
o pensamento distante, provavelmente tomado por memórias ruins.
Por isso trato de trazê-la de volta.
— Suas flores preferidas? — indago.
— Isso é sério? — Me encara, confusa.
— As perguntas são minhas, certo?
Os olhos analíticos pousam sobre mim, buscando uma explicação
para a pergunta. Mas ela não acha nada. Então cede.
— Peônia.
— Um lugar?
— Praia.
— Mentirosa.
— O que te faz pensar que é mentira?
— Você sempre reclamava para Carmela quando sua mãe te arrastava
para a Sicília. A atração principal da cidade é a praia. Você está mentindo.
— Estou tentando entender de onde vem essas suas perguntas.
— Não fiquei questionando a origem das suas perguntas. Anda,
responde logo.
— Qualquer lugar que seja silencioso.
— O que você mais gosta no seu irmão?
— Ok, você definitivamente está me confundindo. Que perguntas são
essas, Zayan?
— Kira... — alerto.
— Certo, certo. Apenas responder. Ok — ela suspira, antes de
responder. — Meu irmão é meu melhor amigo. Sempre foi assim. Minha
mãe diz que Dante me amou no instante em que pousou os olhos em mim.
Ele sempre ajudou meus pais a cuidar de mim, sempre me defendeu. E pode
ser que ele tenha me mimado um pouco.
— Um pouco?
— Um tanto. — Revira os olhos. E logo em seguida sorri com
carinho. Como deve ser ter um irmão assim? Que te ama desde o seu
primeiro respirar? Que te protege de todos os monstros lá fora? Kira é tão
sortuda. — Eu lembro de colocar ele para ouvir One Direction
incansavelmente. É sério, eu não sei como ele aguentava. Eu respirava One
Direction. E ele sempre ouvia comigo, performava e cantava com a mesma
emoção que eu. Ele comprou ingressos e foi comigo em um show deles.
Nunca soube se ele gostava mesmo da banda ou se era só porque eu era fã.
Mas não importa o que Dante faça por mim, ele sempre faz com um sorriso
no rosto. Ele sente comigo, chora comigo, ri comigo. Ele me protege. Às
vezes, até demais. Mas é o jeito dele de dizer que me ama e que sempre
estará por perto. E eu amo tudo, absolutamente tudo dele. — Kira não está
nem aqui mais.
O pensamento e o coração dela nesse instante parecem estar com o
irmão, e eu entendo que a conexão deles é de outro mundo. De outras vidas,
talvez. Algo inquebrável. Algo que eu daria tudo para ter. Mas nunca terei.
— Eu tenho um irmão — digo sem pensar, e ela me encara, surpresa.
— Sério? Por que eu nunca vi você com ele? Ele mora longe?
— Já morou. Mas não mais. Ele mora com a gente. Comigo, meu pai
e minha madrasta. Você nunca viu ele comigo, porque nos odiamos. Do tipo
de ódio irreversível.
— Por que você diz isso?
— Meu irmão é uma pessoa ruim, Kira. Desprezível. Eu posso ter
uma habilidade feia para destruir coisas, mas Lorenzzo é perverso. Ele faz
porque gosta. Porque é sádico.
Eu posso alimentar o ódio de Kira e provocá-la intencionalmente, mas
eu não faria nada para machucá-la. Só preciso dela longe de mim. Esse é
meu único propósito com cada provocação.
— Não acho que você destrua nada. — Não, Kira. Sem compaixão,
por favor. Não mereço isso, linda. Não posso aceitar isso.
— Kira, eu te faço chorar constantemente. Você mesma disse, agora
há pouco.
— E daí, Zayan? Eu choro por tudo. Chorei hoje, no caminho para a
faculdade, porque uma borboleta pousou em mim e eu achei logo que ela
tinha me achado digna do carinho dela. Choro assistindo animações. Eu e
Antônio nos debulhamos em lágrimas com Divertidamente[14].
— Quem é Antônio? — pergunto sem pensar e então percebo o que
acabei de fazer.
Zayan, por favor. Mantenha a língua dentro da boca. Mas que merda!
A última coisa que preciso é encarar o sorriso maldoso que vejo agora,
porque ela elaborou alguma teoria mirabolante sobre mim.
— Isso é ciúmes, Zayzay?
Viu? Teoria mirabolante.
— Só curioso para saber quem é o louco que decidiu passar mais de
uma hora ao seu lado, assistindo um filme de animação.
— Antônio é meu irmão de pais diferentes. É obrigação daquele puto
me acompanhar nesses filmes, já que eu tenho que suportar as vergonhas
que ele me faz passar.
Como eu tenho inveja de você agora, Kira. Como eu queria sentir um
centésimo desse amor, desse carinho e desse acolhimento.
Claro que eu tenho um pouco de tudo isso. Nina nunca me negou
afeto. Tudo que ela me ofereceu desde sempre foi amor. E meu pai pode até
ter sido omisso em muitos momentos, mas em tantos outros ele esteve
presente. Ele me abraçou e me amou.
Eu só queria que meu irmão tivesse amado também. Mesmo que da
maneira dele.
Mas ele nunca foi capaz de nutrir nada de bom por mim.
— Não podemos mudar as pessoas, Zayan. Podemos mudar como
reagimos a elas.
— Você vai ser uma boa terapeuta, pulguinha. Eu já entendi isso. Mas
você não é minha terapeuta. E eu já tenho um. — Que irritantemente disse
a mesma coisa que você.
— Por que você age tanto na defensiva comigo? Por que me odeia
tanto? — ela suspira. Parece exausta.
— Sua cota de perguntas já acabou, linda. Estamos na minha vez. Por
que você tem tanto medo do seu ex-namorado?
Ela me encara, furiosa por eu ter feito exatamente o que ela fez, por
ter elaborado uma pergunta que esclarecerá a primeira, a que ela decidiu
não responder.
Mas então a expressão raivosa dela se transforma e ela tem um sorriso
insuportável de quem vai aprontar no rosto.
— Você já fez cinco perguntas, Zayzay.
— Eu não...
— Perguntou sobre meu ex, sobre as flores, sobre o meu lugar
preferido, sobre meu irmão e sobre Antônio. Cinco perguntas. Sua cota
esgotou.
Mas que insolente! Ela está jogando as regras do meu próprio jogo
contra mim. Que estupidez a minha também. Me deixei levar pelo momento
e perguntei por algo sem sequer perceber.
— Você sabe que podemos fazer uma troca. — Ela percebe minha
irritação comigo mesmo e propõe. — Uma pergunta por outra.
— Você quer saber porque odeio você.
— Exatamente.
— Você está pronta para me dar a resposta que eu desejo?
— Você está pronto?
Nos encaramos por alguns segundos, ambos desconfiados. Já
colocamos muitas cartas na mesa hoje, mas posso sentir a hesitação vir dos
dois lados. Eu, definitivamente, não estou pronto para dar a resposta para a
pergunta que ela quer. Ela não parece decidida a abrir essa parte do seu
passado para mim.
Mas, ainda assim, nós dois sentimos uma necessidade absurda de
abrir essas portas. É como se soubéssemos que isso mudará tudo que
construímos, que nenhum de nós será o mesmo depois de entregar esses
segredos um para o outro.
— Deixamos o acordo suspenso. — É Kira quem diz.
— E quando um falar, o outro também tem que se entregar.
— Não pode voltar atrás.
— Sabe que não farei isso.
— Fechado? — Ela estende a mão.
— Fechado, pulguinha. — Selo nosso compromisso.
— O que eu faço para você tirar esse apelido ridículo da sua boca?
— Para de ignorar minhas tentativas de te tirar do sério. Sei que você
está louca para me rebater de novo. Sei que precisou de todo seu
autocontrole para conter sua euforia quando a mesa-redonda foi anunciada.
— Volte a me odiar, Kira. Seu ódio é melhor que sua indiferença.
— Ainda está mantendo sua palavra?
— Sim, fiel inimiga.
— Então temos um trato — ela anuncia com um sorriso de quem está
pronta para foder minha vida daqui para frente.
É exatamente disso que eu preciso, linda.
Uma matéria que trata especificamente sobre psicologia na
adolescência e vida adulta. E um trabalho em que temos que falar sobre a
infância. Tudo bem, eu posso lidar com isso. Um pouco de contextualização
é o que a professora quer.
O que eu não posso lidar é com esse desgraçado me sabotar de
propósito. É claro que é propositalmente, porque tudo que ele faz é para
acabar com qualquer chance minha de ter sossego.
Caminho a passos duros pela biblioteca, ignorando os olhares que
recebo dos alunos que estão estudando. Eles percebem meu estado de
espírito, porque não faço questão de esconder minha irritação.
— Onde ele está? — questiono para o infeliz que sorri com soberba
para mim assim que me aproximo.
— Onde quem está? — Finge não saber do que estou falando.
— Não se faça de sonso, Zayan. Eu acabei de olhar no sistema de
empréstimo da biblioteca. Você foi burro o bastante para pegar o livro no
seu nome. Você é esperto o suficiente, no entanto, para saber que é a única
cópia disponível. Só vou perguntar uma única vez. Onde está o livro
Tornar-se pessoa, de Carl Rogers?
— Por que quer saber?
— Porque você vai me devolver agora e eu vou fingir que não sei que
você pegou para me irritar. Você é adorador da psicanálise. Nunca faria um
trabalho citando um humanista.
— Talvez eu tenha mudado minha abordagem. — Ele cruza os braços
na frente do corpo e o sorriso provocativo aumenta.
Eu vou estrangular esse babaca. Aqui mesmo. Com testemunhas. Eu
serei presa dessa vez.
— Devolve! Agora! — Dou um passo à frente, louca para erguer a
mão e atingir mais uma vez esse rosto bonito.
Mas que merda! Por que babacas têm que ser lindos assim? É algum
tipo de condição? Só se pode tornar-se um desgraçado de primeira linha se
o rosto for perfeitamente moldado e carregar um sorriso cretino de tão
maravilhoso.
Que se foda a beleza dele!
— Está doida por um beijo meu, não é, pulguinha? — Ele percebe
meu desvio. Claro que percebe. Estamos a poucos centímetros de distância.
Ele consegue enxergar todo movimento meu. Então obviamente notou meu
olhar passear por ele.
— O que eu disse sobre o apelido? — retruco, travando o maxilar.
— Acreditou em mim porque quis.
— Quer jogar baixo? Vamos descer para o inferno então, Zayzay.
Quer ódio? Então esteja pronto para sentir ele penetrar por cada poro seu e
consumir cada nervo. Vai me odiar e se arrepender de ter pedido por isso,
de ter desejado com tanto afinco que eu fosse sua inimiga.
— Manda ver, pulguinha. — Ele tem a ousadia de colocar a ponta do
indicador na minha testa e empurrar minha cabeça, antes de esbarrar no
meu ombro e se afastar.
Esteja preparado, palhaço.
Kira
Como eu poderia esquecer?
Foi ideia minha, irmão.
Não sei dizer se a aula hoje está insuportável ou se a atitude dela que
está me dando nos nervos. Kira voltou para a fase de ignorar, apenas para
me tirar a paciência que já é curta. Já faz cinco minutos que estou tentando
fazer com que ela olhe para mim e ela não se mexe por nada.
Garota teimosa da porra.
Desvio a atenção dos cabelos castanhos dela apenas quando a porta é
aberta por um dos funcionários da coordenação do curso. Nossas aulas
raramente são interrompidas. A última vez que isso aconteceu foi quando
eu e a Kira fomos chamados na reitoria.
— Desculpe interromper, professor, mas pediram para chamar a
senhorita Moretti. — O olhar do professor pousa em mim, como se ele
estivesse adivinhando meu envolvimento nessa situação. Mas dessa vez não
é comigo. Eu acho. — Só a senhorita Moretti — o funcionário esclarece.
Kira encara Carmela e parece confusa, mas então se levanta e
caminha para fora da sala. Pego meu celular no bolso e envio uma
mensagem, curioso demais para ficar quieto.
Se Marco estivesse aqui, ele descobriria com facilidade o que
aconteceu, aquele fofoqueiro. Mas justo hoje ele decidiu faltar, porque ficou
até tarde da noite em uma boate. Em dia de semana. Marco precisa de mais
limites.
Zayan
O que é isso?
Carmela
Por que mesmo eu
te dei meu número?
Zayan
Porque você me adora, Mel.
Me diz. Que merda a
princesinha aprontou?
Carmela
E eu sei de tudo que
acontece na vida de Kira?
Zayan
Deveria.
Ela é sua melhor amiga.
Carmela
Qual a cor da meia de Marco?
Zayan
Como é que eu vou saber?
Carmela
Exatamente, Castelli.
Como eu vou saber?
Zayan
Vai lá descobrir.
Carmela
Virei babá da Kira agora?
Não enche, Zayan.
E não é necessário, ela já voltou.
Projeto de Freud
O que preciso fazer para que
seu tempo comigo valha
a pena, pulguinha?
Projeto de Freud
Projeto de Freud?
Muda essa merda, Kira.
Kira
Para de espionar meu telefone.
Depois eu mudo.
E você sabe muito bem o que faltou.
Projeto de Freud
Então aceitou ficar
comigo pelo sexo?
Kira
Não, mas eu seria muito mais
feliz se tivesse ele.
Projeto de Freud
Tenho uma lista de coisas
que te deixa feliz, Barbie.
E que não envolvem sexo.
A começar por isso aqui.
Kira
Obrigada, Zayzay.
Projeto de Freud
De nada, pulguinha.
Kira
Ainda assim eu acho que você deveria testar
tirar minha virgindade.
Garanto que eu seria a garota
mais feliz do mundo.
Projeto de Freud
Três dias atrás seria capaz de me
atirar para fora de um carro
em movimento. Hoje está doidinha
para sentar em mim.
Faz um favor?
Kira
O quê?
Projeto de Freud
Não posso deixar você me
seduzir e tomar minha inocência
se você não assinar isso aqui.
Projeto de Freud
É para o seu irmão, linda.
Kira
Dante não morde, Zayan.
Projeto de Freud
Ele me pareceu muito protetor.
Projeto de Freud
Kira, muda esse nome.
AGORA!
Kira
Você precisa relaxar, Zayzay.
Sabe o que poderia te ajudar?
Limãozinho
Não fala que é sexo.
Limãozinho
PORRA, KIRA!
Limãozinho?
Kira
Daqueles bem azedinhos.
E ainda assim eu te chuparia inteiro.
Limãozinho
Você está muito provocativa, Barbie.
Espero que saiba no que está se metendo.
Kira
Dizem que os que falam
muito fazem pouco.
— Senhor Castelli?
Zayan ergue o olhar para o professor e desliza o telefone para dentro
da manga do moletom, tentando disfarçar.
— Sim?
— Qual sua opinião sobre isso?
— Acredito que o nosso pensamento pode sim ser influenciado pelas
informações que nos são expostas. Nossa percepção de realidade está
diretamente ligada a comportamentos sociais coletivos, mesmo que em
pequena escala.
O professor se cala diante da resposta dele e parece insatisfeito por
Zayan ter sido assertivo. Já eu tento assimilar como ele conseguiu prestar
atenção em duas coisas.
Meu raciocínio se vai, no entanto, quando a mão dele desliza pela
parte interna da minha coxa. Eu tiro a mão dele dali, porque ele sobe
demais, e estamos em público.
Zayan ri baixo e desfaz o toque. Percebo quando ele puxa o celular de
volta e manda uma única mensagem, antes de guardar o aparelho na
mochila.
Abro a tela do telefone no instante em que ela acende, e leio.
Limãozinho
Vou guardar essa informação
com carinho, linda.
Peônias
Para a menina Kira
Limãozinho
Já cheguei, pulguinha.
A quadra que Zayan treina já está ocupada com alguns alunos e pelo
técnico. Eu caminho com ele pela lateral e escolho um lugar para sentar.
— Já volto. — Ele pega a bolsa e vai em direção ao que imagino ser o
vestiário.
Minutos depois está de volta, devidamente uniformizado e
perdidamente gostoso. Suspiro audivelmente quando ele chega até mim e a
resposta dele é rir.
— Fique à vontade, linda. — Coloca a bolsa ao meu lado e me
entrega o celular, antes de ir até a quadra.
— Então, vocês dois estão muito bem resolvidos? — Viro o olhar
para encontrar Santino parado, com um sorriso cúmplice no rosto.
— Ele parece até outra pessoa. — Volto minha atenção para Zayan,
que conversa com um companheiro de time.
— O que uma boa tran...
— Shhh. Não termina essa frase — sussurro.
— Por que não? Não foi tão bom assim, Matilda?
— Zayan está se preservando — digo com acidez.
— Ah? Mas como assim? Até onde eu sei, Zayan trepou com metade
daquela faculdade. Só não foi na outra metade porque são homens.
— Zayan? — Minha voz sai aguda.
— Zayan. Pergunte para quem quiser, Matilda. Olha só. Ada! — ele
chama a atenção de uma garota que está sentada a dois metros de nós. Ela
se vira e acena. Santino gesticula para que ela se aproxime e ela vem.
— Oi, Santi.
— Oi, Ada. Essa é Kira, minha amiga.
— Prazer. — Nos cumprimentamos.
— Kira veio ver o namorado jogar.
— Jura? Eu também — Ada responde.
— Zayan não é meu...
— Zayan? — a garota questiona, surpresa, interrompendo minha fala.
— Desculpa, é que não esperava.
— Você teve um lance com ele, não teve? — Santino pergunta.
— Sim — Ada suspira. Suspira! Ela não tem namorado? Por que está
suspirando assim por outro garoto? — Você é uma garota de muita, muita
sorte, Kira.
— Eu e aparentemente todas as estudantes da nossa universidade —
resmungo.
— O que está acontecendo aqui? — O garoto que transou com
metade da população feminina de Florença chega até nós com o semblante
indagativo.
— Estamos conversando sobre sua fama, Zayzay. Nunca me disse que
era rodado — comento com amargura.
— Deixa eu ir trocar de roupa. — Santino sai apressado.
— Também vou indo. — Ada aponta para o lugar onde estava. Mas
antes de se afastar, vira para Zayan e acena com um sorrisinho no rosto. —
Oi, Zay.
Meu maxilar trava e cruzo os braços, tentando controlar o ciúme
injustificável. Cadê seu namorado, Ada?
— Qual é o problema, pulguinha? — Ele ri com malícia.
Não aprendeu mesmo a não brincar com fogo, não é, Zayan?
Fico de pé e caminho até ele com os braços cruzados.
