Encontro de Dois - (Spin-Off Da - Mariana Silva

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Copyright © 2023 MARIANA SILVA

Todos os direitos reservados

Os personagens e eventos retratados neste livro são ficcionais. Qualquer


semelhança com pessoas ou eventos reais, é coincidência e não foi
pretendido pela autora.
Este e-book ou qualquer parte dele não pode ser reproduzido ou usado de
forma alguma sem autorização expressa, por escrito, da autora. A violação
desses direitos autorais prevê sanções descritas na Lei nº 9.610/98.
Texto revisado de acordo com o acordo ortográfico da Língua Portuguesa.

Revisão: Gramaticalizando – Assessoria Literária


Capa: @larijandredesign
Diagramação: April Kroes
Ilustrações: @jayanarte e @nyastellar

ENCONTRO DE DOIS, Spin-Off da Série Vinícola Campello, Livro Único


– Mariana Silva, 1ª Ed. 2023
Sumário
Sinopse
Nota da autora
Avisos
Playlist
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Epílogo
Agradecimentos
Outras obras
“Eu fiz um excelente trabalho, não acha? Para que você me
odiasse?”
Durante o primeiro semestre de seu curso, Kira Moretti se empenhou
arduamente para alcançar o posto de melhor aluna da sala. A garota
destemida e atrevida nunca havia enfrentado um competidor à altura.
Até ele aparecer.
Zayan Castelli carrega um passado doloroso a sete chaves e nunca foi
capaz de mostrar suas vulnerabilidades para ninguém.
O jovem irritadiço e dono de uma mente brilhante assumiu uma única
missão quando pousou os olhos em Kira: a faria provar o mais puro
desprezo e ela aprenderia a odiá-lo dia e noite, enquanto os dois
disputassem o posto de aluno número um da turma de psicologia da
Universidade de Florença.
Kira nunca soube o que fez Zayan oferecer apenas rancor, mas
aceitou prontamente entrar nesse campo de batalha.
Um acordo silencioso foi feito, uma guerra estrondosa foi travada, e
cada vez mais eles provaram um ao outro como poderiam se odiar
profundamente.
Até que um dia a situação saiu do controle.
Um tapa. Uma detenção. E vários segredos prestes a serem revelados.
A receita perfeita para o caos.
O que acontece quando duas pessoas que se detestam são forçadas a
trabalharem juntas?
É verdade que o amor e o ódio andam de mãos dadas?
O que esperar do encontro de dois corações machucados? O caos? Ou
finalmente a calmaria?
Haters to lovers | Grumpy x sunshine | Ele se apaixona primeiro |
Romance universitário
Escrever, para mim, significa liberdade. Quando eu abro meu coração
para dar vazão às palavras que vão criar uma história, eu sou mais eu do
que em qualquer outro momento da minha vida. Eu me sinto mais livre.
Então saiba que quando eu entrego uma história para você, estou
entregando também parte do meu coração e de mim. E aqui, em Encontro
de dois, há muito mais da minha vulnerabilidade do que eu jamais imaginei
colocar em um livro.
Kira já havia conversado comigo antes. Porém, ela não disse mais
nada por um tempo, e acho que ela estava tentando proteger Zayan. Então
eu pedi para que ele confiasse em mim, e ele confiou. E eu o abracei e o
ouvi. E finalmente entendi porque ele hesitou.
Zay e Kiki, espero ter conseguido contar a história de vocês da forma
como ela merece ser contada. Saibam que me apaixonar por vocês foi
inevitável.
E espero que você, que agora mergulha na narrativa de Kira e Zayan,
também se apaixone. Eles NÃO SÃO perfeitos, entenda isso. Vão errar, e é
importante lembrar que, como vocês, eles são humanos e têm esse direito.
Se entregue de coração ao romance deles e se permita sentir todas as
emoções que esse livro desperta. Eu entendo todas. Eu senti todas.
Boa leitura!
Dedico esse livro a quem sonhava encontrar
o amor em alguém que fosse seu fã número
um e acabou quebrando a cara. Talvez sua
alma gêmea seja, na verdade, seu hater
número um. E talvez tudo que você precise
seja perder a linha com ele.
Encontro de dois é um livro de romance erótico destinado a pessoas
com mais de 18 anos.
O livro contém: linguagem de baixo calão, cenas de sexo explícitas e
gráficas, uso de drogas lícitas e sexo sem uso de preservativo.
Além disso, o livro pode possuir gatilhos para: tentativa de estupro,
violência física, psicológica e verbal, abuso sexual e violência doméstica.
Nenhum comportamento nesse livro é incentivado.
Esse livro é um spin-off da série Vinícola Campello. Não é necessária
a leitura do primeiro livro da série para acompanhar a história de Encontro
de Dois, mas ele possui spoilers de Vinhos e Vinagre, livro que deu início a
série.
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Tem alguma coisa sobre debates que desperta o pior em mim. Eu me
empenho, dou meu sangue e entro para ganhar. Uso de todos os artifícios e
não sou misericordiosa com alunos preguiçosos que não movem um
centímetro para alcançar um nível de excelência dentro da universidade.
Talvez eu tenha aprendido isso com meu irmão. Dante é competitivo
de nascença. E foi com ele também que aprendi que não existe “o
importante é competir”. De acordo com Dante, só se entra em uma arena
para ganhar.
Pode ser que eu tenha levado a sede por vitória a sério demais.
E por isso eu jamais admitiria uma derrota em um debate.
Não admitiria uma derrota para um homem.
E eu, especialmente, não admitiria uma derrota para ele.
Meu inimigo número um.
— Kira, não faça isso!
Ignoro o aviso de Carmela e o alcanço. Ele está parado no meio de
uma roda de alunos, no corredor do prédio, conversando e rindo
abertamente, provavelmente da minha derrota. Ele não perderia a
oportunidade de colocar meu nome naquela boca imunda.
Cutuco o ombro dele com irritação. Ele se vira. Me avalia dos pés à
cabeça, e quando para os olhos nos meus, sorri. Deve estar vibrando por
dentro, repassando meu fracasso em sua mente brilhante.
Odeio que a mente dele seja brilhante. Odeio!
— Posso ajudar, linda?
Minhas palmas coçam pela vontade que sinto de agredi-lo.
— Eu só quero dizer que seu argumento foi medíocre e que você e
Freud se merecem. Dois machos reprimidos e de pau pequeno, resumindo
suas existências a odiar mulheres.
— Vigia a boca. — Ele aproxima o rosto do meu e me encara. Está
me desafiando. Ele sabe que nunca fujo de um desafio feito por ele.
— Kira, vamos embora. — Carmela segura meu braço e tenta me
puxar para longe, mas o ódio me mantém estática no lugar.
Noto que um grupo de pessoas começa a se formar ao nosso redor.
Curiosos param para entender a origem e os rumos da discussão. Estão
ávidos para assistir o espetáculo que protagonizamos.
— Você faz por merecer toda essa frustração sexual — provoco.
— Você fala como se alguém quisesse te levar para a cama — rebate,
sorrindo com escárnio. Esse bastardo!
A pequena multidão não hesita em soltar murmúrios e assobios
baixos. Alunos saem das salas para o corredor, aumentando nossa plateia.
— Atrás de você tem uma fila enorme. — Não recuo.
— Eu nunca me submeteria a essa tortura. — Ele também não.
— Vaffanculo[1].
— Vai você.
— Babaca.
— Bebê chorão.
— Freudiano de merda.
— Maslowista incompreendida.
— Virgem reprimido.
— Está aí uma ofensa que eu não posso usar contra você, já que todo
mundo sabe quem se enfiou...
Ele não termina a frase, porque no segundo seguinte minha mão
atinge o rosto dele.
A ardência se espalha na minha palma. Queima. Assim como meus
olhos, que lutam para impedir toda maldita lágrima que queira descer. Meu
peito sobe e desce, descompassado pela descarga de adrenalina recente.
O silêncio se instaura ao nosso redor.
Ele alisa o rosto e me encara. Os olhos castanhos dele se arregalam,
surpresos.
Meu coração acelera de pavor quando percebo o que acabei de fazer.
Meu cérebro começa a processar a inconsequência do meu ato enquanto
tento controlar minha respiração.
Estou petrificada no lugar, sem que meu corpo reaja por estar tomado
pelo choque. A mão de Carmela, ao redor do meu punho, se fecha com mais
força, e minha melhor amiga nos afasta das pessoas.
Provavelmente está tentando me proteger. Mas é uma tentativa
fracassada.
Porque no meio da multidão que se formou há vários celulares
empunhados.
E um vídeo é feito.
E ele se espalha.
Até chegar à reitoria.
Meus pés batem ansiosamente no chão e meus braços se mantêm
cruzados na frente do corpo. O olhar do reitor sobre mim é penetrante. Mas
a repreensão dele não me assusta em nada, já que minha mãe está nessa
mesma sala, sentada ao meu lado, sustentando uma postura serena que
tenho certeza que não condiz com o real sentimento de Martina Moretti.
Quase posso sentir a ira dela me atingir como pontas de facas afiadas.
— Só posso dizer que estou tão surpresa quanto o senhor,
excelentíssimo reitor. — Excelentíssimo reitor? Sério, mãe? — Não é do
feitio de Kira agir como uma pessoa descontrolada.
— Sua filha agrediu um de nossos alunos, senhora Moretti.
— Ele começou! — protesto. Esse babaca não pode sair impune!
— Kira! — Minha mãe aperta minha mão, me alertando. Encontro o
olhar dela, colérico, e me calo em resposta. — Tenho certeza de que
poderemos achar uma solução mais disciplinadora, e não punitiva. Kira é
uma excelente aluna, e posso garantir que isso não acontecerá nunca mais.
Eu não teria tanta certeza, mãe.
— Essa selvagem machucou o meu filho, reitor Mancini! — o pai do
babaca praticamente berra. Pelo canto de olho noto como ele se remexe
inquieto na cadeira ao lado.
— Pai... — O babaca abre a boca.
— Por que não ouvimos os envolvidos? — O reitor tenta intermediar
a situação. — Senhorita Kira, tem algo que queira dizer?
Um tapa não foi o suficiente para esse escroto. Ele pode ir à merda,
por mim. Pode arder no quinto dos infernos.
— Eu não farei isso de novo. Foi uma atitude impulsiva.
Zayan Castelli, o garoto que não soube manter a língua dentro da
boca e por isso levou um tapa meu, bufa ao meu lado, com incredulidade. E
ele está certo de reagir assim. Não deveria confiar mesmo no que eu digo.
— Isso não é suficiente para mim! — o pai de Zayan protesta,
elevando o tom de voz.
— O seu filho insultou minha filha, senhor Castelli. Até onde eu sei,
os dois têm culpa nisso — minha mãe diz em minha defesa.
— Meu filho não fez nada! Ele é inocente e vítima dessa doida que a
senhora colocou no mundo!
— Tenha respeito, senhor Castelli! — Martina começa a perder o
pouco de paciência que lhe resta.
— Senhor Castelli! Senhora Moretti! — O reitor eleva o tom de voz,
chamando a atenção dos dois severamente. — Basta! — Ele os adverte com
um olhar sério, e eles silenciam. — Kira foi imprudente e a atitude dela
seria suficiente para uma expulsão. Mas eu concordo com a senhora. A
academia deve ser disciplinadora, não punitiva. Não prosseguiremos com a
expulsão. Por enquanto — frisa as últimas palavras.
— Isso é inaceitável! — Leonardo Castelli, pai de Zayan, exclama.
— Senhor Castelli, todos os professores de Kira e Zayan podem lhe
garantir que seu filho não é inocente nessa história. Ambos têm os ânimos
um tanto quanto exaltados. — Ambos tentam estrangular um ao outro em
toda oportunidade que têm. É o que ele quis dizer.
E ele quis dizer também que todos nossos professores assistiram
nossos embates. Todos sabem o baixo nível que chegamos. E ninguém
interviu até que o pior acontecesse.
E o pior aconteceu.
Imagino que o reitor esteja assumindo sua parcela de
responsabilidade. Só por isso não me expulsará, o que eu devo admitir ser
um alívio enorme. Poderia dar adeus a qualquer chance de vaga em outra
universidade de renome se isso acontecesse.
— Ela não pode sair impune depois do que fez! — berra.
Caramba, alguém cala a boca desse velhote chato!
— Não estou dizendo que ela sairá impune. Ela irá ser punida, assim
como Zayan.
— Isso é um absurdo! — Aponta o dedo em riste no ar, gesticulando
nervosamente.
— Chega, pai! — Zayan rebate, nervoso. — O reitor está certo, eu
tenho culpa nisso tudo. E aceito a punição que o senhor impor, reitor
Mancini. — O velhote encara o filho contrariado, mas não diz mais nada.
— Bom, a primeira coisa que será imposta é que os dois estão
terminantemente proibidos de discutir, obviamente, ou sofrerão
consequências sérias. Todos os professores estão instruídos a intervir
quando qualquer diálogo entre vocês dois for longe demais. Respeitem seus
colegas e mestres. De acordo?
— Sim — murmuramos juntos.
Não direi que é uma tarefa fácil, já que Zayan me tira do sério apenas
por respirar o mesmo ar que eu.
— E a partir de amanhã, os dois irão cumprir horas de serviço
comunitário na biblioteca. Juntos.
— Como é? — Expresso minha indignação e minha mãe segura
minha mão mais uma vez, me lançando um olhar de alerta.
Já é impossível ter que assistir aulas com esse ser humano
desprezível, agora eu passarei horas na biblioteca com ele ao lado? Talvez a
expulsão não soe tão mal agora.
— Senhorita Kira, acho que entende que para a sua situação isso é
quase recompensador. — O reitor me encara com os olhos negros
penetrantes. — Até que o semestre letivo acabe, os dois estarão trabalhando
na biblioteca durante o turno vespertino. A partir da próxima segunda,
Angelina, a bibliotecária, os aguarda. Sem atrasos. Estão dispensados.
Todos vocês.
Nós quatro nos levantamos e saímos da sala. Caminho em silêncio
com minha mãe até a saída da sala, sem levantar o olhar para a família
Castelli. Tomamos o caminho oposto ao de Zayan e Leonardo assim que
saímos da reitoria. Ando com Martina até chegarmos ao estacionamento.
Nenhuma palavra é proferida por nós duas.
Entro no carro, e assim que coloco o cinto de segurança, o silêncio se
vai.
— Kira Moretti, por Deus do céu! O que eu fiz de errado nesta vida
para merecer tamanho castigo? Agressão, Kira? Quando foi que eu te
ensinei que essa era a melhor forma de resolver qualquer coisa?
— Mãe...
— Não terminei! — E isso quer dizer que ela vai passar o resto do
caminho falando, me repreendendo e dramatizando.
Eu me calo e ouço, porque não tenho outra opção.
Chegamos em casa, saímos do carro e caminhamos até a entrada sem
que Martina pare de falar por nenhum segundo. Sou poupada apenas
quando percebo que temos visita.
— Mãe? — Ah, como eu amo você, irmão! Ele está parado na sala de
estar e eu vou até ele.
— Dante, meu filho. O que está fazendo aqui? — Minha mãe
finalmente tira o foco de mim.
Dante abre os braços e eu me aconchego neles.
— Buonasera[2], princesa.
— Ei, irmão. Bom ver você. — Nos afastamos para que ele
cumprimente nossa mãe.
— Bom te ver, meu filho. Está tudo bem?
— Sim. Eu só vim ver vocês. E dar uma notícia. — O sorriso que
Dante abre faz eu mesma sorrir, mesmo que eu não tenha ideia do que esteja
acontecendo.
Os olhos dele brilham de uma forma que poderia iluminar toda
Florença. Sinto o peso do dia me abandonar e me permito ficar feliz pelo
meu irmão.
— Aisha? — questiono, fazendo-o suspirar.
Ah, o amor!
— Nós somos oficialmente namorados! — anuncia com empolgação.
— Ah, meu filho, que felicidade!
— Fala sério, você finalmente tomou coragem?
Eu e minha mãe falamos nossas frases juntas.
— Bom... — Ele coça a nuca, desconfortável. — Na verdade...
Hum... Foi ela que fez o pedido.
— Mentira! — Eu rio alto. — Você postergou isso por anos e ela te
pediu em namoro na primeira oportunidade? Minha cunhada te deu aula de
como ter atitude, irmão.
— Tem como ser mais direta, Kira? — ele rebate com acidez,
fechando a cara.
— Você sabe que estou certa. — Até porque Dante passou anos
amando a melhor amiga ruiva em silêncio, sem fazer nenhum movimento.
— Quer dividir com seu irmão os acontecimentos recentes, Kira? —
minha mãe corta nosso diálogo, fazendo meu bom humor se dissolver.
Martina cruza os braços na frente do corpo e aguarda, com o
semblante raivoso estampado em sua face.
— O que você aprontou dessa vez, princesa? — Meu irmão bagunça
meu cabelo, já se divertindo.
— Nada de mais.
— Sua irmã mais nova agrediu um aluno. Na primeira semana de
aula. No penúltimo semestre da faculdade dela!
— Kira! — Ele me encara incrédulo e vejo um toque de repreensão
em seu olhar. — Nunca imaginei que faria algo assim, irmã.
— Eu não sou disso, Dante. Sabe muito bem. Mas aquele infeliz sabe
tirar o pior de mim!
— Kira! — minha mãe censura. — Eu vou fazer o jantar. Você. —
Ela aponta para Dante. — Vê se coloca juízo nessa cabeça de vento. —
Aponta para mim, antes de sair em direção à cozinha.
Nos sentamos no sofá e ele acompanha com o olhar nossa mãe, até
que ela esteja fora do nosso campo de visão.
— Quem é o babaca? — Dante questiona assim que Martina está
longe o suficiente.
— Não vai me colocar juízo na cabeça?
— Você tem juízo — diz, jogando o corpo no encosto do móvel. —
Só é esquentadinha demais. Mas sei que se chegou a esse ponto, foi porque
ele fez algo de muito escroto.
— E fez.
— Então, o que ele fez de tão escroto?
— Não quero falar disso. — Engulo em seco, ignorando o bolo que se
forma em minha garganta. Zayan não mediu as palavras para falar comigo.
Ele não tinha o direito de fazer o que fez.
— Tudo bem, vou respeitar seu momento. Mas saiba que estarei aqui
quando quiser compartilhar.
— Eu sei — suspiro.
— Posso saber ao menos quem foi o felizardo?
— Zayan Castelli.
— Aquele babaca do caderno de anotações?
— Ele mesmo — resmungo.
É o início do segundo semestre da faculdade de psicologia. Caminho
com Carmela, minha melhor amiga, ao meu lado, e conversamos animadas
sobre as novas matérias e nossas expectativas.
Nós estamos distraídas quando entramos em sala e nos sentamos,
mas não distraídas o suficiente para não notar os novos alunos. Já
imaginei que teríamos gente nova na turma, porque nossa faculdade
costuma receber intercambistas, além de transferências.
Passeio o olhar sobre o ambiente, identificando os novatos, até que
um aluno específico me chama atenção.
O garoto está sentado com Marco, nosso colega de classe, duas
fileiras abaixo da nossa, ao lado direito. Está distraído e não percebe que o
encaro. Olhando assim, de perfil, noto como ele tem cada traço bem
desenhado. O nariz é reto e os lábios delineados, preenchidos e rosados.
Além disso, a orelha tem um piercing prata que o concede certo charme. As
sobrancelhas são grossas e o cabelo castanho e liso.
Como se percebesse meu escrutínio e quisesse me oferecer uma visão
melhor, ele gira o pescoço e avalia o ambiente, até que o olhar dele para
em mim.
Nossos olhares se cruzam por dois segundos, mas é o suficiente para
eu constatar que todos os detalhes dele são realmente muito bonitos e se
encaixam perfeitamente. Nosso breve momento é quebrado quando o
professor entra em sala e a atenção do novato se volta para ele.
Eu me livro dessa pequena distração, me endireitando na cadeira.
— Não pense que eu não vi — Carmela sussurra para que só eu
ouça.
— Não sei do que está falando. — Finjo inocência.
Abro meu caderno e me concentro em fazer anotações. Uma vez ou
outra, meu olhar se cruza com o do novato bonitinho, mas ele não deixa
nenhuma emoção transparecer.
O professor indica o fim da aula e Carmela e eu juntamos nossos
materiais e descemos em direção à saída. O novato está logo à minha
frente, na pequena fila que se forma no corredor de assentos, por isso ouço
o diálogo que ele estabelece com Marco.
— Cara, a faculdade que eu frequentava estava bem atrasada. Não
sei como vou acompanhar os professores desse semestre.
Tomo essa fala como uma oportunidade de me aproximar. Cutuco o
ombro dele, que olha para minha mão, para em seguida se virar e ficar na
minha frente.
A essa altura já estamos fora da sala.
— Desculpe, mas eu ouvi você falar sobre as matérias do semestre
passado. Eu tenho todo material e anotações antigas. Se você quiser, posso
te emprestar.
A atitude dele, na sequência, me pega desprevenida e me atordoa.
O novato passeia o olhar sobre mim, dos meus pés até a cabeça. Em
seguida, ele encara com curiosidade algo atrás do meu ombro. Penso em
olhar para trás e ver o que está acontecendo, mas ele finalmente responde,
com um sorriso de escárnio no rosto:
— Obrigado, projeto de Barbie, mas vou passar. Não acho que você
tenha algo de útil para me oferecer.
Eu fico sem reação, parada no lugar, absorvendo as palavras dele,
enquanto ele se vira e caminha para longe com o novo amigo.
Mas que porra acabou de acontecer aqui? Ele me dispensou e
menosprezou meu conhecimento sem sequer me conhecer?! Que bastardo
imbecil! Por mim, ele que se foda! Eu só estava querendo ajudar,
mauricinho de merda!
— O que foi isso? — minha amiga indaga próxima a mim. Sequer
notei que Carmela estava ao meu lado, assistindo a toda essa palhaçada.
— Eu não faço ideia, mas por mim ele pode se ferrar. — Pego a mão
dela e caminhamos no sentido oposto em que o imbecil foi, comigo decidida
a ignorá-lo pelo resto do curso.
Mas essa foi a missão mais difícil que eu assumi em vida. E foi
impossível de cumprir. Porque desde esse primeiro encontro desastroso,
Zayan e eu nos dedicamos com fervor a tornar a vida acadêmica um do
outro um verdadeiro inferno.
— Então você decidiu o odiar e agredi-lo porque ele dispensou suas
anotações? — Dante questiona, com um sorriso zombeteiro de canto.
— Claro que não! Eu estava decidida a fingir que ele não existia
depois daquele dia.
— E o que mudou?
— O primeiro debate veio. — Inspiro profundamente, controlando
minha ira pela lembrança.
— O que aconteceu no primeiro debate?
— Ele me retrucou até me fazer chorar. E eu perdi o debate.
— Você perdeu o debate? — Dante debocha.
— Perder faz parte da vida também, Dan. Aprenda. — Mostro a
língua.
— Não para nós. Imagino que deve ter ficado furiosa.
— Gostaria de ter cortado a língua dele fora.
— É disso que eu estou falando. — Ele ergue a mão e eu espalmo a
minha na dele. Nós dois rimos. — Então... O que aconteceu depois?
— Nunca mais perdi um debate ou tive uma nota menor que a dele.
Até semana passada, quando perdi meu segundo debate para ele.
— Desembucha — diz, quando me calo.
— Não consegui aceitar que tinha perdido. E fui atrás dele. Uma
coisa levou a outra e acabei dando um tapa na cara dele.
— E você não quer falar sobre a discussão, certo? — Aceno,
negando. — Tudo bem, não falaremos. Mas, e depois?
— Fizeram um vídeo da briga, que chegou até a reitoria. Achei que
seria expulsa, mas no fim terei apenas que cumprir horas de serviço
voluntário na biblioteca. Com Zayan.
— Isso é ótimo. Quem sabe vocês não se acertam? — Sorri maldoso.
— O máximo que pode acontecer é eu acertar outro tapa naquela fuça
maldita se ele vier de graça para o meu lado. — Meu comentário faz meu
irmão gargalhar abertamente.
— Se controle, irmã. E se o babaca precisar de uma lição, é só me
chamar.
— Ah, eu adoro o fato de ter um irmão superprotetor! — Sorrio, me
divertindo, e abraço a cintura dele. — Vou me comportar. Não posso
arriscar uma punição mais severa. Agora, andiamo[3]. Vamos atormentar
nossa mãe até que ela nos expulse da cozinha.
— Vamos! — Ele segura minha mão e nos conduz até o cômodo onde
Martina prepara o jantar.
— Estou decepcionada, Zayan! Que tipo de educação nós lhe
oferecemos para que se tornasse uma pessoa dada a brigas? Você está na
faculdade! Não consegue ter o mínimo de civilidade? — minha madrasta
esbraveja.
— Sim, Nina, eu tenho. Foi um erro que não irá se repetir —
murmuro, sabendo que isso não vai acalmá-la. Ela precisa extravasar.
Já faz meia hora que estou aqui, ouvindo o sermão da minha madrasta
sobre como me comportei feito um homem das cavernas e que eu deveria
respeitar minha colega de classe. Desde que se casou com meu pai, quando
eu tinha nove anos de idade, Nina é assim. Amorosa, carinhosa e atenta a
cada passo meu. Sempre tivemos uma boa relação e construímos um laço
bonito ao longo dos anos.
E é exatamente por isso que ela me repreende quando acha que deve.
Nina tem esse direito porque a respeito demais para isso, e então ouço
calado, porque não tenho escolha. Mas se ela conhecesse e convivesse por
cinco minutos com Kira Moretti, garanto que esse falatório todo iria por
água abaixo.
Aquela garota é insuportavelmente irritante até para Gianina, que é a
pessoa mais paciente e calma que conheço.
— Está me ouvindo, Zayan?
— Sim, Nina. — Seguro o suspiro de tédio.
— Ótimo! Então vamos lá.
— Lá onde?
— Ora, se me ouviu, então prestou atenção quando eu disse que
vamos comprar algo para a garota e você vai entregar a ela, junto com um
pedido de desculpas. — Ela já está com a bolsa a tiracolo, pegando as
chaves do carro no aparador do hall de entrada.
— Nina, como assim? A maluca me deu um tapa na cara! Por que eu
vou até ela me desculpar? Ainda por cima com um presente!
— Não ouviu nada do que eu disse, não é?! Você mesmo falou que
provocou a menina, que sempre discutia com ela.
— Ela me deu um tapa! Um tapa na cara! — exclamo, exaltado.
Aquela garota tem que ser mantida afastada de mim! Temos que ter
um limite de raio de distância que poderemos ficar próximos um do outro.
Quanto mais longe Kira estiver de mim, melhor para nós dois.
O que me faz pensar: que merda o reitor tinha na cabeça quando
decidiu que era uma boa ideia nos colocar para trabalhar juntos na
biblioteca?
— Zayan, não me faça repetir tudo que acabei de te falar! Nós vamos
comprar um presente para ela e você vai se desculpar!
— Você pode ir sozinha. Provavelmente eu compraria uma passagem
para bem longe de Florença, como presente para ela — respondo amargo, já
indo rumo às escadas.
— Vai pelo menos entregar o que eu comprar? — Nina grita quando
já estou no andar de cima.
— Sim! — grito, para que ela ouça. — Jamais — falo só para mim.
Caminho em direção ao quarto, disposto a me trancar lá pelo resto do
dia. Da semana, se possível.
— Se envolveu em briga, é? — Ouço a pergunta carregada de acidez
e sarcasmo quando tento passar despercebido pela porta do quarto dele.
Pondero por um momento se vale a pena ou não responder, ou se eu
deveria simplesmente ignorar. Mas ele não irá me conceder nenhum minuto
de paz até que eu me explique, então ofereço uma resposta curta:
— Sim. Nada de importante.
Não me viro para encará-lo. Apenas começo a caminhar para meu
quarto. Porém, ele não se dá por satisfeito.
— Quem foi o infeliz que cruzou seu caminho?
Encaro o teto, pedindo alguma ajuda divina para que arrume alguma
distração melhor para ele nesse exato instante.
Mas nada acontece.
— Kira.
Silêncio se faz. Ainda não arrisco me virar e olhar para ele.
Uma risada baixa e debochada escapa dele, antes de Lorenzzo dizer:
— Toma cuidado. Daqui a pouco aparece com um olho roxo.
— Certo. — Tento manter o tom de voz neutro.
Me afasto do quarto dele antes que essa conversa vire algo maior, e
caminho até o meu. No instante em que fecho a porta, sinto meus ombros
cederem. Passo a mão pela nuca, tentando desfazer a rigidez dos músculos
causada pela tensão que é estar perto dele.
Não deveria ser assim. Não deveríamos ter essa relação de merda.
Ele é meu irmão. Por que tem que ser tão complicado?
Entro na sala de jantar na manhã seguinte e todos já estão lá, tomando
café e conversando. Sento ao lado de Nina e começo a me servir em
silêncio.
— O presente da menina está no aparador. — Ela se vira para mim.
— Presente? Que presente? É aniversário de alguém? — meu pai
questiona, confuso.
— Ela comprou um presente para a agressora — comento com
sarcasmo.
— Nina, que absurdo! A menina deu um tapa... — Meu pai gesticula
com as mãos e eleva a voz, nervoso.
— Sim, sim. Eu entendi. Ela agrediu Zayan. Mas há diversas formas
de agressão, Leonardo. E você, como juiz, sabe muito bem disso. Agora me
diga, Zayan. Antes de receber o golpe, você estava elogiando a menina? Ou
magoou ela de alguma forma?
O pedaço de pão que engulo desce com o gosto amargo da resposta
para a pergunta que Nina fez. Não irei admitir em voz alta, porque ninguém
aqui precisa saber como fiz Kira chegar ao ponto que chegou.
Sim, eu a magoei. Atingi um ponto sensível e doloroso dela e fiz isso
com o propósito de desestabilizar a garota.
— O silêncio dele diz tudo — Nina fala depois de um tempo.
— Ainda assim, não é necessário um presente para a menina. Isso é
descabido! — meu pai protesta.
É um protesto em vão, e ele sabe muito bem disso. Leonardo Castelli
é juiz e tem poder de decisão da porta dessa casa para fora, mas, aqui
dentro, Nina tem a palavra final. Eles continuam discutindo sobre o
presente, mas não presto atenção.
Arrisco olhar de esguelha para Lorenzzo, que está com a expressão
neutra. O olhar dele não desvia de mim por nenhum segundo, mas ele não
entrega nenhuma emoção.

Nina ficou no meu encalço antes que eu saísse de casa, até que eu
colocasse a porcaria do presente dentro da mochila. Não duvido que, se
pudesse, ela me seguiria até a sala, apenas para garantir que o pacote será
entregue. Mas ela não pode, então eu tenho a oportunidade de jogar essa
merda no lixo e Kira nunca saberá que um dia um presente foi comprado. E
é o que farei no primeiro intervalo que eu tiver.
Noto os olhares curiosos na minha direção quando caminho em
direção à sala, mas não dou atenção para essa gente fofoqueira.
Para Kira tem sido pior, mas ainda assim tenho uma quota de
holofotes sobre minha cabeça desde o incidente. Alguns engraçadinhos
fazem piada, outros querem demonstrar compaixão, e eu estou de saco
cheio de todos.
Estou prestes a colocar meus fones de ouvido e ignorar toda essa
gente bisbilhoteira quando alguém pousa a mão em meu ombro.
— Então? São e salvo? — Marco, meu amigo e colega de classe,
caminha ao meu lado, com um sorriso de zombaria no rosto.
— Quase. Tenho que cumprir uma detenção.
— Nada de expulsão, então.
— Sem expulsão. Embora meu castigo seja tão perverso quanto uma.
Vou ter que cumprir horas de serviço na biblioteca.
— Ah, não é tão ruim, cara.
— Com a pulguinha.
— Não fode! — Ele faz uma careta de desaprovação.
— Queria que fosse mentira. Mas era isso ou expulsão. Ou seja,
preciso atualizar minha playlist diária com mantras, se eu quiser sobreviver
aos próximos meses com ela no meu encalço.
— Meses? Fala sério!
— Até o semestre acabar, meu amigo. — Puxo-o pelo ombro para
dentro da sala.
Não me dou o trabalho de erguer o olhar e procurar por ela, que com
certeza está sentada na carteira de sempre. A carteira que ela tomou de mim
na primeira oportunidade que teve. É quase um ritual nosso. No primeiro
dia do semestre letivo escolho onde vou me sentar com Marco, e na aula
seguinte ela aparece mais cedo e toma a carteira que escolhi para si.
Pulguinha perversa e trapaceira.

Estou quase chegando à biblioteca quando me lembro do embrulho na


mochila.
— Ah, merda!
O dia foi tão corrido que acabei me esquecendo de me livrar desse
peso extra.
Abro o zíper e pego o embrulho prateado, pronto para jogar na lixeira
ao meu lado. O conteúdo é algum objeto fofo, e minha curiosidade para
saber o que tem ali dentro me detém por um instante. Minha hesitação dura
tempo suficiente para Kira chegar e flagrar o pecado que estou prestes a
cometer.
— Mexendo no lixo, Castelli? Ou você acabou de sair daí? Acho a
segunda opção bem provável.
— Estava procurando você, já que não tinha chegado ainda. Achei
que era onde você estaria.
— Quanta maturidade. — Kira revira os olhos.
— Você começou, pulguinha. — Me viro para ela a tempo de ver a
expressão furiosa se formar quando a chamo pelo apelido que a dei uma
semana depois de ter conhecido essa coisinha irritante.
— O que é que você tem aí? — A ira dela se desfaz e a curiosidade dá
as caras quando analisa o que tenho na minha mão.
— Nada do seu interesse. — Tento enfiar o pacote de volta na
mochila, mas ela não deixa. O toma da minha mão, com uma audácia que
só Kira Moretti é capaz de ter. — Disse que não é da porra da sua conta,
garota!
Tento pegar o embrulho, mas ela desvia do meu braço, olhando
atentamente para algo no papel prateado.
— Se não é da minha conta, por que tem meu nome aqui? —
Praticamente esfrega o embrulho na minha cara, mostrando um cartão
adesivado que eu não vi antes, que contém os dizeres:

Para Kira Moretti.


Nos desculpe por todo o transtorno, Kira.
Isso é só um pequeno gesto para dizer que nós sentimos muito.

Ah, Nina, fala sério! Cartão com pedido de desculpas?


— Então? — Ela me encara com um sorriso diabólico no rosto,
esperando que eu me humilhe abrindo a boca e explicando a situação.
— Vai à merda, Kira. Você leu o bilhete. E só para deixar claro, foi
ideia da minha madrasta, não minha. Eu teria jogado no lixo se você não
tivesse metido o nariz onde não deve. — Coloco a mochila no ombro e
caminho em direção à entrada da biblioteca, sem dar espaço para que ela
venha me atormentar.
Ela corre para me acompanhar, abrindo o embrulho ao meu lado. De
canto de olho, sano minha curiosidade, a observando erguer o objeto e o
encarar, dando uma risadinha na sequência.
É sério isso? Nina acha que estou no primário, não há outra
explicação.
Kira coloca o unicórnio de pelúcia colorido debaixo do braço e vem
saltitando ainda ao meu lado.
— Agora sim, pulando desse jeito descoordenado, está uma autêntica
pulguinha.
— Vai se foder, Zayan — cantarola, antes de pegar uma bala do bolso
e colocar na boca.
Não sei como consegue colocar tanto açúcar para dentro do
organismo. Já é a terceira que vejo ela colocar na boca.
— Vai você — retruco.
— Boa tarde, crianças! — Uma mulher de uns sessenta anos nos
chama a atenção.
Ela está parada na porta da biblioteca e acho que assistiu parte da
nossa pequena interação.
— O reitor me pediu que esperasse vocês aqui, porque ele temia que
algo desastroso pudesse acontecer se eu os deixasse esperando. — A fala
carregada de repreensão é um total contraste com o tom de voz doce, os
traços angelicais e o sorriso que carrega. — Sou Angelina, a bibliotecária-
chefe. — Angelina estende a mão e nos cumprimenta. — Eu coordeno a
biblioteca e vou ser a responsável pelo trabalho de vocês nos próximos
meses. Venham, me acompanhem, vou mostrar o lugar.
Ela estende a mão na direção da porta de entrada e nós caminhamos
para dentro.
— Não acho que um tour seja necessário, Angelina. Já conheço essa
biblioteca como a palma da minha mão — a aluna exemplar diz com
orgulho de si mesma, fazendo meus olhos revirarem com força.
— Ah, eu sei. No entanto, vocês conhecem como alunos, mas agora
irão conhecer como funcionários — Angelina anuncia, enquanto nos
conduz pelos longos corredores formados por enormes estantes lotadas de
livros.
Subimos a larga escada que fica no centro da biblioteca, indo até o
último corredor do segundo andar.
Angelina nos mostra cada corredor, explicando sobre a organização
de todas as prateleiras, estantes e setores. Faz o mesmo trajeto por cada
corredor do primeiro andar e também do piso térreo. Nem mesmo a Barbie
Vida Universitária ao meu lado parece estar envolvida nesse tour tedioso
que dura cerca de duas horas.
Estou quase me jogando em uma das mesas de estudos, depois de
passar todo esse tempo de pé, mas Angelina nos arrasta na direção dos
computadores. Ela explica qual será nossa tarefa aqui. Aparentemente, algo
como ajudar alunos estúpidos que não sabem sequer fazer uma pesquisa por
título no sistema da biblioteca.
No fim, somos conduzidos à recepção onde os alunos registram
empréstimo e devolução de livros.
— Vocês não ficarão muito tempo nesse setor. Apenas se algum
funcionário solicitar ajuda. E é isso. Alguma pergunta?
— Eu tenho. — Seguro o segundo revirar de olhos do dia quando
Kira abre a boca. — Vamos trabalhar em setores separados, certo?
— Ah, querida, não foi essa a instrução que recebi. Vocês deverão
executar as tarefas juntos. Mas era previsto, não é mesmo?! Afinal, não é
apenas um trabalho, é uma punição que estão cumprindo.
Sim, uma punição. E das piores que eu já tive na vida.
— É só que...
— Sem discussão, senhorita Moretti. Sem discussão — Angelina
nega, ainda com o sorriso dançando nos lábios.
Qual o problema dessa mulher? Ela parece se divertir às custas do
nosso martírio. Angelina deveria estar organizando uma novena e rezando
para que essa biblioteca permaneça calma e serena, isso sim.
Será uma missão impossível preservar a tranquilidade do lugar
quando terei que suportar as próximas semanas em uma convivência
forçada com Kira.
Eu deveria ter mantido minha língua dentro da boca e não provocado
ela, assim tudo seria muito mais fácil agora.
— Vai ser bom para vocês. Quem sabe agora não se entendam?
— Jamais!
— Nem morta!
Falamos juntos.
— Viu? Já estão sincronizados em algo. É tudo questão de tempo. —
Angelina celebra com palminhas, e dessa vez não controlo o revirar de
olhos.
Ela não percebe meu gesto, porque começa a caminhar de volta para
as prateleiras de livros. Vira-se quando nota que não a acompanhamos.
— O que vocês estão fazendo aí parados?
— Achei que...
— Nada disso! — Ela não me deixa terminar a frase, já prevendo
minha fuga. Que caralhos, já passei tempo demais com essa garota do meu
lado hoje! O cheiro de bala de tutti frutti que vem dela está me dando dor
de cabeça. — Ainda temos uma hora. Podem me acompanhar.
Tenho certeza que as duas ouvem meu grunhido de indignação, mas
não dizem nada.
Andamos até o fim de um corredor de estantes e Angelina aponta para
uma caixa com uma pilha de livros no chão.
— Acho que já conhecem o suficiente desta seção. Cada livro tem um
código que indica o corredor e a posição dele na prateleira. Vocês vão
guardá-los no lugar. Eu volto daqui uma hora.
A bibliotecária se afasta, me deixando sozinho com Kira. Maluca.
Ninguém em sã consciência nos deixa a sós, a não ser que queira criar um
pandemônio.
— Pego metade e você metade — a Barbie ordena, segura de que irei
obedecer alguma ordem vinda dela.
— É melhor separar os livros antes, de acordo com a prateleira a qual
pertencem, e cada um organizar uma estante.
— Assim vai demorar mais! — Kira coloca as mãos na cintura e me
encara com a testa franzida.
— Claro que não! Do seu jeito vamos ter que ir e voltar diversas
vezes até a pilha. Sua inteligência é seletiva, pulguinha?
— Então você me acha inteligente? — A expressão dela muda e ela
ergue uma sobrancelha, se divertindo com minha confissão.
— Sua lista de qualidades começa e termina aí, linda.
— Acabou de me chamar de linda — constata.
— Foi irônico. Devo tirar inteligência da lista, já que não consegue
entender sarcasmo?
— Vocês dois precisam de ajuda? — Um garoto esguio, de pele
bronzeada e óculos de grau, aparece na ponta do corredor.
— Não, está tudo certo, Matteo. — Kira sorri para o rapaz.
— Ah, Kira, é você! — ele fala com uma animação excessiva. —
Desculpa, não reconheci. Olha, se precisar de qualquer coisa é só me
chamar.
— Pode deixar.
— Já começou sua detenção? — ele brinca, e ela solta uma risada
baixa.
— Pois é, estou aqui de castigo.
Eu deixo os dois conversando e vou até a pilha de livros para
organizar do meu jeito.
Ela percebe minha movimentação e se despede do rapaz, vindo até
mim em seguida.
— Não vou organizar livro por livro — anuncia com petulância.
— Não te mandei fazer nada. Quer dividir? Divida. Eu organizo
minha metade da minha maneira e você faz o que quiser com a sua. —
Separo os livros em metades iguais e me ocupo de arrumar a minha pilha.
— Tudo bem, então. — Ergue o queixo e começa a pegar os livros e
levar até a estante que pertencem.
Desligo minha mente da presença dela e me concentro na tarefa a ser
cumprida. Observo quando ela para de tempos em tempos, para conversar
com o tal Matteo. Pelo visto, eu vou terminar essa merda sozinho!
Termino de organizar os livros e vou em direção aos que são de
responsabilidade de Kira.
— Pode deixar isso aí! — Ela para mais uma conversa que tinha
travado com o garoto e vem até mim, irritada.
— Quero sair daqui hoje ainda. Então, se puder fazer sua parte, eu
agradeceria. Caso contrário, eu mesmo faço.
— Já estou indo — resmunga.
Deixo que ela termine e vou até outra seção, à procura de um livro
que preciso para terminar um trabalho. Pego o título e registro o
empréstimo. Vou em busca de Angelina, para saber se posso ser liberado, e
a encontro conversando com Kira.
— Bom, acho que por hoje é só. Só um aviso. Terei que fazer
relatórios semanais e enviar à coordenação para avaliar vocês, então sugiro
que se comportem, crianças. — Mais um sorriso cândido nos é oferecido e
já começo a me irritar. — Estão dispensados — Angelina anuncia.
— Ouviu, Zayan? — a pulguinha questiona enquanto andamos para a
saída.
— Ouviu, Kira? — retruco.
— Eu sei me comportar.
— Tenho um vídeo aqui que diz o contrário.
— O mesmo vídeo que mostra quão babaca você é?
— Olha só, Kira. — Paro no lugar e giro meu corpo, ficando de frente
para ela. — Eu falei merda e você descontou de uma maneira muito
exaltada. Mas passou. Fim de papo. Podemos apenas fazer o nosso dever
neste lugar e tentar manter a comunicação apenas para o que é essencial?
Eu quero terminar a faculdade sem mais nenhum incidente.
— Como se a culpa fosse só minha! — As bochechas dela
avermelham quando Kira se zanga. — Você sabe que passou do limite! —
Cutuca meu ombro.
— Sim, eu passei. O que mais quer que eu diga?
— Poderia ter a decência de se desculpar.
— Vai se desculpar por cada uma das discussões que tivemos até
hoje?
— Porque a culpa foi só minha, não é mesmo? — questiona com
ironia.
— Você me chamou de filhote de Édipo no meio de toda a sala!
— Você me chama de pulguinha!
— Você fez a turma toda acreditar que eu era gay! — Minha voz se
eleva.
— Você trocou meu pacote de bala de tutti frutti por bala de pimenta!
Quem come bala de pimenta? — Kira também sobe o tom, se aproximando
de mim.
— Você colocou estimulante sexual na minha garrafa de água! —
Nossos rostos estão colados.
— Te fiz um favor! Você precisa melhorar sua performance.
— Isso tudo é desejo de saber como seria ser fodida por mim,
pulguinha? Te aviso desde já que não vai acontecer, linda. — Sinto a
respiração dela acelerar e vejo os olhos castanhos brilhando furiosos.
— Eu nunca me submeteria a essa nojeira.
— Então me deixa em paz e vai viver sua vida, Kira.
— Peça desculpas por tudo que fez.
— Nunca.
— Então esqueça sua paz, Zayan. — A petulante se vira e sai
caminhando na direção contrária.
Ando até a saída, puto com o fato de que essa garota consegue me
tirar do sério como ninguém.
Avisto Nina parada dentro do carro, próxima à portaria, e vou até
onde ela está. Entro no banco da frente e fecho a porta.
— Então? — ela indaga, dando partida no carro.
— O que foi? — respondo, ainda com o humor azedo.
— Entregou?
— Sim, Nina, entreguei. E, por favor, nós não estamos na educação
infantil. Pelúcia não é o indicado para uma aluna universitária.
— Está estressado assim por quê? Não vai me dizer que você brigou
com a garota mais uma vez, Zayan!
Brigar com Kira é uma rotina. Não posso impedir que isso aconteça
quando ela me irrita profundamente.
— Não aconteceu nada de mais. Só não foi um dia bom.
— Quer compartilhar o que houve?
— Não. Melhor não.
Ela dirige o resto do caminho em silêncio e eu mergulho em um
oceano de pensamentos nada amigáveis.
Preciso achar um jeito de tirar essa garota do meu pé ou isso vai
acabar muito mal.
Um tapa não é nada perto do poder destrutivo que eu e Kira
construímos. Essa garota tem capacidade de causar um estrago muito maior.
DOIS ANOS E MEIO ANTES

Caminho com Carmela para dentro da enorme casa de dois andares.


Não faço ideia de quem seja o dono. O que sei é que fomos convidadas para
uma festa de universitários nesse endereço. É claro que não perderíamos a
oportunidade de conhecer gente nova, nos enturmar e beber de graça, então
aqui estamos.
Puxo minha nova amiga para dentro da sala com paredes altas, onde
um DJ toca músicas de pop animadas e um jogo de luz pulsante anima a
pequena multidão que se forma na pista de dança improvisada.
Arrasto Carmela para o centro da pista e nós começamos a nos mexer,
dançando ao som das batidas.
— Vou buscar uma bebida. Quer vir comigo? — anuncio, mas ela
nega com um aceno.
— Pode ir! — me dispensa, com o olhar vidrado em uma menina do
outro lado da pista.
Pelo visto irei embora sozinha hoje.
Deixo Carmela na sala e vou em direção à cozinha, onde as bebidas
estão sendo servidas. Há um movimento de pessoas entrando e saindo,
pegando garrafas no freezer e outras se arriscando na preparação de
drinques.
Assisto hipnotizada o movimento de um dos garotos, que gira a
garrafa no ar, e prendo a respiração quando acho que ele não vai pegá-la a
tempo. Mas ele a segura com maestria antes dela espatifar na bancada.
— Posso servi-la em algo, bebê? — o garoto diz e eu olho ao meu
redor, buscando a pessoa para quem ele direciona as palavras. — É você
mesma, rosinha. — Me encara, passeando o olhar pelo vestido rosa justo
que eu uso.
Queria dizer que me incomodo com o jeito que ele me olha, mas tudo
que sinto é um calor entre minhas pernas e um desejo louco de que ele
aprecie o que vê.
Os olhos verdes me encaram com malícia e eu sorrio em resposta. O
desconhecido bagunça os cabelos loiros que caem na testa, e só esse
movimento já é o suficiente para tomar minha atenção. Ele é lindo. Lindo e
muito gostoso, por sinal. Posso notar que é do tipo que cuida do corpo
muito bem, porque os músculos dos braços e peitoral estão expostos o
suficiente para que a definição fique aparente.
— Então? — indaga quando eu fico em silêncio absoluto. — Tem
alguma coisa que queira, rosinha?
— Hum... não sei. Tem alguma sugestão?
— Você parece ser do tipo que gosta de coisas doces. — Ele pisca um
olho e eu me derreto.
— Acertou.
— Eu tenho algo com saquê e morango. Acho que vai gostar. — Vai
até o freezer e tira alguns ingredientes de lá.
Coloca tudo na bancada e começa a preparar a bebida. Continuo
assistindo a tudo com fascínio, porque cada movimento dele me deixa
vidrada. Ele termina de misturar tudo, serve um copo e me entrega.
— Aqui está. Espero que goste.
Pego o drinque e sorvo uma boa quantidade, sentindo uma explosão
de sabor deliciosa na boca. Não posso evitar o gemido de apreciação que sai
de mim, o que faz ele sorrir abertamente.
— Isso aqui é a perfeição em forma de drinque! — O sorriso dele
abre ainda mais e acho que meu corpo arrepia inteiro quando ele faz isso. É
tão magnético.
— Fico feliz de ter gostado. Gregório, a propósito. — Ele estica a
mão e eu o cumprimento.
— Kira. Eu sou do curso de...
— Psicologia. É, eu sei. — Sorri.
— Como?
— Já te vi algumas vezes no campus. Tenho uma amiga no curso de
filosofia. Vocês estão em prédios próximos.
— Ah, entendi. E você?
— Engenharia aeroespacial — diz. — Já conhece o lugar? — Aponta
para o nosso redor.
— Não. Acabei de chegar.
— Vem, vou te mostrar. — Gregório estende a mão e eu aceito.
— Você conhece os donos? — Ele sobe apressado as escadas e eu o
acompanho.
— Eu sou o dono.
Tenho certeza que meu queixo vai no chão nesse instante, mas me
recomponho rapidamente. Não sou do tipo que se impressiona com um
playboy, e ele não precisa achar que sou uma deslumbrada.
Sou conduzida até um corredor, passando por um banheiro, um
escritório que está fechado e uma biblioteca. Não entramos em nenhum
deles. Gregório é quem indica o que é cada um.
Passamos por mais algumas portas fechadas, até chegar em um
cômodo com uma aberta.
— Esse aqui é...
— Ai, meu Deus! Isso é uma coleção de LEGO? — Não deixo que
ele termine, porque estou enlouquecida com a parede toda decorada com
pequenos bonecos de LEGO.
Tem super-heróis e personagens de séries e filmes, tudo em LEGO!
— Você tem uma coleção de LEGO? — Me aproximo dos
bonequinhos, tomando cuidado para não encostar em nada.
— Sim — responde. Me viro para Gregório, que assiste minha
empolgação com um sorriso no rosto.
— Desculpa, fiquei animada demais.
— Tudo bem, não tem problema. Pode ficar à vontade. — Ele aponta
para as prateleiras.
Volto a admirar a coleção e também toda a organização do quarto.
Não há absolutamente nada fora do lugar.
Na parede oposta há mais prateleiras ocupadas por livros. Inúmeros
títulos de suspense, terror e ficção. Já li grande parte do que está ali.
— Acho que temos gostos parecidos. — Aponto para os livros e ele
se vira para ver do que se trata.
— Gosta de terror? — Parece incrédulo.
— Claro, por que não? Adoro cenas de tensão. Te tiram da realidade e
te mantém preso à narrativa, não acha?
— Acho que sim. — Gregório dá de ombros. — Tem mais alguma
coisa que eu não sei sobre Kira Moretti? — Como ele sabe meu
sobrenome? — Confesso que estou me divertindo ao descobrir cada parte
sua, rosinha. — Ele se aproxima devagar e eu me esqueço de cada detalhe
do quarto ao nosso redor. Esqueço até meu nome. Esqueço também de
como se respira. O olhar magnético está de volta e eu me sinto presa a ele.
— E o-o q-que vo-você quer sa-saber? — Quero me dar um tapa por
gaguejar e parecer tão patética.
— Tem algo que me intriga desde o momento em que meus olhos
pousaram em você, bebê. — Ele está a centímetros de distância agora.
Segura meu queixo com o indicador e o polegar e ergue meu olhar,
me obrigando a encará-lo. Aspiro profundamente, sentindo o cheiro dele me
anestesiar.
Ele umedece os lábios e eu acompanho o movimento com os olhos.
— Quero saber se essa boca é tão macia quanto eu imagino que seja.
— Por que não prova, então?
Ele sorri com malícia, como se tivesse ganhado exatamente o prêmio
que sonhava em ter.
E então Gregório segura minha nuca com firmeza. E me beija.
E eu caio. Em queda livre.

DIAS DE HOJE

— Ele não tinha se formado? — Carmela pergunta ao meu lado, me


tirando do torpor e me trazendo de volta ao presente.
Meu coração bate descompassado e eu me viro e saio em disparada.
Ela anda apressada junto de mim e eu não paro até estar bem longe do
prédio de ciências exatas.
Meu peito sobe e desce acelerado e sinto meus olhos arderem pelas
lágrimas acumuladas. O ar não chega aos meus pulmões e todo meu corpo
treme convulsivamente.
— Kira, senta aqui. — Sinto uma mão me puxar e me guiar até que eu
esteja sentada em um banco. — Olha para mim. Respira fundo. Já passou.
Já passou. — Encaro os olhos negros e serenos, e meu olhar desce para a
boca dela, que expele o ar com lentidão.
Eu acompanho o movimento, inspirando e expirando devagar, até que
sinto as batidas no meu peito desacelerarem e meus sentidos voltarem
lentamente. Aliso a madeira do banco, afastando o torpor do meu corpo,
tentando sentir algo palpável para me distrair das lembranças infelizes que
me tomaram.
— Toma aqui, isso vai te ajudar. — Carmela me entrega uma garrafa
de água e eu pego, saciando a sede repentina que fez minha garganta secar.
— Você não sabia que ele estaria aqui? — Nego com a cabeça.
— Achei que ele tivesse ido para os Estados Unidos — digo com a
voz fraca e exausta. Achei que meu pesadelo havia acabado.
— Talvez tenha optado por se especializar aqui.
— Não, não! Não é possível! Não, Carmela, não pode ser!
— Shhh, fica calma. — Ela me abraça e acaricia meus cabelos, mas
não consigo ficar bem. — Eu estou aqui, amiga. Não vou desgrudar de
você. Nada de mal vai te acontecer.
— Obrigada. — Me agarro a ela e aperto-a forte, apavorada com os
cenários que minha cabeça cria.
Fico abraçada a Carmela, permitindo que ela acaricie meus cabelos e
me dê consolo e colo, até que meu despertador toca, lembrando do meu
compromisso da tarde.
— Tenho que ir. — Me afasto dela, contrariada, e Carmela me encara
com preocupação.
— Não precisa encarar esse castigo nesse estado, Kira. Eu posso
conversar com a tal Angelina e explicar sua situação, e depois te levo em
casa.
— Obrigada, Mel, mas eu prefiro ir. Não quero criar mais nenhum
problema para mim. E, além de tudo, eu estou sendo avaliada. Não posso
faltar logo no meu segundo dia. — Levanto do banco e ajeito minha
mochila nas costas.
— Tem certeza? Ela irá entender sua situação... Você está fragilizada.
— Não, eu quero ir. Pelo menos vou distrair minha cabeça com o
trabalho.
— Tudo bem, mas vou te acompanhar até lá. — Aceno em
concordância e nós começamos a caminhar em direção à biblioteca. — E se
você não se sentir bem ou se aquele malcriado do Zayan te atormentar, me
manda mensagem que eu vou correndo te resgatar.
— O que seria de mim sem minha super-heroína? — Sorrio contida e
abraço os ombros dela, que ri.
— Nada, Kiki. Nada. Eu sou a melhor parte do seu dia. — Ela passa o
braço pela minha cintura e andamos assim, juntas, até a entrada da minha
prisão diária.
— Obrigada por tudo. — Me despeço dela e entro.
Ignoro a presença do imbecil, porque hoje o dia já foi ruim o
suficiente para ter que entrar em mais uma discussão com Zayan. Ouço
atentamente as instruções de Angelina e executo minhas tarefas, trocando o
mínimo de palavras com ele.
A carga de trabalho realmente me faz esquecer o fantasma do passado
que me assombrou mais cedo. Empilhar livros, arrumar prateleiras e ajudar
alunos a achar algum exemplar tomou todo meu tempo e atenção, e fez a
tarde passar em um piscar de olhos.
Quando somos liberados, pego meu material e saio apressada da
biblioteca, sem dar nenhuma chance para que ele venha me importunar.
Caminho olhando de um lado para o outro. Devo parecer paranoica
agora, mas o medo que sinto é real, e é ele que me guia até que eu chegue
ao estacionamento. Acho que ouço passos atrás de mim e olho por cima do
ombro, para ver o que está acontecendo. É quando esbarro em alguém e
quase caio de bunda no chão.
— Hey, vai com calma, princesa. — Ele segura meus ombros, e solto
o ar, aliviada, ao ouvir a voz do meu irmão. — Estava indo te buscar do
castigo. Você está bem? Está pálida. — Segura meus ombros e me analisa
com o olhar preocupado.
— Sim, nada de mais. Foi só um dia cansativo.
— Tem certeza que é só isso? — Dante me examina, especulativo, e
eu sei que ele já entendeu que não foi só um dia cansativo.
Essa é a coisa mais linda e também mais irritante da nossa relação.
Nos conhecemos bem demais. E por isso sabemos quando um de nós está
mentindo ou escondendo algo.
— Sim, irmão. Além de fome, é claro. Então aproveite que está aqui e
me leve para um restaurante bem chique e gaste seu dinheiro comigo. —
Tento fazer graça e sorrir, e Dante revira os olhos.
— Virei seu banco particular agora, é? — Ele me puxa pelos ombros
até o carro, que reconheço ser de Aisha.
E quando olho mais atentamente, percebo que ela está sentada do lado
do passageiro, por isso vou direto para o banco traseiro.
— Então, eu soube que alguém ajoelhou e implorou para que outro
alguém aceitasse um pedido de namoro...
— Bom te ver também, cunhada. — Ela se vira para mim e tenta ficar
séria, mas vejo um sorriso de canto se formar. — Eu tive que me redimir
pelo tempo perdido.
— Só por isso que me pediu em namoro? — Dante faz drama,
enquanto assume a direção do carro.
— Por isso e porque amo você, baby boy. — Ela o encara com o olhar
apaixonado e meu irmão se derrete, roubando um beijo dela.
— Por favor, se vieram me buscar para que eu fique segurando vela
para o casal, podem me deixar aqui mesmo que vou a pé!
— Como se a princesa fosse aceitar ir a pé para casa. E não foi você
que acabou de exigir um jantar caro?
— Sim, e trate de cumprir. Estou faminta.
— E eu também. — Aisha passa a mão na barriga.
— Fodeu. Vocês duas com fome são capazes de me comer vivo aqui
dentro.
— Então dirige, baby. Tem duas famintas para alimentar. Enquanto
isso, minha cunhada vai me explicar porque nunca abriu o bico para delatar
o irmão.
— Me tira dessa, ruiva. Esse aí me fez jurar que eu não falaria sobre o
que ele sentia. Por mim, eu já tinha te contado há muito tempo.
— E seu irmão é um grande medroso, Kira! Quando ele ia ter
coragem de falar sobre o que sentia abertamente? Precisei abrir as pernas
para ele abrir a boca.
— Aisha! — ele chama a atenção dela, envergonhado, e eu rio.
A presença dos dois me distrai pelo resto da noite. Porém, meu
pensamento viaja em alguns momentos, repetindo a cena que vi mais cedo,
enquanto tento assimilar se o que vi foi real ou não.
Não pode ser. Não quero acreditar que Gregório estava caminhando
pelo campus.

— Kira? — Dedos estalam na minha frente e eu pisco os olhos.


— Sim?
— Você não estava aqui de novo. Que merda, Kira! Se quiser, pode se
sentar em uma dessas mesas e eu termino isso aqui sozinho.
— Nossa, Zayan, você não consegue ter um pingo de educação, não é
mesmo? Não precisa, eu levo isso de volta. Por que você não arruma aquele
lado ali e me deixa em paz? — Aponto para o corredor, na direção oposta
que estamos.
— Já está arrumado. Arrumei há meia hora, enquanto você viajava
para o mundo da lua — responde com o humor azedo.
— Ótimo, então eu termino aqui. Você pode, sei lá, dar uma volta na
biblioteca e vê se tem alguém precisando de ajuda.
— Não confio em você para fazer isso. Está com a cabeça nas nuvens
hoje.
— Então tudo bem, faça você. Eu vou dar uma volta. — Tento passar
por ele, mas Zayan me impede de seguir em frente, colocando um braço na
minha cintura.
O tempo é suspenso por um segundo e eu estanco no lugar. Não
entendo o porquê dessa reação, mas é como meu corpo responde ao seu
toque.
Ele também parece estar paralisado de choque, porque a mão firme
não abandona meu corpo. Não arrisco olhar para o lado, já que ele está
perto demais e eu estou confusa. O que acabou de acontecer? Por que ele
encostou em mim? Com que direito? E por que ele ainda não se afastou?
A surpresa inicial se vai e dá espaço à curiosidade. Assimilo a
quentura e o peso do toque dele, e a região onde o braço de Zayan circunda,
em meu abdômen, formiga. Os dedos dele se fecham com firmeza em mim,
como se ele pudesse me segurar com facilidade de qualquer queda.
E eu nem mesmo estou caindo.
Apenas minha razão é que parece ter se jogado de um precipício.
— Kira, eu preciso da sua ajuda. Pode vir... — A voz de Matteo nos
puxa de volta para a realidade e Zayan tira o braço de mim com rapidez. —
Está tudo bem por aqui? — Acho que Matteo percebe o clima esquisito, já
que nos encara com curiosidade.
Zayan caminha para o sentido contrário, indo até os livros que ainda
precisam ser colocados no lugar, e eu vou até Matteo, decidida a apagar
esse momento esquisito da minha cabeça.
— Não tem nada de mais. Do que você precisa? — Puxo Matt para
longe dali.
— E então? Como está sendo trabalhar com seu maior inimigo? —
Matteo questiona quando já estamos afastados o suficiente.
Ele sabe de toda história. Até porque não tinha como esconder
quando o vídeo da minha discussão com Zayan se espalhou em uma
velocidade estrondosa por todo campus. Não duvido que já tenha chegado
em outras faculdades de Florença.
— Um verdadeiro inferno, se quer saber. Eu preferiria comer dez
pacotes de balas de pimenta a ficar perto dele. — O moreno gargalha
quando me recordo do episódio das balas.
Matt sabe de todo meu histórico com Zayan. Eu sempre passei horas
na biblioteca, e ele trabalha aqui desde sempre, assim, passamos a nos
encontrar com frequência, conversar sobre tudo, e eu contava para ele sobre
todas as discussões e importunações entre mim e o babaca. Parecia ser um
excelente entretenimento para Matteo, e eu me distraia enquanto tecíamos
os comentários mais odiosos direcionados ao meu colega de classe.
— Vocês estão tornando meu trabalho mais atrativo do que nunca.
Venho trabalhar aguardando ansiosamente para o horário que chegarão e
colocarão essa biblioteca abaixo.
— Que belo amigo você é. — Esbarro no ombro dele, fingindo estar
ofendida. — Tome cuidado, ou essa biblioteca realmente irá abaixo. Não
hesitaria em arremessar alguns exemplares bem pesados naquele cabeça-
dura. — Ele ri e eu o acompanho.
Vou com ele até a recepção e passo para o outro lado da bancada,
quando ele me pede para ajudar a fazer o registro dos novos títulos que
chegaram no sistema da biblioteca.
Por longos minutos, minha atenção se volta inteiramente para a tela à
minha frente e o trabalho que executo, por isso não vejo ninguém se
aproximando. Até que a última voz que gostaria de ouvir chega até mim.
Eu não raciocino sobre o que foi dito, porque no instante em que ele
abriu a boca e eu reconheci a voz, tudo ao meu redor parou de funcionar.
Perto. Ele está perto demais. Está na minha frente e isso me faz ter
certeza de que não é um fantasma que vi no outro dia.
Eu congelo.
— Então? — Nem mesmo prestei atenção na pergunta que foi feita
por ele, porque a presença de Gregório aqui me desnorteou.
Minha cabeça dá voltas, enquanto meu cérebro tenta buscar uma saída
rápida e segura para bem longe daqui.
Pisco ostensivamente, querendo manter minha atenção no presente,
ou meu corpo vai se perder da minha mente mais uma vez.
Não é real. Não é real. Não pode ser real.
— Kira?
— Kira!
— Kira.
Três vozes diferentes chamam minha atenção e eu não sei qual delas
responder.
— Kira, pela última vez, eu não vou arrumar aquela pilha de livros
sozinho. Ou você vem me ajudar ou eu vou reportar para a Angelina!
Caramba, Zayan, dá um tempo! Eu só preciso... Só preciso... Não
quero olhar para cima. Ele está me encarando, eu sei disso. Posso sentir a
força do olhar dele sobre mim.
— Kira, pode ir. Eu termino aqui. — O tom de Matteo é cauteloso e
baixo.
Obrigo minhas pernas a reagirem e me levanto sem olhar para cima
por nenhum momento.
— Posso ajudar? — Matt questiona para ele, mas não ouço a resposta,
porque ando o mais rápido que posso para longe dali.
Na verdade, não estou andando, estou sendo conduzida. Olho para
meu pulso e há uma mão grande fechada ao redor dele. Olho para frente e
ele não olha na minha direção. Está de costas, me puxando e me afastando
de Gregório.
Meu corpo é colocado na frente do dele. O encaro, confusa, mas o
olhar de Zayan está voltado para a direção de onde viemos. O maxilar dele
está travado, e quando ele se vira, os olhos castanho-escuros estão
endurecidos e frios.
Eu continuo andando, sem saber para onde ele está me levando.
Zayan me conduz até que estejamos na porta do banheiro feminino. Nós
entramos e ele tranca a porta.
— Por quê? — questiono quando ele se vira para mim. — Por que me
tirou de lá?
— Você sabe — responde impaciente.
— Não sei. — Mordo o lábio inferior com força, engolindo todo
turbilhão de emoções que ameaçam tomar conta de mim quando a
lembrança da nossa discussão me domina.
“Está aí uma ofensa que eu não posso usar contra você, já que todo
mundo sabe quem se enfiou...”
— Vai chorar? — Ele faz uma careta e eu me obrigo a ficar de costas,
escondendo dele todos os meus sentimentos.
Não posso ser frágil perto dele. Não posso demonstrar nenhuma
fraqueza.
— Pode sair.
— Kira...
— Sai! Agora!
Ele não se move imediatamente. Eu conto mentalmente. Um minuto e
vinte e sete segundos se passam e ele não se mexe.
— Sai, Zayan! Agora! — Elevo meu tom de voz e ele finalmente
destranca a porta e sai.
Corro até a maçaneta e tranco de novo.
Vou até uma das cabines e me tranco ali também. Fecho a tampa do
vaso e sento. Seguro minha cabeça com a palma da minha mão e coço meu
couro cabeludo, que pinica.
Então o choro rasga meu peito, e eu explodo. Meu corpo todo
convulsiona e as lágrimas escapam de mim, ininterruptas. Não consigo
controlar o desespero e a dor que me invade.
— Kira! — Alguém bate na porta com força depois de um tempo.
Corro até ela e destranco. Carmela entra, me tomando em seus braços.
E eu fico parada, de pé no banheiro, com minha amiga me embalando
e me consolando.
Que pesadelo terrível. Eu só quero acordar disso tudo.
— Definitivamente não é para isso que seu pai paga nossas sessões —
Stefano diz com o tom divertido, quando mexe com as peças no tabuleiro à
frente. — Xeque-mate.
— De novo? — resmungo. — Meu pai paga você para me ouvir. E eu
falo.
— Discutir teorias humanistas, sociais e psicologia analítica enquanto
jogamos xadrez não é exatamente te ouvir.
— Funciona para mim. — Dou de ombros ao passo que ele recolhe as
peças.
— Você perdeu, garoto. — Ele aponta para o xadrez à frente.
— Sim. E?
— Só perde quando tem algo na sua cabeça. — O idoso de pele
negra, cabelos e barba branca me analisa com curiosidade.
— Viu?! É por isso que ele te paga bem. — Desvio o assunto,
tentando fazer graça.
— Desembucha. — Gesticula para que eu fale, enquanto arruma as
peças para mais uma rodada.
— Fui punido pela faculdade.
— Por que isso não me surpreende?
— Discuti com uma garota e levei um tapa dela.
— Isso sim é uma novidade. O que você fez? — Ergo o olhar e
encontro um sorriso contido no rosto do meu terapeuta.
— O que te faz pensar que eu fiz algo?
— Sua impulsividade. — Ele me encara por um momento, me
desafiando a dizer o contrário.
Não me atrevo a fazer isso.
— Falei merda.
Fico em silêncio depois disso, ainda envergonhado e irritado com o
tamanho da minha estupidez por ter dito o que disse.
Quando ele não faz nenhum movimento no jogo à nossa frente,
entendo que ele espera que eu ofereça uma explicação melhor.
Suspiro, resignado, antes de abrir a boca.
— Transformei um momento de dor dela em provocação.
— Por que fez isso?
Respiro fundo, pensando na resposta para essa pergunta. A verdade é
que eu não tenho uma. Poderia dizer que foi uma resposta à pirraça dela,
mas estaria mentindo. Sempre nos provocamos e eu nunca havia trazido à
tona aquele assunto.
Discutir com Kira, de igual para igual, era o que sempre fazíamos,
mas nunca chegamos àquele ponto. Eu nunca havia a reduzido daquela
forma, e ela tem razão de me considerar um babaca por isso.
— Porque sou um escroto que destrói tudo por onde passa.
— Zayan, já falamos sobre isso.
— O que você quer que eu diga? — Me exalto. — Sim, já falamos
sobre isso diversas vezes, mas isso não muda o fato de que eu destruo tudo
ao meu redor!
— Isso é você falando?
— Sim, sou eu que estou dizendo. — Ele me encara impassível.
Não há nenhum caderninho aqui para que ele escreva algo, mas posso
dizer, com certeza, que Stefano está fazendo uma nota mental nesse
momento de algo sobre meu comportamento.
— A garota te disse isso?
— Kira não disse nada, e nem precisa. — A forma como ela me
expulsou daquele banheiro, como se minha presença a machucasse, disse
tudo.
— Kira? — A compreensão está estampada no rosto dele.
— Sim, ela. E não vamos dedicar mais uma sessão a ela. — Ele ergue
os braços, rendido.
— Não direi nada. Mas eu tenho um genuíno interesse em conhecer a
garota. — Dá uma risadinha. — Ai, ai, Zayan... Como pode uma mente
brilhante e incrível como a sua não enxergar as coisas sobre si mesmo com
clareza?
— Enxergo muita coisa com clareza.
— Ah, sim, sim. No entanto, ainda assim, prefere se esconder na
história que criaram para você. Tem medo de ser... você. Me diz, o que
ganhou até hoje se escondendo no seu papel de filho e irmão?
Já estou acostumado com o jeito nada sutil de Stefano intervir e fazer
uma observação que será um soco no estômago.
Mas não posso evitar sempre reagir no modo defensivo.
— Não tem a ver com eles.
— Não disse que tinha. Mas tem sim a ver com o jeito que você reage
a eles.
Outro soco.
— Foi assim minha vida toda. Eles me ensinaram tudo o que sei.
Inclusive sobre mim mesmo. Como quer que eu mude os ensinamentos de
uma vida inteira?
— Você nasceu aprendendo a jogar xadrez?
— Não. Mas é diferente... Quando aprendi a jogar, meu conhecimento
sobre xadrez era uma página em branco, eu só tive que preenchê-la. Mudar
tudo que sinto em relação a mim mesmo é pegar um calhamaço escrito e
rabiscado, apagar tudo e reescrever. Mas, ainda assim, existiriam marcas de
tinta que não sumiriam.
— Ou você pode simplesmente pegar esse calhamaço que não foi
escrito por você, entregar para o dono, pegar uma página em branco e desta
vez escrever um livro com sua própria tinta.
— Desde quando nossas sessões viraram clube de escrita? — Sorrio
para ele.
— Só estou te ouvindo. Não é para isso que seu pai me paga?
Eu rio dele e volto minha atenção para o jogo.

Termino de tomar o café da manhã apressado, ou me atrasarei para a


faculdade. Coloco minha mochila nos ombros, com uma maçã ainda na
boca, pego as chaves do carro e praticamente corro até a porta.
— Onde você está indo? — Viro para trás, para encontrar Lorenzzo
na ponta da escada, com a cara amassada de quem acabou de acordar.
— Faculdade — respondo sem muita vontade.
— Não vai deixar o carro aí?
— Não. O carro é meu. E Nina não pode ficar me levando sempre. —
Coloco a mão na maçaneta, pronto para evitar discussões.
— Eu preciso dele. — Há um toque de repreensão no tom de voz
dele, mas eu não estou nem aí se ele está insatisfeito.
— Então vai até o mecânico e busque o seu.
— Zayan... — Ele está prestes a começar uma briga, mas não estou
com paciência para isso.
— Lorenzzo, você tem seu carro, não precisa do meu.
— Voltou a agir como o inútil de sempre. — Aí está meu verdadeiro
irmão.
O que não hesita em fazer eu me sentir um grande merda. O que
despreza minha existência desde o meu primeiro respirar.
Me viro para ele, que está na base da escada. Lorenzzo me encara
com o olhar de repulsa e raiva reservado unicamente para mim. Essa é a
forma que ele aprendeu a me enxergar, e eu não me lembro de ter vivido um
único dia dos meus vinte e dois anos sem ter que lidar com todos esses
sentimentos hostis vindos dele.
— Não, não como um inútil. Eu só cansei de ser seu saco de
pancadas. Não tenho mais paciência para isso. E um aviso: é melhor você
não arrumar nenhum problema.
— Do que está falando?
— Você sabe muito bem.
Viro as costas e deixo ele falando sozinho.
Entro no carro, dou partida e dirijo até a faculdade.
Estou sentado no carpete da sala, brincando com o pedaço de
madeira pintado de preto e branco.
— Gosta de xadrez, Zayzay? — meu pai pergunta, sentando ao meu
lado. — Sua mãe também adorava. — Encaro meu pai e o rosto dele está
vermelho. Ele limpa a bochecha quando uma lágrima escorre.
— Papai, por que você está chorando?
— Nada, meu menino. Nada. Só senti falta da sua mamãe.
— Como minha mamãe era?
— Ela era linda, Zayzay. Tinha cabelos e olhos da cor dos seus. E um
sorriso muito bonito.
— Um dia eu vou ver ela, papai?
— Talvez um dia. Mas hoje, se quiser conversar com sua mamãe,
pode olhar para o céu. De noite, você vai ver um milhão de estrelas. A mais
bonita e brilhante é sua mamãe Cassandra. Entendeu?
Balanço a cabeça para cima e para baixo, porque acho que entendi o
que ele disse. Olhar o céu. Eu gosto muito de olhar o céu.
— Vou buscar suco para a gente. Você quer suco? — Aceno que sim.
Meu pai se levanta e sai da sala, me deixando sozinho com o
tabuleiro que está na minha frente. Mexo as peças do jogo distraidamente,
até que ouço passos se aproximando.
Ergo o olhar, imaginando ser meu pai de volta à sala, mas não é.
Estremeço, apavorado, quando vejo o olhar amedrontador dele sobre
mim.
— O que está fazendo aqui, vermezinho? — Ele se agacha ao meu
lado, mas não quero ficar olhando para ele. Tenho medo. — Te fiz uma
pergunta. — Empurra meu ombro, quase me fazendo cair de lado no
carpete.
— Nada... — murmuro tão baixo que não tenho certeza se ele me
ouviu.
— Que foi, vermezinho? Por que está tremendo assim?
Eu me levanto. Quero sair daqui, quero correr até o meu pai, mas ele
não deixa. Lorenzzo bate a mão no meu peito com tanta força, que me faz
cair de costas no chão.
— Vai correr para o papai, bebê chorão?
— Lou...
— Já falei para não me chamar assim! — ele grita e me força a
encará-lo. Os olhos dele estão arregalados de fúria. — Sabe quem me
chamava assim, merdinha? — Ele segura minhas bochechas com força.
Dói. Dói muito. — Sabe quem? — Ele vai falar aquilo de novo. Não quero
que ele fale aquilo. — A mamãe. E eu nunca mais vou ouvir ela falar. Sabe
por quê?
— Lorenzzo... — imploro a ele para que não diga, para que não use
as palavras que me fazem chorar. Mas ele não me ouve.
— Eu nunca mais vou ouvir ela falar porque você a matou,
vermezinho.
Meus olhos ardem e eu vejo tudo embaçado. Soluços escapam de mim
quando a dor atinge meu coração de uma forma desesperadora.
— Lorenzzo! — meu pai chama a atenção dele, fazendo meu irmão
recuar.
Levanto com pressa e vou correndo para perto do meu pai,
abraçando as pernas dele.
— O que eu te disse sobre assustar o seu irmão?
— Só estávamos brincando, pai. Achei que ele estivesse gostando. —
Lorenzzo usa o tom de voz contido e abaixa a cabeça. — Desculpa.
— Tudo bem, meu filho, mas tome cuidado. Seu irmão é menor e não
tem sua força.
— Vou tomar. — Ele acena e sai da sala.
Depois de um tempo, eu entendi como Lorenzzo era capaz de
dissimular. Aprendi que ele nunca se arrependeu das palavras odiosas e
cortantes direcionadas a mim, compreendi que meu irmão agiu e sempre
agirá com o propósito de me machucar.
Porque, como ele mesmo disse, eu fui o responsável pela morte da
nossa mãe. E isso é algo que ele nunca perdoará.
O ódio e a convicção de Lorenzzo, de que eu sou o culpado pela
tragédia da nossa família, é tão grande, que eu aprendi a crer e me odiar por
isso.
Um ódio que nunca cessou. Sempre me corroeu de forma absurda, até
que não restasse espaço para mais nada dentro de mim, a não ser a repulsa
que sinto por mim mesmo.
Sacudo a cabeça de um lado para o outro, expurgando a memória
amarga. Ergo o meu olhar apenas para constatar que dirigi no modo
automático e que já estou parado no estacionamento da faculdade.
Abro a porta do carro, irritado por não ter controle sobre meu cérebro,
que decide as horas mais inapropriadas para me lembrar quão fodido eu
sou. Fecho a porta com força e limpo o rosto com fúria, odiando mais uma
vez estar chorando por causa dele. Meu irmão.
Engulo em seco o choro e encaro o espaço à minha frente, notando
que eu fui flagrado nesta cena patética. E não foi por qualquer pessoa.
Foi por ela.
A pessoa que eu desejaria nunca me ver assim.
Justamente pelo que eu vejo no olhar dela agora.
Compaixão.
Compaixão é a última coisa que espero vir de Kira.
Ignoro a presença dela, que está parada na calçada, atenta a cada
movimento meu. Caminho na direção contrária, decidido a tomar o rumo
mais longo até a sala de aula.
Esperava que ela fosse entender o recado e que também fingisse que
não viu o que viu, mas Kira parece ter outro objetivo.
— Zayan... — Ela me segue.
— Agora não, Kira.
— Espera. — Ela tem a audácia de segurar meu braço e me fazer
parar, se colocando na minha frente e me impedindo de seguir em frente.
— Eu disse agora não, pulguinha. — Uso o ódio e o apelido que ela
despreza em uma mesma sentença.
O suficiente para fazer ela sumir da minha frente, certo?
Errado.
Ela ignora meu tom de voz e mantém-se no lugar.
— Está tudo bem com você? — questiona com calma.
— Meu estado de espírito não diz respeito a você.
— Em algum momento da sua vida você consegue ser educado?
— Vários, mas esse é um privilégio que você nunca terá.
— Eu só quero saber se está tudo bem. Cazzo[4]! É difícil para você
falar, expressar alguma coisa?
— Eu estou bem o suficiente para destruir qualquer intervenção fraca
que você fizer em sala hoje, que tal? — Passo por ela sem querer ouvir a
resposta.
— Você nunca vence, Zayan — retruca quando dou as costas.
— Venci duas, Kira. E estou pronto para vencer muito mais. — Viro-
me para ela uma última vez. — Assista, pulguinha, enquanto destrono você.
Espero que tenha aproveitado seu reinado até aqui.
Pisco e sorrio com cinismo para ela, que franze a testa e me encara
irada.
Ira essa que perdura pelo dia todo, porque cumpri com o prometido.
Retruquei todas as pontuações dela durante as aulas, até que Kira ficasse
sem argumentos.
Ela me odiou um pouco mais por isso.
Eu gostei disso.
É a esse lugar que Kira e eu pertencemos, à hostilidade mútua. E não
nos cabe nada mais.
É inegável o teor do ódio mútuo que eu e Zayan semeamos. É
palpável. Tem cor, aspecto e gosto. Vermelho, pinica e é amargo.
Desde a nossa primeira interação é assim. Foi desprezo à primeira
vista. Nunca houve espaço para mais nada.
E eu tentei. Tentei ser decente quando o vi chorar no estacionamento.
Ao vê-lo limpar os olhos vermelhos de choro, algo dentro de mim
chacoalhou, pulsou errático. Por um instante esqueci de cada palavra de
desdém que ele me direcionou. Por um instante, tudo que eu vi por essa
pequena fresta de vulnerabilidade foi um garoto perdido. E eu me senti
perdida. Nunca havia visto Zayan exposto e fragilizado daquela forma.
Por isso segui meu impulso de ir atrás dele. Acreditei que poderíamos
esquecer toda essa loucura que conduz nossas interações.
E para quê?
Para ele me odiar um pouco mais por tê-lo flagrado vulnerável.
E desde então decidiu que era hora de se vingar por todas as vezes
que eu provei ser melhor que ele em sala de aula.
Faz duas semanas que Zayan se dedica como nunca a sugar minha
paciência e tirar o pior de mim. Ele já me fez chorar três vezes por me
rebater, e ainda por cima ganhou pontos extras depois disso. Sinceramente,
de onde veio todo esse brilhantismo? De repente ele decidiu aprender o
conteúdo?
— Parece que vai matá-lo a qualquer momento. — Matteo me entrega
um livro para que eu guarde. — Está encarando o menino com um olhar
assassino.
— Na minha cabeça já fiz isso incontáveis vezes. De diferentes
formas. — Encaro o babaca mais uma vez, imaginando como seria
mergulhar aquela cabeça genial em um lago frio e prendê-lo abaixo da água
até que não houvesse mais oxigênio e ele se debatesse em busca de ar.
— Vai no happy hour de hoje? — Matteo desvia meus pensamentos
dos rumos sanguinários que tomaram.
— Não sei ainda. Não estou no clima — suspiro.
— Qual é! Vai deixar de se divertir por causa desse garoto? Não é do
seu feitio, Kira.
— Não tem a ver com ele — retruco, irritada, apenas pela menção do
infeliz.
— É por que então?
— Sei lá. Só estou cansada. Trabalhar nessa biblioteca não é tão fácil
assim.
— E agora você sabe o que eu passo todo santo dia. Vamos lá, uma
spritz[5] para afastar toda essa tensão dos últimos dias. — Matt une as mãos
em súplica e oferece um olhar pidão.
— Certo, Matteo. Nós vamos a esse happy hour. — Aceno com a
mão no ar, cedendo.
— Isso! — Ele faz um gesto de celebração.
— Ele não vai, não é mesmo? — Aponto na direção que Zayan está,
concentrado, lendo algum livro ao invés de organizar a prateleira.
— Não, não vai. Chamamos poucas pessoas. E vamos em um bar
novo, pouco conhecido. Não terá muito movimento.
— Ok. Vou mandar mensagem para Mel.
Pego meu telefone na minha mochila e convido Carmela para ir com
a gente. Aproveito para avisar a Dante que irei dormir no apartamento dele,
como sempre faço quando vou para algum lugar depois da faculdade.

— Ah, não! — exclamo, irritada, no instante em que pisamos no bar.


— Matteo! — O encaro, esperando uma explicação.
Não terá muito movimento. O caralho que não! O bar está lotado de
alunos universitários. E é claro que para completar minha desgraça, o
palhaço está parado na parede dos fundos com aquele amigo insuportável
que ele carrega para todo canto como se fosse um chaveiro.
— Kira, eu juro que na semana passada esse lugar estava vazio. E eu
não convidei ele!
Gemo baixinho, frustrada.
— Vamos, Kiki. Você está precisando se distrair. — Carmela enlaça o
braço no meu e me puxa para dentro do lugar. — É só ignorar.
Matteo vem logo atrás, nos acompanhando, animado.
Ouço as palavras sábias da minha amiga e finjo que não vi Zayan
aqui. Na verdade, esse deveria ser um conselho para eu seguir sempre.
Deveria fingir que nunca vi Zayan pisar naquela universidade, que nunca
tive a ideia ridícula de oferecer minhas anotações a ele, que sequer estudei
na mesma sala que ele.
Eu deveria. Mas sei que não é o que farei. A presença de Zayan em
qualquer ambiente nunca passará despercebida por mim. Porque desde
nossa primeira e fracassada interação, tudo que ele faz é me deixar agitada.
Não tem a ver só com o ódio que alimentamos um pelo outro. Eu
nunca soube porque ele me desprezou desde o princípio, e isso sempre me
intrigou. Nunca soube porque ele só soube oferecer hostilidade quando nem
mesmo me conhecia.
É por isso que Zayan me enlouquece e é só por isso que sou incapaz
de ficar imune a ele.
Porque ele me detestou antes mesmo de saber meu nome. E eu nunca
tive explicação para isso. Prometi a mim mesma desde então que iria até o
fim e aceitaria todas as consequências para ter uma resposta.

— Mais um! — Balanço meu copo vazio para o barman que está
disponível.
— Não acha que já bebeu demais, mocinha? — Ele usa um tom de
voz que mistura advertência e divertimento.
— Acho que ainda não bebi o suficiente! — respondo animada
quando ele me entrega o meu quinto spritz da noite, acenando
negativamente, como se desistisse da repreensão.
Vou até a mesa onde Matteo e Mel estão com mais um grupo de
alunos. Nós conversamos animados, elevando o tom de voz quando a
música do ambiente fica mais alta.
— Posso me sentar aqui com o time dos perdedores? — Reviro os
olhos quando a voz desprezível chega até nós.
Marco, o melhor amigo do babaca, se senta confortavelmente na
mesa, sem que nenhum de nós dê permissão.
É tão arrogante quanto Zayan. Por isso se dão bem.
— Na verdade, não — respondo.
— Qual é, Moretti? Não vou incomodar, prometo. — O sorriso
cretino dele parece dizer o contrário.
— Faz o quê aqui? Cadê seu amigo para você atormentar? — Procuro
pelo infeliz pelo ambiente, até constatar que ele está do lado oposto ao
nosso, jogando algum papo furado para uma inocente.
Os dois parecem estar em clima íntimo. É o que noto quando a mão
de Zayan desce para a cintura dela e ele sussurra algo ao pé do ouvido da
moça, que ri, toda derretida.
— Como você pode ver, ele está ocupado — o vira-lata de Zayan diz.
— Não é da nossa conta. Não temos que aturar sua presença porque
seu amigo está se atracando com uma garota.
— Isso é ciúmes, Kira?
Sou obrigada a gargalhar.
— Pirou?
— Foi o que pareceu. — O loiro dá de ombros.
— Choverá vinho no dia que eu sentir ciúmes de Zayan Castelli.
Ele ergue uma sobrancelha, incrédulo. Problema dele se não acredita.
Eu? Ciúmes de Zayan? Onde Marco bateu com a cabeça?
— Por que não vai procurar outro grupo para atormentar, Marco? —
Faço um gesto de dispensa no ar.
— Vocês são minha galera preferida. Por que procuraria outras
pessoas? — Não consigo dizer se ele fala sério ou se está sendo sarcástico.
— Macché[6]! — Mel bufa.
— Então, sobre o que estamos conversando?
— Sobre como existe tanta gente folgada no mundo. Já notou? — É
Matteo quem responde.
— Eu sei! — Marco finge que o comentário não foi para ele e começa
a reclamar sobre uma colega de turma, contando uma história que ninguém
pediu para ouvir.
Depois disso, ele passa a fofocar sobre os alunos dos outros prédios e
isso parece entreter meus amigos, que magicamente esquecem do quanto
desprezamos o sujeito.
Ok, não é para tanto. Não posso dizer que odiamos Marco. Ele nunca
fez nada de ruim para nós. O defeito dele é ser amigo de quem é.
Mas agora, ouvindo-o narrar sobre o projeto que ele e um colega
desenvolveram de atendimento clínico acessível, Marco parece até legal.
Suportável, eu diria.
— Vou pegar bebida para o meu novo grupo de amigos.
— O que vão dizer de você quando te virem pegar bebidas para os
perdedores? — Matteo sorri e acho que já passou um pouco da conta
quando a fala sai arrastada.
— Vão dizer que eu estou revolucionando o grupo. Finalmente
fazendo de vocês pessoas divertidas. — Marco estufa o peito, convencido.
Ele sai em direção ao bar e eu noto Matteo acompanhá-lo com o olhar
malicioso.
— Não faz isso. — Aponto na direção dele.
— Isso o quê?
— Não se faça de sonso, Matt. Já está querendo dar para ele que eu
sei.
— Quem vê essa cara de boneca sua nem imagina a boquinha suja
que tem.
Mostro a língua para ele antes de dizer:
— É sério. Você sabe que seu esporte favorito é se apaixonar por
homens héteros. Depois fica chorando pelos cantos da biblioteca por um
amor impossível.
— Por que eu te adotei mesmo? — resmunga.
— Porque sou a voz do bom-senso na sua vida. — Sorrio para ele,
que faz uma careta.
— Preciso ir — Carmela anuncia, levantando de súbito.
Ela encara a tela do celular com um sorriso safado e eu já posso
imaginar a razão para a pressa.
— Sério, Mel? — Direciono meu olhar inquisitivo para ela, cruzando
os braços.
— Não tenho culpa se eles e elas me querem, princesa. — Ela ergue
os ombros e sorri convencida antes de mandar dois beijos no ar e sair pela
porta do bar.
Carmela olha distraída para o telefone e por isso não nota quem passa
por ela, entrando pela mesma porta que acabou de sair. O ar foge dos meus
pulmões e tudo ao meu redor perde importância. Meu coração acelera e
meu corpo estremece.
É automática a minha reação. Levanto da mesa em um pulo,
anunciando para Matt e Marco, que se aproxima, que estou indo ao
banheiro.
Eles dizem algo, mas não ouço.
Saio esbarrando nas pessoas que estão no meu caminho, e a distância
entre a mesa e o banheiro parece quilométrica.
Minhas pernas me impedem de ir mais rápido porque estão moles,
prestes a ceder.
Ouço minhas batidas chegarem nos meus ouvidos.
Abro a primeira porta que vejo à minha frente, apenas para encontrar
umas das últimas pessoas que eu desejaria ver nesse momento em uma cena
ainda mais desagradável.
Zayan, que estava quase engolindo a garota ruiva em um beijo quente
e cheio de toques, se afasta dela quando ouve a porta fechar atrás de mim.
— Só pode ser brincadeira — diz, irritado, me encarando como se
pudesse me pulverizar apenas com o ódio que toma o olhar dele. — Esse é
o banheiro masculino. — Gesticula para que eu saia.
Estou tão agitada que não consigo oferecer uma resposta ácida.
— Tem razão... Eu... Eu... Vou... — Aponto para a porta.
Coloco a mão na maçaneta e puxo, saindo para o corredor. Quase
tropeço nas minhas próprias pernas. Minhas mãos estão igualmente
trêmulas ao lado do meu corpo.
Dou apenas dois passos quando percebo que Gregório já está perto
demais.
Volto como um rato encurralado para o banheiro que Zayan está.
Mais uma vez o beijo é interrompido, e quando os dois percebem que
sou eu de novo, ambos reviram os olhos em sincronia.
— Qual seu problema, garota? — ele questiona impaciente.
— Eu juro que eu não quero atrapalhar vocês. Eu só preciso ficar aqui
por um tempo. Só isso. E depois eu saio e deixo os dois em paz.
— Ficar aqui? — Zayan quase grita. — Você está me atrapalhando.
Como sempre. Eu sugiro que você saia do meu caminho, Kira, porque estou
sem paciência nenhuma para você hoje.
— Se não quisesse ninguém te interrompendo, era só trancar a porta!
— exclamo, nervosa.
Por favor, não me pede para sair.
Por favor, me deixe ficar aqui.
— Eu vou buscar alguma bebida — a ruiva diz, entediada, passando
por mim.
— Se eu perder minha foda da noite, a culpa é sua. — Ele aponta
irritado na minha direção, quando ela já não está mais aqui.
— Ok, ok. Já entendi. — Dispenso o comentário sem querer entrar
em uma discussão.
Ando de um lado para o outro do banheiro, tentando pensar em uma
alternativa. Procuro por janelas, mas não há nenhuma aqui. Abro as cabines
dos banheiros para ver se tem outra saída, mas não encontro nada.
Zayan recosta o corpo na pia e cruza os braços, analisando meus
movimentos com curiosidade.
— Qual o seu problema, pulguinha? Não rebateu minha fala com
alguma baixaria.
— Tem alguma saída de ar por aqui? — Encaro o teto, buscando por
uma rota de fuga.
Logo em seguida pego meu telefone no bolso, digitando com rapidez
uma mensagem para o meu irmão.