— Então você passa por metade daquela faculdade, distribuindo
orgasmos para quem entrar na fila, mas na minha vez decide fechar o
parquinho para férias?
— Kira, pelo amor de Deus! — Os olhos dele arregalam.
— Já entendi, Zayan Castelli. Já entendi. A minha boceta não é boa o
suficiente para você. Aparentemente, o seu pau não gosta de lacres. Quer
saber? Eu posso procurar alguém para... — Em um segundo, ele pula o
pequeno muro que divide a quadra da arquibancada e se coloca na minha
frente.
A mão direita se fecha com posse na minha cintura e a esquerda
espalma a lateral do meu rosto.
— Não termina essa frase, Kira. — Kira. Nenhum apelido usado.
Apenas meu nome proferido de um jeito duro que deveria me apavorar, mas
que me causa um frenesi inexplicável. — Eu vou fazer de você minha.
Esquece qualquer outra pessoa. Para você só existe Zayan Castelli. Sou eu
que vou te tomar por inteira, sou eu que vou te foder incansavelmente até
exaurir cada partícula desse corpo delicioso. Sou eu que vou marcar você de
todas as formas até que se lembre por horas, dias, semanas de quem esteve
dentro de você. Até disciplinar seu corpo para que ele só saiba responder ao
meu. — Carta aberta ao feminismo: adeus. — Entendeu?
— Mal posso esperar por isso, Zayzay.
— Espero que esteja pronta. Agora senta aí e seja uma boa garota
uma única vez. — Ele puxa meu lábio inferior com os dentes e se afasta,
pulando de volta para a quadra, me deixando com a boca seca e todo meu
corpo pinicando, desejando ardentemente que ele não demore a se entregar.
Assistir ao treino depois disso vira uma tormenta. Não presto atenção
em absolutamente nada do que o técnico explica e não tento entender
nenhuma estratégia que está sendo ensinada.
Tudo que meu cérebro trata de decorar é como cada movimento de
Zayan parece ser ensaiado para me torturar.
Ele pega a bola, quica no chão, joga no ar e pula. Abre todos os dedos
e dá um tapa estalado na pobre bola.
Eu certamente ficaria uns bons dias sem sentar direito se recebesse
um tapa ardido desse na bunda.
Zayan é certeiro em cada ataque e também defesa, e joga com uma
destreza impressionante. É impossível desviar o olhar.
— É impressionante, não é? Como nossa imaginação viaja assistindo
a um treino de vôlei... — Ada está sentada ao meu lado e eu sequer percebi
a garota se aproximando. — Desculpa por mais cedo. Não quis causar uma
impressão ruim. Eu e Zayan tivemos um lance, mas foi coisa rápida. Estou
bem com meu namorado.
Ela tenta amenizar, mas não me sinto confortável com a justificativa
dela. Opto por ser educada, no entanto.
— Tudo bem. O que está no passado pertence ao passado, certo? —
Dou um sorriso forçado.
— Claro.
— Qual deles é seu namorado?
— Camisa nove. — Ela aponta para o sujeito na quadra.
Assisto o resto do treino com a menina tagarelando sobre a vida de
cada um dos jogadores. Finjo estar interessada, mas não sei se consigo
esconder meu desconforto sempre que ela faz algum comentário sobre
Zayan.
Sou salva do falatório quando o treinador anuncia o fim do treino. E
em seguida sou condenada quando Zayan leva as mãos até a barra da
camisa e a sobe lentamente, deixando à mostra o abdômen liso e o peitoral
adornado pela tatuagem. Gotículas de suor escorrem pela pele branca e
acho que estou babando.
E não sou só eu. Ouço o suspiro baixo da garota ao meu lado quando
ele vem caminhando até nós.
Seu namorado está do outro lado da quadra, anjo. Pode ir até ele.
— Kira, minha bolsa — ele pede.
— Não entendi.
“Fala direito comigo, Castelli.”
“O que eu fiz agora?”
“Além de ser um grande exibido?”
— A bolsa, por favor, Barbie.
Levanto do lugar e levo a bolsa até ele. Antes de se afastar, ele segura
minha cintura e me puxa até que eu esteja grudada no murinho.
Seguro o rosto dele e Zayan sela os lábios nos meus. Ele me oferece
um beijo quente. Nossas bocas se exploram sem calma. Duelamos com
nossas línguas até que precisamos nos afastar para buscar fôlego.
— Melhor?
— Muito melhor. — Sorrio, satisfeita.
— Vou tomar um banho e me trocar. E nós vamos encontrar meu pai e
Nina para almoçar.
— Seu pai? E Nina? Seu pai e Nina? — questiono em desespero. Ele
não me preparou para isso.
— Não foi você que exigiu passar o dia comigo, linda? — diz,
travesso, já se afastando. — Já volto!
Eu me sento, porque minhas pernas tremem pelo nervosismo que me
toma.
Eu e Leonardo Castelli em um almoço. Não é uma ideia animadora.
Lorenzzo
Espero que esteja celebrando, seu verme.
Saiba que é por sua causa que estou aqui.
— Eles estão ali! — Kira aponta para algo na multidão, assim que
entramos na boate que já está lotada.
— Eles quem, Kira?
— Eles. — Ela me guia até o lugar que apontou e então compreendo
de quem está falando.
— Kira... — tento protestar.
— Meu dia, lembra? Convido quem eu quiser. — Reviro os olhos
antes de chegarmos à mesa onde Marco, Carmela e Matteo estão.
— E aí, cara? — Marco me cumprimenta com um abraço.
— Pode desejar feliz aniversário. Ele deixa — a pulguinha
intrometida e atrevida diz ao meu lado, me fazendo revirar os olhos pela
segunda vez em menos de um minuto.
— Feliz aniversário, Zayan. — Marco comete o deslize de obedecê-
la.
— Grazie[21], Marco. — Nos afastamos e logo em seguida Carmela e
Matteo vêm até mim.
— Feliz aniversário, Zayan.
— Parabéns, Zayan.
Nos abraçamos sem jeito e eu agradeço, finalizando essa pequena
sessão de tortura.
— Nós estávamos indo pegar algo no bar. Vocês querem alguma
bebida? — Carmela pergunta.
— Nós vamos, vocês duas ficam aqui — anuncio. — Pode ficar
também, Matteo. O que vão querer?
— Gin tônica — Carmela e Matteo dizem juntos.
— Certo.
— Hey, não vai me perguntar o que eu quero? — Kira puxa minha
jaqueta quando começo a me afastar.
— A bebida mais doce que tiver, pulguinha. — Pisco o olho.
— E se eu quiser algo azedinho? Talvez meu gosto esteja mudando.
— Já tem acidez suficiente no seu dia, Barbie.
— É, tem razão. — Sorri brincalhona.
— Vocês dois podem dar um tempo no flerte? Eu quero minha bebida
— Carmela diz, mas percebo que está se divertindo com nossa interação.
— Ainda não consigo acreditar que isso é real — Matteo comenta.
— É, eu também não. Ainda espero o momento que ela me levará
para um lago gelado e me afogará — comento, saindo dali e indo na direção
do bar.
— Temos cinco pessoas e quatro mãos. Quero ver como vai fazer
para levar tudo, Zayan — Marco diz quando encostamos no balcão, à
espera de um barman.
— Não vou beber nada por enquanto. Vim dirigindo. E eu precisava
conversar com você.
— O que você aprontou?
— Niente[22], Marco. Escuta. Que dia vai chamar o garoto para sair?
— Aponto na direção da mesa de onde viemos.
— Matteo?
— Sim, Matteo.
— Não viaja, cara. — Ele faz uma careta. — Não vai rolar.
— E posso saber por que não?
— Somos completamente diferentes. Ele é todo intelectual, sério,
certinho demais.
— Kira é um unicórnio saltitante e eu sou um ogro que vive em um
pântano. E daí?
— Vocês acabaram de começar, Zayan. Não sabe no que vai dar.
— Marco... — Ergo uma sobrancelha e ele entende minhas palavras
não ditas.
— Certo, eu sei. Mas é aí que está. Eu mal conheço o Matteo.
— Então comece por aí. Eu sei que é difícil por causa da sua família.
— Ele franze a testa. — Mas não pode deixar que eles te impeçam de viver.
E eu tenho propriedade para falar sobre isso.
— E se ele não quiser? — Marco vira o olhar de novo para a nossa
mesa.
— Ele quer.
— Como você sabe?
— Kira.
— É, são mesmo um casal. Já estão compartilhando fofoca alheia —
ele zomba.
— Posso ajudar? — Um barman se aproxima e faço os pedidos. Ele
nos entrega as bebidas e nós caminhamos de volta.
— Vai pensar no que eu falei? — pergunto ao meu amigo.
— Vou, Zay. Prometo. — Me oferece um sorriso cúmplice antes de
chegarmos à mesa.
Coloco os copos na superfície e Kira pega o dela. Leva o canudinho à
boca e suga uma pequena quantidade.
— Muito bom, Zay. — Sorri.
— Que bom que gostou. — Ergo o queixo dela e me aproximo. —
Mas vai com calma, linda. — Deposito um beijo curto nos lábios doces.
— Por que eu iria com calma? — pergunta com a voz aveludada.
— Porque você é uma garota responsável e com limites.
— Não é bom perder um pouco os limites?
— Não hoje.
Kira estreita o olhar, desconfiada, mas não diz nada. Dá de ombros e
engata uma conversa com Carmela. Pouso minha mão no ombro dela,
assistindo Marco tentar chamar a atenção de Matteo. Garoto esperto.
— Vocês já estão sabendo do evento que vai ser sediado na
Universidade de Bolonha? — Kira indaga em certo momento.
— Eu acho que vi os cartazes espalhados — Mel diz.
— Sobre o que é? — questiono.
— É um simpósio internacional sobre psicodrama. Proibido para
amantes da psicanálise — a pequena atrevida debocha.
— Então agora faço questão de ir, para tirar sarro de humanistas
sensíveis e chorões. — A resposta madura dela é mostrar a língua. — Onde
se inscreve?
— Na coordenação do nosso curso. Qualquer um pode participar, mas
tem limite de vagas. Eles vão organizar um ônibus e conseguiram um hotel
baratinho e bom para os alunos.
— Hora de aterrorizar alguns humanistas — digo a Marco e ergo a
mão. Ele espalma a dele na minha, rindo com zombaria.
— Muito maduros — a pulguinha diz com sarcasmo e expressão de
tédio.
O semblante dela muda, no entanto, quando ela encara algo na pista.
Abre um sorriso largo no rosto.
— Santi!
Cazzo! Mas esse garoto está em todo lugar!
E não bastasse a alegria em ver o moleque, ela se levanta da mesa e
vai até ele, ignorando minha presença e me deixando aqui, plantado.
— Azedou — Matteo zomba, rindo da minha mudança de expressão.
— Não enche.
— O que ele está fazendo aqui? — Carmela indaga. Parece tensa e
então me recordo do que Kira havia dito sobre Santino estar encantado por
Mel.
— Por que não vai lá descobrir? — Cutuco ela e aponto para onde
Kira e ele estão conversando animados.
— Vai você — responde de mau humor.
— Parece que temos muitos estressados aqui hoje. Vocês precisam
aprender a relaxar. — Matteo bebe o último gole do copo e vai para a pista.
Antes de sair, puxa Marco pela mão, que é pego de surpresa, mas vai
como um cachorrinho que acabou de ganhar um petisco.
Encaro Carmela por um momento, sem saber como pedir a ela para ir
comigo até os dois. Essa coisa de conversar telepaticamente só funciona
com Kira, e por isso Mel me encara confusa agora.
— Anda, vamos. — Desisto da conversa silenciosa e a empurro pelos
ombros até a pista. — Está doidinha pelo menino que eu sei. Vamos unir o
útil ao agradável.
— Zayan! — diz meu nome com irritação.
— Santino! — chamo com falsa animação na voz. — Que surpresa
você por aqui. — Largo o ombro de Carmela e seguro a cintura da Barbie.
— Vou roubar Kira, se importa? A gente se vê por aí.
Não deixo que ele responda e a puxo para longe.
— Precisa controlar esses ciúmes, sabe disso.
— Não é ciúmes. — Paro em um ponto da pista e trago o corpo dela
para mim. — Estou ajudando os dois, não está vendo? — Aceno na direção
de Carmela e Santi, que parecem sem graça, enquanto tentam estabelecer
um diálogo.
— Sei. — Ela me encara, desconfiada.
— Seu plano não era grudar em mim o dia inteiro? Não está
cumprindo com sua palavra.
— Desculpe, Zay. Assim fica melhor? — Sorri com cara de quem vai
aprontar.
E apronta.
Kira gira o corpo e cola as costas no meu peito. Segura minha mão
direita e a conduz até a cintura, me fazendo deslizar com a palma, até que
chego na altura do ventre dela. Puxo-a para mais perto de mim e abaixo a
cabeça, afastando os cabelos dela do pescoço e sentindo o perfume doce de
perto.
Kira tomba a cabeça e começa a se mexer, me tirando um pouco mais
o juízo quando rebola a bunda lentamente, se esfregando em mim.
— Pequena provocadora. — Mordisco a pele do pescoço e ela
suspira.
— Estamos dançando, Zay. — E então ela gira e fica de frente para
mim.
Espalmo minha mão na lombar de Kira e mantenho nossos corpos
colados, quando ela dita o ritmo da dança, me torturando quando chega
perto e desliza a mão pelo meu corpo, para logo em seguida se afastar. Ela
aproxima os lábios, e quando vou beijá-la, se afasta. Desliza as unhas pela
minha nuca e faz todo meu corpo arrepiar, e logo em seguida as mãos dela
estão longe de mim.
Ela me atenta, e eu caio no jogo dela.
Ela promete, mas não cumpre.
Ela provoca, e eu peço por mais.
O olhar perverso dela me excita e estou a ponto de enlouquecer
quando desliza os dedos pelo meu abdômen, lentamente subindo, até
alcançar minha nuca. A provocadora faz menção de se afastar de novo, mas
não permito. Prendo o corpo dela contra o meu e passeio com minha mão
pela lateral do corpo até alcançar o quadril. Giro Kira e deixo que meus
dedos escorreguem um pouco mais, até alcançarem a barra da saia. Acaricio
a coxa dela protegida pela meia e ela corresponde, rebolando contra mim.
— Sabe o caminho que está tomando, Moretti?
— Não. — Ela se vira. O rosto dela estampa uma inocência que não
condiz nada com o objetivo profano que sei que ela tem em mente. — Vai
me conduzir por ele?
A voz sedutora e o pedido tentador são como um pêndulo de hipnose,
me convidando a me desfazer das minhas amarras invisíveis e mergulhar
nos meus mais obscuros desejos. Me convidando a ceder. Me convidando a
cobiçá-la um pouco mais.
E então tomá-la.
Fazer dela, minha.
E eu vou.
Estaciono na calçada do prédio dela e ela já está praticamente fora do
carro. Eu vou atrás e a pego pela cintura. Kira solta um gritinho e ri. Puxo-a
e seguro o rosto, reivindicando os lábios dela para mim.
Devoro Kira em um beijo urgente, desesperado, para que ela entenda
o quanto a quero. Ah, eu quero sim! Quero cada parte dela. Quero tudo que
essa garota possa me oferecer como recompensa por todas as malditas
provocações e respostas atravessadas.
— Zay... — Ela se afasta, em busca de ar. — O porteiro vai voltar a
qualquer momento.
E ela volta a correr, rindo. E eu vou atrás. As portas do elevador se
abrem assim que ela aperta o botão. Nós entramos, e antes que a máquina se
feche por completo, minhas mãos já estão nela novamente. Coloco Kira de
frente para mim e seguro a bunda dela, a puxando para cima.
Tomo a boca macia para mim, ao mesmo tempo em que minhas mãos
tratam de decorar com precisão cada parte do corpo da pequena
provocadora. Adentro pela barra da saia e deslizo até a bunda redonda,
apertando firmemente. Ela impulsiona o quadril para frente em resposta.
O elevador apita e as portas se abrem. Ela sai do meu colo e fica de
pé, mais uma vez fugindo apressada. A alcanço quando Kira destranca o
trinco com rapidez e entramos no apartamento. Fecho a porta com os pés e
a sigo até o quarto.
Circundo a cintura dela com um braço quando estamos na frente da
cama. Me coloco na frente dela e puxo os lábios de Kira com os dentes,
antes de me ajoelhar. Ela entende o que tem que fazer e segura em meus
ombros quando abaixo o zíper das botas, a descalçando.
— Acho que não vai sentir frio mais, linda. — Deslizo as mãos nas
panturrilhas dela, subo pela parte de trás da coxa, passo pelo quadril e entro
pela barra da saia. Alcanço o cós da meia-calça e a puxo para baixo, junto
da calcinha fina. — Deixa eu testar uma coisa. — Mordisco a pele exposta
dela.
Minha mão direita aperta a coxa dela e a esquerda explora a textura
da tez sedosa, mais uma vez adentrando pela saia. Kira remexe quando meu
toque sobe até quase alcançar a região mais íntima dela.
Acaricio a virilha com o polegar e ela aperta firme os meus ombros. E
então, com o indicador e dedo médio, toco os grandes lábios. Kira suspira e
eu enfio os dedos na vagina dela.
— Dói? — pergunto quando ela aperta meus ombros com os dedos.
— Incomoda um pouco, mas é gostoso também. Continua.
Continuo, ao mesmo tempo em que me atento às reações dela.
— Como eu imaginei. Quente, molhada e apertada. — Começo a
fodê-la lentamente, entrando e saindo, sentindo excitação escorrer pelos
meus dedos. Ela me prende, ávida, e por isso desfaço o toque.
Fico de pé e levo os dedos à boca, sentindo o gosto de Kira. Ela
arregala os olhos levemente e eu sorrio.
— Vem, está muito vestida, pequena. — A puxo pelo cós da saia e
desabotoo a camisa dela com uma calma que contrasta com a ânsia que
sinto em poder tocar e marcar cada centímetro de pele dela.
Deslizo a blusa pelos braços dela até ter me livrado da vestimenta e
minha boca saliva quando o decote dela sobressalta no sutiã branco rendado
e transparente. Tão transparente que me deixa ver os bicos marrom-claros
despontados. Tentadores.
— Primeiro vou dar atenção a eles, linda. — Levo meu polegar até a
renda fina e acaricio o mamilo rígido com círculos suaves. Ela contém o
gemido. — Depois vai gozar com minha língua te fodendo. — Minha mão
caminha até o fecho do sutiã. — Logo após vou me enfiar em você. Vai
doer, depois a dor vai se misturar ao prazer, e então farei esse seu pequeno
corpo ceder apenas à sensação deliciosa que é ser fodida até se exaurir.
Entendeu?
Ela acena que sim no instante em que abro o fecho e os seios dela são
libertos. Perfeitos. Eles serão minha maior tara daqui para frente.
Kira me encara, ansiosa. Devo confessar que nunca pensei que ela se
entregaria com tanta facilidade. Os olhos dela me mostram a confiança que
ela deposita em mim. Não posso decepcionar Kira. Oferecerei o meu
melhor para você, linda. Me entregarei por inteiro.
Espalmo minha mão na lombar dela e a puxo para perto. Está quente.
Cada parte do corpo dela reage febril ao meu toque.
Minha palma sobe pela barriga até chegar ao seio farto e eu aperto
firme, fazendo ela tombar a cabeça para trás, absorvendo a sensação. Beijo
a curva avantajada e mordo. Desço com os lábios até alcançar o mamilo e
puxo com os dentes. Kira arfa quando circundo a região com a ponta da
língua. O corpo dela arrepia sob meu toque. E então eu sugo. Uma vez,
duas vezes, três, até perder as contas.
Quase posso vislumbrar o arsenal de desculpas fracas que inventei
para não tomar Kira para mim ser destruído. Na minha mente, a única
certeza forte e pulsante que se molda é a de que vou sair daqui estragado
para o mundo. Não tem como ser diferente quando a cada sugada ela
responde com sons indecentes.
Insaciado. É assim que eu me sinto. E quanto mais eu tomo, mais
faminto ela me deixa. Fome dela, do corpo dela. Desejo de tomar a fonte da
minha tormenta dia e noite. Até cumprir o que prometi. Até que o corpo
dela reconheça a mim, somente a mim.
Abandono o seio esquerdo e passo para o direito. Meu polegar
massageia um mamilo e minha boca mama o outro com gana e a sinto
derreter em meus braços. Pequenos gemidos escapam dela a cada sucção.
São como uma sinfonia orquestrada por mim. Cada vez que a tomo voraz,
os sons se intensificam, ficam mais agudos, desesperados.
— Zay... — choraminga.
— Sim? — pergunto, assoprando o mamilo dela.
— É tão bom. — Sorrio como um grande bastardo. Eu posso te deixar
bem, linda. Fico feliz em saber.
— Eu sei. — Distribuo beijos e mordidas pela curva dos seios e subo
até alcançar a boca dela.
Beijo Kira com pressa e esmago o tronco dela contra o meu, como se
de alguma forma eu pudesse nos transformar em um só. Há uma camada de
tecido no meu caminho, então me desfaço dela. Descolo nossos lábios
quando seguro a gola da minha blusa e a tiro do corpo.
Os olhos castanhos dela brilham quando passeiam pelo meu peitoral
exposto e ela lambe o lábio inferior cobiçosa. Seguro a mão de Kira e levo
até o lado direito do meu peito. Quero que ela sinta como meu coração se
acelera pela expectativa. Que saiba que para mim, estar aqui é tão
importante quanto é para ela. E ela sente. Mantém a palma ali por alguns
segundos e sorri, desvendando a forma como meu corpo reage a ela.
Solto o punho dela e Kira deixa a ponta dos dedos passearem por
mim, até alcançarem a barra da calça.
Seguro o pulso quando tenta continuar a descida.
— Muito apressada. — Sorrio e a trago para perto, reivindicando
mais uma vez a boca para mim.
Minha língua domina a dela, e colo nossos corpos, sentindo os seios
cheios deliciosamente esmagados contra mim.
Puxo-a para cima e caminho até a cama. Kira desfaz os nós das
pernas em minha cintura quando sente as costas encostarem no colchão.
— Minha boca, linda. Está pronta para ela? — Acaricio o rosto
gracioso dela com a ponta do indicador, desfrutando da beleza
extraordinária que molda cada traço dela.
Acena que sim, e eu ergo meu corpo. Desço o zíper lateral da saia e
deslizo a peça para longe do corpo dela.
Nua. Completamente nua. Exposta e vulnerável, mas ainda assim
totalmente entregue. Essa é uma imagem que será impossível de esquecer.
Os cabelos bagunçados espalhados pelo lençol, vergões vermelhos nos seios
por onde chupei e os lábios inchados pelos beijos.
Uma verdadeira musa. Não faz ideia de como venero cada parte sua
agora, Kira Moretti.
— Você vai ficar aí parado? Eu posso fazer sozinha. — A pequena
travessa e provocadora ameaça descer com os dedos até o ventre.
Afasto a mão nervosa dela, e Kira ri.
— Um dia vai me mostrar tudo que faz quando está sozinha. Mas não
hoje, Moretti.
Ajoelho e seguro o quadril dela, puxando Kira para a beira da cama.
Atormento a garota um pouco mais, quando beijo a parte interna das coxas
dela com lentidão. Ela puxa o ar em lufadas curtas. Levanto o olhar e
capturo o momento em que os olhos dela reviram quando tenta mantê-los
abertos.
Com a língua dou uma só pincelada pela boceta encharcada e ela
geme e ondula todo o corpo. Tão sensível.
Fecho os lábios e sugo o pequeno ponto de prazer de Kira, e ela
segura mais um gemido, remexendo inquieta. Abandono a calma, desejando
assistir a perda total de controle de Kira sobre as próprias reações. Deslizo a
língua com firmeza pelos pequenos lábios, circulo o clitóris com pressão e
sugo.
Seguro a bunda arredondada e a trago para perto. Enfio a língua na
entrada e tomo toda a excitação que escorre. Volto a chupar o nervo, o
sentindo pulsar.
— Zayan! — Ela tenta se contorcer, mas a prendo no lugar, sabendo
que ela está perto.
Pincelo por toda extensão com a língua, massageando o clitóris com a
boca. Ela se descontrola. Parece alucinada, perdida, entregue. Não sei se
percebe como se esfrega desesperada contra minha boca, sem verbalizar o
que as reações dela me entregam. Ela está vindo. Está se perdendo com a
forma como minha língua fode e a deixa lambuzada.
Kira se desorienta até que o orgasmo arrebata cada parte dela.
Explode. Geme e grita indecentemente, chamando por mim, estremecendo
da cabeça aos pés. Tenta afastar o corpo e fechar as pernas, mas a mantenho
no lugar, completamente aberta, com minha língua ainda estimulando e
sugando todo prazer dela.
— Zayan... Por favor! — O tom suplicante dela faz um novo frenesi
me consumir e eu descubro que sou um desgraçado de raça maior por
querer ouvir esse som sair dela sem parar.
Eu finalmente me afasto e assisto as pernas delas cederem quando
fico de pé.
Meu corpo flutua em uma nuvem densa e vertiginosa de prazer
enquanto tento dissipar a névoa que me deixa beirando à inconsciência.
— Abre o olho, Kira. — Reajo automaticamente ao comando e abro,
me apoiando nos cotovelos. Ele está de pé. Na frente da cama.
Há um sorriso perverso na expressão dele e eu sei porque está ali.
Porque ele é um cretino que sabe muito bem o que está fazendo comigo.
Porque obedeci a ele sem hesitar.
A boca dele está ocupada com um pacote metálico e meu útero
retorce pela expectativa do que vem agora.
Mal recupero o fôlego e ele me faz segurar o ar novamente quando
leva a mão até o botão da calça.
Meu peito sobe e desce cada vez mais acelerado, enquanto espero
impacientemente ele se despir por completo. Poderia eu mesma fazer isso,
mas o olhar autoritário dele sobre mim me manda ficar quieta.
Os polegares de Zayan vão até a barra da cueca e ele se desfaz da
calça e da cueca juntos. O som agudo que sai de mim é vergonhoso quando
percebo o que estou prestes a enfrentar. Vinte e um centímetros, eu chutaria.
Veias marcadas. Grosso. Me fodi. Ainda não. Mas vou. Vou me foder.
Espero que seja em um bom sentido.
Ele leva a mão até a base do pau e sobe lentamente. O polegar espalha
o líquido branco e viscoso que escorre pela glande. Minha boca saliva.
— Olha para mim, Kira. — Ouço o barulho do envelope ser aberto e
ergo o olhar para cima.
Mas rapidamente volto a encarar a ereção que aponta na minha
direção quando ele desenrola com calma a camisinha por toda extensão.
— Deita e abre as pernas. — Obedeço.
Zayan engatinha até que o corpo dele paire sobre o meu. Sinto o calor
que sai dele me alcançar. Os olhos castanhos me devoram e me submetem.
A mão direita estuda cada curva minha quando sobe lentamente.
— Me beija, linda.
Eu beijo. Me perco na sintonia em que nossas línguas se encontram.
Me perco mais ainda quando os dedos dele sobem até meu seio e ele pinça e
puxa meu mamilo, enviando um choque de dor e prazer até minha boceta.
Mas me perco principalmente quando sinto a cabeça do pau roçar pela
minha entrada.
A boca dele vai até meu pescoço. Ele beija e lambe minha pele.
E sem aviso nenhum, começa a me penetrar.
— Olhos abertos, linda. — Zayan para e diz quando minhas pálpebras
pesam enquanto tento assimilar a sensação de estar sendo alargada. — Me
deixa te ver.
E, falando assim, ele parece pedir licença para ler meu corpo e alma.
E para Zayan, sou um livro aberto.
Os olhos castanhos param nos meus, e ele entrega com clareza o
quanto está perdido nessa onda devassa, revolta e inquietante tanto quanto
eu.
— Continua. — Minha voz sai sufocada.
Ele atende meu pedido e entra por inteiro.
E eu sinto uma dor me rasgar quando algo dentro de mim se rompe.
Choramingo. As lágrimas escorrem por minha face sem impedimento.
— Você está bem? — Zayan questiona com preocupação na voz.
Aceno que sim, mesmo sentindo que estou sendo dilacerada por
dentro. Ainda assim, a sensação de plenitude se apossa de mim, depois de
ter sido completamente preenchida.
Ele limpa as minhas lágrimas com o polegar e em seguida beija
minha bochecha e eu relaxo um pouco.
— Se segura em mim, linda. — A voz dele é abafada e sei que ele
está se segurando.
Fecho meus braços ao redor da nuca dele, afundando meus dedos na
pele dele. Minha respiração sai acelerada, cortada, enquanto a dor me
agoniza, se espalhando do meu ventre até meu último fio de cabelo.
Ele começa a se mexer, lento, calmo, e eu tento absorver as sensações
que me consomem. A mão dele desliza até chegar em meu clitóris. Zayan
massageia suavemente, e bem no fundo da minha mente começo a permitir
que o prazer me tome.
Ainda incomoda cada vez que ele se afasta e me esvazia, para em
seguida meter fundo, criando o espaço dele dentro de mim.
Assistir a expressão de Zayan, perdido em êxtase, é o que me convida
a deixar, pouco a pouco, a dor no esquecimento. Ele abaixa o rosto e devora
minha boca. Eu me entrego.
A ardência começa a se misturar ao prazer de ter a língua dele
deslizando pela minha, os dedos estimulando meu pequeno ponto de prazer
e o peitoral dele roçando em meus seios.
Zayan afasta o quadril e me invade de novo, e eu não sei mais como
ele acha espaço para ir tão fundo. Minhas unhas quase perfuram a nuca
dele, mas Zayan não reclama.
— Porra, Barbie! — Nosso beijo é cessado. — Você é tão, tão
deliciosa... — Sai quase todo. Entra fundo. — Está ferrada, pequena
provocadora. — Sai, entra. Sai, entra. E nesse movimento de vaivém, minha
mente vai se perdendo da agonia e trata de se concentrar primordialmente
no prazer.
— Eu sei. — Seguro o gemido de angústia na garganta, prendendo
meu lábio inferior com os dentes.
— Abre a boca para gemer, Barbie. — Sou punida com mais uma
penetração profunda, que me faz arquear o corpo. — Não é hora de se
conter. Me provocou. Pediu por isso. — Nossos troncos se esfregam um no
outro e nosso suor se mistura. — Agora me mostra quanto me queria assim,
enterrado fundo em você.
Eu entrego. Dou vazão a cada som, cada choramingo incômodo que
se mistura a gemidos de prazer, e isso o atordoa.
Zayan para de se conter e aumenta a velocidade das estocadas, me
fazendo sucumbir ao nirvana de vez. Minha mente começa a se desligar, e
de novo só há uma névoa de prazer me consumindo.
Sou recompensada quando ele também emite um som grave e
obsceno de deleite, chocando a pélvis contra a minha, me fodendo com
ânsia, fazendo da dor, prazer.
Arde. Arde pra porra. Mas é a ardência mais deliciosa que já
experimentei. Timidamente, ergo meu quadril e ele se perde. Leva a mão
até minha bunda e me puxa de encontro a ele, me fazendo sentir o membro
dele inteiro dentro de mim, me castigando de um jeito delicioso.
— Olhos em mim. — O encaro. — Olha e decora o que faz comigo.
A mão dele se fecha quase toda na minha banda direita quando ele
conduz meus movimentos.
— Ainda vou estourar esse seu rabo de tapas por cada provocação,
Moretti.
Sim, sim, sim!
— Zay... — imploro.
— É, eu sei. — Me contraio quase involuntariamente ao redor dele
quando um redemoinho de prazer começa a dissipar minha consciência.
Minhas coxas se fecham no quadril dele e Zayan acelera um pouco
mais.
E mais uma vez sou levada até um paraíso profano, explodindo em
mil pedaços, e sentindo cada um deles vibrar quando gozo. Ele vem
comigo, se enfiando todo uma única vez, gemendo e chamando por mim.
Minha rendição final vem quando abro os olhos e encontro o olhar
dele preso em mim, enquanto tentamos recuperar o fôlego. Pela primeira
vez, nossa comunicação telepática falha, porque Zayan se segura para não
entregar todos os pensamentos dele.
Mas sei que são um emaranhado extenso e denso. Ele me encara tão
profundamente perdido, que até mesmo eu me perco.
Meu peito parece esmagado enquanto tudo que sinto parece prestes a
irromper.
Pela primeira vez, não há nada a ser dito entre nós. Apenas sentimos.
Isso é tudo que eu te entrego, Kira. Espero ser o suficiente para você.
Não me odeie mais.
Não posso mais suportar a ideia de você me odiar.
Ela sorri, como se tivesse acabado de desvendar meu segredo mais
bem guardado. Mas não acredito que seja possível. Não entreguei nada a ela
dessa vez.
O sorriso se vai quando eu me movo e saio de dentro dela. E o rosto
lindo é tomado por uma careta de incômodo.
— Como se sente?
— Dolorida. Exausta. Plenamente fodida.
— Os comentários sujos nunca estão longe demais. — Tento não
sorrir, mas é em vão. Meus lábios se repuxam quase involuntariamente. —
Vou cuidar de você. Vem. — Fico de pé e estendo a mão. Ela segura e a
puxo.
Kira olha para trás, para o emaranhado bagunçado que o lençol virou,
e percebe a pequena mancha vermelha, voltando a me encarar na sequência.
As bochechas estão coradas, mas a vergonha não a impede de descer o olhar
para baixo, para a camisinha que ainda está ao redor do meu pau.
Rapidamente volta a me encarar, segurando os lábios.
— O que foi?
— Você realmente me desvirginou!
— Não era o que você queria?
— Sim! — E então ela gargalha.
— Você é maluca. — Pego os ombros dela e giro o corpo, conduzindo
Kira para o banheiro do quarto.
— Espera, eu tenho que colocar aquilo ali para lavar. — Ela aponta
para a roupa de cama.
— Eu faço isso depois. — Solto os ombros dela e me livro do
preservativo. — Entra. — Aceno na direção do boxe. Ela entra e liga o
chuveiro. Amarra o cabelo em um coque frouxo e se coloca debaixo da
água.
— Vai ficar só olhando? — Sorri.
— Não mesmo, pulguinha. — Entro no boxe. Me viro para a
prateleira, para pegar o sabonete, e encontro algo que me faz rir.
— Qual o problema? — Ela fica de frente para mim.
— Aparentemente, eu não sou o único que gosta de xampu infantil.
— Pego a embalagem com uma Barbie estampada e os dizeres “TUTTI
FRUTTI”.
— Deixa isso no lugar, Zayan Castelli! — comanda com irritação na
voz e tenta pegar da minha mão.
Volto o xampu para a prateleira e pego o sabão.
— Pronto, pulguinha. Desfaz esse bico. — Revira os olhos. — Posso?
— Aproximo o sabonete do corpo nu dela.
Kira me encara com os olhos brilhando e acena que sim.
— Fica de costas. — Obedece e eu começo a limpá-la. Ensaboo
minha mão e passo pela pele sedosa, massageando cada parte que toco.
Kira começa a amolecer em meus braços e relaxar. Meus dedos
descem até chegar na bunda, e ela volta a tensionar. Rio.
— Será que um dia vai me dar essa bunda, linda?
— Nos seus sonhos, talvez. — Ela ri e brinca com a água. — Minha
boceta ainda está maltratada e você já está pensando no buraco minúsculo
do meu traseiro?
— Maltratada? — Beijo a nuca dela e deslizo a mão até a entrada
dela. Kira tomba a cabeça para trás quando acaricio os grandes lábios. —
Acho que tratei ela muito bem, linda. — Puxo o lóbulo dela com os dentes e
Kira arfa.
— Não sei. Acho que ela ainda precisa de atenção. — Geme quando
pinço o clitóris.
— Uma pequena tarada, isso sim. — Estimulo o pequeno nervo.
— Zayan...
— Não hoje. — Afasto a mão.
— Zay! — protesta.
— Sem “Zay”. Conheço seus truques. Hoje não.
Volto a ensaboar Kira, já imaginando o pequeno bico que se formou
nos lábios dela. A giro para que fique de frente, e lá está: a cara emburrada
da garota mimada que foi contrariada.
Ela perde a compostura, no entanto, quando minhas mãos deslizam
com delicadeza pelos seios. Bate os cílios, tentando manter os olhos abertos
enquanto recebe a carícia. Deslizo até a barriga e ela remexe.
Termino de ensaboar Kira e deixo que ela se enxague. Começo a me
limpar e ela pega o sabonete da minha mão.
— Deixa que eu vou fazer isso.
As mãos pequenas passeiam por mim e me deleito com a sensação
que o toque delicado dela traz.
Até que a pequena provocadora apronta.
A mão fecha com firmeza no meu pau e meu gemido é involuntário.
— Viu? Ele também quer isso. — Sorri perversa, subindo e descendo
a mão pelo pênis que já está mais uma vez duro por ela.