Kira
Lembra que eu disse que estaria
em um bar? Pode me buscar aqui?
Vou enviar o endereço.
Dante
Posso sim.
Me envia a localização.

— Pode parar de andar de um lado para o outro assim? Está me


deixando zonzo.
Ignoro o comentário, respondendo a Dante.
— Kira, para! — Quase esbarro nele quando Zayan coloca o corpo na
minha frente. Eu sequer percebi que ele se mexeu. — Qual o seu problema?
— questiona, enraivecido.
— Nada, Zayan. Eu só preciso ficar um tempo aqui. Só isso.
— Por que no banheiro masculino?
— Eu não sei, Zayan. Eu não pensei. Eu só entrei! — Começo a me
irritar com tudo.
Com ele, com quem está lá fora, com o fato de não saber quanto
tempo meu irmão levará para chegar até aqui.
Ele me encara por alguns segundos sem esboçar nenhuma reação. Os
olhos castanhos estão impassíveis e é impossível ler qualquer pensamento
que se passa na cabeça dele.
Até que Zayan acena uma única vez, como se tivesse compreendido
algo.
— Ele está aqui, não está?
— E-ele?
— Sim, Kira. Ele.
— Do que...
— Não se faça de desentendida. Sabe muito bem de quem estou
falando! Sim ou não?
Tudo que consigo fazer é balançar a cabeça para cima e para baixo.
— Vou te tirar daqui. — Antes que eu entenda o que ele quis dizer,
Zayan segura meu pulso e me arrasta até a porta do banheiro.
— O que você está fazendo? Enlouqueceu? — Tento grudar meu pé
no chão, porque a ideia de sair desse banheiro é desesperadora.
— Kira, facilita minha vida uma vez! — Continua me puxando,
mesmo que eu lute contra.
— Você não pode fazer isso comigo, Zayan. Por favor! — Sinto meus
olhos arderem e o ar sair com dificuldade pelos meus pulmões.
— Eu estou te ajudando, garota!
— Eu não quero encarar ele! — berro, já chorando, e meu tom de voz
faz Zayan parar de tentar me levar para fora. — Ele vai me machucar.
Posso sentir a dor me consumir, pinicar cada músculo meu enquanto o
pavor me consome.
Zayan não percebe meu desespero? Por que ele quer me levar para lá?
Por que ele não pode me deixar aqui? Ele é tão ruim assim que me fará
encarar meu pior pesadelo?
— Kira, você não pode se esconder para sempre. — Agora ele parece
cauteloso. O tom de voz dele é calmo, mas não me tranquiliza. Puxo o ar,
tentando compensar as batidas do meu coração. — Por que tem tanto medo?
Foi só uma briga com...
— Não, Zayan! Não foi só uma briga. — Levo minhas mãos até as
têmporas quando me recordo de todo pavor que senti por meses. — Você
não sabe de nada. Por favor, só me deixe aqui. — Só me deixa segura.
Longe do olhar do bicho-papão lá fora.
Quero meu irmão. Onde Dante está?
— Do que eu não sei, Kira?
— Zayan, sai!
— Só saio daqui quando você sair, pulguinha.
— Eu não vou sair!
— Ah, vai sim. — Ergo meu olhar e encontro o sorriso perverso nos
lábios dele.
Como se tivesse parado de me dar uma opção. Como se sair fosse
minha única escolha. Na minha cabeça, minha única escolha é ficar nesse
banheiro.
— Já disse que não.
— Vai com suas pernas ou vai carregada, pulguinha. A escolha é sua.
Eu não notei que havia sido encurralada até que os dois braços
estejam em cada um dos lados do meu rosto e eu esteja prensada contra a
parede.
Meu medo me cegou para a aproximação dele, mas agora é
impossível não notar. Porque ele nunca esteve tão próximo. Não sei como
reagir quando a respiração quente faz cócegas no meu rosto. Pisco
atordoada, sem conseguir esboçar uma reação apropriada.
O desgraçado percebe. Ele percebe que a proximidade dele é um
entorpecente para a minha razão e o sorriso dele abre ainda mais.
— Então? — A perversidade não abandona o rostinho bonito por
nenhum instante.
Sim, o infeliz tem um rosto lindo. Lábios rosados e cheios. Devem ser
macios. Têm que ser macios, já que fazem você querer mordê-los. As
sobrancelhas grossas estão erguidas, porque o semblante dele é inquisidor.
Ele fez uma pergunta e espera uma resposta que ele já tem.
— Não vou sair daqui.
— Carregada, então.
— Nem. Morta.
Eu mal termino a frase e já estou nos ombros dele.
— Maldito! — berro, me debatendo sobre o corpo dele. — Me solta,
Zayan!
— Não até que a gente esteja fora desse bar.
— Babaca!
Soco as costas largas dele. Zayan parece receber cada golpe meu
como se fossem plumas o tocando, porque não mexe um centímetro para
me colocar no chão.
— Disse que íamos sair de um jeito ou de outro. — Ele afasta uma
mão da minha perna para abrir a porta do banheiro.
— Me coloca no chão, desgraçado!
— Não.
Ele fecha um braço na parte de trás do meu joelho e uma mão segura
minha lombar, enquanto tento sem sucesso sair do aperto.
Minha tentativa de me libertar cessa quando ele sai do corredor e
entra no bar. É claro que aquela multidão toda vira os olhos para nossa
direção, encarando com curiosidade essa cena patética.
No entanto, é só quando meu olhar se cruza com os olhos verdes, que
eu travo de vez. Ele me viu. O desgraçado do Zayan atraiu toda atenção
para nós e agora ele me viu.
E está se movendo.
— Zayan... — Minha voz é quase um sussurro quando percebo
Gregório afastar as pessoas de perto dele e vir na nossa direção.
Zayan não responde, apenas assovia e meneia a cabeça. Eu entendo o
significado do gesto quando Marco e Matteo chegam até Gregório,
impedindo-o de avançar até nós.
Ele não se dá por vencido e empurra Marco. Matteo reage e o
empurra de volta. E então o caos começa. Marco avança de novo e recebe
um soco de Gregório, sem ter chance de reagir.
Dois barmans pulam a bancada, tentando evitar que a confusão se
espalhe, mas dois amigos de Gregório se aproximam para o defender.
Uma brisa gelada sopra sobre nós, fazendo meu corpo arrepiar.
Estamos do lado de fora. Lá dentro a confusão continua, mas não vejo mais
nada do que está acontecendo.
Minha mente desiste de tentar processar a briga generalizada quando
percebo que a mão pesada de Zayan ainda está no meu corpo.
Arrepio mais uma vez. Mas dessa vez não é pelo frio. Meu corpo não
está acostumado com esse toque. É um toque firme. Quente. É atordoador.
Embaralha toda minha capacidade de raciocínio.
Era só o que me faltava! Ficar confusa com o toque dele, quando ele
sequer deveria estar com as mãos sobre mim.
— Eu vou falar pela última vez. Me. Solta. Agora.
— Assim que estivermos longe, pulguinha.
— Me solta! — Começo a socar mais uma vez as costas dele e bater
os pés contra a barriga de Zayan.
— Põe minha irmã no chão. Agora.
Tanto eu quanto ele congelamos quando a voz de Dante chega até
nós. Ergo minha cabeça e encontro ele, Aisha e Antônio parados na calçada,
assistindo a essa cena. Aisha e Antônio parecem querer segurar o riso,
enquanto meu irmão tem um brilho furioso no olhar, mantendo os braços
cruzados na frente do corpo.
Com uma delicadeza nunca vista antes, Zayan agacha e permite que
meu corpo deslize pelos ombros dele, até que meus pés estejam no chão.
E a primeira coisa que eu faço é correr para os braços que se abrem
para me receber.
— Ele fez alguma coisa para você, princesa? — Aceno
negativamente. Por bem ou mal, Zayan me afastou do monstro lá dentro. —
Tem certeza? — Confirmo com um menear. — Não pense que isso acaba
aqui, garoto. Encoste em um fio de cabelo dela, sem o consentimento
escrito e assinado de Kira, e você vai conhecer o pior lado da família
Moretti.
— E da família Campello também — Antônio Campello, que tem
medo da própria sombra, é quem diz com uma coragem fingida.
O babaca parece ter perdido a fala pela primeira vez. Não olho para
trás quando meu irmão me puxa para o carro estacionado próximo da
calçada.
Entro rapidamente, querendo sair daqui. Arrisco uma última olhada
para o lado, para perceber Gregório sair do bar, indo furioso na direção de
Zayan. Eles começam a discutir, mas Marco e os barmans saem do bar, os
separando.
E depois disso não vejo mais nada, porque meu irmão dirige para
longe dali.

— Quer me explicar o que aconteceu? — Dante está sentado na ponta


da cama, enquanto eu estou encostada na cabeceira, encarando o travesseiro
no meu colo.
Vim para esse quarto assim que chegamos ao apartamento dele, e
Dante veio logo atrás. Ele não iria deixar isso passar sem me confrontar,
principalmente depois de ter flagrado aquela cena absurda na frente do bar.
— Você está pensando em dizer “nada de mais”, e eu já te digo que
essa resposta não me fará sair daqui.
— Não é...
— Não. Não, não, não, princesa. Tinha um garoto te carregando nos
ombros e uma briga generalizada acontecendo logo ao lado. Eu tenho uma
pequena sensação de que a briga tinha a ver com você. Entende que não tem
como eu sair daqui sem uma explicação? Uma pequena que seja.
— Apareceu alguém que eu não gosto no bar. — Não gosto? Eu
abomino a presença de Gregório. Por mim, ele poderia ter sumido nos
cânions do Arizona.
— Só isso?
Engulo em seco, ignorando o desconforto que se espalha em meu
peito. Nego com a cabeça, incapaz de abrir a boca para explicar algo.
— Essa pessoa te machucou? — A voz dele se eleva. Ele está
preocupado e também irado com a ideia de que alguém possa ter feito mal
para mim.
— Não. Não dessa forma. E faz um tempo que... O ponto é que eu
não gosto de estar na presença dele. — Eu me calo e ele me encara,
esperando pelo resto. Exalo o ar, me dando por derrotada. — Quando ele
chegou lá no bar, fugi para o banheiro e me escondi. O que acontece é que
eu dei de cara com um garoto atracado a uma garota. Ele tentou me tirar de
lá, mas eu não quis sair. Ele queria que eu enfrentasse a pessoa e saísse do
banheiro. Como eu não me mexi, ele fez aquela cena toda.
— Quem é ele? — Antônio surge repentinamente no quarto,
questionando ansioso.
— Antônio! — Aisha vem logo atrás, repreendendo o primo com um
tapa na nuca, por ter entregado os dois ouvindo a conversa.
— Eu odeio que vocês sejam tão fofoqueiros! — Jogo um travesseiro
na direção dos Campellos. Aisha é quem pega o objeto no ar.
Pelo que eu entendi, eles estavam juntos de Dante quando mandei
mensagem, e se dispuseram a ir com ele me buscar.
Suspeito que a razão seja exatamente a mesma pelo que estavam
fazendo agora: curiosidade para saber sobre a vida alheia.
— Desculpa, cunhadinha. Sabe que a gente não aguenta. É mais forte
que nós. — A ruiva manhosa vem até mim, colocando o travesseiro de volta
no meu colo e se deitando.
— É difícil resistir a esse biquinho, ruiva. E você não é minha
cunhada até que Dante apresente você oficialmente.
— Fala sério, Kira! — Dante rebate.
— Prazer, eu sou a namorada do seu irmão. — Ela estende a mão.
— Não. Você não. Ele. E tem que ser em um jantar com toda a
família.
— Eu não vou fazer isso. Por Deus, você conhece ela há doze anos!
Aisha fazia tranças no seu cabelo para você ir à escola.
— Ah, baby. Eu queria um jantar com sua família para ser
apresentada oficialmente... — Ela o encara, fazendo mais um biquinho, e o
bobão se derrete, sorrindo apaixonado.
— Sério, como você não notou esse olhar de cachorrinho abandonado
para você? — Aponto para Dante, questionando Aisha.
— Não estamos falando do meu baby boy. Não desvia o assunto. —
Ela cutuca minha costela. — Quem foi o corajoso que ousou carregar você
no colo como um pequeno leitão?
— Aisha! Não precisa relembrar essa cena — Dante resmunga.
— Anda, Kira! Para de enrolar. Eu estou morrendo aqui. — Antônio
senta na cama, impaciente. — Quem é o garoto que estava te carregando
para fora do bar?
Olho diretamente nos olhos do meu irmão para responder à pergunta.
Ele me encara de volta. Por um segundo, fica confuso. E no segundo
seguinte, a compreensão o atinge.
— De jeito nenhum! — ele exclama, sem querer acreditar.
— Ele mesmo. — Aceno positivamente.
— Quem? Quem? — Antônio quase quica no lugar.
— Zayan Castelli — Dante responde desgostoso.
— Quem?
— O garoto que ela deu um tapa.
— Você já espalhou a história do tapa? — indago para meu irmão,
incrédula.
— Só para eles. Você ia contar de qualquer jeito.
— Ai. Meu. Deus! — Antônio tem um sorriso enorme no rosto. —
Isso só fica melhor. Quer dizer, o garoto que foi estapeado por você de
repente te coloca nos ombros e te carrega, enquanto uma briga que envolve
você acontece no bar. Conta mais, conta mais!
— Antônio, por que você não fez jornalismo ao invés de
administração? Tenho certeza de que seria um ótimo colunista social —
questiono o fofoqueiro.
— Fofoca é apenas um hobby, pequena. Não vai entrar em mais
detalhes?
— Não, seu futriqueiro. Já disse demais. E vocês já viram o
suficiente. Agora anda, os três, podem sair, porque eu estou morrendo de
sono. — Balanço as mãos no ar, para que eles entendam que estou os
expulsando do quarto.
— Ah, mas eu queria saber a história toda! — a ruiva reclama,
levantando da cama.
— Um dia eu conto. Agora, xô. Eu preciso dormir.
Dante me encara hesitante, antes de ceder e se levantar, indo logo
atrás da namorada, que sai do quarto resmungando. Antônio, por outro lado,
permanece no cômodo, sem fazer menção de seguir os dois.
— Você também, Toni. — Aponto para a porta.
— Qual é, pequena? Vai me fazer dormir no sofá?
— Quem disse que você vai dormir aqui? — Cruzo os braços,
esperando uma explicação.
— O apartamento é do seu irmão, meu melhor amigo. Ele me deixa
dormir aqui — diz petulante, já tirando os sapatos.
— O apartamento é dele, mas o quarto é meu. Posso não morar aqui,
mas tenho mais direitos que você. Então pode ir procurar outro canto.
— Vai mesmo me fazer dormir lá fora, no relento, como um vira-lata
maltratado? Achei que tinha um coração maior, Moretti. — Faz beicinho,
dramático.
— Meu Deus, Antônio! Já te disseram que você é um grande folgado?
— Sim, várias vezes. Eu não podia ser perfeito em tudo. Quer dizer,
então, que vai me deixar dormir no seu quarto? — Ele sorri, animado.
— Sim, mas vai dormir no colchão, no chão.
— Ah, fala sério! — resmunga, fazendo uma careta de indignação. —
Onde está o colchão?
— No quarto de Dante. — Sorrio com maldade.
— E você só me fala agora? Aqueles dois já devem estar ensaiando
para colocar filhotes ruivos na Terra, Kira. Eu não vou entrar lá. Por que
você não me deixa dormir na cama com você?
— Porque não, Antônio. Você escolhe. Ou pega o colchão ou dorme
no sofá.
— Coitado daquele branquelo. Vai ter que suar para domar seu
coração de gelo, Frozen[7].
— Antônio, por Deus! Quem disse que eu quero alguma coisa com
Zayan? Nós nos odiamos, entendeu? Eu quero distância daquele moleque.
De onde você tira tanta ideia absurda?
— Sei, sei. Se odeiam. Entendi. — Ele não parece acreditar no que eu
digo. — Eu vou lá envergonhar os dois e atrapalhar o momento íntimo deles
para pegar meu colchão. É o melhor que faço. — Sai do quarto e atravessa
o corredor. — Aisha, Dante! Eu vou dar dez segundos para vocês
colocarem uma roupa antes de eu entrar nesse quarto!
Eu deixo que ele se entenda com o casal e pego uma muda de roupas
minha no guarda-roupa.
Pego meu celular e vejo que há uma mensagem de Matteo. Mais
cedo, quando ainda estava no carro, vindo para cá, questionei se ele estava
bem e se algo tinha acontecido a ele.

Matt
Eu estou bem, Kiki.
Desculpa ter insistido para você ir.

Kira
Não tem que se desculpar.
Eu aceitei ir.
E não tinha como sabermos
que ele iria aparecer.
Só queria que ele sumisse de vez, sabe?

Matt
Eu sei.
Vamos fazer algo quanto a isso.
Eu não respondo depois disso. Porque por mais que eu queira, não
tem nada que possamos fazer, que eu possa fazer, a não ser manter uma
distância segura dele.
Do garoto que me apresentou o céu.
E em seguida me levou até o inferno.
— Desfaça essa carinha brava, Mel. Não combina com você. —
Cutuco a melhor amiga de Kira, que está sentada na minha frente.
Estamos na biblioteca. Eu tenho uma carga horária de serviço a
cumprir. Quanto à Carmela, arrisco dizer que nos visita, a mim e a Kira, em
algumas tardes, apenas para garantir que eu não provoque sua amiga e ela
me estapeie mais uma vez.
— Ainda odeio você. — Ela oferece uma carranca.
— Não odeia não. — Sorrio com zombaria para ela. — Eu salvei sua
Barbie. Mereço os créditos. — Apoio o antebraço cruzado sobre a mesa,
esperando uma resposta.
— Carregá-la sobre os ombros, enquanto ela se debate, não parece
muito uma salvação. — Me encara, desafiando-me.
— Um pequeno detalhe. — Encosto o corpo de volta na cadeira,
dispensando o comentário, abanando a mão no ar.
— Você é um idiota, sabe disso.
— Por que exatamente?
— Eu preciso mesmo explicar?
— Do que estamos falando? — Marco questiona, sentando-se ao meu
lado e largando a mochila na superfície.
— Do quão babaca seu amigo é.
— Não há nenhuma novidade nisso. — Dou um tapa na nuca dele
pelo atrevimento, e ele se limita a rir.
— E o rosto? — questiono, analisando o roxo enorme embaixo do
olho direito dele.
— Melhor, impossível. Isso aqui é só um detalhe. Marcas de guerra
— diz, quase se divertindo.
— E que história é essa de você se misturar com os perdedores agora?
— pergunto com uma falsa repreensão na voz.
— Eu estou bem aqui — Carmela protesta.
— É brincadeira, Mel.
— Essa é a hora que vocês me explicam que merda foi aquela no bar?
— Matteo se senta ao lado de Carmela, olhando na minha direção e
esperando uma resposta.
Encaro-o de volta, estudando o garoto.
— Não precisa ter ciúmes, Zayan Castelli. — Carmela me chuta por
debaixo da mesa. Fuzilo a infeliz com o olhar, e ela está sorrindo.
— Ciúmes?
— Tenta negar, bebê. Quero ver. — É Marco quem diz, sorrindo
como o bom filho da puta que consegue ser.
Não falo nada, apenas encaro o bibliotecário que ainda está aqui,
próximo à Mel, esperando uma resposta minha.
— Por que não vai atrás da sua pulguinha? Ela vai saber te explicar
tudo.
— Claro. Já aproveito e conto para ela tudo que ouvi. — Ele levanta
da mesa e eu faço o mesmo, consumido pela raiva.
— Você não se atreveria! — Aponto na direção dele.
— Ei, fica calmo, cara. — Marco me puxa pela mão, para que eu me
sente, e Matteo faz o mesmo. — Matteo não vai fazer nada disso.
— Quem garante que não? — Ele ergue uma sobrancelha em desafio.
Carmela me olha como se esperasse que eu dissesse algo.
— Eu não confio nele — respondo ao pedido silencioso dela. A
resposta de Matteo é bufar.
— Você está se mordendo, achando que ele quer Kira, isso sim. —
Mais um sorriso maldoso se forma no rosto dessa abusada.
— Que se dane Kira e ele! Eu estou dizendo que não confio nele e
ponto.
Ela acena em negação, como se não acreditasse no que eu digo.
— Perdi meu tempo aqui. — Matteo se levanta mais uma vez.
E é apenas por não querer de forma alguma que ele conte para Kira
tudo que aconteceu naquele bar, que eu abro a boca.
— Senta aí, Matteo — ordeno. Ele para de andar e volta, jogando o
corpo na cadeira. — Vou te contar tudo que aconteceu. Mas nosso acordo é
que você não vai abrir essa boca grande para Kira. Ela nunca pode saber o
que aconteceu. Entendeu?
— Isso vai depender do que você contar. — Mas que moleque
inconveniente!
— Ele não vai contar — Carmela diz, com o tom de voz firme. Em
seguida encara o amigo, séria. — Você não vai contar.
Eles ficam nessa troca de olhares por cinco segundos, antes de Matteo
ceder.
— Fala — diz, enfim.
E então eu falo. Sobre tudo.

Observo a Barbie Vida Universitária no corredor oposto ao que eu


estou. Ela está em silêncio desde que chegou aqui hoje. Um silêncio
preocupante, já que Kira adora falar. Não tem nada que ela adore mais nessa
vida do que abrir a boca e tagarelar sobre qualquer fato desinteressante
sobre neurociência e comportamento que ninguém liga.
Mas hoje ela não ofereceu nenhuma palavra. Nenhuma ofensa das
inúmeras que ela tem reservada apenas para mim foi proferida.
É segunda-feira. Primeiro dia de aula depois da confusão. Claro que
algum desocupado filmou tudo aquilo, e claro que isso se espalhou. Pela
segunda vez, em menos de um mês, somos o motivo do falatório pelos
corredores da universidade.
Talvez seja esse o motivo do silêncio. Talvez aquela mente brilhante
esteja se ocupando de finalmente elaborar um meio de dar fim à minha vida
sem deixar nenhum rastro.
Tudo isso porque mais uma vez a expus.
Não que eu me orgulhe disso. Não mesmo. Não teria agido daquela
forma se não visse outra saída. Mas Kira não pode ficar se escondendo para
sempre. Eu senti raiva naquele momento, quando a vi acuada e retraída.
Raiva porque aquela não é Kira. Ela não é assim.
Kira é a garota de língua afiada que retruca todas as pontuações orais
que eu faço dentro de sala. Kira é a atrevida que não tem medo de enfrentar
ninguém. É a pulguinha saltitante e inabalável, que nunca permitirá que
ninguém pise nela.
“Você não sabe de nada.”
O que eu ainda não sei, Moretti?
Ela ergue o olhar, parecendo sentir que está sendo encarada, e procura
a origem do escrutínio, até me achar.
É claro que não desvio o olhar. E é claro que ofereço um sorriso
ordinário, só para ver ela semicerrar os olhos, desconfiada, como faz agora.
Pisco um olho para levá-la ao limite. E ela cede, erguendo a mão e
oferecendo um gesto obsceno.
— Você não perde a oportunidade. — Matteo se coloca na minha
frente, me privando da visão de Kira irritada.
— Sim, eu sou um desgraçado de primeira linha. — Sorrio com
deleite.
— Aqui. — Ele ergue uma pilha de livros e eu estendo o braço para
receber. — Já sabe o que tem que fazer.
— Ainda está ressentido? — pergunto quando ele começa a se afastar,
pisando duro.
— Não tenho nada a dizer sobre isso, Zayan, a não ser te dar um
aviso. Ainda vai se ferrar por não contar toda a verdade para ela. Kira
merece saber.
— Kira não tem nada a ver com minha vida. Nada do que acontece
comigo é da conta dela.
— Ele tem razão. Eu não tenho mesmo. — Nós dois nos assustamos
com a voz dela tão próxima.
Matteo se vira e dá um passo para o lado, e só então noto que ela está
logo atrás dele.
Merda, quanto será que ela ouviu dessa conversa?
— Não tenho nenhum interesse em saber sobre a vida de Zayan,
Matteo. — Ela sorri com cinismo.
— Ai, pulguinha, essa doeu. — Levo a mão ao coração, tombando o
tronco levemente para frente, fingindo estar sentindo dor.
— Como é dissimulado. — Faz cara feia para mim. — Faltam dez
minutos para o fim do meu horário, mas já fiz tudo que tinha para fazer.
Posso ir? — questiona a Matteo.
— Pode sim. Sem problemas.
— Vai com quem? — pergunto.
Kira, que já estava caminhando para a direção oposta, gira a cabeça
na minha direção, com a expressão confusa.
— Falou comigo?
— Sim. Estou te perguntando com quem você vai.
— E isso é da sua conta?
— Não seja insolente hoje, garota. — Agora as duas sobrancelhas
dela se erguem, e ela está surpresa. — Te fiz uma pergunta simples.
— Continua não sendo da sua conta, Zayan. — Ela se vira e sai
caminhando.
Entrego os livros para Matteo.
— Vou sair mais cedo — anuncio.
Saio atrás da Barbie atrevida, tentando manter a calma para não fazer
mais nenhum absurdo. Puxo-a pelo braço, a virando de frente para mim, e
ela me encara furiosa. As bochechas estão vermelhas de raiva e posso dizer
que ela se segura para não me oferecer outro tapa.
— Qual é o seu problema, garoto? Por que não pode simplesmente
me deixar em paz? O que caralhos eu fiz para ter que carregar o fardo de ter
você na minha vida?
Não deveria permitir que as palavras dela me atingissem, afinal, é
exatamente esse sentimento que eu espero dela. Desprezo.
Ainda assim, sinto algo dentro de mim remexer desconfortável.
— Relaxa, Kira. Só queria saber com quem você ia, porque... Bom,
você sabe.
— Sim, porque o filho da puta do meu ex está rondando essa
faculdade toda atrás de mim. Mais uma vez, isso não é da sua conta. Então
some da minha frente. Some da minha vida, na verdade. Eu já estou
cansada das suas importunações. Não tenho mais saúde para lidar com sua
imaturidade.
— Devo lembrar que é um jogo onde os dois jogam, Kira?
— Você me colocou nesse maldito jogo sem que eu pedisse. — Ela
aponta o dedo fino na minha cara. Tudo nela é assim. Pequenininho, fino e
delicado, quase como se ela pudesse se quebrar a qualquer momento. —
Olha para mim, eu estou falando com você! — A ponta do dedo cutuca
minha testa depois que meu olhar desce para dar atenção à única parte do
corpo dela que não é tão pequena assim. — Eu juro por Deus que se você
me disser que está encarando os meus peitos, eu não hesitarei em te dar
outro tapa aqui e agora! Não me importo se serei expulsa dessa vez!
Então eu não digo nada. Se eu abrir a boca, serei obrigado a falar a
verdade. E se eu falar a verdade, apanharei.
— Essa guerra ridícula vai acabar, Zayan Castelli — ela começa,
depois que ofereço o silêncio. — Eu estou farta disso tudo. Você me
desprezou no instante em que me conheceu. Nunca tive chance de tentar me
defender, porque nunca soube o que te fez desgostar de mim sem ao menos
me conhecer. Foi você quem escolheu me provocar dia após dia, até que eu
não tivesse escolha a não ser odiar você e esse seu maldito sorriso
convencido! Mas eu não tenho mais paciência para lidar com essa sua birra
infantil. Não sei o que queria de mim, mas se é meu total desprezo à sua
pessoa, então celebre, pois você conseguiu. Agora dá licença, que o meu
irmão está me esperando lá fora. E a não ser que você queira encontrá-lo
mais uma vez e entender que ele estava falando sério quando disse que não
conheceu o pior lado dos Morettis, eu sugiro que você não me siga.
Quero dizer a ela que não tenho medo do irmão, que apenas não o
enfrentei por respeito a ela, porque eu sabia que estava errado em carregá-la
daquela forma, mesmo que Kira não tenha me dado opção, e que eu só a
soltei porque ela estaria segura com ele.
Quero dizer também que essa guerra não irá acabar, que eu não
permitirei que acabe, que eu manterei nossa disputa viva e que ela não terá
escolha a não ser empunhar a espada e duelar.
Mas não digo nada. Apenas assisto-a se afastar, fazendo aquele
desconforto voltar a se remexer dentro de mim.

— Você está bem? Mal tocou sua comida hoje — Nina questiona
quando estamos na mesa de jantar.
Hoje somos só eu e ela, já que meu pai está trabalhando até tarde e
Lorenzzo sumiu por aí. Deve estar na casa de algum colega, fazendo
alguma merda, sem dúvidas.
— Sim, Nina. Só pensando.
— Pensando em quê? — ela especula, tentando soar indiferente.
— Nada de mais. — Cutuco o tomate no prato.
— Está pensando na garota que te estapeou, não é? — Ergo o olhar
para minha madrasta e encontro um sorriso divertido em sua face.
— Estou pensando em como eu queria colocá-la em um foguete e
mandá-la para a Lua, para ela nunca mais voltar. — Sorrio com ironia.
— Você odeia ela tanto assim? Ou odeia que ela seja uma boa pessoa
e sabe que está errado em provocá-la?
— É sério isso? — Ela acena positivamente e espera uma resposta
minha. — Eu sou o psicólogo aqui, lembra? — Desvio o assunto.
— Você nem mesmo se formou, Zay. Não fuja da minha pergunta.
— Eu odeio que ela exista.
Os olhos negros dela se arregalam até quase saírem de órbita. Ela
entende de imediato a sinceridade das minhas palavras e se assusta com
elas. Posso ver a decepção, pouco a pouco, tomando a feição de Nina, e isso
me agonia.
Me dói que ela enxergue essa parte minha, que ela veja quão fodido
eu sou, a ponto de quebrar alguém, que eu magoo as pessoas
intencionalmente, que eu ajo com o propósito de destruir.
Mas sempre foi assim, não é?
A começar pelo meu nascimento. Minha vinda ao mundo foi o que
fez essa família se despedaçar.
Encaro o chão enquanto caminho para dentro da escola. Ouço o
carro do meu pai se afastar atrás de nós, mas não me viro para me
despedir.
— Já sabe, não é, vermezinho? — Sinto o hálito quente do meu irmão
próximo ao meu ouvido e me encolho, querendo fugir para longe dele. —
Se alguém dessa escola souber que temos o mesmo sangue, vai sofrer as
consequências, pirralho.
Em seguida ele se afasta.
Caminho apressado, indo em busca da minha sala, tentando passar
despercebido pela multidão de alunos.
Eu e Lorenzzo não sabíamos, mas esse seria o dia que iríamos
conhecer nossa madrasta pela primeira vez. Meu pai nos avisou no almoço
que iria trazer alguém. No jantar, a mulher esguia, de cabelos e olhos negros
e um sorriso cativante nos foi apresentada.
Eu amei Nina no instante em que a vi. Amei Nina no segundo que ela
se ajoelhou para ficar da minha altura, abriu os braços e perguntou se podia
me envolver com eles.
Nina me abraça forte e eu retribuo. O abraço dela é calmo e
aconchegante, como se ela estivesse me prometendo algo com esse gesto.
Me prometendo que pela primeira vez alguém irá me ver de verdade, sem
nenhuma tristeza ou desprezo no olhar.
Ela fica assim por um longo momento, me aninhando, até que nos
afastamos. Ela pede o mesmo para Lorenzzo, mas ele recusa. Ele a rejeita.
Nina tem tristeza na feição, mas não se deixa abalar.
— Tudo bem. — Ouço ela dizer ao meu pai. — As coisas se ajeitam
com o tempo.
As coisas nunca se ajeitaram em relação a Lorenzzo. Nem comigo,
nem com Nina. Ele sempre nos desprezou.
E naquela noite, depois que ela foi embora, meu irmão me deu mais
uma prova de que sempre seria assim. Ele sempre sentiria por mim o mais
cru e perverso ódio, aquele capaz de cegar e de fazer alguém cometer
loucuras. Capaz de machucar. E foi isso que ele fez comigo. Sempre. Mas
especialmente naquela noite doeu de uma forma agoniante.
Estou com meu irmão na cozinha. Estamos apenas nós dois, pois meu
pai foi levar Nina no carro que está estacionado na frente da casa. Estou
lavando a louça e meu irmão me observa. Estremeço, porque sei que ele
está buscando uma brecha para me magoar. E já antecipo o comentário
doloroso que ele fará.
— É tudo culpa sua. — Me calo, tentando ignorar o asco presente na
voz dele. — É culpa sua que essa vagabunda está na nossa casa! — Bate
com força no tampo de mármore da pia e eu pulo de susto. — Foi você que
matou nossa mãe e agora tem uma mulher desconhecida dentro dessa casa.
Seu verme!
As lágrimas descem sem impedimento pelo meu rosto e minha visão
fica turva quando o choro me consome.
— Não vai chorar, seu bosta! — Lorenzzo berra e avança. Segura a
gola da minha camisa. Está furioso e eu sou o alvo de sua ira. Ele espuma
e treme, nervoso, e eu me sinto pequeno, fraco e inútil perto dele. Me sinto
um verdadeiro verme. — Você não tem o direito de chorar!
Mas não consigo me segurar quando meu corpo convulsiona e os
soluços me tomam. Quero dizer que mesmo que não a tenha conhecido,
sinto falta dela. Sinto falta da mamãe. Que eu não sou esse monstro. Que se
eu pudesse escolher, escolheria ter morrido no lugar dela. Mas não consigo
falar nada.
Só consigo chorar.
— Eu vou te dar um bom motivo para chorar, seu merda! — Antes
que eu entenda o que está acontecendo, ele levanta a tampa da chaleira,
que estava aquecendo água para o chá no fogão ao lado.
E eu sinto a dor mais excruciante alcançar meus ossos quando ele
derrama a água fervente sobre meu peitoral.
A sensação é de que fogo foi ateado sobre minha pele. Dói. Dói
muito. E eu berro de dor, desesperado, tentando de alguma forma cessar o
calor torturante que me toma.
Meu grito deve ter chegado ao meu pai, porque ouço a voz dele
distante, junto com a voz de Nina. Mas a consciência começa a me
abandonar, porque meu corpo não suporta a agonia da queimadura se
espalhando.
— Deve ter tropeçado. — É a última coisa que ouço Lorenzzo dizer
antes de eu desmaiar.

Encaro minha imagem refletida no espelho do quarto e desço o olhar


para o peitoral. A cicatriz da queimadura foi coberta por uma tatuagem.
Uma mariposa preta que vai de uma ponta à outra. Passo os dedos pelos
traços, sentindo a textura da queimadura se misturar ao relevo da tinta.
Reviro os olhos para mim mesmo, me sentindo patético. Achei
mesmo que um desenho seria capaz de cobrir e me fazer esquecer toda dor
que ele me causou.
Porém, não tem como esquecer. Tudo que ele faz é com o propósito
de deixar uma marca. Uma marca podre e dolorosa. Uma que jamais se
fecha.
— Eu disse à sua mãe que você não precisava vir — meu pai
resmunga ao meu lado, enquanto empurro o carrinho de compras do
supermercado.
— Disse a ela também que não precisava fazer uma lista de compras,
mas você já teria se esquecido de metade desse carrinho sem a lista, senhor
Giorgio Moretti. — Sorrio apenas para implicar com ele.
— Acho tudo isso desnecessário. Olha só para isso, Kira! O que são
todos esses produtos de limpeza, afinal? — Ele segura um alvejante e lê o
rótulo em busca de uma resposta.
— Vai ter que perguntar à minha mãe, pai. Mas, por ora, você sabe
que só te resta obedecer.
— É, eu sei. — Mais um resmungo.
— Você fala como se odiasse servi-la.
— Me respeita, garota. Sou um homem de opinião própria. Não sirvo
a ninguém.
— Ah, é mesmo? Pois então tire um desses produtos de limpeza daí.
Quero ver explicar a ela porque não levamos um dos itens dessa lista. —
Pego uma embalagem do carrinho e ameaço colocar de volta na prateleira.
— Sou um homem de opinião própria que tem amor à vida. — Ele
toma o objeto da minha mão e o volta para o carrinho, me fazendo soltar
uma risada sonora.
— Vocês dois... — Balanço a cabeça de um lado para o outro.
— Filha, por falar nisso. Eu... Bom, eu... queria...
— É sobre as brigas de vocês? — questiono, adivinhando o assunto
quando ele fica nervoso.
O casamento dos meus pais sempre funcionou com muita negociação
e conversa. Eles sempre foram exemplo de como fazer um relacionamento
funcionar para mim e Dante. Sempre foram também muito carinhosos e
cuidadosos um com o outro e com a gente.
Por isso, há alguns meses, quando eles começaram a discutir
fervorosamente quase todos os dias, eu fiquei perdida. Não sabia como agir
e ficava no meio do fogo cruzado. Recorri ao meu irmão, porque Dante era
mais centrado e saberia conversar melhor com eles. Depois disso, as brigas
começaram a cessar, até que não houvesse mais discussão entre meus pais.
Eles nunca conversaram comigo sobre o que estava acontecendo, mas
acho que é isso que meu pai tenta fazer agora.
Giorgio encolhe os ombros, como se já estivesse se desculpando. Pelo
que, não faço ideia.
— Eu não queria que você ficasse no meio de nossas discussões.
Queria te poupar, mas acho que fui um fracasso nessa missão. — Ele coça a
barba, ansioso.
— Papà[8], está tudo bem. Não vamos agir sempre de acordo com
nossas expectativas e as expectativas dos outros, e está tudo bem que seja
assim. Te desculpo, mas gostaria que conversasse comigo nessas situações.
Não precisa proteger meus sentimentos.
— Essa é minha princesa sendo psicóloga? — Ele ensaia um sorriso
orgulhoso.
— Sim, você criou uma estudante exemplar, pai.
— Da sala para dentro, não é, senhorita? — O semblante dele se
transforma em uma carranca sisuda.
— Pai, de novo isso? Já ouvi três horas do sermão da mamãe e mais
duas horas do seu sermão.
Faz alguns dias desde minha última discussão com Zayan na
biblioteca. Desde então eu tenho fugido de toda tentativa dele de esgotar
minha paciência. Devo confessar que é uma missão com grande potencial
para me enlouquecer. É uma tortura ter que ficar em silêncio quando Zayan
tem como único objetivo de vida me tirar do sério.
Sinto que vou perder o controle, que não conseguirei ignorar por
muito tempo as provocações, mas suportarei enquanto conseguir. Apenas
isso me trará um pouco de paz.
— O garoto tem te importunado? — Meu pai parece quase ler meus
pensamentos.
— Não muito, pai. Sei me defender. Posso oferecer a ele outro tapa,
se ele não tiver aprendido de primeira.
— Kira Matilda!
— Shhhh! Fala baixo — sussurro. — Quer que alguém descubra o
nome do meio que vocês me deram?
— Vai dizer que seus colegas de faculdade não sabem? Por que você
o odeia tanto, afinal?
— Quem tem o nome do meio de Matilda, pai? E não, eles não
sabem. As chamadas são feitas apenas com o primeiro e último nome.
— Sua avó tinha o nome de Matilda. — Ele parece chateado.
— Sim, eu sei. Não acho tão feio. É só que... — Eu paro o carrinho e
me viro, ficando de frente para ele, que está analisando as marcas de
macarrão. — Pai, vocês deveriam ter escolhido um só nome. Por que me
deram os dois? E por que meu irmão não tem um nome do meio?
— Não pensamos em nenhum para ele. E tanto eu quanto sua mãe
queríamos homenagear suas avós, por isso colocamos os dois nomes. —
Meu pai encara o chão, sem querer que eu veja que está triste por eu não
gostar do meu nome do meio. O nome da mãe dele, minha nonna[9].
— Sinto muito, pai. Não quis te magoar. Eu só não tenho o costume
de usar. Mas não me importo que você diga.
Ele abre um sorriso de canto, que me aquece o coração.
— Posso te chamar de Kira Matilda, então?
— Pode — eu cedo. Por ele.
E não será tão ruim, não é? Ninguém sabe do nome, só eles. Isso será
algo nosso, da família.
Era o que eu esperava.
Até eu virar de volta para o carrinho de compras e encontrar meu
maior pesadelo materializado na minha frente, segurando um molho de
tomate nas mãos. Não me dou o trabalho de olhar para os céus e implorar
para que ele não tenha ouvido meu nome completo ser proferido.
Isso porque Zayan tem um sorriso largo de carrasco estampado no
rosto. Sei o que ele quer dizer com isso. Está me dizendo que está pronto
para me condenar mais uma vez e me atormentar com a nova informação
que obteve.
Ele só não esperava que fosse ser traído logo em seguida.
— Zayzay, é essa a marca de xampu que você usa, certo? — Zayzay?
E como se os céus estivessem se redimindo por eu ter sido descoberta,
meus olhos descem até as mãos da mulher, para ler a embalagem que tem
escrito em letras garrafais e coloridas: “PARA CRIANÇAS”.
Ele olha para a direção onde meus olhos foram e depois me encara, já
encontrando em meu rosto o mesmo sorriso que ele usou comigo segundos
atrás. Os olhos de Zayan se estreitam e a boca forma uma linha rígida,
enquanto ele tenta mandar uma mensagem telepática para mim.
“Não faça nenhum comentário, pulguinha, ou acertaremos nossa
conta.”
Recebo a mensagem e respondo na sequência, ignorando o alerta.
“Xampu para crianças, Zayzay?”
“Vá se foder.”
“Vai você primeiro.”
“Praga.”
“Bebezão.”
“Odeio você.”
“Não mais do que eu odeio você.”
“Vai à..."
— Zayan?
— Kira?
Nossa conversa particular e não verbal é cortada quando nossos
nomes são proferidos.
— Vocês se conhecem? — a mulher, que eu suponho ser a madrasta
dele, questiona.
— Sim — ele responde sem me dar a chance de negar.
Se pudesse o transformar em pó nesse momento, eu teria feito.
Quanto menos pessoas souberem que eu conheço esse ser humano infernal,
melhor será.
A madrasta dele e meu pai nos encaram, esperando uma explicação.
— Somos colegas de classe — digo.
— Foi ela quem me deu o tapa.
Ofereço uma versão curta da verdade, enquanto Zayan escolhe mais
uma vez ser sincero, me enervando de um jeito que só ele sabe fazer.
Encaro aqueles olhos perversos e entendo que ele está se colocando como
vítima da colega louca e agressiva, e é exatamente assim que eu queria
poder agir agora: de uma forma louca e agressiva.
Os olhos negros da mulher me inspecionam com curiosidade e a
expressão dela não me diz qual verdadeiro sentimento a toma. Posso sentir
a força do olhar do meu pai pesar sobre mim, mas não viro para encará-lo.
Obrigo a mim mesma a demonstrar o mínimo de decência.
— Zayzay, achei que tivéssemos superado essa história. Te pedi
desculpas. E te desculpei também pelo apelido que você tinha escolhido
para mim. Lembra? — Peso o tom da minha voz com falsa candura.
— Que apelido? — a mulher e meu pai questionam.
Sorrio para ele, e quando Zayan abre a boca para tentar fugir da
resposta, sou mais rápida.
— Pulce[10]. Ele adora me chamar assim. Vai entender.
— Zayan! O que eu te falei sobre como tratar a garota? — A
madrasta chama a atenção dele, como se não estivéssemos aqui.
— Do que você chamou minha filha? — meu pai questiona, com o
tom de voz raivoso, característico de Giorgio Moretti.
Percebo o pomo de adão da minha nêmesis movimentar quando
Zayan engole em seco.
— Sim, Kira. Nós conversamos e superamos tudo.
“Você me paga na segunda-feira, pulguinha.”
Nossa conversa silenciosa continua apenas com trocas de olhares.
— Sim, Zayan. Foi um momento, nos exaltamos. Mas resolvemos
nossas diferenças, certo?
— Claro. — O tom de voz dele é gélido.
— Eu sou Nina, a propósito. Madrasta de Zayan. — A mulher estende
a mão e se apresenta.
— Giorgio. Eu sou pai de Kira. — Eles se cumprimentam. — Sinto
muito pelo que minha filha fez, Nina. Não ensinamos Kira a agir assim.
— Eu que peço desculpas, Giorgio. Zayan sempre foi um doce de
menino. Desde que o conheci, quando ele tinha oito anos, nunca deu
trabalho. Não sei o que aconteceu para que ele virasse do avesso assim. —
Ela lança um olhar de repreensão para o enteado, que me encara com o
olhar mortífero.
“Essa pulguinha me aconteceu. Essa praguinha insuportável.”
— Bom, eu acho que nós vamos por ali, não é, Zayan? — Nina
quebra o silêncio desconfortável que se instaurou, ao notar também os
olhares desconfiados de meu pai para o garoto.
Eles se afastam, indo na direção do corredor oposto, e tanto eu quanto
Gio os acompanhamos com o olhar, até que estejam fora do nosso campo de
visão.
— Se esse garoto lhe arrumar problemas, me avise, Kira Matilda. —
Quase abro a boca para protestar, mas então lembro do nosso combinado
recente e me calo.
Kira Matilda. Não tem nenhuma sonoridade. Onde meus pais
estavam com a cabeça?
— Giorgio Moretti!
— O que nós esquecemos, Kira? — Meu pai me olha apavorado,
quando o grito da minha mãe ressoa da cozinha.
— Nós não. Me tira dessa.
— Você foi ao supermercado comigo para me supervisionar, Kira.
Nós dois estamos juntos nessa — sussurra. — Sim, minha rainha —
responde para minha mãe, com a voz aveludada, quando ela surge furiosa
na porta da cozinha.
— Eu disse alvejante para roupas brancas. Para roupas brancas. O que
é isso aqui? — Ela ergue a embalagem de um produto e eu não compreendo
a origem do problema.
— Uma embalagem branca. — Meu pai, no entanto, parece entender
o motivo da chateação. — Eu me confundi, meu bem. Pode me desculpar?
— ele diz com a voz mansa, se aproximando dela com cautela.
Giorgio alcança a fera e circunda os braços na cintura dela, dando
beijinhos na bochecha, e minha mãe ameaça esboçar um sorriso.
— Argh! Vocês dois podem fazer isso fora do alcance da minha
visão? — Tapo os olhos, zombando deles.
A campainha toca e eu corro para atender, fugindo da cena melosa
que meus pais protagonizam.
— Eu prefiro acreditar que fui um milagre divino, baby! Prefiro
acreditar que um fenômeno sobrenatural fez minha mãe engravidar do que
aceitar que aquele palhaço é meu pai! — Ouço Aisha esbravejar do outro
lado da porta.
— Eu sei, amor, mas as coisas vão se ajeitar. Você vai ver. Estarei
aqui para te ajudar no que precisar.
Eu abro a porta para presenciar o exato instante em que meu irmão
está tomando os lábios da ruiva em um beijo casto.
— Ah, fala sério! Eu acabei de fugir de um casal de pombinhos
apaixonados! Vocês dois, me deem um tempo — repreendo-os, com um
tom divertido, e eles se afastam, rindo.
— Bom te ver também, princesa. — Dante segura a mão da
namorada, enquanto puxa meu ombro com o braço livre. — Como estão as
coisas?
— Bem, e com vocês? Acho que pelo visto não tão bem.
— Você me ouviu falar sobre o meu progenitor? — Aceno que sim.
— Desculpa por isso. É que ele agora inventou de comprar mais ações da
Campello — ela explica, referindo-se à vinícola da família.
Aisha nunca havia conhecido o pai. Foi só aos dezesseis anos que
descobriu a família paterna. E ainda assim, Luigi, o progenitor da ruiva, não
fez questão de conhecê-la. Até alguns meses atrás, quando ele apareceu de
surpresa e decidiu infernizar a vida da minha cunhada. Pelo que Dante me
contou, ele está tentando se infiltrar na vinícola pouco a pouco.
— Mas não tem nada que você possa fazer? — Nós entramos juntos
para dentro de casa e eu fecho a porta.
— Aparentemente não. Ele pode comprar ações de quem quiser. Eu e
Anita, nossa gerente de recursos humanos, estamos tentando montar um
evento para manter um clima razoável na empresa, mas isso não impede
Luigi de instaurar o caos, pelo visto. — Ela joga o corpo no sofá.
Aisha parece exausta.
Vou até ela e me sento do lado direito, enquanto Dante se aconchega
do lado esquerdo da ruiva.
— Sinto muito por tudo isso. — Seguro as mãos dela, tentando
confortá-la.
— Eu sei. Eu também — Aisha suspira. — Mas não foi para falar de
coisas ruins que viemos aqui.
— Dante? Aisha? — Minha mãe aparece na porta da cozinha, com
meu pai no encalço.
— Buonasera, mãe, pai — meu irmão os cumprimenta.
— Boa noite, Martina. Ciao[11], Gio.
— Aisha e Dante, que surpresa boa ver vocês aqui! — Meu pai sorri
para eles. — Vão ficar para o jantar?
— Sim. Mas, antes, eu e Dante temos um anúncio a fazer.
— Ai, meus anjos no céu atenderam o meu pedido! Vão me dar netos,
não é mesmo?
— Mãe! Por Deus, eu e Aisha acabamos de começar um namoro! —
Encaro meu irmão, que parece querer afundar no sofá, enquanto a ruiva ri
abertamente.
— Ainda não, Martina. É um pouco cedo para isso — Aisha
responde, ainda sorrindo. — Mas eu e Dante decidimos dar mais um passo
na nossa relação. — Ela o encara com o olhar apaixonado e bobo que já vi
tantas vezes no rosto de Dante. Em seguida continua: — Nós vamos morar
juntos.
Suspiramos. Eu, meu pai e minha mãe. A emoção é tanta que sinto
meus olhos encherem de água. Meu peito se preenche de uma sensação
reconfortante. É como ser envolvida com o cobertor mais quentinho em
uma noite de inverno. Eu amo esses dois e amo a forma como eles se
encaixam tão bem na vida um do outro.
— Ah, Aisha! Que notícia maravilhosa! — Minha mãe se aproxima e
segura a mão da ruiva, a puxando para um abraço.
Encaro meu irmão, e a expressão de Dante é a tradução da felicidade
plena. Ele está feliz. Ele achou seu lar. E não no sentido físico do lar. Mas
ele achou seu espaço no coração dela. Um espaço que ele sempre sonhou
em conquistar e nunca soube se teria a chance de ter.
Ele gira o pescoço e nos encaramos. Nessa nossa pequena troca, ele
entende o quão feliz estou por ele e acena uma única vez, me dizendo com
aquele olhar expressivo: “Eu consegui, irmã. Ela finalmente me ama”.
— E, Kira, Dante tem uma proposta para te fazer — Aisha diz, depois
de sair do abraço do meu pai, que a parabenizava.
— Para mim?
— Sim, princesinha. O contrato de aluguel do meu apartamento vai
até o fim do ano. Para rescindir, eu teria que pagar uma multa alta. Além
disso, eu e Aisha teríamos que ter tempo de vender toda a mobília, porque o
apartamento que ela comprou já tem tudo. E é lá que nós vamos morar. Eu
conversei com o papai e ele disse que consegue bancar suas despesas. Então
eu vou pagar o aluguel e ele as contas, até sua faculdade terminar. Isso, é
claro, se você aceitar morar lá.
— Você está me dizendo que eu terei aquele apartamento todo só para
mim? — Dante acena que sim e eu quase pulo no colo dele quando o
abraço, agradecida e animada. — Eu não acredito nisso, só pode ser um
sonho!
Sinto um pico de dor na minha barriga e depois mais um pico de dor,
e dou um tapa na mão do atrevido.
— Não pedi para me beliscar!
— Estou te mostrando que não é um sonho. Mas terá
responsabilidades, princesa. Cozinhar, lavar, manter o lugar conservado. E
nada de lotar aquele apartamento com universitários baderneiros. — Meu
irmão aponta o dedo na minha direção, avisando.
— Prometo manter tudo em ordem. — Me afasto de Dante e agora
encaro meu pai. — Você sabia de tudo isso e não me disse nada?
— Queria que fosse surpresa, Kira Matilda. — Por Deus, ele se
apegou mesmo ao meu segundo nome!
— Então agora é permitido usar Matilda? — Meu irmão se diverte.
Ele sabe o quanto eu odeio o nome.
— Sim. — É o que me limito a dizer.
— Acho que temos muito o que comemorar. Vou preparar nosso
jantar. Gio, você escolhe um vinho bom. Dante e Aisha, venham me ajudar
na preparação. E você também, Kira. Agora precisa aprender a cozinhar.
Ah, eu mal posso acreditar em como meus filhos cresceram! Parece que foi
ontem mesmo que eu fui chamada na escola, quando Kira puxou o cabelo
do colega, ainda na pré-escola. — Minha mãe sai tagarelando em direção à
cozinha e nós a seguimos.
— Poxa, mãe, não tem uma lembrança melhor? — reclamo.
E isso dá abertura para que ela comece a narrar todos os nossos
momentos mais constrangedores, enquanto Aisha e meu pai gargalham às
custas de mim e Dante.

— Pronto — anuncio, colocando o porta-lápis na mesa, terminando


assim, oficialmente, minha mudança. Aproveitamos o fim de semana depois
que Dante fez a proposta para organizar tudo.
Não tinha muito o que fazer, afinal, o apartamento está todo
mobiliado. Mantive o quarto que eu usava como meu, apenas melhorando a
decoração.
Mexi no escritório de Dante, colocando meus livros e material de
estudos. E coloquei fotos nossas pelo apartamento.
— É isso — digo, com um sorriso enorme no rosto, e me viro para
minha família.
— Estou orgulhoso de você, sorella[12]. Acho que vai ser bom para
você amadurecer.
— Hey, eu sou madura! — Dante me encara com um olhar sugestivo.
— Ok, na maior parte do tempo eu sou madura.
— Está feliz, filha? — Meu pai me encara, sorrindo.
— Muito. Muito mesmo. Muito obrigada, pai. E Dan. — Olho de um
para o outro. — Eu acho que será um passo importante para mim.
— Tenho certeza que sim, bambina[13].
— Não sei... — minha mãe diz, receosa. — Não acha que está cedo
demais, Kira?
Ela está calada desde cedo, quando começamos a colocar as coisas no
lugar. Martina nunca fica em silêncio. Ela sempre tem algo a dizer. Gosta de
tagarelar. Como gosta! Mas acho que ao me ver colocando minhas coisas no
carro e empacotar meus pertences, ela finalmente entendeu que eu vou sair
de casa. E hoje, durante a mudança, mamãe não tinha nenhuma palavra a
proferir.
Até agora.
Encaro os homens da família, pedindo silenciosamente por um tempo
com ela. Alguns segundos depois eles entendem o recado.
— Eu acho que vou verificar se ficou alguma coisa no carro. —
Dante arruma uma desculpa.
— É, é uma boa ideia. Eu vou com você, filho.
Eles saem apressados do cômodo, me deixando a sós com ela.
— Diga, dona Martina — peço, com a voz suave.
— Não sei, minha filha... Você ainda é nova. Vinte e um anos, Kira.
Não acha cedo demais? E você sabe muito bem que não consegue ficar
sozinha... Sabe dos seus medos, minha filha. Sabe do que te aconteceu...
Seguro o estremecimento quando minha mãe menciona um período
turbulento da minha vida. Ela, meu pai, Carmela e Matteo são os únicos que
sabem de tudo que aconteceu.
Entendo o medo de minha mãe. É parte do meu próprio medo.
Mas eu não posso me prender ao meu passado e não posso deixar de
viver minha vida por causa de uma pessoa que tentou tomar parte minha.
— Mãe... O que aconteceu não foi culpa minha. E eu trabalho meu
medo. Faço terapia por isso.
— Por que você não nos contou antes, Kira? Nós poderíamos ter
denunciado o garoto.
— Porque eu não consegui, mãe. Eu não tive coragem. E agora já
passou. Eu não quero ter que encarar a justiça. Por favor, não vamos entrar
nesse assunto de novo.
— Não me conformo! Eu não me conformo, Kira.
— Mãe, eu não tinha nada para entregar à justiça. E já passou. Mudar
para esse apartamento significa isso para mim. Significa que eu amadureci,
que eu encarei meus temores. E eu estou feliz. Muito feliz. Pode aceitar
isso? — Seguro as mãos dela, e minha mãe acaricia meu dorso com os
polegares.
— Eu vou confiar em você, minha menina. Mas lembre-se sempre
que, em qualquer situação de perigo, deve nos comunicar.
— Tudo bem. Mas a maior emergência que eu terei será,
provavelmente, algum desastre culinário. — Ela se permite sorrir com meu
comentário.
— Eu não sei onde errei na sua educação, Kira. — Ela me puxa para
um abraço e eu envolvo a cintura da minha mãe. — Seu irmão é um
cozinheiro de mão cheia e você não sabe colocar um espaguete na água para
cozinhar. Que tipo de italiana está se tornando, filha? O que seus
antepassados pensariam disso? — Ela me afasta e caminhamos de mãos
dadas para a sala. — Prometa que não encherá esse armário de bobagens,
que vai pelo menos tentar aprender. Ou eu mesma farei seu pai trazer
comida para você todos os dias.
E assim voltamos ao modo Martina normal, quando ela começa a me
dar infinitas instruções, dicas de cozinha que eu provavelmente esquecerei,
e ainda por cima ganho um sermão por sempre aceitar as loucuras do meu
pai e de Dante.
Todos os alunos da matéria de Psicologia Contemporânea se
entreolham, buscando uma explicação para o atraso. A aula deveria ter
começado há quinze minutos, mas nenhum sinal da professora na sala.
— Qual o problema? Será que aconteceu algum imprevisto? —
Marco questiona ao meu lado.
— Não faço ideia. — Dou de ombros.
— Vou perguntar à dupla do mal. — Ele acena com a cabeça na
direção de Kira e Carmela.
Confesso que depois da nossa interação no supermercado, achei que a
Barbiezinha voltaria à nossa arena particular. Mas, pelo que vejo, foi apenas
um deslize da parte dela, já que mais uma vez, Kira voltou a ignorar
qualquer tentativa minha de provocá-la.
Isso já está me irritando profundamente.
A essa altura, Kira já deveria ter entendido que eu não irei recuar.
Essa pequena atrevida não pode escolher algo diferente, a não ser rebater. É
assim que funcionamos, Kira. Sempre foi assim. As engrenagens que fazem
nosso ódio mútuo e febril funcionarem não irão rodar se você não lubrificá-
las.
— Está mesmo andando com o bando de perdedores? — comento, me
divertindo.
— Sai dessa, Zayan. — Marco revira os olhos para mim, antes de se
levantar e ir até as duas.
Ele provavelmente faz alguma provocação, já que Carmela esboça
uma careta e Kira dá um tapa no braço dele. O Marco você corresponde,
não é, linda? Logo em seguida, o mau humor das duas se vai, porque ele
diz algo que as faz rir.
O sorriso dela faz com que algo dentro de mim rache. Esse eu nunca
terei. Por escolha minha.
Sorrio com cinismo para mim mesmo. Não há mesmo espaço para
nada de bom na minha vida.
Os sussurros e cochichos se dissipam quando a professora finalmente
abre a porta e entra por ela junto com nosso professor de Psicologia
Analítica. Olho na direção de Marco, que tem a expressão confusa, e ergo
os ombros, igualmente perdido.
— Bom dia, alunos — a morena de pele bronzeada começa a falar,
ajustando os óculos que escorregam pelo nariz fino. — Bom, eu e o
professor Mário conversamos um pouco e pensamos em trazer uma
proposta diferente para vocês. No final do semestre, faremos uma mesa de
debate. — Assim que a palavra “debate” é proferida, metade dos olhares
dos alunos se viram para mim, enquanto a outra metade encara Kira.
Fizemos nossa fama, Barbie.
Por que não olha para mim? Isso está me matando, linda. Quero te
provocar.
Mas ela não o faz. Não mexe nenhum centímetro para se virar e me
encarar com aqueles olhos castanhos assassinos.
— Vamos tentar manter o clima ameno, sim? — O professor Mário
percebe o desastre que esse evento pode virar. — A ideia é que vocês
tragam duas correntes de pensamentos diferentes e discorram sobre como
cada uma delas analisa um aspecto da nossa vida.
Marco ergue a mão e a professora Rosa concede a palavra a ele.
— Nós vamos escolher quais correntes da psicologia e também qual
aspecto é esse?
— Ah, não. Já está escolhido. Colocaremos em cheque a visão da
psicanálise e a humanista. E vocês vão falar sobre o amor. — Ela abre um
sorriso orgulhoso, e posso dizer que essa mulher é uma romântica incurável
apenas pelo brilho no olhar dela.
Eba. Amor. Que maravilhoso!, penso com ironia.
— Vamos dividir vocês em dois grupos. Esse será o trabalho final de
vocês para nossa disciplina, então é importante que todos participem. Cada
grupo terá um representante, que será também o porta-voz do time no dia
do deba... Da mesa-redonda. — Dessa vez é Rosa quem olha de mim para
Kira. É sutil, mas eu noto. E sorrio. Isso vai ser espetacular.
— Bom, alguém quer se candidatar para ser o líder do grupo? Que
não sejam Kira e Zayan? — o professor Mário emenda quando nós dois
erguemos o braço.
Qual é? Ele não sabe se divertir?
Coloco a mão na mesa, contrariado, e Kira parece sentir o mesmo.
Talvez ela não esteja tão longe de ceder às nossas disputas. Talvez cada
célula dela esteja ansiando por isso, mesmo que tenha escolhido me ignorar
nos últimos tempos.
O silêncio que perdura na sala, sem que ninguém mais se voluntarie,
faz Rosa se remexer, inquieta. Posso notar, segundo após segundo, que ela
começa a aceitar a derrota.
A euforia me toma quando os ombros da professora cedem. Ela troca
olhares com Mário e eles acenam uma única vez, assumindo que não têm
outra escolha.
— Kira, Zayan, formem seus grupos.
— E as correntes? — a pulguinha questiona.
— Zayan, você ficará com psicanálise. — Mário aponta na minha
direção e eu aceno, concordando. — Kira, psicologia humanista. Podem ir
em frente.
Vinte alunos começam a se dividir voluntariamente entre mim e ela.
Marco volta para a mesa dele e nós começamos a nos organizar com o
nosso grupo, que se reúne, ávido por uma boa competição.
O restante da aula é dedicado ao trabalho. Discutimos os melhores
pesquisadores para falar sobre a temática, criamos uma linha de raciocínio e
dividimos tarefas entre o grupo.
Quando o tempo da aula termina, arrisco olhar na direção dela, que
teimosamente ainda não se vira para mim.
Que merda, Kira!
Estou farto dessa teimosia. É hora de fazê-la reagir.

— Não. — Matteo aponta o dedo para mim quando me aproximo


dele.
— Mas eu não disse nada!
— Sua cara diz tudo. Você quer fazer alguma merda e quer me
colocar no meio. A resposta é não.
— Por favor, Matt. Pelo menos me ouve. — Uno as palmas das mãos
em súplica e uso o tom mais convincente que consigo.
— Zayan, já disse. Não.
— Mas é um pedido tão simples... — Faço biquinho. Estou me
esforçando aqui, porque preciso muito que ele ceda.
— Por que você está fazendo essa carinha de menino perdido, Zayan?
Não faça isso. É muito... — Fofo, eu sei. Nina me acusava de ser um garoto
irresistível. Ela dizia que era impossível não ceder aos meus pedidos
quando eu colocava uma expressão suplicante no rosto.
Eu não era consciente do que eu fazia quando novo, só tentava
expressar minha necessidade em ter algo.
Hoje em dia estou consciente, e uso dos artifícios que tenho sabendo
que irei desestabilizá-lo.
— Desfaz essa expressão, Gato de Botas! Eu não quero nenhuma
confusão para o meu lado.
— Por favor...
— Mas que merda, Zayan! Do que você precisa, garoto?
— Eu e ela, juntos. Sem ninguém para a salvar e sem chance de
escape.
— Está falando como se fosse cometer um assassinato. Não está me
convencendo.
— Não vou matar Kira. No fim, é ela quem vai querer me matar. —
Eu espero.
Que garota infernal! Está me colocando para brincar com fogo.
— Você é louco, Zayan. Alguém já te disse isso?
— Não sou, não. Só estou tentando reconquistar a minha inimizade
preferida. Obrigado, Matt. — Dou dois tapinhas no ombro dele e começo a
me afastar.
— Não disse que faria nada! — ele quase grita quando estou longe.
Viro-me na direção dele com um sorriso cretino no rosto.
— Você sabe que vai. — Pisco o olho esquerdo para Matteo e recebo
um revirar de olhos na sequência.

— Tem certeza que não tem mais ninguém para fazer isso? — Kira
questiona Matteo, ignorando minha presença.
— Tenho, Kiki. Sinto muito, mas todos os motoristas da faculdade
estão ocupados. E eu preciso desses livros aqui hoje mesmo.
— Posso ir sozinha — ela tenta argumentar.
— Você não dirige.
— Ele pode ir sozinho.
— Zayan não vai saber verificar se a encomenda está certa ou não.
— Hey! — protesto só por diversão. Estou louco para os argumentos
dela se esgotarem, e então poderemos ir logo.
— Viu? Ele também não quer isso — Kira diz e Matteo me encara
com cinismo.
— Me desculpe, mas Angelina precisa desses livros para hoje. E só
tem vocês dois disponíveis. Prometo te recompensar. — O olhar dele pousa
em mim por um segundo e eu entendo que eu serei a pessoa a recompensá-
lo.
— Anda, Kira. Não estou por sua conta. — Pouso a mão na lombar
dela e a garota se afasta em um pulo.
— Tira a mão de mim, babaca!
— Kira, ninguém tem tempo para a sua pirraça! — exclamo, irritado
com a reação dela.
A garota está me tratando como se eu tivesse algum tipo de doença
contagiosa.
Ela olha para Matteo e o biquinho de irritação se forma no rosto dela.
O tom avermelhado toma as maçãs do rosto, e com isso sei que está furiosa.
— Anda, vamos acabar com isso logo. — Passa por mim furiosa, e eu
começo a sorrir.
— Seja um bom garoto. Ou será um garoto morto. — Matteo dá um
último aviso, que me faz erguer os braços em rendição.
— Eu sei me defender, Matteo! — Kira diz, já um pouco distante,
mostrando que ouviu o amigo.
Ele me lança um olhar de alerta, antes de eu me virar para alcançá-la.
Nós vamos em direção ao meu carro, que já está parado no
estacionamento, próximo à biblioteca. Destravo e abro a porta do motorista,
enquanto ela entra do lado do passageiro.
— Então... — Tento começar uma conversa, mas ela é rápida ao ligar
o som e colocar no volume mais alto.
Abaixo o volume novamente e ela faz menção de levar a mão ao
aparelho mais uma vez.
— Meu carro, minhas regras — aviso, segurando o pulso dela e o
afastando do objeto.
— Odeio você. — Kira vira o rosto para a janela, emburrada.
— E o céu é azul, pulguinha. — Dirijo para fora da faculdade,
pegando a avenida que nos leva para o centro de distribuição de
encomendas.
Silêncio total no carro.
Anda, Kira. Reage. Faça algo. Grite comigo mais uma vez.
— Preparada para o debate?
— Zayan, que merda! Pode só dirigir? Eu não quero e não tenho nada
para conversar com você. — Ela aponta para a rua.
Arrisco olhar para o lado, e a expressão que encontro no rosto
delicado dela me pega desprevenido.
Não é ódio, não é fúria, não é desprezo.
É angústia. Há algo de novo no olhar de Kira que me desconcerta. Eu
não estava preparado para ver a guarda dela baixa.
— Qual o problema? — questiono, perdido.
— Acho que nós dois sabemos a resposta para essa pergunta.
— Além de mim, qual é o problema?
— Meu único problema é você, Zayan. Exclusivamente você. Tudo
na minha vida é ótimo. Mesmo que não seja perfeito, ainda assim, é
excelente. Exceto você. Você é o único transtorno que tenho que enfrentar.
— Kira, a gente se provoca, discute e se odeia desde sempre. Por que
isso de repente virou algo maior do que sempre foi?
— É exatamente esse o problema, Zayan! — Ela se exalta e vejo que
está se segurando para não chorar. Não, Kira. Por favor, chorar não. Eu não
consigo lidar com isso, você sabe bem. — É essa a merda do problema.
Sempre foi assim, desde o instante em que seus olhos pousaram em mim. A
primeira coisa que você soube me oferecer foi desprezo. Eu fui gentil te
oferecendo minhas anotações e você me dispensou com grosseria. O que te
fez me odiar tanto? Tem que haver uma explicação racional para tamanho
desafeto. — O tom de voz dela é suplicante.
Claro que tenho uma justificativa. Ninguém dispensa alguém que mal
conhece assim. Mas essa é uma pergunta que Kira nunca terá uma resposta.
Ela não precisa saber o quão fodida minha história é. É melhor para nós
dois que seja assim.
— Se não tem nenhuma explicação para me dar, então me deixe em
paz, Zayan. Fingir que eu não existo é o melhor que pode fazer por nós
dois. Você pode ser inconsequente e imune ao caos que somos juntos, mas
eu não. Eu sou sensível, eu choro de ódio, eu vejo uma parte minha que
abomino brotar sempre que você está por perto. E eu não quero isso para
mim. Quero ser melhor do que toda essa merda.
— Está dizendo que isso tudo não me afeta?
— Não parece. Parece que eu sou a única exausta disso tudo.
— Eu posso não estar cansado, mas isso não quer dizer que você é a
única incomodada aqui. Só que nós somos assim, Kira. Temos que ser
assim.
— Não! Eu posso escolher fazer diferente. Por mim. Eu posso
escolher ter um pouco de paz de espírito. Posso escolher ignorar cada
provocação infantil sua. E você sabe que eu sou capaz disso. Fiz isso nas
últimas semanas e eu nunca estive tão leve. Irei continuar até que você
desista.
— Não vou desistir, sabe disso.
— Azar o seu. — Ela vira o rosto, emburrada.
Linda, não me ignore. Por favor. Preciso disso, não vê? Preciso das
suas provocações.
— Tudo bem, Kira. Você quer bandeira branca? Então vamos lá. —
Eu mudo a rota e pego a rua à direita.
— O que você está fazendo? Nós temos uma encomenda para buscar.
— Relaxa, pulguinha. Temos tempo.
Viro mais algumas ruas até chegar ao destino final.
— O que isso significa? — questiona, irritada, olhando para a calçada
onde estaciono.
— Você quer paz. Posso te oferecer algumas horas de paz. Vamos.
Vou te levar para tomar o melhor gelato de Florença. — Aponto para a
fachada da gelateria protegida por um toldo lilás e azul-claro, do outro lado
da rua.
— Quem disse que eu quero? — Ela cruza os braços, me desafiando.
Ah, então agora eu consigo o que eu quero. Quando eu decido ser
gentil, um verdadeiro cavalheiro, ela me entrega desafio.
— Vamos, Kira. Eu não vou fazer isso de novo. Sua chance é essa.
— Ganho o que com isso, Zayan? Um gelato? Posso comprar quando
eu quiser. — Claro, porque a princesinha do papai e do irmão tem sempre o
que quer, quando quer.
— Vamos brincar. Um jogo de perguntas e respostas. Não é isso que
deseja? Respostas?
— Vai me responder mesmo?
— Sim. Mas é um jogo, então haverá regras. — Abro a porta e saio
do carro, sabendo que a curiosidade dessa pequena Barbie falará mais alto.
Não erro. Ela abre a porta e sai, saltitante. Como pode mudar de
humor tão rápido apenas por conseguir fazer alguém se dobrar às vontades
dela?
Abro a porta da gelateria que Nina costumava me trazer quando eu
era mais novo. Uma pontada de nostalgia me envolve quando miro a mesa
de fundo, à direita, desocupada. O nosso lugar de sempre. Nunca
mudávamos, porque é o assento de frente à janela e que nos dá uma visão
ampla de todo o movimento do lado de fora. Passávamos horas aqui,
assistindo as pessoas passando, criando histórias fantasiosas para cada um
dos transeuntes.
— Você já veio aqui antes, não é mesmo? — Kira questiona ao meu
lado.
— Já começamos as perguntas, pulguinha? Ainda não disse as regras.
— Gostaria que não me chamasse assim. — Ela franze a testa,
irritada, indo até a vitrine.
Kira abaixa o tronco levemente, analisando melhor as opções de
sabor. Parece concentrada, pensando no que vai escolher. Já eu, sei bem o
que quero.
— Limão siciliano, por favor — peço à atendente que está disponível.
— Por que isso não me surpreende? — Kira diz, ainda encarando o
vidro atentamente. — Azedinho, igual seu humor. — Ela gira a cabeça
levemente para mim, com um sorriso tímido.
Então eu posso ganhar um desses também: um repuxar leve no canto
dos lábios atrevidos, direcionado a mim. É bom saber.
— Deixa eu adivinhar. Você está procurando algo de tutti frutti?
— Pistache. — Ela ergue o corpo e faz o pedido à funcionária.
Nossos gelatos são preparados e eu pego a casquinha, indo até a mesa
do fundo.
— Quer contar sobre esse lugar?
— Já começamos as perguntas? — repito, me ajustando no banco.
Kira escolhe se sentar de frente a mim e toma uma porção da sobremesa.
— Quais são as regras?
— Você tem direito a cinco perguntas. Eu tenho direito a não
responder uma delas. Mas não posso voltar atrás na escolha que fizer, seja
ela qual for. E depois eu poderei fazer o mesmo — explico enquanto sorvo
o gelato azedo e refrescante.
— E se eu não quiser?
— Então não temos um trato, linda.
— Você realmente me acha linda?
— Já começamos...
— Sim, sim. Já começamos as perguntas. O que quer dizer que eu
aceitei as condições — ela diz, impaciente, me fazendo sorrir. — Anda,
responde.
— Sim, eu acho você linda. Não me dói dizer. É uma constatação de
fatos.
Ela se surpreende com a forma como sou direto e sincero. Os olhos
dela se arregalam, enquanto Kira engole lentamente a porção de sorvete que
havia sorvido. As bochechas enrubescem de vergonha.
— Certo... — As sobrancelhas se unem. — Não espere que eu vá
retribuir o elogio.
— Nunca esperaria — retruco, me divertindo com o desconcerto dela.
— Próxima.
— Por que você chorou aquele dia? — Meu sorriso se vai e encaro
Kira. Não há pena no olhar dela e agradeço por isso. Encontro apenas
curiosidade genuína.
Mas não é algo que me sinto confortável para dividir com ninguém.
Menos ainda com ela.
— Próxima pergunta. — Gesticulo no ar para que ela pule essa
indagação.
— Mas...
— Próxima — corto o protesto, fazendo o biquinho teimoso surgir
nos lábios dela.
Essa boca.
Não posso ignorar a forma como meu corpo reage a ela. À Kira. Meu
corpo reage à Kira de uma forma catastrófica. É essa a palavra certa. Tentei
ensiná-lo a odiar cada parte dessa garota, tentei fazê-lo entender que não
podemos ansiar por sentir a textura da pele dela contra a minha, por sentir o
cheiro de tutti frutti de perto, mas meu corpo e minha mente racional
parecem não se comunicar muito bem. E agora eu olho para o beicinho que
se formou no rosto delicado e entendo o perigo que é estar perto dessa
garota.
Porque minha mão formiga e quase se move, pronta para tocar os
lábios em formato de coração.
— Com quem você costumava vir aqui? — Ela me tira do meu
momento de devaneio.
— O que te faz pensar que eu vinha com alguém aqui?
— Já está fazendo perguntas, Zayzay? — rebate, com um sorriso
atrevido.
— Vinha aqui com Nina. Minha madrasta.
— Sei bem quem é. — O sorriso no rosto dela se alarga e eu sei no
que ela está pensando. Naquela merda de xampu infantil. Eu gosto do
cheiro, é isso. Não preciso dela enchendo o saco por causa de um
cosmético.
— Nenhuma palavra em relação a isso, pulguinha — aviso,
mordiscando um pedaço da casquinha.
— Eu realmente gostaria que você não usasse esse apelido.
— Barbie Vida Universitária é melhor?
— Você pode me chamar de linda. — Sorri, convencida.
— E alimentar seu ego? Sabe dos estragos que o ego mal
administrado pode trazer?
— Só queria que você fosse mais gentil.
— Tira esse biquinho do rosto, Moretti. Não vai me convencer de
nada assim.
— Você é um chato — suspira alto. — Por que decidiu cessar fogo?
— Não é um cessar fogo. É uma pausa.
— Não vou empunhar mais nenhuma arma.
— Seu ódio é maior que isso, linda. — Ela estreita o olhar na minha
direção. — Não foi você que pediu para eu te chamar assim?
— Desde quando você me entrega o que eu quero? Acabou de dizer
que não te convenço de nada.
— Tem razão. Retiro o que eu disse. Nada de “linda” para você. — A
resposta que recebo é um dedo do meio. Estamos chegando lá. Estamos
voltando ao nosso normal.
— Qual é a parte triste da sua história, Zayan?
Eu travo. Engulo em seco o último pedaço do gelato, quando ela usa
um tom de voz contido e compassivo para fazer uma pergunta tão profunda
e íntima.
Eu deveria saber que ela não ia desistir tão fácil. De uma forma ou de
outra, a garota mimada e persistente na minha frente iria chegar à parte
mais dolorida do meu âmago.
E agora que neguei responder a primeira pergunta, ela faz outra,
consciente de que as respostas para as duas se encontram.
Me colocou em uma armadilha, pulguinha. Isso não se faz. Qual seu
objetivo? Por que quer tanto saber de mim, Kira?
— Não tem escolha, a não ser responder — diz impaciente, quando
fico um tempo em silêncio.
— Eu sei. Mantenho minha palavra. Só é... Porra, Kira! É pessoal.
Como você compartilha algo pessoal com sua inimiga número um? —
questiono, nervoso.
— Sou melhor que isso, Zayan. Não vou usar essa informação para
atingir você.
— Não confio em você.
— E eu não confio em você. Mas eu estou aqui, mesmo sabendo que
você pode me estrangular e se livrar facilmente do meu corpo.
— Não seria estrangulamento.
— Envenenamento?
— Sim. Mais limpo, não acha? E você? Afogamento, aposto.
— Em um lago bem gelado de preferência. Adoraria ver você
implorar por oxigênio enquanto seguro sua cabeça bem fundo. — Ela sorri,
maléfica. — Viu? Não é sobre confiança, é sobre manter sua palavra. Você
é um inimigo leal, não é?
— Touché, Kira — respondo sem nenhum humor. — Minha mãe teve
uma gravidez saudável, pelo menos é o que meu pai fala. Não teve nenhum
problema. Ela fez o acompanhamento pré-natal e teve todo cuidado e
atenção necessários. Mas então, um dia, ela passou mal. A pressão dela
subiu. Eclâmpsia. Os médicos tentaram de tudo para salvar nós dois, mas só
eu sobrevivi. — Sinto a amargura pesar na minha fala.
Você matou ela, seu merdinha. É, eu sei, Lorenzzo. E eu sinto o peso
da culpa dessa tragédia a cada maldito dia da minha vida.
— Você se responsabiliza por isso.
— Suas perguntas acabaram, Kira.
— Eu não fiz uma pergunta. Eu afirmei.
— Não é da sua conta — respondo com irritação. Maldita hora que
decidi abrir minha boca.
— Zayan... — O tom de voz dela é cauteloso. Mal noto o movimento
de Kira até que a mão leve dela pousa no meu braço. Ela está me
consolando.
— Não, Kira! — Seguro o punho dela e afasto do meu corpo, olhando
o movimento das pessoas do lado de fora da janela.
Não preciso da compaixão de ninguém. As coisas aconteceram como
aconteceram e eu fui sim a causa da morte dela. Ninguém pode mudar isso.
— Ainda vai fazer suas perguntas? — Kira indaga, baixinho. Está
deslocada, posso perceber.
Solto o ar pesadamente. Ela não precisa ser punida apenas porque
carrego uma história trágica. Não preciso descontar minha raiva na garota.
O único ressentimento que pesa em meu peito é comigo mesmo.
— Claro que sim. — Alivio meu tom de voz. — Não vai escapar do
interrogatório. — Tento sorrir, mas ela não me acompanha, ainda analisa
cada gesto meu. — O que seu ex fez a você?
— Passo. — Ela dispensa a pergunta com um gesto no ar. Claro que
ela passaria.
— Você tem que responder as outras quatro. Entende isso?
— Sim, eu sei. Ainda assim, eu passo. — E lá está o franzido na testa,
o pensamento distante, provavelmente tomado por memórias ruins.
Por isso trato de trazê-la de volta.
— Suas flores preferidas? — indago.
— Isso é sério? — Me encara, confusa.
— As perguntas são minhas, certo?
Os olhos analíticos pousam sobre mim, buscando uma explicação
para a pergunta. Mas ela não acha nada. Então cede.
— Peônia.
— Um lugar?
— Praia.
— Mentirosa.
— O que te faz pensar que é mentira?
— Você sempre reclamava para Carmela quando sua mãe te arrastava
para a Sicília. A atração principal da cidade é a praia. Você está mentindo.
— Estou tentando entender de onde vem essas suas perguntas.
— Não fiquei questionando a origem das suas perguntas. Anda,
responde logo.
— Qualquer lugar que seja silencioso.
— O que você mais gosta no seu irmão?
— Ok, você definitivamente está me confundindo. Que perguntas são
essas, Zayan?
— Kira... — alerto.
— Certo, certo. Apenas responder. Ok — ela suspira, antes de
responder. — Meu irmão é meu melhor amigo. Sempre foi assim. Minha
mãe diz que Dante me amou no instante em que pousou os olhos em mim.
Ele sempre ajudou meus pais a cuidar de mim, sempre me defendeu. E pode
ser que ele tenha me mimado um pouco.
— Um pouco?
— Um tanto. — Revira os olhos. E logo em seguida sorri com
carinho. Como deve ser ter um irmão assim? Que te ama desde o seu
primeiro respirar? Que te protege de todos os monstros lá fora? Kira é tão
sortuda. — Eu lembro de colocar ele para ouvir One Direction
incansavelmente. É sério, eu não sei como ele aguentava. Eu respirava One
Direction. E ele sempre ouvia comigo, performava e cantava com a mesma
emoção que eu. Ele comprou ingressos e foi comigo em um show deles.
Nunca soube se ele gostava mesmo da banda ou se era só porque eu era fã.
Mas não importa o que Dante faça por mim, ele sempre faz com um sorriso
no rosto. Ele sente comigo, chora comigo, ri comigo. Ele me protege. Às
vezes, até demais. Mas é o jeito dele de dizer que me ama e que sempre
estará por perto. E eu amo tudo, absolutamente tudo dele. — Kira não está
nem aqui mais.
O pensamento e o coração dela nesse instante parecem estar com o
irmão, e eu entendo que a conexão deles é de outro mundo. De outras vidas,
talvez. Algo inquebrável. Algo que eu daria tudo para ter. Mas nunca terei.
— Eu tenho um irmão — digo sem pensar, e ela me encara, surpresa.
— Sério? Por que eu nunca vi você com ele? Ele mora longe?
— Já morou. Mas não mais. Ele mora com a gente. Comigo, meu pai
e minha madrasta. Você nunca viu ele comigo, porque nos odiamos. Do tipo
de ódio irreversível.
— Por que você diz isso?
— Meu irmão é uma pessoa ruim, Kira. Desprezível. Eu posso ter
uma habilidade feia para destruir coisas, mas Lorenzzo é perverso. Ele faz
porque gosta. Porque é sádico.
Eu posso alimentar o ódio de Kira e provocá-la intencionalmente, mas
eu não faria nada para machucá-la. Só preciso dela longe de mim. Esse é
meu único propósito com cada provocação.
— Não acho que você destrua nada. — Não, Kira. Sem compaixão,
por favor. Não mereço isso, linda. Não posso aceitar isso.
— Kira, eu te faço chorar constantemente. Você mesma disse, agora
há pouco.
— E daí, Zayan? Eu choro por tudo. Chorei hoje, no caminho para a
faculdade, porque uma borboleta pousou em mim e eu achei logo que ela
tinha me achado digna do carinho dela. Choro assistindo animações. Eu e
Antônio nos debulhamos em lágrimas com Divertidamente[14].
— Quem é Antônio? — pergunto sem pensar e então percebo o que
acabei de fazer.
Zayan, por favor. Mantenha a língua dentro da boca. Mas que merda!
A última coisa que preciso é encarar o sorriso maldoso que vejo agora,
porque ela elaborou alguma teoria mirabolante sobre mim.
— Isso é ciúmes, Zayzay?
Viu? Teoria mirabolante.
— Só curioso para saber quem é o louco que decidiu passar mais de
uma hora ao seu lado, assistindo um filme de animação.
— Antônio é meu irmão de pais diferentes. É obrigação daquele puto
me acompanhar nesses filmes, já que eu tenho que suportar as vergonhas
que ele me faz passar.
Como eu tenho inveja de você agora, Kira. Como eu queria sentir um
centésimo desse amor, desse carinho e desse acolhimento.
Claro que eu tenho um pouco de tudo isso. Nina nunca me negou
afeto. Tudo que ela me ofereceu desde sempre foi amor. E meu pai pode até
ter sido omisso em muitos momentos, mas em tantos outros ele esteve
presente. Ele me abraçou e me amou.
Eu só queria que meu irmão tivesse amado também. Mesmo que da
maneira dele.
Mas ele nunca foi capaz de nutrir nada de bom por mim.
— Não podemos mudar as pessoas, Zayan. Podemos mudar como
reagimos a elas.
— Você vai ser uma boa terapeuta, pulguinha. Eu já entendi isso. Mas
você não é minha terapeuta. E eu já tenho um. — Que irritantemente disse
a mesma coisa que você.
— Por que você age tanto na defensiva comigo? Por que me odeia
tanto? — ela suspira. Parece exausta.
— Sua cota de perguntas já acabou, linda. Estamos na minha vez. Por
que você tem tanto medo do seu ex-namorado?
Ela me encara, furiosa por eu ter feito exatamente o que ela fez, por
ter elaborado uma pergunta que esclarecerá a primeira, a que ela decidiu
não responder.
Mas então a expressão raivosa dela se transforma e ela tem um sorriso
insuportável de quem vai aprontar no rosto.
— Você já fez cinco perguntas, Zayzay.
— Eu não...
— Perguntou sobre meu ex, sobre as flores, sobre o meu lugar
preferido, sobre meu irmão e sobre Antônio. Cinco perguntas. Sua cota
esgotou.
Mas que insolente! Ela está jogando as regras do meu próprio jogo
contra mim. Que estupidez a minha também. Me deixei levar pelo momento
e perguntei por algo sem sequer perceber.
— Você sabe que podemos fazer uma troca. — Ela percebe minha
irritação comigo mesmo e propõe. — Uma pergunta por outra.
— Você quer saber porque odeio você.
— Exatamente.
— Você está pronta para me dar a resposta que eu desejo?
— Você está pronto?
Nos encaramos por alguns segundos, ambos desconfiados. Já
colocamos muitas cartas na mesa hoje, mas posso sentir a hesitação vir dos
dois lados. Eu, definitivamente, não estou pronto para dar a resposta para a
pergunta que ela quer. Ela não parece decidida a abrir essa parte do seu
passado para mim.
Mas, ainda assim, nós dois sentimos uma necessidade absurda de
abrir essas portas. É como se soubéssemos que isso mudará tudo que
construímos, que nenhum de nós será o mesmo depois de entregar esses
segredos um para o outro.
— Deixamos o acordo suspenso. — É Kira quem diz.
— E quando um falar, o outro também tem que se entregar.
— Não pode voltar atrás.
— Sabe que não farei isso.
— Fechado? — Ela estende a mão.
— Fechado, pulguinha. — Selo nosso compromisso.
— O que eu faço para você tirar esse apelido ridículo da sua boca?
— Para de ignorar minhas tentativas de te tirar do sério. Sei que você
está louca para me rebater de novo. Sei que precisou de todo seu
autocontrole para conter sua euforia quando a mesa-redonda foi anunciada.
— Volte a me odiar, Kira. Seu ódio é melhor que sua indiferença.
— Ainda está mantendo sua palavra?
— Sim, fiel inimiga.
— Então temos um trato — ela anuncia com um sorriso de quem está
pronta para foder minha vida daqui para frente.
É exatamente disso que eu preciso, linda.
Uma matéria que trata especificamente sobre psicologia na
adolescência e vida adulta. E um trabalho em que temos que falar sobre a
infância. Tudo bem, eu posso lidar com isso. Um pouco de contextualização
é o que a professora quer.
O que eu não posso lidar é com esse desgraçado me sabotar de
propósito. É claro que é propositalmente, porque tudo que ele faz é para
acabar com qualquer chance minha de ter sossego.
Caminho a passos duros pela biblioteca, ignorando os olhares que
recebo dos alunos que estão estudando. Eles percebem meu estado de
espírito, porque não faço questão de esconder minha irritação.
— Onde ele está? — questiono para o infeliz que sorri com soberba
para mim assim que me aproximo.
— Onde quem está? — Finge não saber do que estou falando.
— Não se faça de sonso, Zayan. Eu acabei de olhar no sistema de
empréstimo da biblioteca. Você foi burro o bastante para pegar o livro no
seu nome. Você é esperto o suficiente, no entanto, para saber que é a única
cópia disponível. Só vou perguntar uma única vez. Onde está o livro
Tornar-se pessoa, de Carl Rogers?
— Por que quer saber?
— Porque você vai me devolver agora e eu vou fingir que não sei que
você pegou para me irritar. Você é adorador da psicanálise. Nunca faria um
trabalho citando um humanista.
— Talvez eu tenha mudado minha abordagem. — Ele cruza os braços
na frente do corpo e o sorriso provocativo aumenta.
Eu vou estrangular esse babaca. Aqui mesmo. Com testemunhas. Eu
serei presa dessa vez.
— Devolve! Agora! — Dou um passo à frente, louca para erguer a
mão e atingir mais uma vez esse rosto bonito.
Mas que merda! Por que babacas têm que ser lindos assim? É algum
tipo de condição? Só se pode tornar-se um desgraçado de primeira linha se
o rosto for perfeitamente moldado e carregar um sorriso cretino de tão
maravilhoso.
Que se foda a beleza dele!
— Está doida por um beijo meu, não é, pulguinha? — Ele percebe
meu desvio. Claro que percebe. Estamos a poucos centímetros de distância.
Ele consegue enxergar todo movimento meu. Então obviamente notou meu
olhar passear por ele.
— O que eu disse sobre o apelido? — retruco, travando o maxilar.
— Acreditou em mim porque quis.
— Quer jogar baixo? Vamos descer para o inferno então, Zayzay.
Quer ódio? Então esteja pronto para sentir ele penetrar por cada poro seu e
consumir cada nervo. Vai me odiar e se arrepender de ter pedido por isso,
de ter desejado com tanto afinco que eu fosse sua inimiga.
— Manda ver, pulguinha. — Ele tem a ousadia de colocar a ponta do
indicador na minha testa e empurrar minha cabeça, antes de esbarrar no
meu ombro e se afastar.
Esteja preparado, palhaço.