Quase me perco no toque tímido e ainda assim enlouquecedor.
No entanto, seguro o pulso dela e a afasto.
— Temos uma nova versão da Barbie aqui. Barbie Malcriada. Não
pode ser deixada sem supervisão por cinco minutos que logo está
aprontando.
E para provar meu ponto, me mostra a língua.
— Vamos, antes que me faça deixar você esfolada depois de ter que
fodê-la contra essa parede. — Desligo o chuveiro.
— Mas é exatamente isso que eu quero! — Puxo Kira para fora sob
os protestos dela.
— Eu sei. Por isso eu vou ser cauteloso por nós dois agora. Toalhas?
— pergunto e ela aponta para o armário embaixo da pia.
Pego duas toalhas e envolvo o corpo dela com uma e minha cintura
com a outra. Saio para o quarto e ela vem logo atrás. Vai até o guarda-roupa
e pega um pijama. Pego minha cueca e calça e visto. Vou até a cama e pego
o lençol. Ela ri.
— Qual a graça agora, Moretti?
— Vou acompanhar você e me certificar de que vai mesmo colocar
esses lençóis para lavar.
— E para onde mais eu os levaria?
— Não sei. Talvez para o porta-malas do seu carro, para guardar e
provar para o seu bando que tirou minha virgindade?!
— Por que eu faria isso?
— Nunca leu esse livro?
— Não, nunca. O personagem realmente fez isso? — indago com um
toque de incredulidade, e ela apenas acena que sim. A encaro descrente,
antes de levar a roupa de cama suja para a lavanderia e colocar na máquina.
Quando volto, ela já colocou um novo lençol e está deitada. Caminho
até a cama e me deito ao lado dela. Estico o braço e Kira se aconchega.
— Estou feliz, limãozinho. — Boceja.
— Então eu estou feliz, pulguinha.
Acaricio o braço dela, e pouco a pouco sinto Kira relaxar e ceder à
inconsciência. E só então eu adormeço.
Kira
Zay, você já pagou o ônibus para o congresso?
Só pode pagar até hoje.
Limãozinho
Bom dia, Barbie. Como você está?
Dormiu bem?
Kira
Desde quando é carente assim?
Limãozinho
Desde quando meu pau sente falta
da sua boceta esquentando ele.
Kira
E eu que sou a tarada.
Limãozinho
Isso você é mesmo.
E não se preocupe, linda.
Vou te perturbar bastante
na viagem, porque minha passagem está paga.
Carmela
Não faço ideia.
Ela não disse nada.
Como ela está?
Zayan
Aérea, quieta. Dormindo.
Foram até o reitor?
Carmela
Sim.
Ele disse que vai apurar
o que aconteceu.
Esse maldito não pode
andar livre no campus, Zayan.
Zayan
Ele não pode andar livre em
lugar nenhum, Carmela.
Carmela
O que vamos fazer?
Zayan
Estou pensando em algo.
Mas para isso ela precisa me
contar tudo que aconteceu.
Carmela
Vai com calma.
Eu já imagino o que possa ser.
Não pressiona ela, porque Kira
pode se retrair.
Zayan
Eu também imagino o que seja, Carmela.
E para o bem do desgraçado,
é melhor que eu esteja errado.
Já faz mais de duas horas desde que Aisha me ligou e eu estou prestes
a ir até meus pais, para pensar no que fazer junto com eles.
— Kira, a mão na boca — Zayan chama minha atenção pela décima
vez quando começo a roer as unhas.
Ele está com as mãos nos meus ombros, apertando pontos de tensão,
tentando me acalmar. Mas eu preciso ter notícias do meu irmão. Só isso me
trará sossego.
Meu celular apita. Nova mensagem.
Aisha
Ele acabou de chegar.
Está tudo bem.
Amanhã te dou mais notícias.
— O irresponsável que eu chamo de irmão apareceu. — Mostro a
mensagem a Zayan.
— O que você acha que pode ter acontecido?
— Não faço ideia, Zayan! Ele fala de mim, que eu quero me fazer de
forte o tempo todo, mas, e ele? Tudo que Dante faz é tentar resolver os
problemas do mundo com as próprias mãos. Síndrome de herói louca essa.
Ele precisa se controlar, ou uma hora uma grande merda acontecerá e ele
não terá mais controle de porra nenhuma. — Levanto do chão irritada e vou
até a cozinha pegar um copo de água.
— Kira, fica calma. — Ele vem atrás de mim.
— É impossível, Zayan.
— O que eu te fiz, Barbie? — Ele fica de frente para mim e leva a
mão até meu rosto, acariciando minhas bochechas com o polegar.
— Nada.
— Então por que eu sou o Zayan e não Zayzay? Ou limãozinho?
O polegar escorrega até meu lábio inferior e ele encara desejoso
minha boca.
— Eu sei o que está fazendo, Zayzay. — Ele sorri travesso e eu
também.
— O que estou fazendo, pequena Moretti?
— Está me distraindo.
Segura meu quadril e encaixa nossas pélvis, fazendo meu ventre
revirar deliciosamente.
— Funcionou, linda? Porque estou só esperando você me dar algum
sinal para seguir em frente. — A boca dele desce até meu pescoço e ele
morde suavemente.
— E isso prova que sou mais esperta que você, se você acha que eu
seria louca de te impedir. — Sinto o sorriso dele contra a minha pele antes
de ele me tomar e tirar toda a tormenta de mim.
Kira
Você vai passar aqui?
Quase posso sentir a ansiedade na mensagem dela, e por isso não
tenho dificuldade em decidir o que me importa mais.
— Ainda vou tirar esse sorriso do seu rosto, seu merda. — Aponto na
direção de Lorenzzo antes de sair.
Kira caminha para fora do prédio com a expressão mais azeda que já
vi naquele rostinho lindo e vem até mim.
— Ele viajou para a Alemanha! O idiota viajou para a Alemanha!
Abro a mão e ofereço duas balas de tutti frutti. Ela pega e coloca as
duas de uma vez na boca.
— Seu irmão?
— Tem algum outro idiota que eu conheço por acaso? “Viagem a
trabalho”. — Ela faz aspas no ar. — Ele acha que eu nasci ontem. Quem
viaja a trabalho sem comunicar ninguém antes? — Passa por mim e abre a
porta do carro, irada.
Dou a volta e vou até o lado do motorista. Entro e coloco o cinto,
assistindo ela se atrapalhar com o dela quando o puxa com irritação.
— Quer ajuda, linda?
— Não! — Ela luta mais algumas vezes antes de finalmente
conseguir afivelar o cinto e nós saímos rumo à faculdade. — Eu espero que
Aisha acabe com a raça de Dante no instante em que ele pisar em solo
italiano.
— Acho que ela tem outras preocupações no momento.
— Como assim?
— Não está sabendo da interdição?
— Interdição?
— Meu pai quem me contou. O pai dela reuniu provas para interditar
Aisha. Ela está sob a tutela dele.
— Tirou provas de onde?
— É possível fraudar essas coisas, Kira. Pagar gente para
testemunhar, comprar um laudo. Construir provas não é tão difícil.
— Esse cara é louco! Doido, Zayan. Aisha deve estar acabada. Deus,
que confusão! Espera... Como seu pai sabe?
— Ele trabalha no tribunal. E todo mundo ali sabe de tudo que
acontece. Ele me contou hoje de manhã. Achei que você já estava
informada.
— Não estava. Aisha deve estar desolada. E ainda por cima meu
irmão apronta essa. Será que ela sabia dessa viagem? Escuta o que estou te
dizendo, eu vou dar uns bons tapas em Dante quando o vir!
— Quer ir lá ver como ela está?
— Não. Deve estar uma loucura por lá hoje. Outro dia eu visito ela.
Vou mandar mensagem. — Pega o celular e começa a digitar
freneticamente.
Deixo ela concentrada no que está fazendo e dirijo em silêncio.
Ocupo minha mente enquanto tento elaborar uma forma de desmascarar
meu irmão.
Já passou da hora daquele monstro ter o que merece.
No dia seguinte, andamos mais uma vez até a universidade, mas dessa
vez em uma direção diferente.
— Por que você se inscreveu para outra palestra, Zay? — pergunto
quando chegamos no ponto onde tomaremos caminhos opostos.
— Porque eu me interessei por outra temática, pulguinha. Você
deveria ter se inscrito para essa mesa-redonda. Garanto que iria aproveitar
muito mais.
— Não tenho tanta certeza.
— Quem quer ouvir falar sobre “As origens do Eu”?
— Eu. E Marco. — Aponto para o amigo dele, que se inscreveu no
mesmo evento que eu.
— Te garanto que vamos nos divertir muito mais. — Ele aponta para
si e Carmela, que irá acompanhar Zayan.
— Está certo. Ao meio-dia nós conversaremos sobre isso.
Nós nos despedimos e cada dupla toma seu rumo.
— Você e Zayan... Quem imaginaria? — Marco comenta, se
divertindo.
— Aparentemente vocês, já que ficaram incrivelmente satisfeitos e
felizes quando nos viram juntos.
— E tinha como não ficar? Parece que esperamos uma vida por isso.
— Como podem ter esperado tanto tempo se foi só outro dia que
começamos a dar sinais de que algo mais acontecia?
— Fale por você, Kiki. Zayan já estava insuportável. Onze de cada
dez palavras que saíam da boca dele eram seu nome.
— Porque ele me odiava.
— Claro — diz, sem dar nenhuma credibilidade à minha fala. — As
palavras dele eram bem odiosas — conclui com ironia.
— Como assim, Marco? O que ele falava de mim?
— Isso é algo que vai ter que perguntar a ele, Kira.
— Não pode começar um assunto e deixar ele inacabado assim. Me
conte essa história direito.
— Não tenho nada mais a dizer, Moretti.
— Não parece.
— Vamos logo ou perderemos o início da palestra. — Ele caminha
apressado e eu o acompanho.
Passo a manhã inteira tentando arrancar informações de Marco e
saber mais sobre o que Zayan andava dizendo de mim, mas o fiel escudeiro
do garoto ranzinza se nega a abrir a boca.
— Vamos dizer que foi esplêndido — sugiro assim que pisamos para
fora da sala que já estava me sufocando.
— Diremos que foi a melhor palestra que vimos na vida — Marco
concorda, igualmente cansado.
— Que mentira absurda vamos ter que contar.
— É isso ou dar razão a Zayan.
— Dar razão a Zayan não é uma escolha.
De longe, vejo ele e Carmela vindo de encontro a nós, conversando
calorosamente, o que indica que eles tiveram uma manhã muito mais
produtiva e animada do que a nossa.
— Então, como foi? — Zay indaga com um sorriso no rosto.
— Ótima! Foi a melhor palestra que já vimos em todo nosso tempo de
faculdade. — Coloco a melhor expressão de alegria que consigo no rosto.
— Vocês perderam, foi incrível! — Marco diz, com demasiada e falsa
empolgação.
— A melhor hora para mim foi quando ela... A palestrante falou do...
— Sim, essa parte foi indescritível! — Marco já não convence a
nenhum de nós. — E também teve aquela parte. Você lembra?
— Lembro, com certeza! Foi empolgante o final, quando ela contou
aquela história.
— Foi horrível, não foi? — Zayan “Sabe Tudo” Castelli diz com
prepotência na voz.
— Foi a pior palestra da vida deles, eu aposto. — Carmela segue a
deixa dele.
— Eu já disse que nossa amizade está sendo revista, não disse? —
questiono a ela, que ergue os braços, com um sorriso de quem está se
divertindo em sua face.
— Da próxima vez, é só me ouvir, pulguinha. — Zayan mexe na
ponta do meu cabelo.
— Como foi a de vocês? — pergunto quando começamos a caminhar
em busca de algum restaurante na faculdade.
— Foi incrivelmente...
— Zayan? Zayan Castelli? — Ele é interrompido quando uma voz
feminina chama o nome dele.
Nos viramos em busca da origem e uma morena de pele clara e olhos
azuis está com um sorriso aberto, o encarando de cima a baixo. Cutuca um
rapaz que está ao lado dela e ele encara Zay, igualmente empolgado.
— Caralho, não consigo acreditar nisso! Zayan Castelli nos
concedendo a honra de sua presença mais uma vez aqui em Bolonha! — Os
dois caminham até nós.
Ignorando completamente a minha mão que está entrelaçada na de
Zayan, o projeto de Megan Fox puxa ele para um abraço, e ele desfaz nosso
toque para retribuir o gesto. Se cumprimentam animadamente.
— Rosalia, Dario! Que bom ver vocês por aqui — Zayan diz. —
Esses são Carmela, Marco e Kira. Estudamos juntos em Florença.
Encaro Zayan sem disfarçar, para que ele se vire e eu possa ter uma
conversinha silenciosa com ele sobre essa história de “estudamos juntos”.
Mas, irritantemente, a força do meu olhar sobre ele é ignorada.
Marco, que está à minha frente, parece igualmente incomodado e está
tentando uma comunicação telepática também. Sem sucesso, já que os
olhos de Castelli estão na dupla de conhecidos.
— Kira, Carmela e Marco, esses são Rosalia e Dario. Estudamos
juntos aqui, nessa universidade.
— Ciao, piacere di conoscerti.[27] — Construo um sorriso singelo e os
cumprimento com um aceno.
— Prazer — Rosalia e Dario dizem em uníssono.
Ninguém estende a mão.
— Você deveria ter dito que estava vindo, Zay! Teríamos preparado
uma recepção melhor. Sabe que aquela sala não foi mais a mesma sem
você.
— Nós sentimos falta das provocações diárias entre vocês dois. —
Dario ri, apontando para Rosalia e Zayan.
Que história é essa? Provocações diárias? Como assim?
Esse cretino! Achei que essa era uma coisa nossa, mas aparentemente
ele sai provocando qualquer uma por aí.
— Você nunca deixava barato. — Zayan ri.
— Então, o que vai fazer agora? Podemos almoçar naquele
restaurante que costumávamos ir. — Rosalia enlaça o braço no de Zayan e
sai puxando ele, com Dario na cola.
Assisto a cena toda boquiaberta com a ousadia dos três. Zayan parece
recordar que não estava sozinho e olha para trás. Tem a audácia de acenar
com a cabeça para que a gente os siga. Somos patetas o suficiente para
obedecer a instrução dele e vamos os três, eu, Carmela e Marco, atrás do
outro trio.
— Que porra é essa? — Marco comenta baixo quando eles seguem
conversando animadamente na nossa frente.
— Não sei, parece que entrei no multiverso Zayan — reclamo, de
braços cruzados e testa franzida, analisando a cena com irritação.
— Vocês são dois ciumentos sem causa! — Carmela diz com
zombaria.
— Choverá vinho no dia que eu sentir ciúmes de Zayan Castelli — eu
e Marco falamos juntos.
— Você ouviu o que ele falou? Que ele e a garota viviam se
provocando?! — digo sem disfarçar minha indignação.
— E aquele tapinha no ombro que o Dario deu nele? Achei que era
meu cumprimento oficial com ele — Marco resmunga.
Vamos atrás do trio até eles chegarem no restaurante mencionado, e
entramos na fila para fazer nosso pedido. Esperamos ficar pronto e pegamos
nossos pratos. Nos direcionamos até uma mesa de canto, mas só tem quatro
lugares.
Nem me dou o trabalho de procurar outra mesa com mais lugares para
caber nós seis. Deixo o trio de Bolonha sentar e vou até uma mesa mais ao
fundo. Carmela e Marco me acompanham.
— Kira! — Zayan chama e eu me viro para ele.
— Tudo bem, Zayan. Está cheio aqui. Pode ficar aí.
Volto a caminhar e nós três nos sentamos.
— Ele só está animado por encontrar conhecidos, Kiki.
— Eu sei, Carmela. Não disse nada. — Enrolo o macarrão no garfo e
levo até a boca.
— O bico enorme no seu rosto diz muito. — Há um toque de
repreensão na voz dela.
— Não posso ficar chateada por ele ter nos ignorado?
— Ele não ignorou.
— Mandar a gente seguir ele com um gesto de cabeça não é
comunicação para mim.
— Deixa ele, Kira.
— Estou deixando.
E eu estou mesmo. Não vou tirar a alegria de Zayan de encontrar
velhos amigos. Mas isso não quer dizer que eu vou saltitar de alegria por aí.
A verdade é que me incomodou saber que ele tinha a mesma relação
de implicância com a garota. Apostaria tudo que, no fim, os dois chegaram
ao mesmo ponto que nós dois. É incômodo pensar que talvez o que estamos
vivendo só seja único na minha cabeça.
Sim, ele me pediu em namoro. Sim, eu recusei. Mas por causa dessa
recusa, ele decide que eu não existo?
Por mim ele que se divirta para lá com essa dupla.
Faz três meses que eu assinei meu atestado de ódio mútuo com Kira
Moretti. O problema é que só minha assinatura está lá. A garota não caiu
em nenhuma provocação minha depois do nosso primeiro encontro.
Hoje sinto que as coisas vão mudar de rumo. Porque estamos eu e
ela, frente a frente, prontos para nosso primeiro debate.
Vamos ver se é mesmo tão brilhante assim, Kira.
Por um ano, minha vida foi perfeita sem a presença dele. Por um ano
tive paz. Vivi momentos alegres. Eu fui livre.
E aí então ele voltou.
Mas, dessa vez, eu estava exausto de fugir e me amedrontar por
causa de um rato como ele. Já não tinha mais tanto medo.
Que se fodesse meu irmão.
— Sentiu minha falta, verme? — Eu ouço a voz dele chegar até mim
quando entro em casa um dia, depois de voltar da faculdade.
Meu pai já havia me dito que ele retornaria, e por isso a presença
dele na sala de estar não me surpreende.
— Onde meu pai e Nina estão? — pergunto.
— Saíram. — Ele se senta no sofá e liga a TV. — Se comportou na
minha ausência, Zayan? Espero que tenha se lembrado de manter distância
da minha garota.
Minha garota.
Você é um grande canalha, Lorenzzo!
E se eu mantive minha distância não foi por ele. Foi porque já tinha
feito um bom trabalho em fazer ela me odiar. No final, meu irmão estava
certo em algo. Eu não sou uma boa pessoa. Eu sou uma pessoa de merda,
para ser sincero.
Kira está aí para provar isso. Desde que nos conhecemos, tudo que
eu fiz foi despertar o pior da garota. Ela sabe muito bem do ser desprezível
que eu me tornei.
Kira merece alguém bom ao lado dela. Eu não sou alguém bom.
Gostaria de ter sido.