— Essa é a ideia mais estúpida e louca que você teve, Kira. —


Carmela me encara com o olhar de repreensão.
— Ele começou, Mel.
— Ela vai desconfiar. — Nós encaramos a fachada da loja de
antiguidades do outro lado da rua.
Descobri que a madrasta de Zayan é dona dessa loja por meio das
redes sociais. Não foi nada difícil conseguir essa informação. O problema
agora é colocar meu plano em prática e obter o que eu quero.
— Não vai não. Você precisa ser bem convincente.
— Como eu vou convencer aquela mulher de que eu sou amiga de
Zayan e que estou preparando uma festa surpresa, e por isso preciso de
fotos dele quando criança?
— O aniversário dele é em um mês. O gelato preferido de Zayan é de
limão siciliano e a banda preferida dele é Kaleo. Use essas informações a
seu favor.
— Como você sabe de tudo isso? — Ela olha para mim com um
sorriso malicioso no rosto.
— Não se entra em uma guerra sem conhecer o seu rival, Carmela —
rebato, irritada. — Anda, vai logo. — Empurro-a pelo ombro e ela me lança
um último olhar irado antes de atravessar a rua e entrar no lugar pequeno,
mas ainda assim ajeitado.
Assisto minha amiga caminhar até o caixa do comércio. Nina está do
outro lado do caixa e as duas se cumprimentam. Longos minutos se passam
enquanto elas parecem se entender bem, já que conversam amigavelmente,
cheias de sorrisos uma para a outra.
Quinze minutos depois, Mel sai pela porta e vem até mim.
— Então?
— Até a noite nós teremos.
— E ela não desconfiou?
— Não. — Carmela acena uma negativa.
— Ótimo. — Sorrio perversamente, sabendo que o babaca vai me
odiar por isso.
Mas é isso que Zayan quer, não é? Ele procurou. Ele terá.

— Tem certeza disso? — Mel pergunta quando eu finalizo a


apresentação para o trabalho.
Espreguiço-me, depois de passar tanto tempo sentada na cadeira da
sala de jantar do meu apartamento.
— Absoluta — respondo com convicção.
— Vocês dois deveriam se resolver antes que isso tudo dê uma merda
maior ainda, Kira. Eu não apoio essa guerra. É imaturo.
— Eu tentei me afastar disso, Carmela. Ele não deixou. Ele me fez
voltar para esse circo todo. Eu só estou oferecendo o espetáculo que ele
mesmo armou.
— Nenhum dos dois pode dizer que eu não avisei.
— Você por acaso foi avisar a ele também? — questiono, enciumada.
— Sim, eu avisei.
— Então quer dizer que vocês dois agora são amiguinhos? Eu vi
mesmo vocês de conversinha pelos cantos da biblioteca. Mudou de lado?
— Não vou tomar partido em uma disputa que eu acho ridícula, Kiki.
Vocês dois vão se magoar de forma irreparável em algum momento. — Ela
está no modo sermão e discursa com seriedade. — Todo mundo já alertou
para que vocês parem. Olha o ponto que vocês chegaram, Kira! Você bateu
nele. Poderiam ter sido expulsos da faculdade. Tem noção da dimensão
disso? Vocês deveriam ser capazes de conversar e resolver suas diferenças.
— Quais diferenças, Carmela? — Levanto em um rompante da mesa
e pego os nossos copos sujos, levando-os até a pia. — Quais diferenças? Eu
não tenho como me defender de algo que nem mesmo sei a causa. Ele me
odeia gratuitamente. Eu só retruquei as provocações porque também não
sou nenhuma boba. Não ia suportar tudo calada.
— Você está indo longe com isso, e sabe. — Ela aponta para o
computador.
— Talvez assim ele acabe de uma vez com essas provocações. — Ela
bufa e me encara descrente. — Não vou voltar atrás, Mel.
— Tudo bem — minha amiga suspira, derrotada. — Estarei aqui com
você, na saúde e na doença, na merda e nos dias de glória. Mesmo não
concordando.
— Obrigada. E para de andar com ele. Está protegendo Zayan
demais.
— Isso tudo é ciúmes, Kiki? — Ela sorri, travessa, e vem até mim.
— Claro que não. Eu me garanto.
— Acho que está com ciúmes, sim. — Cutuca minha costela
repetidamente. — Anda, admite.
— Para com isso. Eu sinto cócegas. — Dou um tapa na mão dela.
— Então fala que está com ciúmes da sua melhor amiga. — Ela
começa a me beliscar. — Fala, fala, fala. — E o ataque final é me encher de
cócegas.
— Carmela! — Tento me livrar, mas ela é mais forte que eu e não
permite que eu me afaste. — Tudo bem, eu estou com ciúmes! — berro,
tentando desesperadamente esquivar do toque dela.
— Não precisa ter, Kiki. Minha lealdade é sua. — Ela finalmente
para.
— É bom mesmo. — Abraço a cintura dela, que retribui. — Você é
minha melhor amiga. Você me salvou, Mel. Eu nunca serei capaz de
retribuir tudo que você fez.
— Fiz o que qualquer pessoa decente faria.
— Não deixa de ter sido minha salvação.
Ele é meu primeiro namorado. Quero que seja o único. Greg me faz
muito bem. É tão bom estar na companhia dele. Me sinto aconchegada
quando estou assim, enroscada nos braços dele.
Faz só dois meses que nos conhecemos. Sei que tudo foi muito rápido,
mas eu não me preocupo com isso. Eu sei da sinceridade do que sentimos
um pelo outro. Parece que nos conhecemos há bastante tempo.
— Me beija, rosinha.
— Por que me chama assim? — Dou um tapa leve no ombro dele,
repreendendo-o.
— Porque adoro como você fica irritadinha. Anda, me beija. Se não
me beijar em cinco segundos, morrerei.
— Dramático.
— Cinco.
Eu o beijo. Sempre beijo. Com calma, com voracidade, com paixão.
Beijo porque é tão boa a sensação de ter nossos lábios se tocando. Porque
sempre é intenso.
E assim foi tudo entre nós. Intenso. Do início ao fim. Do sonho ao
pesadelo. Do céu ao inferno.
Ele me ofereceu o mundo e em seguida tirou boa parte de mim.
Gregório é o vilão da minha história, mas dessa vez eu não posso permitir
que ele me deixe mais uma vez irreconhecível diante dos meus próprios
olhos.
Preciso parar de deixar o medo me dominar.

Quase todos os alunos apresentaram seus trabalhos e agora só resta


mais uma pessoa lá na frente, que está encerrando seu discurso. Foram
longas horas. Ter que ouvir cada um falar sobre o mesmo tema pode ser
entediante, mas os segundos se arrastaram para mim principalmente pelo
que farei.
A menina loira que apresenta começa a encerrar. E então será minha
vez. Não consigo controlar minhas pernas, que tremulam ansiosas. Um frio
desce pela minha espinha, indicando que talvez essa não seja uma ideia tão
boa.
Mas eu não vou recuar agora. Não sou de me acovardar. Vou até o fim
e então vou lidar com qualquer consequência que seja.
— Kira Moretti. — Meu nome é proferido e eu sinto meu estômago
retorcer. — Pode vir. Você tem cinco minutos para sintetizar seu trabalho.
Pouco tempo, mas é o tempo que todos tivemos. E sinto que serão os
minutos mais longos de toda minha existência.
Abro minha apresentação, que é projetada na tela.
Então eu me viro e o encaro. Os olhos de Zayan estão arregalados e o
corpo projetado para frente, enquanto ele assimila as imagens que estão ali.
Finalmente ele me olha. Ofereço o sorriso mais perverso que posso, e ele
está com o olhar mais sanguinário que já vi.
— Hoje eu trouxe uma abordagem diferente para tratarmos sobre a
infância. De acordo com Carl Jung...
Enquanto discurso sobre como a psicologia analítica trata a infância,
as fotos de Zayan bebê, Zayan criança, Zayan de fralda, Zayan chorando
ainda novo são exibidas e usadas por mim para exemplificar cada fase da
apresentação.
Quase ninguém nesta sala reconheceria o rosto dele, já que são fotos
de um bebê, mas então eu deixo para o final a imagem de Zayan pré-
adolescente, com uma fantasia de múmia. Nessa foto ele se parece mais
com o homem que se tornou.
Exceto que, na foto, ele encara a câmera, sorrindo. E agora ele me
encara com uma ira crua. Há um misto de decepção em seu olhar, mas eu
não ligo.
Tome, Zayan. Aqui está um bom motivo para me odiar.
Quando encerro minha apresentação e a professora finalmente acende
a luz, posso notar que um número considerável de alunos o reconheceu
naquelas fotos, e agora encaram o garoto, que por nenhum segundo parou
de me fuzilar com os olhos castanhos que brilham furiosos.
— Kira, de quem são as fotos que você trouxe? — O tom de voz da
professora Isabella é severo.
Mas dessa vez não me importo de estar encrencada. A forma como o
ódio o consome faz tudo valer a pena.
— Ninguém importante. Era apenas para exemplificar, professora. —
Desvio o olhar dele para encará-la.
— Bem, de qualquer forma não pode expor alguém assim, senhorita
Moretti. Vou tirar metade dos seus pontos por isso.
— Tudo bem. Desculpe o desvio. — Tento ficar séria quando o
sorriso de satisfação teima em querer tomar meu rosto.
Caminho de volta para minha mesa e algumas considerações finais
são feitas antes de sermos liberados da aula.
— Zayan, espera! — Olho para o lado a tempo de ver ele passar por
mim como um furacão, sem virar o rosto por nenhum segundo na minha
direção. Marco vem logo atrás, chamando pelo amigo. — Precisava mesmo
disso, Kira? — Ele me encara decepcionado, indo atrás de Zayan.
Então ele assiste o babaca me provocar por todo esse tempo e nunca
diz nada, mas agora eu viro a bruxa má por umas fotos? Ninguém liga,
amanhã todo mundo já terá esquecido desta apresentação.
— Vem, Kiki. Fez o que queria tanto fazer. Vamos sair daqui.
Carmela segura meu cotovelo, me conduzindo para fora da sala,
enquanto recebo alguns olhares julgadores e outros satisfeitos pelo
caminho.
Parece que Zayan e eu fizemos um bom trabalho em dividir a turma
pelo caminho tortuoso que construímos.
Estou colocando os livros pacientemente de volta nas prateleiras
quando a voz raivosa dele chega até mim.
— Você perdeu a noção?
Zayan finalmente aparece. Já deveria estar aqui há uma hora, mas
ainda não havia dado as caras na biblioteca. Confesso que uma pequena
parte minha se preocupou. Pode ser que por um milésimo de segundo até
me senti culpada. Mas não deixei esse sentimento se apossar de mim.
No final, ele fez por merecer.
Ele coloca o corpo na frente do meu, me separando da estante e me
obrigando a encará-lo, enquanto espuma de raiva.
— Você não tinha nenhum direito de me expor assim! Que merda
você tinha na cabeça, Kira?
— Não era isso que você queria, Zayan? — questiono, o enfrentando.
— Ódio, provocação?
— Você jogou baixo, Kira. Não tem ideia do que fez. — Os olhos
dele estão vermelhos. Vejo que ele está contendo as emoções. Ele estava
chorando? São fotos. Apenas isso. Por que ele está agindo dessa maneira?
— Você pediu por isso. Não tinha nenhum motivo para me desprezar,
Zayan. Agora te dei um. — Passo por ele, ignorando o incômodo que me
perpassa por o ver assim, tão transtornado.
— Isso não vai ficar assim — ele avisa quando começo a me afastar,
e eu volto a encará-lo.
— Quando fica? Quando é que você deixa as coisas passarem? —
retruco, já sentindo mais uma vez a raiva que é tão familiar formigar por
todo meu corpo. — Você sempre vai achar uma maneira nova de me foder,
Zayan. Anda, me mostra seu pior. Eu aguento.
Já aguentei merda demais.
Quando ele não diz mais nada, eu me afasto de vez.
Observo minhas duas penitências em vida discutirem ao longe. Mais
uma vez. Desde aquela baboseira armada por Kira, uma semana atrás, é isso
que os dois têm feito. Eles sempre agiram assim, para ser sincera. Kira e
Zayan vivem para se odiar. Mesmo que, no fundo, sintam algo a mais.
Todos ao redor deles são capazes de enxergar o que realmente acende essas
faíscas. Menos os dois teimosos.
— Temos que intervir, não acha? — Marco pergunta ao meu lado.
Nós dois e Matteo temos um pacto de sempre estar à espreita quando
nosso par caótico se une. Depois da situação ter saído do controle e Kira dar
um tapa nele, decidimos que ficaríamos sempre atentos a qualquer sinal de
perigo.
Como acontece agora.
Zayan está borbulhando de ódio por causa do que Kira fez. Kira está
irada por ele ter reagido assim.
Está saindo do controle, mas eles terão que virar essa página de outra
forma. É hora de interceder pelos dois e dar um empurrão mais certeiro.
— Sim — respondo ao amigo de Zayan. — Matt! — chamo por
Matteo, que passa por nós, pronto para cessar a discussão que acontece nos
corredores da biblioteca. — Espera um pouco. Eu estou tendo uma ideia
aqui.
— Carmela, pelo amor de Deus! Eu estou farto de ideias malucas por
aqui. E esses dois vão colocar essa biblioteca abaixo a qualquer momento
— ele resmunga.
— Ouve o meu plano, e então decidimos juntos se seguiremos em
frente ou não.
Ele solta o ar pesadamente e cede, sentando-se à minha frente.
Explico o que tenho planejado e Marco concorda de imediato. Matt,
por sua vez, parece receoso.
— Eu apoio. — Nós três pulamos no lugar quando uma voz feminina
grave e senil chega até nós.
— Angelina? — Matteo engole em seco, para logo em seguida
encarar a chefe, confuso.
— Ora, Matteo, não me lance esse olhar julgador! Temos que jogar
com as armas que temos, certo? Eu preciso manter minha biblioteca intacta.
E esses dois precisam se acalmar. — Ela sorri de uma forma cúmplice.
Cúmplice de um plano mirabolante de um bando de jovens adultos. Essa
mulher passa bem? — É o seguinte. Vai funcionar assim...
E então a bibliotecária-chefe começa a nos instruir quanto à execução
desse plano inusitado.
Estou terminando de auxiliar um aluno a encontrar um livro quando
Matteo chama por mim. Termino de dar as instruções para o menino e vou
até o meu supervisor de castigo. Que dia esse inferno acaba, afinal?
Não suporto mais olhar para a cara daquela garota mimada,
principalmente depois do que ela fez. Kira me expôs para toda nossa turma,
mostrou fotos íntimas minhas como se não fosse nada de mais. Ela não faz
ideia da história que algumas daquelas fotografias carregam. Isso não se
faz. Não imaginei que ela jogaria tão baixo.
— Preciso que pegue algumas coisas para mim no almoxarifado.
Aqui está a lista. — Ele me entrega um papel.
— Onde fica o almoxarifado?
— No subsolo. É só descer aquelas escadas. — Ele aponta para o fim
do andar que estamos. — Primeira à direita, depois direita de novo. É a
única porta do corredor.
— Certo.
Sigo o caminho que ele apontou e desço as escadas. Entro no corredor
e vejo que a porta que ele mencionou está semiaberta. Entro no cômodo
fechado, sem janelas e com estantes de ferro. Caminho pelos corredores,
analisando a lista e procurando pelas prateleiras os itens que Matteo precisa.
Minha atenção é desviada do pedaço de papel quando noto uma
movimentação à minha esquerda.
Giro o rosto e encontro aquele projeto de Barbie concentrada, em
busca de algo.
— Só pode ser brincadeira.
Ela vira o rosto na minha direção, assustada. Sua expressão se
transforma logo em seguida, passando para uma carranca irada que eu já sei
de cor.
— O que você está fazendo aqui? — indaga, irritada.
— O que “você” está fazendo aqui? — Devolvo o questionamento,
enfatizando o você.
— Matteo me mandou aqui.
— Matteo me mandou aqui — repito a frase dita por ela.
E então a ficha cai para nós dois.
— Merda!
Corremos até a porta do almoxarifado, mas é claro que já está fechada
e trancada.
— Matteo, abre essa porta! — Kira esbraveja, batendo na madeira
com a mão em punho.
— Sinto muito, Kiki, mas é para o seu bem — ele diz, do outro lado.
— Eu morrer é para o meu bem, Matteo? Porque ele vai me matar
aqui dentro, você sabe muito bem disso. Ou então eu saio daqui presa,
porque serei eu a pessoa a cometer um assassinato.
— Kira, vocês estão oficialmente de castigo. — É Carmela quem diz,
e eu não posso acreditar que esses dois desocupados armaram para cima de
nós.
Eles querem implodir esse lugar nos trancando sozinhos.
— Eu vou levar isso para a Angelina! Isso não vai ficar assim,
Matteo! — a bravinha berra, ainda socando a porta com fúria.
— Angelina está ciente do que está acontecendo. E antes que você
diga que irá até o reitor, pense bem se é isso que quer. O senhor Mancini
não quer ver a cara de vocês dois tão cedo.
— Matteo, por favor — ela apela para o sentimental, usando uma voz
suplicante. — Eu não quero morrer.
— Matteo, Carmela, abram essa merda! Não tem nada de engraçado
nisso. — Sou eu quem protesto, me aproximando da porta. Quero distância
dessa garota!
— Zay, é para o seu bem. — Para a minha surpresa, é a voz de Marco
que chega até nós. Desgraçado, eu confiava no moleque!
— Vou deixar vocês um tempo aí, refletindo sobre o que andam
fazendo. E daqui uma ou duas horas eu venho abrir. Tem água e biscoitos na
mesa ao fundo, para vocês não desidratarem. E qualquer dano patrimonial,
vocês irão pagar dos seus bolsos. Então pensem bem antes de atirar
qualquer objeto um no outro. É isso. Tchauzinho — Matteo anuncia.
— Matteo! — Kira não se dá por vencida, mas ouço o trio do mal se
afastando, o que significa que eu estou realmente preso com essa garota por
tempo indeterminado.
Bando de traidores. Eles ainda vão se ver comigo.
Eu decido que o melhor que tenho a fazer é esperar até que eles caiam
na real de que em algum momento nós teremos que sair daqui. E acabem
com essa palhaçada.
Caminho até a parede do fundo e encosto nela, deslizando até sentar
no piso frio, enquanto Kira continua atacando a pobre porta, na esperança
de que isso irá magicamente abri-la. Cruzo os braços na frente do corpo e
espero.
— Acho que já deu para entender que estamos presos aqui.
— E você está bem com isso? — Ela dá chutinhos no batente e
encosta a testa na madeira. Noto as costas dela se expandirem quando ela
suspira, e depois os ombros cederem, quando ela finalmente se dá por
vencida.
Kira se vira de frente para mim e espelha minha postura, sentando-se
no chão e escorando o corpo na porta.
Estamos a uns quatro metros de distância. É seguro. Não tenho
vontade de estrangular aquele pescocinho daqui, de onde estou.
— Eu odeio você. É por culpa sua que estamos aqui. — Aponta
acusativa na minha direção.
— Sei...
Ela finalmente se cala, e por longos minutos o silêncio perdura. Mas
Kira é capaz de manter a língua afiada dentro da boca? Claro que não.
— Não acredito que caí no seu papo furado. Você é um grande
mentiroso babaca, Zayan.
— Me conte algo novo agora, pulguinha — respondo com tédio. Essa
conversa não vai chegar a lugar nenhum.
— Deus, como eu gostaria de poder jogar algo em você agora! — Ela
se levanta do chão e começa a caminhar para o próximo corredor.
— Joga, vamos lá. Vamos ver se tem pulso para isso. — Também me
levanto e vou até onde ela está.
— Tenho uma ideia melhor. Por que não se aproxima para eu arrancar
com minhas próprias mãos esse seu piercing da orelha e te fazer sangrar? —
Ela dá um passo à frente e eu dou outro.
— Claro, pulguinha. Por que não? Vamos ver se é capaz. — Mais
dois passos.
— Canalha. — Um passo.
— Mimada. — Outro passo.
— Desgraçado.
— Chorona.
— Palhaço.
— Covarde. Não consegue nem mesmo enfrentar o ex-namorado.
Ela para. Congela a expressão e o corpo. Os olhos dela estão vidrados
quando o pensamento voa longe.
Nossas respirações estão aceleradas, enquanto sentimos a onda de
ódio emanar dos nossos corpos e chegar até o outro.
E então, antes que eu perceba, ela pega o copo de água na mesa ao
lado e despeja em mim.
— Babaca! — ela grita.
— Qual o seu problema, Kira? — berro de volta, desgrudando a
camisa molhada do meu corpo. Passo a mão pelo rosto, secando os
respingos do líquido gelado, buscando todo meu autocontrole para não
perder a cabeça com essa maluca.
— Você, Zayan! Sempre você. Você não sabe de merda nenhuma da
minha vida! — Gesticula agitada.
— Então me fala o que eu não sei, Kira!
— Não é da sua conta! — Ela aponta o dedo na minha cara. — Não é
da conta de ninguém, porque é a minha vida.
— Sua, dele e da ex. — Faço questão de carregar minha fala com
escárnio.
— Eu fui tão vítima dessa história quanto aquela garota. Mas todo
mundo só quer ver o lado dela. Ninguém sabe o inferno que vivi por meses.
Fala, Barbie. Me conta tudo. Eu preciso saber.
— Deve ser mesmo difícil se deitar na...
— Cala essa boca! — Mais um dedo na minha cara. Os olhos dela
brilham, e acredito que as lágrimas sejam de raiva. Ódio é o que consome o
pequeno corpo. — Cala essa boca imunda, Zayan! Não foi você que foi
perseguido pelo seu ex em cada canto que ia. Não foi você que aguentou dia
e noite as ameaças dele. Não foi você que teve seus dias tomados pelo medo
de encontrá-lo em cada canto, e, principalmente, não foi você que quase
teve seu corpo e mente violados de um jeito cruel!
Dessa vez sou eu quem travo, assimilando tudo que ela acabou de
confessar. Kira treme, furiosa, sem perceber a dimensão de toda informação
que acabou de despejar sobre meu colo. O maxilar dela está cerrado e os
olhos molhados. Ela está no limite.
— Que história é essa, Kira?
E então ela percebe o que acabou de dizer e parece se assustar.
— Nada. — Vira-se de costas para mim, envergonhada por ter dito
mais do que queria.
— Kira, conta essa história direito!
— Não, Zayan. Eu falei o que não devia. Só esquece isso.
Ela começa a se afastar, mas eu paro na frente dela, a impedindo de
fugir.
— Começou, termina, linda. Nós estamos aqui, presos, lembra? Não
vamos sair por aquela porta até que me conte essa história. Se Matteo tentar
destrancar sem eu ter ouvido tudo que tem a dizer, eu mesmo o suborno
para que jogue a chave longe.
— Você se ouve agora? Consegue perceber a loucura que sai da sua
boca? Zayan, por que eu mostraria minha maior vulnerabilidade para
alguém que me odeia? — Ela quer ceder. Ela quer despejar tudo que pesa
no coração e na cabeça dela.
Kira está cansada. Ela foi vítima de alguém perverso e no final ainda
foi julgada por isso. Eu preciso tanto saber de tudo. Ela não tem ideia da
importância que a história dela tem para mim.
E é por isso que eu também cedo.
— Uma vulnerabilidade por outra? Te conto algo meu e você me
conta o que aconteceu.
Ela me encara com olhos castanhos desconfiados. Tento colocar
verdade nos meus, para que ela entenda que não usaria isso para machucá-
la.
Já fiz uma vez e me arrependo amargamente. Não farei de novo.
— Você primeiro — ela diz depois de ponderar.
— Aquela foto que você exibiu, em que eu estava fantasiado de
múmia, há uma história não muito bonita por trás dela. Eu tinha saído do
hospital há pouco tempo, depois de passar alguns dias internado por conta
de uma queimadura. Uma queimadura feita pelo meu próprio irmão.
“Lorenzzo e eu discutimos em uma noite. Meu pai tinha acabado de
nos apresentar Nina, e meu irmão a odiou. Ele não gostava da ideia de que
alguém iria substituir nossa mãe, embora Nina nunca tenha demonstrado ser
esse o objetivo dela. Meu irmão me culpou mais uma vez pela morte de
Cassandra, nossa mãe, e pelas mudanças que aconteceram nas nossas vidas
depois disso. Ele odiava a forma como nosso pai se tornou superprotetor e
os olhares de pena das pessoas quando descobriam que éramos órfãos de
mãe. Detestava a mim e a minha existência também. E ele fez questão de
mostrar isso.
“Lorenzzo berrou e me humilhou, e antes que eu pudesse me
defender, pegou a chaleira do fogão e despejou água fervente em mim. Foi a
pior dor que senti em toda minha vida. Meu corpo não aguentou e eu
desmaiei no chão da cozinha. Acordei no hospital, já enfaixado.
“Depois que recebi alta, ainda tive que ter alguns cuidados com os
ferimentos, como trocar os curativos e passar pomada. Nina era quem fazia
isso. Eu chorava sempre que via a marca que ele havia deixado em mim.
Fui incapaz de contar para ela o que realmente havia acontecido. Até hoje
ela e meu pai pensam que eu peguei a chaleira do fogão e me desequilibrei,
derramando o conteúdo fervente em mim mesmo.
“Alguns dias depois de ter recebido alta, a minha escola organizou
uma festa de Halloween. Eu não queria participar. Eu estava triste. Muito
triste com tudo. E então minha madrasta decidiu aliviar minha melancolia.
Fez dos limões, limonada. Enfaixou meu corpo inteiro e fez uma
maquiagem perfeita. E então eu virei uma múmia para o Halloween.
“Eu sorri, porque ela conseguiu o que queria. Nina sempre foi muito
positiva, e por um instante eu me permiti ser contagiado por essa
positividade. Por um instante, me permiti sorrir, mesmo que em meio à
tragédia que minha vida havia se transformado. Depois de dias, eu não olhei
para aqueles curativos com tristeza. Eu fiquei alegre. E ela também. E então
fez aquele registro, tirando uma foto sem que eu percebesse.”
O silêncio pesa na sala quando termino de narrar sobre uma das
inúmeras memórias terríveis que meu irmão carimbou em minha mente.
— Eu sinto muito, Zayan. — Encaro Kira e vejo sinceridade em seu
olhar. — Não teria feito o que fiz se soubesse disso. Me desculpe, de
verdade.
— Tudo bem. Eu entendo você. Pedi por aquilo. E você não tinha
como saber — suspiro pesadamente, tentando expurgar a dor que me aperta
sempre que penso nele. — Sua vez.
— Você chorou naquele dia, não foi? — Ela desvia o foco.
— Sim, Kira. Nada de mais. Eu choro também. Todos nós. Sou
humano. Não me enrole.
— Sinto muito por isso.
— Considere ser o troco por todas as vezes que te fiz chorar. — O
rosto dela se retorce em uma careta.
— Você se orgulha de fazer isso, eu não. — Não, linda. Não me
orgulho nadinha.
— Não me enrole, Kira Moretti — aviso mais uma vez.
Ela suspira, derrotada, antes de começar.
— Eu me apaixonei por Gregório no primeiro segundo que meus
olhos pousaram nele. — Ignoro o desconforto injustificado que essa frase
me traz e deixo que ela continue.
“Acho que eu era um pouco ingênua e me entreguei muito rápido.
Mas também não tinha porque me frear e não me permitir viver nosso
relacionamento. Nada nele me acionava um alerta. Ele sempre se mostrou
uma pessoa boa. Com pouco mais de dois meses, já estávamos namorando e
todo mundo nesse campus foi testemunha de que nosso namoro parecia algo
saído de conto de fadas.
“Eu recebia flores quando ele ia me buscar na aula. Ele sempre
respeitava meu espaço, sempre me tratava como uma princesa.
“Foi muito de repente. A mudança de comportamento dele foi brusca,
me pegou de surpresa e me tirou o chão. Eu poderia ser ingênua para me
entregar fácil, mas não seria ingênua para permanecer em algo que me
machucaria.
“Nossa primeira discussão foi também a última. Ele me mostrou a
verdadeira face e eu me assustei com o que vi. Nosso namoro foi curto.
Pouco mais de cinco meses depois de ter conhecido ele, eu terminei.
Quando você entrou na faculdade, fazia um mês do término.
“Mas isso só deu início aos piores dias da minha vida. Gregório não
aceitou o fim tão facilmente. Ele começou a mandar mensagens e ligar
incansavelmente para mim. Eu nunca respondia e recusava todas as
ligações. E então, quando eu não correspondi, ele passou a aparecer em
todos os lugares que eu estava.
“Eu achei que em algum momento ele se cansaria, mas os dias
passaram e essa perseguição só piorava. Você, provavelmente, o viu
inúmeras vezes rondando nosso prédio, atrás de mim. Minha irritação foi
dando espaço ao temor. Eu já tinha visto o lado mais impiedoso dele. Já
tinha ideia do que ele poderia fazer comigo.
“Eu me sentia indefesa. Acabei contando para os meus pais e para
Carmela o que estava acontecendo. Martina e Giorgio queriam denunciá-lo,
mas eu não quis. Não tinha nenhuma prova concreta e ele poderia piorar
minha vida. Eles insistiram muito, todos os dias, mas eu não daria conta de
encarar um julgamento, acareação e depoimentos. Carmela também queria
que eu tomasse alguma medida, mas tudo que eu podia era tentar me
proteger de alguma forma.
“Nunca andava sozinha. Meu pai me trazia na faculdade e me
buscava. Aqui, eu sempre estava com Mel. Também trocava de número
constantemente. Mas ele sempre estava lá, de alguma forma, me
aterrorizando. Aparecia em cada canto que eu ia. Já o vi passar de carro por
minha rua inúmeras vezes. Ele descobria meu número e me mandava
mensagens de ameaça. Dizia que eu era dele, apenas dele. Que se não fosse
para ser assim, ele acabaria comigo.
“Foram meses vivendo assim, nessa agonia. Eu mal saía de casa.
Tinha medo de encontrá-lo em toda esquina que fosse. Todos ao meu redor
estavam preocupados. Eu estava me perdendo. Tudo que me consumia era
apenas o pavor.”
Ela para de narrar, me deixando confuso. Ainda não consigo entender
como a situação chegou até onde chegou.
— Kira?
— Eu sei que não há nenhuma explicação lógica, e acredite em mim
quando eu digo que não sei dizer o que aconteceu. Em um dia, ele estava
me espreitando, no outro fui protagonista daquela cena bizarra. Ele me
mandou uma mensagem na noite anterior dizendo que queria me ver, que a
gente iria resolver essa história de uma vez por todas. Eu não respondi,
ignorei. E então, na manhã seguinte, aquela menina apareceu no corredor
do nosso prédio, transtornada, chamando por mim.
Essa é a única parte da história que eu conheço, porque eu estava lá.
Era horário de saída das aulas, tínhamos acabado de ser liberados. A
menina de cabelo rosa e roupas pretas surgiu enfurecida no corredor atrás
de Kira. “Então é você que está fodendo meu namorado, sua vagabunda?”,
foi o que ela berrou antes de puxar os cabelos de Kira e dar um tapa seco no
rosto da garota.
Todo mundo ouviu as baixarias na sequência, porque a menina
berrava enquanto eu a segurava pela cintura, a afastando de Kira. Levei a
descontrolada para longe e assisti Carmela tirar Kira do meio da confusão.
— Por que você deixou todo mundo acreditar que você tinha transado
com ele de novo? Por que deixou as pessoas acreditarem que ele tinha
traído a menina com você? — questiono, ainda atônito com tudo.
Kira havia sofrido nas mãos do infeliz por tanto tempo e ainda foi
pintada como culpada da história.
— Eu estava em choque na hora. E as pessoas tiram as conclusões
que querem, Zayan. Não devia explicações a ninguém e não queria expor
tudo que havia acontecido. Ainda não tinha acabado. Ele não deixou de vir
atrás de mim. Ele namorava e fingia ser bom moço, enquanto estava tirando
minha liberdade de transitar pelos lugares. E, no fim, seria minha palavra
contra a dele, já que tudo que eu tinha de prova eram as mensagens. Se ele
dissesse que não era ele, que eu estava inventando tudo isso, as pessoas
poderiam acreditar. Sabe o que vale a palavra de uma mulher contra a de
um homem? Nada. Absolutamente nada. Eu só tive paz dois meses depois
daquela baixaria toda, quando ele simplesmente sumiu. Um dia estava na
minha cola e no outro desapareceu. Descobri quando cheguei à faculdade
que ele havia se formado e estava se especializando em uma faculdade nos
Estados Unidos. Nunca mais recebi nenhuma mensagem e nem o vi. Até
um mês atrás. — O olhar dela é tomado mais uma vez pelo temor.
— Você não pode deixar isso como está! — exclamo, irritado.
Irritado com ela, por deixar ele se safar assim. Irritado e decepcionado
comigo mesmo. Caralho, como eu mereci aquele tapa! Olha a merda que
saiu da minha boca! Eu a provoquei com algo que atormentou e marcou
Kira de uma maneira dolorosa.
— Não tem nada que eu possa fazer, Zayan! Que merda, você não
entendeu? Ele é capaz de tudo.
— E vai viver sempre com medo dele, Kira?
— Isso não diz respeito a você! Que inferno, Zayan! — ela brada,
mais uma vez tomada pela fúria. — Em uma hora está me pedindo para te
odiar e na outra age como se meu bem-estar importasse para você. Qual é a
sua, afinal?
— Uma coisa não anula a outra, Kira! — Estou igualmente nervoso.
Por que ela tem sempre que voltar nisso? Por que sempre quer uma
explicação para tudo? — Posso ser um ser humano decente e ainda assim te
odiar.
— Por quê? Caramba, Zayan! Por que você me odeia tanto? — O tom
de voz suplicante dela me tira dos eixos. Os olhos grandes me encaram,
pedindo por uma resposta.
Como se Kira precisasse dela para viver. Como se ela fosse capaz de
tudo para ter, enfim, uma explicação.
— Por quê? — ela tenta de novo, contendo as lágrimas.
Quando foi que ela chegou tão perto? Em que momento eu me distraí
e permiti que o corpo dela estivesse tão próximo a mim?
É hora de me afastar. É hora de voltarmos para nossa zona de guerra.
Nela estamos seguros. Nela estou afastado de toda confusão fodida que nos
rodeia.
— Zayan. Por favor. Me diz. Por que me odeia tanto? — Ela une as
palmas da mão e implora. Tão perdida. Parece desorientada, frágil e
vulnerável. É como se minha resposta fosse uma virada de chave que Kira
precisa ter para finalmente se libertar.
Minha resolução anterior se dissolve, me fazendo ceder ao pedido. E
assim, magicamente, o olhar quebrado dela arranca de mim parte da minha
verdadeira tormenta.
— Te odiar é o único caminho para não te desejar, Kira. Eu não posso
te querer, linda. Você não é para mim.
— Como é? — Ela dá um passo para trás, atordoada.
— Você me ouviu bem. — Eu me mantenho no lugar, tentando ficar
lúcido em meio a uma atmosfera desnorteante que nos circunda.
Tudo por causa dela. Porque demos inúmeros passos adiante em
poucos minutos. Porque eu não sei como agir agora que estou sentindo o
cheiro dela tão perto e estou tão sensibilizado. Porque é Kira Moretti na
minha frente. E Kira Moretti tem a habilidade de causar inúmeros estragos
em mim.
É assim sempre que ela está por perto. Ela me faz perder a cabeça.
Suga toda minha capacidade de raciocínio.
— Não. Espera. Eu não posso acreditar. Você... Você escolheu me
odiar porque hipoteticamente poderia me desejar e me desejar é uma ideia
que te atormenta? Você é louco. É sim. Louco, desvairado. Sei lá. Você
imaginou que talvez, só talvez, havia uma chance grande de você nunca me
querer e que poderíamos ter sido bons amigos? Não, claro que não. Você
criou a merda de uma história de faz de conta na sua cabeça e por causa
dela tornou meus dias uma verdadeira tormenta. — Sorrio sem nenhum
humor para o pequeno discurso dela. — É inacreditável, Zayan. Você é
inacreditável. Você vive no mundo da imaginação indecifrável.
— Sim, já entendi.
— Eu que não entendi. Não entra na minha cabeça. Eu nunca vou
conceber a ideia de que você me tratou como um pequeno inseto esmagável
porque hipoteticamente poderia me querer. Qual o problema de me querer,
afinal? Quer saber? Não quero saber.
Hipoteticamente, hipoteticamente... Que irritação da porra! Essa
garota não sabe de absolutamente nada do que fala. E ela não para de falar.
Acho que eu puxei algum tipo de corda imaginária, e quando soltei, dei
vazão para esse falatório absurdo.
— É impossível você me desejar, Zayan. Impossível. Mas você
escolheu ser escroto simplesmente porque cogitou essa hipótese. — Eu
nunca odiei uma palavra tanto quanto essa. É oficial, eu odeio a palavra
“hipótese”, e odeio que esteja saindo da boca dela assim. — Espero que
esteja satisfeito de ter conseguido o que queria, e me odiar tanto a ponto de
não conseguir sentir mais nada...
— Porra, Kira! Quer calar a boca? Já dissemos tudo que tínhamos
para falar, você está me dando nos nervos.
— Não dissemos nada! Essa é uma explicação bem fraca e mentirosa
que você me deu, e eu sugiro...
Todos nós temos aqueles momentos na vida em que, por um milésimo
de segundo, a nossa razão é calada e nosso corpo é quem responde por nós.
Nossos desejos mais profundos e secretos, que deveriam estar bem
guardados, escapam do lugar seguro que os prendemos e nos faz tomar uma
ação impensada. Uma capaz de mudar todo o curso das nossas vidas. Uma
que não deveria acontecer. Mas quando acontece, você sabe que está
perdidamente fodido.
É o que acontece comigo quando o ódio por ouvi-la proferir
atrocidades me guia até que eu esteja na frente dela. A boca atrevida
finalmente se cala quando minha mão direita se fecha na cintura dela. Ela
prende o ar, assustada.
— Fala mais uma vez que eu hipoteticamente te desejaria, linda. —
Minha mão esquerda desliza pelo rostinho bonito da Barbie, até chegar na
nuca dela e a dominar. — Mente descaradamente, Kira. Diz que é
impossível eu me atrair por você.
— Você não... — Seguro o cabelo dela com firmeza quando ela
começa a negar, como a boa garota petulante que só ela consegue ser.
— Como é irritante e audaciosa.
Eu deveria parar. Agora é o momento que eu deveria afastá-la,
fazendo com que ela me odiasse um pouco mais. Mas são as mãos dela
fechadas no meu braço, me puxando para perto, que me impedem. É a
respiração acelerada me mostrando que ela está igualmente afetada que me
puxa, que me convida a me condenar.
E eu vou.
Meus lábios buscam desesperadamente pelos dela e Kira cede, como
se ela tivesse esperado ansiosamente por esse momento, assim como eu.
Como se finalmente tivéssemos virado o lado da moeda e mostrado que
podemos queimar não apenas pelo ódio, mas pelo desejo desenfreado que
nos consome.
Minha língua pede passagem e ela cede sem nenhum impedimento.
Eu estou beijando ela. Eu realmente estou beijando Kira. A última garota
que eu deveria beijar.
É doce o sabor dela. Claro que é viciante, porque essa garota nasceu
para me ferrar de todas as formas possíveis. Agora vai me ferrar me
fazendo desejar dia e noite o toque dela.
Eu tomo controle do beijo, sentindo Kira se desfazer com a busca
desesperada das minhas mãos por cada parte dela.
Puxo o lábio inferior dela com os dentes e ela finca as unhas afiadas
no meu braço. Começo a me afastar, mas ela não permite e segura os fios do
meu cabelo, me puxando para perto.
Ela está enraivecida. Está mais uma vez consumida pelo ódio. Dessa
vez por estar beijando o inimigo número um.
Ela quer mais e eu ofereço. Mergulho de cabeça nessa loucura quando
a seguro pela coxa e puxo o corpo dela para cima. Kira é obediente e fecha
as pernas ao redor da minha cintura quando a pressiono contra a parede.
Nossas bocas não se desgrudam. Nosso toque é bruto quando
entregamos a revolta de ter cedido um ao outro.
É prazerosa a forma como duelamos até mesmo nesse beijo firme e
quente que me faz esquecer de tudo lá fora. O beijo de Kira entrega muito
mais do que minha imaginação me prometeu que seria. Sim. Eu já imaginei
esse momento. Tantas vezes que perdi as contas. Mais do que seria
considerado saudável.
Passeio com a mão pela coxa dela, passando pela curva do quadril e
trazendo ela para mais perto de mim. Afasto nossos lábios em busca de ar.
E logo em seguida busco o pescoço dela, mordiscando a pele sensível e
passando a ponta da língua pela veia pulsante da pele fina.
Deliciosa.
— Zayan... — Meu nome é sussurrado.
— Shhh! Agora não. — E antes que ela teime em me puxar para a
realidade, eu tomo a boca dela de novo para mim.
Olha o que você faz comigo, coisinha irritante do caralho. Estou
caindo vertiginosamente, sentindo meu corpo todo acender e vibrar
enquanto a pequena mão se fecha firme em minha nuca e não permite que
eu encerre esse momento.
A língua dela explora a textura da minha e eu faço o mesmo. Exploro
cada parte de Kira. Parece que acabei de descobrir como se beija, porque é
indescritível como o toque suave e macio dela me deixa confuso. Por que é
tão bom? Por que ela não me faz querer me afastar?
Aperto a bunda dela, a punindo por me deixar assim. E ela me pune
de volta, soltando um gemido baixo e contido. Porra!
Puxo o lábio dela e ela faz o mesmo. A beijo com ferocidade e ela
devolve na mesma medida. Meu corpo inteiro queima e ela alimenta o fogo
com gasolina.
Perco a noção do tempo em que estamos aqui, brigando pelo controle
do corpo um do outro, até que batidas na porta nos tiram do torpor, nos
puxando bruscamente de volta à realidade.
Me afasto dela e Kira fica de pé, se equilibrando. Nos encaramos,
sentindo a bolha de desejo que nos envolveu se romper. Sentindo a razão
voltar. Entramos naquele jogo estúpido de nos encarar e conversar
silenciosamente, ignorando as batidas.
“O que você fez, moleque?”
Sorrio com zombaria.
“Vai dizer que não gostou, pulguinha?”
“Esse apelido de novo!”
— Zayan! Kira! Eu vou entrar. Por favor, estejam vivos — Matteo
anuncia e dou um passo para trás.
Minha cabeça dá voltas e voltas, tentando assimilar o que acabei de
fazer. Porra, isso não deveria ter acontecido!
— Então, se resolveram? — Matteo questiona.
Não me viro para encarar esse traidor. Meu corpo ainda absorve a
sensação de ter tido a mão dela passeando por mim. Que sensação boa do
caralho!
Kira é quem desvia o olhar do meu rosto e encara o amigo.
Ela não diz nada. Absolutamente nada. Apenas passa correndo por
mim e por ele, nos deixando plantados no meio desse almoxarifado.
— O que você fez, Zayan?
— O que te faz pensar que eu fiz algo?
Finalmente me obrigo a reagir e me movo, girando o corpo e indo na
direção da porta.
— Eu sabia que não era uma boa ideia deixar vocês dois aqui — o
bibliotecário resmunga.
— E ainda assim vocês fizeram — rebato, irritado.
Pego o corredor que me leva até o andar de cima e ele vem logo atrás
de mim.
— Não vai dizer o que aconteceu lá dentro?
— Vocês queriam que nos resolvêssemos, nos resolvemos. À nossa
maneira. — Uma maneira deliciosa, divina. Merda, Kira! Tinha que ser tão
gostosa, pulguinha? — Agora me deixa em paz. Se quiser saber de algo
mais, pergunte à sua amiga.
Subo os degraus de dois em dois, precisando de sossego para lidar
com o turbilhão de pensamentos que me consomem.

Estou no meu quarto, terminando de me vestir, quando a porta do


cômodo é aberta com violência.
— O que você fez, seu merdinha? — Lorenzzo berra, avançando na
minha direção como um touro descontrolado.
— Vai ter que ser mais específico. — Me viro para encará-lo, sem me
abalar por nenhum segundo com a postura violenta dele. Já é costumeiro ter
que lidar com esses rompantes de fúria do meu irmão.
— Você sabe que eu posso acabar com você em um piscar de olhos!
— O rosto dele está colado no meu, enquanto ele me encara com aqueles
olhos odiosos.
A mão dele se fecha ao redor do meu braço e ele aperta com força,
machucando.
— Eu não sou mais aquela criança magricela e apavorada que você
podia esmagar entre seus dedos. — Seguro o punho dele e afasto a mão do
meu corpo. — As coisas mudaram, Lorenzzo. Eu estou pouco me fodendo
para as suas ameaças.
— Você é estúpido de imaginar que tem alguma chance contra mim,
seu verme! Eu acabo com você! — berra, furioso.
— Tenta! Vai, tenta! — Abro os braços, o desafiando.
— O que está acontecendo aqui? — Meu pai surge na porta do meu
quarto com uma expressão confusa.
Olha de mim para o meu irmão, esperando uma explicação.
— Pergunte a ele. — Aponto para o homem transtornado à minha
frente.
Passo por ele, sabendo que Lorenzzo não vai deixar nossa discussão
passar. Ele irá contornar meu pai mais uma vez, e então, mais tarde, voltará
para nosso acerto de contas. E eu estou mais que pronto para isso.
Dante
Não esqueça do jantar hoje.

Kira
Como eu poderia esquecer?
Foi ideia minha, irmão.

Guardo o telefone na mochila depois de responder Dante, e me viro


para Carmela.
— Vai me falar onde estava com a cabeça a manhã toda? — Ela está
com um olhar inquisitivo e desconfiado.
— Não entendi. — Me faço de desentendida.
— “Alguém pode me explicar o conceito de pulsão de morte?” foi a
pergunta feita pelo professor. “Psicanálise” foi sua resposta.
— A psicanálise pode explicar. Simples. O que há de errado com a
resposta?
— Sim, foi exatamente isso que você quis dizer — Mel fala com
ironia. — Vou fazer outra pergunta, então. Que diabos aconteceu naquele
almoxarifado para você e Zayan simplesmente ignorarem a presença um do
outro depois daquele dia?
E simples assim, apenas com a menção do almoxarifado, um furacão
toma conta do meu interior e meu coração parece querer pular para fora
com as batidas desritmadas. Meu corpo se aquece em cada ponto que
aquelas mãos grandes e firmes me tocaram, e meus lábios ficam dormentes
quando revivo a sensação de ter os lábios dele me dominando e me
conduzindo de uma forma irrefreável.
Nunca havia deixado ninguém tomar posse do meu corpo assim, mas
Zayan dominou o beijo e também cada parte minha, como se já conhecesse
o jeito certo de me fazer render.
Ele foi capaz de me fazer render.
E aquilo me bagunçou.
Corri quando Matteo abriu a porta porque estava assustada. Assustada
por ter aproveitado e me deleitado com cada segundo daquele beijo.
Assustada por não querer parar, por odiar Matteo por ter nos freado. E o que
me assustou mais depois disso foi perceber que eu seria incapaz de mentir e
dizer que odiei. Não conseguiria sequer olhar para meu reflexo e dizer que
foi o pior beijo da minha vida.
Porque foi o melhor de todos.
E ele veio do meu inimigo.
Agora eu não sei como olhar na cara dele e fingir que nada daquilo
aconteceu. Não tem como fingir.
Quero pensar que Zayan está igualmente afetado, e por isso nenhuma
provocação foi feita por ele desde então. Mas devo confessar que a forma
como ele está agindo me deixa angustiada. Pode ser que tenha sido o pior
beijo da vida dele e eu não deveria me importar com isso.
Mas é um tremendo e insano pecado a forma como ele me deixou
implorando por mais. Zayan jamais irá me ouvir confessar meu desejo em
voz alta. Eu só não consigo ignorar a forma como meu corpo tem reagido à
presença dele desde esse fatídico beijo.
— Alguma coisa aconteceu e você não está me contando. — Mel me
arranca dos meus devaneios. Os olhos dela estão estreitos, enquanto ela
tenta decifrar meu segredo obscuro.
Entramos na biblioteca, indo em direção a uma das mesas do fundo.
— Não viaja, Mel.
— Kira! — alguém chama meu nome e olho para a direita, onde um
dos alunos da nossa turma acena na nossa direção.
Combinamos de nos reunir com todo nosso grupo para discutir o
trabalho final do semestre. A mesa-redonda que a professora Rosa propôs.
— Vou só pegar um livro, Mel — aviso à minha amiga, que se dirige
para onde nosso colega está.
Caminho pelos corredores das estantes até chegar no lugar que
procuro. Passeio com o olhar pelas prateleiras e pego o exemplar que
preciso. Começo a folhear as páginas, para ter certeza de que é o livro certo.
Estou distraída enquanto caminho de volta e não percebo alguém
parado na ponta do corredor, até esbarrar nele.
— Descul... — quase gaguejo. Perco a fala, porque meu corpo está
me envergonhando mais uma vez, se esquecendo de como funciona direito
na presença dele.
Não estivemos tão próximos desde que Zayan desvendou cada curva
minha. Não senti o perfume dele de perto desde então. É o cheiro do
bendito xampu infantil de pêra.
Mas não há nada de infantil na postura dele agora. Porque só mesmo
um homem como Zayan faz meu ventre torcer apenas com o olhar profundo
e incendiário que encontro, ao passo que as mãos seguram com firmeza
minha cintura, sem me deixar cair. Minha queda teria sido feia se não fosse
por isso.
Cedo demais, ele afasta as mãos e eu já me sinto perdida.
Principalmente porque ele parece sentir repulsa pelo toque, visto que se
afasta tão bruscamente.
— Kira. — Meu nome é proferido como se ele estivesse dando o
diagnóstico de alguma doença terminal.
Eu me encolho no lugar, perdida. Cadê toda aquela coragem que
nunca me abandonou quando o assunto era enfrentar Zayan? Decidiu
arrumar as malas e tirar férias no pior momento.
— Zayan. — Encaro o chão, querendo que ele abra, me engula e me
leve para longe daqui.
Sem dizer mais nenhuma palavra, ele passa por mim e se afasta. Me
sinto deslocada e confusa com essa reação. Queria voltar no tempo e nunca
ter me permitido ceder. Queria de volta o ódio, porque não quero aceitar
que ele possa me deixar vulnerável assim.
Foi só um beijo, Kira. Um beijo sem importância. Supere.
Deixo a confusão “Zayan Castelli” para trás e caminho apressada até
a mesa onde grande parte do nosso grupo já se encontra. Passo a próxima
hora discutindo os pontos chaves que levaremos para defender nosso lado.
Acovardada, não ergo o olhar da mesa por nenhum instante, com
medo de esbarrar com olhos castanhos e encontrar desprezo neles.
Já tive desprezo antes. Tudo que eu tive foi sempre desprezo, mas
hoje tenho a sensação de que vai me atingir de uma forma diferente.
Dolorida.
— Você sabe que não precisa ficar na minha cola o dia todo, certo?
Eu amo nossa amizade e amo você também, mas está começando a ficar
esquisito — brinco com minha amiga, que está do meu lado, enquanto
coloco livros de volta no lugar.
Já encerramos nossa reunião há algum tempo e eu estou cumprindo a
carga diária da minha punição. Carmela não precisa ficar comigo, e eu
aposto que ela tem muito mais o que fazer.
Mas ela ainda não se afastou por nenhum segundo.
— Vai me contar ou não o que houve? — questiona.
— Mel... — tento protestar.
— Kiki, eu sou sua melhor amiga. Sou um pé no saco às vezes e
também muito insistente, então você sabe que não vou desistir enquanto
não me disser.
Suspiro pesadamente, já decretando derrota.
— Nós dois... Eu e Zayan... Nós... Hum...
— Você dois o quê, pelo amor de Deus?
— Nós nos beijamos — respondo baixo, quase sussurrando.
— Como é?
— Nós nos beijamos, Carmela!
Os olhos dela arregalam e ela fica muda por longos segundos,
piscando ostensivamente. Em seguida, as sobrancelhas se unem e ela olha
em todas as direções, como se buscasse confirmação de algum lugar.
— Você? — Aponta para mim. — Você e Zayan? Vocês se beijaram?
Tipo... — Une as pontas dos dedos da mão e encosta uma na outra. —
Beijo? O que houve? Você o estrangulou até ele desmaiar e depois teve que
fazer respiração boca a boca para fazer o garoto voltar?
— Não, Carmela. Não teve nada disso, que loucura! Foi um beijo.
Com língua, saliva, mão boba. Um beijo.
Eu não prevejo a reação dela a seguir.
Carmela deixa a gargalhada alta escapar, enquanto segura a barriga e
curva o corpo, que chacoalha todo. O ataque segue até que ela começa a
chamar atenção dos alunos ao nosso redor.
— Mel, para com isso! Estão olhando para a gente. Qual o problema,
afinal?
— Desculpa, Ki... — Ela tenta recuperar o ar. — Eu... — Mais
algumas risadinhas escapam. — Ai, meu Deus! — Inspira profundamente
várias vezes, antes de erguer o corpo e se recuperar. — Eu sabia que isso ia
acontecer. Meu Deus, eu sabia exatamente que chegariam a esse ponto! —
Ela parece maravilhada com a própria genialidade.
— Como você tinha tanta certeza, posso saber? Nada indicava que
isso aconteceria, Carmela! Quem beija a pessoa que te deu um tapa na cara?
— exclamo, irritada, indo até o próximo corredor. Ela vem atrás.
— Todo o ódio que vocês dizem sentir é puro tesão reprimido, Kira.
— Me viro para ela e arremesso o livro que está na minha mão em sua
direção. Ela pega o objeto, que se choca ao seu corpo, e ri do meu ataque.
— Nunca mais diga um absurdo desses.
— Absurdo, Kiki? Você acabou de dizer que você e Zayan se
beijaram e não era uma situação de vida ou morte.
— E isso não vai se repetir. — Queria ignorar o desconforto que me
invade quando as palavras saem da minha boca.
— Foi tão ruim assim? Ele beija mal? — Carmela sussurra com um
sorriso conspiratório.
Queria eu que ele beijasse mal. Facilitaria muito minha vida.
— Não é isso, é que... Olha, você é mesmo minha melhor amiga,
certo?
— Ainda tem dúvidas?
— Eu não acho que vai se repetir pela reação dele. Você viu. Faz três
dias que ele está me tratando como se eu fosse algum tipo de praga.
— Vocês sempre se trataram assim.
— Não, não assim. Tem algo de incomum. Ele sempre me provocou.
Zayan mesmo disse que preferia ódio à indiferença. E agora ele está...
indiferente.
— Isso te incomoda, Kiki?
— Para ser sincera, sim. — Não tem porque esconder. E eu preciso
falar com alguém sobre o que está se remexendo dentro de mim. Preciso
desabafar e tentar achar uma explicação para toda essa confusão. — Mel...
— Diga.
— Eu gostei.
Ela suspira, e eu quase acredito que é um suspiro sonhador.
— Fale sobre tudo que está pesando esse coraçãozinho — Carmela
diz com suavidade.
— Zayan é exemplar em toda tarefa que executa. Executou um ótimo
trabalho em me fazer odiá-lo. Eu estou com muito medo de ser excepcional
também em me fazer desejá-lo.
— E isso é um problema por você não querer admitir a ideia de
desejá-lo?
— Não. Cansei de ser medrosa, sabe? Eu quero ter coragem para
viver tudo que a vida tiver reservado para mim.
— Então, qual o problema?
— Ele não me quer, Mel. Ou pelo menos ele não quer me querer.
— E como você sabe disso? — Carmela parece descrente.
— Ele disse. As palavras exatas de Zayan foram “não posso te querer,
você não é para mim”.
— E por que ele disse isso? — Ela parece exasperada com a
afirmação dele.
— Não sei. Parece ser uma péssima ideia para ele. Desde que ele
pousou os olhos em mim, Zayan refutou a hipótese de que poderia me
desejar.
— Isso é... — Ela parece querer protestar, mas em seguida se cala.
Algo parece iluminar a mente dela, e então a compreensão estampa a face
de Carmela.
— O que você sabe que eu não sei? — questiono, intrigada.
— Como é?
— Você ia dizer algo, mas se calou, como se tivesse tido alguma
resposta.
— Claro que não, Kiki. Eu só lembrei de uma tarefa que tenho que
fazer para amanhã. Porra, eu realmente me esqueci! — Começa a se afastar
e caminhar para a saída de biblioteca. — Te vejo amanhã. A gente termina
de conversar sobre isso, não vai escapar. Eu preciso ir de verdade. —
Manda um beijo no ar e quase corre em direção à saída.
Fico parada no lugar, confusa.
Que tarefa temos para amanhã?
Assim que termino de colocar o último prato sobre o conjunto
americano na mesa, a campainha da casa dos meus pais toca.
Caminho até a porta e abro, encontrando Aisha e Dante.
— Bem-vinda, desconhecida. É um prazer finalmente recebê-la em
nossa casa. — Faço graça e os dois reviram os olhos em sincronia. Fofos.
— Prazer, Aisha Campello. — Ela estende a mão e aperto.
— Prazer, Kira Moretti. Irmã do seu namorado.
— Você é linda pessoalmente, Kira.
— Ah, imagina! — Faço um gesto de dispensa. — Você que é, ruiva.
Tudo bem se eu te chamar de ruiva?
— Fique à vontade. — Sorri, cúmplice.
— Já acabou o teatro? — meu irmão pergunta com zombaria.
— Como vocês estão? — Afasto da porta para que eles entrem, e
vamos juntos até a sala de jantar.
— Bem, princesa. E você? Como estão as coisas na faculdade?
— Tudo ótimo. — Exceto pelo fato de que meu arqui-inimigo me
beijou e agora tudo que consigo pensar é que eu gostei demais.
E lá está a expressão de Dante de quem entendeu que estou
escondendo algo e que em algum momento irá me confrontar sobre isso. De
jeito nenhum confessarei o que fiz ao meu irmão. Ele teria um ataque se
soubesse que eu e Zayan nos atracamos em um beijo quente no
almoxarifado da biblioteca.
O jeito que ele me segurou com tanta facilidade e me prendeu contra
aquela parede, a forma como meu corpo arrepiou inteiro quando ele
aspirou meu cheiro... Eu faria qualquer coisa para sentir isso de novo.
— Kira Matilda? — meu pai me chama. Me encara indagativo e acho
que não prestei atenção em algum questionamento feito por ele.
— Sim?
— Onde está com a cabeça, filha? — minha mãe me repreende. —
Desde que chegou aqui está aérea. Não me diga que arrumou mais uma
encrenca, Kira.
— Não, mãe. — O menino que eu estapeei, mãe, ele está grudado na
minha cabeça. Olha o grande problema que arrumei dessa vez. — Claro
que não.
— Vamos. O jantar está servido. — Ganho mais um olhar
desconfiado antes de nos sentarmos na mesa de jantar, dessa vez da minha
mãe.
Eu evito que o assunto da mesa seja eu, brincando com o fato de esse
jantar ser para Dante apresentar a namorada. Finjo não conhecer a ruiva
desde que eu tinha oito anos de idade e faço um pequeno interrogatório,
entretendo a todos na mesa. Aisha parece se divertir com a brincadeira e
responde a tudo animadamente.
Em um certo momento da noite, a ruiva e meus pais se dirigem para a
varanda dos fundos e eu fico com meu irmão na sala.
— Vai me contar o que está te incomodando? — Sabia que ele não
deixaria passar.
— O que te faz pensar que tem algo me incomodando?
— O fato de eu conhecer cada respirar diferente seu. — Sorrio com
leveza, sabendo a profundidade da afirmação dele. — Entendo que nem
sempre vai conseguir me contar tudo. Só quero saber do seu coração, irmã.
Se ele está bem.
— Ele está. Mas tem algo que preciso te contar. — Dante acena e
espera. — Eu tive um namorado... — começo.
E então conto para meu irmão sobre o relacionamento que tive e até
mesmo sobre a perseguição do meu ex.
Posso ver as expressões de fúria e indignação que passam pelo rosto
dele a cada novo episódio que narro. Mas sigo em frente até que ele saiba
de tudo que me aconteceu.
— Por que não me contou isso antes, Kira? — Ele parece magoado.
— Eu estava esperando o nosso namoro firmar para contar para
vocês. E então tudo isso aconteceu e eu senti vergonha, Dan. Não queria
que ninguém soubesse que me relacionei com esse tipo de pessoa.
— Irmã, não é culpa sua o que aconteceu. Você confiou em alguém
que se mostrou uma boa pessoa de início. Todos nós fazemos isso. Ele é um
psicopata manipulador. Você foi uma vítima desse desgraçado.
— Eu sei, sei de tudo isso. Tem mais uma coisa.
— O quê?
— Ele está de volta. Ele tinha ido embora para os Estados Unidos,
mas agora voltou.
— Kira, nós temos que denunciar esse cara. — O tom de voz de
Dante é severo.
— Não tem como, Dante. Eu não tenho nenhuma prova. Acabei
apagando todas as mensagens por medo. E até agora ele não fez nada, a não
ser me procurar um dia na biblioteca. E naquele bar.
— Não podemos esperar ele fazer qualquer coisa e ficar aqui de
braços cruzados, Kira! — Dante está inconformado. Ele é muito protetor.
Tanto que penso que ainda vai se meter em problemas por isso.
Mas não existe absolutamente nada que eu possa fazer. Infelizmente.
— Irmão, eu posso me proteger. Se te conforta, eu sempre tenho um
spray de pimenta comigo. E eu nunca estou sozinha, Dan.
— Se eu soubesse disso não teria sugerido sua mudança.
— Poxa, Dante! Mudar para o apartamento foi a melhor coisa que me
aconteceu. Eu finalmente estou aprendendo a cozinhar. — Admito que meu
macarrão é uma pasta maciça e meus ovos mexidos sempre estão salgados,
mas eu chegarei em um nível aceitável, tenho certeza.
— Só não gosto de imaginar que alguém pode te machucar. É apenas
isso.
— É um mundo perigoso para as mulheres, não posso negar. Mas se
eu for viver em função do medo, então eu só sobreviverei. Foi difícil me
livrar desse trauma, irmão. Me permita passar por isso.
Dante pensa por um longo minuto. Sei que está odiando a ideia de
ceder, e sei que por ele pegaríamos minhas coisas e eu estaria de volta para
essa casa hoje mesmo. Mas eu não posso mais viver à sombra do meu ex.
Preciso ser livre.
— Certo, mas se qualquer coisa acontecer, você vai nos avisar. E eu
digo qualquer coisa mesmo. Se ele andar a dez metros de distância de você,
você fala. Se ele respirar perto de você, se ele encostar em um fio seu,
precisamos saber — avisa sério.
— Eu direi, prometo.
— Ótimo. — Ele me puxa para os braços dele e eu me aninho no
abraço de Dante. — Kira?
— Sim?
— Amo você, princesa.
— Também amo você, irmão urso. — Afasto-me dele e o olho por
cima dos ombros, para onde meus pais e Aisha estão. — Como ela está?
— Se segurando. Ela acha que não sei como a presença de Luigi a
afeta. Essa pequena teimosa.
— Dê um tempo a ela. Sabe que Aisha vai falar sobre tudo a qualquer
momento.
— Eu irei. Só queria que esse desgraçado voasse para longe daqui,
sabe? Odeio tudo que ele faz a ela. Aisha chega em casa esgotada. Todos os
dias. Ela se esforçou para aquele evento de degustação e parece ter sido em
vão. Minha ruiva trabalha incansavelmente para o bem daquela vinícola e
ele destrói tudo em contrapartida. Eu queria poder fazer algo para mudar
isso. Aisha não merece o que está passando.
— Dante, não vá me arrumar problema com aquele magricelo do mal.
— Me refiro a Luigi, pai de Aisha. — Fica na sua e deixa que uma hora ele
mesmo se condena.
Ele resmunga algo inteligível em resposta e não diz mais nada.

Como se não bastasse Zayan me confundir com o distanciamento e a


falta de provocações, agora Carmela também está agindo esquisito. Ontem
havia prometido terminar nossa conversa, mas hoje não me deu nenhuma
abertura para fazer isso.
Passou todo nosso tempo livre no celular, disse que estava com
problemas em casa. Saiu apressada quando a aula se encerrou e não quis
nem mesmo me acompanhar até a biblioteca.
Precisava do apoio dela hoje, porque não estou sabendo agir com as
esquivas de Zayan. Tentei me aproximar de alguma forma e buscar alguma
reação, queria entender o que se passa na cabeça dele, mas ele não me
permite chegar perto demais.
Já estou enlouquecendo sem respostas para este comportamento
arredio.
Por isso tento mais uma vez. Mesmo prevendo que alguma grosseria
virá.
— Zayan, será que você pode...
— Kira, já é a quinta vez que você me pede ajuda para algo que você
consegue fazer sozinha. Qual é seu problema, afinal? — ele me interrompe
com irritação.
Eu não consigo fazer com que as palavras saiam de mim, porque tento
de alguma forma traduzir a reação dele.
Por que está me tratando assim, Zayan? Estou farta disso. Por que
me beijou e logo em seguida recuou?
Não é justo. Não aguento mais ser o elo fraco. Não suporto mais todo
esse tratamento hostil.
— Você sabe exatamente qual é meu problema. Estou tentando
entender porque fez aquilo e não acho nenhuma resposta. Você... você... —
Você me deseja ou não, Zayan? Foi tudo uma brincadeira de mau gosto?
Por que não conversa comigo?
— Kira, finge que nada daquilo aconteceu. Foi um momento de
confusão minha e eu não deveria ter beijado você. Mas não vai acontecer de
novo. E você estava certa antes. O melhor para nós dois é ignorar a
presença um do outro. É o que farei daqui para frente — ele fala com a voz
dura e o semblante sério, antes de se afastar.
Que estupidez a minha! Onde eu estava com a cabeça de acreditar que
nosso beijo tinha mexido com algo dentro dele também? Fui eu quem fui
afetada. Foi a minha cabeça que embaralhou.
Zayan não deveria ter feito o que fez. Ele me bagunçou por completo.
Foi como se algo dentro de mim tivesse despertado com um simples beijo.
O papel dele era deixar tudo isso adormecido, mas ele não se conteve.
Ele teve que encontrar uma maneira nova de me ferrar.
Minha visão turva e minha garganta se fecha. Mais uma vez esse
infeliz me faz chorar. Dessa vez de uma maneira inédita e vergonhosa.
— Kiki, você está bem? — Levo um susto quando a mão de Matteo
pousa no meu ombro e ele pergunta com a voz suave.
— Sim, só... Eu estava aqui distraída, lendo e...
— Kira, você está chorando? — Ele me gira pelos ombros, e eu limpo
rapidamente meu rosto com o dorso da mão.
— Não é nada de mais. Era uma história triste.
— Kira, você não tem nenhum livro em mãos. O que está
acontecendo?
— Nada, Matt. Só não é um dia bom. Eu queria ir embora.
— Estou preocupado com você. Já faz alguns dias que você anda
acuada. É por causa de Zayan? Ou daquele monstro? — Estremeço,
sabendo muito bem de quem ele está falando.
— Gregório não apareceu mais, Matt.
— E que suma de vez. — Aceno, concordando. — Olha, se quiser
posso cobrir você aqui. Digo à Angelina que passou mal. Mas só se
prometer que vai ficar bem.
— Faria isso por mim? — pergunto esperançosa. Quero sumir por
hoje. Quero me encolher em um canto e ficar só. Minha cabeça está uma
confusão.
— Claro que sim. — Ele passa um braço pelos meus ombros. — Mas
depois tem que me dizer o que está deixando você assim.
— Prometo.
— Vai, pode ir. — Ele pisca um olho e eu agradeço com um sorriso
contido.
Saio apressadamente em busca dos meus pertences e corro para fora
da biblioteca. Ando apressada pelo caminho que me leva para fora da
faculdade, ansiando estar no apartamento que agora é meu.
Estou tão distraída que quase tropeço em minhas próprias pernas
quando ouço a voz que faz tudo ao meu redor rodopiar e espalha desespero
em meu peito.
— Kira?
Meu coração para de bater por um instante, e em seguida volta a
atacar minha caixa torácica com ferocidade. Olho de um lado para o outro,
procurando a melhor rota para sair daqui, mas irritantemente minhas pernas
não se mexem. Penso em pegar meu celular, mas não o faço, porque ele dá
a volta e se coloca na minha frente.
Ele parece gigante e eu me sinto um ser minúsculo e indefeso perto
dele. Estou tremendo, dentro e fora, e ele com certeza nota meu medo
quando dá um passo à frente e eu me encolho.
— Fica calma, rosinha — Gregório diz com a voz suave que esconde
a verdadeira face do bicho-papão. — Não vou te machucar.
— O-o q-que vo-vo... você qu-quer? — Minha voz sai esganiçada e
trêmula.
— Está tudo bem, pequena. Prometo que não quero te fazer mal. —
Ele ergue o braço para me tocar, mas eu dou um pulo para trás, me
afastando dele.
O rosto dele se retorce em uma careta e eu não consigo adivinhar o
que se passa na cabeça doente do meu ex. Mas não confio em nenhuma
palavra que sai da boca de Gregório.
— Kira, só quero conversar.
Não tenho nada para conversar com você. Me deixa passar, me deixa
ir, por favor.
Por que o medo nos paralisa? Só queria caminhar para bem longe
daqui.
— Por favor, vamos para um lugar calmo, vamos conversar, podemos
nos acertar. — Estremeço quando penso na ideia de ficar a sós com ele.
Ele dá um passo à frente e segura meu cotovelo, me movendo do
lugar onde estou. Quero gritar para que ele me solte, mas não consigo nem
mesmo abrir a boca.
— Solta ela. — A outra voz que mexe com todos meus sentidos
chega até mim, mas dessa vez o que sinto é segurança. De alguma forma, eu
sinto que ele pode me afastar desse monstro e me levar para longe daqui.
E mesmo com a confusão que Zayan me causa, permito me sentir
protegida com ele aqui.
Gregório o encara com fúria, mas ainda assim desfaz o toque e me
solta. Fico desnorteada por um segundo, antes de me permitir reagir e sair
correndo para longe. Já estou quase alcançando a saída quando mais uma
vez sou puxada pelo braço.
Estou pronta para me debater quando Zayan segura minhas mãos e as
ergue para cima da minha cabeça.
— Fica calma, Kira. Sou eu.
Tento retomar o controle da minha respiração, mas não ajuda em nada
o fato de o peitoral dele estar grudado no meu e eu estar sentindo o corpo
quente dele tão próximo.
Lentamente, ele solta meus punhos, e eu deixo meus braços penderem
ao lado do meu corpo.
— Onde ele está? — pergunto alvoroçada.
Olho para trás de Zayan, procurando Gregório.
— Foi embora. Vamos, eu vou te acompanhar.
— Não, não precisa. Você tem que voltar para a biblioteca, eu posso
ir sozinha. Consigo me virar — o dispenso.
— Não vou te deixar caminhar sozinha nesse estado. Você paralisou
ali. E se acontecer de novo?
— Você disse que ele foi embora.
— Ele foi para o outro lado, mas pode esperar até que esteja sozinha.
Anda, não seja teimosa agora. Vou com você.
— Eu vou ligar para o meu irmão. Dante já deve estar saindo da
vinícola, eu...
— Kira, por favor! Vou te acompanhar e não me faça te carregar de
novo sobre meus ombros. Eu faria isso com prazer, pulguinha. — Ele tenta
aliviar o clima, até mesmo sorri.
Mas não faço o mesmo. Zayan acabou de me dispensar. Ele está me
acompanhando porque sabe que sou covarde, e sei que em algum momento
vai jogar na minha cara que me levou para casa quando não tive coragem,
mais uma vez, de enfrentar meus monstros.
— Ok, vamos lá. — Volto a caminhar, e ele se coloca ao meu lado.
O caminho é todo feito em silêncio, e eu me sinto desconfortável.
Estou fazendo um papel ridículo aqui e posso imaginar os pensamentos de
escárnio que passam por ele.
“Mais uma vez salvando a pele dessa pulguinha.”
“Será que ela consegue amarrar os sapatos sem chorar?”
“Queria correr para o irmão, essa pequena medrosa.”
— Obrigada, Zayan — agradeço quando já estamos na porta do
edifício.
— Não tem de quê.
Pego a chave rapidamente e destranco o portão, entrando. Não olho
para trás antes de fechar e subir até o apartamento.
Encaro a imagem refletida no espelho enquanto seguro uma blusa na
frente do corpo. Não sei se gosto. Seguro outra blusa cor-de-rosa. Talvez
essa.
— Ainda faltam três horas para essa festa. E não é nada chique, Kiki.
São jovens adultos se embebedando em uma casa qualquer — Carmela diz,
jogando o corpo na minha cama.
— Eu sei, mas sou indecisa. Se eu não escolher agora que roupa usar,
provavelmente irei nos atrasar.
Faz um tempo desde a última festa que fui. Na verdade, não é comum
ter muitas festas badaladas para universitários nesta cidade. Apenas quando
algum louco decide abrir a casa para o pandemônio que é reunir jovens
ávidos por bebida, música e pegação.
Como hoje. Um dos nossos colegas de classe nos convidou para uma
festa na casa dele, já que os pais estão fora da cidade. Se eu faço isso na
casa dos meus pais, sou deserdada na mesma hora.
— É indecisão ou você quer estar gostosa para um certo alguém
notar? — Noto o sorriso malicioso dela pelo reflexo.
Me viro para ficar de frente para Carmela e vou até a beira da cama.
— Então agora estamos falando de Zayan? Ou você vai fugir de novo
dessa vez? — pergunto com sarcasmo.
— Não fugi, eu realmente tinha um trabalho a fazer.
— Eu sou da sua turma, Mel!
— Não era para a faculdade, era para a aula de desenho.
— Você faz aula de desenho?
— Sim, desenho de moda.
— Caramba, Mel! Havia me esquecido, me perdoa. É tanta coisa
acontecendo. Você havia dito um tempo atrás que desejava estudar moda.
Quer dizer então que vai mesmo voltar para a faculdade depois que
terminar psicologia? — questiono. Na época que disse isso, Carmela narrou
com tanta paixão sobre a vontade que tinha de ser estilista, que me convenci
com facilidade de que essa era a carreira dos sonhos dela.
— Tudo bem, Kiki. Não precisa se desculpar, sei que seus dias têm
sido turbulentos. Sim, eu vou. Eu adoro psicologia, mas meu coração está
nas passarelas. — O olhar sonhador dela diz o mesmo.
— Espero um dia ser convidada para assistir você brilhar nas semanas
de moda pelo mundo.
— Claro que vai! Minha melhor amiga tem que estar ao meu lado
sempre. — Ela sorri e eu a acompanho. — Agora vamos voltar ao assunto
Zayan?
— Não, não vamos — respondo, indo mais uma vez até o guarda-
roupa.
— Como assim “não vamos”? Eu preciso saber mais detalhes sobre
isso. Não pode se recusar a me contar tudo, Kiki! — Faz drama, usando
uma voz suplicante.
— Não tem o que contar, Mel. Em um momento de loucura, nos
beijamos. Nada de mais. Nós dois vamos esquecer que isso aconteceu e a
partir de agora vamos fingir que não nos conhecemos. — Passo o olhar
pelas inúmeras peças do armário, sem achar nada que me atraia.
— Isso está cheirando à estupidez de Zayan.
— Estupidez por quê? Ele está certo em querer apagar esse deslize da
memória. Não deveria ter acontecido. E ponto final.
— “Mel, eu gostei”. Essas palavras saíram da sua boca, mocinha.
Então não tente se enganar nem enganar a mim. Sabemos que esse beijo
mexeu com você. Vi na sua expressão desejosa.
— Não importa. Se ele quer esquecer o beijo, então vou respeitar. —
Abro gavetas e portas, me irritando com a falta de uma roupa boa para usar.
— E se ele não quiser esquecer?
— Ele quer. Ele disse que quer.
— Blá-blá-blá. Um monte de baboseira que só mesmo um estúpido
como ele consegue colocar em uma frase. Zayan te quer. Está em negação,
mas quer.
— Não tem como você saber disso. — Desisto de procurar por algo e
volto para a cama, jogando meu corpo no colchão e encarando o teto.
— Confia em mim. — Carmela aparece no meu campo de visão. —
Eu sei do que estou falando. Agora... — Ela se levanta e vai até o
amontoado de roupas, procurando por algo. — Vai se ajoelhar às vontades
descabidas do garoto... — Ela ergue um conjunto de calça preta e blusa de
lã. — Ou vai agir como sempre fez e enfrentar Zayan em grande estilo? —
Ela ergue um vestido que me faz estremecer só de me imaginar dentro dele.
Mas quem sou eu para recuar de uma boa briga com Zayzay?
— Enfrentamento. — Aponto para a roupa escolhida e nós duas
sorrimos maleficamente.

Vestido de manga longa preto colado no corpo, meia fina preta e um


salto alto fechado é minha vingança escolhida por Carmela. O decote é tão
justo que deixa aparente a curva dos meus seios. E minha mãe me concedeu
carga genética para seios fartos, então não tem nada discreto aqui.
— Não vai voltar atrás, certo? — Carmela encontra meus olhos pelo
reflexo.
— Jamais! — Ofereço meu melhor sorriso de quem vai aprontar. —
Vamos?
— Vamos.
Pego meu casaco na cama, porque está uma noite fria lá fora. Saímos
do prédio e vamos em direção ao ponto de táxi. Entramos no carro
disponível e nos dirigimos para a festa.
A casa é enorme e já está cheia de gente. Um frio desce pela minha
espinha quando saio do carro e me recordo da minha primeira festa em uma
casa assim. Foi a festa em que me apresentei para ele. Mas Greg não estará
aqui hoje. Hoje é outro dia e eu não me permitirei pensar nele.
— Vamos, Kiki. — Carmela me puxa pela mão para dentro da festa.
Entramos para o ambiente que está tomado por luzes coloridas e
música alta. Mel caminha em direção ao bar e nos serve um drinque que
não reconheço, mas que tem um gosto doce bom.
Nos dirigimos à sala de estar que virou uma pista de dança
improvisada e dançamos juntas.
Meu copo não fica vazio, porque Mel e eu nos revezamos para nos
servir com as bebidas que estão à disposição. As luzes começam a ficar
hipnóticas e eu não me canso de dançar grudada à minha amiga. Nós
cantamos e mexemos o quadril, e por um tempo até mesmo esqueço que
algo me atormentava antes de sair de casa.
Até a fonte da tormenta se materializar na frente de nós duas. Ele
passa pela porta de entrada ajustando a jaqueta preta e com o sorriso
desgraçado que sempre carrega. Cumprimenta alguns amigos e se distrai
conversando com eles.
— Se você for ficar babando assim nele, vai ter o efeito contrário do
que queria. — Carmela para na minha frente com um sorriso de zombaria.
— Nele quem? — Seguro os ombros dela e giro o corpo de Carmela,
assim Zayan sairá do meu campo de visão.
— É disso que estou falando. — Ela pousa a mão na minha cintura
com suavidade e voltamos a dançar. Encara por meus ombros a direção que
Zayan entrou, e depois volta a sorrir para mim. — Uma amostrinha do que
ele está perdendo, que tal? — Antes que eu pergunte o que ela quis dizer,
Carmela gira minha cintura, para que eu fique de costas para ela.
E então eu vejo que os olhos dele estão presos em mim. Deixo meu
corpo solto e rebolo de costas para minha amiga, assistindo a luta que ele
trava para virar o olhar. Uma luta perdida, porque os olhos de Zayan
passeiam sem nenhum pudor pelo meu corpo até pousar no decote.
Meu corpo é mais uma vez girado por Mel e eu não o vejo mais.
— Ele já teve o suficiente.
Eu aceno, concordando e rindo, sem parar de dançar por nenhum
segundo.
Caminho para fora do banheiro um pouco zonza e luto para manter o
equilíbrio ao descer as escadas. Onde está minha amiga quando preciso
dela? Beijando alguma boca, tenho certeza. Ela gosta de beijar bocas. Todo
tipo de bocas.
Kira, um pé, depois o outro. Um pé e depois... Opa! Seguro no
corrimão da escada, erguendo o corpo e quase caindo de bunda no degrau.
Não estou embriagada. Estou bem.
Olha lá o babaca que me beijou! Zayan está parado de pé na pista,
levando um copo até a boca. Eu acho que vou lá. Vou dizer que ele vai
devolver o beijo que roubou de mim e... Quem é aquela moça? Por que ela
está segurando o colarinho dele? Ah, não! Não, não, não! Moça, por que
você está beijando ele? Era para eu estar no seu lugar!
Droga, eu vou chorar de novo por esse cretino? Palhaço, já chega de
derramar lágrimas por ele. Nem mesmo bêbada eu vou me submeter a isso.
Termino de descer as escadas com cuidado, e quando estou no
primeiro andar, caminho enraivecida até o bar da festa. Tem um rapaz do
outro lado da bancada e eu sento em um banquinho que está disponível.
— Ei! — chamo a atenção dele, que se vira para mim confuso. Até
que é bonitinho. Cabelo escuro, pele negra e barba bem-feita. — O que está
fazendo aí?
— Ãn... — Ele olha para o copo em mãos. — Não faço ideia. — Sorri
sem graça.
— Qual é mesmo o seu nome? — questiono.
— Santino. Prazer. — Ele estende a mão e eu aceito o cumprimento.
— Santino, você... — Aponto na direção dele. — Vai me servir hoje.
— Aponto para mim mesma.
— Eu não sou barman da festa, moça. Acho que nem temos um. Mas
te farei esse favor.
— Exatamente. — Faço que sim com a cabeça. — Você é um homem
bom, Santino.
Ele ri, provavelmente do meu estado de embriaguez. Mas mesmo
assim se vira e prepara uma bebida. Santino me entrega um copo e eu sorvo
do liquído que está ali dentro. É azedo e faço uma careta.
Mas é a única opção que tenho, então continuo bebendo.
— Não pense que vai me conquistar fazendo drinques, Santino. —
Começo minha conversa com o rapaz que me fará companhia. Não dou
escolha para ele a não ser essa, já que minha amiga me abandonou. — A
última pessoa que fez isso me ferrou. Eu aprendi minha lição.
— Um babaca, se quer saber, já que perdeu uma garota linda como
você.
Por um momento me envergonho com o elogio. Em seguida abro um
sorriso largo e aponto com o indicador na direção dele.
— Ah, eu sei o que você está fazendo, colega! Não caio nessa não. —
Aceno negativamente. — Essa cantada é muito fraca.
Ele ergue os braços, se rendendo e sorrindo.
— Mas você é mesmo uma garota muito bonita... — Ele pausa,
esperando que eu diga meu nome.
— Kira.
— Kira. E eu até tentaria mesmo flertar com você, se não fosse por
um detalhe.
— Qual é?
Ele acena para que eu me aproxime e eu o faço. Santino coloca as
mãos nos lábios, como se fosse contar um segredo, antes de dizer baixinho:
— Estou aqui tentando chamar a atenção da mulher que gosto. Só
tenho olhos para ela, Kira.
— Não me diga! E onde ela está agora? — Passeio o olhar pela
multidão.
— Não faço ideia — ele suspira. — O que sei é que ela me pegou de
jeito. Ficou na minha cabeça, sabe? E agora está me evitando.
— Ah, não? Você também? — questiono exasperada.
— Por quê? Como assim?
— Você acredita... — Eu pauso e ergo meu copo. — Faz mais um
desse, por favor. — Ele cede ao meu pedido e começa a preparar outra
bebida. — Você acredita que um idiota me beijou, me fez gostar do beijo e
depois disse que era para eu esquecer? E agora está aqui beijando outra!
— Que canalha!
— Não é? — Pego o copo de volta quando ele me entrega. — Você
não sabe a pior parte.
— Qual é?
— Ele é meu maior rival — sussurro e coloco a mão na boca,
indicando que é segredo.
— Eu não acredito! Mas o que ele fez para se tornar seu rival? — Ele
parece genuinamente interessado na minha história catastrófica com Zayan,
e eu conto tudo para o cara que acabei de conhecer.
Conto até mesmo do plano que eu e minha melhor amiga armamos e
que foi um fracasso, já que ele mal prestou atenção em mim depois de ter
notado minha presença aqui.
— E ele foi um grande cretino ao me deixar querendo mais e me
ignorar em seguida — termino a narrativa.
— E beijar outra na sua frente — ele pontua, indignado.
— É, eu sei — suspiro. — Queria que meu plano não tivesse sido um
fiasco. Mas, pelo visto, ele realmente não liga mesmo para mim.
— Talvez ainda esteja faltando um elemento para esse plano. —
Santino pisca com o olho esquerdo.
— Qual?
Ele abre os braços e sorri, mas não compreendo onde ele quer chegar.
Santino nota minha confusão e abaixa os braços. Dá a volta na bancada e
para na minha frente.
— Vem comigo. — Estende a mão para mim.
Ainda sem entender a proposta que ele faz, aceito o convite. Tiro o
casaco que estou no corpo e coloco na bancada. Me coloco de pé e caminho
com ele até a pista de dança.
— Gosta de música latino-americana?
— Eu adoro!
— Espere aqui.
Ele caminha até o rapaz que está encarregado do som e troca algumas
palavras com ele. Em seguida, vem até mim e segura minha mão no instante
em que El Merengue, de Manuel Turizo, começa a tocar.
— Consegue ver ele em algum lugar por aqui? — meu par de dança
pergunta, passando as mãos pela minha cintura.
Procuro discretamente por Zayan com o olhar. Nós começamos a
girar o corpo, até que o vejo na parede oposta.
— Sim. — Desvio o olhar antes que ele me veja. — Jaqueta escura,
parado com uma loira ao lado.
Quase imperceptivelmente, Santino olha na direção deles e depois me
encara.
— Zayan Castelli — ele diz.
— O conhece?
— Já o vi algumas vezes no campus. E ele faz aulas de vôlei comigo.
— Zayan joga vôlei? — questiono, chocada.
— Ele é bem dedicado. — A mão na minha cintura se fecha com
firmeza e eu me distraio. — Espero que não seja inibida, Kira. — Santino
sorri.
— Não mesmo.
A mão dele escorrega até minha lombar e sou puxada para perto do
corpo dele.
— Se eu for longe demais, pode falar — Santi avisa e eu aceno.
Passo minhas mãos ao redor do pescoço dele e tento manter o
máximo de contato sem desrespeitar o espaço pessoal dele.
É uma música animada e eu preciso me concentrar muito nos
movimentos, porque agora minhas pernas estão moles de pensar que ele
pode estar observando. Além de saber que meu equilíbrio não está dos
melhores.
Começamos a nos mover em sincronia, de um lado para o outro. Ele
segura minha mão e me gira, me puxando de volta na sequência. Agora
estou com as costas grudadas no peitoral dele e a mão de Santino encosta
com delicadeza em meu abdômen. Nós ondulamos o corpo juntos e ele me
gira para ficar de frente a ele de novo.
— Acho que seu inimigo mortal não está gostando muito da nossa
dança. — Sorri com malícia e me puxa para mais perto.
— Ótimo! — Sorrio de volta, ainda sem olhar na direção de Zayan.
Movemos o quadril de um lado para o outro e eu me solto. Rio
quando ele segura minha cintura e a parte interna do meu joelho, e jogo
meu tronco para trás. Então viro de costas mais uma vez e rebolo.
E é nessa hora que o olhar dele encontra o meu. A loira ao lado dele
está tentando chamar a atenção de Zayan, cutucando o ombro dele, mas ele
não reage a ela. Está rígido, estático, com os olhos furiosos parados em
mim. Eu sorrio maldosa, sem desgrudar do corpo de Santino. Percebo
quando o pobre copo de plástico que está na mão dele é amassado e o
líquido que estava nele respinga na camisa branca.
Mas nem isso faz o olhar de Zayan desviar de mim. Então eu pisco
para ele, mordo os lábios, sorrio e dou as costas. E não olho mais para ele
até que a música acabe.
— Acho que conseguiu o que queria, Kira — Santino diz com
cumplicidade.
— Não acabei, Santi. Vou te chamar de Santi, tudo bem? — Ele
acena, concordando. — Conhece o rapaz que está no som?
— Sim.
— Gosta de músicas brasileiras? — Abre um sorriso de canto e acena
que sim. — Me empresta seu celular. — Ele me entrega o aparelho
desbloqueado e vou em busca do que quero. — Essa aqui. — Mostro o
nome da música.
Ele acena, mostrando que entendeu qual canção é, e vai até o rapaz
que comanda o som.
Atenção, do MC Fioti, começa a tocar, e minha parceira de dança
volta para a pista nesse instante, já reconhecendo as batidas do ritmo que
apresentei a ela, depois de Aisha ter me apresentado.
— Quer mesmo levar o garoto ao limite hoje, Kiki. — Carmela se
junta a mim e nós começamos a dançar e nos movimentar do jeito que já
fizemos tantas vezes sozinhas.
— Eu? — pergunto com falsa inocência.
Continuo rebolando e mexendo meu corpo livremente. Todos ao meu
redor parecem se render e gostar da batida, tentando se mexer e dançar ao
ritmo brasileiro. Me arrisco a ensinar alguns passos para eles, que imitam
meus gestos e se divertem.
Me distraio com facilidade, e por isso sou pega de surpresa quando
uma mão segura meu braço e me arrasta para fora dali.
— Hey! — protesto, tentando me livrar do toque com tapas nos dedos
dele. — Me solta, palhaço!
Ele continua me arrastando até um cômodo vazio, que acredito ser um
escritório no primeiro andar. Zayan fecha a porta com fúria e me solta
apenas para me cercar contra a parede.
— O que você acha que está fazendo, Barbie? — questiona com o
tom de voz baixo e frio. O maxilar dele trava e o sorriso que dá é
dissimulado.
Esqueço o básico de sobrevivência, como puxar o ar para os meus
pulmões. O corpo dele pairando sobre o meu me tonteia mais que todo
álcool que consumi hoje. O cheiro de Zayan me tira do ar e todo meu corpo
implora por mais um toque. Me toque, Zayzay.
— Do que está falando? — Queria soar provocativa, mas minha voz é
quase um suspiro. Zay, você é tão lindo que chega a doer. Até mesmo
bravo, com as sobrancelhas unidas e o olhar colérico, você é muito bonito.
— Que show foi esse, Kira? — A voz é gélida.
— Não posso mais dançar, Zayan? — Silêncio é o que ele me
entrega. — Por que não me deixa cuidar da minha vida e vai atormentar a
pobre coitada que estava implorando sua atenção?
O sorriso cínico e prepotente o toma, e eu queria poder me livrar dele
de uma forma indecente. Daria outro tapa na cara do palhaço, para em
seguida tomar os lábios dele. Sim, eu faria isso com deleite.
— Ciúmes, Kira? — provoca.
— Ciúmes, Zayan? — devolvo.
Ficamos nos encarando e nos provocando silenciosamente, sabendo
que nenhum dos dois irá ceder e assumir nada.
— Zayzay? — Aproximo-me dos lábios deles, até roçarem um no
outro, e quase perco minha força de vontade e vou até o fim. Mas não vou
oferecer rendição a ele, para Zayan me maltratar amanhã.
— Hum? — Ele mal consegue responder. Viu, lindo? Não está imune
a mim. Só é teimoso demais.
Luto para manter as pálpebras abertas quando ele encosta a ponta do
nariz no meu. Convoco todas as forças divinas para me permitirem ser forte
nesse momento.
— Tenha uma ótima noite, Zayzay. — Passo por debaixo do braço
dele e abro a porta, correndo para longe, antes que eu mude de ideia e ceda
à súplica do meu corpo de terminar o que mal começamos.
— O que aconteceu? — Carmela pergunta assim que a seguro pela
mão. Pego meu casaco no balcão que o deixei e arrasto Mel para fora.
— Aconteceu que estamos indo embora. Hoje você irá comigo, Mel.
— Ou eu não irei me conter e voltarei para aquele escritório.
Ela não protesta e me acompanha. Arrisco uma última olhada para
trás, para encontrar um Zayan enraivecido voltar para a sala. Ele tenta me
avisar algo naquele nosso jogo de conversar silenciosamente, mas eu fecho
as portas para nossa comunicação e deixo ele falando sozinho.
Nós vamos até um ponto de táxi que tem perto da casa e entramos no
primeiro carro disponível, com eu ditando o endereço do meu prédio.
— Carmela, um aviso. Se o cretino me pega pelo braço e me leva
para longe, você me puxa de volta e não permite que ele faça isso.
— Mas achei que era exatamente isso que você queria!
— Sim, mas isso foi antes dele beijar outra menina na minha frente
— reclamo.
— Ele beijou outra pessoa?
— Sim — respondo baixo.
— Eu não sabia, amiga. Como você está? — Ela abraça meus
ombros.
— Confusa. Com raiva dele, com raiva de mim. Mas vou ficar bem.
Chega de chorar por Zayan.
— Por que ele ficou tão puto, afinal?
— Não sei. Eu estava dançando com meu novo amigo... Poxa, meu
novo amigo! Eu nem mesmo pedi o número dele. Vocês se dariam muito
bem, Mel. Ele disse que ia me ajudar a provocar Zayan e nós dançamos
juntos, mas então o canalha me tirou da pista de dança e eu não o vi mais.
— Sinto muito por não ter conhecido seu amigo.
— Será que você não o viu lá? Ele estava perto de mim quando você
chegou.
— Não, não vi ninguém. — A voz dela é ríspida.
— Não precisa ficar com ciuminho, você sempre será minha
preferida. — Cutuco ela, que dá tapinhas na minha mão.
— Eu sei disso. — Ainda está nervosa.
— Não acredita em mim, Mel?
— Claro que sim!
— Então por que está irritadinha?
— Não é nada, Kiki. — Ela intensifica o abraço e deito nos ombros
dela.
— Mel?
— Sim?
— Obrigada por estar aqui.
— Não iria para nenhum outro lugar, princesa. — Beija o topo da
minha cabeça e eu fecho os olhos, me entregando ao sono causado pela
bebida.
Eu achei que já conhecia a capacidade nata de Kira de me tirar do
sério, mas aparentemente eu estava enganado. A garota está se superando e
eu estou à beira de cometer uma grande loucura com um número expressivo
de testemunhas para assistir.
Que caralhos ela quer com isso?
— Se não quer que eu te dê um chute, pare de encarar — Carmela
diz, irritada.
Eu não dou ouvidos a ela e continuo encarando Kira e o novo
amiguinho dançarino dela, que estão conversando animadamente do outro
lado da biblioteca. A cena dos dois dançando colados na festa de sábado
passa mais uma vez na minha cabeça, mesmo que eu tente limpar a
tentativa dessa pequena provocadora de me atormentar.
Parece que ela conseguiu o que queria.
A imagem só some quando minha canela sofre com o impacto da bota
pesada da infeliz que está sentada na mesa comigo.
— Caralho, Carmela! — protesto, alisando a região atingida.
— Eu te avisei. — Ela aponta para mim. Incrivelmente, está mais
estressada que o normal.
— Qual o seu problema, afinal? Está com um humor de merda hoje.
— Meu problema são as dores de cabeça que vocês dois me
aprontam.
— O que eu fiz dessa vez?
— Que tal começarmos pelo fato de que você beijou ela?
— Foi um momento de fraqueza. Não vai acontecer mais.
— Porra, Zayan! Eu já sabia que era um grande babaca, mas você está
se superando. — Ela joga o corpo no apoio da cadeira, nervosa.
— Você poderia parar de cuidar da vida dos outros.
— Aquela ali é minha melhor amiga. — Carmela aponta na direção
que ela está com o senhor Sorrisos, me obrigando a encará-los mais uma
vez. Mas que merda! Por que ele está encostando nela? Não consegue
manter as mãos no lugar ao conversar com alguém? — Essa garota não
merece nenhum mal que ela já enfrentou. E, principalmente, não merece
nenhum moleque atormentando a vida dela.
— Esse moleque sou eu? — questiono com escárnio.
— Sim, é você mesmo. É muito simples, Zayan: ou você pega a
oportunidade de ouro que tem em mãos e faz o possível e o impossível para
merecê-la, ou deixa ela em paz. De uma vez por todas.
Ela não me dá nenhuma chance de retrucar antes de levantar e
caminhar irritada em direção à saída.
Levanto incomodado e vou até os dois pombinhos. Eu não ouço a
piada que ele conta, mas aparentemente foi muito engraçada, porque Kira
solta uma risada sonora.
— Barbie, nós temos que trabalhar — interrompo a conversa do
casalzinho.
O sorriso dela morre lentamente quando me vê, até que a expressão
fica séria. Cruza os braços na frente do corpo e ergue uma sobrancelha.
— Eu ainda tenho quinze minutos. — Maldita seja a petulância dessa
garota.
— Kira...
— Zayan, ela disse que tem quinze minutos. — Respiro fundo quando
o projeto de namoradinho dela chama minha atenção. Posso acertar minhas
contas com você na quadra, Santino Mancini. Minha conversa agora é com
ela.
— Kira tem uma detenção a cumprir, Santino. — Sorrio com
falsidade. — Ela tem obrigações. Não pode ficar de conversinha pelos
cantos. E, além disso, essa biblioteca é para alunos dessa faculdade.
— Ela disse quinze minutos. Então em quinze minutos ela estará
liberada. E eu sou aluno de mestrado dessa faculdade. — Ele coloca o corpo
na frente dela e me encara, esperando minha reação. Mestrado, porra! Será
que ela tem uma queda por caras mais velhos?
Que se foda! E o trabalho dela não diz respeito a ele.
— Vem, Santino. Vamos para outro lugar.
Barbie Petulante puxa o brinquedinho novo para longe e eu arrisco
dar um passo à frente para segui-los, mas sou impedido por um puxão.
— No começo, eu até achava engraçado essas interações de vocês,
mas hoje em dia vocês me tiram do sério. — Matteo me afasta dos dois e eu
permito que ele me conduza, ou eu seria capaz de uma estupidez. — Seu
expediente começa mais cedo hoje, príncipe — diz impaciente. — Ali. —
Aponta para uma pilha de livros em uma mesa. — Estão esperando por
você.
— E a princesinha?
— Deixa ela em paz, Zayan. Eu não sei o que está acontecendo entre
vocês dois nos últimos dias, mas esquece a Kira. Pelo menos por hoje, faça
o que tem que fazer e deixe a menina em paz.
Assim como Carmela, ele não me oferece a chance de retrucar antes
de se afastar.
Que merda esse trio arrumou hoje? Querem me tirar do sério. Estão
conspirando para me enlouquecer de vez. Não há outra explicação para esse
humor estragado e ácido.
Decido que por mim eles podem se ferrar. E volto minha atenção para
o meu trabalho.