Subo para o meu quarto sem responder a pergunta dele. Não devo
nenhuma satisfação a Lorenzzo.
Ele tocou nela. As mãos nojentas do meu irmão passaram pelo corpo
dela e agora Kira está com medo.
Passei o dia com ela e depois fui até a casa dos pais dela. E então ela
contou o que aconteceu. E eu senti a fúria consumir cada partícula minha.
Deixo-a no apartamento e dirijo até minha casa.
Para meu completo desespero, meu pai e Nina estão aqui. Lorenzzo
me encara com um sorriso vitorioso. Esse parasita nojento e desgraçado.
Ele sabe que eu não vou avançar e quebrar a cara dele aqui e agora.
Pego algumas coisas minhas e anuncio que irei para a casa de
Dafne. Ou cometerei uma grande loucura respirando o mesmo ar que esse
agressor covarde.
Eu ainda vou acabar com você, miserável de merda.
Eu posso ir para o inferno por isso. Posso perdê-la. Mas eu acabo
com você.
Estou prestes a sair da casa de Dafne para pegar Kira e Carmela
quando meu celular toca.
O que esse desgraçado quer agora?
— O quê? — atendo já consumido pela fúria.
— Espero que esteja feliz, verme de merda! Acabei de sair da
reitoria. Você e sua namoradinha fizeram minha matrícula ser suspensa!
Eu fui convidado a me retirar da faculdade por uma denúncia de assédio!
— grita do outro lado da linha.
— Eu te disse que você cairia, e esse é só o começo, infeliz. Você vai
pagar por tudo que fez a ela. Boa sorte explicando para nosso pai porque
não vai mais às aulas.
Desligo antes de ouvir qualquer outra palavra imunda sair da boca
dele. Não tenho dúvidas de que ele vai enrolar Leonardo Castelli o quanto
puder e fingir que está assistindo às aulas. Mas eu vou fazer essa máscara
cair.
Mando uma mensagem para Carmela, dizendo que é para elas
esperarem do lado de dentro do prédio, e explico o que aconteceu. Não
quero correr o risco de elas esbarrarem com Lorenzzo na rua, caso ele
decida ir confrontar Kira.
Meu irmão faz uma escolha sensata e não aparece. Quando as duas
entram no carro, ela me olha e sorri, e então parte do meu desespero se vai.
Você vai ficar bem, linda. Vai ficar. Eu vou garantir isso.
— Seu... irmão... Gregório. Seu irmão. Não, não. O sobrenome dele é
Pisano. Ele só tem o pai. Não tem irmão. Não tem Castelli.
Ela está atordoada e sussurra perdida. Quero me levantar e acabar
com a confusão que a toma, mas não consigo reagir.
— Pisano é o sobrenome da minha falecida esposa — meu pai
responde. Parece estar desorientado.
— Lorenzzo o usou para mentir para você, Kira. Assim como mentiu
sobre a família. — Ele mentiu porque nos odeia. Porque despreza a mim e
Nina. Porque nunca nos apresentaria para ninguém.
— O que seu irmão tem a ver com ela? — Leonardo questiona,
confuso.
— Seu filho tentou violentar a minha menina! — Martina está
chorando. — Duas vezes! — ela berra para meu pai, e Giorgio a segura
quando ela quase desmorona.
Duas vezes? Como assim duas vezes?
“Não foi você que quase teve seu corpo e mentes violados de um jeito
cruel!”, ela me disse há algum tempo na biblioteca e depois nunca me
contou o que aconteceu.
O que aconteceu, Kira?
— Meu... filho? — meu pai pergunta. Está em choque.
— Zayan, isso... — Nina também está perdida.
— Zayan! Que história é essa? — meu pai exige uma explicação.
— Lorenzzo não é nada do que vocês imaginam que ele seja. —
Minha voz sai automática. — Lembra disso aqui? — Levanto a camisa e
aponto para a única cicatriz visível. — Eu não tropecei com a chaleira na
mão. Ele a tirou do fogo e despejou a água em mim.
Minha cabeça dói.
Kira, olha para mim. Conversa telepática, linda. Preciso dela agora.
Mas ela não olha. Vai até os pais e se esconde no abraço deles.
Ela me odeia. Sei que odeia. Dessa vez não conseguirei reverter. Meu
coração encolhe. Meu corpo está inundado pelo desespero.
— Zayan, nós vamos resolver isso agora! — Leonardo caminha até a
porta e Nina o segue.
Me obrigo a me levantar.
Torturo meu pobre coração um pouco mais, só para ter certeza de que
não há salvação para nós dois, que ela vai me desprezar de uma forma
potente e avassaladora.
— Kira? — chamo.
— Some daqui, Zayan! Vai embora e nunca mais volta para minha
vida!
Ela me quebra. Desfaz toda esperança que um dia tive em tê-la
comigo.
Foi por isso que lutei para mantê-la longe de mim. Por isso quis que
ela ficasse longe. Porque eu sempre soube que doeria.
Sempre soube que me despedaçaria.
Sempre soube que eu me destruiria.
Porque, no fim, é isso que eu sempre faço.
Ninguém diz nada no caminho de volta. Estou sendo transportado
para o poço de solidão que sempre vivi, antes de experimentar a alegria de
tê-la em minha vida.
Eu sabia que não estaria pronto para me despedir.
Agora tudo em mim dói. Machuca de uma maneira irreparável.
Saio do carro ainda com movimentos robotizados e só volto para
realidade quando a voz do maldito chega até nós.
— Onde vocês estavam?
— Que história é essa que você tentou abusar de uma garota,
Lorenzzo? — meu pai berra.
Meu irmão me encara com fúria antes de colocar uma expressão
inocente no rosto.
— Você vai acreditar no que Zayan diz, pai? Esse garoto não bate
bem, já te disse isso algumas vezes. É por isso que ele se trata, é louco!
— Olha o jeito que você fala do seu irmão, Lorenzzo! — Meu pai
aponta o dedo na direção dele, que está parado, de pé, na entrada da sala de
estar.
— Eu vou no psicólogo para lidar com as torturas que você me
submete, seu merda! — rebato o comentário dele.
— Seu... — Ele avança, mas meu pai coloca o corpo na minha frente.
— Não foi Zayan que disse tudo. Foram os pais da garota. Você se
entregou, Lorenzzo. Eu não acredito que você foi capaz de uma covardia
dessas! Eu sempre soube que a perda da sua mãe deixou uma marca enorme
e dolorida em você, mas nunca imaginei que você seria destituído de caráter
por causa disso. — Posso notar como meu pai estremece de raiva. — Isso
tudo é culpa minha. Eu deveria ter sido mais rígido com você, mas sempre
achei que assim te quebraria de vez. Eu fui o covarde! — esbraveja, tomado
por um ódio visceral. — Mas nós dois vamos assumir nossa culpa.
— Do que você está falando? Eu não fiz nada!
— Nós vamos para a delegacia agora. Eu vou te pagar um advogado.
Farei isso porque sou seu pai. E então farei de tudo para que seu julgamento
seja justo e que sua punição seja severa. Farei isso porque sou um juiz. E
como tal, meu dever é garantir que a justiça seja feita. E nós traremos
justiça à Kira Moretti. E ao seu irmão. Então você escolhe. Vai por escolha
própria ou vai no carro da polícia?
Sou pego de surpresa pela firmeza na ordem que ele dá.
— Responde, Lorenzzo! — Aumenta o tom de voz.
— Espero que você apodreça no inferno, Zayan! — Meu irmão
aponta para mim, se livrando de vez da máscara de bom moço que carregou
pela vida toda.
Meu pai ergue a mão e dá um passo à frente, mas o seguro e impeço
que avance.
— Pai... — chamo.
— Nina, você leva Zayan. Eu vou com Lorenzzo.
— Pai — chamo de novo.
Ele se vira para mim e vejo no olhar dele como está quebrado.
Destruído. Mas nada tira a resolução de Leonardo Castelli.
— Vai ficar tudo bem, Zay. Não se preocupe. — Ele acaricia minha
face com ternura.
Fico desconcertado e sem reação.
— Vem, Zay. Vamos, meu menino. — Nina segura meu braço com
delicadeza e me conduz para o lado de fora.
Entro no carro com ela ainda aéreo, sem conseguir assimilar tudo que
aconteceu. A única realidade que me toma de assalto é a dor de sentir meu
coração se quebrando por ela.
Perdi ela. Eu a perdi.
Estamos sentados, eu, minha mãe e meu pai, na mesa de jantar. Faz
muito tempo que estamos assim, em silêncio. Cada um preso em seu
próprio emaranhado de pensamentos, absorvendo tudo que acabou de
acontecer na sala de estar.
— Nós vamos denunciá-lo. Agora! — minha mãe anuncia, enfim, e
eu não tenho forças para contestar.
Zayan e Gregório são irmãos.
Irmãos.
Como eu pude ser tão burra? Como eu não pude enxergar a verdade
que estava bem na minha frente?
Por que ele fez isso comigo? Por que Zayan brincou com a linha do
meu destino assim? Ele não tinha o direito de esconder a verdade! Eu
confiei nele. Entreguei a ele tudo de mim. Zayan não podia ter feito isso.
Ele não podia!
— Kira! — Tomo um susto quando meu pai me chama.
— Estou indo. — Caminho apressada com eles em direção ao carro.
Não vejo nada da cidade passar lá fora quando meu pai dirige,
discutindo baixo com minha mãe.
Saio do carro com minha mente entorpecida. Meus pais vão até uma
mesinha onde um funcionário está. Eu me sento em um banco e encaro o
chão.
Cada maldita peça começa a se encaixar na minha cabeça e eu me
sinto estúpida por não ter notado antes.
Foi por isso que Zayan quis que eu o odiasse. Foi por isso que ele
disse que seria melhor que eu não encontrasse o irmão dele.
Zayan e Gregório. Irmãos. Não pode ser real. Deve ser minha mente
me pregando peças. Isso não é verdade.
Penso que enlouqueci de vez quando sinto o aroma de Zayan próximo
de mim. Talvez esteja impregnado em mim. Talvez seja um mecanismo do
meu cérebro que entende que ele me traz calma, mesmo que eu odeie a
ideia. E eu preciso dessa calma nesse instante.
Por que você fez isso, Zayzay?
— Não tem um porquê, Kira.
Meu coração despenca quando entendo que não é minha imaginação.
Ele está aqui. E me ouviu dizer a frase em voz alta.
— O que está fazendo aqui? — questiono, ainda olhando para o chão.
Noto ele se movimentar e sentar-se a dois bancos de distância.
— Acho que o mesmo que você. — Exala o ar, cansado.
— Você vai...
— Meu pai não me deu muita escolha. Nem a mim nem a ele.
— Ele está aqui?
Olho em volta, em busca do meu pesadelo pessoal, sem olhar na
direção que Zayan está.
— Lá dentro. Sendo interrogado.
— Você já foi lá?
— Sim.
Silêncio.
Meus pais ainda conversam com o policial que está na recepção. Não
sei se estão me vendo aqui com Zayan.
— Posso perguntar uma coisa? — Zayan pede.
— Sim. — Eu deixo, porque enquanto ele está falando, não fico
nervosa.
— Sua mãe disse que ele... que ele... duas vezes?
— Que ele quase me violentou duas vezes.
— Sim.
— Eu te disse que na minha primeira briga com ele soube quem era
Gregório... Lorenzzo de verdade. Ele sabia que eu era virgem e sempre
respeitou meu espaço. Mas, então, em uma noite nós saímos para uma festa
juntos. Ele bebeu um pouco além da conta e em certo momento nós fomos
para um cômodo vazio da casa. Sempre ficávamos assim, entre beijos e
amassos, mas quando eu sentia que estava indo longe demais, pedia para ele
parar, e ele parava.
“Nessa noite, ele não parou. Eu pedi para que ele não me tocasse
mais, mas ele se enfureceu e começou a gritar comigo. Disse que eu era
dele por direito e que eu deveria parar de bancar a garotinha inocente e abrir
minhas pernas para ele. Eu me apavorei e achei que entraria para as
estatísticas nessa noite, que eu seria mais uma que teve seu corpo violado
por um abusador de merda.
“Eu tentava gritar, mas ele me silenciava. Foram segundos de terror
que pareceram durar uma eternidade. Mas, por algum milagre, Carmela não
foi embora mais cedo nessa noite, como ela sempre fazia. Ela sentiu minha
falta e foi me procurar. Ele devia estar tão bêbado que esqueceu de trancar a
porta do quarto.
“Ela me achou. Ela o enfrentou sem medo. Gregório... Quer dizer,
Lorenzzo levou um soco bem dado dela. Não sei onde ela aprendeu a se
defender assim. O que eu sei é que ela me levou para longe e deixou ele
com um nariz sangrando. E eu nunca mais o procurei. Ele começou a vir
atrás de mim. O resto da história você sabe.”
— Eu sinto muito, muito mesmo que tenha passado por isso.
— Eu também.
Mais silêncio. Onde meus pais estão? Isso não vai acabar?
— Você me odeia, não odeia?
— Não estou pensando nisso agora, Zayan. Só quero acabar com tudo
isso de uma vez por todas.
— Vai acabar. Ele não vai ficar impune.
— Como você sabe disso? — Levo a mão à boca e começo a roer a
unha.
— Meu pai...
— Ah, é claro. O juiz. — Sarcasmo me escapa sem que eu controle.
— Como você sabe?
— Não foi porque você me contou. Disso nós sabemos.
Ele não retruca, não me repreende e não me oferece uma má resposta.
— Como você sabe? — repete.
— Seu irmão uma vez me ameaçou. Disse que o pai era juiz, e que se
eu tentasse denunciar, a justiça nunca ficaria do meu lado.
— Entendi. Meu pai não faria nada disso, só para você saber. Ele
sempre foi imparcial, e com Lorenzzo não seria diferente.
— Kira, venha cá — minha mãe chama. Eu levanto e vou até ela. —
Já ligamos para a advogada. Em alguns minutos ela chega.
— Certo.
— Onde está o imprestável do seu irmão quando eu preciso dele? —
Martina começa a resmungar sobre Dante e eu não presto mais atenção
nela.
Porque meu olhar finalmente encontra o dele. E a única coisa que eu
vejo é um garoto quebrado. Tão destruído que me leva junto. Me quebra
junto.
Eu olho nos olhos de Zayan e o reconheço pela sua dor. Nossas dores
se encontram. Por um momento somos um só, nos vendo através do outro.
“Você vai ficar bem agora, pulguinha.”
“Você também, Zayzay.”
Faz mais de três horas que estamos nessa delegacia e já não aguento
mais. Revivi todos os piores e mais sórdidos momentos que aquele monstro
me submeteu e tive que explicar com detalhes sobre tudo.
O único alívio que tive foi saber que Lorenzzo confessou tudo. Não
imagino que tenha sido porque quis, mas sim porque o pai o obrigou de
alguma forma.
Talvez Leonardo Castelli seja mesmo um juiz imparcial.
Quando saio para a recepção, já exausta, percebo que Zayan não está
mais ali.
Mas se estivesse também, o que eu faria? Correr para abraçá-lo?
Confortá-lo? Ser confortada por ele? Não. Não posso me permitir isso.
Zayan traiu minha confiança quando escondeu essa informação. Eu
acreditei nele. Isso não é algo que se mantém em sigilo. Ele deveria ter me
dito muito antes.
Por que esconder, Zayan? Por que não confiou em mim?
Meus pais dirigem para a casa deles e não contesto nem os peço para
me levar para meu apartamento. Não estou com cabeça para fazer nenhuma
escolha.
Eles são irmãos. Zayan e Lorenzzo Gregório. Irmãos Castelli.
Kira
Zaaaaaaaaay.
Vem ác.
Me vre.
Por faovr.
Estuo on bra.
Bar.
MONOPOLY!
Inferno!
Eu nunca mais vou colocar uma gota de álcool na boca.
Caralho, ele me trouxe aqui! Ele me trouxe aqui e estava na minha
cama!
Que merda, Kira. Realmente, a cada dia que passa, você só prova
como ele é mais inteligente que você.
E então ouço vozes vindo da cozinha do apartamento. Identificaria
esse timbre a quilômetros de distância. Porcaria de coração idiota que bate
acelerado!
Tranco a porta do quarto por segurança e termino de escovar os
dentes. Pego um vestido e percebo que minhas mãos estão trêmulas.
Merda, merda, merda.
Como eu vou sair daqui? Ele ainda está na cozinha conversando com
Carmela.
Vou fingir normalidade. Vou passar pelos dois como tenho feito nos
últimos tempos: ignorando a existência deles. É isso, ou vou ter que encarar
a fúria da minha mãe no telefone mais uma vez.
Balas de tutti frutti. Onde elas estão quando preciso delas? Penteio o
cabelo molhado e faço uma maquiagem para disfarçar a cara de ressaca.
Respiro fundo.
Nada de mais. Não é nada de mais. É só um garoto que magoou você.
Ele te magoou, Kira. Escondeu informações importantes de você.
Não permita que ele te afete assim.
Pego minha bolsa, endireito a coluna e vou até a porta.
E se eu esperar mais alguns minutos? Talvez ele vá embora e eu não
tenha que passar por esse martírio todo.
Minha mãe vai me ligar dentro de cinco minutos para saber se já saí
desse apartamento. Estou certa disso.
Mão na chave.
Não preciso dizer nada. Apenas passo por eles e saio.
Giro a maçaneta. Ouço a risada dele.
Isso vai ser difícil.
Mas eu já estou quase no corredor. Dez passos e esse suplício acaba.
Um, dois, três, quatro, cinco.
Eles notam minha presença e se viram para me encarar. Evito retribuir
a encarada e dou os cinco passos restantes, com o coração acelerado.
— Kira? — ele chama.
Meu corpo arrepia e meus músculos derretem. Um terremoto
acontece em meu interior. Só preciso esticar a mão e abrir a porta para sair
daqui.
— Sim? — Por que eu tive que abrir a boca?
— Posso te dar uma carona para onde você está indo. — Não!
Enlouqueceu? Se eu entrar no mesmo carro que você, estou fodida. Todo
seu cheiro está impregnado no automóvel. Você vai estar perto demais. Meu
cérebro vai querer me enganar.
— Tudo bem. — Ca-ra-lho. Caralho, Kira. Acabou de denunciar de
vez sua estupidez.
Abro a porta e ouço ele se movimentar. Caminho apressada até o
elevador e aperto o botão, sem conseguir olhar na direção dele, que para
atrás de mim. Nós entramos quando a máquina para no nosso andar.
As portas se fecham e minha mente me trai ao fazer surgir uma
memória de um passado que parece muito distante agora.
As mãos dele estão em todo lugar.
Na minha bunda, nas minhas coxas, na minha cintura.
Minhas pernas circundam o quadril de Zayan e puxam ele para perto,
quando nos atracamos em um beijo quente e carregado de tesão.
Meu útero remexe ansioso quando nos encaixamos e eu sinto o
volume dele contra mim.
Plim.
Estamos no térreo. Saio do elevador e ele me segue. O olhar dele está
sobre mim, mas ainda não consigo me virar para encará-lo. O caminho até o
carro parece levar uma eternidade, mas sei que o pior está por vir quando
entramos no automóvel.
Eu disse, Kira. Te disse que o aroma de Zayan estaria por todo canto.
Agora as sinapses do seu cérebro serão comprometidas quando se
ocuparem apenas de memorizar o cheiro dele.
Coloco meu cinto e, próximo ao freio de mão, vejo balas de tutti frutti
à disposição. Minha boca saliva.
— Pode pegar. São suas. — Ele nota para onde meu olhar foi.
— Não precisa, obrigada.
— Kira, é só pegar e colocar na boca. Se quiser, fecho os olhos para
não te ver comendo elas.
— E se tiver veneno, Zayan? Não vou arriscar.
E meu comentário o faz rir.
E meu coração derrete.
Droga, Kira. Por que não mantém sua boca fechada?
— Quer que eu prove uma e te mostre que não tem veneno?
— Não, senão vão restar apenas duas para mim. Se eu morrer, morro
feliz por ter comido três balas de tutti frutti. — Pego os doces e abro um,
colocando na boca.
— Vou deixar sua família saber.
— Obrigada.
— Para onde está indo? — ele questiona quando liga o carro.
— Casa dos meus pais.
Zayan começa a dirigir e eu começo a discutir com minha cabeça para
que eu não abra mais a boca e emita nenhum som.
Ele omitiu informações importantes por dois anos. Dois anos!
— Meu palpite é que não vamos falar da noite anterior, certo? —
indaga quando paramos em um semáforo.
— Não, não vamos. Vamos esquecê-la.
— Isso é uma coisa que não pode me pedir, linda. — Porra, Zayan!
Me ajuda aqui. Preciso que me ensine a te odiar de novo, não que faça meu
peito inflar apenas porque me chama de linda. — Esquecer qualquer coisa
que diz respeito a você é impossível, Kira.
Tum, tum, tum, tum, tum.
Aquieta, coração. Ele nos magoou, lembra?
— Mas você esqueceu de me contar que seu irmão é meu ex-
namorado. Não acho que seja tão difícil assim para você apagar algumas
coisas da sua memória.
E com isso ele se cala pelo resto do caminho.
Apenas abre a boca para falar algo quando estaciona na frente da casa
dos meus pais.
— Não mantive essa informação em segredo para te magoar. Eu te
disse que tinha coisas sobre mim que você ainda não sabia. Fui estúpido e
medroso, sim. Posterguei o momento que te contaria toda a verdade. Mas
não fiz isso com o propósito de prejudicar você. Perdão, amor.
Aqui jaz Kira Matilda Moretti. Causa da morte: “perdão, amor” dito
com fragilidade, delicadeza e sinceridade.
Ele é irmão do cara que abusou de você. Ele escondeu essa
informação. Não há perdão para isso, Kira.
— Preciso ir, Zayan. — Abro a porta do carro.
— Não vai à aula hoje, não é?
— Não.
— O dia será uma merda sem você lá.
Zayan! Não faz isso comigo. Não me torture assim.
— Nos vemos, Castelli.
— Até mais, pulguinha.
Me afasto antes de cometer uma loucura, e não me viro nem mesmo
para me despedir. Corro para a casa dos meus pais e entro, encontrando
outro caos para me distrair de Zayan.
Enfrento mil Martinas nervosas e dois mil Giorgios ansiosos, mas não
sou capaz de enfrentar um Zayan apaixonado.
Eu sou um quadro de comédia ambulante.
— Aí está você, Kira! — Minha mãe anda ansiosa de um lado para o
outro. — Consegue acreditar que seu irmão voltou há mais de três dias e
não se deu o trabalho de nos informar disso? E não acaba por aí. Aquele
inconsequente foi se meter com a polícia, você acredita? Virou testemunha
de um crime internacional. Honestamente, o que eu fiz para merecer uma
coisa dessas? Giorgio, eu preciso de férias com urgência.
— Calma, mãe. Explica isso direito. Polícia?
— Ainda não sabemos direito o ocorrido, Kira — meu pai diz. —
Amadeo quem me disse que ele está lá e está bem. — Ele se refere ao avô
de Aisha. — Disse que mais tarde nos dá mais notícias, mas que, por
enquanto, tudo que podemos fazer é esperar.
— Vocês me chamaram aqui para ficarmos ansiosos juntos enquanto
esperamos notícias?
— Família é para isso, Kira. — Minha mãe ainda caminha impaciente
pela casa.
— Eu vou subir para o meu quarto. Me chamem quando tiverem
notícias concretas.
— Kira! — Martina chama quando estou no meio da escada.
— Mãe, por favor. Eu preciso de paz. Só isso. Pode me dar um pouco
de espaço?
Ela me analisa por alguns segundos antes de ceder. Eu subo até o
quarto, e no instante em que fecho a porta, faço o que queria fazer desde
que Zayan chamou meu nome hoje cedo.
Desabo em lágrimas que expressam minha confusão, meu medo,
minha insegurança e, principalmente, a falta sufocante que ele me faz a
cada dia que passa.
Eu não consigo mais odiar você, Zayan. É insuportável a ideia de te
odiar.
Divisa
Mais importante do que a ciência é o seu resultado,
Uma resposta provoca uma centena de perguntas.
Mais importante do que a poesia é o seu resultado,
Um poema invoca uma centena de atos heroicos.
Mais importante do que o reconhecimento é o seu resultado,
O resultado é dor e culpa.
Mais importante do que a procriação é a criança.
Mais importante do que a evolução da criação é a evolução do criador.
Em lugar de passos imperativos, o imperador.
Em lugar de passos criativos, o criador.
Dou toda minha coleção de livros para a primeira pessoa que surgir
na rua se esse for o pensamento do grupo dele.
Não é.
É dele.
Esse poema foi escolha dele.
Porque está longe de ser uma síntese do que eles abordaram. Para
começar, foi escrito por um psicólogo que tem uma corrente de pensamento
diferente.
Conheço o poema, conheço o autor. E conheço Zayan.
Ele está brincando com meus sentimentos mais uma vez, quando faz
tudo ao nosso redor ser esquecido por mim, enquanto trata de olhar nos
meus olhos e recitar a próxima estrofe.
Hoje é sábado e faz quase uma semana que Dante voltou. Não tive
tempo de ficar com ele porque foram dias agitados, principalmente porque
estava me preparando para aquela desastrosa apresentação.
Por isso, aceitei o convite do meu irmão para um churrasco na casa
dos Campellos. Quero passar mais tempo com ele. Temos muito o que
conversar. Dante vai enlouquecer quando souber de tudo que aconteceu na
ausência dele.
Meu pai estaciona na garagem da mansão e nós vamos juntos até os
fundos da casa. Todos eles já estão bem alegres e vejo algumas garrafas de
vinho espalhadas pela mesa.
— Irmã, você veio! — Dante dá a volta na mesa e vem até nós. —
Pai, mãe! — Nos abraça contente e acredito que o álcool tenha subido à
cabeça dele.
— Você bebeu, Dante Moretti? — minha mãe indaga.
— Só um pouco, Martina Moretti. — Ele une o indicador e o polegar
e dá uma risadinha. — Minha namorada fez um gol para mim hoje! — Ele
aponta para Aisha. Só agora noto que ela está vestida com um uniforme que
parece ser de futebol. — Ela agora joga futsal e fez um gol para mim.
— Aisha joga futsal? Desde quando? — questiono.
— Desde algum dia aí. — Dante volta para perto da ruiva e a puxa
para um abraço. Eu cumprimento Amadeo, Michaela e Max, tios de Aisha,
e vou até meu irmão e minha cunhada.
— Boa tarde, cunhadinha. Achei que não ia chegar nunca mais. Não
te abraço porque estou suada. Mas daqui a pouco vou tomar banho.
— Pode ir mesmo, Aisha. Está precisando — Antônio zomba. Vou até
ele e o cumprimento, notando que há rostos novos aqui.
— Kira, essas são Anita e Cecília. Funcionárias da Campello e
amigas minhas. — Aisha aponta para a mulher negra e em seguida para a
loira. — E essa é Helena, minha amiga brasileira. — Indica a morena.
— Prazer, eu sou Kira. Irmã de Dante. — Cumprimento cada uma
delas.
— Espera... Foi você que deu um tapa em um colega de classe e
depois beijou ele? — Anita questiona.
— Dante! — Direciono minha ira para o meu irmão.
— Eu não falei nada — ele se defende.
— Falou para Antônio.
— Dessa vez eu não fiz nada! — o Campello se defende.
— O que é um milagre. — Ouço quando Anita diz baixo com tom
ácido.
Será que eles não se dão bem? Faço uma nota mental, para perguntar
para Dante em algum momento o que aconteceu entre os dois.
— Desculpa, cunhada, a culpa foi minha. Eu bebi um pouco demais
em uma noite e nós estávamos conversando sobre tudo, e eu acabei
contando — Aisha se desculpa.
— Tudo bem, você eu perdoo. — Sorrio para ela.
— Então, onde está Zayan? — a ruiva pergunta, animada.
Meu coração falha três batidas e sinto quando meu semblante murcha.
Meu estômago remexe inquieto e eu dou de ombros, tentando parecer
indiferente.
— Hey, o que aconteceu? Vocês pareciam estar se dando bem —
Aisha questiona.
— Nada de mais. Outra hora eu explico. — Engulo o bolo que se
forma em minha garganta.
— Tudo bem.
Desvio meu olhar para meus pais, que assistiram essa curta interação,
e o semblante deles é neutro.
Eles não disseram nada sobre Zayan depois daquele dia, mas acredito
que tenham entendido que eu e ele nos desentendemos e nos afastamos,
porque nunca mais estive com ele.
Gio e Martina não opinaram sobre tudo e acho isso estranho. Eu
imaginei que viriam até mim me aconselhar a ficar longe do garoto.
— Toma, isso aqui vai ajudar. — A mulher de cabelos loiros, Cecília,
me entrega uma taça de vinho, quando todos estão distraídos em suas
conversas particulares.
— Obrigada — agradeço sem saber de onde veio essa.
— Está com uma cara perdida e os pensamentos nas nuvens. Chutaria
coração partido, pela sua reação à pergunta de Aisha.
— Já teve o coração partido?
— Na verdade, não. Acho que nunca amei alguém a esse ponto. —
Ela se senta ao meu lado no balaústre da varanda.
— Amar?
— Vai dizer que não ama o garoto? — Ela ergue uma sobrancelha,
indagativa.
— Eu não... — Nenhum som sai da minha boca depois disso.
— Me agradeça depois por esse momento de epifania, pequena
Moretti. — Ela ri e meu coração se encolhe. — Qual o problema? — Acho
que Cecília nota meu pesar.
— Zayan adora me chamar assim.
— Ah, que fofo! O que ele fez de tão ruim para não estarem juntos?
Tem tanto carinho no seu olhar, agora, falando dele. Não é possível que
tenham terminado de vez.
— Nem chegamos a namorar. Eu e Zayan nos odiávamos. E então
começamos a nos gostar. E eu estava conhecendo cada parte da história dele
e me apaixonando. Mas ele escondeu de mim uma informação muito
importante.
— E como você descobriu?
— Ele me contou. Mas contou tardiamente. Ele deveria ter falado
antes.
— Mas, Kira, no fim ele escolheu ser sincero, não foi? Sei que ele foi
errado em esconder por algum tempo e que isso te magoou. Não estou
dizendo que não tem o direito de se sentir assim. É só que... Esquece, estou
me intrometendo demais.
— Pode falar, por favor.
— É só que você parece sentir a falta dele. Talvez devesse tentar
entender porque ele fez isso e assim perdoar em algum momento o que ele
fez. Não estou dizendo que será hoje. Nem amanhã. Mas algum dia, talvez,
você seja capaz de entender Zayan, e oferecer a ele o perdão.
— Aconteceu algo essa semana que me fez pensar no que você está
falando. — Giro a taça de vinho que está na minha mão e tomo um gole. —
Tínhamos uma mesa-redonda e, como sempre, Zayan e eu estávamos
defendendo diferentes pontos de vista. Mas, no fim, ele decidiu declamar
um poema que falava sobre tudo que eu acredito.
— E como é?
— Eu não sei ele todo de cor. Mas tem uma parte que diz: “um
encontro de dois. Olhos nos olhos, face a face. E quando estiveres perto,
arrancar-te-ei os olhos e colocá-los-ei no lugar dos meus. E arrancarei meus
olhos para colocá-los no lugar dos teus. Então ver-te-ei com os teus olhos e
tu ver-me-ás com os meus”.
“Quer dizer que para entender o outro e as motivações dele, não
adianta tentar ver a situação considerando suas dores, vivências e opiniões.
Só conseguiremos enxergar verdadeiramente as pessoas e ter compaixão
quando a enxergarmos com os olhos dela. Quando a percebermos pelas
dores, vivências e opiniões dela. É algo como ‘eu não faria o que você fez,
mas entendo porque fez. Porque te vejo com seus olhos’. E se depois disso
for capaz de sentir compaixão, então vocês se encontraram.”
— E você não o encontrou?
— Já encontrei Zayan antes. Já o perdoei com facilidade por cada
provocação que ele havia feito.
— Mas os encontros são únicos? Você não pode sempre encontrar
alguém? Afinal, existem casais que vivem bem juntos uma vida inteira.
Talvez eles estejam se encontrando por uma vida inteira. Relacionamentos
não são perfeitos, e você sabe disso.
— Sim, eu sei.
— Olha para os seus pais. — Ela se vira para eles e eu a acompanho.
Meus pais têm seus desentendimentos, mas sempre escolheram estar na
companhia um do outro no fim do dia. — E tem Aisha e Dante. — Admiro
a ruiva e meu irmão, que parece provocá-la por causa da estatura. Ela fica
brava, mas ri logo em seguida. — Max e Michaela. São completos opostos.
E, ainda assim, se dão muito bem. — Analiso os tios de Aisha. Cecília tem
razão. Mesmo sendo tão diferentes, eles têm uma sintonia incontestável. —
Acha que eles não fazem sempre um exercício de tentar ver o outro pelos
olhos do outro? Imagino que seja difícil, Kira. Mas se Zayan vale a pena,
por que não se esforçar? Como eu disse, não precisa correr para o garoto
hoje e perdoá-lo. Mas talvez devesse começar a tentar.
— Você deve ter minha idade, Cecília. De onde vem tanta
maturidade?
— Acho que da vida. — Ela dá de ombros. — E eu tenho vinte e três.
— A vida foi cruel com você, não foi?
Ela fecha o semblante e fica pensativa por alguns segundos.
— Um pouco — diz com pesar.
— Se um dia precisar de alguém para conversar, estarei aqui.
— Obrigada. E, por favor, se decidir perdoar Zayan, nos apresenta o
garoto. Todas nós ficamos ansiosas para conhecer o menino depois do que
Aisha contou. — O sorriso volta a tomar conta do rosto dela.
Depois disso, passamos a conversar sobre outros assuntos. Ela tenta
narrar a paixão que tem por programação e tecnologia, sobre videogames e
sobre como conheceu Aisha e Ani. Falo para ela sobre psicologia infantil,
por já ter considerado trabalhar na área, sobre filmes de animação e sobre
One Direction.
Nos juntamos ao resto do pessoal, bebendo vinho e nos distraindo
pelo resto do dia.
— Por que eu sigo vocês quando decidem beber? Está claro que
ninguém aqui tem limites — Antônio resmunga com a voz rouca, quando
nos sentamos na mesa do café da manhã.
Aisha e Dante parecem ter sido nocauteados pelo vinho, eu só sinto
uma pequena dor de cabeça e Antônio parece mais pálido que o normal.
— Hum... — Aisha murmura, enquanto bebe um gole de água gelada.
— Vocês estão com a aparência horrível — comento, mordendo um
pedaço de pão.
— Como você está inteira, Kira? Bebeu tanto quanto a gente.
— Claro que não. Bebi muito menos. Vocês perderam as estribeiras.
— Rio.
— Como é abusada. — Antônio joga um pedaço de biscoito na minha
direção.
— Quero saber quem vai me levar de volta, já que meus pais foram
ontem mesmo.
— Eu vou, irmã. Assim que eu me recuperar. — Dante apoia a testa
na mesa, resmungando. — Quer nos contar o que houve com o projeto de
homem que você disse que gostava? — Ele volta a me encarar.
— Nada.
— Irmã...
— Certo, eu vou contar. Você vai fofocar para esses dois de qualquer
forma.
Abro a boca e narro para eles sobre tudo que aconteceu enquanto
Dante estava fora. Acabo contando para Aisha e Antônio sobre Lorenzzo,
sobre o relacionamento merda que tive e sobre a denúncia. Falo sobre
Zayan, sobre eles serem irmãos e sobre eu nunca ter conhecimento disso.
— Kira, sinto muito por isso. — Dante se levanta e vem até mim. Eu
me levanto e nos abraçamos, e então percebo que era esse abraço que eu
esperei receber desde que meu mundo desabou. — Me perdoa por não ter
estado aqui. Se eu soubesse...
— Não tinha como saber, Dan. A vida é feita de fatalidades também.
Essa foi uma. O que importa agora é que você está aqui. — Estreitamos
nossa distância um pouco mais, e eu fecho os braços apertados na cintura
dele.
— Ele está realmente preso? — Ele se refere a Lorenzzo.
— Sim.
— É por isso que você e Zayan brigaram? Por que você denunciou o
irmão dele?
— Não! Não é isso. Zayan foi uma vítima nas mãos do irmão. Só que
diferente de mim, Zay sofreu por anos, sendo maltratado por ele.
— Que loucura! — Antônio exclama.
— Eu sei. — Me afasto dos braços de Dante. — Não sei mais o que
pensar sobre tudo isso. E as provas finais começam em breve. Preciso focar
nisso.
— Tudo bem, mas sempre que precisar conversar sobre algo, estarei
aqui.
— Nós estaremos. — Aisha levanta da mesa e vem até mim.
Antônio faz o mesmo e os três me fecham em um abraço
reconfortante e calmo.