O idiota foi embora e agora Kira está presa no telefone, soltando


risadinhas baixas. Como consegue ser tão irritante? Ela coloca o celular no
bolso e dá atenção para um aluno que está perdido. Assim que ele se afasta,
ela pega o telefone mais uma vez e ri.
Já chega dessa palhaçada.
Caminho até ela, que não percebe minha aproximação.
— Kira — chamo e ela finge não ouvir. — Kira! — falo mais alto.
— O que é, Zayan? — Me encara com tédio. — Tudo que eu tinha
para fazer eu já fiz, fiscal de detenção.
— Estou entediado. Não quer jogar um jogo, pulguinha? — Puxo
uma mecha solta do cabelo dela, que dá um tapa na minha mão.
Me encara confusa. Em seguida ergue uma sobrancelha, desconfiada,
e cruza os braços.
— Você é esquisito.
— Sim, eu sei.
— Que tipo de jogo?
— O jogo do “razões para você não ficar com esse projeto de
homem”.
Ela ri. Pulguinha irritante.
— Só por curiosidade, como funciona o jogo?
— É simples. Você me diz um motivo para ficar com ele e eu o
refuto.
Ela tomba a cabeça suavemente para o lado e une as sobrancelhas.
Fica assim, parada, me encarando por um minuto inteiro.
— Então? — questiono.
— Aceita ser minha cobaia, Zayzay? Eu adoraria fazer uma
dissertação sobre como funciona a mente de um cretino.
— Linda, eu achei que isso já era sabido.
— Sim, é. Vamos brincar, então. Aqui vai um excelente motivo para
ficar com ele. Ele não é você. — Ela sorri sem humor.
— E sou eu quem você quer, princesa. Então, por que ficar com ele?
— Eu quero quem me quer, Zayan.
— Pequena Moretti...
— Não, Zayan. Some da minha frente. Você tinha dito que ia me
ignorar. Não estou te entendendo. Volta para o Egito, praga.
Ela tenta passar por mim, mas a seguro pela cintura e trago o corpo
dela para mim.
Tão cheirosa.
Não há nenhuma resistência da parte dela. Está afetada e pisca
pesadamente, tentando raciocinar. E eu sorrio, como o grande bastardo que
ela diz que sou, por perceber que a deixo assim.
— É difícil ignorar você, coisa pequena e irritante. Você está em todo
canto, Kira. Na minha cabeça, no meu corpo... Você está grudada em mim.
— Você é um grande...
— Shhhh. — Silencio ela com o indicador. — Eu sei, princesa. Sou
todas essas ofensas que estão passando pela sua cabecinha brilhante. Me
deixa ser um pouco mais canalha? Preciso saber, Kira. Quer mais alguém
além de mim?
— Eu poderia te dar um tapa agora apenas pela ousadia. — Tenta soar
brava, mas perde o controle da própria voz quando meu polegar estuda a
textura dos lábios dela. Incrivelmente macios.
— E depois me beijaria, não é? — Ela revira os olhos. — Me fala.
Quer beijar mais alguém?
— Beijaria essa universidade inteira antes de beijar você, Zayan.
— Não respondeu minha pergunta, linda. — Puxo a cintura dela,
grudando-a contra mim. Não quero te soltar mais, Barbie. O que você fez
comigo?
— O que vocês dois estão fazendo? — Matteo quase berra, me
fazendo soltá-la contra minha vontade.
— Esse garoto maluco me atacou! — Ela passa por mim, esbarrando
com força no meu ombro.
— Vai mentir assim, linda? Era exatamente o que queria de mim.
Ela se vira para mim e ergue o dedo do meio antes de sumir de vista.
— O que aconteceu aqui, Zayan? — O bibliotecário parece prestes a
ter um ataque.
— Nos beijamos, eu quis afastá-la, ela me causou ciúmes e agora eu
quero ela.
— Você... — Aponta o indicador na minha direção, com o tom de voz
acusativo. Porém, não termina a frase.
— Pode falar, eu sei. — Sorrio.
— Esquece. Não vale a pena. — Ele desiste do xingamento e vai atrás
de Kira.
O que eu tenho que fazer para me redimir, princesinha? Cansei de
fugir. Não tem mais como fugir. Desde que eu te beijei, você me desmontou
e desmontou minhas barreiras, Kira.

Não sei dizer se a aula hoje está insuportável ou se a atitude dela que
está me dando nos nervos. Kira voltou para a fase de ignorar, apenas para
me tirar a paciência que já é curta. Já faz cinco minutos que estou tentando
fazer com que ela olhe para mim e ela não se mexe por nada.
Garota teimosa da porra.
Desvio a atenção dos cabelos castanhos dela apenas quando a porta é
aberta por um dos funcionários da coordenação do curso. Nossas aulas
raramente são interrompidas. A última vez que isso aconteceu foi quando
eu e a Kira fomos chamados na reitoria.
— Desculpe interromper, professor, mas pediram para chamar a
senhorita Moretti. — O olhar do professor pousa em mim, como se ele
estivesse adivinhando meu envolvimento nessa situação. Mas dessa vez não
é comigo. Eu acho. — Só a senhorita Moretti — o funcionário esclarece.
Kira encara Carmela e parece confusa, mas então se levanta e
caminha para fora da sala. Pego meu celular no bolso e envio uma
mensagem, curioso demais para ficar quieto.
Se Marco estivesse aqui, ele descobriria com facilidade o que
aconteceu, aquele fofoqueiro. Mas justo hoje ele decidiu faltar, porque ficou
até tarde da noite em uma boate. Em dia de semana. Marco precisa de mais
limites.

Zayan
O que é isso?
Carmela
Por que mesmo eu
te dei meu número?

Zayan
Porque você me adora, Mel.
Me diz. Que merda a
princesinha aprontou?

Carmela
E eu sei de tudo que
acontece na vida de Kira?

Zayan
Deveria.
Ela é sua melhor amiga.

Carmela
Qual a cor da meia de Marco?

Zayan
Como é que eu vou saber?
Carmela
Exatamente, Castelli.
Como eu vou saber?

Zayan
Vai lá descobrir.

Carmela
Virei babá da Kira agora?
Não enche, Zayan.
E não é necessário, ela já voltou.

Levanto o olhar para vê-la entrar e me arrependo no mesmo instante.


Mas o que isso significa? Eu não posso acreditar no que meus olhos veem.
Era realmente o que faltava para completar esse circo todo.
A criatura irritante caminha quase saltitando pela sala, com um
sorriso largo no rosto e a porra de um buquê de rosas vermelhas a tiracolo.
Traz consigo também um embrulho em formato de coração enorme, que
julgo ser chocolate.
Rosa vermelha? Chocolate? Coração?
Esse bunda mole não sabe absolutamente nada sobre Kira! Peônia de
flor e bala de tutti frutti de doce, senhor otário!
E quem permitiu que uma coisa dessas acontecesse? Não existe
nenhuma regra no código de conduta dos alunos de mestrado que os proíbe
de interromper a aula de alunos da graduação para mandar entregar flores?
Se não existe, deveria. Olha só, a garota agora interrompeu a aula para
roubar todos os olhares para si, enquanto caminha com lentidão até a
cadeira ao lado de Carmela.
— Já sabemos que a senhorita Moretti tem um admirador. Podemos
voltar para a aula, pessoal? — O professor chama a atenção dos alunos, que
desviam sua atenção de volta para ele.
Exceto eu. Porque nesse instante encaro ela e o buquê ridículo que ela
segura, desejando que as flores queimem até não restar nada além de cinzas.
Isso já está ficando ridículo, pequena Moretti. Teremos que fazer algo
quanto a essa sua ousadia.
— Me conte como foi, Matilda — Santino pede ao meu lado, rindo.
— Por que mesmo eu fui te contar meu nome do meio? — Tento
fingir irritação, mas logo em seguida estou sorrindo.
— É fofo. Eu adorei. — Nós caminhamos juntos para fora do
refeitório. — Então, me diz. Meu plano funcionou?
— Eu não sei. Não olhei para ele, para ver a reação.
— Não posso acreditar! Kira, você perdeu essa oportunidade? Deve
ter sido hilário.
— Zayan reage mais à indiferença do que a provocações.
— Você é maléfica, Kira Matilda Moretti. — Ele abre a boca,
maravilhado. — Eu gosto muito de como sua mente brilhante funciona.
— Obrigada. — Faço uma pequena reverência. — E obrigada pelas
flores. São lindas. Mas eu disse que não precisava. — Me refiro ao buquê
que ele me presenteou ontem.
— Se vamos fingir que estamos saindo juntos, tem que ser
convincente.
— Ainda não sei como você conseguiu convencer aquele funcionário
a me chamar na sala.
— Vantagens que você ganha por ser filho do reitor.
— E eu ainda não acredito que você é filho da autoridade suprema
desta universidade.
— É só um detalhe.
— Não sei se vou conseguir manter essa farsa, Santi.
— É temporário, Matilda. Logo, logo Zayan reage. Você viu aquele
dia na biblioteca? Ele ficou enfurecido.
— Sim, eu sei.
Foi nesse dia que Santino veio propor esse esquema maluco de fingir
que estamos nos conhecendo para provocar Zayan e também a garota que
ele gosta. No começo, eu fiquei receosa, porque não queria causar mal-estar
em uma menina que eu nem mesmo conheço. Mas ele me garantiu que não
seria assim. Não vamos fazer isso por muito tempo. E se percebermos que
estamos indo longe demais, vamos parar com nosso pequeno teatro.
E eu devo confessar que a satisfação que senti quando Zayan veio
tentar me distanciar de Santi foi uma boa recompensa. Só não foi maior do
que sentir o aperto forte dele ao redor da minha cintura.
Eu me senti nas nuvens.
E logo em seguida caí em queda livre quando ele me soltou de súbito.
Fui obrigada a encarar a realidade de que ele estava brincando comigo mais
uma vez. Não deveria me sentir tão afetada. É irracional tudo isso que está
acontecendo.
Até outro dia nos odiávamos. Para ser sincera, ainda o odeio. Ele é
demasiadamente arrogante e prepotente. Mas então tem essa atração
incendiária que faz de mim uma pessoa patética sempre que ele está perto.
Quando foi que eu me permiti ser afetada por Zayan Babaca Castelli?
Não me permiti. Aconteceu. Em algum momento, no meio do
caminho, eu me perdi. E para não aceitar que havia algo nele me puxando
para perto, me convidando a ceder, eu sufoquei todas as minhas reações a
ele.
Mas então Zayan teve a terrível ideia de me beijar. E então tudo que
suprimi veio à superfície. Eu deveria saber que não haveria nenhuma
resistência da minha parte quando os lábios dele tocassem os meus. Deveria
ter sido uma garota sensata e nunca permitido que ele chegasse perto
demais.
Só que eu não fui.
E agora cheguei ao ponto de fingir estar saindo com uma pessoa
apenas para provocar alguma reação da parte de Zayan. Apenas para tê-lo
na beira deste precipício para que pulemos juntos nessa loucura.
Mesmo sem ter certeza de que ele virá.
— Tenho um convite a fazer — Santi diz ao meu lado. — Na
verdade, você não tem a chance de recusar.
— Qual é? — Paramos na entrada da biblioteca.
— No próximo sábado vai ter a final de um campeonato municipal de
vôlei na quadra do centro. Seu prometido estará lá. Você vem comigo.
— Prometido? — Eu rio. — Não precisa dizer duas vezes. Estarei lá.
— Ótimo, eu te busco em casa. Agora... — Ele ergue o indicador,
cauteloso. Pisca o olho esquerdo, e eu sei que Zayan está próximo com esse
sinal. Nós combinamos que seria assim quando precisássemos avisar algo
silenciosamente. Santi coloca uma mecha solta do meu cabelo de volta no
lugar, antes de continuar: — Tenha uma ótima tarde de trabalho,
Matildinha.
Reviro os olhos antes dele se aproximar e depositar um beijo curto em
minha testa. Santi se afasta com um sorriso malvado e eu espelho o gesto
dele.
— Te busco mais tarde, princesa. — Ele vai na direção dos prédios
dos alunos de mestrado e eu me viro para entrar na biblioteca.
Mas sou impedida por um puxão na alça da minha mochila.
Dessa vez não protesto pela ousadia. O mau humor estampado na cara
dele eleva meu estado de espírito e não me permite ficar irada.
— Já deu de toda essa palhaçada, Kira! — Zayan se coloca na minha
frente, irritado.
— Ah, ótimo! Então quer dizer que você resolveu começar a agir
como um ser humano decente e me deixar viver minha vida sem as suas
perturbações?
— Você sabe muito bem que não é disso que eu estou falando. Você e
ele. Não existe isso, me entendeu? — fala com autoridade e prepotência, e
tudo que faço é gargalhar. — Qual a graça, Moretti?
— Você, Zayzay. Vou fingir que não ouvi tamanho desaforo para seu
próprio bem. — Tento passar por ele, mas outro puxão me impede.
— Eu estou falando sério, Barbie. Não testa minha paciência.
— Vamos dizer que eu te dei ouvidos por um segundo. Por que
exatamente eu deixaria de sair com um cara porque você disse para eu não
sair?
— Não quer me assistir te fazer desistir, não é, pulguinha?
— Que apelido insuportável, Zayan! E eu saio com quem eu quiser,
quando eu quiser, e você é a última pessoa que vai me impedir.
Principalmente, porque eu não sou uma boneca nas suas mãos, para você
poder brincar com minha vida e com minhas escolhas assim. Pode me
atormentar o quanto quiser, eu não estou nem aí. E eu te sugiro fazer o
seguinte: finge que você é a seleção da Itália e eu sou a Copa do Mundo. E
nunca mais você chega perto de mim.
Dessa vez eu tiro a mochila das costas, antes de deixar o infeliz
plantado e adentrar ao meu castigo diário.
Que jeito merda de dizer que me quer, Zayzay. Honestamente, não sei
nem porque eu quero você.

No sábado, às oito em ponto, Santino estaciona na frente do meu


prédio, como combinado. Entro do lado do passageiro e ajusto meu cinto.
— Bom dia, Matilda.
— Bom dia, Santi. — Sorrimos um para o outro.
— Toma. Isso é para você. — Ele vira o corpo para pegar algo no
banco de trás e me entrega um boné azul e amarelo do time deles. — Mas
não coloque ainda.
— Combinado.
Ele dirige até o local do evento e no caminho me explica mais sobre
as equipes que vão jogar contra. Ele e Zayan estão no mesmo time, o que é
uma pena. Adoraria ver Santi cravando a bola bem na fuça do desgraçado.
Meu mais novo amigo estaciona próximo à quadra e percebo que o
local já está movimentado. Nós saímos e caminhamos para dentro do
ginásio. Sinto um nervosismo inesperado me consumir e acho que minhas
mãos estão tremendo.
— Vai ficar bem sozinha? — Santi vai comigo até a arquibancada.
— Acho que sim.
Passeio com o olhar pelos torcedores, procurando por algum
conhecido. Carmela havia me dito que talvez viria, mas não a encontro em
nenhum lugar.
Meus olhos param em um rosto familiar e eu sinto uma pontada de
alívio.
— Eu vou ficar com o Marco. — Aponto para o loiro que
provavelmente está aqui por Zayan.
— Tem certeza?
— Sim, pode ir lá. — Me despeço de Santi e ele vai até a lateral da
quadra, onde a equipe dele está, enquanto eu ando até meu colega de classe.
Não é a companhia mais adorável de todas, mas é melhor do que ficar
sozinha.
— Oi, perdedor. — Eu me sento no espaço vazio ao lado dele.
Estamos na primeira fileira e acho que foi uma sorte grande achar
esse lugar vazio, já que tem uma vista privilegiada para a quadra.
— Oi, perdedora — ele cumprimenta de volta com um sorriso no
rosto. — Veio assistir seu namorado jogar?
— Eu não namoro. Ainda. — Acrescento o “ainda” para que ele
pense que é uma possibilidade e repasse a informação para o melhor amigo.
— Zayan é tão lento assim?
— Que horror! Não estou falando de Zayan. — Faço a melhor
expressão de nojo que consigo.
— Como não? Achei que vocês dois estivessem se entendendo depois
do beijo.
Claro que ele ia abrir a boca para Marco.
— Seu amigo me disse para esquecer esse episódio, e é isso que estou
fazendo. — Dou de ombros, tentando soar indiferente. — Além disso, tem
gente que merece mais a minha atenção.
— Ah, é? E posso saber quem, Moretti?
Não respondo. Apenas giro meu olhar para o Santino, que me encara
e pisca o olho, com um sorriso de canto.
— Santino? O filho do reitor? Fala sério, Kira! Zayan vai surtar
quando souber.
— Zayan não tem nada a ver com minha vida, Marco.
E por falar no desgraçado...
Lá está ele, entrando com os fones de ouvido, concentrado. Acha que
é jogador profissional, o ordinário. Desfila com a postura característica de
um grande arrogante, como se fosse dono do mundo. Só abandona a postura
para colocar um sorriso falso no rosto e cumprimentar os colegas de time.
Sei que é falso porque não alcança o olhar dele.
A verdade é que nunca o vi sorri genuinamente. Zayan parece sempre
estar imerso em uma maré de tristeza, sem nunca viver um momento de
felicidade plena. Pelo pouco que ele dividiu da história dele comigo, sei que
há mágoas que ainda guarda e feridas que não cicatrizaram. Mas para Zayan
se abrir, é preciso cavar um buraco bem fundo naquele coração de gelo. Ele
é desconfiado, e não o culpo. Talvez seja assim pelo irmão, alguém que
deveria amá-lo e o machucou de formas tão profundas e dolorosas. Física e
emocionalmente.
— Seu futuro namorado só não pode te ver encarar nosso menino
com tanto afeto assim, Kiki — Marco diz com sarcasmo, me obrigando a
desviar o olhar de Zayan.
— Não encarei ninguém, Marco.
— Acho fofo você tentar negar o óbvio. — Ele ri.
— Me esquece.
— Seu novo brinquedinho está vindo aí.
Eu olho para a direção que Marco encara e vejo Santi vir até nós com
a bolsa lateral que ele trouxe na mão. Eu levanto e vou até ele, encostando o
corpo na barreira entre a arquibancada e a quadra.
— Fica com isso aqui, por favor. — Ele me entrega a bolsa.
— Claro, sem problemas.
— E agora, nossa jogada ensaiada, mocinha. — Sorri abertamente,
pegando o boné que traz em mãos e colocando na minha cabeça.
Ajudo ele a puxar os fios do meu cabelo pelo buraco do acessório,
formando um rabo de cavalo improvisado. Santi pega minha mão e deposita
um beijo no dorso, antes de dizer baixo:
— Só uma olhadinha por cima do meu ombro, Matildinha. Apenas
para sentir o gosto de ver seu cachorrinho rosnar.
Eu não contenho a risada baixa que me escapa quando faço o que ele
sugeriu e encaro Zayan na outra ponta da quadra. Quase posso ver o olho
esquerdo dele palpitar, enquanto o olhar fuzila Santi pelas costas.
— Somos ruins, não somos? — questiono com um sorriso de
satisfação no rosto.
— Somos os piores — ele devolve, se afastando e indo até o grupo de
jogadores.
Eu volto a me sentar no lugar que estava, sem deixar a expressão de
deleite me abandonar por nenhum instante.
Quer jogar um jogo, Zayzay? Esse é o jogo do “vamos ver quanto
tempo você engole seu ciúme”.
— Então... Pré-escola? — Marco provoca.
— Só porque não sou igual a vocês, que ficam se agarrando em todos
os cantos?
— Não precisa agarrar, Kiki, mas nenhum beijinho na boca?
— Cuida da sua vida, Marco.
Ele ri, mas não diz mais nada.
Poucos minutos depois, as arquibancadas estão quase completamente
tomadas e do outro lado eu noto o pai e a madrasta de Zayan tomarem seus
assentos.
— Marco, o irmão de Zayan costuma vir para esses eventos? —
indago.
— Zayan te contou sobre o irmão? — ele quase berra, e não entendo a
surpresa no tom de voz dele.
— Sim, qual o problema?
— Problema nenhum. — Parece confuso e me encara desconfiado,
como se eu estivesse blefando. — O que ele te contou?
— Tudo.
— Tudo?
— Sim, ele me disse que a relação dele e de Lorenzzo é ruim e que
eles nunca se deram bem.
Ele parece finalmente aceitar que Zayan me confidenciou sobre o
irmão e a compreensão toma o rosto de Marco.
— Então sabe que ele não se envolve com nada que diz respeito a
Zayan.
— Ele parece ser uma pessoa muito ruim.
Marco não diz nada por alguns segundos, apenas gira o rosto na
minha direção e parece querer entender algo do que eu disse. Em seguida,
volta o olhar para frente e diz:
— Ele é.
Não pergunto mais nada, porque o jogo está prestes a começar e eu
fico animada para torcer.
Esse é o jogo mais emocionante de vôlei que eu já vi em toda minha
vida!
Perdi a conta de quantos rallys[15] aconteceram e de jogadas que
pareciam perdidas que foram salvas. Mas o que está me fazendo roer as
unhas de nervosismo, é o fato de estarmos quase iniciando o tie break[16].
Os jogadores dos dois times estão cansados, posso notar, e também
com os nervos à flor da pele. Mas o que me chama mesmo a atenção é a
interação de Zayan e Santino. Eles não parecem estar no mesmo time,
porque não param de discutir dentro de quadra, como se fossem rivais.
Além da disputa de pontos. Posso afirmar com convicção que eles são
os maiores pontuadores da equipe, mas seguem competindo entre si.
Assisto enquanto os dois parecem estar se desentendendo no canto da
quadra, poucos minutos antes do último set começar.
— O que você acha que está acontecendo ali? — questiono para
Marco, apontando com o queixo na direção deles.
— Provavelmente uma disputa territorial. — Há divertimento no tom
de voz dele.
— Não diz que é o que eu estou pensando.
— Se você está pensando que o terreno pelo qual eles duelam é você,
então acertou em cheio.
— Não sou um território, menos ainda um objeto de posse.
— Fala isso para os dois palermas, então.
A troca acalorada e nada amistosa entre os dois só encerra quando o
juiz apita para o começo do set. Os dois times voltam para a quadra e os
jogadores se posicionam.
Logo no primeiro rally, Zayan e Santino se desentendem quando os
dois tentam chegar na bola. É claro que não funciona, e como os dois estão
no mesmo lugar, a bola bate no chão, no canto onde Zayan deveria estar,
mas não estava.
Ele perde a paciência de vez e retoma a discussão com Santi. A briga
é tão intensa que os colegas do próprio time precisam apartar os dois. Zayan
é segurado por um colega e tenta avançar, mesmo que Santi já tenha
erguido a bandeira branca e se rendido.
E por entender que o comportamento de Zayan é errado e
antidesportivo, o juiz vai até ele e ergue o cartão vermelho.
— Porra, Zayan não consegue manter a cabeça no lugar! — Marco
diz, irritado.
Zay anda para fora da quadra furioso e eu me levanto. Não penso no
que estou fazendo, eu só sinto que devo ir até ele.
— Marco, pode olhar essa bolsa, por favor?
— Onde você vai? — Me olha desconfiado.
— Atrás dele.
Ele parece ponderar por um instante, mas eu não pedi permissão a ele,
apenas o informei. Eu me afasto apressada e Marco não me impede.
Quando chego na ponta do largo corredor que leva até o que imagino serem
os vestiários, encontro a madrasta de Zayan tomando o mesmo caminho que
eu.
— Espera, Nina! — Ela se vira para mim com uma expressão
confusa. — Oi, eu sou a...
— Kira. Eu lembro de você.
— Olha, eu sei que é uma loucura o que eu vou pedir,
principalmente... Bom, principalmente porque eu dei um tapa nele. —
Sorrio sem graça e retomo minha expressão séria quando ela permanece
impassível. — O que eu quero dizer é que eu acho que sei o que está
acontecendo com ele. Pode me dar uma chance de ir lá e tentar conversar
com o Zayan? Eu juro que não vou agredi-lo.
— Kira...
— Por favor. — Uno as palmas das mãos, suplicando, e acho que meu
gesto amolece ela.
— Tudo bem. Mas tenha paciência com ele. Zayan é muito impulsivo
e vai tentar afastar você se chegar perto demais. Ele pode ser grosseiro e
falar coisas para te machucar, apenas para manter você distante.
Fico desconcertada com a confissão dela. Isso explica muita coisa em
relação ao comportamento dele. Mas não vou pensar nisso agora.
— Eu prometo que vou com calma. Obrigada pela chance, Nina.
— Cuida bem dele, Kira. — Ela sorri cúmplice e acho que é um
pedido que se estende para além do que estou prestes a enfrentar.
— Prometo.
Saio correndo e vou até o corredor do fundo, onde o vi entrar. Procuro
pelas portas até achar a placa que indica o vestiário masculino, e entro. Ele
está sentado em um dos banquinhos de madeira e vira o rosto quando ouve
minha movimentação.
Caminho até estar na frente dele. Zayan me acompanha com o olhar,
mas não diz nada. Eu perco as palavras quando ele endireita a postura. É a
primeira vez que o vejo sem camisa. Não sei falar sobre o que eu sinto
quando enxergo o peitoral dele exposto. Há uma tatuagem de mariposa ali.
É tão perfeita que parece real. Como se ela pudesse bater asas e sair
voando.
Eu admiro os traços até perceber o que ela significa.
Ele tentou esconder a queimadura feita pelo irmão. Eu imagino que
seja isso, porque logo acima do umbigo dele há uma marca não coberta. Um
fio de pele rosado e repuxado, já cicatrizado.
— Não me olhe assim, Barbie — pede com a voz baixa e cansada.
— Assim como?
— Com pena. Odeio olhares de pena. É só uma cicatriz. Pequena e
insignificante.
— Não é pena, Zayzay. — Engulo em seco e ignoro o desconforto
que aperta minha garganta. — Você não parece ser do tipo de pessoa que
tem tatuagem. — Encaro a mariposa mais uma vez, ainda tentando
assimilar se ela é real.
— Você está olhando para ela agora.
— Sim, e ainda assim é difícil de acreditar. — As pontas dos meus
dedos coçam pela vontade de traçar o desenho com meus dedos. — Posso
tocar?
As sobrancelhas dele franzem por um instante e ele parece confuso.
Logo em seguida, a expressão se desfaz e ele ensaia um sorriso.
— Estou baixando demais minha guarda com você, pulguinha. —
Não posso evitar sorrir de volta.
— É isso que está fazendo?
Ele não verbaliza sua resposta. Apenas segura minha mão, enviando
pequenos choques por todo meu corpo. Segura meu indicador, o guiando até
que chegue na altura do peitoral, e então eu sinto a textura da queimadura se
misturar à textura da tinta. E não consigo evitar que a pergunta me escape:
— Como ele teve coragem de fazer isso? — Quero conhecer esse
maldito Lorenzzo. Quero arrebentar a cara desse covarde de merda. Quero
gritar umas boas verdades para esse bastardo.
— O que está fazendo aqui? — Ele desvia o assunto, soltando minha
mão.
— Por que vocês estavam brigando lá fora, Zayan? Santino é da sua
equipe, vocês deveriam estar se ajudando!
— A culpa é sua, que veio com ele até aqui! — Ele levanta e caminha
para longe. Eu vou atrás.
— Zayan, qual é o problema disso? Por que eu não posso me
relacionar com ninguém?
— Você pode ficar com quem quiser, Kira! Só não quero que faça
isso na minha frente. — Ele se exalta.
— Por quê? O que te incomoda tanto? — Está me deixando ansiosa.
Se Zayan inventar mais alguma forma de brincar comigo, eu juro a mim
mesma que desisto dessa história tola e dele. Droga, eu não quero desistir!
— Porque eu deveria estar no lugar daquele palhaço! — Zyan se vira,
irritado.
— Você pediu para eu esquecer o beijo e disse que era para nos
ignorarmos. Eu não te entendo.
— Você fica tão graciosa quando está irritada. — E então ele me
desmonta com apenas um elogio. Fico parada, sem saber como reagir. —
Seu nariz e suas bochechas ficam vermelhinhas. — O ar me foge quando
ele se aproxima e segura meu rosto com a mão. Todo meu corpo se arrepia
quando o polegar passeia pelas minhas bochechas. — Nós deveríamos
mesmo esquecer toda essa loucura, Kira. Não é bom para nós.
— Por que não, Zayan? — Minha voz é sussurrada. Por que está
desistindo antes mesmo de começar, Zay?
— Eu fiz um excelente trabalho, não acha? Para que você me odiasse.
— Ele oferece um sorriso de cretino e desce com o polegar pelos meus
lábios. Os olhos dele entregam com clareza o desejo de Zayan. Eles não me
enganam, como as palavras mentirosas que ele está louco para dizer agora.
Seu trabalho de me fazer odiar é tão bom quanto o que faz para me
fazer desejar você, Zay. Se soubesse... Se apenas soubesse os pensamentos
profanos que me tomam quando me encara assim. Como se pudesse me
destruir e me fazer gostar da sensação.
— Acho que vai dar seu pior agora, Zayzay. Vai me rejeitar de uma
maneira cruel. Não é isso? E aí sim te odiarei de uma forma irreversível. —
Mordo os lábios, tentando conter minhas emoções.
Já sinto o impacto das palavras dele antes que Zayan as profira. Ele
me encara profundamente, e por um segundo quase posso acreditar que ele
se arrepende. Iludida, penso ver até mesmo uma pontada de tristeza no
olhar dele.
E então um pequeno milagre me salva dessa cena vergonhosa que eu
estava prestes a protagonizar.
Meu telefone toca no bolso da minha calça e eu vejo o número de
Carmela na tela.
— Preciso ir. — Caminho apressada até a porta, fugindo dele e de
toda melancolia que me apossa.
— Kira! — ele chama, mas eu não paro.
Que bobeira minha achar que eu podia salvar Zayan de alguma coisa,
que eu poderia salvá-lo dele mesmo. A verdade é que eu preciso me salvar
dele antes que Zayan faça com que eu me perca nesse caminho tortuoso que
me convida a adentrar.
— Kira? — A voz de Nina me para. Ela ainda está na ponta do
corredor, esperando.
— Eu acho que não posso fazer isso, Nina. Você deveria ir até ele. —
Minha voz sai tremida quando engulo o choro.
Ela parece entender toda profundidade do que digo. Parece ler o que
sinto e vejo a compaixão passar pelos olhos dela.
— Kiki? — Viro o rosto para encontrar Carmela vindo na minha
direção.
— A gente se vê por aí, Nina. — Aceno contida e caminho até minha
amiga.
— Você está bem? — Mel questiona e acho que minha cara deve
entregar a tristeza que começa a se apossar de mim.
— Sim. — Aceno, escondendo meu real estado de espírito.
— Desculpa chegar só agora, mas eu estava na aula de desenho.
— Tudo bem. Mas acho que já está acabando. — Procuro o placar
que indica que o jogo está sete a cinco. — Na verdade, esse set está na
metade.
— Você parece agitada, Kiki. Aconteceu algo?
— Você se importa se formos embora? Acho que não estou bem.
— Tudo bem, sem problemas.
— Acho que vai ter uma pausa técnica agora. — Olho para a quadra.
— Preciso avisar a Santi que eu já estou indo. Você espera aqui?
Volto a encarar Carmela, e subitamente a expressão preocupada dela
se desfaz, com ela parecendo irritada.
— Certo — responde seca.
— Qual o problema, Mel?
— Nada, Kiki. Vai lá. Espero você aqui.
Eu aceno e caminho para a lateral da quadra. Ignoro o olhar irritadiço
que Leonardo Castelli me oferece, porque já estou farta dos babacas
Castelli por hoje. Mais um ponto é feito e o técnico do time de Zayan e
Santi está aguardando os jogadores para a pausa. Santino percebe minha
presença e eu peço que ele se aproxime.
— O que foi? — Ele está confuso.
— Eu espero que não se importe, mas acho que já vou indo.
— Aconteceu alguma coisa? — A voz dele ressoa preocupação.
— Sim, mas eu não quero falar disso agora.
— Santino! — o técnico chama por ele, bravo.
— Pode ir, eu vou ficar bem — tranquilizo.
— Tem certeza? Não posso deixar você ir sozinha, Matildinha,
principalmente nesse estado.
— Eu não estou sozinha. Minha amiga está aqui. — Aponto para o
lado oposto da quadra, onde Carmela está parada de pé.
Ele procura a direção onde indiquei, e quando me encara parece
surpreso e assustado.
— Carmela é sua amiga? — quase grita.
— Santino! — o treinador chama mais uma vez, elevando o tom de
voz.
— Sim. Você a conhece?
— Kira, eu preciso voltar para o jogo. Mas fico mais tranquilo de
saber que está acompanhada. Nos falamos mais tarde? Eu te explico tudo.
— Tudo bem. Suas coisas estão com Marco. Prometo que ele vai
cuidar bem delas! — berro no fim, porque ele já está longe.
Santi acena e eu dou a volta na quadra mais uma vez. Paro de frente a
Marco e tento oferecer a ele o olhar mais assassino que posso.
— Eu vou embora. Você vai cuidar dessas coisas como se fossem
suas. — Aponto para a bolsa que está no colo dele e digo ameaçadora.
— Não precisa falar assim, Moretti. Não sou uma pessoa ruim. Eu
cuido bem dos itens do seu querido.
— Se fizer alguma gracinha, vamos nos resolver. — Dou um último
aviso antes de ir até Carmela.
Pego a mão dela e a puxo, mas ela não olha na minha direção. Está
concentrada no jogo que já foi retomado.
— Se quiser, podemos ficar, Mel.
— Não, não, Kiki. — Olha na minha direção. As sobrancelhas estão
levemente franzidas. — Vamos.
Agora é ela quem me puxa, até estarmos fora do ginásio.
Caminhamos assim, de mãos dadas, até chegarmos em um ponto de
ônibus. Nos sentamos para esperar o transporte. Assim que coloco a bunda
na superfície do banco, ela abre a boca.
— O que aconteceu?
Suspiro pesadamente antes de começar a narrar todos os
acontecimentos da manhã, falando sobre meu momento com Zayan.
— Estou sentindo que vai doer. Se eu me entregar, vai machucar,
porque ele não vai se entregar. Para mim, ele não vai se entregar. E eu não
sei o porquê, Mel. Eu já estou pronta para esquecer todas as nossas
provocações, se apenas ele fizesse o mesmo...
— Ô, minha pequena. Mas você não está conhecendo outra pessoa?
Talvez seja bom para você.
— Quê?
— O Santino...
— Não, Mel! Não tem nada disso. Ele só quis me ajudar a provocar o
Zayan. Ele gosta de outra garota. E queria chamar a atenção dela também.
— Espera, então vocês fingiram tudo aquilo essa semana? — Ela
parece querer sorrir largamente.
— Sim. Por que você está rindo assim? — Mel morde os lábios, se
contendo.
— Nada, Kiki. Nada.
— Acabei de dividir minha agonia com você. — Abaixo a cabeça,
irritada.
— Desculpa. — Ela ergue meu queixo e me encara com suavidade.
— Eu te entendo. Talvez seja melhor para você se afastar, já que sente que
vai se machucar. Se ele deixou claro que não quer seguir em frente, então se
proteja. Eu vou estar aqui para te segurar. Não vou deixar ele chegar perto,
se você não quiser que ele se aproxime mais.
— Obrigada, Mel. — Abraço minha amiga e ela retribui.
Nos afastamos quando o nosso ônibus se aproxima. Nós entramos no
transporte que nos conduz até meu prédio.
Nina está me encarando com uma expressão de decepção desde que
chegamos em casa. Na verdade, desde que me encontrou naquele vestiário e
eu me recusei a contar sobre o que tinha acontecido, ela está segurando uma
repreensão.
Repreensão essa que meu pai não escapou de receber quando
começou a reclamar da presença de Kira no jogo. Leonardo mal abriu a
boca para reclamar da garota e foi logo cortado por Nina com severidade.
Já eu permaneci em silêncio por todo caminho até nossa casa, porque
não quero nenhum sermão hoje.
O problema é que minha madrasta parece estar decidida a arrancar
tudo de mim. É o que constato quando abro a porta do quarto depois de sair
do banho, e ela está parada, de pé, com os braços cruzados e o semblante
sisudo.
— O almoço já está quase pronto — anuncia.
— Ok?! — respondo, confuso.
— Temos alguns minutos para conversar antes dele ser servido.
— Nina, eu não...
Mas ela ignora meu protesto e entra no quarto, segurando a porta,
esperando que eu a acompanhe. Aceito minha derrota e me arrasto para o
cômodo. Ela fecha a porta e eu me viro de frente para ela.
— Nina...
— Não, Zayan. Eu vou começar. Não estou aqui para te repreender
pelo seu comportamento dentro de quadra hoje. Não quero repreender você
por nada. Às vezes, sinto que nem mesmo tenho esse direito, porque não
sou sua mãe de sangue, não te coloquei no mundo. Mas também sinto que
te conheço como se fosse mesmo meu filho, sabe? — Ela não está brava.
Não está brigando. Está angustiada. — Eu me preocupo demais com você.
Desde que pousei meus olhos em você, Zay, tudo que eu quis foi querer te
proteger. Eu vi você se encolher, vi seus olhos amedrontados e notei como
era arredio. Queria defender você do mundo lá fora. Esse foi meu primeiro
instinto. — Sinto um aperto com as palavras dela. — E eu tentei, sabe? Fui
eu que sugeri ao seu pai que você fizesse terapia. Eu escutava seus gritos e
choros sempre que tinha um pesadelo, e vinha te acalmar. Te levei para as
aulas de natação, de boxe, de handebol, até que você se encontrou no vôlei.
Te obriguei a estudar inglês e espanhol, mesmo que você não quisesse. Fiz
tudo isso porque achei que estava fazendo o melhor para você. Porque eu
achei que estava fazendo você sair do lugar triste que habitava quando te
conheci. Posso não saber de tudo, Zay, mas sei que algo de muito ruim te
acometeu, a ponto de você sabotar sua própria felicidade desde que se
entende por gente.
— Não é culpa sua. As coisas são o que são.
— Não disse que era minha culpa. Mas elas são o que são porque
você permite, Zayan. E eu assisti quieta você sempre recorrer à solidão e à
melancolia, porque esse era um limite para você. Porque se eu tentava
ultrapassar esse muro, você mostrava seu pior lado. Sei que era sua forma
de tentar me afastar, mas hoje eu não vou me importar com isso. Porque eu
não vou assistir você afastar aquela garota apenas porque você não se
considera digno o suficiente para conquistá-la! — ela esbraveja, me
pegando de surpresa.
— Nina, do que você...
— Ora, não se faça de desentendido! Eu conheço você. E conheço
mais da vida do que você possa imaginar. Aquela noite, quando estávamos
na mesa de jantar, te perguntei se odiava a garota, e você disse que odiava
que ela existisse. Vi sinceridade na sua fala e por um instante fiquei triste.
Mas depois eu entendi. Não tem a ver com ela. Tem a ver com a forma
como ela mexe com você. Já tem um tempo que ela tem cutucado algo
dentro de você, Zay. Você odeia que ela exista porque ela te bagunça, te faz
sentir tudo que você reluta em sentir. Você odeia que ela exista porque ela é
sua chance de ter algo que você não acha ser merecedor. E cada vez que
você insiste em fugir desse algo, ela te puxa.
Eu fico calado, absorvendo o pequeno discurso dela por longos
segundos.
E então eu sorrio. Sorrio com sinceridade. Sorrio emocionado,
percebendo que essa mulher me adotou e fez de mim filho desde o primeiro
segundo que me viu. Desde quando pousou os olhos em mim, ela se rendeu,
assim como eu me rendi ao amor dela.
Ela é sim minha mãe de criação. A mãe que a vida me concedeu e que
eu sempre serei imensamente grato por ter. Porque só mesmo uma mãe que
ama, como Nina ama, percebe cada palavra não dita, cada intenção oculta.
Ela nota tudo. Ela enxerga tudo em mim e ela enxergou o que eu tentei
esconder por tanto tempo do mundo.
— Eu estou certa, não estou? — Nina sorri em deleite e eu aceno
positivamente. — Não desperdice essa chance, Zay. A garota tinha um
brilho tão esperançoso no olhar. Ela está te esperando. Mas não vai esperar
para sempre. Vai, meu menino. Vai ser feliz.
Nina não sabe, mas ela acaba de tirar de mim amarras que eu construí
por toda minha vida. Não preciso da permissão de ninguém para lutar pelo
que eu quero, mas como eu precisava ouvir que eu tenho esse direito! E
como eu precisava ouvir de alguém que genuinamente me ama, que só quer
meu bem e que lutará com unhas e dentes para que eu seja feliz.
Não penso mais sobre o que fazer, porque já pensei muito, porque já
sofri muito e já me privei em demasia. Saio correndo do quarto em direção
às escadas e desço apressadamente.
— Zayan, coloque um calçado antes! — Ela aparece no corrimão com
um tênis e um par de meias na mão.
Nina termina de descer e me entrega o calçado.
Coloco nos pés em tempo recorde e pego as chaves do carro, já com a
mão na maçaneta.
Destravo o automóvel, abro a porta do motorista e dou partida, me
atrapalhando com o cinto.
Saio acelerado rumo à maior loucura que eu cometerei em vida.

— Garoto, não posso deixar você subir sem ser anunciado. — O


porteiro do prédio me encara com azedume, já com o telefone na mão.
Se ele disser para ela que eu estou aqui, ela vai dizer que não me
conhece e vai mandar ele me expulsar. Ela não quer me ver, eu imagino.
Mais cedo, Kira percebeu que eu ia afastá-la mais uma vez e isso a fez me
odiar um pouco mais.
— Seu Carlo, eu estou te garantindo que eu não sou nenhum
sequestrador ou assaltante. Eu já vim com Kira aqui. Nós somos
conhecidos. Eu estou aqui para fazer uma surpresa. Por favor, me deixe
subir.
— Se conhece ela, então qual o nome do irmão dela? — Ainda me
encara desconfiado.
— Dante.
— Da mãe?
— Martina.
— Pai?
— Giorgio.
— Cunhada.
Ah, porra! E eu lá vou saber da família inteira da garota?
— Eu sei que é ruiva, Carlo. Olhos heterocromáticos. — Eu acho que
foi isso que vi naquela noite no bar. — Ela e o irmão de Kira são tatuados.
Seu Carlo, Kira adora a cor rosa, bala de tutti frutti e itens de papelaria. Está
sempre de bom humor e provavelmente te cumprimenta todos os dias com
um sorriso no rosto. Ela deve saber tudo sobre sua família, porque fica aqui
parada pelo menos uma hora por dia conversando com o senhor. Kira estuda
psicologia e tem um colega babaca que sempre a tira do sério. — Eu sou o
babaca. — É o suficiente para o senhor?
— Por acaso você é o namorado dela? Ou isso ou você vigia a garota
vinte e quatro horas por dia. — Só conheço bem a pulguinha, Carlo. É isso
que grandes rivais fazem. Reconhecem o território um do outro. — Se eu
estiver cometendo algum erro, você nunca mais vai pisar nesse prédio. Está
me ouvindo, garoto? — Ele coloca o telefone de volta no gancho e aponta
sério na minha direção.
— Sim, senhor! — Eu saio correndo antes que ele mude de ideia. —
Prometo não decepcioná-lo, Carlo! — berro, antes de ir até o elevador.
Aperto o botão repetidas vezes, impaciente com a demora. Quando a
máquina chega no térreo, mal espero as portas se abrirem e já entro,
esbarrando com o morador que estava saindo.
Ignoro o xingamento que vem dele e aperto o botão que leva até o
andar dela. Tive acesso a essa informação no caminho até aqui, quando
encarei meu primeiro tribunal. Carmela me xingou de todos os nomes feios
nas mensagens trocadas antes de finalmente me conceder o endereço
completo de Kira.
Eu já sabia qual prédio era, só precisava do andar e apartamento.
As portas finalmente se abrem para o meu destino final e eu dou dois
passos para fora antes de parar no meio do corredor. Me falta ar e meu
coração bate acelerado. Acho que vou infartar aqui, nesse piso frio, antes
mesmo de fazer o que vim fazer.
Coloco as mãos no joelho e tombo o corpo, buscando ar e também
coragem. Ouço o clique da porta se abrindo e logo a voz irritada dela chega
até mim, me fazendo sorrir como um grande filho da puta.
Claro que aquele porteiro ia me trair, mas pelo menos consegui
chegar até aqui.
— O que você pensa que está fazendo aqui, seu maluco? Pode ir
dando meia-volta e voltando para o quinto dos infernos, se possível. —
Ergo o corpo e pela primeira vez a vejo por inteiro.
Não que eu não visse antes. Mas eu colocava inúmeros filtros na
minha visão, tentando não perceber o quão linda ela é, tentando ignorar
cada detalhe que molda ela para a perfeição. Cada pequeno traço que
aproxima a beleza dela a de alguma divindade.
É a garota mais linda que eu já vi na vida. Posso ter relutado em
admitir isso para mim mesmo por muito tempo, mas agora a vejo.
O olhar dela é furioso e o nariz fino está arrebitado na minha direção,
e isso só a deixa mais bela.
— Some da minha frente, Zayan!
— Carmela. — Encaro a amiga de Kira por sobre os ombros dela.
Mel entende meu recado, porque avisei superficialmente nas
mensagens que trocamos o que eu estava prestes a fazer. Ela me avisa com
o olhar que se eu ferrar com tudo sou um homem morto, e eu sei que sim.
Mas não tenho a intenção de estragar com isso. Eu estou me agarrando à
oportunidade que estou me dando com vigor. Preciso disso. Por mim e por
ela também.
A melhor amiga de Kira passa por nós, indo até o elevador.
— Onde você pensa que está indo, Carmela? — Uma Kira furiosa
tenta passar por mim e ir até a amiga, mas a seguro pela cintura e ergo o
corpo dela do chão. — De novo não, seu babaca dos infernos!
— Desculpa, Kiki! Mas vai me agradecer, prometo — Mel berra,
antes de eu arrastar Kira para o apartamento e fechar a porta atrás de mim.
— Me dê o nome de todos os envolvidos nessa palhaçada! Eu vou
acertar minhas contas com todos eles — diz, irada, quando a coloco no
chão. — Como eu ainda chamo aquela traíra de amiga? — Anda de um lado
para o outro, nervosa, e eu sorrio da irritação dela. — O que você quer aqui,
Zayan Castelli?
— Você, Kira Moretti.
— Não, não, não! — Ela nega com o dedo, pousando uma mão na
cintura. — Você não vai brincar com minha cara. Diga a verdade, veio aqui
me rejeitar pessoalmente, não foi? Pois pode ir saindo pela mesma porta
que entrou, eu não estou a fim de ouvir suas baboseiras. Já entendi seu
recado. Não podemos ficar juntos. Também não vou ficar me rastejando,
tenho amor-próprio. Se quer saber, eu mereço...
Como pode falar tanto? O ar não acaba? Em algum momento ela
precisa recuperar o fôlego. Essa coisinha irritantemente linda.
Aproveito que ela está ocupada tagarelando ininterruptamente e me
aproximo. A voz de Kira vai sumindo a cada passo que dou até que
estejamos frente a frente. O peito dela sobe e desce acelerado quando
deslizo uma mão pela nuca dela e ela finalmente se cala.
— O que está fazendo, Zayan?
— Para ser honesto? Não faço ideia. — Ela abre a boca para dar
início a mais uma rodada de falatório, mas a silencio, colocando o indicador
nos lábios de Kira. — Não faço ideia porque nunca fiz isso antes,
pulguinha. Nunca cedi facilmente a algo que me faria feliz. Nunca cedi a
alguém que eu desejasse com tanta intensidade. Você sabe que me fez
desejar você de uma forma avassaladora, não sabe?
— Não sei o que está dizendo — a teimosa diz por cima do meu
dedo.
— Sabe sim. Sabe que não é de hoje que você tira meu sossego. Você
é esperta. Pode ter me assistido lutar contra, mas já olhou dentro dos meus
olhos e enxergou o poder que tem sobre mim, Kira. Percebeu como você
me desorienta quando está por perto. — Levo uma mão até a cintura dela e
aperto com firmeza, a trazendo para perto de mim. — Barbie, você já sabe
da minha capacidade de foder com tudo. Eu não sou muito bom nisso. Em
ser um cara legal, que dá flores e diz coisas bonitas. Provavelmente, vou te
irritar muito ainda, e pode ser que você descubra amanhã mesmo que não
quer estar comigo. — Ela abre a boca de novo e eu a silencio mais uma vez.
— Espera. Me deixa terminar. — Revira os olhos, mas cede. — Eu só não
consigo mais me impedir de fazer tudo que desejo fazer com você. Se quer
saber, a culpa disso tudo é sua. Poderíamos ter continuado a nos odiar e
viver plenamente esse ódio, mas você decidiu se tornar essa pequena
criatura irresistível e me tirou dos eixos. Eu quero você, Kira. Quero cada
partezinha sua e sou um grande ordinário por não aceitar que mais ninguém
tenha você além de mim. Podemos descobrir juntos onde isso tudo vai dar.
Eu te prometo que vou tentar ser melhor e não vou nos impedir de nada
mais. Só preciso que você se entregue. Porque é exatamente isso que estou
fazendo.
Eu me calo e espero a resposta.
— Você só está fazendo isso porque me viu com outra pessoa.
Mas é claro que ela não iria ceder fácil.
— Não, Kira. Não é por isso. Sim, eu senti inveja dele. Sim, eu queria
enviá-lo para a Lua quando ele estava com você. Mas não foi isso que me
encorajou. Estou cansado de lutar contra tudo que me faz sentir vivo. Você
me faz sentir vivo. Você me deu um propósito todo santo dia desses dois
anos. Mesmo que esse propósito tenha sido provocar você e te irritar. E
você faz um monte de sensações emergirem. Quando está perto, eu tenho
frios repentinos no estômago e minhas mãos vivem coçando pela vontade
que sinto de tocar cada parte sua. E cada vez que você me toca, eu sinto um
calor abrasador, e nunca qualquer toque é suficiente. Sempre preciso de
mais. Está insuportável, Kira, a forma como meu corpo implora pelo seu. É
assustador pensar em como eu seria capaz de me render, e, ainda assim,
aqui estou eu, fazendo exatamente isso, e...
Não consigo concluir a frase, porque ela puxa minha nuca e sela os
lábios nos meus. E todo meu raciocínio derrete. Tudo que consigo pensar é
em como a boca dela é deliciosa e se encaixa tão bem na minha.
Mas para me contrariar, mostrando que ainda vamos nos irritar muito
daqui para frente, ela se afasta.
— Você não cala a boca por nenhum segundo — diz, se divertindo, e
eu acompanho o sorriso dela.
Espero ainda te arrancar muitos desses, linda.
— Você é a tagarela aqui, pulguinha. Eu estou nervoso. É justificável.
— Somos loucos, Zayan.
— É, eu sei bem. Completamente doidos.
Ela ri e eu acho que algo desconhecido e bom desperta em mim.
— Como isso vai funcionar?
— Eu não sei — respondo com sinceridade. Não faço ideia no que
estou me metendo.
— Eu também não.
— Acho que vamos ter que ver no que vai dar.
— Vai ser caótico.
— E quando não é quando diz respeito a nós? Meu Deus, eu não
acredito que estou me entregando à minha inimiga número um! — digo
com humor.
— É isso mesmo o que está fazendo, Zayzay?
— Sim. Estou. — Embrenho minha mão no cabelo dela, segurando
Kira e me aproximando dos lábios dela. Fico parado.
— O que ainda está esperando, Zayan? Vai me irritar agora mesmo?
— Ela se remexe, impaciente, e eu sorrio por conseguir provocar Kira com
tão pouco.
E antes que ela proteste mais uma vez, eu colo a boca dela na minha,
sentindo tudo ao meu redor desaparecer. Nada mais importa, porque agora
tudo que preciso é beijar Kira Moretti até sentir meus lábios adormecerem.
Nosso ritmo é lento e calmo, e sinto um arrepio muito bem-vindo sair dos
meus ossos e me dominar por inteiro.
Estou nos céus, mas ela me convida de volta para o presente quando a
mão pequena adentra pela minha camisa e Kira arranha minha lombar,
causando uma ardência deliciosa.
Aprofundo nosso beijo, lutando para manter o controle sobre meu
corpo. A pequena provocadora parece perceber minha batalha interna e joga
a favor dela. Meus braços erguem quando ela sobe minha camisa e eu me
livro da peça.
Ela me encara e eu me sinto desconcertado com o olhar de desejo
dela. Não é só desejo. Há algo mais no olhar de Kira, como se ela estivesse
experimentando tudo isso pela primeira vez, e ela parece curiosa para
descobrir um pouco mais.
Quando a mão dela pousa no meu abdômen e sobe lentamente, não
consigo conter meu estremecimento.
— Tão lindo — ela suspira e me desconcerta com o elogio
inesperado. Pego a mão que está no meu corpo e seguro, trazendo a palma
de encontro aos meus lábios.
Percebo que as mãos de Kira estão suadas e trêmulas. Ela está
nervosa.
— Vem cá. — Puxo-a de volta para mim, e sinto o corpo dela quente
contra o meu. Não tive o suficiente do beijo dela, e por isso busco os lábios
de Kira mais uma vez. É uma sensação nova. Calmaria se mistura com
alvoroço. Ao mesmo tempo que quero apreciar cada parte dela com
lentidão, sou consumido por um desejo desenfreado de pular todas as etapas
até estar me enterrando nela.
Quero foder Kira. Quero fodê-la até que ela se canse, até estar
marcado em cada centímetro de pele dela, até que ela esqueça de qualquer
homem que teve. Quero estragar essa garota para qualquer outro.
É errado. É cedo para isso, mas é o que ela desperta em mim. É essa
ânsia por tê-la que me faz puxar ela para meu colo e fechar meus dedos na
pele macia da coxa desnuda. Ela estava de calça no jogo mais cedo. Por
que colocou um vestido? Malditos sejam os vestidos!
Sento no sofá e ela pressiona as coxas no meu quadril. Já estou
insuportavelmente duro, e ela provoca, se esfregando com lentidão em cima
de mim. Cesso nosso beijo apenas para descer com os lábios pela pele
cheirosa e bronzeada, beijando e mordiscando o decote, arrancando um
suspiro pesado dela.
Seguro um amontoado de cabelo liso e sedoso e puxo, expondo o
pescoço dela. Passeio com a ponta da língua e mordisco a pele fina. Meu
primeiro prêmio vem. Um gemido. Baixo e tímido. Quero uma coleção
desses.
Aperto a bunda dela forte e em seguida subo com a mão pelas costas
de Kira. Chego até os ombros e percebo mais um sinal de tensão.
— Kira — a chamo, e ela me olha, perdida. — Está nervosa, linda?
— Um pouco.
— Fala comigo. — Seguro-a pela cintura e faço carinho, para que se
sinta confortável.
— É que... Hum... Como eu posso dizer isso? — Ela tenta olhar para
trás de mim, mas seguro o rosto dela e faço com que ela me encare. Kira
solta o ar e deixa os ombros cederem. Mexe ansiosamente na barra do
vestido, buscando as palavras corretas.
E então a ficha cai para mim.
— Não! — exclamo, descrente.
— Zayan! — Ela dá um tapa ardente no meu peito nu, mas tudo que
eu faço é rir. — Por favor, não ria de mim.
— Não estou rindo de você. Eu estou rindo de nervoso.
Não consigo me conter, e isso a irrita ainda mais.
— Ok, fique rindo sozinho. — Kira tenta se levantar, mas puxo-a pela
cintura e fecho meus braços ao redor dela. — Me solta! — Dá tapinhas no
meu ombro.
— Me perdoa, linda. — Puxo o ar para apaziguar minha crise. — Me
pegou fora de guarda, não imaginava que ainda era virgem, Kira,
principalmente depois de toda aquela confusão. Você não só deixou as
pessoas acreditarem que tinha sido amante, como deixou elas acreditarem
que tinha se deitado com ele.
— Mas é que ninguém tem nada a ver com minha vida, Zayan. Já
disse isso. Não devo explicações a ninguém e todo mundo pensa o que
quiser. Eu falar ou não, não muda isso.
— Eu sei. Mas eu estava no meio dessas pessoas. E você nunca negou
quando eu provoquei. Deus, agora eu entendo o tapa que recebi! Contei
uma mentira deslavada. Mereci, linda.
— Mereceu porque é um abusado que não consegue manter a língua
dentro da boca.
— Queria te falar de todos os lugares que passearia com minha língua
agora. — Mordisco o decote dela, para provocá-la.
— Não precisa falar, você pode fazer.
— É virgem, mas não deixa de ser uma pequena provocadora, não é
mesmo?
— Vou te provocar até que você me foda.
— Não fala isso! — Tapo a boca dela de brincadeira. — Que
boquinha suja, linda. Quem vê essa carinha de princesa nem imagina as
indecências que você diz. E eu não vou te foder. — Afasto a mão do rosto
dela.
— Zayan! — protesta e faz um biquinho fofo.
— Não hoje.
— É só um hímen lacrado, pelo amor de Deus! Você entra, ele rompe,
sai sangue, fim. Ritual concluído com sucesso.
— Kira, por Deus!
— Por favor... — Mais um biquinho e eu já não sei onde encontro
forças para resistir a eles.
— Você está mesmo me pedindo isso, linda? — Afasto o cabelo do
pescoço dela e beijo com suavidade.
— Sim, por favor. — Eu beijo outra vez e ela arrepia.
— Não hoje. — Me afasto e sorrio para ela.
— Você é um grande estraga prazeres.
— É, eu sei. E você pode estar pronta para isso, mas eu não. Me
deixou nervoso, não faria isso direito.
— Você soou como um grande virgem agora. — Ela sorri com
malícia. — Precisa que tirem sua virgindade também, Zayzay? — provoca.
— Que tal se eu trouxer para cá todas as mulheres com quem já
estive, para elas te contarem sobre minha virgindade, linda?
— Babaca. — Ganho mais um tapa no ombro.
— Eu sou, e você me quer ainda assim. Não sei o porquê ainda. Estou
tentando entender em qual momento da vida você se perdeu. Mas vou
deixar você viver esse seu delírio sem interferir.
— Agora era a hora de você chamar os especialistas, Zayzay.
Sabemos que eu não estou no meu estado normal. Seu queridinho Freud
diagnosticaria como histeria.
— Posso contar um segredo? — Pego minha camisa do sofá e me
visto. Ela faz careta e eu acho engraçadinho.
— Diga.
— Eu nem gosto tanto assim de psicanálise — sussurro, e a expressão
dela é de puro espanto.
— E por que se dedica tanto a estudar sobre a corrente de
pensamento?
— Porque você odeia. — Sorrio perverso.
— Você realmente se esforçou, não é? Para me tirar do sério.
— Como nunca me esforcei para algo antes.
— E, assim, aqui estamos nós — ela suspira.
— É, aqui estamos nós.
— Não vai mesmo abrir meu velcro hoje?
— Não, Kira! — Escondo meu rosto no pescoço dela, tentando não
rir.
— Mas algum dia você vai?
Volto a encará-la.
— Se você quiser...
— Sabe que sim. — Ela abre um sorriso carregado de malícia e
morde os lábios.
— Vem, vamos dar uma volta. — Levanto abraçado a ela e Kira
pousa os pés no chão, ficando de pé.
— Para onde?
— Qualquer gelateria que tenha aqui perto. Preciso de algo gelado.
Ela sorri contida e vai até o quarto. Volta com um casaco no corpo e
coturnos nos pés.
— Vamos?
— Vamos.
Seguro a mão dela, apreciando a maciez do toque, sentindo todo meu
corpo se aquecer e meu coração aquietar depois de uma grande turbulência.
É segunda-feira, primeiro dia de aula depois de todos os
acontecimentos do último sábado. Depois de irmos até a gelateria e passar a
tarde conversando, Zayan precisou ir embora, porque a madrasta já estava
preocupada sem notícias dele.
No domingo, passei o dia com meus pais, como costumo fazer desde
que me mudei. Não contei a eles ainda sobre nós, porque preciso preparar o
terreno. Minha mãe vai ter um ataque quando souber que eu beijei o garoto
que quase me fez ser expulsa da faculdade. Meu pai vai ter outro ataque
quando souber que eu simplesmente beijei.
Ando distraída pela calçada da faculdade, a caminho do meu prédio,
quando meu nome do meio é chamado:
— Matildinha. — Me viro e sorrio quando vejo Santi vindo na minha
direção.
— Bom dia — digo e ele passa o braço pelos meus ombros.
Começamos a caminhar juntos.
— Bom dia. Como foi seu fim de semana?
— Não sei nem por onde começar. — Meu sorriso cresce.
— Antes de começar, tem algo que preciso te falar. Acho que não
podemos continuar nosso pequeno teatro.
— Eu ia dizer isso. Mas qual sua razão?
— Bom, eu acho que nunca te contei sobre a menina que eu gosto, e
por isso no sábado fui pego de surpresa quando ela apareceu no jogo. Mais
ainda quando você me disse que ela é sua melhor amiga.
Acho que não consigo esconder minha surpresa quando minha boca
se abre em choque.
— Você está me dizendo que é doidinho pela Carmela, minha melhor
amiga? — quase grito.
— Eu juro que não sabia que ela era sua melhor amiga. Ou não teria
te proposto essa loucura.
— Acredito em você. Não nos comunicamos bem. Meu Deus, é por
isso que ela ficava brava quando me via com você! E eu achei que ela
estava com ciúmes de mim!
— Provavelmente era de você, Matilda. Acho que Carmela é
inacessível. Eu me encantei pela garota, mas ela não é do tipo que quer ficar
só com uma pessoa.
— Não sei. Ela pareceu bem afetada. — Sorrio em cumplicidade.
— Não vou me iludir. Mas devo dizer que ela mexeu mesmo comigo.
— Eu vou te ajudar nessa, Santi, já que você me ajudou.
— Obrigado, Ki, mas... Espera, eu te ajudei? — Paramos de andar e
ele me encara com olhos alegres e sorriso largo.
— Sim! — Espelho o gesto dele.
— Então vocês se entenderam?
— Sim!
— Ah, Matildinha! Estou tão feliz por você! — Ele me puxa para um
abraço e eu retribuo.
Então eu ouço um arranhar de garganta ao nosso lado. Me afasto de
Santi e giro o rosto para encontrar um garoto mal-humorado, de braços
cruzados e sobrancelha franzida, nos estudando.
— Espero que esteja pronta para lidar com o limão azedo que você
escolheu gostar — Santi diz com zombaria, antes de se virar para Zayan. —
Bom dia, Castelli. — Meu novo amigo pisca para ele, provocando, antes de
me deixar a sós com esse projeto de Grinch[17].
Me viro para Zayan sem conseguir evitar meu sorriso. Seguro minhas
mãos atrás do corpo e caminho devagar até ele. Zay não se mexe por nada.
Levo minhas mãos até o antebraço dele e olho dentro dos olhos castanhos,
me perdendo neles por alguns segundos.
— Oi, lindo. — Desfaço os nós dos braços dele e os coloco ao redor
da minha cintura. — O dia está maravilhoso, não acha? — Ainda nenhuma
resposta.
Aproximo os lábios do pescoço dele e deposito um beijo calmo. E
mais um e outro. Nada. Suspiro baixo e começo a me afastar. Mas ele me
impede e fecha o aperto ao redor da minha cintura, me fazendo sorrir.
— Não vai falar nada? — Circundo os braços no pescoço dele e beijo
o canto da sua boca. Beijo a ponta do nariz, a bochecha e aproximo dos
lábios. Ele chega perto e eu me afasto, sorrindo.
— Criatura provocadora! Já começou o dia me tirando do sério.
Primeiro estava cheia de risos para o filho do reitor, e agora está me
privando da minha dose diária de tutti frutti. — Ele abaixa a cabeça e aspira
meu cheiro, fazendo cócegas.
— Não fiz nada disso para provocar você. — Zayan bufa, descrente,
contra minha nuca, e o hálito quente contra minha pele me causa pequenos
arrepios. — Ok, talvez a segunda parte seja verdadeira. Mas eu não estava
conversando com Santi para te irritar. Ele é meu amigo.
Zayan se afasta e faz uma careta.
— Amigo que dá flor e chocolate? E dança com a mão boba por todo
seu corpo? Posso ser seu amigo, Barbie?
— Você está com ciúmes, Zayzay. É a coisa mais adorável que eu já
vi. — Aperto as bochechas dele e a careta de Zayan se retorce um pouco
mais.
— Ele quer você.
— Não, ele não quer. Ele deseja Carmela. Nós fizemos aquilo tudo
para provocar você. E para provocar ela também, embora eu não soubesse
que a garota que ele gostava era ela.
— Você fez o quê? — A voz dele se eleva e a cara de espanto de
Zayan é um bom entretenimento.
— Eu vi você beijando outra naquela festa e fui desabafar com um
desconhecido. Acontece que esse desconhecido era Santino. Contei tudo
para ele, sobre eu e você, e ele me disse que ia me ajudar a fazer você
reagir. Então me chamou para dançar e você ficou possesso. Na biblioteca,
ele veio me propor essa ideia. E eu aceitei. É infantil, mas no final
funcionou. No entanto, eu não faria se soubesse que a garota que ele queria
provocar era a Carmela.
— Mas comigo você fez, coisinha irritante!
— Você estava me rejeitando, e de repente decidiu que me queria. Foi
uma estratégia eficaz, no fim.
— Não foi bem assim, e você sabe.
— Se eu não tivesse feito isso, você iria me querer?
— Quero você há tempo demais, Kira. — Ele segura meu rosto com
as duas mãos e me encara com uma intensidade desconcertante. — Quero
você há tanto tempo que eu estava a ponto de enlouquecer. Você não faz
ideia de tudo que me causa, pulguinha.
— Então por que me negou? Por que não disse antes?
— Você me odiava. Ainda me odeia, porque sabe que vou te irritar
muito. E muita coisa me impedia. Eu me impedia. Não podia ceder.
— Por que não? Sempre que diz que não podia me querer, sinto que
há uma história não contada por trás disso tudo.
— Tem muito de mim que você ainda não sabe, Kira. Coisas que
talvez te farão me odiar muito mais.
— Então me conte.
— Você não está pronta para saber. E eu não estou pronto para contar.
— Mas é justo que eu saiba, não acha? Se diz respeito a mim, se é tão
ruim assim...
— É. É justo. Mas preciso de um tempo. Preciso que confie em mim.
Não faria nada para te magoar intencionalmente.
Eu tomo um tempo para pensar no que ele diz. Não sei se posso forçar
Zayan a compartilhar tudo, quando há tanto sobre mim também que ele não
conhece. Talvez seja cedo demais para dividirmos tudo. E teremos que
descobrir juntos, pedacinho por pedacinho, um sobre o outro.
— Promete que vai me dizer quando estiver pronto?
— Prometo — ele responde, sério.
— Promete que não fez nada para me machucar?
— Prometo.
— Tudo bem. Vou confiar em você.
— Obrigado, Barbie. Agora, está pronta para colapsar nossos colegas
de classe? — Sorri com zombaria.
— Eles vão enlouquecer — comento divertida.
— Diria que apostas foram feitas em nosso nome durante esse tempo
e algumas pessoas vão perder dinheiro.
— Alguns irão trancar o curso. Ficaram até aqui para assistir nossas
batalhas diárias, tenho certeza.
— E quem disse que elas irão cessar, pulguinha? Ainda tenho uma
reputação a zelar. Preciso provar que sou o melhor.
— Rá! Nos seus sonhos — retruco, já sentindo aquela irritação
familiar despertar. Tento sair do abraço dele, mas Zayan me impede,
sorrindo da minha expressão.
— Bochechas e nariz vermelhinhos. Está brava, Moretti?
— Não.
— E agora esse biquinho aqui. — Antes que eu perceba, ele gruda os
lábios nos meus em um beijo curto. E fácil assim, esqueço que ele me
atormentou segundos atrás. — Vamos, pulguinha. Vamos levar aquela sala
abaixo.
Ele segura minha mão e eu sorrio satisfeita quando caminhamos
assim, juntos, até o nosso prédio.
— Zay, de onde você tirou esse apelido horroroso? — questiono.
— Porque você é uma coisinha pequena e saltitante, que parecia
insignificante. Até dar a primeira mordida e provar que pode incomodar
bastante.
— Eu não sei se gosto ou não dessa explicação.
— Não é para gostar — ele implica e eu reviro os olhos. — Pronta?
— Segura minha mão firme quando estamos na porta da sala.
— Você quer realmente que todo mundo saiba de algo que ainda é
incerto, Zay? Acabamos de começar, nem sabemos no que isso vai dar.
— Sim, eu quero.
A convicção dele me desnorteia, me faz acreditar que ele realmente
me quer há bastante tempo. Mas então por que me afastar, Zayzay? Que
segredo ainda guarda que te fez lutar contra nós?
Seguro forte a mão dele, antes de ser puxada para dentro da sala.
Sinto como se estivesse entrando em um filme daqueles adolescentes
em que o casal mais improvável entra no refeitório do colégio.
Todos estão parados como estátuas em um museu, nos acompanhando
com o olhar enquanto subimos o corredor de assentos. Carmela e Marco
estão com um sorriso imenso de satisfação, e eu mesma sorrio, sentindo
uma alegria imensa me tomar.
Uma parte bem travessa minha sente uma satisfação ainda maior por
ter conquistado o feito de fazer meu maior rival se render. E acho que ele
sente o mesmo, porque o canto dos lábios de Zayan repuxam e pela
primeira vez vejo um sorriso genuíno brotar no rosto dele.
Esse nosso momento dura até que eu pare no corredor que leva até
minha cadeira de sempre. Eu finco os pés no chão e puxo ele, que continua
seguindo para a carteira onde Marco está.
Ele olha para mim com aquele ar arrogante que sempre tem quando
está pronto para começar um conflito.
Encaro de volta, dizendo com o olhar que é melhor que ele não me
teste. Mas como sempre, ele decide ignorar meu aviso.
— O que acha que está fazendo, Moretti? — ele me desafia.
— Nós vamos sentar aqui, Castelli — rebato.
E com isso, todos nossos colegas suspiram, aliviados, como se por um
segundo os planetas tivessem saído de órbita e então se realinhado na
sequência.
Tudo voltou ao seu perfeito estado de rotação, pois Kira e Zayan
estão mais uma vez presos em uma discussão.
— É bem melhor assistir lá de cima — ele insiste.
— Aqui é mais fácil escutar e prestar atenção.
— Começamos cedo hoje, pulguinha.
— Você começou.
— Você que parou no meio do caminho.
— Porque nós vamos ficar aqui.
— Não vamos. Vamos subir.
— Você sentava aqui antes. Por que não pode sentar agora?
— Porque me acostumei com aquele lugar.
— Zay... — Tento outra abordagem. Uma recém-descoberta. Faço
biquinho. — Vamos sentar ali? Por favor — suplico.
— Porra, Moretti! É sério isso? — Ele coça a cabeça, inquieto.
— Por favor.
Ele coloca a mão na cintura e segura a ponte do nariz, fechando os
olhos e inspirando fundo.
— Anda, entra aí. — Ele aponta para o lugar onde Carmela está,
irritado.
— Obrigada, Zayzay. — E surpreendendo a Zayan e todos que estão
presentes e assistem nossa pequena discussão, deposito um beijo curto e
casto nos lábios dele, antes de ir até meu lugar de costume.
Ele vem logo atrás de mim, com um sorriso tímido no rosto. Nos
sentamos e Marco chega e ocupa o lugar ao lado esquerdo de Zay.
— Então agora somos oficialmente do time de perdedores?
— Você veio por vontade própria — retruco o loiro.
— Tiveram um bom fim de semana, crianças? — Carmela questiona
com malícia. — Cadê o meu “obrigada, Mel”?
— Não sei se te perdoei ainda. — Tento soar séria.
— Zayan, eu achei que você tivesse dito que faria valer a pena deixar
minha amiga a sós com você — Carmela diz.
— Achei que tinha feito valer. O que faltou, pulguinha? — Ele mexe
nas pontas do meu cabelo.
Não respondo. Apenas dou de ombros e assisto o professor entrar em
sala.
Ele olha para mim e Zayan e franze a testa, desconfiado. Acho que
pisca pelos menos dez vezes, assimilando a cena, e parece estar se
corroendo de curiosidade para saber o que tudo isso significa. Tenho
vontade de rir, mas não o faço.
Depois de finalmente entender que o que vê é real, o professor coloca
a pasta na mesa e começa a aula.
Cinco minutos depois do falatório dele começar, a tela do meu
telefone se acende.

Projeto de Freud
O que preciso fazer para que
seu tempo comigo valha
a pena, pulguinha?

Sorrio e começo a digitar uma resposta. Antes que eu envie, uma


nova mensagem chega.

Projeto de Freud
Projeto de Freud?
Muda essa merda, Kira.

Kira
Para de espionar meu telefone.
Depois eu mudo.
E você sabe muito bem o que faltou.

Projeto de Freud
Então aceitou ficar
comigo pelo sexo?

Kira
Não, mas eu seria muito mais
feliz se tivesse ele.

Projeto de Freud
Tenho uma lista de coisas
que te deixa feliz, Barbie.
E que não envolvem sexo.
A começar por isso aqui.

Olho para ele, confusa, quando Zayan estende a mão e abre,


revelando uma quantidade boa de bala de tutti frutti. Sorrio e pego o monte,
colocando em cima do meu caderno.
Abro uma e enfio na boca, apreciando enquanto o doce derrete
lentamente na minha boca.

Kira
Obrigada, Zayzay.
Projeto de Freud
De nada, pulguinha.
Kira
Ainda assim eu acho que você deveria testar
tirar minha virgindade.
Garanto que eu seria a garota
mais feliz do mundo.

Projeto de Freud
Três dias atrás seria capaz de me
atirar para fora de um carro
em movimento. Hoje está doidinha
para sentar em mim.
Faz um favor?

Kira
O quê?

Projeto de Freud
Não posso deixar você me
seduzir e tomar minha inocência
se você não assinar isso aqui.

E logo em seguida um papel é deslizado em minha direção.

Eu, Kira Matilda Moretti, declaro que Zayan Castelli


tem meu consentimento para tocar em todas as partes do meu corpo.
Encaro o papel, assimilando o que isso significa, antes de receber
outra mensagem.

Projeto de Freud
É para o seu irmão, linda.

Quase não contenho a risada.

Kira
Dante não morde, Zayan.

Projeto de Freud
Ele me pareceu muito protetor.

Projeto de Freud
Kira, muda esse nome.
AGORA!

Kira
Você precisa relaxar, Zayzay.
Sabe o que poderia te ajudar?

Limãozinho
Não fala que é sexo.

Limãozinho
PORRA, KIRA!
Limãozinho?
Kira
Daqueles bem azedinhos.
E ainda assim eu te chuparia inteiro.

Limãozinho
Você está muito provocativa, Barbie.
Espero que saiba no que está se metendo.

Kira
Dizem que os que falam
muito fazem pouco.

— Senhor Castelli?
Zayan ergue o olhar para o professor e desliza o telefone para dentro
da manga do moletom, tentando disfarçar.
— Sim?
— Qual sua opinião sobre isso?
— Acredito que o nosso pensamento pode sim ser influenciado pelas
informações que nos são expostas. Nossa percepção de realidade está
diretamente ligada a comportamentos sociais coletivos, mesmo que em
pequena escala.
O professor se cala diante da resposta dele e parece insatisfeito por
Zayan ter sido assertivo. Já eu tento assimilar como ele conseguiu prestar
atenção em duas coisas.
Meu raciocínio se vai, no entanto, quando a mão dele desliza pela
parte interna da minha coxa. Eu tiro a mão dele dali, porque ele sobe
demais, e estamos em público.
Zayan ri baixo e desfaz o toque. Percebo quando ele puxa o celular de
volta e manda uma única mensagem, antes de guardar o aparelho na
mochila.
Abro a tela do telefone no instante em que ela acende, e leio.

Limãozinho
Vou guardar essa informação
com carinho, linda.

Eu guardo meu celular sem responder mais nada, com um sorriso


malicioso nos lábios, sonhando com o dia em que minhas provocações
tenham algum efeito.

Caminho de mãos dadas com Zayan em direção à biblioteca,


saltitando feliz. Ainda não tenho respostas para tudo que está acontecendo.
Não sei quanto tempo ficaremos em paz até que um de nós queira matar o
outro.
O que eu sei é que eu me sinto bem. Muito bem. De um jeito que
nunca imaginei que fosse me sentir ao lado dele.
Me viro para a direita, mas ele me puxa e continua andando para
frente.
— Para onde você está indo, Zayzay? Vamos perder a hora! — Tento
o puxar de volta, mas ele não permite.
— Não vamos. Hoje estamos de folga, pulguinha.
— Como assim?
— Negociei com seu amiguinho. Fomos liberados — diz em tom de
confidência.
— É impressão minha ou você tem ciúmes de Matteo?
— Claro que não. — Zayan revira os olhos.
— Que bom, porque Matt gosta de homens. Tem um gosto específico
por héteros inacessíveis.
— Sério? Marco vai ficar decepcionado em saber.
— Como assim?
— Ele queria investir em Matteo. Mas você está me dizendo que ele
não gosta de acessíveis.
— Marco? Marco? Marco?
— Deu pane, Barbie? — Ele ri. — Sim, Marco. Ele é gay. Mas a
família não sabe, por isso ele não sai falando aos quatro ventos sobre a
sexualidade.
— Bom, ele deveria investir. Matteo ficou louco por ele.
— Vou deixar ele saber.
Nós vamos até a vaga onde o carro de Zayan está estacionado. Abro a
porta do passageiro e entro. Zayan dirige para fora da faculdade e toma a
avenida principal.
— Zayzay, você não me seduziu com o objetivo de finalmente dar um
fim na minha vida, não é mesmo?
— Droga, pulguinha. Me pegou. Sinto muito, mas suas provocações
foram demais para mim. Precisamos dar um fim nessa história — ele diz
em tom de divertimento.
— Você disse que acabaria comigo me envenenando. Merda! Estava
nas balas, não é?
— Você é esperta. Mas não foi esperta o suficiente para não aceitá-
las.
— Não acredito que morrerei virgem e sem assistir One Direction
voltar aos palcos. O que você fez, Zayzay? — Coloco a mão no pescoço e
simulo um desmaio.
Mas rapidamente abro os olhos, quando ele cutuca minha barriga, me
fazendo rir.
— Você é uma grande espertalhona. — Percebo quando ele sorri,
ainda concentrado no trânsito. — E fã de uma banda morta.
— Nunca mais diga isso, Zayan! — rebato, chocada com a audácia
dele. — Eles vão se unir de novo, eu tenho esperanças.
— Sim, eu acredito — diz, descrente.
— Agora vamos falar sério. Para onde está me levando? Eu devo
avisar à minha mãe?
— O que ela vai pensar?
— Que eu sou doida. Mas ela sabe a filha que tem. Se eu dissesse
agora que estou indo com você para um lugar desconhecido, Martina iria rir
da sua cara e te desejar boa sorte.
— Não vou precisar, linda. — Ele se vira para mim com um sorriso
enigmático no rosto. — Você vai gostar. Eu espero.
Aceno e não faço mais perguntas.
Zayan dirige por cerca de quinze minutos antes de pegar uma rota
para um bairro afastado. A paisagem é dominada por árvores e casas
luxuosas, e eu abro a janela, aproveitando a brisa primaveril. Cinco minutos
depois ele vira e para na frente de um portão de ferro preto, circundado por
um muro tomado por trepadeiras.
Zayan toca o interfone e aguarda.
— Ciao? — Uma voz feminina senil atende.
— Ciao, nonna.
— Zayan?
— Sim, sou eu.
— Lembrou que tem avó? — ela diz em tom de repreensão.
— Estive aqui na semana passada, dona Dafne — Zayan responde,
sorrindo.
— Vou abrir para você.
— Ok.
Zayan ergue a mão com os cinco dedos abertos e olha para mim,
segurando a risada. Ouço quando uma sequência de botões é apertada. Nada
acontece e Zayan abaixa um dedo. A senhora tenta de novo acertar a senha
para liberar o portão. Sem sucesso. Zayan abaixa outro dedo e eu entendo o
que ele quis dizer.
Ela vai tentar cinco vezes antes de desistir.
Eu já estou segurando a risada junto dele, tentando não gargalhar,
quando ela chega ao fim das cinco tentativas sem conseguir. E então ela
desiste.
— Zayan... — Ele gesticula os lábios ao mesmo tempo que ela fala,
sabendo exatamente o que virá na sequência. — Quando é seu aniversário,
menino?
— Vinte e um de abril. — Eu deixo escapar a data e tapo a boca na
sequência, enquanto ele me encara boquiaberto.
— Quem está aí?
— Kira Moretti, nonna.
— Aspetta...[18] É a garota da peônia? — Peônia? A flor? Ele guardou
essa informação e compartilhou com a avó dele? A troco de quê?
— Sim. É ela.
Ele está sorrindo para mim. Está sorrindo de um jeito que me faz
esquecer tudo e faz meu pensamento se ocupar de admirá-lo. É um sorriso
lindo o que Zayan carrega nos lábios agora. O sorriso que sempre desejei
ver no rosto dele. Genuíno, lapidado pouco a pouco, para que não houvesse
nada mais sincero para se admirar nesse mundo.
E eu me sinto privilegiada por ser direcionado a mim.
E então eu retribuo.
— Pronto, Zayan! Acho que consegui — Dafne anuncia no instante
em que os portões se abrem.
Desviamos o olhar um do outro e ele entra na propriedade. Olho
admirada o enorme jardim que se estende por uns bons metros, tanto à
nossa esquerda como à direita. Arcos de plantas trepadeiras estão por todo
caminho, garantindo uma boa sombra.
Zayan estaciona na garagem da casa que tem uma fachada antiga, mas
ainda assim muito bem conservada.
Nós saímos do carro e ele vem até o meu encontro, mais uma vez
segurando minha mão.
— Cuidado, Zayzay. Pode me acostumar mal. — Encaro nossas mãos
unidas.
— Esse é o objetivo. — Ele sorri e pisca, antes de me conduzir até a
entrada.
Abre a porta totalmente à vontade, me conduzindo para dentro.
Estamos no meio do corredor quando a figura da senhora aparece na outra
ponta. Ela caminha até nós, com um largo e simpático sorriso no rosto.
— Que felicidade imensa ver você por aqui, meu netinho. — Dafne
aperta as bochechas de Zayan, que protesta.
— Vó! — resmunga.
— E você, minha querida! — Ela vem até mim e sou pega de surpresa
quando segura minhas bochechas, assim como fez com Zayan. — Está
muito magrinha a coitadinha, Zayan. Precisa se alimentar melhor. —
Recebo dois tapinhas leves, antes dela se virar e caminhar.
Nós dois vamos logo atrás, até chegarmos à enorme sala de jantar. É
uma casa muito grande para uma senhora, e me pergunto se mora mais
alguém aqui.
— Onde está aquela desnaturada que chamo de filha? — Dafne
questiona, sentando-se na ponta da mesa.
— Trabalhando, vó. — Então Dafne é mãe de Nina.
Sem questionar ou dizer nada, Zayan afasta a cadeira do lado direito
da avó. Me encara e indica com a cabeça que eu devo me sentar. Obedeço,
observando a infinidade de opções de comida à disposição. Penso no
comentário de Dafne e no gesto de Zayan, e entendo que não tenho opção,
senão me juntar a ela nesse almoço.
Zayan se senta à minha frente e começa a se servir, mas não me sinto
confortável para fazer o mesmo.
— Aquela lá não larga o trabalho por nada. E como anda a loja?
Preciso ir lá fazer uma visita, já que Gianina é incapaz de visitar a própria
mãe.
Martina seria uma excelente amiga de Dafne. Têm reclamações muito
parecidas, as duas.
— A loja está indo muito bem. Eu levo você lá qualquer dia desses.
— Sem que eu diga nada, Zayan estende o prato que acabou de servir e me
entrega.
Entro no nosso modo de conversa telepática, o acionando com o
olhar.
“O que você está fazendo?”
Ele entende o recado e entra no diálogo.
“Só pega o prato, pulguinha.”
“E se eu não quiser?”
“Não me desafie aqui e agora, ou vou aí te dar comida na boca!”
“Você é insuportável!”
— Vocês dois podem cessar essa conversa silenciosa e comer? —
Viramos o rosto juntos, encarando a senhora, surpresos. — Sou velha, mas
ainda enxergo as coisas, crianças. Andem, sirvam-se logo e comam.
Eu pego o prato, envergonhada por ter sido pega no flagra, e o coloco
à minha frente. O aroma fresco de molho me toma e eu provo um pedaço da
lasanha. Vou até o céu com o sabor delicioso e agradeço por apreciar uma
refeição de verdade. Já que, como previsto por minha mãe, meu armário e
geladeira estão ocupados principalmente por comida processada e
congelada.
Não é o ideal, mas ainda não tive tempo de aprender nada.
A quem quero enganar? Sou um verdadeiro desastre na cozinha.
Aprecio a refeição em silêncio, enquanto neto e avó discutem sobre o
humor ranzinza de Leonardo Castelli e sobre isso ser coisa de família.
Concordo em silêncio, já que o filho mais novo dele está sempre com uma
careta de mau humor no rosto.
Termino minha refeição assistindo à interação entre os dois. Eles
discutem, conversam, falam exaltados e eu sorrio. Meus avós paternos
faleceram antes mesmo de Dante nascer. E quando eu nasci, meus avós
maternos também já tinham ido. Não tive o privilégio de Zayan. Mesmo
que Dafne não seja avó de sangue dele, percebo que construíram uma
relação fraternal muito bonita e admirável.
— Sirva mais a garota, Zayan. — Em dado momento, a conversa se
direciona para mim.
— Não precisa, Dafne. Estou satisfeita.
— Não comeu nada, criança! Anda, fique à vontade. Sirva mais.
— Eu agradeço, mas estou cheia. Mais tarde, talvez.
— Vou mostrar à Kira a estufa, nonna. — Zayan se levanta da mesa e
eu faço mesmo. Ele vem até mim e estende a mão, o acompanho. — Já, já
voltamos — anuncia para a avó, que acena enquanto caminhamos para a
porta do fundo.
— Sua avó vive sozinha aqui? — questiono quando já estamos do
lado de fora.
— Tem uma empregada que vem todos os dias e dois jardineiros que
ajudam a manter essa pequena floresta que ela cultiva. — Ele leva a mão ao
bolso e pega duas balas, me entregando uma. — Mas Dafne gosta da
solitude dos jardins. Ela diz que é o santuário dela e que as plantas são as
melhores companhias.
— É um lugar muito bonito. — Coloco o doce na boca e olho ao
nosso redor, admirando as diferentes espécies de árvores, arbustos e flores.
— Passar os dias aqui não deve ser nada ruim.
— É calmo ficar nesse jardim. Um lugar silencioso, Barbie.
— Como você guarda tanta informação sobre mim, Zayzay? — Passo
o braço dele ao redor do meu ombro, me aconchegando mais a Zayan.
— Tenho boa memória.
— Só por isso?
— Claro que é. — Ele sorri com divertimento no olhar. — Por que
mais seria?
— Eu acho que você sempre gostou de mim secretamente e fazia de
tudo para ter minha atenção, me irritando profundamente todos os dias.
— Sua história de faz de conta é quase perfeita, mas tem um furo,
linda. Eu deveria ter me ajoelhado e pedido você em casamento no primeiro
beijo, se fosse esse o caso.
— Claro que não! Você me conhece tão bem ao ponto de saber que eu
jamais aceitaria uma loucura dessas. Você me ignorou depois do nosso beijo
apenas para fazer charme, porque é um grande babaca que não aceita correr
atrás de mulher nenhuma.
— Gosto de como sua imaginação é fértil. Seria uma boa escritora de
fantasia, Moretti. — Ele ri. — Bem-vinda à estufa Esposito.
— Esposito?
— O sobrenome de Dafne. E de Nina, antes dela casar com meu pai.
Zayan para na frente da pequena casa de vidro. Fico estática por
alguns segundos, completamente perdida na beleza do lugar, e ele me
conduz para dentro.
O cheiro de terra molhada, misturado com o perfume de diferentes
flores, se faz presente. É sereno e silencioso aqui. Solto a mão dele e
caminho pelos corredores de aparadores ocupados com mudas diversas,
cada uma delas sinalizadas com uma plaquinha. Ando com calma por todos
eles e Zayan me acompanha em silêncio absoluto.
Chego ao último corredor, ocupado por mudas de flores de todos os
tipos. Pelo menos é o que a plaquinha de cada uma delas indica. Margarida,
rosa, tulipa. E então uma das plaquinhas chama minha atenção.

Peônias
Para a menina Kira

— Para mim? — Me viro para ele, surpresa e emocionada.


— É. Eu falei para ela que você gostava.
— Quando?
— Ãn... — Ele coça a nuca. — Semana passada — diz baixinho.
— Semana passada você estava me ignorando. — Estreito o olhar na
direção dele.
— Não quer dizer que eu não te queria, linda. — Caminha até mim e
mexe na ponta do meu cabelo. — Você sabe disso.
— Mas você mencionou minha flor preferida para sua avó! Ela
plantou minha flor preferida. O que isso quer dizer?
— Quer dizer que ela me ouviu reclamar um dia inteiro sobre sua
petulância e decidiu plantar algo para me torturar sempre que eu viesse
aqui. Assim eu olharia para a flor e lembraria do ser mais mimado e
pirracento que já conheci e que me tira do sério como ninguém.
— Insuportável. Você não consegue ser gentil por nenhum segundo.
— Dou um tapinha na mão dele, que está no meu cabelo.
— Não finja estar bravinha. Não caio nessa.
— Eu estou brava.
— Não, não está. Suas bochechas não estão coradas.
— Te odeio, Zayan.
— E ainda assim está aqui. — Ele me puxa pela cintura e leva os
lábios até meu pescoço. Cada pelo do meu corpo se arrepia quando a ponta
do nariz dele passeia pela minha pele.
Meu corpo é tão responsivo a ele... É uma droga isso, porque ele vai
se afastar em breve, me deixando sedenta por mais toque.
— Tem mais para conhecer, vem. — E já está longe de novo.
— Posso ganhar um beijinho antes? — peço.
— Você está proibida de fazer esse biquinho perto de mim, Kira. —
Ele toca meu lábio com o indicador. As sobrancelhas de Zayan estão unidas
e ele parece frustrado. — Isso é golpe baixo. Não se faz, linda. — Afasta o
dedo, que logo é substituído pela boca.
O nosso beijo é calmo, lento. Um contraste do que nós dois somos.
Eu e ele. Somos dois impulsivos, agitados e inconsequentes. Somos um par
caótico. Estivemos a ponto de destruir um ao outro. Era o que buscávamos
dia e noite, incansavelmente.
E agora estamos aqui, nos beijando com lentidão, apreciando a
delicadeza do toque, buscando por mais. Poderia beijar Zayan uma tarde
inteira sem me cansar, mas ele não permite. Quando minhas mãos entram
pela camisa dele e começam a passear pelas costas, Zayan as segura e
afasta.
Ele cessa nosso contato com um sorriso malicioso no rosto.
— Venha, pequena provocadora. Vamos para fora antes que você
roube minha inocência.
— Se você quiser pode roubar a minha.
— Sim, eu já entendi isso.
— E ainda assim não o fez.
Ele para de costas para mim. Quando olha por sobre os ombros, tem
um olhar eufórico e abrasador. Engulo em seco, sentindo-me uma pequena
presa sob o olhar do caçador.
— Antes de te levar para o jardim, tem um outro cômodo que precisa
conhecer, linda.
— Qual é? — Meu coração está acelerado pela expectativa.
— Vem que eu te mostro. — E é quase uma sessão de hipnose o que a
voz sedutora dele faz.
Eu vou. Acompanho ele quando Zayan sai apressado da estufa.
Praticamente corremos para dentro da casa.
— Zayan, o que está acontecendo, menino? — Dafne questiona
quando estamos na ponta da escada à esquerda.
— Vou mostrar à Kira o resto da casa. Já voltamos! — ele diz alto,
me puxando para o andar de cima. — Olá, Nicoletta — cumprimenta a
moça que está no corredor do segundo andar e que eu suponho ser a
empregada.
— Oi! — Aceno para ela, ofegante, porque ainda estamos correndo.
Ele para na frente de uma porta escura e abre. Me puxa para dentro e
fecha na sequência.
— Dafne fez esse quarto para mim quando Nina e meu pai se casaram
— explica quando eu passeio com o olhar ao meu redor. — Te mostro tudo
depois, Barbie. Agora vou te entregar parte do que você quer tanto.
— Como... — Não termino a pergunta, porque ele puxa minha cintura
com firmeza, me fazendo calar.
A mão esquerda desliza pelo meu pescoço até chegar na nuca. Zayan
me tem sob o domínio dele apenas com o olhar hipnótico e a mão firme
segurando meus cabelos. Meu corpo todo aquece com a maneira profana
que ele me encara, e o sorriso maldoso toma o rosto lindo dele.
Ele puxa minha cabeça para trás, deixando meu colo ao alcance da
boca dele. Os lábios macios estão no meu decote e Zayan distribui beijos e
mordidas pela região, fazendo meu ventre revirar pela sensação deliciosa
que é ter a boca dele explorando meu corpo.
Com uma agilidade impressionante, as mãos dele vão para parte de
trás do meu joelho e meu corpo é manuseado com facilidade quando ele me
coloca deitada sobre o colchão macio.
As mãos grandes dele adentram a barra da minha blusa e ergo os
braços para que ele tire. Tento fazer o mesmo, mas ele me impede,
segurando meus pulsos acima da minha cabeça.
— Zayan!
— Não ouviu o que eu disse, pirracenta? Te entregarei uma parte do
que você quer hoje. Apenas uma parte.
— Não quero só uma parte.
— Me ouviu te perguntar o que quer, linda? Estou te informando que
será assim. Não é você que escolhe. Não depois de tanta provocação.
— Zayzay...
— Não sei porque reclama tanto, pulguinha. Estou prestes a te foder
com minha língua. Não quer? — Ele abaixa o rosto e passeia com a ponta
da língua pela veia que pulsa acelerada em meu pescoço.
— Zayan...
Meu peito sobe e desce acelerado quando ele solta minhas mãos e
traça uma trilha de beijos e mordidas pelo meu pescoço, decote e abdômen.
Remexo inquieta, já sentindo minha calcinha encharcar apenas pela
expectativa que me domina.
Ele fica de pé e segura minha panturrilha, descalçando meus pés. O
olhar de Zayan é algo que nunca vi antes. Há malícia, desejo e fascínio. Há
também algo que chama e prende. Mais uma vez nos entendemos no
silêncio da nossa troca particular de olhares. Mas essa é uma troca nova.
“Muito vestida ainda, provocadora.”
“Faça seu trabalho, Zayzay.”
“Estou fazendo. Veja bem.”
E então a mão dele está no botão da minha calça e ele abre. O botão e
o zíper. Desce a peça com lentidão. Minha respiração sai irregular e todo
meu corpo arrepia quando o olhar de desejo de Zayan passeia por mim,
incandescente.
— Você é linda, Kira. Perfeita da cabeça aos pés.
Eu sorrio. Não sei se me acostumei com elogios vindos dele.
Se aproxima mais uma vez e cola os lábios aos meus. Uma mão dele
se apoia no colchão e a outra explora meu corpo. Passa por minha cintura,
quadril, até chegar na coxa. E então Zayan faz o mesmo caminho de volta.
Os lábios dele deslizam para baixo, mas dessa vez Zay se detém no
vão dos meus seios. Aspira meu cheiro e deposita beijos curtos na curva
exposta. Um arrepio me toma deliciosamente. Ele desce até o tecido fino e
rendado da peça.
— Porra, Kira! Isso aqui vai me atormentar dia e noite. — Ele
mordisca e puxa meu mamilo ainda com a camada de pano no caminho.
Não controlo o gemido que sai de mim quando a pontada de dor leva uma
corrente de prazer diretamente para minha boceta. Como pode ser tão bom?
Todo mundo sente isso? Um frenesi louco apenas com uma mordida que
deveria ser nada além de dor?
Zayan segue o caminho até abaixo do meu umbigo, onde deposita um
beijo curto. Segura minhas coxas e afasta uma da outra. Ele me atormenta
um pouco mais quando decide adiar minha recompensa, explorando sem
pressa a parte interna da coxa com a boca. Passeia por um lado e se detém
no outro, distribuindo beijos curtos, me fazendo remexer.
— Tão indisciplinada, Barbie. Mal comecei e já está impaciente
assim.
— Zayan, por favor...
Ele enfia a cabeça entre minhas pernas e eu sinto a respiração quente
contra o tecido da calcinha. Ainda estou sensível a cada novo toque. É novo
para mim, mas entrega tudo que esperei sentir quando essa hora chegasse.
Entrega sensações desconhecidas e abrasadoras. Sinto tudo, e sinto
principalmente por ser Zayan quem me entrega. O indicador dele vai até a
peça e ele afasta com lentidão antes de passar a ponta da língua por toda
minha extensão.
Eu vou até o céu e vejo estrelas com esse mísero toque, sem
conseguir conter o som vergonhoso e necessitado que me escapa. É muito
melhor do que já ouvi dizer. É divino, esplêndido. É o paraíso.
— Muito sensível. Tenho certeza que meu pau entraria fácil em você,
linda. Tão molhada.
Antes que eu peça para que ele faça exatamente isso, a boca dele
volta a me tomar e ele suga meu clitóris com avidez. A língua quente
trabalha com destreza quando me toma, me torturando e me
recompensando, fazendo cada partícula do meu corpo ser consumida por
um prazer absurdo. É novo. É a porta para o nirvana. Perco minha razão e
me entrego aos sentidos, segurando o lençol com força quando a boca dele
se fecha ao redor do meu nervo que pulsa intensamente e Zayan o suga.
Meu corpo tem vida própria quando meu tronco arqueia e eu tento
mover meu quadril em uma busca desesperada por alívio.
— Shhh! Quieta, pequena provocadora. — A mão dele pousa sobre
minha barriga e me faz obedecê-lo.
Fico imóvel quando Zayan volta a explorar cada centímetro meu com
ânsia. Quase perco o controle quando ele me penetra com a língua e entra e
sai em um ritmo enlouquecedor.
É instintivo quando minhas mãos vão até o cabelo dele, o mantendo
no lugar, impedindo Zayan de parar. Ele me chupa e me suga,
impiedosamente, e volta a escorregar a língua por todo meu canal. Meu
corpo se resume a êxtase quando o calor das lambidas dele me proporciona
sensações que eu nunca havia experimentado antes e faz pequenos arrepios
me tomarem.
Cada centímetro da minha boceta lateja com a pressão suave e
deliciosa do deslizar da língua dele. É fácil esquecer de todo o mundo lá
fora. É fácil esquecer meu nome. É fácil esquecer que eu existo, porque
tudo que importa agora é como ele sabe fazer cada parte minha ceder ao
prazer que Zayan é capaz de me proporcionar.
— Zay, eu...
— É, eu sei, Barbie. — Ele me encara por um segundo, com o olhar
mais perverso que já vi atravessar seu rosto bonito. — Vai gozar para mim
agora, entendeu?
Aceno que sim e ele volta a me tomar com a boca e circundar meu
ponto mais sensível de prazer, até que eu não tenha outra escolha a não ser
atender o comando dele.
Meu grito se propaga por todo quarto quando um orgasmo absurdo e
delicioso explode por meu corpo, se espalhando por cada célula minha,
anestesiando todos meus sentidos por longos segundos. Minhas pernas
estremecem quando ele não me permite afastar e continua me chupando até
que sinto o gozo escorrer quente e ser tomado por ele.
Meus músculos cedem, moles de prazer, e tento achar um ritmo
estável para minha respiração, quando percebo o corpo dele sobre o meu.
Abro os olhos no instante em que a boca dele sela a minha e sinto meu
próprio gosto.
Nosso beijo é urgente e sinto nesse toque uma necessidade visceral,
palpável. Uma necessidade de um pelo outro desenfreada.
Zayan também sente, porque se afasta como um raio.
— Preciso de um segundo. — Levanta e dá dois passos para longe da
cama.
Olha para cima e respira profundamente, eu gargalho.
— Você ri. — Ele se curva e segura os joelhos.
— Sabe que poderia simplesmente...
— Não! — Ergue um indicador, sinalizando para que eu me cale. —
Não, não! Não termine essa frase, Moretti. Não ouse terminar essa frase.
— Vai mesmo me negar isso, Zay?
— Deus, eu consigo imaginar o biquinho que está na sua boca
atrevida agora! — Ele ainda encara o chão. — Tenha misericórdia, Kira. Eu
estou tentando ser um cara legal.
— Seria o cara mais legal do mundo se me fodesse agora.
— Garota, eu falei para não terminar essa frase!
Fica de pé e dá um passo na minha direção, fazendo meu estômago
gelar pela expectativa. Mas então tem um lampejo de razão e volta a ficar
de costas, dando cinco passos para longe da cama.
— Se estou pronta, por que não ceder?
— Eu não estou pronto, Kira.
— Mas você já fez isso antes.
— É diferente. Nunca significou nada antes.
— E comigo significa o quê? Pode virar para mim, por favor? —
peço quando ele permanece de costas.
Ele inspira uma boa quantidade de ar, antes de girar o corpo. A cara
dele retorce de dor quando me encara ainda seminua e decido interceder a
favor de Zayan. Pego minha calça e começo a vestir.
Ele se aproxima e pega minha blusa. Sento na beira da cama e ergo os
braços quando coloca a roupa de volta no meu corpo.
— Significa muito, linda.
— Estou ficando confusa com suas reações e suas falas. Você não
explica o que está acontecendo. Está me deixando assustada.
— Me perdoa. Mas preciso de tempo.
— É difícil quando você se afasta assim. Eu quero me entregar para
você, Zayzay.
— E eu para você, pulguinha.
O olhar de Zayan sobre mim diz exatamente o que as palavras dele
disseram. O castanho brilha. É tão nítido quanto a água cristalina de um
riacho. Me permite enxergar o âmago dele. Zayan me fala sobre a esperança
que se apossa dele. Posso oferecer a ele algo que ele nunca se permitiu ter
antes. Ele só precisa ter um pouco mais de confiança nele mesmo.
Posso dar tempo a ele. Acabamos de embarcar nessa loucura. Sei que
não é casualidade. Não é superficial o que estamos prestes a viver juntos.
Tem algo que me liga a ele desde o início. Algo nunca permitiu que
eu parasse de reagir à presença dele.
Até outro dia era ódio.
Agora precisamos de tempo para descobrir o que ainda nos chama tão
ardentemente um para o outro.
— Vamos. Ainda tem que conhecer o resto do jardim.
Ele ergue a mão e eu seguro. Física e simbolicamente.
Estou aqui para quando estiver pronto para se abrir, Zayzay.
As mãos delicadas e pequenas se moldam com perfeição nas minhas e
eu crio uma pequena ilusão de que foram feitas para se encaixar uma na
outra.
É essa a exata extensão dos meus pensamentos quando diz respeito à
Kira. Assustaria ela se eu abrisse a boca agora e falasse sobre tudo que ela
me causa. Tenho certeza. Porque é assustador para mim. Porque não me
deixa mais ter um minuto de paz. Ela me agita, consome boa parte dos
meus dias, demanda toda minha atenção. E eu ofereço a ela de bom grado.
Sem dizer nada, Kira me puxa no instante em que pisamos no
primeiro andar. Está calada e parece tímida. Acho que entendo o pedido
silencioso dela. Acabamos de dividir um momento muito íntimo. Acabei de
oferecer a ela algo que ninguém ofereceu antes. Ela quer se certificar de que
está tudo bem. De que não vou me afastar.
Passo meu braço ao redor dos ombros dela e aninho a pequena
Moretti em meus braços. Ela circunda minha cintura com os braços e deita
a cabeça em meu peito. Acaricio os cabelos sedosos, aspirando o perfume
de morango que vem deles.
— Tudo bem? — indago.
Ela ergue a cabeça e pousa o queixo no meu peito. Acena que sim,
com a expressão serena. Roubo um beijo calmo dela e deposito outro nas
têmporas.
— Vamos logo. Tem um jardim para me mostrar. — Kira me puxa e
eu vou.
Saímos mais uma vez para os fundos da casa. A conduzo para o
caminho de pedras que permeia toda a pequena plantação de variadas
espécies. Explico para Kira sobre cada uma e ela ouve atentamente.
Levo-a até o pequeno pomar e nomeio cada pé de fruta cultivado
aqui.
— Aquele é limão siciliano. É a planta que meu pai ganhou.
— Como assim ganhou?
— Cada novo membro da família ganha uma muda. Reza a lenda que
se a planta prosperar nesse terreno, então sua permanência na família
Esposito será eterna. A espécie escolhida é plantada e então basta esperar.
Se der flores ou frutos, você está na família certa. Senão, sua estada tem
dias contados.
— E Leonardo Castelli veio e plantou um pé de limão?
— Sim. Minha avó escolheu junto com Nina. Disseram que
combinava com o humor dele. Está aí. — Aponto para a árvore que
continua dando frutos. — Até hoje está de pé.
— E você? Plantou algo?
— Sim. — Caminho mais à frente e ela vem atrás.
Andamos até parar em frente à planta que me pertence. Olho para
Kira, que segura o riso, e eu faço o mesmo.
— Um cacto, Zay?
— Sim, pulguinha. Um cacto.
— Quer me contar a história?
— Não é muito boa. Quando Nina me conheceu, eu era um poço de
desconfiança. Mesmo desejando ardentemente corresponder ao afeto que
ela me oferecia, eu não sabia como fazer. Eu gostava do abraço dela, e
muitas vezes buscava por ele, mas também a magoei muitas vezes. Quando
ela não fazia o que eu queria, gritava, dizendo que ela não era minha mãe e
que não ia mandar em mim. Ela sofria, sei que sofria. Até que comecei a
frequentar a terapia. Isso me ajudou muito a lidar com o luto de ter perdido
alguém que eu nem mesmo conheci. E assim pude deixar minha mãe ir. E
receber Nina. Ela não substituiu Cassandra, mas me deu o amor que eu
achava que não merecia receber desde que perdi Cassie. A terapia teve seus
efeitos e eu finalmente me abri para Nina por inteiro. E então ela me trouxe
aqui e me fez plantar esse cacto. Ela disse que eu era como ele. Cheio de
espinhos prontos para espetar. Mas que se tivessem paciência para esperar,
veria brotar uma flor muito bonita.
Rio fraco com a explicação final e encaro o chão. Não acho que possa
brotar nada de bonito de dentro de mim. Nina colocou muita esperança em
quem eu sou. Ela vê algo em mim que não existe. Eu tento, mas tenho medo
de, no final, meus espinhos machucarem demais.
A testa de Kira toca a minha e fecho os olhos, me deleitando com a
sensação de calmaria que esse momento trás. Ela tem razão. Lugares
silenciosos são os melhores de se estar. Principalmente se ela está por perto.
— Estou pronta para ver essa flor nascer, Castelli.
— Espero que ela nasça, Moretti.
Ela se afasta e abro os olhos, para encontrar o sorriso lindo dela.
— Vai nascer. Sei que vai.
E me agarro a essa certeza, sabendo que farei de tudo para que ela
veja algo bonito em mim. Por ela. Porque ela merece.
Kira já teve meu pior.
Agora preciso dar a ela o meu melhor.
— Kira, você tem medo de borboletas? — questiono com calma
quando vejo uma voar na direção dela.
— Não, por quê? — O inseto pousa no topo da cabeça dela.
— Porque tem uma em você.
— Sério? Onde? Eu disse que elas me acham digna! — Ela sorri
como uma criança e começa a se mexer.
— Fica quieta ou ela vai voar! — Tiro meu celular do bolso de trás e
abro a câmera. — Não se mexe.
— Certo. — Fica estática no lugar, olhando para cima, tentando
enxergar o bicho.
Faço uma foto dela antes da borboleta azul voar para longe. Encaro
maravilhado a imagem, antes dela tomar o aparelho de mim.
— Ficou linda, Zay! — Os olhinhos castanhos brilham e eu sinto um
retumbar errático no meu peito. — Então, alguém mais tem uma árvore
especial? — questiona quando me entrega o telefone, e eu entendo a quem
ela se refere no mesmo instante.
— Quer saber se Lorenzzo tem algo aqui? — Estudo o semblante
dela, que permanece neutro.
— Na verdade, sim.
— Não, não tem. Ele nunca aceitou a Nina. Dafne menos ainda. Eles
nunca se conheceram.
— Então acho que eu nunca vou conhecê-lo.
Me calo, e meu pensamento vai longe. Meus olhos estão vidrados
quando uma imagem agoniante de Kira e Lorenzzo próximos me toma.
— Zay? — Ela puxa suavemente a barra do meu moletom. Pisco,
voltando para o presente.
— Seria melhor que não o conhecesse, Kira — digo com a voz vazia.
— Como é a convivência de vocês? — questiona quando começamos
a andar na direção oposta do cacto.
— Não temos. Lorenzzo quase nunca está em casa, passa o dia fora.
E, às vezes, a noite também. Ele não suporta estar lá e eu não suporto ele lá.
Sempre que nos encontramos, discutimos. Geralmente, ele começa a
discussão. Não há nenhuma possibilidade de relação para eu e ele. E eu não
desejo uma. Lorenzzo é uma pessoa ruim. Ele ainda vai se ferrar muito pelo
que faz.
— Por que diz isso?
— Lorenzzo é violento, Kira. Ele espalha o mal por onde passa. Uma
hora ele vai ultrapassar algum limite.
— Seu pai não faz nada?
— Lorenzzo é outra pessoa na frente do meu pai. É assustador como
ele dissimula, vira do avesso. Parece ser um ser humano incrível, prestativo
e amável quando está na presença do nosso pai. E então, fora do olhar dele,
se transforma. Acho que meu pai é omisso também. Porque depois de tantos
anos e de tantas brigas nossas, é impossível não perceber a maldade no
olhar do meu irmão.
— Sinto muito. Pelo seu irmão e pelo seu pai.
— Não culpo o meu pai, Kira. Ele fez o melhor que pôde para manter
essa família depois que minha mãe se foi. Se desdobrou para cuidar de um
recém-nascido, ainda vivendo o luto. Minha avó, a mãe dele, veio do
Canadá para ajudar e passou um tempo aqui, mas depois acabou voltando
para casa.
— Então ela mora no Canadá?
— Sim. Depois que ela se casou com o segundo marido, se mudou
para lá.
— E sua avó materna?
— Faleceu antes de eu nascer.
— Mas pelo menos você tem uma boa avó aqui, perto de você. — Ela
sorri, apontando para a casa.
— É, eu tenho. — Retribuo o gesto. — E ela está te esperando para
uma aula de culinária, pulguinha.
— Como assim?
— É uma experiência Esposito completa.
Caminhamos para dentro da casa e a conduzo até a cozinha. Dafne já
está a postos, vestida com um avental, separando ingredientes para uma
sobremesa. Uma que pedi para ela fazer, já que tenho uma pequena amante
de doces ao meu lado.
— Aí estão vocês. Andem, se vistam, crianças. — Aponta para dois
aventais que estão sobre a bancada.
Pego um deles e entrego para Kira. Ela coloca no corpo e se posiciona
ao meu lado, esperando as instruções.
— Hoje vocês vão aprender a fazer cannoli — Dafne anuncia
radiante.
Ela nos dá instruções e começamos a executar as tarefas. As
sobrancelhas de Kira permanecem unidas por todo o tempo e ela parece
excepcionalmente concentrada. E então noto um pequeno desvio da linha de
perfeição que a molda: Kira não sabe cozinhar.
Intercedo a favor dela e explico com paciência sobre cada etapa da
receita, mostrando como se faz para separar os ingredientes na quantidade
correta.
Ela se solta e começa a se divertir, me levando junto. Quando a massa
está pronta, coloco metade na bancada para ela sovar e a outra metade fica
ao meu encargo. Kira se concentra no que tem que fazer por alguns poucos
minutos, até que eu sinto que a atenção dela foi desviada para minha
direção.
Pelo canto de olho posso notar que ela está compenetrada no repuxar
e apertar que faço com a massa, e quase rio.
— Você se distrai com facilidade, pulguinha. E é por isso que eu sou
o melhor em sala e não você.
Ergue o olhar e eu ofereço um sorriso provocativo. Ela se irrita e
volta a se concentrar na bancada à frente dela.
— Zayan, vou pegar alguns limões no pomar.
— Certo, nonna.
Dafne sai da cozinha e nos deixa a sós.
Abandono o que estou fazendo para me colocar atrás dela. Observo os
pelos dos braços de Kira eriçados quando encosto o peitoral nas costas dela.
— Deixa eu ajudar você, linda. — Coloco as mãos sobre as suas e a
respiração dela é suspensa.
— Não precisa. Eu sei me virar. — A voz sai robótica.
Rio do comentário mal-humorado, mas não me afasto. Conduzo as
mãos dela para que saiba o que tem que fazer e ela remexe inquieta com
meu toque.
— Já entendi, Zayan! — Tenta sair do meu cerco, mas pressiono um
pouco mais o corpo contra o dela. As coisas que te esperam, pequena, você
não faz ideia.
— Você toma toda gota do meu autocontrole, pequena Moretti.
— E ainda assim parece sobrar o suficiente para você continuar me
abstendo de você.
— Atingimos nossa cota de provocações hoje, pulguinha.
Me afasto, já me sentindo vazio longe do corpo pequeno e quente.
— Odeio você, já disse isso hoje? — Kira maltrata a pobre massa da
sobremesa impiedosamente.
— Te disse que ainda iria irritar você bastante. — Volto a me postar
ao lado dela, rindo como o grande desgraçado que sou.
— Você sabe que nunca me rendo, certo? — Nos encaramos e ela
oferece um sorriso cínico. — Vai ter volta, Castelli.
— Mal posso esperar, Moretti.
— Acho que é suficiente. — Dafne está de volta com uma porção de
limões nas mãos. — Deixa eu ver como está isso. — Ela vem até nós e
analisa o nosso trabalho. — Muito bem, Zayan. E você... Ai, minha Nossa
Senhora! — Parece levar um susto ao avaliar o resultado desastroso do que
Kira fez.
A pulguinha oferece um sorriso amarelo e eu não evito meu riso.
— Está... — Dafne hesita, tentando manter a expressão neutra. —
Ótimo. — Não me convence. — Zay, pode ajudar a menina a terminar?
— Claro, vó.
“Vai para o inferno, palhaço.”
“Como pode ser tão linda, bravinha assim?”
Kira corta nossa troca de olhares e desvia a atenção para o material
inacabado na bancada. O analisa por alguns segundos e aposto que está
ponderando as opções que tem. Até que os ombros dela cedem e Kira pede:
— Pode me explicar como se faz, Zay? — Faz biquinho e, porra, não
sei mais quanto tempo vou suportar não estar dentro dessa garota quando
ela me encara assim, com esses olhos suplicantes e irresistíveis.
Explico, pequena Moretti. Explico o que quiser. Te ensino tudo que eu
sei.
— Claro, linda.
Ajudo-a a terminar a tarefa e vou até minha avó para terminarmos o
recheio. Kira se ocupa de lavar a louça mesmo sob meus protestos.
O lanche da tarde é servido e nos reunimos ao redor da mesa para
saborear a sobremesa. Eu me deleito com a expressão de prazer de Kira ao
provar o doce, com o jeito leve e descontraído que ela e minha avó
conversam e com os sorrisos lindos que recebo vez ou outra.
É, pulguinha, você me ferrou. Tentei lutar contra. Tudo que fiz foi
lutar contra, mas você tornou minha tarefa de te odiar impossível.
Espero que saiba disso quando pensar em desistir.

Estaciono na frente do prédio de Kira e saio do carro. Dou a volta e


abro a porta do passageiro para ela.
— Gostou da tarde, linda? — Seguro a cintura dela e roubo um beijo
curto.
— Muito, Zay! Foi incrível. Eu me encantei com a sua avó e com o
jardim.
— Fico feliz que tenha gostado.
— Pode me levar mais vezes lá? É o lugar mais calmo que eu já
visitei.
— Sempre que quiser, linda.
A mão dela vai para o meu rosto e Kira me puxa para perto, selando
os lábios nos meus.
Ainda sou pego de surpreso com a sensação de calma que nosso beijo
me traz. Eu me perco no ritmo lento e ainda assim abrasador com que
nossas bocas se exploram. Fujo da realidade e por alguns segundos tudo que
existe são nossas línguas se enroscando calmamente.
Mas então somos puxados abruptamente de volta para a realidade.
— Que porra é essa? — Kira me encara assustada e em seguida mexe
com o tronco para o lado, olhando para alguém atrás de mim.
— Dante? — ela diz, baixo.
Eu mordo os lábios, segurando uma risada, e me viro para ele.
— Caralho, Kira! Ele? — O irmão de Kira parece prestes a ter uma
síncope. Ela coloca o corpo na minha frente, como se quisesse me proteger.
E eu decido brincar com fogo ao pousar a mão no ombro dela e
depositar um beijo na bochecha de Kira. Ela dá um tapa na minha mão e
tenta afastá-la, mas a coloco de volta no mesmo lugar.
— Eu vou te explicar, Dante.
— Explicar o quê? — A voz dele sobe algumas oitavas.
Uma ruiva chega até nós com um gelato na mão e uma calma
impressionante, contrastante ao ódio borbulhante que Dante parece sentir.
Eu lembro dela. Ela estava no bar. É a namorada de Dante.
— Hey, eu te conheço. É Zayan, certo? — Ela nota minha presença.
Aceno que sim. — Prazer, Aisha. — Estende a mão e eu aceito o
cumprimento.
— Prazer.
— Nada disso! — Dante puxa a mão dela de volta. — Você estava
com as mãos em cima da minha irmã! — Aponta na minha direção, furioso.
— Espera. Como assim com as mãos em cima de Kira? — Aisha
questiona.
— Nós nos beijamos — explico.
— Zayan! — Kira profere meu nome em um tom de aviso.
— Eu não posso acreditar! — Dante pousa as mãos na cintura.
— Vocês se beijaram? — O sorriso de Aisha aumenta. — Espera. Isso
foi quando?
— Agora — Kira mente.
— Sábado — desminto.
— Eu não acredito! Você me fez perder uma aposta, cunhada. Agora
tenho que pagar a Antônio.
— Você apostou que minha irmã beijaria esse garoto? Aisha!
— Baby, tem muita coisa acontecendo ao meu redor, eu precisava de
uma distração. — Ela encara Dante e algo que ele vê o faz mudar a
expressão instantaneamente. Ele sorri como um bobo da corte.
Viu? É impossível resistir a uma carinha suplicante. Eu te entendo,
Dante.
— Dá meia-volta e salva sua vida agora. Você tem sete segundos para
sair daqui, Zayan — Kira sussurra séria, me fazendo rir.
Não foi ela que disse que ele não morde? Eu não vou sair daqui,
linda.
— Eu ouvi, Kira. — Dante desvia o olhar da ruiva, mas fecha o braço
na cintura dela e a puxa para perto. — Nós vamos conversar. Lá em cima.
— Tudo bem. — Ela se rende e caminha até a porta do prédio.
Pego a mochila dela no carro e vou logo atrás, recebendo um olhar de
desaprovação do irmão. Mas ele não diz nada.
Caminhamos os quatro até o elevador e entramos. Posso sentir a ira
dele chegar até mim silenciosamente, principalmente quando pego a cintura
da irmã e mexo nas pontas do cabelo dela.
Descemos no andar de Kira e ela destranca a porta do apartamento,
nos convidando a entrar.
— Quarto, Kira. — Ele caminha à vontade até o final do corredor.
Kira vai logo atrás pisando duro e eu ouço quando uma porta se fecha.
Coloco a mochila no sofá e decido ir até a cozinha, me sentando em
um dos bancos da ilha. Aisha vem logo atrás de mim. Ela vai até a lixeira e
se livra da embalagem do gelato.
— Então... — começa. — Vocês dois se beijaram.
— É, pois é. Aconteceu. — Dou de ombros.
— E vocês ainda estão se beijando?
— Não no momento. — Ela se senta ao meu lado e ouço quando ri
baixo. — Mas sim, ainda estamos nos beijando.
— Você é meio doido, não é? Beijou a garota que quase foi expulsa
da faculdade porque deu um tapa em você.
— Bom, você fez uma aposta de que eu a beijaria. Acho que previu
isso, não?
— É, acho que sim.
— Ela vai ficar bem? — Aponto para o rumo do quarto.
— Não se preocupe, não é nada de mais. Dante é superprotetor.
Muito. Exageradamente. Ele vai passar um sermão nela sobre estar com o
garoto que a provocou, provavelmente vai entregar uma camisinha e vai te
olhar feio quando sair dali. Mas isso passa. Agora, me diz. Você realmente
está beijando a garota que vivia provocando?
— É complicado.
— Quer tentar simplificar?
— O que quer saber?
— O que mudou?
— Bom... Não muito, para ser sincero. Pense nisso como sendo uma
moeda. Cara e coroa. Você atira para o alto e cai em um resultado. Se você
vira a moeda, o resultado é outro. Vamos dizer que Kira e eu giramos a
moeda.
— É, mas isso não é um jogo de sorte. Ninguém jogou a moeda para
o alto para começar.
— Ela foi colocada de um lado.
— Você colocou?
— Eu e Kira nos odiarmos parecia ser a coisa certa.
— Então você colocou a moeda do lado do ódio.
— Acho que sim.
— E agora Kira mudou o lado?
— Nós dois. Acho que nós dois.
— Ainda não me disse o que fez vocês mudarem o lado.
— Nós decidimos experimentar. Decidimos ceder ao que sentimos.
Somos atraídos um para o outro há bastante tempo, Aisha. Eu sou atraído
por ela há mais tempo do que Kira imagina.
— Fico feliz que não tenha hesitado em se entregar.
— Acredite, eu demorei mais tempo do que eu deveria.
— Não mais do que o bonitão ali. — Ela aponta para o quarto.
— Como assim?
— Dante e eu somos melhores amigos há pouco mais de doze anos.
Ele é apaixonado por mim por quase todo esse tempo. Mas foi apenas dois
meses atrás que ele me falou sobre os sentimentos.
— Doze anos? — Caralho, eu não suportaria guardar nenhum
sentimento por todo esse tempo!
— É muito, eu sei. Ninguém entende porque ele se torturou por tanto
tempo. Eu não entendo. Mas um dia, talvez, teremos uma resposta.
— Vocês parecem bem apaixonados.
— E somos. — Ela sorri. — Ele me conhece como ninguém.
— Como você soube que estava apaixonada?
— Terapia — diz simplesmente e nós rimos. — Foi a terapia. Eu
disse à minha terapeuta que me via com os olhos de Dante e via o amor que
ele sentia. E assim eu me enxerguei e vi em mim o amor que eu já sentia há
muito tempo. Faz sentido?
— Faz sim. Na verdade, existe um poema que fala exatamente sobre
isso.
— Eu não vou falar da minha vida sexual com você, Dante! — Nós
somos interrompidos quando Kira aparece no corredor, gritando.
— Prepare-se para o olhar — Aisha avisa com um sorriso cúmplice.
A Moretti mais nova chega até nós exaltada, o irmão vem logo atrás.
Olha na minha direção com um olhar sanguinário antes de apontar o
indicador na minha direção.
— É bom que você tenha juízo. E se der um passo para fora da linha,
nós vamos nos entender.
— Já disse que eu sei me defender! — Kira é quem responde.
Eu desço do banco e vou até ela. Abro os braços e ela vem. Se
aconchega em mim. Posso sentir o olhar de Dante me fuzilar, mas decido
relevar. É só um irmão protetor, no fim.
Giro nossos corpos e agora eu estou de frente para ele.
— Você quer protegê-la. Eu entendo. Kira e eu nos ocupamos de nos
odiar por muito tempo, e então da noite para o dia estamos bem? É
compreensível sua dúvida em relação a mim, Dante. Mas saiba que não é
minha intenção fazer mal a ela. E eu tenho o consentimento escrito de que
posso tocá-la, como você mesmo exigiu. — Seguro a risada quando ele fica
vermelho de ira.
— Seu...
— Dante, já chega! — Aisha o puxa pela mão.
— Zayan, não provoque. — Kira me encara com um alerta no olhar.
— Parei, pulguinha.
— Que apelido horroroso. Sinceramente, não vou entender onde você
estava com a cabeça, Kira — Dante resmunga, sendo conduzido até a sala
pela namorada.
Kira me abraça forte e eu beijo o topo da cabeça dela.
O irmão ainda me olha desconfiado, mas decide não dizer nada. Ele
se senta no sofá e liga a TV, e entendo que não sairá daqui agora. Acredito
que enquanto eu não for embora, ele não irá.
— Acho que deveríamos ir, baby — Aisha diz.
— Não vamos a lugar nenhum, Hobbit. Senta aí.
Hobbit? E o meu apelido é ruim?
Eu continuo abraçado à Kira. Aisha desiste de protestar e senta-se ao
lado do namorado.
— Já que está aqui, pode me ajudar com um trabalho? — Kira indaga.
— Está pedindo minha ajuda? Essa é a hora que finalmente admite
que sou o melhor?
— Essa é a hora que eu admito que sou procrastinadora. Adiei a
leitura de um texto que você, com certeza, já leu. Agora vai me ajudar a
fazer a resenha dele. — Ela me puxa para fora da cozinha.
— Você fica aqui — Dante me avisa.
Eu não protesto. Vou para a pequena mesa da sala de jantar e Kira sai
batendo pé.
Ela volta em seguida com um caderno em mãos. Pega o material da
faculdade e se senta na mesa, ao meu lado.
— Esse trabalho foi dado um mês atrás, Kira. — Estudo as anotações
e rabiscos dela.
— Eu sei, mas eu posterguei. Vai me ajudar ou não?
— Vou, Barbie. Vamos lá.
Ela pega o texto e nós começamos a discutir sobre o tema. Pontuo os
trechos que eu destaquei e ela começa a escrever.
Não sei quanto tempo se passa, até que Aisha levanta de súbito, com
o celular nas mãos.
— Eu não acredito nesse desgraçado! — A ruiva parece exaltada.
— O que houve? — Dante levanta, preocupado.
— Ele comprou as últimas ações. Ele tem quarenta e nove por cento
agora! — ela fala de algo que não compreendo.
— Quem te disse? — O namorado segura a mão dela e parece tentar
acalmá-la.
— Max descobriu. Amanhã vai ser anunciado.
Há uma troca silenciosa de olhares breve, antes de Dante anunciar:
— Kira, nós vamos indo.
— Tudo bem. — Ela se levanta e vai até a porta com eles.
— A gente se vê, Zayan. — Aisha acena, desanimada, e eu aceno de
volta.
De Dante, recebo um curto aceno e um semblante sério, antes deles
saírem e Kira fechar a porta.
— O que aconteceu? — questiono quando Kira senta na mesa.
— Acho que é o pai dela. Ele é um escroto sociopata e está tentando
tomar a vinícola da família dela.
— Eles têm uma vinícola?
— A Campello.
— Campello? Ela é conhecida. São grandes. Essa é a neta do dono?
— Ela mesma.
— Mas por que o pai dela está fazendo isso?
— Ninguém sabe. Aisha não o conhecia até meses atrás. Ele vivia
fora do país, até que voltou e se infiltrou na empresa. E agora está tentando
tomá-la à força.
— Que droga! Espero que as coisas se resolvam.
— Eu também. Aisha é uma pessoa incrível, não merece o pai que
tem.
— E a mãe?
— Ela perdeu a mãe quando tinha dezesseis anos.
E nos próximos minutos, Kira se ocupa de me contar toda a história
da ruiva e me simpatizo um pouco mais com a baixinha tatuada.
Espero me aproximar mais dela. Aisha parece uma boa amizade de se
ter.

— Onde você estava? — Meu pai está parado na porta da cozinha,


com o semblante sério, e questiona assim que piso dentro de casa.
— Na casa de Dafne.
— Por que não esperou o fim de semana? Poderíamos ir todos juntos
e comemorar...
— Pai — interrompo. — Sabe que eu não gosto disso.
— Mas é seu aniversário, Zayan!
Todo ano é a mesma coisa. Ele já deveria ter entendido que não quero
celebrar essa data.
— É aniversário da morte dela.
— Sua mãe adoraria te ver celebrar seu dia, filho. — A voz dele é
suplicante e sinto uma agonia me tomar por não ser capaz de fazer isso pelo
meu pai.
Mas não consigo me sentir feliz e celebrar o dia em que vim ao
mundo, quando esse é também o dia em que minha mãe partiu.
— Vou pensar, pai. — Dou a mesma desculpa de sempre. E ele finge
acreditar. Como sempre.
Subo para meu quarto antes que ele insista mais nessa ideia.
Nina comprou um cupcake para mim, mesmo que eu tenha dito que
não quero celebrar meu aniversário. Ela acende a vela e canta
“parabéns”. Me diz para soprar a vela e fazer um pedido.
“Quero ser feliz. Quero experimentar mais sorrisos do que
lágrimas.”
Ainda não apago a chama.
Doze anos. Faz doze anos que mamãe se foi. E eu nunca pude
celebrar nenhum aniversário com ela. Nunca toquei o rosto dela. Nunca a
vi sorrir. Nunca fui capaz de fazer ela sorrir.
Meu irmão está de pé, na porta da cozinha, me olhando com aqueles
olhos de desprezo e nojo. Meu pai e Nina estão logo à minha frente, de
costas para ele. Se meu pai virasse agora, conheceria o Lorenzzo que
conheço, veria a verdadeira face do meu irmão.
Mas ele não se vira. A atenção dele está em mim. Ele espera que eu
faça o meu pedido.
Volto a encarar meu irmão. Ele faz o mesmo. Os lábios dele se
movem.
“Seu verme! Eu te odeio, Zayan!”
Leio com precisão o que ele gesticula com a boca. Meus olhos
enchem de lágrimas.
— Qual o problema, Zay? — Nina questiona quando não consigo
segurar o choro.
Ela olha na direção que estou encarando, mas a máscara de bom
moço já foi colocada no rosto de Lorenzzo.
— Qual foi, irmãozinho? Não vai assoprar a vela? Vai derreter. —
Ele entra na cozinha com um sorriso dócil no rosto.
Se aproxima de mim e eu me encolho.
— Tudo bem sentir falta dela. Eu também sinto. — Ele pousa a mão
no meu ombro e aperta com força. Está me dizendo com esse gesto o que já
sei há bastante tempo. Sentimos falta dela e é minha culpa que ela não
esteja viva. — Mas hoje é seu dia.
Eu não me sinto confortado com as palavras dele. Lorenzzo não
queria que eu estivesse aqui, celebrando. Ele queria ela aqui.
Eu também.
O ódio que sinto por mim mesmo me atinge em cheio. Meu corpo
inteiro pinica pela fúria de ter sido eu o causador da morte dela. Eu a
matei. Eu a matei e não tenho direito de celebrar nada.
Pego o bolinho e arremesso no chão.
— Eu odeio meu aniversário! Nunca mais quero comemorar nada! —
grito para Nina e saio correndo na direção do meu quarto.
Tranco a porta e corro até a cama.
Abraço meu travesseiro e permito que o choro rasgue meu peito e me
consuma. Choro, sentindo a tristeza e a saudade desoladora penetrar cada
poro meu. Choro até me exaurir, e então adormeço.
— Como assim ele não comemora o aniversário dele? — questiono
Marco, que está na minha frente, enquanto observo Zayan do outro lado da
biblioteca, folheando um livro qualquer.
— Não comemora. Nunca comemorou, na verdade.
— Por que não? — Não consigo aceitar.
— Kira, você sabe da história de Zayan?
— Ele me contou algumas coisas. — Volto a organizar a prateleira
que está na minha frente.
— Te contou da mãe?
— Ele disse que ela faleceu no... Ah... É por isso, não é? É o dia que a
mãe morreu.
— Eu imagino que sim. Ele também nunca me explicou direito. Mas
é fácil juntar um mais um.
— Sim. Eu entendo. Mas, ainda assim...
— Não insista. Ele fica insuportavelmente chato quando o assunto é
comemorar a vinda dele ao mundo.
— Mas e se nós comemorarmos sem que ele saiba que vamos
comemorar?
— Como assim?
— Não sei. Podemos sair juntos. Não precisamos cantar parabéns. Só
deixar o dia dele feliz.
— Ele vai desconfiar.
— Eu dou um jeito, Marco.
O melhor amigo de Zayan me encara descrente por alguns segundos,
mas antes que ele dê uma resposta, Zay chega até nós.
— Você é bem lenta, pulguinha. Ainda está arrumando esses livros?
— implica comigo.
— Eu sou organizada. É diferente. Senti[19], o que você vai fazer no
sábado?
Zayan estreita o olhar na minha direção, mas rapidamente entende
meu objetivo.
— Não — nega com firmeza.
— Você nem me deu tempo de falar nada! — protesto.
— Não, Kira. Não existe nenhum biquinho nesse mundo que me fará
ceder. Eu não vou comemorar meu aniversário. Fim da história.
— Posso falar ou vai dar mais um show?
— Não dei show — o senhor ranzinza resmunga.
— Deu sim — Marco diz.
— O que você está fazendo aqui? Vai dar uma volta nessa biblioteca.
— Zayan dispensa ele com um balançar de mãos, e Marco ergue as suas,
rendido e contendo um sorriso, antes de se afastar.
— Está estressado hoje, limãozinho?
— Não — Zayan responde com uma carranca no rosto. — Só não
quero saber mais dessa história de comemorar aniversário e...
— Nem me deixou falar nada, Zayzay. Não precisamos comemorar
seu aniversário se não quiser. Mas por que não podemos sair e nos divertir?
— No dia do meu aniversário?
— Sim. Olha, o mundo não gira ao redor do seu umbigo, certo? Se
não quer comemorar, não comemore. Mas eu gostaria de fazer alguma coisa
legal no sábado.
— Eu sei o que está fazendo e eu não vou cair.
— Não estou fazendo nada, Zay. É o seguinte, eu vou sair no sábado.
Não aguento mais ficar enclausurada no apartamento. Já sei! Santino me
convidou para assistir o treino de vocês no sábado. Vai estar lá? Quem sabe
não nos encontramos por acaso?
— Você... — Sou pega de surpresa quando ele segura minha cintura
com força. — Pequena criatura provocadora! Você é perversa!
— Não pode ficar com suas mãos em mim quando estamos na
biblioteca. — Me afasto do toque dele e caminho para a direção oposta.
E que coincidência perfeita encontrar meu mais novo amigo rumando
até as prateleiras do fundo.
— Santino! — chamo o nome dele, que se vira na minha direção.
— Ei, Kira. Como estão as coisas?
— Ótimas. Escuta... — E então sou impedida de caminhar até ele
quando uma mão se fecha no meu punho e me arrasta de volta para os
corredores.
Tento segurar o riso quando Zayan me coloca na frente dele e me
encara bravo.
— Você conseguiu, mimada pirracenta. Eu vou sair com você.
— Passar o dia comigo — corrijo.
— Como é?
— Você vai passar o dia comigo.
— Vai ficar grudada em mim durante as vinte e quatro horas do dia?
— Não. Não todo esse tempo. Pode me buscar às oito da manhã.
— Tenho terapia às nove.
— Ótimo. Tomamos café e nós vamos até sua terapia. Eu gostaria
mesmo de uma conversa com seu terapeuta. Ele precisa trabalhar melhor
esse seu humor azedinho.
— De jeito nenhum você vai comigo.
— Relaxa, Zay. Não vou ficar ouvindo sua conversa atrás da porta. É
antiético. Mas posso conhecer um futuro colega de profissão, não posso?
Oito horas, limãozinho.
E uso de mais um artifício a meu favor. Seguro o maxilar dele com
uma mão e trago o rosto de Zayan para perto, grudando a boca dele na
minha em um beijo curto.
— Você é um bom garoto, Zayzay. — Sorrio travessa e o deixo para
trás, antes de ir cumprir com o restante das minhas atividades.

Termino de passar o rímel e dou uma última olhada no espelho. Sorrio


para mim mesma, aprovando o resultado. Meu celular apita no instante em
que termino de guardar tudo que preciso na bolsa.

Limãozinho
Já cheguei, pulguinha.

Fecho as portas e desço até a portaria.


— Bom dia, Carlo! — cumprimento o porteiro.
— Bom dia, Kira. Vai sair?
— Sim. Com o Zayan.
— Não consigo entender. Naquele dia você me disse que não era para
deixar o garoto subir e uma hora depois estava saindo com ele de mãos
dadas. — Ele une as sobrancelhas, confuso.
— Não tente entender, Carlo. Não tente entender. — Sorrio e aceno,
me despedindo.
Abro a porta do prédio e ele está lá, parado na lateral do carro, à
minha espera. Lindo. Poderia te admirar o dia todo, Zayzay.
— Bom dia, Barbie. Hoje mais Barbie do que nunca. — Aponta para
minha blusa rosa.
— Bom dia, limãozinho.
Zayan revira os olhos antes de me puxar pelo casaco e me oferecer
um beijo curto. Ele segura meus lábios com os dentes e sorri.
— Vamos. Antes que você me tire do sério, Moretti.
— Espera. Posso pelo menos desejar “feliz aniversário”? — Tento
usar o tom mais suplicante que consigo.
— Dio[20], Kira! — Ele coloca a mão espalmada no meu rosto. — Já
pedi para parar com essa carinha de cachorro sem dono!
— Por favor — suplico sobre a palma da mão que tapa minha cara.
— Certo, garota. Ande, vai logo. — Ele afasta a mão e eu pulo no
pescoço dele, envolvendo Zayan em um abraço.
Ele parece surpreso, mas logo cede e envolve minha cintura.
— Feliz aniversário, Zayzay!
— Obrigado, pulguinha. — Beija meu pescoço, causando um arrepio
delicioso e familiar.
— Você sabe qual é meu presente para você, não é?
— Por favor, não diga nada.
— Minha virgindade está à sua disposição para quando quiser tomá-
la.
— Você disse — ele suspira contra minha pele.
— Bom, é isso. Podemos ir agora. — Me afasto e ele acena, tentando
conter um sorriso, e abre a porta do passageiro para que eu entre.
Dá a volta no carro e assume a direção.
— Não se assuste com Stefano. Pode ser que ele se empolgue demais
com sua presença — Zayan diz em tom de aviso.
— Por quê?
— Vamos dizer que você já é uma velha conhecida para ele.
— Você dedicou sessões a mim? Fico lisonjeada, Zay.
— Vai dizer que nunca falou de mim para sua terapeuta?
— Quem te disse que eu tenho uma?
— Somos estudantes de psicologia. Em breve, psicólogos formados.
Você não estaria sã se não fizesse terapia. E, além do mais, você sai mais
cedo às quintas da biblioteca. Presumo que esteja indo para suas sessões.
— Minha psicóloga não sabe nem mesmo da sua existência, Zayan.
— Faço um gesto de dispensa no ar.
— Mentindo descaradamente, pulguinha. Que pecado!
Ele ri e eu o acompanho.
Zayan estaciona em uma padaria próxima ao consultório do psicólogo
e nós tomamos café da manhã juntos.
Saímos de mão dadas e caminhamos até o prédio de tijolinhos. Zayan
abre a porta de vidro da entrada e entramos no instante em que um senhor
de barba e cabelos brancos vem de um corredor à esquerda.
Ele nos encara, confuso. As sobrancelhas franzem quando o olhar
desce para nossas mãos unidas.
— Bom dia, Zayan. — O senhor, que deduzo ser Stefano, sorri
abertamente. — E você é a?
— Kira. Prazer. — Estendo a mão e ele me cumprimenta.
— Kira Moretti. Não imagina o enorme prazer que é finalmente
conhecê-la — diz em tom de confidência.
— Então Zayan não mentiu. Ele dedicou mesmo sessões a mim.
— Uma boa quantidade, eu devo dizer.
— Certo, certo. Já se conheceram. Está na nossa hora, Stefano. —
Zayan parece constrangido quando desfaz o toque em minha mão e caminha
para a direção de onde o terapeuta veio. — Espera aqui, pulguinha — ele
diz, antes de sumir do meu campo de visão.
— Pode pegar leve com ele hoje? O humor de Zayan está horroroso
para quem está fazendo aniversário — peço a Stefano, que gargalha
abertamente.
— Vou ver o que posso fazer por você. Mas já deveria saber que esse
é o humor que ele tem para oferecer quase todos os dias.
— É, eu sei.
— Mas se me permite dizer, hoje ele parece melhor do que quando
esteve aqui na semana passada.
— Você vem ou eu farei essa sessão sozinho? — O senhor ranzinza
que acaba de fazer vinte e três anos aparece de novo na ponta do corredor.
— Já estou indo. — Zayan revira os olhos e desaparece de novo. —
Bom, foi um prazer conhecer você, Kira. Espero te ver muito mais por aqui.
— O prazer foi meu, Stefano.
— Jogo de xadrez, livros de ficção científica ou terror e óleos
essenciais. Tem um centro comercial a duas quadras daqui se pegar à
direita. Eu te dou cobertura — ele sussurra antes de ir atrás do
estressadinho.
Entendo o recado e saio apressada quando ouço a porta do consultório
se fechar.
Chego no centro comercial mencionado por ele e vou em busca de
uma loja de algum dos itens mencionados. Encontro um sebo e entro. Passo
longos minutos procurando, até que encontro três livros de Andrew Pyper.
É um dos meus autores favoritos de terror. Pago pelo presente e o vendedor
começa a fazer o embrulho. Estou olhando distraidamente para os itens que
estão à venda no caixa e meu olhar pousa em um chaveiro.
— Pode colocar aquele ali junto. — Aponto para o item. O vendedor
acena e embrulha junto dos livros.
Eu pego o pacote e pago. Saio e caminho de volta para o consultório.
Espero por mais vinte minutos antes de ouvir a porta abrir e eles
aparecerem na recepção, onde estou sentada.
— Nos vemos na semana que vem, Zayan.
— Nos vemos.
— Até mais, Kira.
— Até, Stefano. — Aceno para ele.
Zay acena para o terapeuta e passa o braço sobre meus ombros.
— Por que você está com cara de quem aprontou? — questiona,
quando não consigo conter meu sorriso. Ele olha mais atentamente e nota o
pacote em minhas mãos. — O que é isso, Kira?
— Certamente não é um presente.
— Não? Então o que é?
— Você não vai acreditar! Eu fui dar uma volta no bairro e achei um
centro comercial. E tinha um sebo no lugar, muito lindo, Zayzay. Entrei e
achei esses livros aqui. Mas depois que paguei, me lembrei que já os tenho
em minha coleção. Você não quer eles para você? Acho que é um pecado
devolver. — Ergo o embrulho, sorrindo, e ele revira os olhos fortemente.
— O que eu faço com você, pulguinha? — Ele pega o presente e abre.
— Já que você mencionou, eu tenho algumas ideias.
— É, eu sei. Você tem várias ideias. Muitas delas bem malucas. —
Ergue a sacola para exemplificar o argumento. Em seguida, tira os livros lá
de dentro. Lê os títulos com curiosidade. — Stefano tem participação nisso,
não tem?
— Não sei do que está falando. Eu disse que estava dando uma volta
e...
— Ok, ok. Entendi. Uma volta. Livros repetidos. — Bufa. — Você
por acaso lê livros de terror? — questiona, descrente.
— Para sua informação, leio sim. Stephen King, William Petter,
Richard Matheson. Já li todos eles. — Ele parece impressionado.
— É bom saber.
— Então? — indago.
— Obrigado pelo presente, atrevida. — Contém o sorriso. — Eu
amei. Ainda não li esse autor. Acho que irei gostar.
— Espero que sim. Tem mais. — Aponto para a sacola parda.
— Mais? — Zayan olha mais atentamente. Me entrega os livros para
segurar e pega o embrulho menor. Rasga o papel e ergue o chaveiro do olho
de Hórus.
— Olho de Hórus significa proteção e poder. Mas não é esse o
simbolismo desse presente.
— E qual é?
— Por muito tempo, nossa relação foi olho por olho. Uma provocação
em troca de outra. Um jogo de vingança. Mas agora acredito que podemos
fazer dela uma relação olho no olho, com mais seriedade e diálogo.
Ele sorri contido antes de depositar um beijo em minha testa.
— Também acho, linda. Vamos fazer dessa forma, tudo bem? — Eu
aceno positivamente. — Agora vamos para nossa próxima parada.
— Treino de vôlei? — pergunto, animada.
— Treino de vôlei.

A quadra que Zayan treina já está ocupada com alguns alunos e pelo
técnico. Eu caminho com ele pela lateral e escolho um lugar para sentar.
— Já volto. — Ele pega a bolsa e vai em direção ao que imagino ser o
vestiário.
Minutos depois está de volta, devidamente uniformizado e
perdidamente gostoso. Suspiro audivelmente quando ele chega até mim e a
resposta dele é rir.
— Fique à vontade, linda. — Coloca a bolsa ao meu lado e me
entrega o celular, antes de ir até a quadra.
— Então, vocês dois estão muito bem resolvidos? — Viro o olhar
para encontrar Santino parado, com um sorriso cúmplice no rosto.
— Ele parece até outra pessoa. — Volto minha atenção para Zayan,
que conversa com um companheiro de time.
— O que uma boa tran...
— Shhh. Não termina essa frase — sussurro.
— Por que não? Não foi tão bom assim, Matilda?
— Zayan está se preservando — digo com acidez.
— Ah? Mas como assim? Até onde eu sei, Zayan trepou com metade
daquela faculdade. Só não foi na outra metade porque são homens.
— Zayan? — Minha voz sai aguda.
— Zayan. Pergunte para quem quiser, Matilda. Olha só. Ada! — ele
chama a atenção de uma garota que está sentada a dois metros de nós. Ela
se vira e acena. Santino gesticula para que ela se aproxime e ela vem.
— Oi, Santi.
— Oi, Ada. Essa é Kira, minha amiga.
— Prazer. — Nos cumprimentamos.
— Kira veio ver o namorado jogar.
— Jura? Eu também — Ada responde.
— Zayan não é meu...
— Zayan? — a garota questiona, surpresa, interrompendo minha fala.
— Desculpa, é que não esperava.
— Você teve um lance com ele, não teve? — Santino pergunta.
— Sim — Ada suspira. Suspira! Ela não tem namorado? Por que está
suspirando assim por outro garoto? — Você é uma garota de muita, muita
sorte, Kira.
— Eu e aparentemente todas as estudantes da nossa universidade —
resmungo.
— O que está acontecendo aqui? — O garoto que transou com
metade da população feminina de Florença chega até nós com o semblante
indagativo.
— Estamos conversando sobre sua fama, Zayzay. Nunca me disse que
era rodado — comento com amargura.
— Deixa eu ir trocar de roupa. — Santino sai apressado.
— Também vou indo. — Ada aponta para o lugar onde estava. Mas
antes de se afastar, vira para Zayan e acena com um sorrisinho no rosto. —
Oi, Zay.
Meu maxilar trava e cruzo os braços, tentando controlar o ciúme
injustificável. Cadê seu namorado, Ada?
— Qual é o problema, pulguinha? — Ele ri com malícia.
Não aprendeu mesmo a não brincar com fogo, não é, Zayan?
Fico de pé e caminho até ele com os braços cruzados.
— Então você passa por metade daquela faculdade, distribuindo
orgasmos para quem entrar na fila, mas na minha vez decide fechar o
parquinho para férias?
— Kira, pelo amor de Deus! — Os olhos dele arregalam.
— Já entendi, Zayan Castelli. Já entendi. A minha boceta não é boa o
suficiente para você. Aparentemente, o seu pau não gosta de lacres. Quer
saber? Eu posso procurar alguém para... — Em um segundo, ele pula o
pequeno muro que divide a quadra da arquibancada e se coloca na minha
frente.
A mão direita se fecha com posse na minha cintura e a esquerda
espalma a lateral do meu rosto.
— Não termina essa frase, Kira. — Kira. Nenhum apelido usado.
Apenas meu nome proferido de um jeito duro que deveria me apavorar, mas
que me causa um frenesi inexplicável. — Eu vou fazer de você minha.
Esquece qualquer outra pessoa. Para você só existe Zayan Castelli. Sou eu
que vou te tomar por inteira, sou eu que vou te foder incansavelmente até
exaurir cada partícula desse corpo delicioso. Sou eu que vou marcar você de
todas as formas até que se lembre por horas, dias, semanas de quem esteve
dentro de você. Até disciplinar seu corpo para que ele só saiba responder ao
meu. — Carta aberta ao feminismo: adeus. — Entendeu?
— Mal posso esperar por isso, Zayzay.
— Espero que esteja pronta. Agora senta aí e seja uma boa garota
uma única vez. — Ele puxa meu lábio inferior com os dentes e se afasta,
pulando de volta para a quadra, me deixando com a boca seca e todo meu
corpo pinicando, desejando ardentemente que ele não demore a se entregar.
Assistir ao treino depois disso vira uma tormenta. Não presto atenção
em absolutamente nada do que o técnico explica e não tento entender
nenhuma estratégia que está sendo ensinada.
Tudo que meu cérebro trata de decorar é como cada movimento de
Zayan parece ser ensaiado para me torturar.
Ele pega a bola, quica no chão, joga no ar e pula. Abre todos os dedos
e dá um tapa estalado na pobre bola.
Eu certamente ficaria uns bons dias sem sentar direito se recebesse
um tapa ardido desse na bunda.
Zayan é certeiro em cada ataque e também defesa, e joga com uma
destreza impressionante. É impossível desviar o olhar.
— É impressionante, não é? Como nossa imaginação viaja assistindo
a um treino de vôlei... — Ada está sentada ao meu lado e eu sequer percebi
a garota se aproximando. — Desculpa por mais cedo. Não quis causar uma
impressão ruim. Eu e Zayan tivemos um lance, mas foi coisa rápida. Estou
bem com meu namorado.
Ela tenta amenizar, mas não me sinto confortável com a justificativa
dela. Opto por ser educada, no entanto.
— Tudo bem. O que está no passado pertence ao passado, certo? —
Dou um sorriso forçado.
— Claro.
— Qual deles é seu namorado?
— Camisa nove. — Ela aponta para o sujeito na quadra.
Assisto o resto do treino com a menina tagarelando sobre a vida de
cada um dos jogadores. Finjo estar interessada, mas não sei se consigo
esconder meu desconforto sempre que ela faz algum comentário sobre
Zayan.
Sou salva do falatório quando o treinador anuncia o fim do treino. E
em seguida sou condenada quando Zayan leva as mãos até a barra da
camisa e a sobe lentamente, deixando à mostra o abdômen liso e o peitoral
adornado pela tatuagem. Gotículas de suor escorrem pela pele branca e
acho que estou babando.
E não sou só eu. Ouço o suspiro baixo da garota ao meu lado quando
ele vem caminhando até nós.
Seu namorado está do outro lado da quadra, anjo. Pode ir até ele.
— Kira, minha bolsa — ele pede.
— Não entendi.
“Fala direito comigo, Castelli.”
“O que eu fiz agora?”
“Além de ser um grande exibido?”
— A bolsa, por favor, Barbie.
Levanto do lugar e levo a bolsa até ele. Antes de se afastar, ele segura
minha cintura e me puxa até que eu esteja grudada no murinho.
Seguro o rosto dele e Zayan sela os lábios nos meus. Ele me oferece
um beijo quente. Nossas bocas se exploram sem calma. Duelamos com
nossas línguas até que precisamos nos afastar para buscar fôlego.
— Melhor?
— Muito melhor. — Sorrio, satisfeita.
— Vou tomar um banho e me trocar. E nós vamos encontrar meu pai e
Nina para almoçar.
— Seu pai? E Nina? Seu pai e Nina? — questiono em desespero. Ele
não me preparou para isso.
— Não foi você que exigiu passar o dia comigo, linda? — diz,
travesso, já se afastando. — Já volto!
Eu me sento, porque minhas pernas tremem pelo nervosismo que me
toma.
Eu e Leonardo Castelli em um almoço. Não é uma ideia animadora.

— Você está bem? — Zayan questiona quando para o carro em um


semáforo.
— Sim.
— Não está não. Faz cinco minutos que não abre a boca. Você está
passando mal?
— Não, Zayan. Só estou nervosa.
— É porque eu transei com mais pessoas que você gostaria?
— Não, mas obrigada por lembrar disso — respondo com uma careta.
— Se não é isso, então o que é?
— Seu pai me odeia, Zayan. Ele não vai querer minha presença lá.
— Está com medo do meu pai, pulguinha? — O sinal abre e ele volta
a dirigir. — Não precisa disso.
— É fácil para você dizer. — Começo a roer minhas unhas.
Zayan segura minha mão e afasta da minha boca. Dirige apenas com
uma mão, enquanto a outra acaricia o dorso da minha.
— Acredite em mim. Não tem nenhum motivo para ter medo de
Leonardo Castelli. Primeiro, Nina estará lá. Não tem absolutamente nada
nesse mundo que deixe meu pai mais domado do que Nina. Ele vai se
comportar. E, segundo...
Ele para de falar quando manobra o carro e estaciona na frente de um
restaurante chique. Eu não estou vestida para esse lugar. Zayan deveria ter
me avisado!
Abro a porta e saio assim que ele desliga o carro. Minha vontade é
correr daqui, mas o nervosismo me trava.
Zayan para na minha frente e segura minhas mãos. Ergue meu queixo
para que eu o encare.
— Segundo, ele com certeza está louco para conhecer a garota que
me convenceu a me reunir com eles em um almoço celebrativo no dia do
meu aniversário.
— Como assim?
— Havia dito a eles que não queria comemorar. Eu nunca comemoro,
Kira. Mas você fez parecer simples a ideia de celebrar o dia.
— Não estamos celebrando. Estamos passando o dia juntos.
— Viu? É exatamente disso que estou falando. Então eu vou entrar ali
e almoçar com pessoas que eu gosto como faria em um dia qualquer. E você
vem comigo. — Ele segura minha mão e me leva para dentro.
Toda tensão anterior dissipa e eu me permito sorrir.
— Então agora você gosta de mim, Zayzay?
— Te suporto um pouco mais, pulguinha — diz, divertido.
— Está certo — respondo sem acreditar nessa mentira descabida.
Zayan procura com o olhar antes de achar a mesa ocupada por Nina,
Dafne e Leonardo. Já deveria imaginar que o irmão dele não viria.
O olhar do pai de Zayan arregala e o rosto dele avermelha quando me
encara furioso. Me escondo atrás de Zayan, sentindo o medo me consumir.
O garoto não permite que eu fique assim, encolhida, e puxa minha mão,
para que eu me coloque ao lado dele.
Paramos na frente da mesa e todo meu corpo estremece quando sinto
a ira de Leonardo chegar até mim.
— O que ela está fazendo aqui, Zayan?
— Pai...
— Não comece, Leonardo! — Nina o repreende severamente.
— Mas é a garota que...
— É, é a garota que me deu um tapa, pai. Supera essa história. Kira
também é a garota que me encorajou a vir aqui hoje. É bom que se
acostume com a presença dela, porque ainda nos verá juntos por muitas
vezes.
Meu coração bate acelerado quando ele fala com firmeza sobre nós.
Sobre estarmos juntos. Sobre mais vezes.
— Podemos almoçar agora, depois dessa dose de drama? Eu estou
com fome — Dafne questiona com tédio na voz, me fazendo rir.
Ainda recebo um olhar irado de Leonardo, mas ele não diz mais nada.
Zayan puxa a cadeira e eu me sento. Ele se coloca ao meu lado e me entrega
um cardápio.
Eu analiso as opções e escolho a única que conheço: salmão. Nós
fazemos os pedidos e eles começam a conversar sobre viagens
internacionais e países que visitaram.
Me abstenho do assunto, porque nunca saí da Itália, e tomo como
distração brincar com os dedos de Zayan que estão na minha coxa. O
almoço é servido e minha atenção se volta para o prato à minha frente.
— Tudo bem? — ele questiona ao meu lado. Aceno que sim e levo
um pedaço de peixe à boca.
— Então, Kira. Mamãe falou que você esteve nos jardins Esposito. O
que achou? — Nina se vira para mim.
— É o lugar mais lindo que já conheci. Eu nunca senti tanta paz e
calma como senti no jardim. É maravilhoso.
— E o que você plantou?
— Ainda vai plantar, Gianina. Peônias. Não estavam prontas. — É
Dafne quem responde.
— A garota vai plantar algo lá? — Leonardo parece ultrajado com a
ideia.
— Claro que sim. Por que não? — Nina retruca.
— Não é cedo para isso?
— Não, não é — Zayan responde.
— Você é impulsivo, garoto. Diferente do seu irmão.
Percebo quando o semblante de Zayan cai e ele fica tenso ao meu
lado. Seguro a mão dele forte e ele retribui o toque, mas não se vira para me
olhar.
— Então... — Nina começa, parece hesitante. — “Parabéns pra
você”?
— Não. Por favor, não — Zayan responde ainda sério.
— Tudo bem. — A madrasta dele ergue as mãos. Não parece abalada.
— Não custa perguntar.
Depois disso, os assuntos difíceis são poupados e conversamos sobre
coisas mais amenas.
Zayan não relaxa mais e começo a me preocupar com os rumos que
os pensamentos dele tomam.
Terminamos o almoço e a sobremesa é servida.
Noto quando o celular dele acende na mesa e meu coração dá um
salto feliz quando vejo a foto que ele tirou minha com a borboleta no
descanso de tela.
Minha alegria se vai quando ele pega o telefone e lê a mensagem. O
semblante sério se retorce de dor pelo que lê e acho que ele engole o choro.
Zayan permanece calado pelo restante do almoço e eu começo a me
preocupar. Fico agoniada, até que Leonardo pede a conta e paga por tudo.
Nós caminhamos em direção à saída.
— Eu amei nosso almoço, Zayzay. — Nina o puxa para um abraço.
— Obrigado por terem vindo. — Ele abraça a avó e o pai em seguida.
— Eu vou deixar Kira em casa e mais tarde nos vemos.
Espera, que história é essa de me deixar em casa? Não terminamos
nosso dia juntos. Não estamos nem na metade dele.
Foi a mensagem. Algo naquela mensagem o abalou e agora ele quer
se isolar. Não protesto pelo comentário, mas não vou permitir que Zayan
faça isso.
Eu me despeço da família dele e vamos juntos até o carro.
O caminho é todo silencioso e tento pensar em uma estratégia para o
fazer ficar. Mas percebo que vou ter que improvisar quando ele chega na
porta do prédio e estaciona.
— Eu acho melhor... — ele começa, mas eu interrompo:
— Não vem com esse papo, Zayan. Você concordou com um dia
inteiro. Vai cumprir com sua palavra. — Abro a porta, arriscando ser
deixada falando sozinha caso ele decida arrancar o carro e me ignorar. —
Não estou te dando escolha, caso não tenha notado. Você deveria ter
pensado nisso antes. — Começo a andar em direção ao prédio e sorrio
vitoriosa quando ouço a porta dele se abrir e fechar na sequência. —
Quando digo um dia inteiro, é um dia inteiro. Se não estava preparado,
então deveria ter recusado antes.
— Kira, eu já estou aqui. É só que...
— Sim, sim. Eu entendi. — Caminho para dentro do prédio e ele vem
ao meu lado. — Você tem suas questões. Todos nós temos. Mas lembra que
esse dia não é sobre você? É sobre eu me divertir. Você é meu objeto de
diversão. — Aperto o botão do elevador.
— Pode me escutar? — Entramos na máquina.
— Eu também tenho minhas questões. Quer dizer, estou implorando
para o meu arqui-inimigo tirar minha virgindade. Você tem razão. Eu não
estou em sã consciência. Mas essa é a vida, não é? Dante também tem as
questões dele. Consegue acreditar que ele se acovardou por doze anos antes
de se declarar? Doze anos! — Saímos no meu andar.
— Já conseguiu o que queria. Eu estou aqui! — Ele caminha
apressado até a porta do meu apartamento e para com os braços cruzados.
— Abre essa porcaria.
Vou até a porta e destranco, liberando a nossa entrada.
— Não acredito que me fez ficar por causa do seu falatório. — Ele
caminha totalmente à vontade e se senta no sofá da sala.
— Não foi por isso que ficou, e você sabe.
— Não sei de nada. — Fecha o semblante e desvia o olhar para a
cozinha. Está se contendo.
Desde quando recebeu aquela mensagem, Zayan está se contendo.
— Sobre o que era a mensagem que recebeu?
— Não é da sua conta.
— Zayan!
— O que é, Kira? — Ele me encara e há um sorriso cínico no rosto
dele. — Nem tudo da minha vida diz respeito a você. Não tenho que te dar
satisfação de nada.
— Não estou te pedindo satisfação.
— Então não faça perguntas. Já entendi que você é uma grande
intrometida, mas eu não tenho nada para falar com você.
— Vigia a sua boca, Zayan Castelli. As pessoas podem estar
acostumadas com sua grosseria, mas comigo você vai abaixar seu tom. —
Ergo o indicador em alerta.
— Deus, eu tinha esquecido de quão insuportável você é! — Ele
coloca os cotovelos sobre os joelhos e segura a cabeça, encarando o chão.
“Zayan é muito impulsivo e vai tentar afastar você se chegar perto
demais. Ele pode ser grosseiro e falar coisas para te machucar”. Foi o que
Nina havia dito naquele jogo.
Ele está no modo de defesa, criando uma proteção que me impede de
ver quão vulnerável ele é.
Eu caminho até o sofá e paro na frente dele. Pego as mãos dele e
passo ao redor da minha cintura.
— Zayzay? — Ele fecha com firmeza os braços ao meu redor e apoia
a testa na minha barriga. — Você está seguro comigo, Zay.
E minha fala parece libertar Zayan para que ele sinta. Para que ele se
permita sentir. Ele soluça alto e eu sinto as lágrimas molharem minha blusa.
Meus próprios olhos enchem de lágrimas quando faço da dor dele, a minha
própria. Quando sinto como Zayan sente. Quando sou machucada como
Zayan foi. Quando tenho medo, raiva e tristeza como Zayan teve. Quando
vejo Zayan através da dor dilacerante que o corta. Vejo ele por quem ele é, e
isso me parte o coração.
Ele chora e soluça desesperadamente, e eu o aperto com força contra
meu corpo. Ele circunda o braço em mim como se eu pudesse segurá-lo,
enquanto cai em queda livre no abismo da solidão que o bicho-papão dele o
empurrou.
Silenciosamente, Zayan tira um braço de mim e pega o telefone. Ele
me entrega o aparelho desbloqueado, sem olhar na minha direção por
nenhum segundo. A conversa com o irmão está aberta. O nome “Lorenzzo”
me faz identificar que é ele, mas não há nenhuma foto.
Eu leio a mensagem que faz algo dentro do meu peito rachar.

Lorenzzo
Espero que esteja celebrando, seu verme.
Saiba que é por sua causa que estou aqui.

Uma foto do túmulo da mãe deles foi enviada na sequência.


Largo o telefone de lado e atendo ao pedido silencioso dele.
Fizeram Zayan acreditar que ele não era merecedor da felicidade que
é viver. Ele não se achava merecedor do amor que a família o oferecia. Ele
sentia culpa por estar aqui, vivendo, depois de ter perdido a mãe. Uma
culpa que o assolou a vida toda, que está o sufocando.
Ele não está suportando e por isso me permitiu enxergar pelo muro
que ergueu ao redor da maior vulnerabilidade dele. E então eu faço por
merecer a confiança dele em mim.
Lentamente, as ponta dos meus dedos sobem pelo couro cabeludo
dele. Os fios dos cabelos são macios sob meu toque. Gentilmente, acaricio
esses fios, sem que ele me impeça de ir em frente. Zay ainda chora e soluça
contra meu corpo, e isso me encoraja a continuar. Com as duas mãos,
deslizo até a nuca dele e prossigo com o carinho, subindo e descendo
lentamente com as unhas. Faço isso por longos minutos, até senti-lo
começar a relaxar.
— Você é lindo — digo baixinho. Ele não aceita o elogio, negando
com a cabeça contra minha barriga. — É sim. Lindo. — Zayan puxa o ar
com dificuldade, ainda chorando baixo. — Você é uma pessoa maravilhosa,
Zayzay. Tem uma mente brilhante. É prestativo e atencioso. É inteligente e
destemido. O mundo é mais feliz com você nele, Zay. Meu mundo é mais
bonito com você nele. Com seu humor azedo, sua mente brilhante e seu
coração puro.
Zayan ainda chora e soluça. Coloco meus joelhos na lateral do corpo
dele e sento no colo dele. Seguro o queixo dele, mas Zayan vira o rosto.
— Hey, olha para mim — peço com suavidade. — Já disse que está
seguro.
Ele luta por alguns segundos antes de ceder. Até que ergue o olhar e
me permite vê-lo. Os olhos estão vermelhos e inchados e as lágrimas ainda
caem livremente. Limpo cada uma delas com o polegar e ele não desvia o
olhar do meu.
Encosto minha testa na dele e beijo a ponta do nariz de Zayan. Ele
funga e respira fundo, tentando se acalmar.
— Por que nunca contou para o seu pai sobre quem é seu irmão?
— Meu pai já perdeu a esposa, Kira — ele responde com a voz rouca.
— Se eu contar sobre tudo que Lorenzzo fez, farei ele perder um filho. Meu
pai jamais o perdoaria. E isso magoaria Leonardo profundamente. Ele não
merece esse desgosto.
— E você merece que ele faça isso com você, Zayan?
— Eu aguento.
— Não, você não aguenta mais. Você tem que ser sincero com sua
família.
— Tudo bem, Stefano — retruca, mal-humorado.
— Zayan... — alerto.
— Eu sei que eu preciso falar e deixar que meu pai decida o que fazer
com essa informação. Mas e se ele não acreditar em mim? Ou se ele
mergulhar em uma depressão fodida e nunca mais sair dela? E se ele se
culpar por tudo que aconteceu?
— Quem tem que lidar com isso depois é seu pai, Zayan. E para tudo
isso que você apontou há uma solução. O que você precisa é se livrar do seu
abusador urgentemente. Porque é isso que seu irmão é. Ele abusa
psicologicamente de você. Da maneira mais cruel e covarde.
— Eu sei de tudo isso. — Solta o ar, cansado.
Ele parece agoniado e acho que não vou conseguir convencê-lo a
nada hoje. Zayan já faz terapia há anos, certamente já discutiu
incansavelmente com Stefano sobre o irmão. Não há muito que eu possa
fazer. Tudo que posso entregar a Zayan é meu carinho e mostrar que ele é
uma pessoa maravilhosa e merece ser feliz.
Abraço Zay forte, desejando ardentemente poder colar cada caquinho
dele com esse gesto. Ele me abraça de volta e o silêncio impera.

— Melhor? — questiono depois de quase uma hora dentro dos braços


de Zayan. Ele acena que sim. O choro parece ter cessado. — Não vou te
forçar a nada. Sei que um dia vai tomar uma decisão em relação a
Lorenzzo.
— Um dia.
— Mas não será hoje.
— Não.
— Hoje vai me conceder suas horas.
— Eu sou uma companhia de merda hoje.
— Você está se saindo muito bem.
— Não estou a fim de fazer nada.
— Não estou te dando escolha.
— Kira...
— Fique aqui. — Saio do colo dele e vou até meu quarto.
Pego todos os itens de beleza que encontro e volto para a sala. Coloco
tudo na mesa de centro e me sento com as pernas cruzadas.
— O que é tudo isso? — indaga, desconfiado.
— O que parece?
— Eu não faço ideia.
— Tira seus sapatos e senta aqui. — Dou dois tapas no espaço ao meu
lado. — Lembrando que você não tem escolha, já que hoje está me
servindo.
Ele respira fundo, mas cede. Tira os tênis dos pés e senta onde
apontei. Pego um esmalte e ele protesta:
— Não estou a fim de passar essas coisas, não.
— Você vai passar em mim.
— Que ideia maluca é essa? Nunca passei esmalte em ninguém na
vida. Eu não vou fazer isso.
— Zay...
— Esquece, Kira.
— Por favor.
Ele me olha e sacode a cabeça, descrente, antes de pegar o vidrinho
com esmalte rosa e abrir.
— Mimada para um caralho.
— E você está aqui, fazendo o que eu quero. — Sorrio satisfeita. —
Tem que fazer assim. Você pega um pouco da tinta, tira o excesso assim. —
Demonstro para que ele saiba como proceder. — E então você passa desse
jeito na unha. — Pinto o polegar com cuidado, evitando deixar o produto
escorrer.
Ele observa, atento, enquanto passo o pincel pela unha.
— Sua vez. — Entrego o vidrinho para ele.
Ele pega e coloca na mesinha. Começa a repetir o que demonstrei e
pintar as minhas unhas. As mãos dele tremem no começo e ele solta alguns
palavrões baixos. Aprecio o esforço dele, e no fim não fica tão ruim quanto
pareceu que ficaria. Limpo os cantos e finalizo, analisando o resultado.
— Fui aprovado?
— Para o seu desespero, sim. Terá que fazer minha unha sempre
agora.
— Dei meu pior e ainda passei? Que droga! — Ele ensaia um sorriso,
e fico aliviada por vê-lo sair do lugar triste que estava.
— Sim, sinto muito. Agora que minha unha está molhada, você vai
fazer um lanche para mim.
— Mimada e folgada. — Me levanto e vou até a cozinha, ignorando o
comentário. Ele vem logo atrás. Sento no banquinho e espero ele assumir o
posto dele.
— Tem algum ingrediente para algo decente aqui?
— Não sei. Olha na geladeira.
Ele vai até o lugar que apontei e abre a geladeira. A expressão dele é
de surpresa e logo em seguida sorri afetuoso.
— Você não toma jeito. — Ele tira de lá o cupcake que comprei
ontem e deixei ali, trazendo-o para a bancada.
— A vela e o isqueiro estão na primeira gaveta.
Ele abre e pega de lá os itens, voltando a se postar na minha frente.
— Então. — Sorrio. — “Parabéns pra você”?
— Acho que soa uma boa ideia.
Então não dou tempo para ele reconsiderar e acendo a vela sobre o
cupcake. Canto os parabéns desafinada, e ele não consegue conter o riso e
me acompanha no refrão final. Bato palminhas animadas e peço:
— Faça um pedido, Zay.
Ele fecha os olhos por um instante, para abrir logo em seguida e
assoprar as velas.
— Fiz direito? Nunca fiz isso antes.
— Nunca?
— Não. — Acena negativamente, contido. — Você tem algum tipo de
poder, pulguinha. Faz todo mundo se render às suas vontades.
— Você sabe que não é bem assim.
— Não começa. Anda, vamos comer esse cupcake e ocupar sua boca,
antes que você fale bobagens. — Ele pega uma faca e parte o bolinho ao
meio.
Me entrega metade e pega a outra metade para ele.
— E, a propósito — digo com a boca cheia —, você vai passar na sua
casa, trocar de roupa e me buscar. Vamos a uma boate.
— Kira!
Finjo não ouvir o protesto.
Pego uma porção pequena de chantilly com o dedo e passo nos lábios
dele, que é pego de surpresa.
— Por que você fez isso?
— Vem aqui para eu limpar, lindo. — Sorri maldoso e dá a volta na
bancada.
Giro o banquinho e fico de frente a ele.
— Limpe.
Passo a ponta da língua nos lábios dele, tirando o creme açucarado,
antes de reivindicar um beijo do garoto lindo.
Eu preciso encontrar com urgência o buraco onde minha sanidade se
escondeu. Não estou no meu estado normal. Não há outra explicação para
que eu esteja permitindo essa criatura pequena, saída do mundo da Barbie,
me fazer curvar às vontades dela.
Espero ela sair do prédio, depois de ter ido em casa e me arrumado,
como ela mandou. Ela mandou. Desde quando eu aceito ordens de Kira
Moretti? Eu definitivamente não estou em plenas faculdades mentais.
E como manter a razão? Ela sai do prédio me mostrando o porquê da
minha capacidade de raciocínio voar para bem longe sempre que está por
perto. Caminha com graciosidade, ajustando a blusa branca de botões. Puxa
a saia preta para baixo e fecha o sobretudo na frente do corpo.
— Não vai sentir frio com isso? — questiono assim que ela para na
minha frente.
— Essa meia é grossa. Não corro esse risco.
— Tudo bem, então vamos. — Dou um beijo curto nela, sentindo o
aroma de tutti frutti familiar. — Estava chupando bala, pulguinha?
— É a única coisa que me é permitido chupar.
— Entra nesse carro, Kira. — Me afasto já irritado e ela faz o que
peço, rindo abertamente.
Ela quer me vencer pelo cansaço, e, honestamente, está me fazendo
perder qualquer força de vontade que eu tinha em resistir.
Não é só pelas provocações. Ela está confiando em mim com tanta
facilidade, que me faz querer acreditar em mim mesmo. Acreditar que eu
sou capaz de oferecer a ela o que tanto deseja.
Ser digno de Kira não parece uma ideia tão distante agora.
— Para onde estamos indo? — questiono quando entro no carro.
— Aqui. — Ela coloca o endereço no GPS e prende o celular no
painel do carro.