— Você está terrível — Stefano comenta assim que me sento no sofá.
— Já é a quarta sessão que você me diz isso — rebato meu terapeuta.
— E ainda assim você não melhorou.
— Estou em época de provas finais.
— Nunca chegou aqui assim em época de provas finais. Nem mesmo
xadrez quis jogar.
— Já te falei sobre tudo que aconteceu. Acho que tenho o direito de
estar com uma aparência ruim.
— É sobre seu pai?
— Também.
Meu pai está destruído. Cada dia que passa, Leonardo Castelli parece
definhar, e eu sinto a culpa e o desespero me consumir por vê-lo assim. Eu
sabia que no instante em que ele soubesse a verdade sobre meu irmão, ele
não suportaria lidar com ela.
Agora assisto a depressão assolar meu pai de mãos atadas. Tento fazer
o que posso, insisto para que ele saia de casa comigo, que visite Dafne,
qualquer coisa. Porém, nada o faz reagir.
É desesperador.
— Ele está se tratando, não está? — Stefano pergunta.
— Sim, mas não parece surtir efeito.
— Tem que dar um tempo a ele. E confiar no tratamento. Não é do
dia para a noite que ele ficará bem. Foi um baque para o seu pai, Zayan.
— Sinto que a culpa é minha. Como se eu tivesse feito de Lorenzzo
quem ele é.
— Você sente essa culpa há tempos. Sabe disso. O que precisa é se
livrar dela. Não acha que é arrogante da sua parte pensar que você é o
centro do universo para seu irmão e que ele é quem é por sua causa?
— Arrogante? — Sinto irritação pela fala dele.
— Sim, arrogante. O que você tem de tão especial que faz uma pessoa
ser como ela é? Me diz, quem é que te moldou assim, para você ser como
é? Seu pai? Sua madrasta? Kira?
— Não quero falar dela, já disse!
— Não quer falar dela porque não quer assumir as responsabilidades
do que fez.
— Estou assumindo, não estou? Deixei ela viver a vida dela em paz,
como ela sempre quis. Não é o suficiente?
— Deixou mesmo? Porque posso enxergar ela aqui e agora, na minha
frente. Você está vivendo à sombra dela.
— Estou vivendo à sombra do que eu fiz a ela.
— E não é a mesma coisa?
— Não. Não tem a ver com ela, tem a ver com o que eu fiz.
— E com a forma como ela reagiu a isso. Admite que esperava que
ela tivesse outra reação?
— Eu... — Porra, por que eu faço terapia? Só estou aqui levando
tapas na cara. — Sim. Eu pensei que se eu desse um tempo a ela, ela iria
me perdoar e poderíamos tentar de novo. Mas já faz um mês e nada
aconteceu. Quer dizer, ela parece seguir em frente com facilidade. Está
bem, alegre e parece ter esquecido rápido tudo que vivemos, enquanto eu
vivo mergulhado nesse passado recente, cada vez me afundando mais,
desejando de todo meu coração que não seja apenas uma lembrança boa que
irá me atormentar pelo resto da minha vida.
— E qual o problema com lembranças?
— São só isso. Lembranças. Eu não quero o que está aqui dentro. —
Aponto para minhas têmporas. — Quero ela aqui, na minha frente, para
entregar duas balas de tutti frutti para ela, roubar um beijo dela e ter ela me
irritando na sequência.
— Não é engraçado como ouvi de você tantas vezes que jamais iria
dizer a ela como se sente e que nunca iria se permitir envolver com ela, e
agora estamos aqui, com você desejando exatamente isso?!
— Você está sendo mau hoje — reclamo, sentindo o choro se prender
em minha garganta.
— Só estou te mostrando as ironias da vida. O que acontece quando
não vamos atrás do que desejamos e sim do que os outros desejam para nós.
— Eu sei! Caramba, não me consola em nada saber tudo isso. Eu errei
e tenho que lidar com esse erro. Fim.
— Então está pronto para aceitar as consequências do que fez?
— Eu lido com elas todos os dias.
— E está pronto para finalmente escrever sua história, Zayan? Sem a
sombra de ninguém te rondando? Está orbitando ao redor do seu pai e Kira.
Antes era seu irmão, agora esses dois. Só vai conseguir seguir em frente
quando for você o corpo celeste central do seu universo particular. E lidar
com as consequências do que fez não é olhar para as pessoas que magoou
todos os dias e lamentar suas escolhas, é entender, aceitar e seguir em
frente. Você fez o que estava ao seu alcance e fez o que era certo para você.
Agora seu pai lidará com a dor da perda e Kira vai lidar com o peso da
verdade. Mas não há nada mais que você possa fazer.
— É difícil seguir em frente quando os encaro todos os dias.
— Então talvez devesse tomar um tempo para você. Sozinho. Disse
que as aulas estão prestes a acabar. Por que não faz algo para você nessas
férias? Há tantas possibilidades.
— Vou considerar a ideia.
— Você merece isso, Zayan. Não é uma pessoa ruim. Fez escolhas
equivocadas. Todos nós fazemos em algum momento.
— Obrigado.
— Não quer mesmo jogar xadrez? Estou enferrujado, preciso praticar,
garoto.
— Certo — cedo, com um sorriso pequeno nos lábios. — Uma
partida.
Tiro as flores secas que estão ali e coloco as novas que trago em
mãos.
— Oi, mãe. — Meus olhos já ardem e eu deixo que as lágrimas
desçam. — Faz um tempo que não venho aqui. Faz um tempo que não olho
para as estrelas para te encontrar, como meu pai disse uma vez para eu
fazer. Faz um tempo que minha vida virou de cabeça para baixo.
Limpo a poeira da lápide e fico um longo tempo em silêncio, até que
meu choro cessa. Eu continuo:
— Nunca tivemos a chance de criar memórias, Cassie. E por muito
tempo eu me senti culpado por isso. Te disse isso várias vezes quando vinha
aqui te visitar — suspiro. — Mas hoje eu não vim me desculpar pela nossa
fatalidade, mãe. Hoje eu vim aqui dizer que, mesmo sem ter criado
nenhuma memória, eu te conheço tão bem, que sinto que preciso te contar
isso. Sinto que ficará feliz em saber que não tenho mais o peso da culpa
sobre meus ombros. E tudo isso é graças a uma pulguinha intrometida e
atrevida. — Rio fraco. — Kira Matilda Moretti. Você se lembra dela? Já te
contei do meu amor antes. Mas antes eu sofria por ilusões. Te contei dela
quando falei da minha dor de não me permitir viver tudo que sonhava viver
ao lado dela. Mas hoje eu tive parte de tudo que sonhei, e, mãe... Como eu
me senti incrivelmente agraciado por isso! Foi você, não foi? Você sabia
que a presença dela em minha vida seria minha maior dádiva e me
presenteou com dias ao lado de Kira. Obrigado por isso. Porque foi Kira
que me fez ver que eu mereço ser amado. Ela me mostrou a pureza e
grandeza que o verdadeiro amor carrega, e por ela eu disse adeus à culpa e
nos libertei da nossa parte triste. Cassie, a vida nos pregou uma grande
peça... Eu realmente sinto muito por não ter tido a chance de compartilhar
com você todos os momentos que venho aqui te contar. Mas saiba que eu
tenho muito orgulho de ser parte sua e espero te orgulhar daqui para frente,
vivendo de maneira plena. Errando, acertando, celebrando e nunca
esquecendo a beleza que é apreciar o intervalo entre o nascimento e a
morte. É o que tenho agora. Espero que você tenha apreciado. Quem sabe
um dia a gente se encontra? Em outras vidas, eu espero.
Tomo mais um tempo, aproveitando a calmaria que estar aqui hoje me
traz. E então decido falar sobre a última coisa que queria dizer hoje a ela.
— Sinto muito por Lorenzzo, mãe. Não queria que as coisas tivessem
sido assim com ele. Sei que você também não. Sei que teria sofrido se
tivesse vivido para ver o que seu filho mais velho se tornou. Sinto muito
pelas escolhas que ele fez.
Porque sim, meu irmão escolheu ser quem é, fazer o que fez, e por
isso hoje enfrenta as consequências da crueldade que ele cultivou.
— Tenho que ir agora. Preciso estar com meu pai. Mas eu volto.
Sempre volto. E de onde estiver, torce por mim. Quem sabe você não me dá
uma forcinha, mãe? Queria aquela atrevida de volta. — Sorrio tímido. — Te
amo, mãe. Para sempre.
Passo os dedos pela inscrição na lápide mais uma vez antes de me
afastar, sentindo pela primeira vez uma leveza me tomar depois das
inúmeras vezes que estive aqui.
Kira
Está lembrado que
vai me levar no aeroporto?
Dante
É a centésima sétima vez que
você me lembra, Kira.
Por Deus! Não tem como eu esquecer.
Kira
Não venha estressar!
Eu estou agitada,
dê um desconto.
Dante
Já estou de pé.
Já estou tomando café.
Em breve eu te busco.
Kira
Se apressa!
Dante
Já mandou mensagem para o
comandante da aeronave também,
mandando ele voar mais rápido?
Kira
Só vem logo, Dante!
E não me irrita.
— Zay! Seja bem-vindo de volta, meu menino. — Nina vem até nós,
quando Zayan, eu e Dante entramos pela porta da casa deles.
— Obrigado, Nina. — Eles se abraçam.
— Você deve ser o irmão de Kira. — A madrasta de Zayan vai até
Dante e o cumprimenta. — Prazer.
— Prazer.
— Obrigado por trazer meu filho — Leonardo agradece, enquanto
aperta a mão de Dante.
— Imagina. Bom, agora se me dão licença, minha noiva está me
esperando. Preciso ir. Ciao.
— Ciao — a família Castelli se despede e meu irmão sai pela porta.
— Noiva? — Zayan indaga quando ele já se foi.
— Sim. Ele pediu a Aisha em casamento.
— Poxa, e eu perdi isso?
— Pois é, decidiu ir para longe. — Cutuco o peitoral dele,
provocando.
— Como foi a viagem, filho? — Leonardo pergunta, levando a mala
de Zayan até a escada.
— Deixa que eu levo isso, pai! — Zayan pega a alça das mãos do pai.
— Foi cansativa. A passageira que veio ao meu lado não parava de falar por
nenhum segundo. Eu saí do avião com ela tagarelando no meu ouvido. —
Ah, então era uma passageira do voo dele a menina que eu vi. — Onde
Dafne está?
— Na estufa — Nina diz.
— Bom, eu vou tomar um banho e já venho conversar melhor com
vocês. — Ele começa a subir as escadas com a mala em mãos.
— Eu vou com você! — anuncio, animada, e ouço a risada baixa de
Leonardo e Nina quando sigo Zayan.
Andamos pelo corredor até a porta do quarto e eu paro na frente dele,
impedindo Zayan de entrar.
— Qual o problema, pulguinha?
— Bom, eu não sei se você já sabe, mas vocês agora vão morar aqui.
— Sim, Nina me avisou.
— Eu assumi a tarefa de decorar seu quarto, sabe?
Ele morde os lábios, tentando conter a risada.
— Deixa eu ver o que você aprontou aí, pequena Moretti.
— Só para você saber, se quiser mudar algo, não te dou essa opção.
— Claro que não, criatura mimada.
Me viro e abro a porta. Nós entramos.
— Uau, um cenário que veio diretamente do universo Barbie Vida
Universitária! — ele diz com zombaria, deixando a mala de lado e olhando
ao nosso redor.
— Não está tão fofo assim.
— Parece que um unicórnio passou por aqui.
— Talvez eu seja um unicórnio fêmea.
— Olhando para esse quarto, não tenho dúvidas quanto a isso. Aquilo
é minha coleção de LEGO? Separado por cores? — Zayan não parece
muito satisfeito.
— Fica muito melhor assim — defendo meu trabalho.
— E o que é aquele bicho na prateleira do centro? — Ele se aproxima
das prateleiras para ver melhor.
— É um unicórnio. A nomeei de Lira Goretti. — Ele gargalha do meu
comentário.
— Por que eu sinto cheiro de tutti frutti misturado ao seu perfume? —
Zayan dá uma fungada no ar.
— É o novo cheiro do seu quarto.
— Você queria deixar sua marca, não é? — Sorri com divertimento.
— Óbvio, Zayan!
— Já marcou meu coração, pulguinha. — Vem até mim e segura
minha cintura, com a expressão alegre. — Uma marca eterna, se quer saber.
— Fico feliz de saber. Porque você também marcou o meu.
Beijo os lábios que senti tanta falta, sentindo uma euforia crescente
por finalmente tê-lo aqui, em meus braços, sabendo que nunca mais
deixarei ele ficar longe.
— Senhorita Kira, Dafne pediu para chamá-la. — Somos
interrompidos por uma batida na porta.
— Já estou indo, Nicoletta — respondo à empregada. — Te espero lá
embaixo, lindo.
— Você vai aprontar mais alguma coisa lá embaixo? — Zayan me
encara desconfiado.
— Não. É só mais uma aula de culinária que sua avó está me
oferecendo.
— Aulas de culinária? — Eu confirmo com um menear de cabeça e
ele ri.
Eu me viro e acompanho Nicoletta até a cozinha.
Zayan
O que aconteceu,
meu amor?
Kira
Não enche, Zayan.
Zayan
Só queria saber para
cuidar de você.
Kira
Não se faça de sonso.
Zayan
Amor, estou preocupado.
Kira
Quando maltratou meu
pobre rabo com tapas,
não pareceu muito preocupado.
Não consigo evitar minha risada. Olho para o lado e ela me encara
com olhos assassinos.
Zayan
Foram poucos tapas.
Kira
Foram tapas fortes.
Zayan
Não pareceu se importar
na hora.
Kira
E eu estava raciocinando
na hora? Estava no meu estado
de lucidez?
Zayan
Perdão, linda.
Não farei de novo.
Kira
Não farei de novo??
Vou fingir que não li isso.
Zayan
Mas você está com dor.
Não quero te ver com dor.
Kira
Não estou com dor nenhuma.
Está tudo ótimo.
Analgésico resolve.
Zayan
Você é doida.
Kira
Não sou eu que namora
a garota que me deu um tapa.
Zayan
Somos doidos.
Kira
Nos amamos.
Amor é isso.
Meus pés protestam depois de andar um dia inteiro com uma coroa na
cabeça, sendo atingida por tinta e farinha[35]. Bebi três shots de vodca antes
de ler o texto do pergaminho e bebi mais algumas coisas que me deram pelo
caminho.
— Você está adorável, linda. — Zayan segura uma mecha do meu
cabelo, endurecida pela mistura de tinta e farinha.
— Você também não está nada mal. — Tento limpar uma mancha
branca que ele tem no rosto, mas isso só piora a bagunça.
— Meu pai já está esperando a gente. Vamos?
— Como vamos entrar no carro nesse estado, Zay?
— Vamos dar um jeito, pulce.
Ele segura minha mão e caminhamos de volta para o estacionamento
da universidade. Leonardo nos espera com um sorriso de satisfação.
— É uma bagunça e tanta. — Ele ri.
E eu fico feliz por o ver assim. Não foi fácil para Leonardo lidar com
toda verdade sobre o filho. A depressão o assolou. Mas ele tem se tratado,
feito terapia e se recuperado.
E por isso, hoje é capaz de sorrir pela conquista do filho mais novo.
Ainda vai levar um tempo para que ele se cure por inteiro, mas é um dia de
cada vez.
— Eu estou bonito assim? — Zayan faz graça, apontando para a
sujeira das roupas.
— Está sempre lindo, limãozinho.
— Um primor, meu filho. Agora vamos, temos uma festa nos
esperando.
A porta de trás é aberta e vejo que os bancos estão cobertos por
toalhas. Me sento e Zayan se coloca ao meu lado. Vamos pelo caminho até
a casa de Dafne contando sobre nossa apresentação, sobre as brincadeiras e
sobre uma das tardes mais felizes das nossas vidas.
Nós chegamos à casa dos Castellis, onde acontecerá a festa, e um
pequeno desespero começa a me tomar quando vejo Aisha e Dante parados
na entrada.
— Zayan, acho melhor ficarmos no carro.
Ele acompanha a direção do meu olhar.
— Sim, também acho.
— Sem essa, crianças — Leonardo diz antes de rir com maldade.
— Zayan...
— Kira...
— Vamos andando. — Leonardo destranca a porta e sai. Vem até nós
e abre nossa porta, esperando um movimento nosso.
— Só nos resta correr, pulguinha. O mais rápido que conseguir —
Zayan sussurra.
Acato a sugestão dele e saio como um raio do carro. Mas antes de
chegar à entrada, sinto algo atingir minhas costas.
— Não! — Tento alcançar com o braço o ponto onde a coisa
gosmenta escorre, e quando entendo o que é, me viro para xingar a pessoa
que me atacou. — Antônio! Ovo?
Ele está com uma caixa de ovos nas mãos. O bastardo sorri, antes de
pegar mais um e mirar em mim. Tudo que faço é fechar os olhos, esticar o
braço e tentar me proteger. No entanto, não sinto nenhum golpe. Abro os
olhos e minha armadura humana sorri para mim.
— Eu te protejo, pulguinha — Zayan diz.
— Não tem como proteger sempre, Zayan! — Aisha berra e dessa vez
eu sou novamente atingida.
— Aisha, eu vou feder... — Outro ovo vem do meu irmão.
E mais um e outro. E em pouco tempo, eu e Zayan somos uma meleca
de ovos, sem chance de escapar do ataque.
— Está faltando algo. — Ouço a voz da minha mãe, e quando me viro
para protestar, uma chuva de farinha atinge nós dois. — Agora sim.
Cuspo todo o pó que está em minha boca e limpo os olhos, tentando
enxergar de novo.
— Sorriam, meninos. — Nina aparece com o celular na mão. Coloco
um sorriso fingido no rosto, que se vai no instante em que Zayan me abraça,
espalhando toda meleca.
— Zayan! — protesto, mas ele não se afasta. Continua a esfregar o
corpo em mim, até eu desistir da repreensão e começar a espalhar a bagunça
que cobre o corpo dele, rindo.
Quando já estamos suficientemente nojentos e sujos, somos liberados
para nos limpar na mangueira que fica do lado de fora da casa. Tiramos o
que conseguimos, antes de nos enrolar em uma toalha e subir para tomar
banho.
Fico quase uma hora debaixo do chuveiro, esfregando o cabelo,
tentando tirar toda bagunça que se formou. Quando já usei um vidro de
xampu, me dou por satisfeita. Confiro se nenhuma gota de tinta que
Carmela jogou em mim mais cedo ficou, antes de desligar a água e sair para
o quarto de hóspedes da casa.