— Eles estão ali! — Kira aponta para algo na multidão, assim que
entramos na boate que já está lotada.
— Eles quem, Kira?
— Eles. — Ela me guia até o lugar que apontou e então compreendo
de quem está falando.
— Kira... — tento protestar.
— Meu dia, lembra? Convido quem eu quiser. — Reviro os olhos
antes de chegarmos à mesa onde Marco, Carmela e Matteo estão.
— E aí, cara? — Marco me cumprimenta com um abraço.
— Pode desejar feliz aniversário. Ele deixa — a pulguinha
intrometida e atrevida diz ao meu lado, me fazendo revirar os olhos pela
segunda vez em menos de um minuto.
— Feliz aniversário, Zayan. — Marco comete o deslize de obedecê-
la.
— Grazie[21], Marco. — Nos afastamos e logo em seguida Carmela e
Matteo vêm até mim.
— Feliz aniversário, Zayan.
— Parabéns, Zayan.
Nos abraçamos sem jeito e eu agradeço, finalizando essa pequena
sessão de tortura.
— Nós estávamos indo pegar algo no bar. Vocês querem alguma
bebida? — Carmela pergunta.
— Nós vamos, vocês duas ficam aqui — anuncio. — Pode ficar
também, Matteo. O que vão querer?
— Gin tônica — Carmela e Matteo dizem juntos.
— Certo.
— Hey, não vai me perguntar o que eu quero? — Kira puxa minha
jaqueta quando começo a me afastar.
— A bebida mais doce que tiver, pulguinha. — Pisco o olho.
— E se eu quiser algo azedinho? Talvez meu gosto esteja mudando.
— Já tem acidez suficiente no seu dia, Barbie.
— É, tem razão. — Sorri brincalhona.
— Vocês dois podem dar um tempo no flerte? Eu quero minha bebida
— Carmela diz, mas percebo que está se divertindo com nossa interação.
— Ainda não consigo acreditar que isso é real — Matteo comenta.
— É, eu também não. Ainda espero o momento que ela me levará
para um lago gelado e me afogará — comento, saindo dali e indo na direção
do bar.
— Temos cinco pessoas e quatro mãos. Quero ver como vai fazer
para levar tudo, Zayan — Marco diz quando encostamos no balcão, à
espera de um barman.
— Não vou beber nada por enquanto. Vim dirigindo. E eu precisava
conversar com você.
— O que você aprontou?
— Niente[22], Marco. Escuta. Que dia vai chamar o garoto para sair?
— Aponto na direção da mesa de onde viemos.
— Matteo?
— Sim, Matteo.
— Não viaja, cara. — Ele faz uma careta. — Não vai rolar.
— E posso saber por que não?
— Somos completamente diferentes. Ele é todo intelectual, sério,
certinho demais.
— Kira é um unicórnio saltitante e eu sou um ogro que vive em um
pântano. E daí?
— Vocês acabaram de começar, Zayan. Não sabe no que vai dar.
— Marco... — Ergo uma sobrancelha e ele entende minhas palavras
não ditas.
— Certo, eu sei. Mas é aí que está. Eu mal conheço o Matteo.
— Então comece por aí. Eu sei que é difícil por causa da sua família.
— Ele franze a testa. — Mas não pode deixar que eles te impeçam de viver.
E eu tenho propriedade para falar sobre isso.
— E se ele não quiser? — Marco vira o olhar de novo para a nossa
mesa.
— Ele quer.
— Como você sabe?
— Kira.
— É, são mesmo um casal. Já estão compartilhando fofoca alheia —
ele zomba.
— Posso ajudar? — Um barman se aproxima e faço os pedidos. Ele
nos entrega as bebidas e nós caminhamos de volta.
— Vai pensar no que eu falei? — pergunto ao meu amigo.
— Vou, Zay. Prometo. — Me oferece um sorriso cúmplice antes de
chegarmos à mesa.
Coloco os copos na superfície e Kira pega o dela. Leva o canudinho à
boca e suga uma pequena quantidade.
— Muito bom, Zay. — Sorri.
— Que bom que gostou. — Ergo o queixo dela e me aproximo. —
Mas vai com calma, linda. — Deposito um beijo curto nos lábios doces.
— Por que eu iria com calma? — pergunta com a voz aveludada.
— Porque você é uma garota responsável e com limites.
— Não é bom perder um pouco os limites?
— Não hoje.
Kira estreita o olhar, desconfiada, mas não diz nada. Dá de ombros e
engata uma conversa com Carmela. Pouso minha mão no ombro dela,
assistindo Marco tentar chamar a atenção de Matteo. Garoto esperto.
— Vocês já estão sabendo do evento que vai ser sediado na
Universidade de Bolonha? — Kira indaga em certo momento.
— Eu acho que vi os cartazes espalhados — Mel diz.
— Sobre o que é? — questiono.
— É um simpósio internacional sobre psicodrama. Proibido para
amantes da psicanálise — a pequena atrevida debocha.
— Então agora faço questão de ir, para tirar sarro de humanistas
sensíveis e chorões. — A resposta madura dela é mostrar a língua. — Onde
se inscreve?
— Na coordenação do nosso curso. Qualquer um pode participar, mas
tem limite de vagas. Eles vão organizar um ônibus e conseguiram um hotel
baratinho e bom para os alunos.
— Hora de aterrorizar alguns humanistas — digo a Marco e ergo a
mão. Ele espalma a dele na minha, rindo com zombaria.
— Muito maduros — a pulguinha diz com sarcasmo e expressão de
tédio.
O semblante dela muda, no entanto, quando ela encara algo na pista.
Abre um sorriso largo no rosto.
— Santi!
Cazzo! Mas esse garoto está em todo lugar!
E não bastasse a alegria em ver o moleque, ela se levanta da mesa e
vai até ele, ignorando minha presença e me deixando aqui, plantado.
— Azedou — Matteo zomba, rindo da minha mudança de expressão.
— Não enche.
— O que ele está fazendo aqui? — Carmela indaga. Parece tensa e
então me recordo do que Kira havia dito sobre Santino estar encantado por
Mel.
— Por que não vai lá descobrir? — Cutuco ela e aponto para onde
Kira e ele estão conversando animados.
— Vai você — responde de mau humor.
— Parece que temos muitos estressados aqui hoje. Vocês precisam
aprender a relaxar. — Matteo bebe o último gole do copo e vai para a pista.
Antes de sair, puxa Marco pela mão, que é pego de surpresa, mas vai
como um cachorrinho que acabou de ganhar um petisco.
Encaro Carmela por um momento, sem saber como pedir a ela para ir
comigo até os dois. Essa coisa de conversar telepaticamente só funciona
com Kira, e por isso Mel me encara confusa agora.
— Anda, vamos. — Desisto da conversa silenciosa e a empurro pelos
ombros até a pista. — Está doidinha pelo menino que eu sei. Vamos unir o
útil ao agradável.
— Zayan! — diz meu nome com irritação.
— Santino! — chamo com falsa animação na voz. — Que surpresa
você por aqui. — Largo o ombro de Carmela e seguro a cintura da Barbie.
— Vou roubar Kira, se importa? A gente se vê por aí.
Não deixo que ele responda e a puxo para longe.
— Precisa controlar esses ciúmes, sabe disso.
— Não é ciúmes. — Paro em um ponto da pista e trago o corpo dela
para mim. — Estou ajudando os dois, não está vendo? — Aceno na direção
de Carmela e Santi, que parecem sem graça, enquanto tentam estabelecer
um diálogo.
— Sei. — Ela me encara, desconfiada.
— Seu plano não era grudar em mim o dia inteiro? Não está
cumprindo com sua palavra.
— Desculpe, Zay. Assim fica melhor? — Sorri com cara de quem vai
aprontar.
E apronta.
Kira gira o corpo e cola as costas no meu peito. Segura minha mão
direita e a conduz até a cintura, me fazendo deslizar com a palma, até que
chego na altura do ventre dela. Puxo-a para mais perto de mim e abaixo a
cabeça, afastando os cabelos dela do pescoço e sentindo o perfume doce de
perto.
Kira tomba a cabeça e começa a se mexer, me tirando um pouco mais
o juízo quando rebola a bunda lentamente, se esfregando em mim.
— Pequena provocadora. — Mordisco a pele do pescoço e ela
suspira.
— Estamos dançando, Zay. — E então ela gira e fica de frente para
mim.
Espalmo minha mão na lombar de Kira e mantenho nossos corpos
colados, quando ela dita o ritmo da dança, me torturando quando chega
perto e desliza a mão pelo meu corpo, para logo em seguida se afastar. Ela
aproxima os lábios, e quando vou beijá-la, se afasta. Desliza as unhas pela
minha nuca e faz todo meu corpo arrepiar, e logo em seguida as mãos dela
estão longe de mim.
Ela me atenta, e eu caio no jogo dela.
Ela promete, mas não cumpre.
Ela provoca, e eu peço por mais.
O olhar perverso dela me excita e estou a ponto de enlouquecer
quando desliza os dedos pelo meu abdômen, lentamente subindo, até
alcançar minha nuca. A provocadora faz menção de se afastar de novo, mas
não permito. Prendo o corpo dela contra o meu e passeio com minha mão
pela lateral do corpo até alcançar o quadril. Giro Kira e deixo que meus
dedos escorreguem um pouco mais, até alcançarem a barra da saia. Acaricio
a coxa dela protegida pela meia e ela corresponde, rebolando contra mim.
— Sabe o caminho que está tomando, Moretti?
— Não. — Ela se vira. O rosto dela estampa uma inocência que não
condiz nada com o objetivo profano que sei que ela tem em mente. — Vai
me conduzir por ele?
A voz sedutora e o pedido tentador são como um pêndulo de hipnose,
me convidando a me desfazer das minhas amarras invisíveis e mergulhar
nos meus mais obscuros desejos. Me convidando a ceder. Me convidando a
cobiçá-la um pouco mais.
E então tomá-la.
Fazer dela, minha.
E eu vou.
Estaciono na calçada do prédio dela e ela já está praticamente fora do
carro. Eu vou atrás e a pego pela cintura. Kira solta um gritinho e ri. Puxo-a
e seguro o rosto, reivindicando os lábios dela para mim.
Devoro Kira em um beijo urgente, desesperado, para que ela entenda
o quanto a quero. Ah, eu quero sim! Quero cada parte dela. Quero tudo que
essa garota possa me oferecer como recompensa por todas as malditas
provocações e respostas atravessadas.
— Zay... — Ela se afasta, em busca de ar. — O porteiro vai voltar a
qualquer momento.
E ela volta a correr, rindo. E eu vou atrás. As portas do elevador se
abrem assim que ela aperta o botão. Nós entramos, e antes que a máquina se
feche por completo, minhas mãos já estão nela novamente. Coloco Kira de
frente para mim e seguro a bunda dela, a puxando para cima.
Tomo a boca macia para mim, ao mesmo tempo em que minhas mãos
tratam de decorar com precisão cada parte do corpo da pequena
provocadora. Adentro pela barra da saia e deslizo até a bunda redonda,
apertando firmemente. Ela impulsiona o quadril para frente em resposta.
O elevador apita e as portas se abrem. Ela sai do meu colo e fica de
pé, mais uma vez fugindo apressada. A alcanço quando Kira destranca o
trinco com rapidez e entramos no apartamento. Fecho a porta com os pés e
a sigo até o quarto.
Circundo a cintura dela com um braço quando estamos na frente da
cama. Me coloco na frente dela e puxo os lábios de Kira com os dentes,
antes de me ajoelhar. Ela entende o que tem que fazer e segura em meus
ombros quando abaixo o zíper das botas, a descalçando.
— Acho que não vai sentir frio mais, linda. — Deslizo as mãos nas
panturrilhas dela, subo pela parte de trás da coxa, passo pelo quadril e entro
pela barra da saia. Alcanço o cós da meia-calça e a puxo para baixo, junto
da calcinha fina. — Deixa eu testar uma coisa. — Mordisco a pele exposta
dela.
Minha mão direita aperta a coxa dela e a esquerda explora a textura
da tez sedosa, mais uma vez adentrando pela saia. Kira remexe quando meu
toque sobe até quase alcançar a região mais íntima dela.
Acaricio a virilha com o polegar e ela aperta firme os meus ombros. E
então, com o indicador e dedo médio, toco os grandes lábios. Kira suspira e
eu enfio os dedos na vagina dela.
— Dói? — pergunto quando ela aperta meus ombros com os dedos.
— Incomoda um pouco, mas é gostoso também. Continua.
Continuo, ao mesmo tempo em que me atento às reações dela.
— Como eu imaginei. Quente, molhada e apertada. — Começo a
fodê-la lentamente, entrando e saindo, sentindo excitação escorrer pelos
meus dedos. Ela me prende, ávida, e por isso desfaço o toque.
Fico de pé e levo os dedos à boca, sentindo o gosto de Kira. Ela
arregala os olhos levemente e eu sorrio.
— Vem, está muito vestida, pequena. — A puxo pelo cós da saia e
desabotoo a camisa dela com uma calma que contrasta com a ânsia que
sinto em poder tocar e marcar cada centímetro de pele dela.
Deslizo a blusa pelos braços dela até ter me livrado da vestimenta e
minha boca saliva quando o decote dela sobressalta no sutiã branco rendado
e transparente. Tão transparente que me deixa ver os bicos marrom-claros
despontados. Tentadores.
— Primeiro vou dar atenção a eles, linda. — Levo meu polegar até a
renda fina e acaricio o mamilo rígido com círculos suaves. Ela contém o
gemido. — Depois vai gozar com minha língua te fodendo. — Minha mão
caminha até o fecho do sutiã. — Logo após vou me enfiar em você. Vai
doer, depois a dor vai se misturar ao prazer, e então farei esse seu pequeno
corpo ceder apenas à sensação deliciosa que é ser fodida até se exaurir.
Entendeu?
Ela acena que sim no instante em que abro o fecho e os seios dela são
libertos. Perfeitos. Eles serão minha maior tara daqui para frente.
Kira me encara, ansiosa. Devo confessar que nunca pensei que ela se
entregaria com tanta facilidade. Os olhos dela me mostram a confiança que
ela deposita em mim. Não posso decepcionar Kira. Oferecerei o meu
melhor para você, linda. Me entregarei por inteiro.
Espalmo minha mão na lombar dela e a puxo para perto. Está quente.
Cada parte do corpo dela reage febril ao meu toque.
Minha palma sobe pela barriga até chegar ao seio farto e eu aperto
firme, fazendo ela tombar a cabeça para trás, absorvendo a sensação. Beijo
a curva avantajada e mordo. Desço com os lábios até alcançar o mamilo e
puxo com os dentes. Kira arfa quando circundo a região com a ponta da
língua. O corpo dela arrepia sob meu toque. E então eu sugo. Uma vez,
duas vezes, três, até perder as contas.
Quase posso vislumbrar o arsenal de desculpas fracas que inventei
para não tomar Kira para mim ser destruído. Na minha mente, a única
certeza forte e pulsante que se molda é a de que vou sair daqui estragado
para o mundo. Não tem como ser diferente quando a cada sugada ela
responde com sons indecentes.
Insaciado. É assim que eu me sinto. E quanto mais eu tomo, mais
faminto ela me deixa. Fome dela, do corpo dela. Desejo de tomar a fonte da
minha tormenta dia e noite. Até cumprir o que prometi. Até que o corpo
dela reconheça a mim, somente a mim.
Abandono o seio esquerdo e passo para o direito. Meu polegar
massageia um mamilo e minha boca mama o outro com gana e a sinto
derreter em meus braços. Pequenos gemidos escapam dela a cada sucção.
São como uma sinfonia orquestrada por mim. Cada vez que a tomo voraz,
os sons se intensificam, ficam mais agudos, desesperados.
— Zay... — choraminga.
— Sim? — pergunto, assoprando o mamilo dela.
— É tão bom. — Sorrio como um grande bastardo. Eu posso te deixar
bem, linda. Fico feliz em saber.
— Eu sei. — Distribuo beijos e mordidas pela curva dos seios e subo
até alcançar a boca dela.
Beijo Kira com pressa e esmago o tronco dela contra o meu, como se
de alguma forma eu pudesse nos transformar em um só. Há uma camada de
tecido no meu caminho, então me desfaço dela. Descolo nossos lábios
quando seguro a gola da minha blusa e a tiro do corpo.
Os olhos castanhos dela brilham quando passeiam pelo meu peitoral
exposto e ela lambe o lábio inferior cobiçosa. Seguro a mão de Kira e levo
até o lado direito do meu peito. Quero que ela sinta como meu coração se
acelera pela expectativa. Que saiba que para mim, estar aqui é tão
importante quanto é para ela. E ela sente. Mantém a palma ali por alguns
segundos e sorri, desvendando a forma como meu corpo reage a ela.
Solto o punho dela e Kira deixa a ponta dos dedos passearem por
mim, até alcançarem a barra da calça.
Seguro o pulso quando tenta continuar a descida.
— Muito apressada. — Sorrio e a trago para perto, reivindicando
mais uma vez a boca para mim.
Minha língua domina a dela, e colo nossos corpos, sentindo os seios
cheios deliciosamente esmagados contra mim.
Puxo-a para cima e caminho até a cama. Kira desfaz os nós das
pernas em minha cintura quando sente as costas encostarem no colchão.
— Minha boca, linda. Está pronta para ela? — Acaricio o rosto
gracioso dela com a ponta do indicador, desfrutando da beleza
extraordinária que molda cada traço dela.
Acena que sim, e eu ergo meu corpo. Desço o zíper lateral da saia e
deslizo a peça para longe do corpo dela.
Nua. Completamente nua. Exposta e vulnerável, mas ainda assim
totalmente entregue. Essa é uma imagem que será impossível de esquecer.
Os cabelos bagunçados espalhados pelo lençol, vergões vermelhos nos seios
por onde chupei e os lábios inchados pelos beijos.
Uma verdadeira musa. Não faz ideia de como venero cada parte sua
agora, Kira Moretti.
— Você vai ficar aí parado? Eu posso fazer sozinha. — A pequena
travessa e provocadora ameaça descer com os dedos até o ventre.
Afasto a mão nervosa dela, e Kira ri.
— Um dia vai me mostrar tudo que faz quando está sozinha. Mas não
hoje, Moretti.
Ajoelho e seguro o quadril dela, puxando Kira para a beira da cama.
Atormento a garota um pouco mais, quando beijo a parte interna das coxas
dela com lentidão. Ela puxa o ar em lufadas curtas. Levanto o olhar e
capturo o momento em que os olhos dela reviram quando tenta mantê-los
abertos.
Com a língua dou uma só pincelada pela boceta encharcada e ela
geme e ondula todo o corpo. Tão sensível.
Fecho os lábios e sugo o pequeno ponto de prazer de Kira, e ela
segura mais um gemido, remexendo inquieta. Abandono a calma, desejando
assistir a perda total de controle de Kira sobre as próprias reações. Deslizo a
língua com firmeza pelos pequenos lábios, circulo o clitóris com pressão e
sugo.
Seguro a bunda arredondada e a trago para perto. Enfio a língua na
entrada e tomo toda a excitação que escorre. Volto a chupar o nervo, o
sentindo pulsar.
— Zayan! — Ela tenta se contorcer, mas a prendo no lugar, sabendo
que ela está perto.
Pincelo por toda extensão com a língua, massageando o clitóris com a
boca. Ela se descontrola. Parece alucinada, perdida, entregue. Não sei se
percebe como se esfrega desesperada contra minha boca, sem verbalizar o
que as reações dela me entregam. Ela está vindo. Está se perdendo com a
forma como minha língua fode e a deixa lambuzada.
Kira se desorienta até que o orgasmo arrebata cada parte dela.
Explode. Geme e grita indecentemente, chamando por mim, estremecendo
da cabeça aos pés. Tenta afastar o corpo e fechar as pernas, mas a mantenho
no lugar, completamente aberta, com minha língua ainda estimulando e
sugando todo prazer dela.
— Zayan... Por favor! — O tom suplicante dela faz um novo frenesi
me consumir e eu descubro que sou um desgraçado de raça maior por
querer ouvir esse som sair dela sem parar.
Eu finalmente me afasto e assisto as pernas delas cederem quando
fico de pé.
Meu corpo flutua em uma nuvem densa e vertiginosa de prazer
enquanto tento dissipar a névoa que me deixa beirando à inconsciência.
— Abre o olho, Kira. — Reajo automaticamente ao comando e abro,
me apoiando nos cotovelos. Ele está de pé. Na frente da cama.
Há um sorriso perverso na expressão dele e eu sei porque está ali.
Porque ele é um cretino que sabe muito bem o que está fazendo comigo.
Porque obedeci a ele sem hesitar.
A boca dele está ocupada com um pacote metálico e meu útero
retorce pela expectativa do que vem agora.
Mal recupero o fôlego e ele me faz segurar o ar novamente quando
leva a mão até o botão da calça.
Meu peito sobe e desce cada vez mais acelerado, enquanto espero
impacientemente ele se despir por completo. Poderia eu mesma fazer isso,
mas o olhar autoritário dele sobre mim me manda ficar quieta.
Os polegares de Zayan vão até a barra da cueca e ele se desfaz da
calça e da cueca juntos. O som agudo que sai de mim é vergonhoso quando
percebo o que estou prestes a enfrentar. Vinte e um centímetros, eu chutaria.
Veias marcadas. Grosso. Me fodi. Ainda não. Mas vou. Vou me foder.
Espero que seja em um bom sentido.
Ele leva a mão até a base do pau e sobe lentamente. O polegar espalha
o líquido branco e viscoso que escorre pela glande. Minha boca saliva.
— Olha para mim, Kira. — Ouço o barulho do envelope ser aberto e
ergo o olhar para cima.
Mas rapidamente volto a encarar a ereção que aponta na minha
direção quando ele desenrola com calma a camisinha por toda extensão.
— Deita e abre as pernas. — Obedeço.
Zayan engatinha até que o corpo dele paire sobre o meu. Sinto o calor
que sai dele me alcançar. Os olhos castanhos me devoram e me submetem.
A mão direita estuda cada curva minha quando sobe lentamente.
— Me beija, linda.
Eu beijo. Me perco na sintonia em que nossas línguas se encontram.
Me perco mais ainda quando os dedos dele sobem até meu seio e ele pinça e
puxa meu mamilo, enviando um choque de dor e prazer até minha boceta.
Mas me perco principalmente quando sinto a cabeça do pau roçar pela
minha entrada.
A boca dele vai até meu pescoço. Ele beija e lambe minha pele.
E sem aviso nenhum, começa a me penetrar.
— Olhos abertos, linda. — Zayan para e diz quando minhas pálpebras
pesam enquanto tento assimilar a sensação de estar sendo alargada. — Me
deixa te ver.
E, falando assim, ele parece pedir licença para ler meu corpo e alma.
E para Zayan, sou um livro aberto.
Os olhos castanhos param nos meus, e ele entrega com clareza o
quanto está perdido nessa onda devassa, revolta e inquietante tanto quanto
eu.
— Continua. — Minha voz sai sufocada.
Ele atende meu pedido e entra por inteiro.
E eu sinto uma dor me rasgar quando algo dentro de mim se rompe.
Choramingo. As lágrimas escorrem por minha face sem impedimento.
— Você está bem? — Zayan questiona com preocupação na voz.
Aceno que sim, mesmo sentindo que estou sendo dilacerada por
dentro. Ainda assim, a sensação de plenitude se apossa de mim, depois de
ter sido completamente preenchida.
Ele limpa as minhas lágrimas com o polegar e em seguida beija
minha bochecha e eu relaxo um pouco.
— Se segura em mim, linda. — A voz dele é abafada e sei que ele
está se segurando.
Fecho meus braços ao redor da nuca dele, afundando meus dedos na
pele dele. Minha respiração sai acelerada, cortada, enquanto a dor me
agoniza, se espalhando do meu ventre até meu último fio de cabelo.
Ele começa a se mexer, lento, calmo, e eu tento absorver as sensações
que me consomem. A mão dele desliza até chegar em meu clitóris. Zayan
massageia suavemente, e bem no fundo da minha mente começo a permitir
que o prazer me tome.
Ainda incomoda cada vez que ele se afasta e me esvazia, para em
seguida meter fundo, criando o espaço dele dentro de mim.
Assistir a expressão de Zayan, perdido em êxtase, é o que me convida
a deixar, pouco a pouco, a dor no esquecimento. Ele abaixa o rosto e devora
minha boca. Eu me entrego.
A ardência começa a se misturar ao prazer de ter a língua dele
deslizando pela minha, os dedos estimulando meu pequeno ponto de prazer
e o peitoral dele roçando em meus seios.
Zayan afasta o quadril e me invade de novo, e eu não sei mais como
ele acha espaço para ir tão fundo. Minhas unhas quase perfuram a nuca
dele, mas Zayan não reclama.
— Porra, Barbie! — Nosso beijo é cessado. — Você é tão, tão
deliciosa... — Sai quase todo. Entra fundo. — Está ferrada, pequena
provocadora. — Sai, entra. Sai, entra. E nesse movimento de vaivém, minha
mente vai se perdendo da agonia e trata de se concentrar primordialmente
no prazer.
— Eu sei. — Seguro o gemido de angústia na garganta, prendendo
meu lábio inferior com os dentes.
— Abre a boca para gemer, Barbie. — Sou punida com mais uma
penetração profunda, que me faz arquear o corpo. — Não é hora de se
conter. Me provocou. Pediu por isso. — Nossos troncos se esfregam um no
outro e nosso suor se mistura. — Agora me mostra quanto me queria assim,
enterrado fundo em você.
Eu entrego. Dou vazão a cada som, cada choramingo incômodo que
se mistura a gemidos de prazer, e isso o atordoa.
Zayan para de se conter e aumenta a velocidade das estocadas, me
fazendo sucumbir ao nirvana de vez. Minha mente começa a se desligar, e
de novo só há uma névoa de prazer me consumindo.
Sou recompensada quando ele também emite um som grave e
obsceno de deleite, chocando a pélvis contra a minha, me fodendo com
ânsia, fazendo da dor, prazer.
Arde. Arde pra porra. Mas é a ardência mais deliciosa que já
experimentei. Timidamente, ergo meu quadril e ele se perde. Leva a mão
até minha bunda e me puxa de encontro a ele, me fazendo sentir o membro
dele inteiro dentro de mim, me castigando de um jeito delicioso.
— Olhos em mim. — O encaro. — Olha e decora o que faz comigo.
A mão dele se fecha quase toda na minha banda direita quando ele
conduz meus movimentos.
— Ainda vou estourar esse seu rabo de tapas por cada provocação,
Moretti.
Sim, sim, sim!
— Zay... — imploro.
— É, eu sei. — Me contraio quase involuntariamente ao redor dele
quando um redemoinho de prazer começa a dissipar minha consciência.
Minhas coxas se fecham no quadril dele e Zayan acelera um pouco
mais.
E mais uma vez sou levada até um paraíso profano, explodindo em
mil pedaços, e sentindo cada um deles vibrar quando gozo. Ele vem
comigo, se enfiando todo uma única vez, gemendo e chamando por mim.
Minha rendição final vem quando abro os olhos e encontro o olhar
dele preso em mim, enquanto tentamos recuperar o fôlego. Pela primeira
vez, nossa comunicação telepática falha, porque Zayan se segura para não
entregar todos os pensamentos dele.
Mas sei que são um emaranhado extenso e denso. Ele me encara tão
profundamente perdido, que até mesmo eu me perco.
Meu peito parece esmagado enquanto tudo que sinto parece prestes a
irromper.
Pela primeira vez, não há nada a ser dito entre nós. Apenas sentimos.
Isso é tudo que eu te entrego, Kira. Espero ser o suficiente para você.
Não me odeie mais.
Não posso mais suportar a ideia de você me odiar.
Ela sorri, como se tivesse acabado de desvendar meu segredo mais
bem guardado. Mas não acredito que seja possível. Não entreguei nada a ela
dessa vez.
O sorriso se vai quando eu me movo e saio de dentro dela. E o rosto
lindo é tomado por uma careta de incômodo.
— Como se sente?
— Dolorida. Exausta. Plenamente fodida.
— Os comentários sujos nunca estão longe demais. — Tento não
sorrir, mas é em vão. Meus lábios se repuxam quase involuntariamente. —
Vou cuidar de você. Vem. — Fico de pé e estendo a mão. Ela segura e a
puxo.
Kira olha para trás, para o emaranhado bagunçado que o lençol virou,
e percebe a pequena mancha vermelha, voltando a me encarar na sequência.
As bochechas estão coradas, mas a vergonha não a impede de descer o olhar
para baixo, para a camisinha que ainda está ao redor do meu pau.
Rapidamente volta a me encarar, segurando os lábios.
— O que foi?
— Você realmente me desvirginou!
— Não era o que você queria?
— Sim! — E então ela gargalha.
— Você é maluca. — Pego os ombros dela e giro o corpo, conduzindo
Kira para o banheiro do quarto.
— Espera, eu tenho que colocar aquilo ali para lavar. — Ela aponta
para a roupa de cama.
— Eu faço isso depois. — Solto os ombros dela e me livro do
preservativo. — Entra. — Aceno na direção do boxe. Ela entra e liga o
chuveiro. Amarra o cabelo em um coque frouxo e se coloca debaixo da
água.
— Vai ficar só olhando? — Sorri.
— Não mesmo, pulguinha. — Entro no boxe. Me viro para a
prateleira, para pegar o sabonete, e encontro algo que me faz rir.
— Qual o problema? — Ela fica de frente para mim.
— Aparentemente, eu não sou o único que gosta de xampu infantil.
— Pego a embalagem com uma Barbie estampada e os dizeres “TUTTI
FRUTTI”.
— Deixa isso no lugar, Zayan Castelli! — comanda com irritação na
voz e tenta pegar da minha mão.
Volto o xampu para a prateleira e pego o sabão.
— Pronto, pulguinha. Desfaz esse bico. — Revira os olhos. — Posso?
— Aproximo o sabonete do corpo nu dela.
Kira me encara com os olhos brilhando e acena que sim.
— Fica de costas. — Obedece e eu começo a limpá-la. Ensaboo
minha mão e passo pela pele sedosa, massageando cada parte que toco.
Kira começa a amolecer em meus braços e relaxar. Meus dedos
descem até chegar na bunda, e ela volta a tensionar. Rio.
— Será que um dia vai me dar essa bunda, linda?
— Nos seus sonhos, talvez. — Ela ri e brinca com a água. — Minha
boceta ainda está maltratada e você já está pensando no buraco minúsculo
do meu traseiro?
— Maltratada? — Beijo a nuca dela e deslizo a mão até a entrada
dela. Kira tomba a cabeça para trás quando acaricio os grandes lábios. —
Acho que tratei ela muito bem, linda. — Puxo o lóbulo dela com os dentes e
Kira arfa.
— Não sei. Acho que ela ainda precisa de atenção. — Geme quando
pinço o clitóris.
— Uma pequena tarada, isso sim. — Estimulo o pequeno nervo.
— Zayan...
— Não hoje. — Afasto a mão.
— Zay! — protesta.
— Sem “Zay”. Conheço seus truques. Hoje não.
Volto a ensaboar Kira, já imaginando o pequeno bico que se formou
nos lábios dela. A giro para que fique de frente, e lá está: a cara emburrada
da garota mimada que foi contrariada.
Ela perde a compostura, no entanto, quando minhas mãos deslizam
com delicadeza pelos seios. Bate os cílios, tentando manter os olhos abertos
enquanto recebe a carícia. Deslizo até a barriga e ela remexe.
Termino de ensaboar Kira e deixo que ela se enxague. Começo a me
limpar e ela pega o sabonete da minha mão.
— Deixa que eu vou fazer isso.
As mãos pequenas passeiam por mim e me deleito com a sensação
que o toque delicado dela traz.
Até que a pequena provocadora apronta.
A mão fecha com firmeza no meu pau e meu gemido é involuntário.
— Viu? Ele também quer isso. — Sorri perversa, subindo e descendo
a mão pelo pênis que já está mais uma vez duro por ela.
Quase me perco no toque tímido e ainda assim enlouquecedor.
No entanto, seguro o pulso dela e a afasto.
— Temos uma nova versão da Barbie aqui. Barbie Malcriada. Não
pode ser deixada sem supervisão por cinco minutos que logo está
aprontando.
E para provar meu ponto, me mostra a língua.
— Vamos, antes que me faça deixar você esfolada depois de ter que
fodê-la contra essa parede. — Desligo o chuveiro.
— Mas é exatamente isso que eu quero! — Puxo Kira para fora sob
os protestos dela.
— Eu sei. Por isso eu vou ser cauteloso por nós dois agora. Toalhas?
— pergunto e ela aponta para o armário embaixo da pia.
Pego duas toalhas e envolvo o corpo dela com uma e minha cintura
com a outra. Saio para o quarto e ela vem logo atrás. Vai até o guarda-roupa
e pega um pijama. Pego minha cueca e calça e visto. Vou até a cama e pego
o lençol. Ela ri.
— Qual a graça agora, Moretti?
— Vou acompanhar você e me certificar de que vai mesmo colocar
esses lençóis para lavar.
— E para onde mais eu os levaria?
— Não sei. Talvez para o porta-malas do seu carro, para guardar e
provar para o seu bando que tirou minha virgindade?!
— Por que eu faria isso?
— Nunca leu esse livro?
— Não, nunca. O personagem realmente fez isso? — indago com um
toque de incredulidade, e ela apenas acena que sim. A encaro descrente,
antes de levar a roupa de cama suja para a lavanderia e colocar na máquina.
Quando volto, ela já colocou um novo lençol e está deitada. Caminho
até a cama e me deito ao lado dela. Estico o braço e Kira se aconchega.
— Estou feliz, limãozinho. — Boceja.
— Então eu estou feliz, pulguinha.
Acaricio o braço dela, e pouco a pouco sinto Kira relaxar e ceder à
inconsciência. E só então eu adormeço.

Acordo com um pequeno espasmo. Seguido de outro. E de outro.


Pisco os olhos, tentando entender o que está acontecendo quando ela
resmunga.
Kira mexe os braços e as pernas e começa a se afastar, me
confundindo.
— Não, não, não! Não encosta! — Começa a se debater, e então eu
entendo. Ela está tendo um pesadelo.
— Kira!
— Não! Tira a mão de mim! — Ela tenta me empurrar.
— Kira, acorda! — Seguro o cotovelo dela e a sacolejo. Ela acorda
assustada, se debatendo e arrastando o corpo para trás. Pego a cintura dela e
a mantenho no lugar, antes que caia. — Kira, foi um pesadelo! Olha para
mim. Respira. Fica calma.
— Zayan?
— Sim. Sou eu.
Ela abraça minha cintura forte e sinto o coração dela bater acelerado,
enquanto Kira tenta regular o ritmo da respiração. Acaricio os cabelos dela
e seguro a cintura com firmeza, enquanto ela vai se acalmando.
— Quer me falar sobre o que você sonhou? — pergunto depois de um
longo tempo em silêncio.
— Era uma lembrança. Uma lembrança muito ruim. — A voz dela é a
mais pura agonia e me deixa perdido.
Agora Kira parece tão pequena e frágil. Encolhida, apavorada, presa
em uma memória dolorosa. Quero muito que ela me conte. Desejo
ardentemente que ela se abra e fale sobre tudo, porque assim poderei caçar
de vez o desgraçado que deixou essa marca em Kira.
Mas ela não fará isso hoje. E eu não irei forçá-la.
— Já passou, linda. — Beijo o topo da cabeça dela, e Kira acena.
Faço carinho no braço dela, que pesa em minha barriga, e a respiração
dela assume o ritmo normal. Kira começa a adormecer mais uma vez,
deixando em mim a inquietude que a atormentou.

Coloco a frigideira no fogão e espero esquentar. Despejo os ovos e a


panela chia. Ouço passos se aproximando quando começo a mexer na
mistura. E então dois braços se fecham ao redor de mim e a bochecha dela
pousa em minhas costas.
— Bom dia, limãozinho.
— Vai mesmo me chamar assim a partir de agora?
— Sim.
Desligo o fogo quando os ovos mexidos ficam prontos. Largo a
colher e me viro para Kira. Espalmo as mãos na lateral do rosto dela e tomo
a boca dela para um beijo delicado.
— Bom dia, pulguinha. Com fome? — Ela meneia a cabeça
positivamente. — Nós temos ovos mexidos e pão. Porque é a única comida
que você tem além de congelados.
— Meus dotes culinários são limitados.
— E você viveria de congelados para sempre?
— Não. O plano era seduzir alguém que soubesse cozinhar e faria
isso por mim.
— Então era por isso. O tempo todo estava interessada em alguém
para te alimentar.
— Sim. — Ela dá de ombros. — Você caiu como um patinho.
— Me deixe cumprir meu papel, então. Sente-se que vou levar nosso
café.
Ela sai saltitando e se senta. Coloco os ovos e os pães em dois pratos
e levo até a mesa. Levo também café e açúcar, e em seguida me sento ao
lado dela.
— Me diz se eu realmente serei sua vítima nesse seu plano maligno
— digo.
Ela prova do pão com ovo e emite um pequeno gemido.
— Delicioso.
— Então agora serei seu servo.
— Sim. Oficialmente.
— Tudo bem, alteza. Estou ao seu dispor.
Ela ri com leveza, e assistindo-a assim, desinibida, quase esqueço que
essa é a mesma garota que acordou apavorada no meio da noite.
— Kira, posso fazer uma pergunta?
— Sim. — Ela continua devorando o café da manhã.
— Por que nunca conheceu a família do seu ex?
— Como você sabe que eu nunca conheci? — Tomba a cabeça para o
lado, confusa.
— Acho que mencionou isso, não?
— Acho que nunca falei disso, Zay.
— Bom, então foi um palpite. Talvez porque você nunca falou nada
da família dele.
A testa dela está franzida e ela está me analisando, mas então desiste
de fazer qualquer pergunta.
— Ele nunca quis me apresentar. Sempre dizia que ainda não era o
momento.
— Como vocês dois se conheceram?
— Em uma festa. Na casa dele.
— Mas você disse que não conheceu a família dele.
— Não conheci. Não estavam lá. Na verdade, a família dele é o pai.
São só os dois. E o pai estava viajando naquele dia.
— O que mais você sabe dele?
— Vai fazer um dossiê do meu ex? Para que tanta pergunta, Zayan?
— Curiosidade.
— Não gosto de falar dele. É desagradável. E eu não sei muito mais.
O sobrenome é Pisano, ele vive com o pai e só tem avós paternos vivos —
responde irritada.
— Desculpa, linda. Não queria te chatear. — Seguro a cadeira dela e
a puxo para perto. — Não vamos mais falar disso. — Embrenho o rosto no
pescoço dela e sinto Kira arrepiar quando deposito um beijo no ponto
sensível.
— Não quero falar dele.
— Assunto encerrado. — Me afasto e a encaro. — Você se lembra de
ter acordado hoje no meio da madrugada? — Há uma ruga entre as
sobrancelhas dela e Kira desvia o olhar.
— Não.
Se ela diz a verdade ou não, não importa. Sei que não vou conseguir
nenhuma resposta se ela não quiser dar, e ela não quer.
Não hoje.
Mas em algum momento, Kira vai contar sobre o que era a
lembrança. Espero que ela confie em mim para isso.
Preciso saber o que houve.
Espero por essa confissão ansiosamente.
Zayan e eu estabelecemos uma rotina nas últimas duas semanas. Nos
encontramos na faculdade, assistimos aula juntos, vamos para o nosso
castigo (que já deixou de ser um castigo há algum tempo) e ele me leva até
em casa.
E transamos. Ele me mostra tudo que sabe e eu aprendo, como uma
boa e disciplinada aluna. Nunca gostei de aprender tanto como agora.
É bom. Muito bom. E é especialmente bom porque é com ele. Zayan,
de alguma forma, parece conhecer todos os meus desejos e gostos e satisfaz
todos eles prontamente.
É uma boa rotina e eu me adaptei com facilidade a ela.
Por isso, hoje estranho a ausência dele.
— Cadê seu novo animal de estimação? — Carmela pergunta com
zombaria quando se senta ao meu lado na carteira da sala.
— Engraçadinha.
Marco chega logo depois dela e também se senta confortável ao nosso
lado.
— Então o cachorrinho não veio, mas o amigo vira-lata dele marca
território? — Mel se diverte.
— Achei que já tivesse entendido que estou aqui para popularizar a
dupla perdedora.
— Você adora nossa companhia e chutaria a bunda de Zayan se ele te
pedisse para escolher entre nós e ele.
— É, só não conta isso para ele — Marco diz, com um toque de
seriedade na voz, e eu contenho minha risada. — Onde aquele canalha está,
por falar nisso? Parece que a coleira que colocou nele tem silenciador.
Nunca mais me mandou sequer uma mensagem.
— Isso é ciúmes? — Sorrio, me divertindo.
— Ciúmes? — Ele bufa. — Como você disse, Moretti? Choverá
vinho no dia que eu sentir ciúmes de Zayan Castelli. Mas sou o melhor
amigo dele, mereço um sinal de que ele está vivo uma vez ou outra.
— Ele está vivo. Só foi ao médico. A vários médicos, na verdade.
Exames de rotina.
— Entendi. E ele não vai pagar o ônibus para o congresso não? O
prazo é hoje.
— Deus, eu nem sei se ele está lembrando! Vocês já pagaram?
— Sim — Carmela e Marco dizem juntos.
Pego o celular e mando uma mensagem para Zayan.

Kira
Zay, você já pagou o ônibus para o congresso?
Só pode pagar até hoje.

Limãozinho
Bom dia, Barbie. Como você está?
Dormiu bem?

Kira
Desde quando é carente assim?

Limãozinho
Desde quando meu pau sente falta
da sua boceta esquentando ele.

Sinto minhas bochechas esquentarem mesmo que não tenha ninguém


lendo essa baixaria.

Kira
E eu que sou a tarada.

Limãozinho
Isso você é mesmo.
E não se preocupe, linda.
Vou te perturbar bastante
na viagem, porque minha passagem está paga.

Coloco o celular de lado quando o professor entra em sala e a aula


começa.
Juntamos nosso material e andamos os três em direção à saída assim
que a aula termina. Tomo um caminho diferente deles quando saímos da
sala.
— Vou pagar a viagem. Encontro vocês no refeitório — aviso a
Marco e Carmela, e eles acenam.
Caminho até a coordenação do curso e espero sentada até ser
atendida. Quando me chamam, entrego os papéis, o dinheiro e saio.
Vou andando tranquilamente pelos corredores antes de sentir um
puxão no braço. Não tenho tempo de reagir antes de estar dentro de uma
sala escura e vazia.
— Que por... — Silencio no momento em que reconheço quem está à
minha frente.
Gregório está parado, bloqueando a porta, impedindo minha
passagem. Meu coração gela e meu estômago retorce. Olho ao meu redor
apenas para constatar que não há janelas ou saída de emergência.
Ele não escolheu essa sala aleatoriamente.
Ele sabia o que estava fazendo ao me encurralar aqui.
Dou dois passos para trás e ele ri com escárnio.
— Não há escapatória, rosinha. — Todo meu corpo treme e prendo
meu fôlego, sentindo o pavor me dominar.
Não vou conseguir escapar. Hoje não vou conseguir fugir.
— É hora de acertarmos nossas contas — diz com um sorriso sádico
no rosto.
— Se você der mais um passo, eu vou gritar.
— E ninguém vai te ouvir. É hora do almoço, os alunos estão no
refeitório.
Ele caminha lentamente em minha direção e eu começo a andar para
trás.
— Por que está fugindo, Kira? Só quero conversar — diz com
cautela.
— Nã-não temos na-nada para conversar. — Puxo o ar lentamente,
tentando manter a calma. E falhando.
— Temos sim! — Ele eleva o tom de voz.
— Você estava nos... — Engulo em seco quando minha mochila
encontra a parede. — Nos Estados Unidos.
— E agora eu voltei, rosinha. — Ele está a poucos centímetros de
mim e eu sinto que minhas pernas estão prestes a ceder de pavor. — Te dei
um tempo para colocar sua cabeça no lugar. Você sabe que nós dois fomos
feitos um para o outro, não sabe? Você é minha, Kira. Não tem outra
escolha.
— Você é louco. Some da minha vida, Gregório. Eu odeio você!
Ele me silencia ao tapar minha boca com a mão e apertar os dedos no
meu maxilar com tanta força que dói.
— Aquele vira-lata que anda com você para cima e para baixo não
está aqui hoje para te defender. Então mede seu tom e aprende a falar direito
comigo. — Os olhos verdes me encaram com fúria e frieza e meus olhos
lacrimejam pelo medo. — Por que não para de lutar, amor?
Travo todos os meus músculos quando a mão dele pesa em minha
barriga e me sinto enojada quando ele começa a adentrar pela barra da
minha blusa. Mas não consigo me mexer para sair daqui. Não tenho forças
para nada quando o medo paralisante me toma.
— Você escapou antes. Não vai escapar hoje. Vai entender de uma
vez por todas a quem pertence!
A mão esquerda ainda me silencia, enquanto a direita escala pela
minha barriga. Tento me debater e sair do cerco dele, mas Gregório tem o
dobro do meu tamanho e o triplo de força. O corpo dele me mantém presa e
eu sinto meu coração acelerado de pavor.
Luto ainda assim, mesmo que a mão dele tenha alcançado meu sutiã.
Ele aperta forte e minha visão turva de dor e desespero. Todo meu corpo
pinica de medo. Tento o empurrar com o braço, mas ele não se move. Tento
mover as pernas, mas estão presas pelas coxas dele.
Choro em desespero quando ele continua me tocando de um jeito que
faz meu estômago embrulhar.
Não quero ceder. Não vou ceder. Mas começo a perder forças quando
meu corpo começa a cansar e se exaurir pelo pânico.
A boca dele está no meu pescoço e meu corpo arrepia de horror. E
então, em um segundo de distração, a mão dele, que está na minha boca,
desliza para baixo. O suficiente para eu abrir a boca e morder o vão entre o
polegar e indicador com toda força que encontro.
— Filha da puta! — Fecho a mão em punho quando ele está distraído
olhando a marca, e impulsiono a mão, acertando o nariz dele. Gregório
afasta o corpo e geme de dor, e eu sinto os nós dos meus dedos arderem
pelo impacto. — Vagabunda! — Ele segura o nariz.
Obrigo minhas pernas a reagirem antes que ele venha para cima e
passo correndo por ele, indo até a porta. Abro e saio para o corredor vazio.
Ouço ele vindo logo atrás.
— Volta aqui, Kira!
Minhas coxas protestam quando corro como se minha vida
dependesse disso. Posso senti-lo se aproximar, mas jogo meu corpo para
frente, me obrigando a acelerar.
Só paro quando duas pessoas aparecem na ponta do corredor.
— Kiki? — Carmela me olha confusa e em seguida olha por cima dos
meus ombros. — O que você fez? — ela berra e passa por mim, indo na
direção dele.
Meus pulmões queimam e curvo meu corpo em busca de ar. Minhas
pernas estão moles e anestesiadas, e por isso começam a ceder.
Eu me ajoelho.
— Carmela, deixa ele! Kira! Eu acho que ela vai desmaiar. — Marco
está ajoelhado na minha frente, segurando meus ombros.
Minha mente dá voltas, estou exausta. Lágrimas ainda escorrem pelo
meu rosto, mas não tenho forças para emitir nenhum som. Meu peito sobe e
desce acelerado e minha respiração não encontra o ritmo normal.
— Kiki, olha para mim! — Mel segura meu rosto.
Mas não a vejo. Meu olhar está turvo e soluços irrompem de mim,
sem que eu tenha controle.
Choro descontroladamente e dois pares de braços me amparam.

Eu odeio essa merda de pular de consultório em consultório, mas


entendo que é necessário, então faço. Acho que meu pai insiste nisso desde
que minha mãe faleceu. Ele quer ter certeza de que estamos nos cuidando.
Entendo um pouco o lado dele, e por isso acabo fazendo esse pequeno
sacrifício todos os anos.
— Você sabe que não precisa vir comigo, não é? — digo à Nina, que
está sentada ao meu lado e fez questão de me acompanhar em todos os
médicos que passei hoje.
— Mas eu gosto.
— Quem gosta de ir acompanhar outra pessoa em uma consulta? É
tedioso.
— Faço questão, Zay.
— Tudo bem. — Dou de ombros.
— Zayan Castelli? — Meu nome é chamado.
— Já volto — falo para a minha madrasta, entregando a ela meu
celular e carteira, antes de entrar.
Respondo um questionário infinito, tenho a pressão aferida,
resultados de exames analisados, até ser finalmente liberado. Saio do
consultório e vou em direção à Gianina, que já está do lado de fora, de
costas para a entrada.
— Nina? — Ela se vira para mim e o semblante dela me alerta.
As sobrancelhas estão franzidas e a boca forma uma linha rígida. Ela
está preocupada.
— Zayan, acho que você tem que ir até a faculdade.
— Mas você mesma me disse para faltar à detenção hoje. — Sinto
minhas sobrancelhas se unirem também.
— É Kira. Acho que aconteceu algo a ela. — Meu couro cabeludo
pinica e meu coração acelera.
— Como assim? — Meu tom de voz é urgente.
— Não sei dizer. Seu amigo ligou no seu telefone quando estava lá
dentro. Eu atendi. Ele disse que ela está passando mal e pediu para você ir
até lá.
— Passando mal de quê? Ela me mandou mensagem de manhã,
estava bem. — Começo a caminhar apressado na direção que o carro está
estacionado e ela vem logo atrás.
— Não sei, ele não deu detalhes. Toma aqui, eu vou pegar um táxi. —
Me entrega meus pertences e a chave do carro dela, e eu pego. — Dê
notícias! — Nina pede assim que entro no carro, já dando partida.
Dirijo como um inconsequente, imaginando todas as piores
possibilidades. Ligo para Marco e coloco a chamada no viva-voz. Ele
atende no segundo toque.
— Ciao.
— Que merda aconteceu? — Não contenho a exaltação na minha fala.
Ele fica em silêncio, e posso apostar que está ponderando se fala ou não. O
que significa que uma grande merda aconteceu. Acelero o carro. — Marco!
— chamo a atenção dele.
— Ela não quer falar. Só chora, Zayan.
— Quem fez isso?
— Zayan... — Há um alerta no tom dele.
— Quem, porra? — Buzino para o infeliz que está andando como
uma lesma na minha frente.
— Não vá atrás dele agora. Ela precisa de você. Não sabemos o que
fazer, Zayan.
— Eu perguntei quem.
— Você sabe. Não preciso dizer nada. Age com o cérebro uma vez na
vida e vem para cá. Estamos na biblioteca.
Desligo a chamada e largo o celular no banco do passageiro, puto da
vida por ter que dar razão a Marco, mesmo que tudo que eu queira seja ir
atrás daquele desgraçado e acabar com a graça dele hoje mesmo.
— Porra! — Tomo a rota da faculdade, dirigindo o mais depressa que
consigo.
Já estou chegando na entrada da biblioteca quando algo me trava.
Ele está ali. O sórdido que foi atrás dela está de tocaia. É muita
coragem e burrice para um só escroto.
— O que você está fazendo aqui? — Empurro o ombro dele assim
que chego perto o suficiente.
Ele sorri com escárnio.
— Eu deveria saber que a putinha ia chamar o príncipe encantado. —
Seguro o colarinho dele e minha mão coça de vontade de atingir o rosto do
infeliz. — Vai, Zayan. Faz o que quer tanto fazer.
— Abre a boca suja para proferir mais uma vez o nome dela e eu
acabo de uma vez por todas com você, seu desgraçado!
— Você conseguiu o que eu não tive, não é? Ela finalmente abriu as
pernas, para você estar a defendendo e me ameaçando...
Minha mão começa o caminho para acertar o queixo dele, mas algo
me impede. Alguém me impede, na verdade, segurando meu punho e me
puxando para longe dele.
— Te disse para vir por ela, seu imbecil! Esquece esse bastardo. —
Marco me solta e eu me viro para acompanhá-lo.
— Como eu vou esquecer, Marco? — questiono com fúria, segurando
o impulso de voltar até lá e arrebentar a cara dele.
— É, eu sei. — Ele solta o ar, irritado. — Ela está no almoxarifado.
Eu e Carmela vamos até a reitoria relatar o que vimos. Espero que ele ao
menos seja expulso — Marco diz, e depois hesita, me olhando de canto.
— Expulsão não é nada perto do que acontecerá a ele. — Caminho
para a escada que leva até o almoxarifado. — Aquele sádico vai parar no
inferno. Avisa para ele sair daqui antes de eu sair, ou eu acabo com ele hoje
mesmo.
Desço os degraus rapidamente e quase corro até a porta do
almoxarifado. Abro a porta e me desmonto quando a vejo.
Está com a cabeça nos joelhos, abraçando as pernas, encolhida. Tão
pequena.
Carmela e Matteo estão sentados ao lado dela, acariciando os cabelos
e as costas de Kira, que soluça baixinho. Peço com um gesto de cabeça que
eles me deixem ficar sozinho com ela. Os dois acenam e se levantam.
Ouço a porta fechar atrás de mim e me aproximo.
Ela chora e soluça baixo, sacudindo o corpo para frente e para trás.
Por dentro, eu me desespero. Como eu queria não ter deixado você hoje,
linda. Eu deveria saber que isso aconteceria. Deveria!
Me ajoelho diante de Kira.
— Linda? — Ela para de se mexer. Lentamente ergue o olhar e meu
coração encolhe de tamanho quando vejo a dor nos olhos marrons.
Abro os braços e ela engatinha até mim. Coloco Kira no meu colo e
ela fecha as coxas ao redor do meu quadril e os braços abraçam meu
pescoço. Sinto o peito dela se agitar pelo pranto que não cessa e aperto a
cintura dela com força, me sentindo impotente e fraco por não ter a
capacidade de apagar o passado dela.
— Você está segura comigo, linda.
Ela me segura com firmeza. E me quebra quando a única coisa que
posso fazer por ela é segurá-la e permitir que ela chore.
— Vai passar. Eu te prometo. Vai passar.
Zayan
O que aconteceu?

Carmela
Não faço ideia.
Ela não disse nada.
Como ela está?

Zayan
Aérea, quieta. Dormindo.
Foram até o reitor?

Carmela
Sim.
Ele disse que vai apurar
o que aconteceu.
Esse maldito não pode
andar livre no campus, Zayan.

Zayan
Ele não pode andar livre em
lugar nenhum, Carmela.

Carmela
O que vamos fazer?

Zayan
Estou pensando em algo.
Mas para isso ela precisa me
contar tudo que aconteceu.

Carmela
Vai com calma.
Eu já imagino o que possa ser.
Não pressiona ela, porque Kira
pode se retrair.

Zayan
Eu também imagino o que seja, Carmela.
E para o bem do desgraçado,
é melhor que eu esteja errado.

Minha troca de mensagens é cessada quando Kira remexe ao meu


lado.
Trouxe ela para casa depois de ficarmos quase duas horas no
almoxarifado, para que ela se acalmasse. Assim que chegou em casa, cedeu
ao cansaço e adormeceu na cama, aconchegada a mim.
— Zay? — murmura, sonolenta.
— Sou eu.
Ela solta um suspiro de alívio e a reação dela começa a confirmar
minhas suspeitas. Se aquele nojento encostou em um fio de cabelo seu,
linda, não sei do que serei capaz.
— Kira?
— Hum?
— O que aconteceu?
Ela acena que não contra meu peito inúmeras vezes, e por medo de
puxá-la para o canto do medo que esteve hoje, eu desisto de ter uma
resposta. Por enquanto.
— Esquece, linda. Já passou. — A abraço forte e beijo o topo da
cabeça dela. Ela puxa o ar e exala, retomando a calma.
Ficamos mais um tempo assim, enlaçados, e eu acaricio o braço dela,
para que ela se acalme. Até que noto que a noite começa a cair.
— Quando comeu pela última vez, pequena Moretti?
— De manhã.
— Faz tempo demais — digo com suavidade. — Precisa se alimentar.
Vou pedir uma pizza, tudo bem?
Ela acena que sim, mexendo distraidamente na minha camisa,
traçando com a ponta do dedo o desenho que está estampado. Pego o
telefone mais uma vez e faço o pedido.
— Pronto. — Coloco o telefone de lado. — Vem comigo até a
cozinha, linda?
Meneia positivamente com a cabeça e ergue o corpo. Fico de pé e
ofereço a mão. Ela enlaça os dedos nos meus e vamos juntos até a cozinha.
— Senta, pulguinha — peço, e ela vai até um banquinho alto.
Pego um copo e encho de água. Entrego a ela, Kira não diz nada.
Apenas bebe a água em silêncio.
Linda, volta para mim.
Brinco com os dedos dela que estão sobre a bancada, levantando um
por um, e em seguida soltando.
— Quer ligar para sua terapeuta? — pergunto.
— Agora não. Amanhã — diz baixinho.
— Seus pais?
— Agora não, Zay.
Nenhuma palavra é trocada mais entre nós. Depois de um tempo, a
pizza chega. Vou até a portaria, pego o pedido e volto. Ela arruma pratos e
talheres e coloco a caixa em cima da mesa. Sirvo nossos pratos e ela
começa a comer.
Terminamos a refeição ainda sem que nada seja dito e me sinto
agoniado. O que eu pudesse fazer para ter Kira de volta, agora, eu faria.
Coloco tudo que usamos na lava-louça e ela guarda todo o resto.
— Toma banho comigo? — Kira finalmente fala.
— Acha que é uma boa ideia?
— Sim — suspira.
Eu fico dividido. Ela está abalada, ainda processando qualquer que
seja a merda que aquele desgraçado fez, mas está confiando em mim de
uma forma que chega a me assustar. Não quero quebrar isso. Não quero que
outra pessoa cuide dela agora. Ela quer que eu faça, então o farei.
— Vamos. — Seguro a mão de Kira e caminhamos juntos até o
banheiro do quarto dela.
Kira fica de frente para mim e ergue os braços, esperando. Seguro a
barra da camisa dela e ergo a peça, deixando de lado. Ela olha para baixo e
eu desabotoo a calça e desço o zíper.
— Não precisa se conter. Eu confio em você. — Kira percebe minha
hesitação quando não me movo mais.
Mesmo sendo angustiante fazer isso, e mesmo não sabendo se sou
merecedor da confiança que ela deposita em mim, eu faço o que ela pede.
Seguro o cós da calça e abaixo a peça, junto da calcinha. Ela dá um passo
para o lado.
Kira se desfaz do sutiã, e quando ergo meu corpo, ela aponta para
mim.
— Agora você.
Me desnudo com a ajuda dela, e quando não há nenhuma roupa no
meu caminho, entro no boxe e ligo a água do chuveiro. Ela vem logo em
seguida e fica de costas para mim. Prende os cabelos de forma improvisada.
Une as mãos e as deixa encher de água, para logo em seguida abrir e deixar
escapar. Faz isso algumas vezes antes de me pedir:
— Pode me limpar, por favor?
Pego o sabonete e começo a passar pelo corpo dela. Kira ergue os
braços e passo a mão ensaboada pelas axilas dela. Deslizo pela lateral,
passando pela cintura. Quando termino de ensaboar, ela se vira e deixa que
a água limpe toda a espuma.
— Obrigada, Zayzay.
Zayzay.
Meu coração retumba errático.
Ela segura meus bíceps e fica na ponta dos pés, depositando um beijo
curto em meus lábios.
E logo em seguida mais um. E outro. E no quarto, ela prolonga e
aprofunda nosso contato.
O beijo começa vagaroso e preguiçoso. Aprecio com calma o sabor
de Kira, a textura da língua dela contra a minha, segurando o rosto dela com
delicadeza.
E então, gradualmente, ela coloca urgência nessa nossa troca. Começa
a me devorar e as mãos dela me exploram com voracidade. As unhas me
arranham e deixam um rastro ardente por onde passam, me causando um
arrepio delicioso.
Busco todo meu autocontrole ao segurar os ombros dela gentilmente e
me afastar.
— Linda, você está abalada e sensível. Preciso cuidar de você.
— Zay, me beija — Kira suplica.
A angústia na voz dela me desconcerta.
Eu a beijo. E ela mais uma vez me domina e eu me deixo levar. Kira
segura minha nuca e me mantém grudado nela. Está nas pontas dos pés e
seguro a bunda dela, a trazendo para cima. As pernas se enroscam em
minha cintura e os mamilos rígidos roçam meu peitoral.
Reluto em deixá-la avançar, mas meu corpo reage incandescente a
ela, queima a cada toque, borbulha pelo desejo urgente que sinto por essa
garota desde quando meus olhos pousaram nela.
Desde que eu vi Kira, tinha certeza de que essa garota me foderia,
apenas por ansiar ter cada parte dela.
Uma ânsia que eu não poderia nunca sentir.
— Kira, não vai te ajudar em nada isso — tento alertar.
— Zay, eu sei, mas eu preciso.
— Barbie...
Ela ignora e começa a esfregar a boceta quente e melada no meu pau
já rígido.
— Kira... — alerto, pensando em alguma forma de manter essa
pequena atrevida afastada.
Ela não me permite e puxa minha pélvis com o calcanhar.
— Zay, você cuida bem do seu corpo, não é? — Ela rebola e mexe o
quadril.
— Cuido, Kira. Por favor, pequena, vamos terminar o banho.
— Sempre usou camisinha? — Sinto a ponta do meu pau encaixar na
entrada dela e um calafrio percorre toda minha espinha apenas por esse
mísero encontro de pele com pele.
— Sempre. — Minha voz é sufocada.
— Eu tomo remédio, Zay. Continuamente. Só hoje, me tome assim,
por completo. Me mostre que é meu Zayzay que está aqui, cuidando de
mim. Me faz esquecer. — Minha resistência vai para a casa do caralho com
o clamor que há na voz dela, e eu me enterro de vez em Kira.
Ela joga a cabeça para trás, gemendo do jeito devasso que me faz
querer fodê-la e entregar a ela absolutamente tudo que ela me pedir.
— Vou te dar o que quer, linda. — Deslizo para fora quase todo e em
seguida alavanco o quadril com firmeza, indo fundo, sentindo-a estreitar o
canal ao redor da minha ereção. — Vou cuidar de você.
Kira me recebe e me aperta, e sou levado ao mais alto ponto de prazer
ao senti-la por completo. Seguro as nádegas em um aperto firme,
conduzindo-a, entrando e saindo, indo devagar e fundo.
Ela encosta a testa na minha e abaixa o olhar, assistindo meu pau
sumir dentro dela, para logo em seguida quase sair por inteiro.
— Zay... — Há agonia na voz quando ela me chama.
E eu entendo com clareza o que ela quer.
Já sei ler cada suspiro, cada gemido, cada palavra não dita dessa
garota.
— Quer mais forte, linda?
Acena preguiçosamente que sim. Envolvo o pescoço dela com a mão
esquerda, mantendo-a no lugar, e Kira revira os olhos.
Começo a aumentar o ritmo, pressionando o pescoço fino, sentindo
uma recompensa fodida por ouvir os gemidos de agonia que se misturam ao
êxtase.
Pressiono o pequeno corpo contra a parede, tendo nossas pélvis se
esfregando uma na outra, enquanto ela busca desesperadamente algum
alívio.
Não entrego. Não ainda.
Minha mão tomba a cabeça dela para o lado e exponho a pele para
que eu possa explorar. Pressiono os lábios no pescoço e mordisco, antes de
sugar a pele. Distribuo mordidas e chupões do pescoço até os ombros.
— Continua — Kira diz em um suspiro e eu obedeço. Marco o lado
esquerdo com dentes e sugadas, e ela se perde, gemendo gostoso, me
apertando dentro dela.
Meto curto, firme e fundo, e todo o corpo dela chacoalha a cada
impulsionada do meu quadril.
— Zay... — Morde os lábios, contendo um gemido. — Zay, você... —
Seguro o queixo dela e puxo o lábio inferior com os dentes, antes de deixar
Kira terminar a frase. — Você... cuida... tão... bem... de mim. — A fala é
cortada, acompanhando o ritmo das estocadas.
Não me deixo levar pela voz inocente quando ela tem um sorriso
devasso e malicioso no rosto. Também sorrio, me permitindo ser
corrompido pela criatura libertina que agora me possui, ao deslizar pelo
meu pau, para cima e para baixo. Os seios fartos estão prensados sobre meu
tronco e é deliciosa a forma como eles escorregam a cada cavalgada dela.
— Cuido, é? — Ela acena que sim e eu tomo os lábios dela para um
beijo febril. Devoro Kira com a boca e ela me toma com a boceta que se
estreita e me suga.
Nos movemos em sincronia e começamos a perder o controle, os dois,
gemendo alto e procurando desesperadamente marcar o corpo um do outro.
Mas ela não se permite gozar. Porque assim que a musculatura da
vagina me esmaga, Kira para de se mexer e relaxa ao meu redor.
— O que pensa que está fazendo, provocadora? — Seguro o pescoço
dela mais uma vez e meto duro dentro dela.
— Do que está falando? — Finge inocência.
— Quer mesmo brincar agora? Deixa eu te mostrar como se brinca,
linda.
Seguro a bunda dela e saio de dentro de Kira, afastando o corpo. Ela
fica de pé em busca de equilíbrio. Sem dar tempo para ela pensar, giro o
corpo dela.
— Segura nos seus tornozelos. — Ela obedece e empina o rabo
redondo e pequeno na minha direção.
É tentador demais para que eu perca a oportunidade. E por isso não
me contenho. Abro a mão e afasto todos os dedos, antes de estalar um tapa
ardente na bunda dela. Geme alto e levanta os calcanhares ao receber o
impacto. Seguro a cintura para que não se desequilibre, antes de erguer o
braço e mais uma vez acertar o traseiro. Mais um gemido, mais alto dessa
vez. E então eu meto, mantendo Kira no lugar quando o corpo dela é
alavancado para frente.
Ela se apoia na parede, e a fodo rápido e firme, até sentir Kira perto
de gozar. E então paro de mexer.
— Zayan!
— Não gosta de provocar, linda? — Volto a me mexer e ela esquece
de reclamar, porque rapidamente assumo um ritmo implacável.
— Por favor! — Ela pede depois que eu desacelero mais uma vez.
E então eu cedo. Por nós dois. Porque já está insuportável estar dentro
dela sem ir até o fim. Ainda segurando a cintura, trago Kira para mim até
sentir que estou no limite e faço movimentos de vaivém acelerados. Ela
enrijece todo o corpo e contrai a boceta, e isso é o suficiente para me levar
junto.
Nós dois gozamos chamando um pelo outro, como se pudéssemos nos
salvar da queda.
Ela pode. Ela tem esse poder.
Ela já me salvou.
— É um mundo de merda para mulheres. — É a primeira coisa que
consigo falar depois de ter chorado dez minutos em silêncio na sessão.
Fiz como Zayan disse, e assim que acordei, enviei uma mensagem
para minha terapeuta, explicando superficialmente o que havia acontecido.
Ela me entendeu e me pediu para que viesse conversar com ela.
E aqui estou eu, tendo que repassar as cenas de ontem, me sentindo
envergonhada e pequena por tudo que aconteceu.
— É. É um mundo de merda para mulheres — Léa, minha terapeuta,
diz.
Nos encaramos por longos segundos, até eu suspirar e começar a
narrar tudo.
— Seus pais já sabem?
— Ainda não. Eu não tenho coragem de contar ainda. — Limpo meu
rosto com o dorso da mão, tomada pelo choro.
— Por que não?
— Se eu contar para os meus pais, eles vão querer denunciá-lo. E eu
sei que é o certo a se fazer, mas Gregório não é um maldito qualquer. Ele
pode me prejudicar. Prejudicar a minha família. Ele tem esse poder. E eu
não tenho provas suficientes contra ele. É um mundo de merda para
mulheres, porque quando é nossa palavra contra a deles, nós perdemos.
Sempre perdemos.
— Seu medo é compreensível, Kira. E a decisão de denunciar ou não
no final sempre será sua. Mas independente da escolha que faça, ainda
assim, sua família não tem o direito de saber? Sempre me disse que eles são
sua primeira rede de apoio.
— Eles são. Continuam sendo, mas eu ainda não sei como agir. Eu
preciso de um tempo para colocar minha cabeça no lugar.
— Como está se sentindo em relação a tudo isso, Kira? — questiona
com calma e paciência.
— Envergonhada. — Contenho um soluço. — Impotente. Enojada.
Eu estou de volta para aquele dia, mais uma vez tentando me esconder do
mundo, mesmo sabendo que não tem como eu me esconder.
— Você não está de volta. Você não é mais a mesma. Tem um pouco
mais de coragem hoje.
— Acabei de dizer que sou covarde o suficiente para não contar para
os meus pais ainda.
— Ainda. Mas vai contar.
— Isso tudo é muito fodido.
— É sim. Você sabe que não vai ser fácil lidar com isso. Mas você
está em busca de liberdade e isso só você pode conquistar. Há vários
caminhos para isso. Vai decidir o que é melhor para você no momento
certo. Por enquanto, o que pode fazer é se cercar de pessoas que te desejam
o bem e que te façam se sentir segura.
— Eu sei.
— Se sente segura com ele? — Aponta na direção da porta, onde do
outro lado Zayan me espera.
— Sabe quem é aquele garoto? — Ela acena negativamente. —
Aquele é Zayan Castelli.
E sim, dediquei sessões a ele, como ele mesmo disse, porque aqui era
o único espaço que eu tinha para xingar Zayan de todas as formas por toda
importunação e raiva que ele me fazia passar.
Parece que faz uma vida desde que tudo entre nós virou de cabeça
para baixo.
— Zayan Castelli te faz se sentir segura?
— Esquisito, não é? Mas sim, ele faz.
Não sei como e nem o porquê, mas ele faz. Eu confio nele. Confio em
como ele me faz sentir confortável dentro de mim mesma. Confio na forma
como meu coração aquieta e acalma na presença dele. Confio na forma
como ele se entrega.
Confio que ele não vai me machucar. Eu simplesmente confio.

— Como você está se sentindo? — Zayan pergunta quando saímos do


consultório.
— Melhor.
Ele segura meu ombro e me fecha em um abraço lateral. Andamos até
o carro sem dizer nada e ele dirige igualmente em silêncio.
Zayan estaciona em meu prédio e nós subimos até o apartamento.
Abro a porta e descalço os pés quando entro. Ele faz o mesmo. Sento no
sofá, mas Zayan vai até meu quarto.
— Hey, o que está fazendo? — questiono, mas ele já sumiu de vista.
Pouco tempo depois está de volta na sala com todo meu kit para fazer
unhas em mãos.
— Hoje vai ser que cor, pulguinha?
Ele coloca tudo na mesinha de centro da sala e senta com as pernas
cruzadas, esperando minha resposta. Os olhos deles me encaram com
ansiedade enquanto aguarda que eu fale algo.
Acho que desde ontem ele está tentando me trazer de volta. Tenho
quase certeza de que é isso que Zayan faz, me tirando do lugar sombrio que
eu fui colocada. E só o esforço dele faz com que parte da minha tristeza se
vá.
— Lilás. — Esboço um sorriso e ele retribui.
Sento na frente de Zayan e abro as mãos sobre a superfície. Ele
começa a trabalhar meticulosamente nas minhas unhas, e minha atenção se
volta para ele. Antes que eu dê por mim, estamos tagarelando
ininterruptamente sobre faculdade, filmes e livros de suspense e óleos
essenciais.
Zayan já está me irritando mais uma vez quando diz que não vai
comprar balas para mim. Na sequência saímos e vamos ao supermercado
mais próximo comprar balas e outros mantimentos.
Ele xinga o caminho todo e diz que sou mimada, mas sorri quando
beijo a bochecha dele.
Voltamos para casa e Zayan prepara o almoço. Almoçamos e depois
vamos assistir séries.
E por algumas horas, eu me permito esquecer o dia de ontem.
No entanto, quando a noite começa a chegar, me obrigo a retomar a
memória, quando faço um pedido a Zayan:
— Pode me levar na casa dos meus pais?
Há preocupação no olhar dele, mas Zayan apenas acena. Saímos do
apartamento e nosso caminho é regado com conversas leves e
descontraídas. É só quando ele vira a esquina da rua, que Zayan parece
perceber o que estamos prestes a fazer.
— Kira, eu... Talvez seja melhor... Não, não. Eu vou com você. É só
que...
— Está com medo do meu pai, Zayzay? — Rio.
— Não. Jamais. Já sua mãe é outra história.
— Não se preocupe. Vai dar tudo certo. E ela não vai ter tempo de dar
nenhum sermão quando ouvir o que tenho para contar. — Meu sorriso se
vai.
Zay segura minha mão firme.
— Estou aqui com você, pulguinha.
— Obrigada, Zayzay.
Zayan estaciona o carro e eu percebo que meus pais têm visitas
quando reconheço o carro da frente.
— Dante está aqui.
— Ok, vou avisar meu pai de que talvez seja meu último dia na Terra
— diz em tom de divertimento.
— Andiamo.
Saímos do carro e caminhamos em direção à entrada. De longe, posso
ouvir meu irmão e minha mãe conversando. Parecem nervosos, e não perco
tempo anunciando minha chegada. Pego minha chave no bolso e abro a
porta.
Eles se calam quando me veem entrar.
— O que está acontecendo aqui? — questiono.
— Eu gostaria de saber, Kira. — Minha mãe encara Zayan atrás de
mim, com a testa franzida. — O que eu perdi? — Cruza os braços na frente
do corpo.
— Mãe, agora não.
— Agora sim! Eu estava alguns meses atrás na sua faculdade, sentada
na sala do reitor, com esse garoto e você prestes a serem expulsos depois de
terem brigado no meio do corredor.
— Mãe... — Que merda, não é disso que eu vim falar. Cadê meu pai
quando preciso dele? Alguém tem que acalmar essa fera.
— Eu vou indo. — Dante passa por nós, agitado.
Algo está acontecendo e eles não estão me contando.
— Dante! — Vou atrás dele. Ele se vira para mim e noto o semblante
cansado do meu irmão. — O que está acontecendo, fratello[23]?
— Nada, Kira. Nada de mais. — Ele tenta manter a neutralidade na
voz. — Se eu fosse você não deixava seu namorado sozinho com ela. Vai
perder o garoto precocemente. — Tenta fazer graça.
— Alguma coisa está acontecendo. — Não deixo que ele me enrole.
— Por que vocês dois estavam discutindo?
— Não estávamos discutindo, princesa. Eu só... Eu e Aisha brigamos.
Só isso.
— Você? E Aisha? Brigaram? Dante, deixa disso. Não estou no clima
para piada sem graça hoje.
— Queria que fosse piada, princesa — suspira. Percebo que ele está
falando a verdade quando os olhos dele enchem d’água.
— Dan... — Abraço meu irmão e ele retribui. — Discussões
acontecem, irmão. Vocês vão se resolver.
— Espero que sim. — Dante beija o topo da minha cabeça. — O que
você quer me contar?
— Como assim o que quero te contar?
— Temos essa mania irritante, não temos? Te conheço bem e você me
conhece bem.
— É, temos. Mas nós conversamos outro dia.
— Pode me falar, Kira. — Ele segura meus ombros com gentileza e
me encara.
Sei que Dante pararia o mundo dele agora se eu abrisse a boca para
dizer o que aconteceu. Ficaria horas sentado no sofá comigo, até me
convencer a ir a uma delegacia e denunciar o lunático. Moraria comigo por
meses, até que entendesse que eu estou bem e segura.
E é por isso que decido que esse não é o melhor momento. Não
quando vejo o caco que ele está e como parece exausto.
— Outro dia, pode ser? — peço.
— Kira...
— Juro que vou ficar bem. Confia em mim.
Ele franze as sobrancelhas por um instante e então olha na direção da
porta. Acompanho o olhar dele e vejo Zayan parado, tenso, sem fazer
nenhum movimento.
— Zayan! — Dante chama e ele nos encara, confuso.
— Dante! — Tento alertar para que ele não faça isso, mas meu irmão
me ignora.
— Vem aqui — chama com o timbre firme.
Zayan vem e se coloca atrás de mim.
— Sim?
— Kira é a pessoa mais preciosa que você vai ter a sorte de ter em sua
vida, Zayan. Espero que faça por merecer a chance que ela te deu. Porque
pode ter certeza que é uma chance única. Ela é quase perfeita. À maneira
dela. Mas ainda tem defeitos. Ela quer ser forte quando não precisa ser.
— Dante! — o interrompo.
— Me deixa terminar, por favor. — Ele parece determinado. — Ela
vai tentar ser forte mesmo que não precise ser, mesmo sabendo que tem
todo suporte do mundo e que pode fraquejar em alguns momentos. Eu não
faço ideia da loucura que vocês enfiaram na cabeça para estarem aqui,
juntos, grudados um no outro, mas eu não tenho que opinar em nada. Só
posso te dizer isso: cuida dela mesmo quando ela disser que não precisa.
Porque precisa sim. E ela vai retribuir com um carinho gigante, pode ter
certeza.
— Conheço sua irmã o suficiente para entender cada parte dela,
Dante. Pode ter certeza que não vou sair do lado dela.
— Eu estou aqui — resmungo.
— E no tempo dela, Kira vai falar sobre tudo que aconteceu — meu
irmão encerra o pequeno discurso, ignorando minha presença.
— Também amo você, Dante — digo com irritação.
— Amo você, irmã. — Ele beija minha testa antes de dar a volta e
entrar no carro.
— O que aconteceu aqui? — Zayan questiona quando o carro de
Dante se afasta.
— Eu diria que ele fez ou vai fazer alguma merda.
— Como você sabe?
— Ele está com os sentimentos à flor da pele. Não parece estar
pensando racionalmente. Se uma oportunidade de fazer alguma burrada
aparecer, tenho certeza que ele vai abraçar. Conhecendo a impulsividade de
Dante, há grandes chances de ele fazer algo que irá se arrepender
amargamente.
— Vocês se conhecem muito bem.
— Para o nosso azar.
— Então o que ele disse é verdade? Vai tentar colocar uma armadura
que não tem, linda? — Ele segura meu quadril e me vira de frente para ele.
— Talvez, mas vou tentar melhorar. — Abraço a nuca de Zayan.
— Kira Matilda Moretti, entra nessa casa agora! — minha mãe berra
da porta, me fazendo revirar os olhos.
— Mas não vai ser hoje, Zay. Essa casa está um caos.
— Você veio aqui justamente para conversar com eles, Kira!
— Eu disse agora, Kira! — Outro berro de Martina. — Nós vamos
esperar seu pai chegar e você vai explicar essa história direitinho, Kira
Moretti — minha mãe avisa séria quando entro na casa.
Olha desconfiada na direção de Zayan.
— Ele não morde, mãe. Está vacinado — falo quando ela não para de
encará-lo.
Vejo uma careta no rosto de Zayan, mas ele não ousa abrir a boca para
nenhum comentário ácido perto da minha mãe. Nos conduzo até o sofá da
sala e sento.
Vinte minutos é o tempo que se passa com minha mãe sentada em
silêncio na poltrona, com o olhar gélido sobre nós, e Zayan segurando
minhas mãos, com as palmas suadas.
E então o trinco gira e meu pai entra pela porta.
— Martina, não encontrei o xampu que você me... Santo Cristo! —
Encaro Giorgio, que está com os olhos arregalados pousados em nossas
mãos unidas sobre o sofá. — Kira Matilda, mas o que é que isso tudo
significa? Você é o garoto do tapa!
— Por Deus do céu! Vocês todos podem esquecer essa história de
tapa? — exclamo exaltada, me levantando do móvel. — Eu e Zayan
brigamos e discutimos muito. Eu dei um tapa nele e fomos punidos. Fim.
Vamos mudar a página da história agora?
— E qual é o novo capítulo, Kira? — minha mãe questiona, unindo os
dedos da mão e gesticulando, nervosa. — Qual é o capítulo? Porque até
onde eu sabia, vocês ainda viviam para brigar. E agora me aparece aqui de
mãos dadas com o garoto!
— Sim, mãe. Eu e Zayan nos entendemos.
— Muito bem, pelo visto. — Meu pai analisa o garoto dos pés à
cabeça.
— Sim, muito bem. Isso não deveria ser bom? Vocês não terão mais
que se preocupar com brigas na faculdade e nem dormir pensando no que
eu farei para o atormentar no dia seguinte.
— Você tem certeza do que está fazendo, filho? — Meu pai se dirige
a Zayan.
— Giorgio! — minha mãe protesta.
— Martina, Kira sabe das escolhas que faz. O garoto é que tem que
pensar bem. Tomou um tapa dela e está aqui, pedindo minha menina em
namoro.
— Pai, nós não estamos...
— Sei bem o que estou fazendo, seu Giorgio. — Zayan se levanta,
tomado por uma coragem que segundos atrás parecia não ter.
Ligo nosso modo de conversa telepática, encarando furtivamente os
olhos castanhos dele.
“O que você pensa que está fazendo?”
“O que você acha?”
“Você deveria ter negado, Zayan!”
“Não mesmo.”
“Vou te afogar hoje. Hoje mesmo. De hoje você não passa.”
“E vai ficar sem orgasmos, linda?”
— Isso é loucura! — Minha mãe encerra nossa discussão silenciosa.
— Martina, são jovens. Deixe eles viverem as loucuras que quiserem.
Substituíram meu pai no caminho que ele fez de volta para cá. Tenho
certeza. Como assim Giorgio não está esbravejando?
— Giorgio Moretti! Na cozinha. Agora! — minha mãe diz
entredentes, com o maxilar travado.
Ela vai na frente e meu pai se vira para nós dois antes de ir atrás dela.
— Estou de olho em vocês — avisa e sai.
— Zayan Castelli — digo séria.
— Kira Matilda Moretti. — Ele sorri. Fica de pé e vem até mim,
abraçando minha cintura.
— O que você fez?
— Conquistei seu pai.
— Mentindo descaradamente?
— Nós poderíamos ser namorados.
— Não faz nem um mês que estamos... Que nós estamos... — O que
estamos fazendo, afinal?
— Faz três semanas e meia desde que nos beijamos, linda. Mas quem
está contando? E tempo não importa. Quero ficar com você. Só você. Isso
não basta?
— Então você quer ser meu namorado?
— Quero. Quero muito.
— Ainda não sei se é o quero, Castelli. — Sorrio, o desafiando.
Ele sorri com malícia e ajusta uma mecha do meu cabelo atrás da
orelha. Arrepio quando a ponta do indicador desce pelo meu pescoço e
estremeço quando ele aproxima o rosto e morde o lóbulo da minha orelha.
— Que tal se eu te mostrar que é exatamente o que quer enquanto te
chupo até cansar, linda?
— Zay... — tento repreendê-lo, mas parece que estou implorando por
isso.
— Mais tarde, Barbie. — Beija minha nuca e se afasta. — Não vai
mesmo contar para eles o que aconteceu?
— Não sei se é o momento.
— Não tem momento certo para isso.
Penso sobre o que ele diz por um instante e elaboro sobre a sessão de
terapia de hoje. Minha mente ainda está longe quando meus pais voltam
para a sala.
— Kira, eu e sua mãe não vamos interferir na sua escolha. Você sabe
que só queremos sua felicidade e ninguém melhor para dizer o que te faz
feliz do que você mesma — meu pai discursa com uma tranquilidade
atípica. O que fizeram a esse homem? — Mas lembre-se sempre de que
você tem que... Hum... De que você... Bene[24]...
— Mãe! — Me viro para ela, envergonhada. Tenho certeza que dona
Martina mandou meu pai dizer o que ele está prestes a dizer. Camisinha. Eu
sei. Não precisa falar! — Eu me protejo, certo? Não precisa me constranger
por isso. — Fiz uma vez sem, mas ainda assim eu tomo anticoncepcional.
— É sempre bom um lembrete, Kira — Martina diz, igualmente sem
graça. — Vocês têm essa mania de achar que nunca haverá uma
consequência, e ela sempre vem. Enfim, é isso que tínhamos a dizer. Ainda
estamos de olho em vocês dois, mas quem sou eu para os impedir de algo?
Já passou o tempo de eu te repreender. Vocês estão crescidos e sabem o que
fazem.
— Já entendi, mãe.
— Espero que tenha entendido mesmo. Agora vou preparar o jantar,
porque é o melhor que faço e...
— Mãe, tem outra coisa que preciso te falar — interrompo.
— O que é agora, minha filha? — Me encara, preocupada.
Olho para Zayan por um instante e ele acena, me encorajando a seguir
em frente. Volto a mirar meus pais e há preocupação no semblante deles.
— Aconteceu algo ontem — começo a discursar.
Zay segura minha mão, me dando forças para continuar.
E então narro sobre o episódio grotesco e pavoroso ao qual fui
submetida. A respiração dos três parece suspensa, e não consigo mais olhar
para nenhum deles até terminar de contar tudo.
Há um momento de silêncio quando encerro, e sinto os braços de
Zayan me puxando e me fechando em um abraço reconfortante, enquanto
algumas lágrimas deslizam pelo meu rosto. Ele acaricia minhas costas e
beija o topo da minha cabeça. Meu choro cessa pouco a pouco.
— Kira, nós vamos denunciar esse bastardo agora! — meu pai diz,
nervoso.
— Pai...
— Kira, seu pai está certo. Esse nojento não pode ficar solto! —
minha mãe interpõe.
— Olha só, eu entendo vocês dois. — Desfaço do abraço de Zayan e
ele parece contrariado. — Mas eu que escolho o que fazer. E eu não estou
dizendo que não vou denunciar, só estou dizendo que não tenho cabeça para
pensar nisso agora, para enfrentar um interrogatório e tudo mais.
— Kira, o momento para fazer a denúncia é agora — Zayan diz com a
voz robótica. O pensamento dele parece oscilar entre o presente e alguma
memória passada.
— Por que amanhã eu já não tenho essa chance? — questiono com
acidez.
— Se demorar, a justiça também vai demorar para agir. Não tem
motivo para esperar — Zayan explica com calma.
— Entendam, vocês três, que eu não estou negligenciando minha
própria segurança. Mas sou eu que vou me submeter a todo processo. Eu
que vou testemunhar, eu que vou encará-lo e ter que ouvir ele colocar
minha palavra à prova. Eu não estou pronta para isso. Não agora. Por favor,
eu preciso do apoio de vocês.
— Kira... — Minha mãe parece segurar o choro.
Eu entendo o que todo mundo espera de mim, mas a vergonha ainda
me consome. Sei que não é minha culpa e sei que ele é quem deveria estar
se sentindo acuado agora. Só que eu não tenho controle ainda sobre meus
temores.
Eu preciso de um tempo.
— Por favor, mãe — peço.
Todos os três hesitam. Ninguém fala nada por longos minutos. Eles
não querem que seja assim. Mas não cabe a eles escolher.
Entendo a posição de meus pais e Zayan. Se eu estivesse no lugar
deles, faria o mesmo. Eu fiz isso a Zayan. Pedi a ele que contasse ao pai
tudo que o irmão fez e faz, e me inconformei quando ele se negou.
E agora estou aqui, pedindo a ele, Martina e Gio que façam o mesmo,
que não me peçam para enfrentar meu maior pesadelo ainda. Ainda não.
— Você vai voltar para cá — Giorgio anuncia.
— Pai!
— Sem protestar, Kira. Podemos até esperar que você faça as coisas
no seu tempo, mas não pode esperar que eu e sua mãe cruzemos os braços e
assistamos a tudo isso sem agir de alguma forma.
— Não faz sentido! O apartamento é mais perto da faculdade. Nunca
aconteceu nada.
— Não quer dizer que não vai acontecer. Sem protestar, Kira.
— E se Zayan ficar comigo lá?
— Io[25]? — Ele une os dedos da mão e me olha como se eu estivesse
enlouquecendo.
— Eu disse que a menina não está bem, Giorgio! — minha mãe se
exalta.
— Kira, minha filha. — Meu pai segura a ponte do nariz. — Vocês
acabaram de começar o namoro. Quer aumentar nossos cabelos brancos?
— Ele não vai morar comigo. Ele vai ser meu colega de quarto.
Vamos dividir o apartamento igual muitos universitários fazem por aí.
— Kira, é a mesma coisa — Martina protesta.
— É provisório.
— Não. — Meu pai é incisivo.
— Certo. E se for Carmela?
— Sua amiga?
— Sim.
— E ela vai querer se mudar?
— Eu vou conversar com ela. Não vou ficar sozinha. Gregório só
vem atrás de mim se eu estou sozinha. E Zayan pode nos levar e buscar na
faculdade. E Carlo já está avisado de que Gregório não entra lá.
— Não sei...
— Eu não vou me impedir de viver por causa dele, e vocês precisam
confiar em mim. Entendo que ficar sozinha não é uma opção agora, então
estou propondo fazermos dessa forma. Se eu não me sentir segura ou sentir
que ele está me rondando, volto para cá no primeiro sinal de perigo.
— Eu disse para você e Dante não mimarem a menina. Agora
estamos aqui — Martina diz, cansada.
— Não estou fazendo isso porque sou mimada, mãe, estou fazendo
isso porque quero viver minha vida sem ficar na sombra desse infeliz.
— Está certo. Se você está dizendo — ela responde, ainda descrente.
— Por favor, me deixe tentar. Eu preciso disso, mãe. Preciso da
minha liberdade.
— Isso não é ser livre, Kira. Não quando ele está aí, à solta.
— Kira, posso conversar com seus pais? A sós — Zayan pede.
Me viro para ele, surpresa, e noto que está sério. Parece também
cansado e aéreo.
Gio e Martina o encaram, tão confusos quanto eu.
— Por que tem que ser a sós? — questiono.
Ele vem até mim e sem se intimidar com a presença dos meus pais,
segura meu rosto com delicadeza e me faz encarar a profundidade da
sinceridade presente nos olhos castanhos.
— Confia em mim, linda.
— Vai me contar depois sobre o que é isso?
— Depois. Eu prometo.
— Tudo bem. — Aceno e subo para o meu antigo quarto.
Fico tentada a ficar no corredor e ouvir a conversa, mas decido que se
ele me pediu para confiar, então o farei.
Fecho a porta e me sento na cadeira de estudos. Fico sentada poucos
segundos e então me levanto e vou até a cama. Vejo a pelúcia de unicórnio
que ganhei de Zayan e da madrasta no início do ano e sorrio. Pego o objeto
e coloco embaixo dos braços. Volto a me sentar e giro na cadeira.
Cinco minutos se passam e eu pego um livro na estante do quarto.
Dez minutos e eu já me cansei do livro. Começo a roer as unhas.
Quinze minutos e eu jogo meu corpo no colchão, olhando para o teto,
imaginando o que está se passando lá embaixo. Finjo que o lençol é neve e
abro e fecho as pernas e braços, tentando fazer um anjo de neve.
Vinte e três minutos e eu abro um vídeo tutorial de como fazer
invertida na ioga.
Coloco o celular no chão. Sigo as instruções da mulher e entrelaço os
dedos, apoiando o antebraço no chão. Minha bunda aponta para cima e vou
caminhando com os pés até estarem o mais próximo possível do meu
tronco. Apoio a cabeça nas palmas das mãos que estão unidas e tento
colocar força no abdômen para erguer a perna.
— É uma posição e tanto. — Abro as pernas e encontro uma versão
de Zayan de cabeça para baixo, escorado na porta.
— Não tinha nada para fazer. — Desfaço os nós dos dedos, caminho
com a mão e ergo o tronco até estar de pé.
— Você pode praticar ioga quando quiser. Só tem a obrigação de me
chamar para assistir.
— Então, o que aconteceu lá embaixo? — Caminho até ele.
— Eu os convenci a te deixar morar com Carmela. Só precisa
convidá-la e ver se ela aceita. — Ele me puxa para perto.
— Você convenceu? Como fez isso?
— Charme. — Sem dar chance para eu questionar mais, ele toma
meus lábios em um beijo que já começa feroz.
A mão dele já está na minha bunda, apertando com firmeza, me
levando de encontro a ele.
— Zay.
— Hum?
— Meus pais estão lá embaixo. — Ele segura uma porção do meu
cabelo e tomba minha cabeça para o lado, mordiscando e beijando meu
pescoço.
— Eu sei. Eles me deram dois minutos para descer com você. —
Solta o meu cabelo e volta a me beijar profundamente. Perco o ar, a razão,
os sentidos quando tudo que tem minha atenção é o beijo que me leva aos
céus.
— Kira Moretti! — Somos interrompidos pelo grito da minha mãe
que vem do andar de baixo. Nos afastamos, ofegantes.
E então sorrimos.
— Vamos, o efeito do meu charme passou.
— Espera. — Volto para o quarto e pego a pelúcia. Ele ri,
reconhecendo o bicho. — Vamos.

— Você quer que eu vá morar com você? — Mel me encara, quando


estamos sentadas na biblioteca.
Acabamos de nos reunir com nosso grupo do debate final, e tenho
alguns minutos antes de começar meu trabalho. Então me sentei com ela e
expliquei toda a situação. Contei para ela sobre o que aconteceu dois dias
atrás, sobre a conversa com meus pais e sobre a condição que eles me
deram para continuar morando próxima à faculdade.
E agora ela me olha com o semblante indagativo.
— Exatamente. Não precisa responder agora. É só que meus pais
disseram que não querem que eu fique sozinha no apartamento depois de...
Depois do que aconteceu. E você já mencionou que queria procurar alguém
para dividir um apartamento uma vez. Talvez o momento seja esse. Vamos
dividir as contas e tarefas. Menos cozinhar. Ainda estou aprendendo a
cozinhar.
— Preciso conversar com meus pais, Kiki, mas eu adoraria. — Ela
segura minhas mãos e sorri.
— Você sabe que é a segunda opção, não é? Já que eu fui o primeiro a
ser convidado — Zayan diz com zombaria ao meu lado.
— Fala sério, Kira. Acabou de beijar o garoto!
— Mel, ele estava do meu lado. Não pensei, só disse o nome dele.
— Kira, estou bem aqui — o limão azedo reclama.
— Bom, eu te dou uma resposta em breve — Carmela diz. — Agora
eu preciso ir. — Recolhe a mochila.
— Não vai ficar nos vigiando hoje? O que foi, achou algo mais
interessante para ocupar suas tardes, Mel? — Zayan provoca e penso que
está se referindo a Santino. Os dois parecem estar se entendendo de alguma
forma.
— Não enche, Castelli. Vocês estão se dando muito bem, não tenho
nada para fazer aqui. — Ela sai apressada. Manda um beijo no ar para mim
e eu retribuo.
— Vamos, Barbie? — Ele se levanta.
— Vamos, limãozinho.

Zayan e eu estamos na mesa da minha sala, adiantando trabalhos de


faculdade, depois de ele ter me acompanhado até aqui no fim da tarde.
— Acho que vou indo, pulguinha. Dafne está me esperando. — Ele se
levanta.
— Dafne?
— Sim. Eu decidi passar uns dias com ela. Achei que ela estava muito
sozinha.
— Entendi. Talvez seja mesmo bom para ela.
— Sim.
Meu telefone toca em cima da mesa e eu estranho quando vejo o
nome. Aisha ligando a essa hora? Não pode ser notícia boa.
— Ciao.
— Ciao, Kira. Desculpa ligar assim, mas seu irmão... Ele está com
você?
— Dante? Não. Por quê? O que houve?
— Ele sumiu. O celular está desligado e ninguém tem notícias dele.
— A voz dela está embargada e eu sinto minha pulsação acelerar de medo.
— Como assim sumiu? Quem foi o último a ver ele? — Zayan me
encara com a testa enrugada.
— Antônio o viu sair da vinícola. Mas ele já deveria ter chegado aqui
há muito tempo.
Dante, Dante, que merda você fez?
— Eu vou tentar contato com alguns antigos conhecidos dele e
qualquer coisa te dou notícias.
— Tudo bem. — A voz dela é quase um lamento. — E se eu tiver
notícias, eu te falo.
— Certo, até mais, Aisha.
— Até.
— O que houve? — Zayan questiona quando desligo o telefone.
— Eu disse que meu irmão ia fazer burrada, não disse? — Mando
mensagem para todos os conhecidos que eu e Dante temos em comum.
— O que ele fez?
— Ainda não sei. O que sei é que ele sumiu sem dar nenhuma notícia.
— Linda, para de andar. — Ele coloca o corpo na minha frente
quando começo a caminhar de um lado para o outro.
— Que merda, Dante! — amaldiçoo ele.
Onde meu irmão se enfiou?

Já faz mais de duas horas desde que Aisha me ligou e eu estou prestes
a ir até meus pais, para pensar no que fazer junto com eles.
— Kira, a mão na boca — Zayan chama minha atenção pela décima
vez quando começo a roer as unhas.
Ele está com as mãos nos meus ombros, apertando pontos de tensão,
tentando me acalmar. Mas eu preciso ter notícias do meu irmão. Só isso me
trará sossego.
Meu celular apita. Nova mensagem.

Aisha
Ele acabou de chegar.
Está tudo bem.
Amanhã te dou mais notícias.
— O irresponsável que eu chamo de irmão apareceu. — Mostro a
mensagem a Zayan.
— O que você acha que pode ter acontecido?
— Não faço ideia, Zayan! Ele fala de mim, que eu quero me fazer de
forte o tempo todo, mas, e ele? Tudo que Dante faz é tentar resolver os
problemas do mundo com as próprias mãos. Síndrome de herói louca essa.
Ele precisa se controlar, ou uma hora uma grande merda acontecerá e ele
não terá mais controle de porra nenhuma. — Levanto do chão irritada e vou
até a cozinha pegar um copo de água.
— Kira, fica calma. — Ele vem atrás de mim.
— É impossível, Zayan.
— O que eu te fiz, Barbie? — Ele fica de frente para mim e leva a
mão até meu rosto, acariciando minhas bochechas com o polegar.
— Nada.
— Então por que eu sou o Zayan e não Zayzay? Ou limãozinho?
O polegar escorrega até meu lábio inferior e ele encara desejoso
minha boca.
— Eu sei o que está fazendo, Zayzay. — Ele sorri travesso e eu
também.
— O que estou fazendo, pequena Moretti?
— Está me distraindo.
Segura meu quadril e encaixa nossas pélvis, fazendo meu ventre
revirar deliciosamente.
— Funcionou, linda? Porque estou só esperando você me dar algum
sinal para seguir em frente. — A boca dele desce até meu pescoço e ele
morde suavemente.
— E isso prova que sou mais esperta que você, se você acha que eu
seria louca de te impedir. — Sinto o sorriso dele contra a minha pele antes
de ele me tomar e tirar toda a tormenta de mim.

— Você fez merda, não fez? — questiono.


Eu estou deitada na cama do quarto que pertenceu a Dante, na casa
dos nossos pais. Dois dias atrás ele deixou todos nós preocupados por
sumir. Hoje está aqui, na minha frente, sentado na cadeira do quarto, em
silêncio, incapaz de oferecer uma explicação.
Está sério, concentrado e também agitado.
— Sim, eu fiz — responde com atraso.
— E não vai me falar.
— Vai me falar sobre o que estava fazendo aqui na quinta-feira?
— Vou.
— Então conte.
— Vim contar para nossos pais sobre Zayan e eu.
Ele ri com escárnio.
— Ok, vou fingir que acredito.
— O que te faz pensar que não era isso?
— Sua expressão de cansaço naquele dia, suas roupas largas e a falta
de maquiagem. A forma como encarava o chão, envergonhada. Colocou
duas balas de uma vez na boca assim que entrou aqui. A não ser que Zayan
esteja te subornando para ficar com ele, e por isso estava nervosa, há algo
mais.
— Intrometido — acuso.
— Você que começou — ele rebate.
— Então não vai falar?
— Você vai falar?
— Espero que tenha consciência do que fez ou está fazendo. —
Desvio do assunto.
— Você também. — Ele gira o telefone na mão, ansioso. — Vai
acabar com minha raça, não vai? Quando eu abrir minha boca e você souber
o que eu fiz.
— Muito provavelmente.
— E depois vai me consolar? Vou precisar de você.
— Sempre. — Sorrio timidamente e ele repuxa o canto dos lábios. —
É o que fazemos, não é?
— Sim, é o que fazemos.
— Amo você, Dan. Independentemente de qualquer coisa.
— Também amo você, princesa. — Ele se levanta e abre os braços,
pedindo um abraço.
Vou até ele e atendo ao pedido. Ouço o coração dele bater acelerado,
como se Dante tivesse sido tomado pela ansiedade.
No que se meteu, irmão?

Estaciono na frente da minha casa. É segunda-feira de manhã e estou


prestes a perder a hora e me atrasar para a faculdade. Abro a porta de
entrada e vou até a sala de jantar. Ouço parte da conversa que está
acontecendo antes de chegar até eles.
— Um pai mandando interditar a filha. Jamais imaginei que veria
uma coisa dessas em toda minha carreira. — Meu pai parece desgostoso
com algo.
— Quem interditou quem? — questiono, entrando no cômodo.
— Quem é vivo sempre aparece. — Nina sorri. — Esqueceu que tem
casa?
— Estava na casa da Dafne, Nina.
— Eu sei. Já está quase morando lá, pelo visto. Bom dia, Zay.
— Bom dia, filho.
— Bom dia. Sobre o que estavam falando?
— Um caso que recebemos. Um pedido de interdição de pai para a
própria filha.
— E a garota precisa disso?
— Não sei, não tive acesso a muita coisa. Parece que ele tem um
laudo e testemunhas de que a filha não está em plenas faculdades mentais.
— Você conhece os envolvidos? — Nina pergunta.
— Já ouvi o sobrenome antes. Campello, se não me engano.
— Campello? — Minha voz se eleva. — Não me diga que a filha é
Aisha.
— É. Essa mesma. Como você sabe?
— O irmão de Kira namora ela. O canalha do pai alegou que ela é
louca? Ele é o louco da história.
— Como assim? Explica melhor, Zayan.
— O pai dela mal conhece a filha. Foi só outro dia que ele apareceu
na vida dela. Conversei com Aisha, estive com ela. Se tem pessoa mais
lúcida que aquela mulher eu desconheço. — Será que Kira já sabe o que
está acontecendo?
— Mas ele tem laudo e testemunhas.
— E vocês, provavelmente, têm um colega de trabalho corrompido,
alguém que fechou os olhos para as incoerências dessas provas e permitiu
essa falcatrua ir para frente.
— Como você pode ter certeza disso, Zay? — Nina indaga com
seriedade.
— Eu sou bom em julgar caráter, Nina. Pode ter certeza. — Encaro
meu pai por longos segundos e ele estreita o olhar, perdido e confuso. —
Aprendi com a vida.
Pego uma pera na mesa e vou em direção à escada.
— Senta para tomar café, Zayan! — Nina pede.
— Não tenho tempo. Preciso ver como Kira está. — Subo os degraus
de dois em dois e vou até meu quarto.
Pego algumas peças de roupa e coloco em uma mochila, caminhando
para fora na sequência. Estou na ponta da escada quando ouço uma porta
abrir atrás de mim.
Travo, apertando o corrimão, sentindo minhas palmas comicharem.
— Bom dia, Zayan.
Olho por cima dos ombros e encontro ele parado no batente da porta,
com os braços cruzados e um sorriso maldito no rosto.
Estou travando uma batalha entre reagir e ignorar quando meu celular
apita.

Kira
Você vai passar aqui?
Quase posso sentir a ansiedade na mensagem dela, e por isso não
tenho dificuldade em decidir o que me importa mais.
— Ainda vou tirar esse sorriso do seu rosto, seu merda. — Aponto na
direção de Lorenzzo antes de sair.

Kira caminha para fora do prédio com a expressão mais azeda que já
vi naquele rostinho lindo e vem até mim.
— Ele viajou para a Alemanha! O idiota viajou para a Alemanha!
Abro a mão e ofereço duas balas de tutti frutti. Ela pega e coloca as
duas de uma vez na boca.
— Seu irmão?
— Tem algum outro idiota que eu conheço por acaso? “Viagem a
trabalho”. — Ela faz aspas no ar. — Ele acha que eu nasci ontem. Quem
viaja a trabalho sem comunicar ninguém antes? — Passa por mim e abre a
porta do carro, irada.
Dou a volta e vou até o lado do motorista. Entro e coloco o cinto,
assistindo ela se atrapalhar com o dela quando o puxa com irritação.
— Quer ajuda, linda?
— Não! — Ela luta mais algumas vezes antes de finalmente
conseguir afivelar o cinto e nós saímos rumo à faculdade. — Eu espero que
Aisha acabe com a raça de Dante no instante em que ele pisar em solo
italiano.
— Acho que ela tem outras preocupações no momento.
— Como assim?
— Não está sabendo da interdição?
— Interdição?
— Meu pai quem me contou. O pai dela reuniu provas para interditar
Aisha. Ela está sob a tutela dele.
— Tirou provas de onde?
— É possível fraudar essas coisas, Kira. Pagar gente para
testemunhar, comprar um laudo. Construir provas não é tão difícil.
— Esse cara é louco! Doido, Zayan. Aisha deve estar acabada. Deus,
que confusão! Espera... Como seu pai sabe?
— Ele trabalha no tribunal. E todo mundo ali sabe de tudo que
acontece. Ele me contou hoje de manhã. Achei que você já estava
informada.
— Não estava. Aisha deve estar desolada. E ainda por cima meu
irmão apronta essa. Será que ela sabia dessa viagem? Escuta o que estou te
dizendo, eu vou dar uns bons tapas em Dante quando o vir!
— Quer ir lá ver como ela está?
— Não. Deve estar uma loucura por lá hoje. Outro dia eu visito ela.
Vou mandar mensagem. — Pega o celular e começa a digitar
freneticamente.
Deixo ela concentrada no que está fazendo e dirijo em silêncio.
Ocupo minha mente enquanto tento elaborar uma forma de desmascarar
meu irmão.
Já passou da hora daquele monstro ter o que merece.

Seguro a mão dela, mantendo-a presa na minha coxa, quando Kira


tenta mais uma vez levá-la à boca. Foi assim a aula inteira. Ficou inquieta,
trocando mensagem com o primo da cunhada, Antônio.
A aula acaba, e eu, Carmela e Marco começamos a juntar o material.
Kira não tira os olhos do telefone e permanece sentada.
— Pulce — chamo a atenção dela. Kira ergue o olhar e olha em volta,
percebendo que todos estão saindo da sala.
Rapidamente ela joga os pertences na mochila e nós andamos juntos
até o refeitório.
— Tem certeza que quer ficar aqui, Kira? — pergunto quando ela mal
toca no almoço.
— Sim. Se eu ficar em casa é pior, vou me sentir sufocada.
— Certo.
Eu engato uma conversa com Marco e Mel e dou espaço para Kira,
para que ela se resolva. Quando está próximo do nosso horário, levantamos
e caminhamos até a biblioteca.
— Boa tarde, Matteo. — Ela passa por ele e vai até os armários onde
nossas mochilas ficam.
— Pode dar alguma tarefa fácil para ela hoje? Muita coisa aconteceu
— peço quando ela se afasta.
— O que houve? — Matt indaga com preocupação.
— Problemas familiares.
— E o ex?
— Se for esperto o suficiente, vai manter quilômetros de distância de
nós. Para o bem dele.
Ele acena positivamente e vou atrás de Kira.
Faz cerca de duas semanas desde que o irmão de Kira viajou e Aisha
enfrenta a interdição dos pais. As coisas parecem estar uma loucura na
família Campello, pelo que Kira disse.
Ela esteve lá um dia, para visitá-la, e disse que a ruiva estava bem
abatida.
Conversei com meu pai e eles parecem estar de olho no juiz que
assinou a interdição e nomeou o pai de Aisha, Luigi, como tutor. Pelo que
sei, estão tentando designar outro juiz para o caso e espero que dê certo.
Aisha é uma pessoa boa, não merece tudo que está passando.
— Tem certeza de que quer ir nessa viagem, pulguinha? Eu fico aqui
com você se quiser ficar.
Estamos eu, Carmela e Kira no quarto dela.
Carmela se mudou para cá há uma semana, depois de convencer os
pais a deixá-la morar com Kira. Eu busco as duas todos os dias e trago
também, e assim Kira nunca está sozinha.
— Quero, Zayzay. Não vou servir de nada ficando aqui. Preciso
distrair minha cabeça.
— Tudo bem. Você que escolhe.
Ela continua colocando as roupas na mala que levará para nossa
excursão da faculdade. Tira uma peça da gaveta e traz distraidamente para a
bolsa que está na cama. Coloca e volta para o guarda-roupa.
O pedaço de tecido que ela acabou de guardar chama minha atenção.
Não só a minha.
— O que é isso? Rasgaram sua calcinha ao meio, Kira? — Carmela
ergue a lingerie fina, assustada.
— Deixa isso aí, Carmela! — Ela vem envergonhada até nós e toma a
peça da mão da amiga, que ri. — Aisha me deu.
— E para que é isso?
— Calcinha, Carmela. Nunca viu?
— Isso não tapa metade da bunda, Kiki.
Caralho, essa conversa está fazendo minha imaginação voar longe!
Imaginar Kira vestida com essa peça minúscula e o rabo empinado
para mim... Com as marcas de tapa avermelhando a pele sedosa dela...
Porra, que cena deliciosa!
— Eu diria que isso é um instrumento de tortura para o pobre coitado
aqui, que está babando nessa coisa pequena. — Carmela me tira dos meus
pensamentos promíscuos, se divertindo às minhas custas. — Vocês sabem
que garotos e garotas não estarão no mesmo quarto, certo? E que é um
quarto para quatro pessoas? Você não vai se aproveitar disso daí — diz para
mim, apontando para o tecido rendado branco.
— E o que você está insinuando? — Kira indaga.
— Que as paredes do hotel não irão ouvir o que as paredes dessa casa
ouvem. Aliás, vocês poderiam poupar meus ouvidos em algum momento.
Não foi para isso que eu me mudei.
— Eu não faço tanto barulho — a Barbie protesta.
Sem credibilidade nenhuma, porque eu lembro muito bem de ter que
tapar a boca dela quando os gemidos de Kira saíram do controle.
— Claro que não — Carmela diz com ironia.
— Não precisa se preocupar. Eu e Zayan não vamos fazer
absolutamente nada nessa viagem.
— Ah, não? — Ergo uma sobrancelha em desafio.
— Não. Nós vamos nos comportar.
— Não tenha tanta certeza, pulguinha.
— Se eu estou dizendo que vamos, é porque vamos.
Vamos ver quanto a isso, pequena provocadora.
Sento em uma poltrona disponível do ônibus, depois de ter guardado
nossas malas no bagageiro. Encosto minha cabeça no banco, já prevendo
que irei dormir a viagem toda.
Isso porque dormi mal noite passada.
Já faz alguns dias que meu sono está uma bagunça. Isso acontece por
causa dos pesadelos, que passaram a ser frequentes. Eu sei que estou
evitando pensar sobre a possibilidade de encontrar Gregório de novo, mas
jogar esse medo para um canto da minha mente não faz ele deixar de existir.
Ele existe.
E me atormenta em meus sonhos.
Além disso, tem meu irmão, que ainda está nessa viagem inesperada e
não sabe quando volta. Ele manda mensagens curtas para mim e não explica
o que está acontecendo. Está me deixando ansiosa.
E tem Aisha, que está cada dia mais abatida, porque ainda está sob a
tutela do pai.
É um bolo de acontecimentos confusos e inquietantes que tem me
tirado a paz até mesmo quando deito a cabeça no travesseiro para dormir.
Por isso não quis abrir mão de vir nessa viagem. Eu só preciso
esquecer tudo isso e ter um momento de paz. Uma vazão para todo esse
caos.
— Quer? — Zayan me oferece um dos fones de ouvido dele, quando
se senta ao meu lado.
Eu pego o aparelho e coloco no ouvido. A escolha de música dele me
surpreende.
— Achei que tivesse dito que eles são uma banda morta — comento
com zombaria quando ouço as notas de You and I, de One Direction, tocar.
— Eles são. Mas as músicas estão bem vivas.
— Por acaso você virou fã?
— Sou seu fã, pulguinha. Nada mais. E se você gosta de ouvir música
de um grupo que está enterrado a sete palmos de terra, então irei ouvir com
você.
— Meu fã, Zayzay? — Sorrio tímida.
— Sim. — Ele retribui o sorriso.
— Mas quem diria que esse ser mal-humorado seria capaz de falar
coisas fofas! — Marco aparece no nosso campo de visão. Ajoelha na
poltrona da frente e gira o corpo para nos encarar.
— Você não tem que cuidar da sua vida, não? — Zay reclama, com o
humor ácido de volta.
— Eu estou excepcionalmente interessado em ouvir suas declarações,
Zay.
— Eu também. — Carmela, que está sentada ao lado de Marco,
também entra na conversa.
— Vocês dois podem cair fora.
— Então seu bom humor é reservado apenas para sua namorada?
— Sim — Zayan responde com tranquilidade.
— Zayan, eu não sou sua namorada — retruco.
— Linda, achei que tivéssemos entrado em um consenso naquele dia
que estivemos na casa dos seus pais.
— Isso não se resolve com uma negociação. Se faz um pedido, Zay.
Um que não ouvi sair da sua boca.
— Namora comigo, linda? — pede simplesmente.
Não consigo ignorar a forma como meu coração reage ao pedido,
errando o ritmo, descompassando, querendo voar longe.
Mas é mais forte que eu a ideia de dificultar a vida dele.
— Você não vai me pedir em namoro dentro de um ônibus de
excursão, Zayan. Vou fingir que não te vi fazer isso, para o seu próprio bem.
— Kira! — reclama.
— Me dê seu melhor. Eu mereço, depois de quase dois anos
suportando sua falta de educação.
— Quando estava na declaração era mais interessante — Marco
resmunga e volta a se sentar.
Carmela faz o mesmo.
— Só para te lembrar que você é uma grande mimada e estraga
prazeres. — Ele fecha o semblante e fica sério.
— Você aprendeu a gostar de mim mesmo assim.
— Quem disse?
— Estou mentindo?
— Sim.
— Não gosta de mim?
— Não.
— Está dizendo isso para me irritar — reclamo.
— Estou dizendo isso porque é a verdade.
— Acabou de me pedir em namoro. Ia namorar alguém que não
gosta, Zayan?
— Sim. Estou com você, na verdade, para te distrair e te fazer
esquecer de ser a irritante aluna número um. Assim irá mal nas provas e eu
serei consagrado o melhor da turma.
— É um babaca, sabe disso.
— E você é uma pirracenta mimada.
— Te odeio, Zayan Castelli.
— Não mais do que eu te odeio, pulguinha. Agora me dá um beijo.
Desaprendi a brigar com você. Fica mais perto, linda?
Ele é um grande cretino por fazer uma carinha de cachorro perdido
impossível de resistir.
Atendo ao pedido prontamente e deposito um beijo curto e calmo nos
lábios dele, que sorri vitorioso.
— Pronta para conhecer a Universidade de Bolonha? — Zayan
questiona.
— Sim. E você?
— Eu já conheço.
— Como assim conhece?
— Fiz meu primeiro semestre da graduação lá.
Dá de ombros antes de escolher uma nova música para ouvirmos.
— Kira, acorda. — Sinto Zayan cutucar meu ombro. — A gente já
chegou.
Coço os olhos para tentar abri-los e pisco repetidamente, me
espreguiçando.
— Quem olha esses traços delicados nem imagina como ronca alto,
Kira — Marco comenta, rindo, já de pé no corredor do ônibus.
— Não só ronca como baba igual um rottweiler. — Zayan entra na
brincadeira e eu dou um beliscão nele pela ousadia. — Cazzo! — xinga.
— Não ronco nem babo. — Arranho a garganta quando minha voz sai
rouca.
— Ronca sim, Kiki. — Carmela sai da poltrona para o corredor,
rindo.
— Seu posto de melhor amiga está sendo revisto. — Aponto na
direção dela, avisando.
— Dai, pulce.[26] — Zayan espera que eu me levante e vem logo atrás.
Pegamos nossas malas e vamos até o saguão do hotel, onde uma
funcionária da coordenação está distribuindo as chaves para os grupos que
irão dividir o quarto.
Eu e Carmela nos colocamos juntas e escolhemos uma outra dupla
para ficar com a gente.
— Kira. — Me viro quando Zayan me chama. Ele vem até mim e
cola os lábios nos meus em um beijo casto, me pegando fora de guarda. —
Até mais tarde, linda.
— Até, lindo. — Retribuo o beijo, sorrindo.
Me junto às meninas e subimos até nosso andar.
Distribuímos as camas e começamos a nos arrumar, já que a abertura
do simpósio é daqui algumas poucas horas.
— Esse lugar é lindo! — Olho admirada para as construções antigas
ao meu redor. — Por que você saiu daqui, Zay? Eu não conseguiria
abandonar uma faculdade dessas. — Andamos de mãos dadas pelo corredor
com enormes arcos.
Marco e Carmela estão logo na nossa frente e, junto com todo nosso
grupo, olham igualmente admirados para as construções enquanto
caminhamos na direção do auditório.
— Não tinha nada de interessante por aqui — ele explica
superficialmente.
— Te expulsaram daqui por ser um chato ranzinza insuportável?
— Esse sempre foi meu charme, linda. As pessoas me adoram por
isso.
— Eu não — digo em tom de divertimento.
— Você me adora por isso e mais algumas outras coisas. — Ele me
encara e pisca um olho, com um sorriso malicioso no rosto.
— Safado. — Gesticulo com os lábios e o sorriso dele se alarga.
Chegamos ao local onde o simpósio acontece e entramos na fila para
pegar o crachá de identificação. Depois de estarmos devidamente
identificados, entramos no enorme auditório. Vamos nós quatro em direção
a uma fileira mais próxima ao palco e nos sentamos, conversando
distraidamente sobre os palestrantes do dia.
Alguns minutos depois, o anfitrião do evento sobe no palco, e nos
silenciamos para prestar atenção nas horas seguintes.
— Eu gostei do primeiro dia. Estou animada para amanhã — Carmela
diz, quando caminhamos para fora do auditório, e nós concordamos com
um aceno.
Como a distância entre o hotel e a faculdade é curta, optamos por ir
caminhando junto com a maioria dos alunos da nossa universidade.
Por indicação de Zayan, nós quatro paramos em um restaurante no
meio do caminho para comer e em seguida retornar para onde estamos
hospedados. Foi um dia cansativo, e, por isso, tudo que eu quero é um
banho morno e dormir para aproveitar bem o dia de amanhã.
Quando chegamos ao hotel, me despeço de Zay e Marco e subo com
Carmela até o quarto.

No dia seguinte, andamos mais uma vez até a universidade, mas dessa
vez em uma direção diferente.
— Por que você se inscreveu para outra palestra, Zay? — pergunto
quando chegamos no ponto onde tomaremos caminhos opostos.
— Porque eu me interessei por outra temática, pulguinha. Você
deveria ter se inscrito para essa mesa-redonda. Garanto que iria aproveitar
muito mais.
— Não tenho tanta certeza.
— Quem quer ouvir falar sobre “As origens do Eu”?
— Eu. E Marco. — Aponto para o amigo dele, que se inscreveu no
mesmo evento que eu.
— Te garanto que vamos nos divertir muito mais. — Ele aponta para
si e Carmela, que irá acompanhar Zayan.
— Está certo. Ao meio-dia nós conversaremos sobre isso.
Nós nos despedimos e cada dupla toma seu rumo.
— Você e Zayan... Quem imaginaria? — Marco comenta, se
divertindo.
— Aparentemente vocês, já que ficaram incrivelmente satisfeitos e
felizes quando nos viram juntos.
— E tinha como não ficar? Parece que esperamos uma vida por isso.
— Como podem ter esperado tanto tempo se foi só outro dia que
começamos a dar sinais de que algo mais acontecia?
— Fale por você, Kiki. Zayan já estava insuportável. Onze de cada
dez palavras que saíam da boca dele eram seu nome.
— Porque ele me odiava.
— Claro — diz, sem dar nenhuma credibilidade à minha fala. — As
palavras dele eram bem odiosas — conclui com ironia.
— Como assim, Marco? O que ele falava de mim?
— Isso é algo que vai ter que perguntar a ele, Kira.
— Não pode começar um assunto e deixar ele inacabado assim. Me
conte essa história direito.
— Não tenho nada mais a dizer, Moretti.
— Não parece.
— Vamos logo ou perderemos o início da palestra. — Ele caminha
apressado e eu o acompanho.
Passo a manhã inteira tentando arrancar informações de Marco e
saber mais sobre o que Zayan andava dizendo de mim, mas o fiel escudeiro
do garoto ranzinza se nega a abrir a boca.

— Vamos dizer que foi esplêndido — sugiro assim que pisamos para
fora da sala que já estava me sufocando.
— Diremos que foi a melhor palestra que vimos na vida — Marco
concorda, igualmente cansado.
— Que mentira absurda vamos ter que contar.
— É isso ou dar razão a Zayan.
— Dar razão a Zayan não é uma escolha.
De longe, vejo ele e Carmela vindo de encontro a nós, conversando
calorosamente, o que indica que eles tiveram uma manhã muito mais
produtiva e animada do que a nossa.
— Então, como foi? — Zay indaga com um sorriso no rosto.
— Ótima! Foi a melhor palestra que já vimos em todo nosso tempo de
faculdade. — Coloco a melhor expressão de alegria que consigo no rosto.
— Vocês perderam, foi incrível! — Marco diz, com demasiada e falsa
empolgação.
— A melhor hora para mim foi quando ela... A palestrante falou do...
— Sim, essa parte foi indescritível! — Marco já não convence a
nenhum de nós. — E também teve aquela parte. Você lembra?
— Lembro, com certeza! Foi empolgante o final, quando ela contou
aquela história.
— Foi horrível, não foi? — Zayan “Sabe Tudo” Castelli diz com
prepotência na voz.
— Foi a pior palestra da vida deles, eu aposto. — Carmela segue a
deixa dele.
— Eu já disse que nossa amizade está sendo revista, não disse? —
questiono a ela, que ergue os braços, com um sorriso de quem está se
divertindo em sua face.
— Da próxima vez, é só me ouvir, pulguinha. — Zayan mexe na
ponta do meu cabelo.
— Como foi a de vocês? — pergunto quando começamos a caminhar
em busca de algum restaurante na faculdade.
— Foi incrivelmente...
— Zayan? Zayan Castelli? — Ele é interrompido quando uma voz
feminina chama o nome dele.
Nos viramos em busca da origem e uma morena de pele clara e olhos
azuis está com um sorriso aberto, o encarando de cima a baixo. Cutuca um
rapaz que está ao lado dela e ele encara Zay, igualmente empolgado.
— Caralho, não consigo acreditar nisso! Zayan Castelli nos
concedendo a honra de sua presença mais uma vez aqui em Bolonha! — Os
dois caminham até nós.
Ignorando completamente a minha mão que está entrelaçada na de
Zayan, o projeto de Megan Fox puxa ele para um abraço, e ele desfaz nosso
toque para retribuir o gesto. Se cumprimentam animadamente.
— Rosalia, Dario! Que bom ver vocês por aqui — Zayan diz. —
Esses são Carmela, Marco e Kira. Estudamos juntos em Florença.
Encaro Zayan sem disfarçar, para que ele se vire e eu possa ter uma
conversinha silenciosa com ele sobre essa história de “estudamos juntos”.
Mas, irritantemente, a força do meu olhar sobre ele é ignorada.
Marco, que está à minha frente, parece igualmente incomodado e está
tentando uma comunicação telepática também. Sem sucesso, já que os
olhos de Castelli estão na dupla de conhecidos.
— Kira, Carmela e Marco, esses são Rosalia e Dario. Estudamos
juntos aqui, nessa universidade.
— Ciao, piacere di conoscerti.[27] — Construo um sorriso singelo e os
cumprimento com um aceno.
— Prazer — Rosalia e Dario dizem em uníssono.
Ninguém estende a mão.
— Você deveria ter dito que estava vindo, Zay! Teríamos preparado
uma recepção melhor. Sabe que aquela sala não foi mais a mesma sem
você.
— Nós sentimos falta das provocações diárias entre vocês dois. —
Dario ri, apontando para Rosalia e Zayan.
Que história é essa? Provocações diárias? Como assim?
Esse cretino! Achei que essa era uma coisa nossa, mas aparentemente
ele sai provocando qualquer uma por aí.
— Você nunca deixava barato. — Zayan ri.
— Então, o que vai fazer agora? Podemos almoçar naquele
restaurante que costumávamos ir. — Rosalia enlaça o braço no de Zayan e
sai puxando ele, com Dario na cola.
Assisto a cena toda boquiaberta com a ousadia dos três. Zayan parece
recordar que não estava sozinho e olha para trás. Tem a audácia de acenar
com a cabeça para que a gente os siga. Somos patetas o suficiente para
obedecer a instrução dele e vamos os três, eu, Carmela e Marco, atrás do
outro trio.
— Que porra é essa? — Marco comenta baixo quando eles seguem
conversando animadamente na nossa frente.
— Não sei, parece que entrei no multiverso Zayan — reclamo, de
braços cruzados e testa franzida, analisando a cena com irritação.
— Vocês são dois ciumentos sem causa! — Carmela diz com
zombaria.
— Choverá vinho no dia que eu sentir ciúmes de Zayan Castelli — eu
e Marco falamos juntos.
— Você ouviu o que ele falou? Que ele e a garota viviam se
provocando?! — digo sem disfarçar minha indignação.
— E aquele tapinha no ombro que o Dario deu nele? Achei que era
meu cumprimento oficial com ele — Marco resmunga.
Vamos atrás do trio até eles chegarem no restaurante mencionado, e
entramos na fila para fazer nosso pedido. Esperamos ficar pronto e pegamos
nossos pratos. Nos direcionamos até uma mesa de canto, mas só tem quatro
lugares.
Nem me dou o trabalho de procurar outra mesa com mais lugares para
caber nós seis. Deixo o trio de Bolonha sentar e vou até uma mesa mais ao
fundo. Carmela e Marco me acompanham.
— Kira! — Zayan chama e eu me viro para ele.
— Tudo bem, Zayan. Está cheio aqui. Pode ficar aí.
Volto a caminhar e nós três nos sentamos.
— Ele só está animado por encontrar conhecidos, Kiki.
— Eu sei, Carmela. Não disse nada. — Enrolo o macarrão no garfo e
levo até a boca.
— O bico enorme no seu rosto diz muito. — Há um toque de
repreensão na voz dela.
— Não posso ficar chateada por ele ter nos ignorado?
— Ele não ignorou.
— Mandar a gente seguir ele com um gesto de cabeça não é
comunicação para mim.
— Deixa ele, Kira.
— Estou deixando.
E eu estou mesmo. Não vou tirar a alegria de Zayan de encontrar
velhos amigos. Mas isso não quer dizer que eu vou saltitar de alegria por aí.
A verdade é que me incomodou saber que ele tinha a mesma relação
de implicância com a garota. Apostaria tudo que, no fim, os dois chegaram
ao mesmo ponto que nós dois. É incômodo pensar que talvez o que estamos
vivendo só seja único na minha cabeça.
Sim, ele me pediu em namoro. Sim, eu recusei. Mas por causa dessa
recusa, ele decide que eu não existo?
Por mim ele que se divirta para lá com essa dupla.

Nas palestras da tarde, eu e Marco acabamos fazendo companhia um


ao outro mais uma vez, e começo a entender que temos muito em comum
no que diz respeito ao campo de estudo do nosso interesse.
Temos mais sorte com os palestrantes da vez. Principalmente o
último, que é um professor de uma universidade no Brasil, referência em
pesquisa no campo do psicodrama. Ouço atentamente cada palavra que sai
da boca dele, encantada com as possibilidades de pesquisa que ele cita.
— Tivemos mais sorte dessa vez — Marco verbaliza meu pensamento
anterior, quando a palestra é encerrada.
— Também acho.
Nós caminhamos até a saída e começamos a discutir nossas visões e
opiniões sobre tudo que assistimos no dia. Quando encontro Zayan e
Carmela, eles estão com a dupla de fãs Castelli e engulo minha irritação
quando vejo Rosalia ainda de braço dado com ele.
— Então? Mais uma palestra incrível? — Carmela diz com zombaria.
— Dessa vez, sim. Aprendemos muito sobre a introdução do processo
de dramatização na psicoterapia.
— E ouvi dizer que teremos um debate final entre diferentes
universidades. Parece que os ganhadores vão ter a chance de serem
entrevistados por um dos professores que vieram de fora. Não é garantia de
nada, mas pelo menos poderão ter o contato de alguém dentro da
universidade para um possível mestrado — Marco diz.
— É, nós também ouvimos sobre isso — Rosalia é quem responde.
— Então, Zay, está pronto para reviver mais um debate caloroso? — Ela
caminha com os dedos pelo braço dele.
Eu sou madura. Não tenho ciúmes. Eu sou madura. Não tenho
ciúmes. Eu sou madura. Não tenho ciúmes.
— Primeiro, você tem que chegar lá. — Ele sorri.
Não sou madura. Eu tenho ciúmes.
— Isso quem vai decidir é o representante do corpo docente de cada
universidade, certo? — Dario indaga.
— Sim. Mas eu nem crio esperanças de estar lá. Todos sabemos bem
quem serão nossos representantes — Carmela suspira.
— Quem são? — Rosalia pergunta.
— Zayan — Marco responde.
— Sem sombra de dúvidas. — Megan Fox jovem adulta sorri. — E
quem será sua dupla, Zay?
— A gente pode ir agora? Estou com fome — interrompo quando ele
abre a boca para responder.
Se serei eu ou não, não importa.
Não quero pensar em debates agora, minha cabeça está cheia depois
do dia de hoje. Zayan me encara confuso e eu dou de ombros, dispensando
o questionamento silencioso dele.
— Eu também, vamos indo — Marco diz, olhando zangado para
Dario, que baba em Zayan como um filhotinho de cachorro.
— Podem ir, eu alcanço vocês — Zayan responde, já puxando os
amigos para o canto oposto.
Reviro os olhos quando já estão de costas e me viro, caminhando para
a saída com Marco e Carmela ao meu lado.
— Então, o que os dois ciumentos querem fazer agora?
— Não estou com ciúmes, Carmela. Esquece isso — Marco protesta
fervorosamente.
— Hey, você! — Paro o primeiro rapaz que imagino ser um aluno
daqui. Ele me encara confuso. — O que tem de bom para fazer pelas
redondezas que envolva álcool? — questiono.
— Hum... Tem um pub inglês aqui perto. Muitos alunos costumam ir
para lá. — Ele nos dá as instruções e eu agradeço.
— Vamos? — Carmela e Marco acenam que sim e tomamos o rumo
que o garoto indicou.
Caminhamos cerca de dez minutos até chegar no local de fachada
medieval e temática inglesa. Entramos no lugar que está cheio e vamos até
o bar nos fundos.
— Três cervejas, por favor. — Carmela faz o pedido para o barman
disponível.
Ele enche os copos com cerveja gelada e nos entrega.
— Um brinde. — Ergo o copo e eles fazem o mesmo.
Provo um gole da bebida que desce refrescante. E então começo a
virar de uma vez.
— Se prepare, Marco. — Ouço Carmela dizer. — Está prestes a
conhecer a versão “Quer ser meu amigo?” de Kira. — Termino de beber a
primeira rodada de uma só vez.
— Como assim? — ele questiona, confuso.
— Kira adora fazer novos amigos quando está embriagada. Não é,
Kiki?
— Quem disse que eu vou me embriagar, Mel? — Balanço o
recipiente vazio no ar, animada, pedindo mais uma dose para o garçom.

Fecho o olho esquerdo e balanço a mão para frente e para trás,


ajustando a mira. Arremesso o dardo com toda força que consigo e vejo que
acerto um ponto. Só não sei dizer bem qual. Mas eu acerto, e é o que
importa para mim e meus torcedores.
Por isso, ergo os braços e pulo, gritando animada, e todos os presentes
que me assistem jogar celebram comigo.
— Kira win! — berro, e eles emitem sons de comemoração.
Passo por todos eles como fiz nas últimas cinco rodadas, batendo nas
palmas estendidas, tal qual um jogador que cumprimenta o time adversário
quando entra em campo.
Faço uma pequena reverência, abaixando o tronco, e quando subo,
tudo roda. Tomo alguns segundos para me recuperar e caminho até meus
dois amigos que ainda estão escorados no balcão do bar.
— Agora eu entendi o “Quer ser meu amigo?” — Marco diz para
Carmela.
Pouso a cabeça no ombro dele, para que entenda que gosto muito da
companhia dele.
— Quer ser meu amigo, Marco? Marcooooooo! Você tem um bom
nome.
— Achei que já fôssemos amigos.
— Nós somos. Só não vamos ser mais amigos daquele ingrato. —
Encaro Marco, para ver se ele está comigo nessa, e ele acena, concordando.
— Dois ciumentos sem causa. — Carmela ri.
— Choverá vinho no dia em que...
Eu e Marco somos interrompidos quando ouvimos um barulho de
rolha estourando e logo em seguida respingos de champanhe nos atingem.
O barman serve taças que estão na bancada, terminando de preparar a
bebida de um grupo de garotas que parecem celebrar algo.
— Kira, não foi você que disse que seu irmão te explicou que
champanhe também é um tipo de vinho? — Mel pergunta com um sorriso
maléfico no rosto. — Então... Choverá vinho no dia em que...
— Não enche, Mel! — Pego o copo na minha frente e tomo o restante
da cerveja. — Vou limpar isso daqui. — Aponto para os respingos na minha
blusa.
Vou em direção ao banheiro feminino e entro. Abro uma torneira e
limpo e seco a minha camisa e o braço. Depois disso, saio do banheiro e
volto para o balcão.
Já tem um copo cheio à minha disposição. Pego e viro metade de uma
só vez.
— Você deveria pegar mais leve — Mel avisa.
— Deixa a garota — Marco protesta a meu favor e nós brindamos em
cumplicidade.
— Obrigada, amigo Marco. — Olho para frente e assobio, chamando
a atenção do barman. Ele vem até mim. — Amigo barman, você vai colocar
uma música mais animada para a gente, não vai?
— Qual música quer ouvir, amiga Kira? — Ele sorri.
— Nós já somos amigos? — Sorrio de volta. — ZITTI E BUONI, per
favore[28].
— Seu pedido é uma ordem. — O barman se afasta e some de vista.
Retorna assim que começo a ouvir os primeiros acordes da música.
— Amigo Mattia! — Aceno para o garoto que conheci há alguns
minutos. Ele balança a cabeça, animado com a música. — Essa é para você.
— Acho que foi ele mesmo que disse que era fã da banda.
Ele acena de volta, animado, e me convida a aproximar. Eu vou e
paro na frente dele. Nós fechamos a mão, simulando um microfone, e
damos pulinhos no lugar, sacudindo a cabeça.

Sono fuori di testa, ma diverso da loro


E tu sei fuori di testa, ma diversa da loro[29]

Antes que eu perceba, todos ao nosso redor começam a acompanhar a


letra e cantar com nós dois, que já esquecemos a inibição e começamos a
pular animados e berrar até sentir a garganta queimar.
A pequena multidão ao nosso redor berra e pula com igual excitação,
cantando como se nossa vida dependesse de terminar a música juntos.

Parla la gente purtroppo


Parla, non sa di che cosa parla
Tu portami dove sto a galla
Che qui mi manca l'aria[30]
Mattia sacode a cabeça, animado, e eu acompanho, sentindo os fios
do meu cabelo grudando no meu rosto suado.

Noi siamo diversi da loro[31]

Cantamos a última frase juntos e nossos companheiros de canto e


música batem palmas e assobiam. Assobio como eles e faço uma pequena
reverência para meu companheiro de palco.
Quando levanto o tronco, algo chama minha atenção do outro lado do
bar.
Eu conheço esse rostinho bonito e essa expressão azeda de algum
lugar.
Ela olha para mim e estreita o olhar. Parece tentar me reconhecer. Tira
o cabelo da frente do rosto, e quando me reconhece, arregala os olhos,
assustada. Em seguida, coloca um sorriso travesso nos lábios e tenta fugir.
Em um bar lotado como esse, é impossível fugir.
Caminho até Kira, que tenta se espremer no meio do caos de pessoas.
Ela não é rápida o suficiente, e quando chega em uma parte mais vazia,
seguro o pulso dela e trago o corpo dela para mim.
— Por que está fugindo, pulguinha?
— Não estou fugindo. Estou indo para longe de você.
— Por quê?
— Cadê seus amigos, Zayan Castelli? — Cruza os braços, petulante.
— Marco e Carmela estão logo ali. — Aponto para onde os dois
estão.
— Seus outros amigos.
— Está com ciúmes, linda?
— Não.
— Esse biquinho aqui me conta outra coisa. — Toco com o indicador
o lábio dela.
E como há muito tempo eu não via, as bochechas e o nariz de Kira
estão vermelhos quando se enfurece com algo que eu disse.
— Não estou. Pode me soltar?
— Vai para longe de mim?
— O mais longe que eu conseguir.
— Então não.
— Eu tenho muitos amigos aqui, Zayan Castelli. Quer que eu grite
para eles me ajudarem?
— Claro que não, Kira. — Solto a cintura dela, irritado.
Kira começa a caminhar na direção da saída, pisando duro. Reviro os
olhos para mim mesmo e vou até Carmela e Marco. Entrego algumas notas
para Mel, que parece estar mais sóbria.
— Kira e eu estamos indo embora — aviso, e ela acena, indicando
que entendeu.
Vou até a porta onde a pequena mimada acabou de passar e sigo ela,
que caminha na direção do hotel.
— Qual o seu problema, Kira? Se sentiu ciúmes pode me falar. Não
vou te julgar. — Tento segurar o cotovelo dela para que pare, mas ela
desvencilha do toque e continua caminhando.
— Não tenho nenhum problema, Zayan Castelli. Estou ótima.
— Por que está usando meu nome e sobrenome?
— Não posso?
— Pode, Kira Matilda Moretti.
— Não te autorizei a usar Matilda.
— Eu já usei antes.
— Sem minha autorização.
— Desculpa.
— Pelo que está pedindo desculpa?
— Não sei, mas você está irritada.
— Como pede desculpa sem saber pelo que pede desculpa? Isso não
faz sentido.
— Pode conversar direito comigo? Eu quero entender o que
aconteceu.
— Não tenho nada para conversar.
— Facilita nossa vida, Kira. Eu não tenho bola de cristal.
— Não tenho nada para conversar, Zayan Castelli.
— Que merda de Zayan Castelli o quê, garota? Zayzay para você!
— Te chamo como eu quiser, Zayan Castelli.
— Kira...
— Não quero conversar, Zayan! Não entendeu?
Eu fico calado, sentindo uma irritação que não sentia há tempos
quando diz respeito à petulância da garota. Caminhamos em silêncio até
chegar ao hotel e vamos até o elevador. Ela aperta repetidamente o botão
para chamar a máquina, irritada.
— Apertar mais vezes faz ele transportar para o térreo? — provoco.
— Não estou falando com você.
— Engraçado, porque ouvi um som sair da sua boca.
— Estou falando com o meu amigo imaginário.
— Agora falou comigo.
— Ainda é com ele. — A porta do elevador se abre.
Esperamos os hóspedes desocuparem a máquina e entramos.
Ela leva a mão para os botões, mas eu impeço, segurando o punho
dela e afastando. Aperto o botão do andar para onde vamos e ela protesta.
— Não me perturbe mais hoje, Zayan Castelli! — Tenta apertar de
novo, mas afasto a mão dela mais uma vez do painel. Ela emite um
grunhido.
— Vamos para o décimo andar, pulguinha. E pare de tentar apertar
outro botão.
— Não tenho nada para fazer no seu quarto.
— Nosso quarto.
— Como é?
— Nosso, criatura mimada e pirracenta. Levei mais tempo para
chegar no bar, porque primeiro você não me respondeu onde estava, então
tive que esperar a boa vontade de Carmela. Segundo, porque estava
trocando suas malas de lugar.
— Como assim? — Me encara perdida.
— Surpresa, pulguinha. Temos um quarto só para nós — respondo
sem nenhuma animação.
— Você por acaso é rico, Zayan Castelli? O que seu pai faz da vida?
— Não importa, Kira. — Dispenso a pergunta.
O elevador para no último andar e eu desço. A petulante, no entanto,
permanece na máquina.
— Sempre dificultando minha vida. — Vou até ela, que tenta fazer
com que a porta se feche, apertando com fúria o botão. Uma tentativa
malsucedida.
Seguro a porta quando começa a fechar e aponto para o corredor.
— Sabe como funciona, não sabe, linda? Ou você sai com as próprias
pernas ou no meu ombro.
— Nenhum dos dois, Zayan Castelli.
Eu dei uma chance e ela decidiu me irritar mais uma vez com “Zayan
Castelli”, por isso faço do meu jeito. Abaixo e seguro as pernas dela,
colocando Kira no meu ombro e caminhando com ela para fora do elevador.
— Que merda, Zayan! Me coloca no chão agora!
— Vai acordar os hóspedes desse jeito.
— Ótimo, porque assim eles virão me salvar!
Paro na frente da porta e pego a chave no bolso. Destranco e entro.
Tranco de novo antes de colocá-la no chão.
— Eu odeio você!
— Não, não odeia.
— Odeio sim! Eu te odeio, te odeio, te odeio! — Ela se aproxima até
o nariz tocar o meu.
A respiração sai pesada quando nossos lábios roçam um no outro. Os
olhos castanhos dela encontram os meus e brilham. De fúria e desejo.
— E é esse ódio que vai te fazer me beijar agora, linda? — provoco
com um sorriso maldoso no rosto.
— Não vou te beijar.
Mas ela não se afasta.
Não faço absolutamente nada, apenas permito que ela fique perto.
Não me movimento, mal respiro, somente encaro Kira, assistindo os
sentimentos mais diversos passarem por ela.
Na roda da sorte, eu sou o afortunado quando, dentre todas as
sensações que a toma, eu percebo que o desejo permanece.
E então ela cede.
— Odeio você, Zayan Castelli, e é esse ódio que me fará te beijar.
Eu sinto a ira dela faiscar no instante em que ela toma meus lábios
com ardor. Começamos a duelar agora no nosso beijo, tentando provar
quem tem mais sede de quem.
As mãos dela escorregam pelo meu corpo, enquanto eu busco
memorizar cada parte dela com meu toque.
Seguro a cintura dela e pressiono Kira contra a parede. Espalmo a
mão no rosto dela e deslizo até a nuca, a mantendo sob meu domínio
quando a seguro com firmeza.
A atrevida logo mostra suas intenções quando ergue uma perna e
enlaça em minha coxa e quadril, pedindo silenciosamente que eu a puxe
para cima, para que nossos corpos se encaixem melhor.
É tentador.
Mas não podemos fazer isso quando ela está em um estado de
consciência alterado, depois de ter bebido um pouco além da conta.
E é por isso que eu me afasto, sabendo o que virá a seguir.
— O que você pensa que está fazendo? — pergunta, ofegante. Segura
o colarinho da minha blusa e tenta me puxar para perto, mas a mantenho
afastada.
— Me odeie quanto quiser, mas não vou fazer nada com você agora.
Não está bem. Está sensível e provavelmente bêbada. — Acendo as luzes e
vou até a mala dela, que eu trouxe com a ajuda das integrantes do quarto
que ela estava.
— Zayan!
— Kira. — Pego uma muda de roupas para ela e levo até a pia do
banheiro.
— Você está terrível hoje. Um chato, insuportável! — Ela ignora as
roupas que eu separei e pega outras, vindo até o banheiro.
— Certo. — Vou até a mala mais uma vez e pego o nécessaire com a
escova e pasta de dente. Coloco sobre a pia e saio, fechando a porta.
Caminho até a minha mala e pego uma calça e camisa confortável.
Ouço o barulho do chuveiro ser ligado e espero. Minutos depois, ela abre a
porta, com uma toalha enrolada no corpo e outra no cabelo.
— Esqueceu minha calcinha. — Sorri, como se me desafiasse.
Eu vou até a mala dela e procuro pela peça íntima. Leva um tempo,
até que encontro um tecido rendado vermelho tão pequeno quanto o branco
que eu a vi colocar na bolsa.
Entrego para ela e Kira não se dá o trabalho de fechar a porta de
novo. Ainda com a toalha no corpo, ela levanta um pé, depois o outro, e se
veste.
Fecho os olhos, para evitar ver essa tentação maldita, e a ouço rir.
Volto para o quarto e escondo minha cara no travesseiro, pensando
onde é que eu estava com a cabeça quando decidi que me oferecer para essa
pequena provocadora era uma boa ideia.
Ouço os sons dela vindos do banheiro e o secador é ligado. Um tempo
depois, o aparelho é desligado e a porta se abre.
— Pode abrir os olhos, Zayan Castelli. Já estou vestida.
— Por que tenho a sensação de que não está?
— Estou.
Abro os olhos.
— Mentirosa. — Ela está com uma blusa branca e larga no corpo, que
mal cobre a bunda.
Se Kira esticar as mãos para cima, a blusa subirá o suficiente para eu
ver aquele pedaço de pano dos demônios enfiado no traseiro dela.
Tortura. Isso é tortura.
— Estou vestida.
Caminha até a cama de casal e joga o corpo, deitando de barriga para
baixo, mexendo no telefone. E lá está o tecido vermelho minúsculo dando
as caras, para me atormentar um pouco mais.
Desvio o olhar rapidamente, ciente de que tudo que eu preciso agora é
um banho demorado, e vou até o banheiro.
— Deixa a porta aberta — ela comanda.
— Eu disse que já conheço seus truques. Acha que eu não sei o que
quer fazer?
— Não vou invadir seu banho.
— Então não tem motivo para deixar a porta aberta.
— Acha que eu não sei o que você vai fazer? — Ela tira os olhos do
celular e me encara. O olhar de Kira é perverso. — Não vai se tocar se não
for me tocar, Zayan Castelli. Porta aberta.
— Isso é uma ordem, Kira Moretti?
— Isso é uma escolha sua. Ou deixa essa porta aberta ou pode
esquecer sexo por um mês. Sexo comigo, no caso.
— E com quem mais eu faria, Kira? — devolvo com irritação.
— Não sei. — Volta a prestar atenção no telefone.
— O que está insinuando?
— Nada. Já dei meu aviso. — Faz um gesto de dispensa no ar.
Atrevida.
Entro no banheiro pronto para desafiá-la, mas quando coloco a mão
na maçaneta, desisto.
Não enlouqueci a ponto de assisti-la cumprir com a palavra.
A maldita ri quando me vê recuar, e eu entro no chuveiro, irritado.
Quando saio, Kira já deixou o telefone de lado e está virada para a
parede oposta, com a bunda apontada para mim. Provocadora para um
caralho!
Tomo três respirações profundas antes de ir até a cama e deitar do
lado contrário a ela.
— Zayzay, me abraça — pede inocentemente.
— Então agora eu sou Zayzay? — Ajusto o travesseiro sem virar para
ela.
— Por favor — suplica.
Não cedo. Tenho mais orgulho do que isso.
— Zay?
Mas que merda! Por que estou imaginando com exatidão o biquinho
que ela tem nos lábios agora? Por que ele me comove assim?
— Provocadora e mimada dos infernos!
Giro o corpo e passo o braço pelo pescoço dela. Pouso a mão na
barriga e trago o corpo dela para mim.
Engulo com dificuldade o gemido que quase me escapa quando ela
rebola a bunda contra mim, se ajustando.
— Seja uma boa garota, linda. Por favor. — Abraço Kira e beijo o
topo da cabeça dela.
— Sempre sou. — Imagino o sorriso travesso dela quando responde.
Me ocupo de acariciar os braços dela, até sentir Kira adormecer
lentamente.

Acordo com o barulho da pia vindo do banheiro. Noto o vazio ao lado


da cama e pisco, abrindo os olhos.
— Kira?
— Sim? — Ela aparece na porta. Não há nenhum sinal de ressaca na
expressão dela. Parece estar de ótimo humor, a pulguinha.
— Por que você está de pé? — resmungo.
— Como assim? Eu acordei, coloquei minhas pernas no chão e ergui
meu corpo. Não é assim que nosso corpo funciona?
— Sem atrevimento agora. — Me sento, tentando entender que horas
são. Pego meu telefone e checo. — Ainda falta uma hora para o horário do
café da manhã. Que caralhos você está fazendo acordada? — Esfrego os
olhos e me levanto, indo até o banheiro.
Pego-a pelo ombro e a empurro para fora do cômodo.
— E eu achei que não tinha como seu humor ficar pior — ela sai
reclamando e fecho a porta.
Não respondo, porque meu corpo sequer despertou.
Alivio minha bexiga, lavo as mãos e o rosto e abro a porta, tendo um
déjà-vu da noite anterior.
— Você está fazendo de propósito! — exclamo quando encontro o
rabo empinado na minha direção.
Ela ergue o tronco depois de pegar algo na mala e a blusa abaixa,
tapando a calcinha.
— Do que está falando? — Se vira para mim, piscando os olhos
candidamente.
— Eu conheço você, criatura perversa. — Me aproximo, pegando
Kira pela cintura.
Ela arfa quando a trago de encontro a mim. Pego o vestido que está
nas mãos dela e jogo de volta na mala.
— Te disse que ia te fazer pagar por cada provocação, não disse? —
Ela engole em seco e acena que sim. Afasto o cabelo dela do pescoço e
aspiro o cheiro de Kira. Delicioso. — E como eu disse que faria isso?
— Minha... Humm... — geme quando beijo e chupo a região sensível.
— Minha bunda. Ia punir minha bunda.
— Exatamente. — Desço a mão até o pequeno traseiro e acaricio. Ela
se agita. — Me fala que você quer isso, linda... Preciso ouvir.
— Eu qu-quero. — Aperto a carne macia e ela gagueja.
— Quer o quê?
— Quero sentir sua punição arder em minha bunda. — Garota
infernal.
Não existe juízo para mim quando diz respeito a ela. Kira me tira a
razão e faz de mim um grande depravado.
— Vou te dar o que quer, Barbie. — Seguro seu quadril e a giro. —
Se segura no colchão.
Ela abaixa o tronco e faz o que mando.
Subo a camisa branca até que esteja na cintura. A imagem que tenho à
minha frente é certamente mais profana e atordoadora do que a que minha
imaginação criou.
A calcinha é quase um fio rendado. Pego a barra da peça vermelha e
puxo um pouco mais para cima, deixando-a enterrada entre as nádegas.
Aliso a pele macia e ela começa a ficar inquieta e projetar o corpo
para frente. Seguro o quadril, a mantendo no lugar.
— Se quiser que eu pare é só falar. Vamos até dez, provocadora.
— Sim, Zayan Castelli. — Ela atiça e o primeiro tapa já chega
estalando alto.
Kira geme e se contrai. Passo a mão com suavidade na região e ela
relaxa.
— Tem que se conter, Barbie. Não quer acordar os hóspedes, certo?
Abro a mão e afasto, voltando a golpear a região com um pouco mais
de força, fazendo minha palma formigar. Outro gemido que mistura dor e
prazer escapa dela, dessa vez mais alto.
— A boca, Kira. Te mandei ficar quietinha. Entendeu? — Ela acena
que sim.
Dessa vez, decido testar Kira e provocar para ver se ela consegue
mesmo se conter. Abro mais uma vez todos os dedos e desfiro um tapa na
nádega direita e outro na esquerda de uma só vez.
Ela sufoca o grito e aperta o lençol com fissura. A respiração acelera.
Passeio com a mão pela pele avermelhada, me sentindo um grande
puto desgraçado por apreciar a quentura da região depois dos golpes.
— Quer que eu pare? — questiono.
— Não. — E então estapeio a bunda dela mais uma vez.
E outra vez. E mais uma, levando-a à beira do descontrole, quando
tenta ficar quieta.
O lençol está amarrotado e retorcido sobre os dedos de Kira.
Gotículas de suor brotam da pele bronzeada e eu aprecio em demasia a
visão que tenho.
Ela gira o pescoço e me encara por sobre os ombros. Os lábios estão
inchados. Provavelmente estavam sendo pressionados pelos dentes dela,
enquanto tentava se silenciar. Os olhos lacrimejam.
E ainda assim há um sorriso devasso no rosto inocente e angelical.
— Não sabe contar, Zayzay? Faltam três.
E ela tem o que pede.
Um.
Dois.
Três.
Minhas palmas ardem e meu corpo reage com satisfação. Meu
coração bate acelerado e meu pau está duro, pronto para se enfiar na minha
garota.
Minha.
De mais ninguém. Ela não vai se render a mais ninguém. Porque eu
vou trabalhar incansavelmente dia e noite para garantir que seja eu o único
que tocou Kira Moretti. Porque ela me condenou a querer só ela. A desejar
somente ela. No instante em que me beijou naquele almoxarifado, ela me
fez cair em desgraça, me fazendo saber que nunca haverá espaço para mais
ninguém na minha vida.
— Levanta, linda.
Ela faz o que peço e fica de frente para mim. O rosto está suado e eu
acaricio gentilmente a face dela.
— O que você quer, Kira? — questiono, ofegante, sendo tomado pela
adrenalina.
— Você, Zayan.
Sou seu há bastante tempo, Moretti.
Puxo a nuca dela com firmeza e beijo Kira, sentindo cada partícula
minha queimar de desejo e ânsia.
Tenho pressa. Tenho necessidade de fodê-la. Meu corpo pede a cada
segundo para que eu me enterre em Kira, e tudo que sei fazer é querer ela.
Cada vez mais.
— Deita e abre as pernas. — Aponto para o centro da cama. — Vou
cuidar de você.
Ela engatinha sobre a cama e deita. Ajoelho na frente dela e passo os
braços por trás das coxas de Kira, puxando-a para a borda do colchão.
É inexplicável a forma como meu corpo reage a ela. Já transamos
tantas vezes e sempre parece a primeira para mim. O nervosismo me atinge,
porque tudo que eu quero é que ela se satisfaça. Assistiria essa garota gozar
por um dia inteiro, se fosse eu o causador de todos os orgasmos.
Uso a mão direita para afastar a calcinha e encontro a boceta dela
tomada pela excitação.
— Se eu soubesse que gostava tanto de uns tapas tinha feito antes,
linda.
Passo a língua por toda extensão e sugo o clitóris com avidez,
arrancando um gemido alto dela. Subo e desço com a ponta da língua,
explorando cada parte da vagina sensível e quente. Pincelo para cima e para
baixo e a ouço arfar a cada toque.
É insana a forma como me perco de mim mesmo, sendo conduzido
somente por ela. Pelos sons dela. Pelas obscenidades que saem da boca de
Kira. Todo meu corpo arrepia pela euforia que me toma quando ela grita por
mim.
Pressiono a língua com firmeza e circundo o clitóris, para ouvir mais
uma vez meu nome. Faço uma resolução de chupar Kira até que ela decore
meu nome. Até que ela entenda que ninguém cuida dela como eu.
A ponta da minha língua passeia pelos lábios internos e a penetra.
— Ohhhh, Zayan!
Ela tenta fechar a perna quando sugo o clitóris e deslizo com a língua
por ele. Escorrego as mãos pelas coxas e aperto, as mantendo abertas.
Chupo e lambo, sem me afastar, até perceber que ela se contorce
desesperadamente.
Um gemido alto, indecente e desesperado sai dela quando goza.
Continuo chupando até que o corpo de Kira estremece por completo.
Sinto os dedos dela se fecharem em meu couro cabeludo e ela afasta
minha boca da boceta encharcada.
Escalo pelo colchão até chegar na boca dela e Kira me toma para um
beijo sôfrego. Eu posso sentir a ansiedade vir dela, mesmo que não entenda
o que a deixa assim.
As unhas afiadas deixam um rastro abrasador na minha pele quando
Kira se desfaz da minha camisa. Prende as coxas no meu quadril e com os
calcanhares me puxa para perto. Gira o corpo e permito que ela me guie até
estar sentada em mim.
Eu me sento e termino de despi-la, deixando Kira apenas com a
maldita calcinha vermelha no corpo.
Seguro as costas dela e aproximo o tronco. Abocanho o seio e puxo o
mamilo com os dentes. Kira tomba a cabeça para trás e geme, acanhada.
Começa a se esfregar em mim quando sugo o bico com gana. Acaricio o
outro seio com os dedos e ela afunda as unhas nos meus ombros em
resposta.
Arrisco olhar para cima apenas para ser sugado mais para dentro do
paraíso sensorial que ela me leva. Dessa vez, ela agracia minha visão com a
expressão de êxtase que toma a face dela. Está absorta, entregue, do jeito
que sempre sonhei em vê-la.
Mamo cada seio farto com igual ferocidade, assistindo-a se dissolver
e se entregar aos toques.
— Zay...
Mordisco a aréola e puxo, e ela choraminga.
E então ela segura meus ombros e me afasta. A encaro confuso. Ela
não diz nada. Apenas fica de pé na minha frente, para logo em seguida se
ajoelhar.
— Kira?
— Vou chupar você. Me ensina como você gosta, Zayzay?
Ca-ra-lho!
— Quer mesmo fazer isso?
Acena que sim com um sorriso desgraçado no rosto, animada por
aprender algo novo. Assim é minha pequena aluna exemplar, que sempre se
empolga com uma nova descoberta.
Kira começa a me despir e ergo o quadril para ajudá-la.
Frio toma minha coluna quando ela segura meu pau com delicadeza e
sobe e desce sem pressa.
Mantenho os olhos bem abertos, para vê-la aproximar a boca do
membro e tomá-lo inteiro.
— Porra, Kira!
Meu gemido sufocado parece incentivá-la, já que me engole por
completo. Parece saber muito bem o que está fazendo, deslizando a língua,
me lambuzando todo.
— Relaxa a garganta. Quero ver quão fundo... Porra! — Ela não me
deixa terminar e já faz o que peço.
Fundo. Bem fundo.
Ela me tira do eixo. Estou preso na sensação entorpecedora de ter a
boca quente dela explorando cada centímetro meu com curiosidade e
avidez.
Afasto o cabelo dela do rosto suado e prendo com minha mão. Ela
ergue o olhar nefasto, me convidando a me entregar, me prendendo na aura
magnética que ela me convidou a adentrar no instante em que meus olhos
pousaram nela, dois anos atrás.
É meu primeiro dia de aula e saio da sala conversando
distraidamente, até que sinto alguém cutucar meu ombro. Eu me viro e
encontro uma pequena criatura saída de um filme da Barbie, com um
sorriso bem-humorado no rosto.
Os olhos castanhos acompanham o sorriso e brilham alegres. Os
traços finos ressaltam a delicadeza da garota. Linda.
Eu notei ela me encarando durante a aula. Procurei saber o nome.
Kira Moretti.
Ela é ainda mais encantadora de perto. Está me oferecendo
anotações porque me ouviu reclamar sobre algo.
Kira é do tipo “primeira da classe”. Ouvi com atenção cada
intervenção dela durante a aula, fascinado com a forma como ela
desenvolve qualquer argumento com maestria. Será uma competidora à
altura. E uma distração do caralho.
Vai ser quase impossível resistir a ela.
Meus olhos pousaram em Kira e eu sabia que ela ia me arrumar
problema. Agora estou aqui, sendo dominado e me submetendo com
satisfação à pequena provocadora, encarando os mesmos olhos castanhos
inocentes que agora me devoram, assim como a boca dela faz com meu pau.
A bunda empinada, os seios livres, o movimento de sobe e desce da
boca atrevida. É uma cena deliciosa de assistir. Tombo a cabeça para trás,
tomado pela sensação perfeita de ter a língua dela circundando minha
glande, deslizando por toda extensão e voltando a sugar a cabeça do meu
pau. Ela afasta a boca e usa a mão, e depois volta a me chupar.
Estou tão absorto e preso nas sensações, que é quase impossível
impedir que ela siga em frente. Mas quando todo meu corpo começa a
enrijecer e o êxtase ameaça me tomar, seguro o cabelo dela e impeço Kira
de continuar.
— Muito disciplinada, pequena provocadora. Teve aulas de oral, por
acaso, Moretti?
— Li uma coisa ou outra.
— Camisinha. — Aceno na direção da mesa de cabeceira.
Kira vai até ela e pega um pacote. Me entrega e eu abro, desenrolando
o látex por toda minha extensão.
Seguro o tecido rendado que ainda está no corpo dela e tiro.
— Senta, Barbie.
Ela sobe no meu colo e encaixa as coxas no meu quadril. Ajusta a
entrada molhada e quente no meu pau e desce lentamente.
— Ô, merda! — xinga baixo quando estou todo dentro.
Fecho os dedos na cintura fina e ajudo ela a se equilibrar. Kira se
segura em meus ombros e sobe devagar, para em seguida descer e me levar
fundo. Ela nos guia nessa névoa atordoante de prazer, e eu permito que ela
dite o ritmo. Me concentro em buscar os mamilos endurecidos com a boca,
sugando e massageando com a língua.
Kira cavalga e rebola em cima de mim, contraindo a boceta ao meu
redor, e eu puxo o bico do seio com os lábios.
O quarto, a cidade, as pessoas lá fora, tudo é esquecido. Não
mantenho minha sensatez nem mesmo para calar Kira, que emite sons que
só poderiam vir de uma boa provocadora como ela.
— Zay...
— Linda? — Deslizo a mão pelo seio cheio e belisco o bico,
arrancando um gemido agudo.
— Queria que... Nossa, você é tão delicioso, Zayan! — Afunda as
unhas na minha pele, provocando uma ardência gostosa.
Toca a testa na minha e nossas respirações estão sincronizadas e
aceleradas.
Ela continua rebolando e me fodendo, me sugando e apertando,
cavalgando, fazendo um frenesi louco se espalhar pelo meu peito. Sou
tomado inteiramente pelo tesão louco que essa garota me provoca.
— O que você queria? — questiono, ofegante.
Kira tomba a cabeça para trás e eu mordo e sugo a pele do pescoço
exposto.
— Que fosse só meu. Só meu, Zay.
— Hoje é seu dia de sorte. — Seguro a cintura firme, e sem sair de
dentro dela, giro nossos corpos, ficando de pé e por cima de Kira, que agora
está deitada. Apoio as mãos ao lado da cabeça dela e afasto meu quadril até
estar quase todo fora. Então impulsiono para frente de uma só vez. Ela
arqueia o corpo e me recebe apertada. — Já sou seu, pequena Moretti.
Tomo os lábios dela para um beijo fervoroso, implorando para que ela
entenda a profundidade do que sinto por ela. Para que ela consiga traduzir
com precisão tudo que me causa.
Cesso o beijo em busca de ar e passo um braço por trás da cintura
dela. Saio de dentro dela apenas para virá-la e colocá-la de bruços.
Fico de pé e analiso com satisfação o traseiro ainda avermelhado,
antes de voltar a penetrá-la. Kira emite um gritinho e eu seguro-a pela
bunda. Minha pélvis choca com a dela e o som ecoa por todo quarto. O
intervalo entre as estocadas é curto.
O sangue flui pelo meu corpo com rapidez. Faz meu coração acelerar
e minha ereção pulsar dentro dela. Kira está cada vez mais estreita, apertada
e desorientada. Projeto o tronco para frente, porque sou um maldito viciado
nos peitos dela, e por isso vou em busca do seio direito que chacoalha com
minhas investidas.
Mordo o pescoço, entrando e saindo em um ritmo que está me
levando a perder o controle.
Ela está vindo comigo. Está se perdendo comigo.
Beijo as omoplatas dela, esfrego o nariz pela pele sedosa e sinto o
cheiro pecaminoso que vem de Kira.
Sorrio com satisfação quando ela geme e chama meu nome em
agonia.
— Zay! — É um som agudo e prolongado.
— Goza, linda.
Meto mais uma, duas, três vezes, antes de todo o corpo dela enrijecer.
Coloco a mão na frente da boca atrevida no instante em que ela me esmaga
e me suga para dentro dela, gritando abafado o meu nome com satisfação e
regozijo quando o orgasmo a toma.
Os músculos dela ainda estão tomados pelos pequenos espasmos
quando uma descarga fodida de prazer domina cada átomo do meu corpo,
me deixando perdido, chamando repetidamente o nome dela enquanto gozo.
— Mais alguns minutos e iriam perder o horário do café — Carmela
diz com um sorriso sacana quando Kira e eu nos sentamos com ela e Marco.
Não tenho culpa de ter sido atiçado de novo por esse projeto de
Barbie e ter perdido mais de meia hora trepando com ela no banho.
— Não vai tomar café com seus amigos? — Sou surpreendido pela
amargura na fala de Marco e me seguro para não rir.
— Sabia que vocês me adoravam, bebês, mas não sabia que era tanto.
Ciúmes, Marco? — Aperto a bochecha dele e ele me dá um tapa na mão.
— Sai dessa.
— Vou pegar comida. Você quer alguma coisa? — Kira se levanta.
Olho para a pulguinha e vejo seriedade no semblante dela. Não
compreendo de onde vem, e por isso decido ir atrás de respostas.
— Vou com você.
Caminho com ela até o balcão e pegamos um prato, nos servindo.
— Qual o problema?
— Nenhum, Zayan.
— Kira, assim não funciona. Preciso que converse comigo. Não pode
ficar guardando as coisas para você.
— Engraçado, porque até onde eu sei quem tem um segredo aqui é
você. Até hoje não me disse o que faria eu te odiar tanto.
Sinto meu estômago pesar de culpa e nervosismo. Ela está certa. Eu
não posso mais guardar isso só para mim. Só queria ter a certeza de que
independente de tudo, Kira não seria capaz de me odiar mais. Queria que
ela me visse e enxergasse minha verdade. Me visse para além das minhas
escolhas.
Mas essa é uma garantia que eu nunca terei.
E isso me fode.
— Eu vou te explicar, mas não aqui. Não é lugar para isso.
— Tem lugar certo para ser sincero?
— Acredite em mim, para isso tem. — Vai querer distância de mim
quando souber de tudo, linda.
— Se apresse, Zayan. — Ela coloca uma porção de frutas no prato e
continua caminhando.
— Não é só isso o motivo do seu mau humor. Quer me contar sobre
seus ciúmes agora?
Suspira alto antes de mirar as opções de pães que tem à frente.
— Só me senti incomodada com a intimidade que você e aquela
garota dividiram. Sei que é estupidez e não é legal. Mas sentimento é isso,
certo? Não tem certo e errado em sentir. Certo e errado está no que você faz
com isso. Estou escolhendo te falar e ser honesta, mas não sinta que tem
que me dar alguma explicação, ou que tem que se afastar de ninguém por
isso. Não pediria jamais que fizesse algo assim. — Entramos no modo
pulga falante. — Sempre tem liberdade comigo, Zayan. Não quero prender
você a nada. Nem bancar a louca ciumenta. É só que achei que provocações
fossem uma coisa nossa. Achei que eu fosse a única a tirar você do sério e
que você só se enraivecia com meus enfrentamentos. Não sabia que já tinha
vivido isso antes com Rosalia. Mas tudo bem. Vocês transaram? Se
transaram, também não é da minha conta. Quer saber? Nada disso é da
minha conta, afinal, você faz o que quiser da sua vida, Zayan. Esquece isso,
certo?
Pega o prato e vai até a mesa onde Marco e Carmela estão. Vou atrás
e me sento ao lado dela. Não consigo nem mesmo dar uma resposta à Kira,
porque temos uma pequena plateia agora.
— Você perdoou ele muito fácil. — Marco aponta para mim, se
dirigindo à Kira.
— Não tenho o que perdoar, Marco. Zayan se relaciona com quem
quiser. — Ela dispensa o comentário com um balançar de mão, se
concentrando em comer.
— Kira, já deu — aviso com seriedade. — Se quiser uma conversa de
verdade, conversamos. Mas pare de tratar o que nós temos ou o que eu sinto
por você como algo pequeno. Eu estava com dois amigos, Kira e Marco. E
não tem nada de mais nisso. Não preciso provar o que sinto por vocês. Se
dois anos de convivência não é o suficiente para vocês entenderem, então
não tem nada que eu possa fazer.
— Devo lembrar que me odiou por grande parte desses dois anos? —
a petulante mimada diz com acidez.
— Se você acha isso, então não é tão esperta quanto eu imaginava
que fosse.
— Tem algo que queira compartilhar, Zayan? — Kira estreita o olhar
na minha direção.
— Sim. Eu perdi a fome. Estou indo para a universidade.
Me levanto da mesa e caminho em direção à saída do hotel,
profundamente irritado com a postura infantil dos dois.
Já estou quase na metade do caminho quando ouço ela me chamar.
— Zayan!
Paro de andar, mas só porque meu corpo é um maldito vassalo dela e
reage com automatismo a tudo que Kira faz, apenas para servi-la.
Ela vem até mim e para na minha frente, com a postura contida.
— Me perdoa pela forma como eu falei com você. Foi imaturo da
minha parte.
— Tudo bem. Não tenho o direito de ficar com raiva quando estou
escolhendo manter informações escondidas de você.
— Uma coisa não tem a ver com a outra. Te fiz sentir mal. Estou
validando seu sentimento. Não é assim que funciona?
— Terapia a essa hora?
— Zay... — Kira alerta.
— Certo. — Saio do modo defensivo. — Sinto muito por ter agido de
maneira a te deixar insegura. Não foi minha intenção. Me empolguei com a
presença deles. E minhas discussões com Rosalia não eram nada perto das
nossas. Nunca nos odiamos, como eu e você. Nunca fui insultado por ela
como fui por você. E nunca levei um tapa na cara dela, Kira Moretti.
— Mas transou com ela, não foi?
— Uma vez.
Ela suspira, antes de erguer os ombros, derrotada.
— Eu entendo. Você é meio que irresistível, além de ser um grande
safado. — E simples assim, ela me faz rir.
Me tira completamente da guarda quando abraça minha cintura e
pousa a bochecha no meu peito. Abraço ela de volta e acaricio os cabelos
macios e sedosos.
— Só queria ser especial para você de alguma forma. Ter algo único
com você, Zayzay. É bobo da minha parte, eu sei.
— Você é especial, Kira. E tem algo que ninguém tem, linda.
Ela apoia o queixo no meu peitoral e me encara com confusão.
— Como assim, Zay?
É, Zayan. Alguns segredos não podem ser mantidos para sempre.
Existem coisas que eu gostaria de ter guardado para mim. Só para
mim, porque achava precioso demais para jogar no mundo. Porque nosso
destino pode ser um grande filho da puta quando decidimos brincar com a
sorte.
Em um jogo de leva e traz, eu lancei minha sorte ao cair em tentação
e lutar por Kira. Estava exausto de lutar contra ela. Contra o que eu sentia.
E ceder foi tão fácil quanto respirar, porque era tudo que eu suplicava dia e
noite para mim mesmo.
Suplicava para que ela aceitasse ser minha. Para que eu pudesse virar
a chave do ódio de uma vez por todas e provar a ela que eu poderia ser
bom. Eu tentaria ser bom. Eu seria o melhor. Por ela. Para ela. Para ter Kira.
Kira nunca soube, mas ela tem algo único de mim há bastante tempo.
— Você tem meu coração. — E ele é seu para fazer o que quiser,
pulguinha. — Eu amo você, Kira Moretti. Tanto que chega a doer.
A ardência do tapa se espalha por toda minha face, mas não é o
golpe que faz meu olho encher de água.
Kira é arrastada por Carmela para longe e eu permaneço no lugar,
paralisado pelo choque. Meu coração é esmagado pela realidade que me
atinge.
Prometi que faria ela me odiar. Busquei isso noite e dia e no fim
consegui. O tapa dela foi literal e também figurado. O golpe me fez
perceber que não restou mais nada para mim no coração de Kira além da
fúria ardente que semeei.
Quis isso mais que tudo. Desejei noite e dia que fosse assim entre
nós.
Então, por que agora, quando sou levado para longe dela, tudo que
sinto é um desespero agoniante agitar meus pensamentos? Por que
finalmente perceber que Kira me abomina é uma tortura sufocante?
— Vou ter que te carregar, Zayan? Anda, precisa fazer essas pernas
reagirem.
Sou tirado do torpor que a dor me trouxe pela voz de Marco e faço o
que ele pede. Me obrigo a reagir, caminhando para longe do corredor e da
verdade que ele me trouxe. Ando sem perceber para onde estou indo e
Marco vem logo atrás.
Só paro de andar quando estou longe de todos os prédios. Longe de
toda aquela gente que testemunhou minha desgraça maior.
Sento no primeiro banco que vejo e apoio os cotovelos nos joelhos,
segurando minha testa. Minhas pernas chacoalham ansiosas e eu não
consigo segurar o choro.
Maldita Kira Moretti. Por que fez isso comigo?
— Cara, você se machucou? — Marco questiona quando começo a
soluçar intermitentemente.
Não consigo responder. Fecho os olhos e sou punido quando as
lembranças de tudo que fiz a ela me consomem.
Choro, perdendo a noção de quanto tempo se passa. Marco não diz
nada, apenas se senta ao meu lado e me permite sentir. Até que decido que
não tenho direito de me lamentar por porra nenhuma e engulo o pranto,
pouco a pouco.
— Isso não é ódio, é, Zayan? — Marco questiona quando fico em
silêncio.
— Parece ódio para você? — Seco meu rosto e me levanto. Ele vem
logo atrás.
— O que você fez, cara? Por que maltrata a garota assim?
— Porque eu não tenho escolha, Marco! — Me viro para ele,
frustrado.
— E por que não?
Estou exausto. Não tenho mais forças para suportar toda merda que
carrego sozinho. Por isso nem hesito.
Apenas abro a boca e conto toda a verdade que me atormenta há
tanto tempo, e ele ouve atento. Conto até mesmo do que me faz manter ela
longe. Os olhos dele se arregalam. Está perplexo, mas eu continuo falando
sem parar.
— Aquela garota mexeu comigo desde o princípio, Marco. Eu quis
tanto fazer com que ela me odiasse. Mas ela é uma maldita garota
brilhante, atrevida e linda. Porra, como ela é linda! Eu passaria horas e
horas discutindo sobre qualquer teoria chata do caralho que ela quisesse,
apenas para ouvi-la discursando com paixão sobre o assunto, com um
sorriso fácil no rosto. Já viu como ela sorri com facilidade? Nada parece
tirar a alegria de Kira. Exceto eu. Eu faço o sorriso dela sumir em um
estalar de dedos. Porque eu garanti que fosse assim! — Aponto para mim
mesmo com fúria, encerrando toda a história. — Agora todo mundo viu
como ela é capaz de me odiar e eu deveria estar satisfeito, mas só sinto um
puta desespero, porque eu me apaixonei pela garota que fiz questão de
ensinar a me odiar.
Quando me viro para caminhar de volta para o prédio, levo um susto
e travo no lugar.
— Carmela? — Meu coração acelera quando penso na possibilidade
de ela ter ouvido toda a história.
— Que porra é essa, Zayan? — Me encara colérica e quase grita, me
mostrando que ouviu tudo que contei.
— Você não vai abrir a boca para ela. — Trato logo de garantir.
— Me dê um bom motivo.
— Você acabou de me ouvir!
— E é exatamente por isso que Kira tem o direito de saber sobre
tudo! Caralho, Zayan! Isso é insano!
— Nenhum de vocês vai contar nada para ela! — Aponto para
Carmela e Marco.
— Ainda estou esperando o motivo. — A melhor amiga de Kira cruza
os braços.
E então sou obrigado a compartilhar.
— Vo-você... Você... O que... Como você...
— Pane de novo, Barbie? — Sorrio.
— Mas você acabou de falar que me ama! Você... Zayan, meu
coração! Acho que estou infartando. Por que fez isso? — Se afasta e leva a
mão ao peito, abanando o rosto. Eu acho a reação adorável. — Quando
você me ama? Quer dizer, como você me ama?
— Amando. Olha só. — Pego a mão dela e levo até a altura do meu
coração, que bate feliz, como sempre faz quando estou com ela.
— Espera. Eu... Vamos voltar. Quando a gente transou pela primeira
vez... Eu olhei nos seus olhos e você se recusou a falar comigo
telepaticamente.
— Falar telepaticamente? Que loucura é essa, Kira?
— Não se faça de sonso. Sabe muito bem como funcionamos. Eu leio
sua expressão, seu olhar, a forma como sua testa franze ou não. Se seus
lábios estão franzidos ou sorrindo. Você faz o mesmo, e assim conversamos
em silêncio. Agora vamos lá. Nós vamos voltar agora para aquele momento
e vamos ter essa conversa de novo. Olha para mim, Zayan Castelli.
E eu olho, entendendo perfeitamente como essa loucura funciona para
nós dois. E então volto para aquele exato instante.
“Eu amo você, Kira Moretti. Com suas perfeitas imperfeições e seu
jeito atrevido de ser. Amo você e é sincero. Amo você mesmo depois de tudo
que fizemos um ao outro. Eu amo você e sou o garoto mais feliz e sortudo
desse mundo porque você me escolheu. Mesmo não sabendo se sou
merecedor, você me escolheu. E cada segundo que passo ao seu lado, meu
coração parece querer explodir de tanto amor. Isso é tudo que eu te
entrego, Kira. Espero ser o suficiente para você. Não me odeie mais. Não
posso mais suportar a ideia de você me odiar.”
— Seu bastardo! — Recebo um tapa no ombro e sorrio, chocado. —
Você me ama! — Os olhos castanhos brilham de alegria e eu sinto parte da
minha angústia aquietar, apenas por fazê-la feliz assim.
— Sim, eu amo. Amo todo esse seu falatório que nunca parece ter
fim, amo o tom avermelhado que toma suas bochechas e nariz quando fica
irritada. Amo cada pequena palestra que já deu e ainda vai dar. Amo
também seu gosto de tutti frutti e como você é toda safada.
— Não sou safada.
— Pensa que engana a quem?
— Zayan, eu... — começa a falar, mas silencio Kira com um beijo
longo e casto.
Não preciso de nada dela. Nem da rejeição, nem da reciprocidade. Eu
só precisava dizer parte da minha verdade a ela. Só precisava que ela
entendesse a dimensão do que ela representa para mim.
Kira é minha parte bonita. Mesmo quando entreguei só espinhos, ela
foi capaz de fazer algo espetacular e esplêndido florescer em mim. Ela é a
hora mais feliz do meu dia. Kira é capaz de desfazer qualquer irritação, ao
mesmo tempo que me enfurece como ninguém. Essa Barbie saltitante e
alegre desfez minhas resoluções de não me apaixonar por ela com uma
facilidade impressionante.
Eu não poderia amar mais ninguém. Não poderia me entregar para
mais ninguém. Sou de Kira. Inteiro dela. Mesmo sendo um poço de
imperfeição. Mesmo não sendo nada além de um amontoado de cacos.
Mesmo sabendo que vou magoá-la mais uma vez e talvez de uma forma
irremediável.
Eu serei dela, somente dela.
Separo meus lábios dos dela, sentindo uma emoção acalentadora se
apossar de mim por finalmente me permitir ser plenamente da pequena
Moretti.
— Agora vamos, pulguinha. Temos algo inédito para protagonizar.
— Você acabou de se declarar para mim. Tem algo mais inédito que
isso?
— Sim. Vamos vencer um debate. Eu e você, juntos.
Seguro a mão dela e começo a caminhar rumo à universidade.
— Como sabe que eu e você seremos a dupla do debate? E como sabe
que vamos ganhar?
— Quem mais seria, linda? E eu sei porque Rosalia e Dario abriram a
boca ontem. Passei o dia com eles e comecei a discutir todas as teorias que
pude. Sei que eles serão os escolhidos para o debate e agora podemos
pensar em todas as estratégias para rebater os argumentos deles.
— Então vai trair seus amigos, Zay?
— Não é traição. Eles que escolheram abrir o bico. Naquela hora que
vocês foram embora e eu puxei Rosalia para conversar, ela acabou deixando
escapar o tema. É uma suposição, mas vamos trabalhar com ela.
— Vamos acabar perdendo para nós mesmos, Zayan. Só sei debater
contra você. Não sei se vou conseguir funcionar com nós dois do mesmo
lado.
— Kira, a cada dia que passa você me prova que sou o melhor. Seu
cérebro funciona com muita seletividade.
— Cretino! — Me oferece um tapa leve.
— Mas conseguimos funcionar muito bem juntos. Você sabe disso.
— É. Até que funcionamos, Zayzay. — Ela sorri.
Entramos juntos pelo arco da faculdade, discutindo sobre nossas
táticas avidamente. O sorriso de satisfação não sai do meu rosto quando
percebo que juntos trabalhamos incontestavelmente melhor. Estamos
sintonizados em cada pensamento e nossas ideias parecem flutuar na
mesma frequência.
— Bom dia, Zay.
Por um instante eu fico tenso quando ouço Rosalia me chamar.
— Bom dia — retribuo, ainda tentando pensar no que está se
passando agora na cabeça de Kira.
Desfaço o laço de nossas mãos e passo o braço no ombro dela, a
trazendo para mais perto. Ela abraça minha cintura e pousa a cabeça no meu
ombro.
— Bom dia, Rosalia — Kira cumprimenta e arrisco olhar para o lado,
para encontrar um sorriso no rosto da pulguinha.
— Bom dia — a morena cumprimenta de volta.
— Preparada para o debate? — questiono Rosa.
— Nasci pronta. E você?
— Nós estamos. — Olho para minha garota e ela me encara com um
sorriso cúmplice.
— Bom, então nos vemos no palco.
— Sim, nos vemos — Kira é quem responde e nós tomamos
caminhos opostos.
— Pronta? — pergunto para a garota ansiosa ao meu lado.
Estamos esperando o debate começar, depois de termos sido
convidados pela coordenação da nossa faculdade para sermos a dupla a
representá-los.
— Não sei, acho que não. Porra, você não tem vontade de vomitar
antes dessas merdas? — Kira puxa o ar profundamente, tentando se
acalmar.
— Não. Para mim sempre foi muito tranquilo.
— E como, ainda assim, com toda essa tranquilidade, você conseguia
perder para mim?
— Eu deixava você ganhar.
— Inventa uma desculpa mais razoável, Zayan. — Continua o
exercício de respiração.
— Não é uma desculpa. Você me ganhava no choro. Toda vez que eu
via seu olho encher d’água, eu recuava. Não conseguia lidar com seu choro.
Nunca consegui.
— Que você não conseguia lidar com meu choro, eu sei. Sempre que
me via chorar, você vinha com grosseria. Mas deixe de ser babaca por um
instante. Acha mesmo que venceria mesmo que continuasse a me rebater?
Não preciso pensar muito para responder.
— Não, não acho.
— Admite que eu sou a melhor?
— Podemos dizer que empatamos?
— Na sua cabeça, você sabe que sou a melhor. — Kira sorri,
presunçosa.
Mas não dou a ela o gosto da vitória de ouvir minha admissão. Ela é a
melhor porque se esforça mais, porque não perdeu tempo estudando uma
teoria que não gosta apenas para me provocar, como eu mesmo fiz, ao me
dedicar à teoria psicanalista.
Ela é a melhor porque é. Simples assim.
— Sabe que não desligou nosso modo de conversa telepática agora,
não é? — ela interrompe meus pensamentos, dizendo com malícia. —
Quase posso ouvir seus pensamentos sendo ditos em voz alta. Você está
admitindo que sou a melhor! — A pulguinha ri.
— Deveria ter deixado você chorar sempre — provoco.
— Você foi mal-educado o suficiente, sabe disso. Lembro do dia na
biblioteca. Perguntou com rispidez se eu iria chorar.
— Porque era doloroso para mim, linda. Já te causava tão mal. Mas
me doía ser o causador das suas lágrimas. Tentei evitar te ver assim.
— Até o dia que eu fui atrás de você porque te vi chorar. E então você
decidiu que não tinha mais compaixão.
— A partir daquele dia tudo que eu fiz foi para chamar sua atenção.
Posso não ter admitido na hora, mas hoje eu sei que foi por isso. Você me
viu, enxergou através de mim, e eu odiei que você foi capaz de sentir
compaixão. Porque eu me permitiria ser frágil com você. Eu me permiti. E
isso só me fez amar você ainda mais.
— Zay... — ela tenta falar, mas a silencio mais uma vez.
— Agora não, linda. — Beijo com carinho os lábios, a bochecha e as
têmporas dela. — Vamos ganhar essa. Vamos mostrar como funcionamos
bem quando estamos juntos, pulguinha.
Estamos eu e Kira sentados na lateral do palco, encarando Rosa e
Dario do outro lado. Eles sorriem para mim, indicando que estão prontos
para o desafio. Eu sorrio de volta, sabendo que esses dois não estão nada
prontos.
Não sabem quem é Kira Moretti. Não estão preparados para minha
pulguinha.
— Sei que vocês aqui, na Itália, têm esse costume de debater dentro
das universidades mais do que no Brasil — o professor brasileiro diz, com o
sotaque carregado. — Quero dizer que me sinto honrado em mediar e
conduzir esse debate que encerrará nosso Simpósio Internacional de
Psicodrama, e espero que tenham aproveitado até aqui. — O homem de
meia-idade ajusta os óculos e sorri. — Kira, Zayan, vocês estão aqui para
representar a Universidade de Florença. Rosalia, Dario, vocês representam
a Universidade de Bolonha. Espero que estejam prontos para defender os
seus pontos de vista. Boa sorte.
Acena para cada um de nós antes de dar início.
— Todos nós sabemos que cada corrente de estudo da psicologia se
ocupa de explicar o indivíduo, seus desejos e suas qualidades, à sua
maneira. Cada um de vocês escolheu defender uma corrente de estudo, e
por isso quero saber: o que, afinal, estamos buscando?
É isso? O que estamos buscando? Porra, não é nada da temática que
esses dois que estão à minha frente especularam! Que tipo de pergunta é
essa, afinal?
— Zayan Castelli. — Kira abre a boca, e eu a encaro, confuso. Ela
espera que eu responda?
Mas ela não me encara, e não posso trocar palavras silenciosas com
ela.
— Perdão? — o professor questiona quando ela fica em silêncio,
absorta.
— Eu disse “Zayan Castelli”. Esse garoto aqui ao meu lado. — Ela
me olha e sorri tímida, antes de se virar de novo para o mediador. — Eu não
estou dizendo que todos nós buscamos Zayan Castelli, porque eu teria uma
concorrência enorme para lidar. — Ela arranca algumas risadas da
multidão. — Estou dizendo da minha busca. Minha busca hoje é construir
uma relação com Zayan Castelli.
— Porque você está expressando nessa relação um desejo reprimido
— Rosalia a interrompe quando Kira abre a boca para continuar. — Essa é a
nossa busca. Estamos sempre agindo com o propósito de realizar nossos
desejos inconscientes, mesmo sabendo que em nenhum momento ele irá se
concretizar em sua plenitude. Você expressou algum desejo que suas
relações familiares subtraíram de você na sua infância.
— Meus desejos de infância foram realizados na infância, Rosalia. —
Eu não duvido, pequena mimada. — Minha busca por Zayan não está
relacionada às minhas interações familiares. Eu sou um indivíduo
consciente de meus desejos e ações, e busco minha autorrealização, que
sempre se atualiza. Todo dia eu estou em busca daquilo que sei que me
realizará. Hoje, minha realização é poder estar com Zayan. — Ela gira o
rosto na minha direção e eu encontro os olhos castanhos brilhando, com um
sorriso terno na feição de Kira.
Pulguinha, pulguinha... Por que me encara agora assim, com tanto
afeto e promessas? Posso acreditar, linda. Posso mergulhar profundamente
em todas elas.
— E por ser um indivíduo consciente é que também me afastaria de
Zayan se nossa relação me machucasse.
E assim, sou bruscamente puxado para a realidade. Ela se afastaria se
a machucasse. E ela tem esse direito. Mas dói.
— E quanto a quem você era antes de Zayan? Antes de todos os
desejos que você tinha e nunca soube expressar? Sobre ainda não saber tudo
que se passa no seu insconsciente? Somos quem somos, Kira, e nos resta
apenas descobrir quem somos moldados a ser — Dario contrapõe e eu acho
que preciso abrir a boca e falar algo.
— Aceitar que nossas profecias são o que nos resta é quase aceitar
que não há escolha ou livre-arbítrio em nossas vidas — rebato. — Somos
seres autoconscientes, Dario, capazes de fazer escolhas que nos levarão à
nossa realização própria. Kira me busca e eu a busco, e não há nenhuma
explicação oculta para isso. Estamos lúcidos, nossos desejos inconscientes
foram trazidos à superfície e lidamos com eles. Nós dois. E assim
decidimos lutar pela nossa escolha de viver nossa relação. Quando
estivermos realizados dentro dela, buscaremos algo novo que irá nos
satisfazer e depois a mesma coisa. Nós buscamos o que nos deixa felizes e
bem. Não somos uma matéria pronta. Podemos sempre desejar algo novo.
Hoje, desejo ser feliz com Kira. Amanhã? Não faço ideia.
Amanhã ainda desejarei ser feliz com Kira. Mas não abrirei a boca
para destruir meu argumento.
— Há de se considerar que existem fantasias e desejos que perpassam
nossa existência sem que possamos controlar. Seu desejo por Kira não é
algo que você controle. Ele vem do seu repertório de relações. Sua busca é
por perpetuar esse repertório — Rosalia diz.
— Então quer dizer que estamos condenados a viver fantasias sem
que tenhamos controle sobre isso? Que somos incapazes de escolher o que
nos faz feliz e viver nossa plenitude e regozijo? Somos indivíduos dotados
de escolha, não precisamos viver em agonia porque fomos marcados para
ser a imagem e semelhança de nossos pais. Sei que é difícil aceitar, mas
nem todos experimentam um período edípico em suas vidas. — Cutucando
Rosa assim, pulguinha? O que eu faço com você?
— Não disse isso! — Rosalia se exalta.
— É exatamente o que você disse — retruco. — Estão aqui
defendendo a psicanálise, pelo que eu entendi. Se me lembro bem, é
exatamente isso que a psicanálise freudiana defende. Somos criados à
imagem e semelhança de nossos pais, de nossas relações familiares. Fomos
feitos para cumprir os desejos que nossa família nos ensina a ter. É uma sina
quase trágica. Carl Rogers, Erich Fromm e outros inúmeros estudiosos da
psicologia humanista nos dizem que não é assim, que temos uma escolha.
Sempre teremos e podemos escolher o que nos faz feliz e conquistar isso. E
quando conquistamos, escolhemos outra fonte de satisfação e lutamos por
ela. Podemos satisfazer nossos desejos sem que isso nos despedace.
— Até nossos desejos mais perversos? — Dario indaga.
— Perversão, neurose e psicose não devem ser desconsideradas. Mas
não somos fadados a elas e nem todos carregamos essas condições. A única
condição que é imutável para nós, indivíduos conscientes, é a capacidade
que temos de tomar consciência e agir. Isso sempre podemos fazer —
contraponho.
Depois disso, ninguém diz mais nada. Tenho na minha cabeça vários
argumentos que eles poderiam usar, mas eles não o fazem.
— Bom, foi uma excelente discussão — nosso mediador diz. — Vou
deixar que os meus colegas avaliem e já chamamos vocês quatro. Quero
agradecer a todos os alunos... — E assim o professor faz um discurso de
encerramento do simpósio.
— Parabéns, Kira, Zayan! — o professor João, que foi o mediador do
debate, diz, estendendo a mão para nós dois.
Nós ganhamos. Claro que ganhamos, porque em meu peito já carrego
há bastante tempo a certeza de que eu e ela somos uma dupla imbatível. E
Kira quem escolheu ser entrevistada por ele. Não protestei, porque também
quis conhecer de perto o sujeito.
— Obrigada, professor. Quero dizer que é uma honra estar aqui com o
senhor — Kira diz, com o tom de voz exultante.
Ela está feliz. Minha Barbie está feliz com nossa vitória. Te disse,
pequena Moretti. Nada pode nos parar.
— A honra é minha, Kira. Devo dizer que fiquei impressionado com
a desenvoltura da dupla. E se me permitem comentar, estou particularmente
envolvido na história do casal.
— Não somos um casal — ela diz, me irritando na sequência.
— Kira — chamo a atenção dela.
— Que foi, Zayan? Já disse. Sem pedido, sem namoro.
— Não liga, professor — me dirijo a João. — Ela tem esse hobby de
me irritar. É diversão para ela.
— Zayan, olha o jeito que você fala na frente dele! — Kira me
repreende.
— Você começou, pulguinha.
— Desculpa, professor. Ele se irrita com facilidade.
— Ah, não se desculpem! Eu estou bem entretido com essa interação.
— Ele sorri largamente, provando o ponto. — Bom, como vocês devem
saber, eu sou professor em uma universidade brasileira. Estamos
desenvolvendo pesquisas e ensinando nossos alunos tudo que sabemos
sobre psicodrama. É um campo fértil e ainda pouco explorado. O que vocês
sabem sobre o assunto?
E como nós dois fizemos nosso dever de casa, discursamos sobre tudo
que aprendemos até aqui, nos empolgamos com as perspectivas que o
professor apresenta e até mesmo nos sentimos à vontade para fazer
inúmeras perguntas.
A alegria toma minha pequena Moretti quando ela está frente a frente
com o professor que é referência para ela.
Ela sai saltitante e contando com animação para todos sobre o
encontro. Passa a viagem de volta inteira idealizando ao meu lado um
mestrado e fazendo planos de, talvez, morar fora.
Me sinto um grande sortudo por estar incluído nesses planos.
E sinto meu coração se rachar por saber que em breve, muito breve,
perderei tudo isso.
Os sorrisos, a alegria, os beijos sabor tutti frutti e os planos.
Não me odeie mais. Não posso mais suportar a ideia de você me
odiar.
Quando Kira e eu descemos do ônibus, os pais dela, meu pai e Nina já
estão nos esperando. Pegamos nossas malas e caminhamos na direção deles.
— Como meus pais já chegaram? Eu não avisei a eles — Kira indaga,
confusa.
— Eu sei. Eu avisei.
— O que está acontecendo? — O semblante dela murcha e sinto a
ansiedade emanar de Kira.
Ou talvez venha de mim. Sim, vem de mim. São minhas palmas que
suam e meu coração que parece desmanchar a cada minuto que passa e me
coloca mais perto de me abrir para ela.
Não me odeie. Por favor, não me odeie.
— Você vai saber, linda.
Segure minha mão mais uma vez. Preciso te sentir e saber que tudo
foi real.
Ela segura, e por um segundo eu me sinto bem. Dura pouco, mas eu
sinto.
— O que está acontecendo, Zayan? — meu pai pergunta, olhando
desconfiado para Martina Moretti do outro lado da rua.
Abro o porta-malas e guardo minha bolsa lá dentro.
— Pai, pode seguir o carro deles? Nós vamos conversar. Todos nós.
— Tento controlar o estremecimento que me toma, mas meu corpo parece
prestes a colapsar.
— Zayan... — Kira parece assustada.
— Confia em mim, pulguinha. — Uma última vez.
Ela assente.
Sem ligar para a presença de ninguém ao nosso redor, seguro o rosto
dela e colo nossos lábios. Kira reluta, mas logo cede. Despejo nesse beijo
todo meu amor, toda minha entrega e toda saudade que vou sentir. Conto
para ela, silenciosamente e nesse beijo agitado e ansioso, que é ela o amor
da minha vida, e que se um dia ela me perdoar, então serei o cara mais feliz
do mundo.
— Te encontro na sua casa, pulguinha.
Beijo a testa dela e Kira se afasta, indo na direção dos pais.
Entro no carro, junto de Nina e meu pai. Demoro para conseguir
colocar o cinto, porque minhas mãos tremem.
— Zayan, meu filho, o que está acontecendo? — Leonardo me encara
pelo retrovisor, com a testa franzida de preocupação.
— Você realmente não faz ideia, pai?
Ele me encara por mais algum tempo, antes de desistir de arrancar de
mim alguma resposta. Liga o carro e segue os pais de Kira, como eu instruí.
Nosso caminho é feito em silêncio absoluto. Mas dentro da minha
mente, milhares de vozes gritam e se misturam, anunciando o caos que está
por vir.
Rápido demais, meu pai já está estacionado na calçada dos Moretti e
eles saem do carro, junto de nós.
— Alguém pode explicar o que está acontecendo aqui? — Martina
questiona, direcionando ao meu pai o mesmo olhar de desprezo que ele
direcionou a ela.
— Vou explicar tudo — falo.
Noto que Kira está me olhando com preocupação e imagino que meu
estado esteja pior do que imaginei.
— Vamos entrar — Giorgio diz com seriedade.
Nós seis caminhamos até a porta de entrada e ele abre, nos
concedendo passagem. Acende as luzes e vai até a sala de estar.
— Quer se sentar? — Ouço a voz de Kira ao fundo, mas minha mente
parece querer parar de funcionar.
Vou até a ponta da escada e me sento no primeiro degrau quando
minhas pernas estão prestes a ceder.
Um zunido toma conta da minha audição e meu corpo se agita. Sinto
todos os olhares em mim, mas só consigo mirar o chão.
— Kira, se lembra quando nos encontramos no supermercado? Ouvi
você e seu pai conversando e nesse dia descobri seu nome do meio. — Meu
estômago embrulha e minha pulsação acelera pela ansiedade.
— Lembro, Zayan. O que está acontecendo? Por que está falando
sobre isso? Por que seu pai e Nina estão aqui? — Ela está na minha frente e
sinto o nervosismo vir dela.
— Eu tenho um irmão.
— Eu sei disso, Zayan! Que merda, eu só quero uma explicação!
— Assim como você, meu irmão tem um nome do meio.
— Zayan... — A voz dela é um fio.
Posso ouvir, no fundo da minha mente, tijolo por tijolo de tudo que
construí com ela desmoronar, quando as palavras que me sufocam
finalmente têm vazão.
— O nome completo do meu irmão é Lorenzzo Gregório Castelli.
Termino de colocar todas minhas roupas de volta no meu guarda-
roupa depois de ter retornado para Florença.
Ideia de merda ir para outra cidade para estudar, como se isso fosse
me afastar dos meus monstros. Eles me perseguem. Estão dentro de mim.
Aqui ou lá. Não importa. Ele sempre vai me atormentar de alguma forma.
Como faz agora, invadindo meu quarto como se fosse dele próprio.
Meu coração acelera e cada músculo meu está rígido de tensão quando me
viro para encará-lo.
— Como vai, vermezinho?
— O que você quer aqui? — Meu maxilar trava e meus dentes
rangem.
— Ei, relaxa, Zayan. — Lorenzzo ergue as mãos, rendido. Se
aproxima com a postura calma, ignorando o estado de pânico que a
presença dele me deixa. — Vim dar as boas-vindas ao meu irmãozinho
querido. — Ele está na minha frente e a mão dele pesa sobre meu ombro
quando ele aperta com força desproporcional.
— O que você quer aqui? — repito, querendo que essa tortura acabe
logo.
Ele sabe entrar na minha mente como ninguém. Apenas a presença
dele já me tira do eixo e me apavora.
— Universidade de Florença, certo? Você foi transferido para a
mesma universidade que eu. Por que não ficou em Bolonha, vermezinho?
— Tem um sorriso sádico no rosto dele que me faz encolher no lugar. — De
qualquer forma, preciso te dar um aviso. Já que veio me trazer infelicidade
mais uma vez, me lembrando da sua existência de merda, Zayan, faça algo
útil na sua vida. Kira Moretti será sua colega de classe. Fique longe dela.
— O que te faz pensar que eu me interessaria pela garota?
— Vocês dois têm essa mania de ser genial o tempo inteiro. Além do
que, ela adorou essa sua coleção infantil de LEGO e esses livros
horrorosos.
— Quando é que ela esteve no meu quarto, Lorenzzo? — Meu tom de
irritação faz ele dar um passo à frente e fechar os dedos no meu braço com
pressão.
— Não é da sua conta! E olha o tom que você fala comigo, imundo.
Está avisado. Kira não é para você. Ela é minha. E você não vai me tomar
mais uma pessoa que eu amo, Zayan. Já me tirou minha mãe de mim. Fica
longe dela.
Amor? Lorenzzo Gregório falando de amor? Que tragicomédia! Meu
irmão não tem ideia do que é amor. Por um momento, sinto até mesmo pena
dele. Nunca experimentou amor na vida. Por mais que Cassie o tenha
amado, ele não amou de volta.
O que ele faz comigo em nome dela me prova isso. A forma como ele
me despreza, usando a morte da nossa mãe como justificativa, não é amor
a ela.
Não, Lorenzzo não ama ninguém. E não ama a garota, tenho certeza.
— Está avisado. Ou você mantém seus tentáculos longe de Kira, ou
eu acabo de uma vez com você, infeliz.
— Vai fazer o quê? Me matar?
— Não me dê ideias, Zayan. — O sorriso do bastardo abre ainda
mais. Ele deixa dois tapinhas no meu rosto e se afasta, indo em direção à
porta. — Olho por olho, dente por dente. Uma morte por outra, Zay. — E
ri. — Não se preocupe. Não chegaria a esse ponto, verme. Mas sabe que
temos nosso jeito especial de acertar as contas, não sabe? E, a propósito,
não se esqueça. Eu não conheço você e você não me conhece. Se abrir a
boca para falar que somos irmãos, eu te arrebento.
Sai e fecha a porta com força.