Meu vestido rosa já está na cama. Mas antes de vestir, seco meu
cabelo e faço uma maquiagem bem elaborada.
Pego o vestido e coloco no corpo. Vou até o espelho e sorrio. É um
modelo lindo, com a parte superior corset, mangas ombro a ombro e a saia
solta que vai até as minhas coxas.
— Linda. — Olho para trás e Aisha caminha até mim com um sorriso.
— A porta estava aberta.
— Tudo bem, pode entrar.
— Quer tranças? — Ela aponta para o meu cabelo e eu aceno que
sim.
Caminho até a cama e me sento. Ela pega alguns itens que estão na
penteadeira, antes de vir até mim e começar a mexer no cabelo.
— Então... — começo um assunto. — Vai dizer porque você e meu
irmão estão agindo estranho ultimamente?
Notei isso há algum tempo. Dante e Aisha têm estado distantes em
alguns momentos. Somem de repente. A preocupação não deixa por nada o
semblante deles. Até mesmo o desânimo parece acompanhá-los. E depois
reaparecem alegres, animados. O humor tem oscilado. As aparições são
cada vez menos frequentes.
— Já disse, Kira. Estamos organizando...
— As coisas do casamento — completo a fala dela. — Já disseram
isso tantas vezes. E, ainda assim, ninguém acredita nessa desculpa.
— Não acreditam porque ficam criando fantasias na cabeça fértil de
vocês — ela se defende.
— Diz só uma coisa. Vocês vão demorar a revelar esse mistério?
— Não tem mistério, Kira.
— Você quer que eu busque meu irmão e conte como eu sei que tem
algo acontecendo? Ele sabe que eu sei. — Ela não diz nada. Fica um longo
minuto em silêncio, então eu continuo: — O olhar dele fica vidrado com
frequência, e nesses momentos ele sorri, como se tivesse se lembrado de
algo muito bom ou estivesse fantasiando um cenário alegre. E quando ele
volta para a realidade, a preocupação o consome. Ele tem pedido mais
abraços de consolo. Tem me feito perguntas nunca feitas antes sobre
psicologia. Ele está irritantemente grudado em você, mais do que esteve nos
últimos meses. Se quiser, eu continuo.
Mais silêncio. Até que ela finalmente suspira.
— Vocês dois são bons nisso — diz, derrotada. — Em breve vamos
poder falar sobre o que está acontecendo. Muito em breve.
— Tudo bem. Vou aguardar. E espero que não tenha acontecido nada
grave.
— Não, não é. É... Não tenho palavras, Kira. Eu só sei que tinha que
acontecer. — A voz dela é carregada de emoção. — Pronto. Veja o que
achou.
Vou até a penteadeira e fico maravilhada com o penteado. Há duas
tranças, uma em cada lado do cabelo, moldadas com perfeição.
— Obrigada, cunhada. — Caminho até Aisha e puxo-a para um
abraço. — E se precisarem de qualquer coisa, estarei aqui.
— Até fevereiro — ela diz, chorosa.
— Até fevereiro.
— Não acredito que vai para a minha terra. Vou montar todo um
itinerário de todos os lugares que tem que visitar em São Paulo.
— Mas Zayan e eu vamos para Mina... Como se diz?
— Minas Gerais. Mas vocês terão férias, poderão visitar muitos
lugares. Precisam visitar. Tem praias lindas no Nordeste do país. Promete
que vai explorar o que conseguirem do Brasil?
— Prometo que vamos tentar.
— E venham para o casamento, viu?
— Não precisa nem falar! Nós estaremos aqui, ruiva.
— Agora vamos descer. As pessoas estão esperando por você.
— Vamos! — Dou a mão a ela e descemos as escadas juntas.
Saímos para o jardim e caminhamos até a área gramada que foi
transformada em um espaço para evento. Há uma pista improvisada e mesas
e cadeiras espalhadas, já ocupadas com alguns convidados.
— Ela é toda sua, Zay. — Aisha desfaz nosso toque e se afasta
quando meu namorado vem até mim.
Lindo. Blusa e calça social. Dois botões abertos. Delicioso. O
piercing na orelha brilha com a luz. O sorriso de quem sabe que é gostoso
faz meu coração palpitar. Ele segura minha mão e me faz girar. Quando
paro de frente a ele, Zayan segura minha cintura e me puxa para perto.
— Perfeita. Meu coração está acelerado nesse momento, porque eu
acabei de gravar em minha memória a imagem mais esplêndida que meus
olhos tiveram o prazer de apreciar.
— Bobo. — Mas ainda assim deslizo a mão pelo peitoral dele, até
alcançar a região do peito direto, e constato que algo ali pulsa feliz e
descompassado. Troco minha mão pelo ouvido e ouço o som lindo das
batidas do coração dele. Suspiro, sentindo meu próprio coração expandir
para caber um pouco mais do amor que sinto por esse garoto. — Te amo
tanto, Zayzay. Você é meu encontro eterno, meu amor. Sempre vou procurar
por você no fim do dia.
— Também amo muito você, pequena Moretti. E sempre estarei te
esperando no fim do dia.
Ergo o olhar e encaro os olhos castanhos por alguns segundos, antes
de fechar as pálpebras e tocar meus lábios com suavidade e carinho nos
lábios dele.
Meu Zayzay. Hoje e sempre.
Eu danço. Pulo. Abraço as pessoas que amo e celebro. Meus amigos e
minha família, estão todos aqui. Os amigos e a família de Zayan, estão
todos aqui. E eu estou completa. Transbordo felicidade e me sinto nas
nuvens. Hoje é um ótimo dia. Hoje é um dia perfeito.
— Kiki! Eu amo você demais! — Carmela me abraça apertado. Está
bêbada, mas continua linda e adorável.
— Também amo você, Mel. Você já conheceu minha amiga Aisha,
minha amiga Cecília e minha amiga Anita? — Aponto para o trio que dança
no meio da pista.
— Eu conheci. Elas são lindas. Mas, Kiki, eu sou sua melhor amiga,
não sou?
— Sim, ciumenta. Você é minha melhor amiga. — Beijo a bochecha
dela.
— Carmela, vem dançar, bebê. — Santino puxa ela, que vai para os
braços dele rindo. Beija os lábios dele antes de ser guiada por ele para a
dança.
— Então eles estão juntos mesmo. — Zayan me abraça por trás e
beija meu pescoço.
— Sim. E aqueles dois ali? — Aponto para Marco e Matteo, que
balançam juntos, abraçados, sorrindo um para o outro.
— Sim.
— E a família de Marco? — questiono.
— Ainda não aceitou. Mas eles não têm que validar a relação dos
dois, certo?
— Não. Mas imagino que seja difícil para ele.
— E é, mas ele vai superar. Ele está feliz. Muito feliz. E isso é o que
importa no fim.
— Sim — suspiro. Me viro e fico de frente para ele, abraçando a nuca
de Zayan. — Zay, estou aqui pensando...
— Sim?
— Sabia que você fez uma promessa hoje cedo?
Ele tenta conter o sorriso.
— Fiz?
— Acho que sim.
— Então tenho que cumprir, pulguinha.
— É bom que cumpra, porque me preparei para isso.
— Preparou? Como?
— Obrigada por nos trazer, irmão. — Abraço Dante mais uma vez,
segurando a vontade de chorar.
Zayan está afastado, me esperando, enquanto me despeço dele.
Já chorei o suficiente depois de me despedir de todos eles. Quase
desisti quando parei no apartamento de Dante e Aisha hoje. Mas eu e Zayan
sonhamos dia e noite com essa viagem. São dois anos. Passarão voando. E
então estarei de volta.
— Não precisa agradecer. Apenas aproveite tudo que puder e volte
logo para nós.
— E a previsão para a festa de casamento?
— Seis meses. Se tudo der certo.
— Não deixem de pedir ajuda.
— Eu sei, irmã. Vamos ficar bem.
— É, eu sei.
Depois do anúncio que ele e Aisha fizeram, tudo que eu faço é querer
cuidar deles, mesmo sabendo que eles não precisam, que eles têm tudo sob
controle e que eles são duas pessoas maduras e responsáveis. Ainda assim,
cuidado é tudo que posso oferecer a eles, minha família, enquanto estiver
longe.
— Promete fazer uma videochamada todos os dias?
— Vou tentar.
— Dante, por favor!
— Vou tentar, irmã. Prometo dar o meu melhor.
— Tudo bem. Mas eu vou mandar inúmeras fotos, e é bom que você
faça o mesmo.
— Fotos eu prometo mandar.
— Vou sentir falta de vocês. — Engulo o bolo em minha garganta.
— Nós vamos sentir muita falta de você também, princesa. Estaremos
te esperando.
— Nós vamos vir para o casamento.
— Claro que sim, ou eu mesmo vou buscar vocês!
— Agora eu tenho que ir.
— Pode ir.
Mas não vou ainda. Preciso de algo. Não consigo pedir. Ele abre os
braços e faz o pedido por mim. Eu me aconchego no abraço dele, já
depositando nessa nossa troca a saudade imensa que sentirei.
— Amo você, irmão.
— Amo você, irmã.
Me afasto e caminho até Zayan, que segura minha mão livre.
— Cuida dela — Dante pede, se direcionando para o meu namorado.
— Eu vou cuidar — Zayan responde em tom de promessa antes de
nos conduzir para o balcão da companhia aérea.
Despachamos nossa bagagem e vamos em direção aos portões de
embarque para voos internacionais.
Nos sentamos em um banco próximo ao nosso portão e esperamos.
— Está triste, pulguinha? — Ele abraça meus ombros e me puxa para
perto.
— Um pouco. Vou sentir falta deles.
— Eu também.
— Mas estou feliz também. E animada, Zayzay. Vai ser incrível!
— Já está sendo, amor. — Ele coloca uma mecha do meu cabelo atrás
da orelha. Ergo o olhar e vejo aquele brilho nos olhos castanhos que me
derrete sempre e faz meu coração pular alegre.
Zayan Castelli faz meu coração bater feliz.
Zayan, que há um ano levou um tapa meu.
Zayan, que jurou que me faria odiá-lo e falhou miseravelmente na
missão.
Zayan, que me encantou quando se permitiu ser por inteiro meu e que
mesmo com as falhas e tropeços, me fez amá-lo tão puramente.
Em Zayan eu me encontrei. E em mim Zayan se encontrou. E esse é
só o início do caminho que eu e ele ainda vamos nos encontrar muitas
vezes.
Olhos nos olhos.
Eu vejo você, amor.
E você me vê.
— Amo você, pulguinha.
— Amo você, Zayzay.
— Para sempre.
Para sempre.
DOIS ANOS DEPOIS
Algumas coisas não mudam. Não importa quantos anos passam, não
importa se você passou por um processo de autoconhecimento e tomou uma
rota diferente.
Algumas coisas simplesmente não mudam.
Como a capacidade dessa garota de me irritar profundamente.
— Não — respondo ainda com a voz rouca e um sono do caralho.
Faz uma semana que estamos nos despedindo de todas as pessoas que
conhecemos e criamos laços no Brasil. Todas elas fizeram questão de
celebrar nossa conquista e dizer adeus do jeito mais brasileiro possível:
cerveja gelada, churrasco e música. Foi ótimo quando estávamos nos
divertindo, mas agora eu tenho que lidar com uma ressaca prolongada de
horas, antes de pegar o voo de volta.
E para piorar, estou encarando esse ser humano que esbanja um
excelente humor e uma aparência impecável, que me acordou do meu sono
profundo para fazer um pedido que segundo ela é de extrema necessidade.
— Por favor! — As palmas das mãos estão unidas e há um biquinho
no rosto lindo dela.
— Kira, eu só precisava dormir pelas próximas duas horas. —
Esfrego os olhos, que estão irritados de sono.
— Mas olha o estado disso aqui. Está horrível! — Abre os dez dedos
das mãos e quase enfia as unhas nos meus olhos, para provar o argumento.
— Preciso que faça minhas unhas, Zayzay. Não posso chegar na Itália com
elas assim — diz manhosa.
— Eu ainda não consigo acreditar que você me acordou às seis da
manhã, quando eu podia dormir algumas horas a mais, para me pedir para
fazer as suas unhas, Kira. — Vou até o banheiro do apartamento que
dividimos nesses dois anos, tentando despertar meu corpo, que parece
implorar para que eu volte para a cama.
— Então você vai fazer? — questiona antes que eu feche a porta.
Cinco minutos depois eu saio do banheiro, e ela ainda me aguarda
com aqueles olhinhos pidões na minha direção.
— Vou fazer, criatura mimada! — Caminho até a sala e ela vem atrás
de mim, saltitando, com o kit para unhas na mão. — Qual é a cor?
— Rosa.
— Claro que é. — Pego o esmalte, a lixa e todos os demais itens e
começo meu trabalho.
Esse foi o voo mais longo da minha vida e acredito que a sensação de
que ele se prolongou tanto seja por conta da nossa ansiedade ao finalmente
estar de volta para nosso lar.
Viemos para Itália apenas uma vez, seis meses depois de ter chegado
ao Brasil. Não poderíamos deixar de vir para o casamento.
Depois disso, não conseguimos mais voltar, porque nossas
responsabilidades começaram a crescer e tentamos conciliar os estudos com
nosso desejo de conhecer todos os cantos do Brasil. Visitamos lugares
lindos em nosso tempo livre, mas isso significou abrir mão de vir para cá.
Nós perdemos alguns momentos, e por vezes ficamos tristes por
estarmos ausentes.
Mas hoje estamos de volta e o nervosismo me toma de assalto.
Quero abraçar Nina, meu pai e Dafne. E rever toda a família
Campello, os Morettis e os Salvatores.
Como será que estão todos eles? Será que sentem nossa falta? Esse
avião ainda demora a pousar?
Poucos minutos se passam até que o capitão da aeronave anuncia que
pousaremos, e eu sinto meu coração acelerar.
— Eu nem acredito que estamos de volta! — Kira ostenta um sorriso
enorme no rosto desde que saímos da Espanha, nossa última escala.
— Eu sei. Nós estamos de volta, pulguinha. — Balança as pernas
animada.
Pousamos em solo italiano e pegamos nossa bagagem de mão,
agitados, ansiando por sair logo em direção ao nosso lar.
Seguimos a fila de passageiros impacientes, vamos até a esteira de
bagagens afoitos, e quando finalmente saímos de mãos dadas pelos portões
de desembarque, sinto meu peito expandir e meu espírito se acalentar.
Quase corro na direção do meu pai, largando a mala de lado quando o
puxo para um abraço apertado, enquanto Nina recebe Kira.
Nos braços de Leonardo Castelli, uma sensação calma e lúcida
começa a se apossar de mim, quando pouco a pouco, vou tomando
consciência de que aqui e agora, depois de alguns poucos anos afastados,
nós começamos a reescrever nossa história.
Ele teve o tempo dele para se curar e eu tive meu tempo para
amadurecer e crescer longe dele. E era necessário para nós dois. Para que
pudéssemos deixar o passado no passado e criar novos laços, maduros e
firmes.
— Senti sua falta, pai. — Minha voz é embargada pelo choro de
alívio que me toma.
— Também senti a sua, bambino[36]. Muito.
Nos afastamos e ele segura meu rosto, dando tapas leves antes de
enxugar minhas lágrimas.
— Venha cá, Zayan. Também quero um abraço desses. Largue um
pouco do seu pai — Dafne pede e eu sorrio, antes de me virar para ela e
atender seu pedido.
Fico no abraço dela por longos minutos, antes de ser puxado por
Nina, que também reivindica meu carinho. Ofereço, mesmo sabendo que
ainda não é o suficiente para cessar toda a falta que eles fizeram. Mas
teremos tempo. Muito tempo.
— Vamos, Kira tem que ver a família. — Nina se afasta, limpando o
rosto vermelho de choro. Vai até minha namorada e abraça os ombros dela,
consolando Kira, que também está em prantos.
É um pranto de alívio e alegria, e eu entendo minha Barbie.
— Vamos, querida. Hoje a mansão Campello nos aguarda.
Caminhamos com minha família até o carro.
Somos recebidos com muito entusiasmo por todos nossos amigos e
família. Choramos mais uma vez quando encontramos todos reunidos,
felizes com nosso retorno, esbanjando afeto e entusiasmo.
Passamos a tarde narrando sobre tudo que conseguimos, matando a
saudade de todos.
É bom descobrir o mundo.
Mas não tem nada melhor do que estar de volta ao nosso lar. Um lar
renovado, maior e, ainda assim, cheio de amor.
UM ANO DEPOIS
[1]
Vá se foder.
[2]
Boa noite.
[3]
Vamos.
[4]
Merda!
[5]
Coquetel habitualmente consumido na Itália, feito com prosecco, água com gás e
Aperal.
[6]
Ah, qual é?!
[7]
Refere-se à princesa de gelo da animação Frozen.
[8]
Papai.
[9]
Avó.
[10]
Pulga, em italiano.
[11]
Oi.
[12]
Irmã.
[13]
Filha.
[14]
Filme de animação do estúdio de animações Pixar.
[15]
Sequência de jogadas do jogo de vôlei, que começa no saque e termina quando o ponto é
feito.
[16]
Set de desempate disputado quando as duas equipes vencem dois sets.
[17]
Personagem do filme O Grinch, conhecido por ser rabugento.
[18]
Espera...
[19]
Nesse sentido, “escuta”.
[20]
Deus.
[21]
Obrigado.
[22]
Nada.
[23]
Irmão .
[24]
Bem...
[25]
Eu?
[26]
Vamos, pulga.
[27]
Oi, prazer em conhecer.
[28]
Por favor.
[29]
Estou fora de mim, mas sou diferente deles
E você está fora de si, mas é diferente deles.
[30]
As pessoas falam, infelizmente
Falam, não sabem sobre o que falam
Me leve até onde eu flutue
Pois aqui me falta ar.
[31]
Nós somos diferentes deles.
[32]
A maioria das graduações na Itália dura três anos.
[33]
Idiota.
[34]
Pergaminho. Na Itália, quando se forma, existe uma tradição em que os amigos do formando
escrevem um poema em forma de trava-língua em um pergaminho e o formando tem que ler em voz
alta sem errar. Para cada erro, ele deve beber e recomeçar a leitura.
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Diferente do Brasil, na Itália são os formandos que recebem um “trote”. Pode ser algo como
andar fantasiado pelas ruas, ter fotos espalhadas pela cidade ou jogam tinta e farinha no formando.
[36]
Garoto.