Primeiro dia de aula e estou na sala conversando com o tal Marco


depois de nos apresentarmos. O moleque não parece se retrair com minha
postura desconfiada e começa a falar como se fôssemos grandes amigos.
Em um certo momento, sinto que estou sendo encarado e me viro.
Bingo.
A garota que me escrutina não demonstra arrependimento por ter
sido pega e não desvia o olhar. Pelo contrário, sorri para mim.
Maravilhosa. Não tem um rastro de imperfeição nela.
— Quem é? — Me viro para Marco.
Ele acompanha a direção que meu olhar estava agora há pouco e
olha rapidamente antes de se virar para frente.
— Qual delas?
— Pele bronzeada, cabelo liso.
— A estrela da turma. Kira Moretti.
Porra! Não é possível! Não pode ser. A Moretti é perfeita! Claro que
o doente desgraçado iria ficar obcecado por ela.
Kira, Kira, o que está fazendo da sua vida? Só posso desejar que meu
irmão não seja para você o que é para mim, linda.
Nós saímos da sala depois da aula terminar e ela vem atrás. Oferece
anotações. Eu até aceitaria, mas ergo o olhar e atrás dela está meu irmão.
Rondando a garota, sem dúvidas. Há um aviso no olhar dele. Um bem
claro.
Eu e ele nos entenderemos em casa se eu pisar em falso.
Ele não deveria ter esse poder sobre mim, mas tem. E me faz render.
Não posso desejar você, Kira. E isso é uma tarefa árdua, garota. Só
de olhar para você já me sinto mais... vivo. Você me tirou do piloto
automático.
Então não tenho outra escolha. Se quiser conhecer Zayan Castelli,
projeto de Barbie, vou ter que te oferecer meu pior.

Faz três meses que eu assinei meu atestado de ódio mútuo com Kira
Moretti. O problema é que só minha assinatura está lá. A garota não caiu
em nenhuma provocação minha depois do nosso primeiro encontro.
Hoje sinto que as coisas vão mudar de rumo. Porque estamos eu e
ela, frente a frente, prontos para nosso primeiro debate.
Vamos ver se é mesmo tão brilhante assim, Kira.

— Você é um maldito desgraçado, Zayan Castelli!


A pequena estrela que acaba de perder o brilho vem até mim, depois
de ter fracassado no debate.
— Sou mesmo, Kira Moretti. Mas por que diz isso?
— Seus argumentos são uma merda! De onde você tirou tanta
besteira? Meus ouvidos doeram com tamanho absurdo saindo dessa boca
suja.
— Poxa, pulguinha, assim você ofende. — Sorrio como um cretino,
assistindo a face dela ganhar aquela cor avermelhada de fúria.
— Vá se foder!
— Vai estudar. Quem sabe você chegue ao meu nível um dia?
A expressão dela é de ira. Penso que vai retrucar e espero, mas a
reação dela me surpreende.
Os olhos brilham por lágrimas que caem em cascatas na sequência.
Mas que caralhos, ela está chorando? Eu fiz a garota chorar! Que...
Como eu...
— Por que você está chorando?
— Não é da sua conta! — Ela passa por mim e esbarra em meu
ombro. Eu vou logo atrás.
— Kira! — chamo assim que saio no corredor.
— Já disse para você ir se foder, seu babaca! — Ela se vira e berra.
— Não precisa ser um bebê chorão por isso! — retruco com
irritação.
Porra, eu fiz a garota chorar!
— Bastardo! — Dá as costas e sai pisando duro na direção do
banheiro.
Que se foda também. Garota mimada, não aceita uma derrota.
Me viro e vou na direção oposta, parando no meio do corredor
quando noto a presença dele ali, no meio da multidão de alunos que saem
das salas.
Os olhos verdes são gélidos e cruéis, e sei que ele acabou de assistir
esse pequeno circo.
Passo por ele e deixo que Lorenzzo vá atrás da namoradinha e
console a garota.

— O que eu disse sobre manter suas mãos sujas longe dela?


Lorenzzo irrompe pela porta do meu quarto furioso e marcha até mim
como um touro em descontrole.
Pega um dos livros na minha estante e arremessa contra o espelho,
que racha com o impacto.
Estúpido de merda!
— Você me viu em cima da garota, por acaso?
— Vi você ir atrás dela como um cachorrinho, verme! — Estamos
cara a cara e ele espuma de ódio.
Seguro minhas reações, sabendo que a forma como minha cabeça
tonteia é pelo medo que ele desperta em mim.
— Não fiz nada, Lorenzzo. Se ela é sua namorada, então pergunte a
ela.
— E dar a ela o desprazer de descobrir que tenho um irmão inútil e
imprestável? — Ri com escárnio. — Não testa minha paciência, infeliz. E se
um dia você abrir a boca para falar para ela que me conhece, eu encho
essa sua cara de porrada, verme.
Avisa mais uma vez, antes de ir até a estante e derrubar todos os
livros que estão ali no chão, me despertando uma ira descomunal.
Ele sai e eu bato a porta com força.
Sádico do caralho!
Todos os alunos saem para fora do corredor depois do fim da última
aula do dia. Há um movimento de gente indo e vindo e todos estão absortos
em uma conversa. O falatório cessa quando um grito de fúria ecoa pelo
saguão.
— Eu vou te matar, sua cadela! — Todos se viram, procurando a
origem da voz, e eu vejo a garota de cabelo rosa que espuma de ódio
alcançar Kira. — Então é você que está fodendo meu namorado, sua
vagabunda?!
Segura o cabelo de Kira e desfere um tapa nela. Corro até a garota
que está descontrolada e seguro a cintura dela, que se debate, tentando se
livrar do aperto.
— Me solta! Eu vou acabar com você, puta! Gregório tem dona, sua
merdinha. Ele não é para você. Vai procurar outro pau para se enfiar, Kira
Moretti!
Arrasto a louca para longe dali, enquanto ela segue falando merda e
xingando Kira.
Solto a menina apenas quando já estamos longe o suficiente de toda a
multidão.
— Há quanto tempo você namora com Gregório? — questiono, puto.
— Não é da sua conta! — a garota de cabelo rosa rebate com
atrevimento.
— Vai ser quando eu sair daqui e for te denunciar para a reitoria por
agredir uma aluna. Responde a minha pergunta. Há quanto tempo você
namora ele?
— Cinco meses.
Desgraçado do caralho!
— Some da minha frente e não volta aqui nunca mais. E procura uma
terapia, menina. Não está muito bem da cabeça.
Ela se afasta. Saio dali e vou direto para o estacionamento. Sei que
ele está em casa, porque não tem aula hoje. Dirijo como um louco, e
quando estaciono na calçada da nossa casa, saio do carro tomado pelo
ódio.
Entro em casa e subo as escadas, abrindo a porta do quarto dele com
violência, como ele já fez tantas vezes no meu.
— Que merda é essa? — Ele levanta da cama e vem para cima de
mim.
— Eu que te pergunto, seu bastardo nojento! Sabe o que acabou de
acontecer? Sua namorada encontrou sua outra namorada e deu um tapa na
cara dela! — Aponto o dedo na cara dele, sentindo meu corpo queimar de
ira.
— Do que você...
— Vai se foder com esse seu teatro de merda, Lorenzzo! Kira levou
um tapa na cara por sua causa! Você disse que amava a garota e estava
fodendo com outras por aí. Você não vale o ar que respira, seu desgraçado.
Eu achei que sua podridão era reservada somente a mim, mas você é um
escroto imundo com todo mundo.
— Já falei para medir suas palavras, verme!
Ele atinge meu rosto com um tapa ardente. É sempre um tapa, para
não deixar marcas. Perdi as contas de quantas vezes a mão dele acertou
meu rosto assim, com violência.
Aliso a região, afastando a dor, sem permitir que a tristeza me invada
dessa vez. Esse canalha não merece que eu chore por ele. Nunca mereceu.
— Você vai pagar por tudo que fez, Lorenzzo. Pode não ser hoje, mas
um dia eu vou te levar para o inferno que você me jogou nele.
— Eu odeio você, Zayan. Sua existência é descartável. Nada do que
você faz tem importância. Você é um nada.
— E é esse nada que vai tirar de você a impunidade. Vai pagar. Vai
pagar caro por tudo.
Não sei se minhas palavras realmente atingiram ele. Ou se Lorenzzo
apenas se cansou de brincar com a vida dos outros. Ou se o pé na bunda
que ele provavelmente levou de Kira o atingiu de alguma forma.
O que sei é que uma semana depois ele decidiu que iria estudar fora.
E meses depois se mudou para os Estados Unidos.

Por um ano, minha vida foi perfeita sem a presença dele. Por um ano
tive paz. Vivi momentos alegres. Eu fui livre.
E aí então ele voltou.
Mas, dessa vez, eu estava exausto de fugir e me amedrontar por
causa de um rato como ele. Já não tinha mais tanto medo.
Que se fodesse meu irmão.
— Sentiu minha falta, verme? — Eu ouço a voz dele chegar até mim
quando entro em casa um dia, depois de voltar da faculdade.
Meu pai já havia me dito que ele retornaria, e por isso a presença
dele na sala de estar não me surpreende.
— Onde meu pai e Nina estão? — pergunto.
— Saíram. — Ele se senta no sofá e liga a TV. — Se comportou na
minha ausência, Zayan? Espero que tenha se lembrado de manter distância
da minha garota.
Minha garota.
Você é um grande canalha, Lorenzzo!
E se eu mantive minha distância não foi por ele. Foi porque já tinha
feito um bom trabalho em fazer ela me odiar. No final, meu irmão estava
certo em algo. Eu não sou uma boa pessoa. Eu sou uma pessoa de merda,
para ser sincero.
Kira está aí para provar isso. Desde que nos conhecemos, tudo que
eu fiz foi despertar o pior da garota. Ela sabe muito bem do ser desprezível
que eu me tornei.
Kira merece alguém bom ao lado dela. Eu não sou alguém bom.
Gostaria de ter sido.
Subo para o meu quarto sem responder a pergunta dele. Não devo
nenhuma satisfação a Lorenzzo.

Detenção de bosta essa que eu tenho que cumprir. Tudo porque eu


disse merda. Poderia ter ficado em silêncio e não estaria aqui agora.
Poderia ter ficado em silêncio e não teria magoado ela.
Mas agora estou aqui, sentindo um remorso absurdo me corroer e
tendo que lembrar do grande inútil que sou ao encarar o desprezo da
garota por quem eu me apaixonei todo maldito dia.
Vou em busca dela, porque sou masoquista e prefiro ela gritando
comigo, mas ao meu lado, do que ela em silêncio e longe de mim.
Me aproximo da recepção e noto a presença do meu irmão aqui.
O que esse canalha quer agora?
Ele está na frente dela e de Matteo, esperando uma reação. A postura
dele é a mesma que já conheço tão intimamente. Parece um predador
prestes a atacar uma presa indefesa. É o que Kira parece ser perto dele, tão
encolhida do outro lado do balcão.
Eu vou até ela e invento uma desculpa qualquer para tirá-la dali.
Kira ainda está petrificada e só reage quando Matteo diz para ela ir fazer
outra coisa. Fica de pé, mas ainda não se move.
Pego o pulso dela e a arrasto para longe desse monstro. Olho por
cima dos ombros e encontro os olhos verdes sanguinários me anunciando
um embate feio quando chegarmos em casa.
Que se foda!
Levo ela para um dos banheiros e solto a mão de Kira, sentindo uma
agonia crescente quando encontro o olhar quebrado da garota.
Não chora, linda. Por favor, não chora. Não por esse merda.
Quero dizer isso a ela, mas as palavras se embolam e meu
nervosismo faz com que minha fala soe como grosseria.
Ela se enfurece e me expulsa do banheiro.
“Kira, olha para mim. Eu preciso me desculpar. Não foi minha
intenção.”
Ela grita mais alto e eu saio, atordoado.
Mando uma mensagem para Carmela, avisando que meu irmão está
aqui e que Kira não está bem.
Carmela e Marco sabem que ele é meu irmão. Contei tudo a eles no
dia em que Kira me estapeou. O dia em que, de uma forma dolorida, eu tive
a epifania de que meu coração é um órgão inútil que decidiu me castigar,
me fazendo amar a criatura que mais me odeia.
Fico de tocaia no banheiro, porque Lorenzzo não irá sonhar em
chegar perto dela hoje. Nem hoje nem mais nenhum dia. Porque ele faz mal
a ela. E eu posso ser um ignorante do caralho, mas não vou deixar nada
mais fazer mal à Kira.
Carmela chega alguns minutos depois e aceno silenciosamente para
a porta do local onde ela está. Mel vai até a porta e entra.
Ouço o choro cortante da pequena Moretti e meu peito parece ser
esmagado.
Você não merece isso, pulguinha. Não merece.

Estou prestes a cometer uma grande loucura, mas quando não


cometo uma quando diz respeito à Kira Moretti?
Ela está acuada, encolhida contra a parede, ansiosa para se livrar do
meu irmão, que está do lado de fora do banheiro do bar que estamos. Ela
tem medo dele.
Achava que era vergonha de ter se envolvido com ele e depois
apanhado de uma maluca que fez Kira correr de Lorenzzo. Mas não é só
isso. Lorenzzo foi para ela o que foi para mim. O nosso monstro embaixo
da cama. Nosso bicho-papão, pulguinha, é o mesmo.
“Sei que não é a escolha mais inteligente, mas vou enfrentar ele com
você. Então, por isso, me perdoe, mas terei que te fazer sair desse
banheiro.”
Coloco a garota sobre meus ombros e ela esperneia. Saio para o
corredor, ignorando os protestos. Ele está ali, na parede do canto oposto.
Me encara e a expressão dele se transforma em algo assassino quando
percebe quem é que está se debatendo no meu ombro. Tenta chegar até nós
e eu aceno para Marco, mostrando que ele está aqui.
Marco e Matteo vão até ele, enquanto a levo para longe.
Não tão longe, porque sou impedido pelo irmão dela. Coloco Kira no
chão, sabendo que agora ela estará segura. Me viro para o dono da voz
que me impediu de seguir com Kira sobre meus ombros. Ele está parado na
calçada, com a garota nos braços. Ele a protege. Posso ver como protege.
E a dupla que o acompanha também, porque o cara de cabelo castanho
cacheado sai em defesa de Kira.
Ela está segura. É o que importa.
Eles entram no carro no instante em que Lorenzzo aparece do lado de
fora.
— Moleque de merda, eu deveria ter acabado com você quando tive a
chance! — Avança para cima de mim, mas dois funcionários do bar
surgem, o segurando.
— Por que não fez, desgraçado? Teve a vida inteira para fazer, mas
você é um covarde do caralho. — Eu tento ir na direção dele, mas Marco
me impede, segurando meu tronco.
— Ainda vou arrancar todos esses seus dentes, Zayan Castelli. Vou te
fazer sangrar, seu bosta! — Ele ainda tenta avançar, mas é segurado.
— Pode vir, irmão. Estou te esperando — provoco.
— Te falei para tirar meu nome da sua boca. Eu não tenho irmão,
você é um nada para mim. Um nada, Zayan! Eu odeio você e odeio sua
existência, assassino de merda!
— Que confusão é essa aqui na porta do meu bar? Se não quiserem
que eu chame a polícia, podem dispersar. — Um homem alto e musculoso
se posiciona entre mim e ele.
Lorezzo se afasta dos caras que o seguram e caminha para o lado
oposto, sem dizer mais nenhuma palavra. Marco me solta e me encara com
o olhar que eu odeio receber das pessoas.
Pena. Tudo porque tenho um irmão frio e cruel.
— Que história é essa de que ele é seu irmão, Zayan?
Ah, porra! Desde quando esse moleque está aqui? Que inferno, era
só isso mesmo que faltava. O chaveirinho de Kira Moretti descobrir meu
segredo sujo.
— Nada, Matteo. Esquece o que você ouviu.
Começo a caminhar para o lugar onde meu carro está estacionado.
— Eu vou deixar passar hoje, porque você está nervoso, mas vai ter
que me explicar essa história, Zayan!
Não devo satisfação para ele. Por mim, ele pode ir à merda.

— Desfaça essa carinha brava, Mel. Não combina com você.


Estamos sentados na biblioteca depois de eu ter narrado para
Carmela tudo que aconteceu naquele bar depois que ela foi embora.
— Ainda odeio você — a garota rebate.
— Não odeia não. Eu salvei sua Barbie. Mereço os créditos.
— Carregá-la sobre os ombros, enquanto ela se debate, não parece
muito uma salvação.
— Um pequeno detalhe.
— Você é um idiota, sabe disso.
— Por que exatamente?
— Eu preciso mesmo explicar?
— Do que estamos falando? — Marco chega até nós.
— Do quão babaca seu amigo é — Carmela responde.
— Não há nenhuma novidade nisso — Marco concorda.
— E o rosto? — pergunto com preocupação.
— Melhor, impossível. Isso aqui é só um detalhe. Marcas de guerra.
— E que história é essa de você se misturar com os perdedores
agora?
— Eu estou bem aqui. — Mel me olha com mau humor.
— É brincadeira, Mel.
— Essa é a hora que vocês me explicam que merda foi aquela no
bar? — Matteo questiona, se sentando à vontade ao lado de Carmela.
— Não precisa ter ciúmes, Zayan Castelli — Carmela provoca.
— Ciúmes?
— Tenta negar, bebê. Quero ver — Marco continua.
Sim, eu tenho ciúmes dela. Não vou negar. Os dois sabem quanto me
corrói ficar admirando a garota de longe, sabendo que a qualquer
momento alguém vai roubar o coração dela.
— Por que não vai atrás da sua pulguinha? Ela vai saber te explicar
tudo.
— Claro. Já aproveito e conto para ela tudo que ouvi.
— Você não se atreveria!
— Ei, fica calmo, cara. — Marco segura minha mão. — Matteo não
vai fazer nada disso.
— Quem garante que não? — Matteo desafia.
— Eu não confio nele — digo quando Carmela espera que eu despeje
tudo para um desconhecido.
— Você está se mordendo, achando que ele quer Kira. Isso sim. —
Sim, eu estou.
— Que se dane Kira e ele! Eu estou dizendo que não confio nele e
ponto.
— Perdi meu tempo aqui. — Matteo começa a se afastar.
— Senta aí, Matteo. Vou te contar tudo que aconteceu. Mas nosso
acordo é que você não vai abrir essa boca grande para Kira. Ela nunca
pode saber do que aconteceu. Entendeu?
— Isso vai depender do que você contar.
— Ele não vai contar. Você não vai contar — Carmela diz, alertando
Matteo.
— Fala — o bibliotecário ordena.
Respiro fundo, buscando coragem para ser sincero, e expiro em
seguida.
— Lorenzzo é meu irmão.
— Aquele merda não chama Lorenzzo. Ele é o ex-namorado de Kira,
Gregório — Matteo diz, descrente.
— Lorenzzo Gregório Castelli.
— Como assim, caralho?
— É o nome completo do meu irmão. Ele não gosta de usar Lorenzzo,
por isso só se apresenta com o nome do meio.
— Você vai falar para a Kira.
— Não devo satisfação da minha vida para ela! — rebato com fúria.
Não tenho que contar nada a ela.
Não tenho que dar motivos para a garota me desprezar ainda mais.
Ela não precisa saber que as duas pessoas mais odiosas da vida dela
dividem o mesmo sangue.
— Ela tem o direito de saber, Zayan!
— Que diferença faz, Matteo? Para ela, que diferença faz?
— Isso quem vai decidir é ela!
— É a porra da minha vida! Eu decido o que fazer. Kira não vai
saber. Ela não pode saber.
— Por que você está escolhendo esconder essa informação?
— Kira me odeia, Matteo. Se ela souber que eu e Lorenzzo somos
irmãos, ela vai me expulsar da vida dela de vez, porque eu omiti isso dela.
— E por que isso importa? — questiona com desprezo.
Tenho vontade de explodir e gritar para ele tudo que me sufoca. De
gritar para o mundo tudo que me consome dia e noite e que eu guardei a
sete chaves por muito tempo. Quero fazer ele entender a dimensão da
agonia que me consome apenas por saber que dentro do coração puro de
Kira, há uma mancha de rancor deixada por mim.
— Sei que é difícil acreditar, mas eu amo aquela garota. — Que
inferno, eu estou chorando mais uma vez por ela! Eu sou patético! Limpo o
rosto quando as lágrimas caem e respiro fundo, encarando um ponto na
mesa. — Kira Moretti, uma pequena criatura cheia de energia e alegria, foi
minha rendição silenciosa. Para ela entreguei meu coração, sem que ela
sequer pedisse, sem que ela soubesse. Por ela eu me agigantei e tenho
enfrentado meus demônios. Por ela eu seria capaz de mover o mundo. E ela
nunca saberá disso. Nos formamos em menos de um ano, Matteo. E Kira
nunca mais me verá. Kira esquecerá que um dia eu e Lorenzzo existimos na
vida dela e viverá feliz. Os anos vão passar e os Castellis serão apenas uma
lembrança amarga que a visita vez ou outra. Não faz diferença para Kira
saber que somos irmãos. Ainda assim seremos a parte ruim da vida dela.
Faz diferença para mim, no entanto. Porque tudo que eu quero é poder
aproveitar os últimos meses ao lado da garota que me fez querer ser meu
melhor, mesmo que de uma maneira muito torta. Faz diferença para mim
porque não quero que ela me expulse da vida dela. Mesmo que eu esteja na
vida de Kira para que ela me odeie e direcione a mim a fúria dela, ainda
assim é melhor do que nada. É melhor do que suportar e assistir o
esquecimento. Nós vamos nos despedir. E vai doer para um caralho em
mim. Por favor, não me peça para adiantar esse rompimento. Não estou
pronto. Ainda não.
Todos ao meu redor estão em silêncio depois de eu despejar parte do
que me atormenta.
É difícil de acreditar quando só ofereci a ela desprezo. Mas eu não
sou digno de amá-la. Não sou digno de reivindicar Kira, porque estraguei
qualquer chance de ter algo bonito quando levei as provocações ao nível
mais vil e sujo.
E não sou digno porque destruo tudo que amo. Porque tenho uma
habilidade nata de machucar os outros.
Kira não merece alguém que vai terminar de quebrá-la. Ela merece
alguém que a faça feliz. Muito feliz.
— Por que não diz isso a ela? — Marco questiona com a voz
embargada.
— Eu estou sendo egoísta aqui, Marco. Porque eu sou um grande
bastardo e estou fazendo isso por mim. Porque eu quero aproveitar cada
maldito segundo que tenho ao lado dela, antes de amargurar minha
existência sonhando acordado todo santo dia com o que eu e Kira
poderíamos ser. — Ergo o olhar e encaro todos eles. — Eu sei que não
posso exigir o silêncio de vocês e não posso obrigar ninguém a guardar
esse segredo. O que eu posso fazer é implorar para que me deixem estar
perto dela pelos poucos meses que temos pela frente. E depois disso, Kira
viverá feliz. E eu saberei que aproveitei o que pude da presença dela.
Mais um longo silêncio se faz até que Carmela diz:
— Não concordo com isso, Zayan. Acho que Kira tinha o direito de
saber e escolher o que fazer com essa informação. Mas não vou entrar no
seu caminho. Espero que entenda a profundidade da escolha que está
fazendo.
— Faço de Carmela as minhas palavras. E Kira tem um coração
bom. Ela entenderia se escolhesse ser sincero — Matteo completa, já se
levantando.
— Estou com eles nessa, irmão. — Marco dá um tapinha no meu
ombro antes de se afastar junto com Carmela e Matteo.
Sou deixado sozinho para lidar com meus pensamentos fodidos.
A paz só chega até mim quando Kira entra pela biblioteca com um
sorriso lindo no rosto.
Se você está feliz, eu estou feliz, pulguinha.

Eu abaixei a guarda. Eu abaixei a guarda para ela e contei que tenho


um irmão. Que merda eu fiz? Ela vai descobrir. Vai descobrir tudo. Eu não
posso abaixar a guarda com Kira.
Não posso deixar ela entrar no meu mundo, preciso provocá-la de
novo. Não sei lidar com a compaixão dela. Kira vai me fazer cometer
alguma loucura.
Pego o livro que ela precisa.
Ela vem até mim e xinga. Jura que vai me entregar o ódio que eu
tanto desejo.
Mas ela joga baixo. Dias depois expõe fotos minhas. Machuca ter que
lembrar de tudo que meu irmão me fez.
Kira me magoou com essa merda de apresentação.
Por que fez isso, linda?
Não estamos nos falando e ainda estou chateado com o que ela fez.
Mas então os três imbecis aprontam com a nossa cara. Agora estamos
presos no almoxarifado.
Discutimos, nos exaltamos. Ela me conta tudo que meu irmão fez a
ela. Quase tudo. Sinto que ainda tem algo que ela esconde.
Lorenzzo vai pagar por isso. Eu vou acabar com a raça desse
desgraçado de merda. Ele tirou os dias de paz da minha pequena Moretti.
Ele levou terror à vida dela, bem como fez com a minha. Ele amedrontou e
apavorou Kira por tantas vezes, sem dar a garota a chance de se defender.
Aprisionou a garota na gaiola do medo que sempre me manteve. Mas
eu vou tirar nós dois desse lugar, linda.
Te prometo.
Estou fragilizado. Ela também. Kira implora por respostas. Quer
saber porque a odeio. Meu corpo implora pelo dela, e por isso eu deixo as
palavras deslizarem por mim.
Quero você, pulguinha. E você está muito perto. Acho que vou te
beijar. Sim, vou beijar você, Kira Moretti. Porque amo você. E porque
quero sentir como é doce o sabor da entrega.

Eu beijei ela. E mandei mensagem para o meu irmão dizendo que a


beijei. E que ela nunca foi dele.
Nem minha.
Kira é livre. Ela será livre. Garantirei isso.
Agora Lorenzzo entra no meu quarto, querendo tirar satisfação.
— O que você fez, seu merdinha?
— Vai ter que ser mais específico.
Nós discutimos e ele quase avança na minha direção, mas meu pai
chega e eu saio do quarto.
Mais tarde, quando Nina e meu pai estão no teatro, ele volta para o
acerto de contas.
— Você não beijou ela! — Me segura pelo braço quando entra na
cozinha, onde estou pegando um copo de água. — Você não fez isso, ou eu
acabo de vez com você.
— Sim, eu beijei. — Seguro o pulso dele e o afasto do meu corpo. —
E ela me contou tudo que você fez, babaca de merda. Pode ser que você
nunca pague por cada agressão física e psicológica que me submeteu,
infeliz, e estou pouco me fodendo, mas você atormentou ela, desgraçado.
Você mexeu com ela. E para isso não existe impunidade, Lorenzzo. Eu vou
provar de alguma forma tudo que causou à Kira. E vou garantir que você
apodreça em uma cela suja e fria por isso.
— Eu não fiz nada, verme! — Tenta avançar, mas empurro o peitoral
dele.
— Eu conheço você e sua maldade. — Bato com o indicador no
ombro dele. — Eu vou até o fim do mundo para provar o que fez a ela.
Passo por ele antes de ouvir Lorenzzo retrucar.
Passei dias tentando fugir dela e do que sinto. Me torturei, porque
tinha a certeza de que não seria merecedor dela. Porque eu guardo um
segredo sujo que fará Kira fugir de mim quando souber.
Não cedi a ela por inteiro, porque eu sou mestre em sabotar a minha
felicidade.
Mas ficou insuportável resistir, principalmente porque eu já beijei ela
e me condenei nesse instante.
E então eu decido me entregar. Lutar. Por ela e por mim. Posso ser
feliz. Mereço ser feliz.

Ele tocou nela. As mãos nojentas do meu irmão passaram pelo corpo
dela e agora Kira está com medo.
Passei o dia com ela e depois fui até a casa dos pais dela. E então ela
contou o que aconteceu. E eu senti a fúria consumir cada partícula minha.
Deixo-a no apartamento e dirijo até minha casa.
Para meu completo desespero, meu pai e Nina estão aqui. Lorenzzo
me encara com um sorriso vitorioso. Esse parasita nojento e desgraçado.
Ele sabe que eu não vou avançar e quebrar a cara dele aqui e agora.
Pego algumas coisas minhas e anuncio que irei para a casa de
Dafne. Ou cometerei uma grande loucura respirando o mesmo ar que esse
agressor covarde.
Eu ainda vou acabar com você, miserável de merda.
Eu posso ir para o inferno por isso. Posso perdê-la. Mas eu acabo
com você.
Estou prestes a sair da casa de Dafne para pegar Kira e Carmela
quando meu celular toca.
O que esse desgraçado quer agora?
— O quê? — atendo já consumido pela fúria.
— Espero que esteja feliz, verme de merda! Acabei de sair da
reitoria. Você e sua namoradinha fizeram minha matrícula ser suspensa!
Eu fui convidado a me retirar da faculdade por uma denúncia de assédio!
— grita do outro lado da linha.
— Eu te disse que você cairia, e esse é só o começo, infeliz. Você vai
pagar por tudo que fez a ela. Boa sorte explicando para nosso pai porque
não vai mais às aulas.
Desligo antes de ouvir qualquer outra palavra imunda sair da boca
dele. Não tenho dúvidas de que ele vai enrolar Leonardo Castelli o quanto
puder e fingir que está assistindo às aulas. Mas eu vou fazer essa máscara
cair.
Mando uma mensagem para Carmela, dizendo que é para elas
esperarem do lado de dentro do prédio, e explico o que aconteceu. Não
quero correr o risco de elas esbarrarem com Lorenzzo na rua, caso ele
decida ir confrontar Kira.
Meu irmão faz uma escolha sensata e não aparece. Quando as duas
entram no carro, ela me olha e sorri, e então parte do meu desespero se vai.
Você vai ficar bem, linda. Vai ficar. Eu vou garantir isso.
— Seu... irmão... Gregório. Seu irmão. Não, não. O sobrenome dele é
Pisano. Ele só tem o pai. Não tem irmão. Não tem Castelli.
Ela está atordoada e sussurra perdida. Quero me levantar e acabar
com a confusão que a toma, mas não consigo reagir.
— Pisano é o sobrenome da minha falecida esposa — meu pai
responde. Parece estar desorientado.
— Lorenzzo o usou para mentir para você, Kira. Assim como mentiu
sobre a família. — Ele mentiu porque nos odeia. Porque despreza a mim e
Nina. Porque nunca nos apresentaria para ninguém.
— O que seu irmão tem a ver com ela? — Leonardo questiona,
confuso.
— Seu filho tentou violentar a minha menina! — Martina está
chorando. — Duas vezes! — ela berra para meu pai, e Giorgio a segura
quando ela quase desmorona.
Duas vezes? Como assim duas vezes?
“Não foi você que quase teve seu corpo e mentes violados de um jeito
cruel!”, ela me disse há algum tempo na biblioteca e depois nunca me
contou o que aconteceu.
O que aconteceu, Kira?
— Meu... filho? — meu pai pergunta. Está em choque.
— Zayan, isso... — Nina também está perdida.
— Zayan! Que história é essa? — meu pai exige uma explicação.
— Lorenzzo não é nada do que vocês imaginam que ele seja. —
Minha voz sai automática. — Lembra disso aqui? — Levanto a camisa e
aponto para a única cicatriz visível. — Eu não tropecei com a chaleira na
mão. Ele a tirou do fogo e despejou a água em mim.
Minha cabeça dói.
Kira, olha para mim. Conversa telepática, linda. Preciso dela agora.
Mas ela não olha. Vai até os pais e se esconde no abraço deles.
Ela me odeia. Sei que odeia. Dessa vez não conseguirei reverter. Meu
coração encolhe. Meu corpo está inundado pelo desespero.
— Zayan, nós vamos resolver isso agora! — Leonardo caminha até a
porta e Nina o segue.
Me obrigo a me levantar.
Torturo meu pobre coração um pouco mais, só para ter certeza de que
não há salvação para nós dois, que ela vai me desprezar de uma forma
potente e avassaladora.
— Kira? — chamo.
— Some daqui, Zayan! Vai embora e nunca mais volta para minha
vida!
Ela me quebra. Desfaz toda esperança que um dia tive em tê-la
comigo.
Foi por isso que lutei para mantê-la longe de mim. Por isso quis que
ela ficasse longe. Porque eu sempre soube que doeria.
Sempre soube que me despedaçaria.
Sempre soube que eu me destruiria.
Porque, no fim, é isso que eu sempre faço.
Ninguém diz nada no caminho de volta. Estou sendo transportado
para o poço de solidão que sempre vivi, antes de experimentar a alegria de
tê-la em minha vida.
Eu sabia que não estaria pronto para me despedir.
Agora tudo em mim dói. Machuca de uma maneira irreparável.
Saio do carro ainda com movimentos robotizados e só volto para
realidade quando a voz do maldito chega até nós.
— Onde vocês estavam?
— Que história é essa que você tentou abusar de uma garota,
Lorenzzo? — meu pai berra.
Meu irmão me encara com fúria antes de colocar uma expressão
inocente no rosto.
— Você vai acreditar no que Zayan diz, pai? Esse garoto não bate
bem, já te disse isso algumas vezes. É por isso que ele se trata, é louco!
— Olha o jeito que você fala do seu irmão, Lorenzzo! — Meu pai
aponta o dedo na direção dele, que está parado, de pé, na entrada da sala de
estar.
— Eu vou no psicólogo para lidar com as torturas que você me
submete, seu merda! — rebato o comentário dele.
— Seu... — Ele avança, mas meu pai coloca o corpo na minha frente.
— Não foi Zayan que disse tudo. Foram os pais da garota. Você se
entregou, Lorenzzo. Eu não acredito que você foi capaz de uma covardia
dessas! Eu sempre soube que a perda da sua mãe deixou uma marca enorme
e dolorida em você, mas nunca imaginei que você seria destituído de caráter
por causa disso. — Posso notar como meu pai estremece de raiva. — Isso
tudo é culpa minha. Eu deveria ter sido mais rígido com você, mas sempre
achei que assim te quebraria de vez. Eu fui o covarde! — esbraveja, tomado
por um ódio visceral. — Mas nós dois vamos assumir nossa culpa.
— Do que você está falando? Eu não fiz nada!
— Nós vamos para a delegacia agora. Eu vou te pagar um advogado.
Farei isso porque sou seu pai. E então farei de tudo para que seu julgamento
seja justo e que sua punição seja severa. Farei isso porque sou um juiz. E
como tal, meu dever é garantir que a justiça seja feita. E nós traremos
justiça à Kira Moretti. E ao seu irmão. Então você escolhe. Vai por escolha
própria ou vai no carro da polícia?
Sou pego de surpresa pela firmeza na ordem que ele dá.
— Responde, Lorenzzo! — Aumenta o tom de voz.
— Espero que você apodreça no inferno, Zayan! — Meu irmão
aponta para mim, se livrando de vez da máscara de bom moço que carregou
pela vida toda.
Meu pai ergue a mão e dá um passo à frente, mas o seguro e impeço
que avance.
— Pai... — chamo.
— Nina, você leva Zayan. Eu vou com Lorenzzo.
— Pai — chamo de novo.
Ele se vira para mim e vejo no olhar dele como está quebrado.
Destruído. Mas nada tira a resolução de Leonardo Castelli.
— Vai ficar tudo bem, Zay. Não se preocupe. — Ele acaricia minha
face com ternura.
Fico desconcertado e sem reação.
— Vem, Zay. Vamos, meu menino. — Nina segura meu braço com
delicadeza e me conduz para o lado de fora.
Entro no carro com ela ainda aéreo, sem conseguir assimilar tudo que
aconteceu. A única realidade que me toma de assalto é a dor de sentir meu
coração se quebrando por ela.
Perdi ela. Eu a perdi.
Estamos sentados, eu, minha mãe e meu pai, na mesa de jantar. Faz
muito tempo que estamos assim, em silêncio. Cada um preso em seu
próprio emaranhado de pensamentos, absorvendo tudo que acabou de
acontecer na sala de estar.
— Nós vamos denunciá-lo. Agora! — minha mãe anuncia, enfim, e
eu não tenho forças para contestar.
Zayan e Gregório são irmãos.
Irmãos.
Como eu pude ser tão burra? Como eu não pude enxergar a verdade
que estava bem na minha frente?
Por que ele fez isso comigo? Por que Zayan brincou com a linha do
meu destino assim? Ele não tinha o direito de esconder a verdade! Eu
confiei nele. Entreguei a ele tudo de mim. Zayan não podia ter feito isso.
Ele não podia!
— Kira! — Tomo um susto quando meu pai me chama.
— Estou indo. — Caminho apressada com eles em direção ao carro.
Não vejo nada da cidade passar lá fora quando meu pai dirige,
discutindo baixo com minha mãe.
Saio do carro com minha mente entorpecida. Meus pais vão até uma
mesinha onde um funcionário está. Eu me sento em um banco e encaro o
chão.
Cada maldita peça começa a se encaixar na minha cabeça e eu me
sinto estúpida por não ter notado antes.
Foi por isso que Zayan quis que eu o odiasse. Foi por isso que ele
disse que seria melhor que eu não encontrasse o irmão dele.
Zayan e Gregório. Irmãos. Não pode ser real. Deve ser minha mente
me pregando peças. Isso não é verdade.
Penso que enlouqueci de vez quando sinto o aroma de Zayan próximo
de mim. Talvez esteja impregnado em mim. Talvez seja um mecanismo do
meu cérebro que entende que ele me traz calma, mesmo que eu odeie a
ideia. E eu preciso dessa calma nesse instante.
Por que você fez isso, Zayzay?
— Não tem um porquê, Kira.
Meu coração despenca quando entendo que não é minha imaginação.
Ele está aqui. E me ouviu dizer a frase em voz alta.
— O que está fazendo aqui? — questiono, ainda olhando para o chão.
Noto ele se movimentar e sentar-se a dois bancos de distância.
— Acho que o mesmo que você. — Exala o ar, cansado.
— Você vai...
— Meu pai não me deu muita escolha. Nem a mim nem a ele.
— Ele está aqui?
Olho em volta, em busca do meu pesadelo pessoal, sem olhar na
direção que Zayan está.
— Lá dentro. Sendo interrogado.
— Você já foi lá?
— Sim.
Silêncio.
Meus pais ainda conversam com o policial que está na recepção. Não
sei se estão me vendo aqui com Zayan.
— Posso perguntar uma coisa? — Zayan pede.
— Sim. — Eu deixo, porque enquanto ele está falando, não fico
nervosa.
— Sua mãe disse que ele... que ele... duas vezes?
— Que ele quase me violentou duas vezes.
— Sim.
— Eu te disse que na minha primeira briga com ele soube quem era
Gregório... Lorenzzo de verdade. Ele sabia que eu era virgem e sempre
respeitou meu espaço. Mas, então, em uma noite nós saímos para uma festa
juntos. Ele bebeu um pouco além da conta e em certo momento nós fomos
para um cômodo vazio da casa. Sempre ficávamos assim, entre beijos e
amassos, mas quando eu sentia que estava indo longe demais, pedia para ele
parar, e ele parava.
“Nessa noite, ele não parou. Eu pedi para que ele não me tocasse
mais, mas ele se enfureceu e começou a gritar comigo. Disse que eu era
dele por direito e que eu deveria parar de bancar a garotinha inocente e abrir
minhas pernas para ele. Eu me apavorei e achei que entraria para as
estatísticas nessa noite, que eu seria mais uma que teve seu corpo violado
por um abusador de merda.
“Eu tentava gritar, mas ele me silenciava. Foram segundos de terror
que pareceram durar uma eternidade. Mas, por algum milagre, Carmela não
foi embora mais cedo nessa noite, como ela sempre fazia. Ela sentiu minha
falta e foi me procurar. Ele devia estar tão bêbado que esqueceu de trancar a
porta do quarto.
“Ela me achou. Ela o enfrentou sem medo. Gregório... Quer dizer,
Lorenzzo levou um soco bem dado dela. Não sei onde ela aprendeu a se
defender assim. O que eu sei é que ela me levou para longe e deixou ele
com um nariz sangrando. E eu nunca mais o procurei. Ele começou a vir
atrás de mim. O resto da história você sabe.”
— Eu sinto muito, muito mesmo que tenha passado por isso.
— Eu também.
Mais silêncio. Onde meus pais estão? Isso não vai acabar?
— Você me odeia, não odeia?
— Não estou pensando nisso agora, Zayan. Só quero acabar com tudo
isso de uma vez por todas.
— Vai acabar. Ele não vai ficar impune.
— Como você sabe disso? — Levo a mão à boca e começo a roer a
unha.
— Meu pai...
— Ah, é claro. O juiz. — Sarcasmo me escapa sem que eu controle.
— Como você sabe?
— Não foi porque você me contou. Disso nós sabemos.
Ele não retruca, não me repreende e não me oferece uma má resposta.
— Como você sabe? — repete.
— Seu irmão uma vez me ameaçou. Disse que o pai era juiz, e que se
eu tentasse denunciar, a justiça nunca ficaria do meu lado.
— Entendi. Meu pai não faria nada disso, só para você saber. Ele
sempre foi imparcial, e com Lorenzzo não seria diferente.
— Kira, venha cá — minha mãe chama. Eu levanto e vou até ela. —
Já ligamos para a advogada. Em alguns minutos ela chega.
— Certo.
— Onde está o imprestável do seu irmão quando eu preciso dele? —
Martina começa a resmungar sobre Dante e eu não presto mais atenção
nela.
Porque meu olhar finalmente encontra o dele. E a única coisa que eu
vejo é um garoto quebrado. Tão destruído que me leva junto. Me quebra
junto.
Eu olho nos olhos de Zayan e o reconheço pela sua dor. Nossas dores
se encontram. Por um momento somos um só, nos vendo através do outro.
“Você vai ficar bem agora, pulguinha.”
“Você também, Zayzay.”

Faz mais de três horas que estamos nessa delegacia e já não aguento
mais. Revivi todos os piores e mais sórdidos momentos que aquele monstro
me submeteu e tive que explicar com detalhes sobre tudo.
O único alívio que tive foi saber que Lorenzzo confessou tudo. Não
imagino que tenha sido porque quis, mas sim porque o pai o obrigou de
alguma forma.
Talvez Leonardo Castelli seja mesmo um juiz imparcial.
Quando saio para a recepção, já exausta, percebo que Zayan não está
mais ali.
Mas se estivesse também, o que eu faria? Correr para abraçá-lo?
Confortá-lo? Ser confortada por ele? Não. Não posso me permitir isso.
Zayan traiu minha confiança quando escondeu essa informação. Eu
acreditei nele. Isso não é algo que se mantém em sigilo. Ele deveria ter me
dito muito antes.
Por que esconder, Zayan? Por que não confiou em mim?
Meus pais dirigem para a casa deles e não contesto nem os peço para
me levar para meu apartamento. Não estou com cabeça para fazer nenhuma
escolha.
Eles são irmãos. Zayan e Lorenzzo Gregório. Irmãos Castelli.

— Não precisa ir para a faculdade se não quiser — minha mãe diz


quando estamos na mesa de café.
— Já faltei ontem. Não posso faltar sempre.
— Kira... — meu pai chama minha atenção.
— Pai, já perdi coisa demais por causa desse infeliz. Ele já está preso
e vai responder pelo que fez. Preciso seguir em frente.
Ele e Martina não dizem mais nada.
Depois do café, meu pai me deixa em meu apartamento, para que eu
pegue meus materiais. Subo, abro a porta e encontro Carmela prestes a sair.
— Onde você esteve? — questiona com preocupação.
— Estava na casa dos meus pais. Te mandei mensagem. Você não
imagina a loucura que aconteceu. — Jogo meu corpo no sofá, ainda
exausta, e começo a narrar todos os acontecimentos dos últimos dois dias.
— Então ele te contou — diz, sem demonstrar surpresa com nada do
que eu disse.
E então eu entendo tudo.
— Você sabia. — Os olhos dela arregalam quando minha fala sai
carregada de acusação.
Inacreditável como esse imbecil envolveu todo mundo na rede de
mentiras dele. E como eles se deixaram levar por Zayan?
— Marco e Matteo sabem, não sabem? — Está aí o porquê de Marco
não querer acreditar que Zayan havia me contado tudo sobre o irmão.
Marco sempre soube quem é Lorenzzo Gregório.
— Kira...
— Responde, Carmela!
Ela toma um tempo para responder, me estudando com preocupação.
Os ombros dela cedem quando ela finalmente entrega:
— Sabiam.
— Eu não consigo acreditar! Você devia sua lealdade a mim! Não a
ele. — Levanto e caminho até o meu quarto.
— Kira, espera!
Fecho a porta com força e a tranco.
Que babaca do caralho! Ele brincou feio comigo. Quem ele pensa que
é para achar que tem alguma autoridade sobre tudo que acontece ao meu
redor? E que poder é esse que Zayan tem de convencer as pessoas a
mentirem e enganarem amigos?
Amigos!
Não posso chamá-los assim. Amigos não fariam o que eles fizeram.
Por mim, eles que se fodam e façam uma ciranda com Zayan no
quinto dos infernos.
— Kira!
Mas que merda! Tirem meu nome da boca de vocês!
Matteo vem até mim quando chego zangada na biblioteca, e eu passo
por ele, o ignorando. Zayan e Carmela, provavelmente, já foram fofocar, e
ele já deve saber que não quero conversar com ninguém.
— Kira, espera! — Matteo não desiste.
— Me esquece, Matteo!
Guardo minha mochila no armário reservado a mim e passo por ele.
Foi uma manhã de merda. Ignorei Carmela, que veio do meu lado,
tentando me fazer falar. Ignorei Marco e Zayan na sala de aula, procurando
uma carteira que me colocasse longe deles e fosse rodeada de pessoas que
não encheriam a porra do meu saco.
Sigo tentando fingir que eles não existem ou que estão aqui, mas eu
tenho um órgão inútil que bate forte e faz o sangue correr acelerado por
todo meu corpo quando eu vejo o maldito Zayan Castelli parado, de pé, do
outro lado da biblioteca, quando eu assumo meu posto.
Se ao menos tivesse sido sincero, Zayan, não estaríamos aqui, de
volta ao nosso ponto de partida, onde me fez te odiar fervorosamente.
Ele ergue o olhar e me encara, e eu disfarço, indo o mais longe dele
que a biblioteca me permite estar.
O que eu entendo, no entanto, é que posso tentar veementemente me
afastar, mas não me abandonará com facilidade o vazio desesperador que a
ausência dele vai me causar.
Faz quase duas semanas desde que meu mundo foi virado de ponta-
cabeça.
É fodida a forma como Zayan Castelli tomou conta dos meus dias
desde então. Eu não queria que ele tivesse esse poder sobre mim, mas ele
tem.
Porque ele me levou do céu ao inferno sem que eu tivesse chance de
me salvar. E agora tudo que eu queria era sentir todo o ódio que um dia ele
me ensinou a sentir. Mas quando Zayan me permitiu enxergá-lo em sua
fragilidade, tirou de mim toda capacidade de sentir desprezo por ele.
Agora tudo que me restou foi uma agonia crescente causada pelo
distanciamento dele.
E não posso fugir, não posso me afastar, não posso expulsá-lo da
minha vida, porque nos vemos quase todos os dias.
Não posso nem mesmo buscar consolo para a tristeza que me toma,
porque ele me tirou meus amigos.
Não os perdoei por ter mantido segredo.
Eu e Carmela ainda dividimos o apartamento. Nos primeiros dias, ela
tentou conversar, mas depois de conseguir apenas silêncio de mim, desistiu.
Não sei o que faremos, mas não consigo pensar nisso agora.
Me sinto sozinha. Quero meu irmão, mas ele não voltou. Quero
chorar, mas não farei isso na frente deles, que me assistem como se eu fosse
uma peça em exibição em algum museu.
Sinto os quatro pares de olhos me sondarem em cada movimento
meu. Como agora.
Estou sentada na biblioteca, terminando de preparar o discurso e os
pontos estratégicos para a defesa teórica que meu grupo fará no debate final
do semestre.
Zayan, Carmela e Marco estão sentados duas mesas depois da minha.
Posso sentir que estão me encarando. Se eu erguer o olhar, irão disfarçar e
voltar a atenção para o caderno que cada um colocou à sua frente. Matteo
anda pelos corredores de livros sem nenhum objetivo específico. Passa pela
mesa onde estou a cada dez minutos e não diz nada. Apenas anda com
lentidão.
Tento ignorar e foco na atividade à minha frente. Preciso que minha
defesa sobre o tema seja impecável, mesmo que seja para mim uma
temática estúpida e traiçoeira.
Amor. Argh!
“Você tem meu coração. Eu amo você, Kira Moretti. Tanto que chega
a doer.”
Blá-blá-blá.
Ama nada, Zayan Castelli. Omitiu de mim quem era seu irmão por
anos. Anos!
— Boa tarde, Matildinha. — Ergo o olhar e encontro Santino, que se
aproxima e senta ao meu lado.
Abro um sorriso tímido e contente pela primeira vez em dias, me
sentindo finalmente alegre por estar na companhia de alguém.
— Boa tarde, Santi.
— Como você está? — Ele abre um caderno e distribui os materiais
sobre a superfície.
— Bem, e você?
— Bem também. Quer me falar sobre o que está acontecendo aqui?
— Ele acena sutilmente para a mesa à frente, onde os traidores estão.
Encaro a direção que Santi apontou, e como previ, eles se viram
apressados e fingem estar com a atenção no material que têm em mãos.
— É uma longa história. — Solto o ar com pesar.
— Bom, eu sou um bom ouvinte. Eu acho.
— Não quero falar agora. — Olho de novo para o trio.
— Quer sair para beber algo? Talvez possa te ajudar no que quer que
esteja acontecendo.
— Hoje eu estou cheia de coisas para fazer. Mas a gente sai no fim de
semana.
— Combinado, Matilda.
— Combinado, Santi. Agora preciso ir, porque meu castigo está
prestes a começar. Nos vemos.
Eu me levanto e aceno, me despedindo. Passo pelo trio sem olhar na
direção deles.

Estou sentada na mesa de um bar com Santino, no meu terceiro


drinque.
É domingo e ele me buscou em casa, quando mandei mensagem o
convidando para sair. Precisava tirar minha cabeça do lugar confuso que ela
tem passeado e precisava respirar um novo ar.
— Então, vai me contar o que está acontecendo entre você e
Carmela? — questiona com uma curiosidade genuína.
— Ela não te falou nada?
— Carmela é muito reservada. E, no momento, eu não estou
conversando com ela, então não, não sei de nada.
— Por que não estão conversando?
— Eu conto depois que me contar sobre vocês dois — sugiro.
— Não sei dizer, Kira. A verdade é essa. Achei que estivéssemos
sintonizados. Eu decidi falar abertamente sobre meu interesse por ela,
joguei limpo. E ela estava correspondendo. Mas então começou a se afastar
de uma hora para outra.
— Carmela não sabe lidar muito com o desconhecido. Apostaria que
ela está desenvolvendo sentimentos por você e isso está a assustando.
Espere um tempo, deixe ela assimilar tudo e volte a conversar com ela.
— Vou escutar, você. É melhor amiga dela, sabe melhor do que eu o
que está acontecendo. Agora me diz, por que brigaram?
Eu começo a narrar todos os acontecimentos, acompanhando as
expressões chocadas e incrédulas de Santi.
— Que loucura, Matilda! — Ele toma mais um gole da bebida, depois
de eu ter compartilhado tudo que aconteceu nos últimos tempos.
— Eu sei!
— Quer dizer... Seu ex e o irmão de Zayan são a mesma pessoa. A
mesma pessoa!
— Isso parece roteiro de filme, Santino. — Rio sem graça e sugo o
resto do spritz com o canudinho.
— Uma comédia dramática.
— Um brinde à minha comédia dramática.
Gosto da sensação de formigamento que começa a se apossar de mim.
Talvez hoje, só hoje, eu poderia esquecer de toda confusão que tomou meus
dias.
Levanto da mesa e pego mais uma bebida.
Volto a me sentar com Santi. Nós rimos, bebemos e conversamos, e
eu entorpeço minha consciência.
Todos os meus filtros, conscientes e inconscientes, se vão pouco a
pouco. E acho que é por isso que eu pego meu telefone e envio uma
porcaria de mensagem. Não tenho uma resposta.
Que estupidez a minha. Enviar uma mensagem?
Ainda converso sobre algo com Santi. Sobre o que mesmo estamos
falando?
Mais alguns drinques.
Levanto para ir ao banheiro. Quase tropeço.
— Kira, eu acho melhor a gente ir. — Santino está ao meu lado.
Ele segura minha cintura.
— Não, eu estou bem. — Tento me equilibrar em minhas próprias
pernas.
Tudo gira.
— Não está, Matildinha. Vou te levar embora.
— Não vou embora! Nós viemos beber.
— Já bebemos demais. Senta aqui, eu vou pagar a conta.
A mão dele não está mais na minha cintura.
Meus olhos piscam pesadamente e a superfície da mesa parece ser um
bom travesseiro.
— Vem, bêbada. Vou te levar para casa.
Um braço passa pelo meu ombro e eu estou de pé. Ando alguns
longos metros e sinto uma brisa fresca repentina. Onde eu estou?
— Santino! — Zay? O que é isso? Um sonho? — Deixa que eu levo
ela.
— Não acho que seja uma boa ideia.
— Eu levo. Não se preocupe, não vou fazer nada contra Kira.
Sou passada de um ombro para outro como uma boneca de pano.
Suspiro quando sinto o aroma de Zayzay tão perto.
— Zaaaaaaaaaay! — Fungo o pescoço dele. — Vou com você?
— Quer ir comigo, pulguinha?
Aceno que sim. Preciso dormir. Mas se eu dormir, ele vai embora e
eu não vou matar a saudade que eu sinto dele.
— Vou te levar para casa, tudo bem?
— Sim — suspiro profundamente.
Sem contestar, eu me sento no banco do carro. É o carro de Zay, não
é? Tudo ainda gira, gira, gira.
— Está tudo certo por aí?
— Hum...
Estamos nos movimentando. Minha mente ainda oscila entre a
consciência e inconsciência, e parece que eu apenas pisquei e o carro parou
de se mover.
De novo, o vento frio me toma de assalto. Dessa vez parece que estou
flutuando, já que meus pés não tocam o chão.
— Kira, fala comigo.
— O quê? — Que travesseiro rígido esse. Cutuco o objeto. Duro. —
Quero outro travesseiro. Pode pegar para mim?
O travesseiro chacoalha e um som gostoso sai de dentro dele. Acho
que é uma risada.
Cutuco de novo, mas dessa vez nenhum som sai.
Plim.
Estamos em movimento. Ouço o som da campainha.
— Espera, eu já vou abrir! — digo, sem querer me levantar daqui.
Onde estou deitada?
— Acho que quem tem que dizer isso é a pessoa que está do lado de
dentro, pulguinha.
— Não me chama de pulguinha. Só meu Zayzay me chama assim!
Acho que uma porta se abre.
Balanço as pernas, tentando identificar se estou no céu, porque ainda
flutuo.
— Que bom que é ele aqui, não é?
Zayzay!
Mais movimento. Agora sou colocada em uma superfície macia. Mas
eu preferia a rigidez, porque ela tinha um cheiro bom. Meu travesseiro
começa a se afastar, mas me agarro nele, porque não quero que vá embora.
Senti sua falta, travesseiro. Fique aqui comigo.
— Só vou tirar seus sapatos, linda.
Eu solto, acreditando na promessa dele. Meus dedos dos pés se
movimentam livremente. O lado da minha cama é ocupado. Me aninho no
meu travesseiro grande, cheiroso e rígido.
E durmo, sendo transportada para o paraíso dos travesseiros.
Acordo sentindo minha cabeça pesar toneladas. De longe, ouço um
som irritante e chato tocar sem parar e tento despertar meu corpo para
entender o que está acontecendo. Tateio a cama e a cabeceira, antes de
encontrar o telefone.
— Ciao. — Que voz horrorosa é essa que sai de mim?
— Kira Moretti, por que não atendeu esse telefone antes? — Afasto
o aparelho do ouvido quando o berro da minha mãe faz minha cabeça doer
um pouco mais.
— Mãe, que horas são?
— Não importa! Venha para cá agora, Kira. Aquele irresponsável
que chamo de filho vai se ver comigo!
— Dante? — Meu corpo desperta um pouco mais com a informação e
eu me sento na cama.
— E eu chamo algum outro irresponsável de filho? Anda, Kira. Eu e
seu pai estamos te esperando. Eu juro que eu vou acabar com a raça
daquele moleque.
Ela desliga o telefone ainda xingando.
Caminho até o banheiro do quarto e me enfio no chuveiro, tentando
limpar os resquícios de álcool que ainda estão no meu corpo. Quando enfio
a escova de dentes na boca é que as lembranças da noite anterior chegam
até mim.
— Puta que pariu!
Abro a porta do banheiro desesperada e vou atrás do meu telefone.
Abro as mensagens enviadas e tenho vontade de enfiar minha cara no chão
com o que leio.

Kira
Zaaaaaaaaay.
Vem ác.
Me vre.
Por faovr.
Estuo on bra.
Bar.
MONOPOLY!

Inferno!
Eu nunca mais vou colocar uma gota de álcool na boca.
Caralho, ele me trouxe aqui! Ele me trouxe aqui e estava na minha
cama!
Que merda, Kira. Realmente, a cada dia que passa, você só prova
como ele é mais inteligente que você.
E então ouço vozes vindo da cozinha do apartamento. Identificaria
esse timbre a quilômetros de distância. Porcaria de coração idiota que bate
acelerado!
Tranco a porta do quarto por segurança e termino de escovar os
dentes. Pego um vestido e percebo que minhas mãos estão trêmulas.
Merda, merda, merda.
Como eu vou sair daqui? Ele ainda está na cozinha conversando com
Carmela.
Vou fingir normalidade. Vou passar pelos dois como tenho feito nos
últimos tempos: ignorando a existência deles. É isso, ou vou ter que encarar
a fúria da minha mãe no telefone mais uma vez.
Balas de tutti frutti. Onde elas estão quando preciso delas? Penteio o
cabelo molhado e faço uma maquiagem para disfarçar a cara de ressaca.
Respiro fundo.
Nada de mais. Não é nada de mais. É só um garoto que magoou você.
Ele te magoou, Kira. Escondeu informações importantes de você.
Não permita que ele te afete assim.
Pego minha bolsa, endireito a coluna e vou até a porta.
E se eu esperar mais alguns minutos? Talvez ele vá embora e eu não
tenha que passar por esse martírio todo.
Minha mãe vai me ligar dentro de cinco minutos para saber se já saí
desse apartamento. Estou certa disso.
Mão na chave.
Não preciso dizer nada. Apenas passo por eles e saio.
Giro a maçaneta. Ouço a risada dele.
Isso vai ser difícil.
Mas eu já estou quase no corredor. Dez passos e esse suplício acaba.
Um, dois, três, quatro, cinco.
Eles notam minha presença e se viram para me encarar. Evito retribuir
a encarada e dou os cinco passos restantes, com o coração acelerado.
— Kira? — ele chama.
Meu corpo arrepia e meus músculos derretem. Um terremoto
acontece em meu interior. Só preciso esticar a mão e abrir a porta para sair
daqui.
— Sim? — Por que eu tive que abrir a boca?
— Posso te dar uma carona para onde você está indo. — Não!
Enlouqueceu? Se eu entrar no mesmo carro que você, estou fodida. Todo
seu cheiro está impregnado no automóvel. Você vai estar perto demais. Meu
cérebro vai querer me enganar.
— Tudo bem. — Ca-ra-lho. Caralho, Kira. Acabou de denunciar de
vez sua estupidez.
Abro a porta e ouço ele se movimentar. Caminho apressada até o
elevador e aperto o botão, sem conseguir olhar na direção dele, que para
atrás de mim. Nós entramos quando a máquina para no nosso andar.
As portas se fecham e minha mente me trai ao fazer surgir uma
memória de um passado que parece muito distante agora.
As mãos dele estão em todo lugar.
Na minha bunda, nas minhas coxas, na minha cintura.
Minhas pernas circundam o quadril de Zayan e puxam ele para perto,
quando nos atracamos em um beijo quente e carregado de tesão.
Meu útero remexe ansioso quando nos encaixamos e eu sinto o
volume dele contra mim.
Plim.
Estamos no térreo. Saio do elevador e ele me segue. O olhar dele está
sobre mim, mas ainda não consigo me virar para encará-lo. O caminho até o
carro parece levar uma eternidade, mas sei que o pior está por vir quando
entramos no automóvel.
Eu disse, Kira. Te disse que o aroma de Zayan estaria por todo canto.
Agora as sinapses do seu cérebro serão comprometidas quando se
ocuparem apenas de memorizar o cheiro dele.
Coloco meu cinto e, próximo ao freio de mão, vejo balas de tutti frutti
à disposição. Minha boca saliva.
— Pode pegar. São suas. — Ele nota para onde meu olhar foi.
— Não precisa, obrigada.
— Kira, é só pegar e colocar na boca. Se quiser, fecho os olhos para
não te ver comendo elas.
— E se tiver veneno, Zayan? Não vou arriscar.
E meu comentário o faz rir.
E meu coração derrete.
Droga, Kira. Por que não mantém sua boca fechada?
— Quer que eu prove uma e te mostre que não tem veneno?
— Não, senão vão restar apenas duas para mim. Se eu morrer, morro
feliz por ter comido três balas de tutti frutti. — Pego os doces e abro um,
colocando na boca.
— Vou deixar sua família saber.
— Obrigada.
— Para onde está indo? — ele questiona quando liga o carro.
— Casa dos meus pais.
Zayan começa a dirigir e eu começo a discutir com minha cabeça para
que eu não abra mais a boca e emita nenhum som.
Ele omitiu informações importantes por dois anos. Dois anos!
— Meu palpite é que não vamos falar da noite anterior, certo? —
indaga quando paramos em um semáforo.
— Não, não vamos. Vamos esquecê-la.
— Isso é uma coisa que não pode me pedir, linda. — Porra, Zayan!
Me ajuda aqui. Preciso que me ensine a te odiar de novo, não que faça meu
peito inflar apenas porque me chama de linda. — Esquecer qualquer coisa
que diz respeito a você é impossível, Kira.
Tum, tum, tum, tum, tum.
Aquieta, coração. Ele nos magoou, lembra?
— Mas você esqueceu de me contar que seu irmão é meu ex-
namorado. Não acho que seja tão difícil assim para você apagar algumas
coisas da sua memória.
E com isso ele se cala pelo resto do caminho.
Apenas abre a boca para falar algo quando estaciona na frente da casa
dos meus pais.
— Não mantive essa informação em segredo para te magoar. Eu te
disse que tinha coisas sobre mim que você ainda não sabia. Fui estúpido e
medroso, sim. Posterguei o momento que te contaria toda a verdade. Mas
não fiz isso com o propósito de prejudicar você. Perdão, amor.
Aqui jaz Kira Matilda Moretti. Causa da morte: “perdão, amor” dito
com fragilidade, delicadeza e sinceridade.
Ele é irmão do cara que abusou de você. Ele escondeu essa
informação. Não há perdão para isso, Kira.
— Preciso ir, Zayan. — Abro a porta do carro.
— Não vai à aula hoje, não é?
— Não.
— O dia será uma merda sem você lá.
Zayan! Não faz isso comigo. Não me torture assim.
— Nos vemos, Castelli.
— Até mais, pulguinha.
Me afasto antes de cometer uma loucura, e não me viro nem mesmo
para me despedir. Corro para a casa dos meus pais e entro, encontrando
outro caos para me distrair de Zayan.
Enfrento mil Martinas nervosas e dois mil Giorgios ansiosos, mas não
sou capaz de enfrentar um Zayan apaixonado.
Eu sou um quadro de comédia ambulante.
— Aí está você, Kira! — Minha mãe anda ansiosa de um lado para o
outro. — Consegue acreditar que seu irmão voltou há mais de três dias e
não se deu o trabalho de nos informar disso? E não acaba por aí. Aquele
inconsequente foi se meter com a polícia, você acredita? Virou testemunha
de um crime internacional. Honestamente, o que eu fiz para merecer uma
coisa dessas? Giorgio, eu preciso de férias com urgência.
— Calma, mãe. Explica isso direito. Polícia?
— Ainda não sabemos direito o ocorrido, Kira — meu pai diz. —
Amadeo quem me disse que ele está lá e está bem. — Ele se refere ao avô
de Aisha. — Disse que mais tarde nos dá mais notícias, mas que, por
enquanto, tudo que podemos fazer é esperar.
— Vocês me chamaram aqui para ficarmos ansiosos juntos enquanto
esperamos notícias?
— Família é para isso, Kira. — Minha mãe ainda caminha impaciente
pela casa.
— Eu vou subir para o meu quarto. Me chamem quando tiverem
notícias concretas.
— Kira! — Martina chama quando estou no meio da escada.
— Mãe, por favor. Eu preciso de paz. Só isso. Pode me dar um pouco
de espaço?
Ela me analisa por alguns segundos antes de ceder. Eu subo até o
quarto, e no instante em que fecho a porta, faço o que queria fazer desde
que Zayan chamou meu nome hoje cedo.
Desabo em lágrimas que expressam minha confusão, meu medo,
minha insegurança e, principalmente, a falta sufocante que ele me faz a
cada dia que passa.
Eu não consigo mais odiar você, Zayan. É insuportável a ideia de te
odiar.

Já é noite quando minha mãe bate na porta do quarto. Fiquei aqui


quase o dia todo e só saí para almoçar. Tentei fazer algo de útil, mas minha
cabeça não estava aqui. Deu voltas e voltas o dia inteiro.
— Pode entrar.
Martina abre a porta e coloca a cabeça para dentro.
— Estamos indo até a casa de Amadeo.
— Dante ainda está lá?
— Sim.
Levanto em um pulo e os sigo.
Meu pai dirige apressado até a mansão dos Campellos e meu coração
bate feliz quando penso que verei Dante em poucos minutos.
Não consigo ficar com raiva dele pelo que quer que ele tenha feito.
Tudo que eu preciso é abraçá-lo, para que ele me diga apenas com esse
gesto que tudo ficará bem.
— Alguém quer me explicar, enfim, o que aconteceu? — peço.
— Dante ouviu uma conversa de Luigi e algumas outras pessoas.
Uma conversa em que o pai de Aisha confessava os crimes. Ele virou
testemunha dos crimes que Luigi cometeu por ter ouvido a conversa. Viajou
porque estava sob a proteção da polícia internacional, e a investigadora do
caso o levou para a Alemanha, enquanto ela procurava por provas contra
Luigi lá, já que ele morou por anos no país.
— Que loucura é essa, pai? — Quase engasgo com todas as
informações que ele despeja. Meu pai narra com detalhes todo o caso que
envolveu Luigi, Aisha e meu irmão, até chegarmos à mansão.
Quando entro pela sala de estar com meus pais, percebo que não sou a
única de coração mole. Aisha já está colada a Dante, se movendo naquela
sincronia irritante e fofa que os dois se movem, rindo com leveza.
O clima descontraído se vai apenas quando minha mãe começa a
esbravejar e xingar meu irmão.
Puxo-o para um abraço, enquanto ele segue sendo repreendido na
frente de toda a família Campello, que assiste a tudo dando gargalhadas.
— Eu até poderia te dar um sermão, irmão, mas essa aí vai fazer por
nós dois. — Ele fecha os braços ao meu redor e eu permito que parte da
minha tensão se dissolva quando me sinto em casa dentro do abraço que ele
me oferece. — Senti sua falta — digo baixinho.
— Também senti a sua, princesa. — Dante deposita um beijo no topo
da minha cabeça.
Meu momento com meu irmão é cortado quando nossa mãe se
aproxima. Saio do caminho dela, antes que eu sofra também algum tipo de
punição apenas por estar no campo de visão de Martina.
Ela esbraveja e puxa a orelha dele, e isso me faz rir como há muito
tempo não fazia.
É bom ver as coisas realinhando.
Dia do debate final.
Eu decididamente não estou pronta para ele. Mas tenho metade dos
meus colegas de classe aqui comigo, esperando meu melhor, e não posso
decepcioná-los. Trabalhamos arduamente para esse dia.
E mesmo sabendo que não há vencedor ou perdedor dessa vez, ainda
assim sinto que eu e meu conhecido competidor sairemos daqui hoje
ganhando ou perdendo algo.
A professora Rosa e o professor Mário já estão a postos em suas
cadeiras, na ponta do meio círculo que se formou.
Estou sentada, de frente para ele, que decidiu colocar no rosto aquele
sorriso perverso e maldoso reservado para debates.
Não tem como me afetar mais do que já me afetou, Zayan Castelli.
— Kira, Zayan, não é permitido nenhuma discussão. Isso não é uma
competição. Estamos aqui para falar sobre uma temática bonita e profunda:
amor. Respeitem o tema e os colegas de vocês — a professora Rosa alerta.
— Assim sendo... — Ela segura uma moeda na mão. — Cara ou coroa?
— Cara — eu e ele dizemos juntos. — Coroa. — Mais uma vez é dito
em uníssono.
— Damas primeiro. — O cretino aponta para mim.
— Cara — escolho.
A moeda é jogada no ar e todos ao nosso redor já estão tensos. Gira
três vezes antes de ser pega pela professora.
— Cara. Kira, pode começar.
— Bom, como todos sabem, nosso grupo ficou responsável por
retratar a visão do amor de acordo com a psicologia humanista
existencialista. Os principais teóricos que trouxemos foram Rollo May...
E assim começo a discursar sobre a primeira parte da apresentação,
que é introduzir a temática e defender nossa tese.
Seguro incontáveis revirar de olhos quando Zayan começa a falar
sobre amor e psicanálise, e mantenho uma postura de seriedade que não
corresponde aos pensamentos julgadores que me tomam.
Reencontro de amores familiares. Amor e excesso. Fantasias
amorosas. Família mais uma vez. Circuitos pulsionais.
Um monte de baboseira, é o que eu acho.
Meu único problema é que ele tem uma articulação absurda e me
irrita profundamente a forma como ele rebate com sutileza cada fala minha,
ainda mantendo aquele sorriso desgraçado no rosto.
Agradeço aos céus por não ser um debate, ou perderíamos isso
facilmente.
Se eu tivesse me concentrado nesse trabalho, ao invés de abrir
minhas pernas para ele, nada disso estaria acontecendo.
Nossa atenção é chamada três vezes quando eu começo a erguer a voz
e apontar o dedo na direção dele, e ele também desce de nível, retrucando
com comentários ácidos.
— Amor é sempre uma falta. Mas não estou dizendo que é o vazio,
Kira. Eu disse que é um reencontro do desejo inconsciente. — Ele me irrita
com a arrogância que tem no tom de voz. Nem parece que discursou com
paixão sobre parte da teoria humanista naquele debate em Bolonha.
— Isso faria do amor o sentimento mais egoísta que já se ouviu falar.
Amor não é sobre encontrar em alguém aquilo que você inconscientemente
desejou e não pôde alcançar. Amor é sobre se importar. É sobre o cuidado,
entendimento, cumplicidade. Isso só é possível quando centramos nossa
abordagem no indivíduo e no que faz dele humano — retruco. — E, além
do mais, você está desconsiderando pessoas que não tiveram acesso ao
amor na infância e nas relações familiares. Essas pessoas não sabem amar?
— Nós todos temos acesso ao amor de alguma forma, desde o
momento em que viemos para esse mundo, Kira. E não é algo que
controlamos. Nossos relacionamentos familiares fogem do nosso controle.
Não pode ignorar isso. — Não posso controlar a forma como minha família
foi estruturada, Atrevida Moretti!
— Eu não estou ignorando, Zayan Castelli. Me ouviu ignorar? Estou
dizendo que família é importante, mas não é tudo. O indivíduo que tem
consciência sobre si mesmo compreenderá seus desejos e saberá direcioná-
los. Não será guiado apenas por aquilo que ele não vê e não conhece. Será
guiado pela autoconsciência. Sempre pela autoconsciência! — Você fez
terapia por anos. Sabe fazer escolhas. Não venha me dizer que aprendeu
que amar é se omitir!
— Nem sempre a autoconsciência nos guia para escolhas que nos
interessam! — Eu sabia as consequências do que estava fazendo, não me
passe um sermão sobre isso agora.
— Na maior parte do tempo, é! — Então aprenda a lidar com o
resultado dos seus atos.
— Você sabe muito bem que não é assim que as coisas funcionam. —
Eu tive medo, Kira.
— É assim que funciona para um indivíduo consciente. Você sabe o
que é consciência, Zayan Castelli? — Seu medo te trouxe até aqui. Lide
com isso.
— Eu não sou nenhum idiota, Kira! — Aponta irritado na minha
direção.
— É exatamente o que parece agora! — retruco com ira.
— Foi uma ótima discussão, meninos! — Rosa interrompe quando eu
e ele ficamos de pé, prontos para rebater um ao outro frente a frente. Eu
volto a me sentar e ele faz o mesmo. — Para encerrar, gostariam de resumir
a visão do grupo sobre o amor?
Respiro profundamente, buscando me controlar, antes de oferecer
meu resumo.
— Rollo May foi quem disse: amor é intimidade, amor é calor, amor
é se importar com o desenvolvimento da outra pessoa. Amor é
entendimento. Amor é alcançar o outro. É cuidado, escolha, força e,
principalmente, responsabilidade. — Zayan faz uma careta quando encerro
e passa a encarar a mesa à frente.
— Ótimo! Obrigada, Kira. Zayan?
— Eu gostaria de trazer um encerramento formal, mas ao invés disso
vou pedir licença para ler um poema que resume o nosso pensamento. A
autoria é de Jacob Levy Moreno.
— Vá em frente — a professora diz, com um sorriso no rosto.
Ele arranha a garganta. Não há nenhum papel na mão dele para que
ele leia. Zayan declama o poema já decorado:

Divisa
Mais importante do que a ciência é o seu resultado,
Uma resposta provoca uma centena de perguntas.
Mais importante do que a poesia é o seu resultado,
Um poema invoca uma centena de atos heroicos.
Mais importante do que o reconhecimento é o seu resultado,
O resultado é dor e culpa.
Mais importante do que a procriação é a criança.
Mais importante do que a evolução da criação é a evolução do criador.
Em lugar de passos imperativos, o imperador.
Em lugar de passos criativos, o criador.

Dou toda minha coleção de livros para a primeira pessoa que surgir
na rua se esse for o pensamento do grupo dele.
Não é.
É dele.
Esse poema foi escolha dele.
Porque está longe de ser uma síntese do que eles abordaram. Para
começar, foi escrito por um psicólogo que tem uma corrente de pensamento
diferente.
Conheço o poema, conheço o autor. E conheço Zayan.
Ele está brincando com meus sentimentos mais uma vez, quando faz
tudo ao nosso redor ser esquecido por mim, enquanto trata de olhar nos
meus olhos e recitar a próxima estrofe.

Um encontro de dois: olhos nos olhos, face a face.


E quando estiveres perto, arrancar-te-ei os olhos e colocá-los-ei no lugar
dos meus;
E arrancarei meus olhos para colocá-los no lugar dos teus;
Então ver-te-ei com os teus olhos
E tu ver-me-ás com os meus.
Assim, até a coisa comum serve o silêncio
E nosso encontro permanece a meta sem cadeias:
O Lugar indeterminado, num tempo indeterminado,
A palavra indeterminada para o Homem indeterminado.

Silêncio sepulcral se faz na sala quando ele termina de recitar.


Acho que algumas pessoas que me encaram buscam uma resposta,
mas não tenho uma. Não tenho mais nada a dizer. Já me esgotei com Zayan
Castelli. Ele não sabe o que faz. Não sabe o que faz com meu pobre
coração. Desvio o olhar mais uma vez para a mesa.
— Então acho que podemos dizer que, no fim, amor é um encontro —
a professora Rosa diz com um sorriso apaixonado no rosto. Pobre iludida.
— Um encontro do indivíduo com si mesmo — digo, sem dar
margem para sentimentalismos.
— E um encontro de dois — Zayan completa, cheio de
sentimentalismos.
Inocentemente, decido virar os olhos na direção dele, curiosa para
entender o que está se passando na cabeça genial e maldita de Zayan.
Não passa nada. Ele não me diz nada que venha da mente brilhante
dele. Tudo que ele me diz com o olhar vem do coração. É um clamor
silencioso que me desespera, porque eu desejo ardentemente atender.
“Me encontre, linda. Estou esperando por você.”
— Obrigada, Zayan e Kira. Foram excelentes apresentações. Estamos
orgulhosos de vocês, de saber que evoluíram tão bem.
O professor Mário começa a discursar e fazer as considerações finais,
mas não estou mais prestando atenção no que ele fala.
Droga, Zayan. Como você espera que eu encontre você, quando foi
você que fez eu me perder nesse caminho tortuoso que escolheu seguir?
Não consigo mais confiar em você.
Eu me levanto no instante em que somos liberados e saio da sala antes
que qualquer um venha me tirar a paciência. Caminho apressada, mas
minhas pernas não parecem estar preparadas para uma situação de fuga,
porque não são rápidas o suficiente.
— Espera! — Ele está na minha frente. Está na minha frente e muito
próximo de mim.
— Zayan, agora não. — Tento me esquivar, mas ele me impede de
seguir em frente.
— Você não pode fugir para sempre, Kira. Eu tenho o direito de me
defender. — Nossos olhares se encontram.
— Do que você quer se defender? Eu não estou te atacando!
— Você está! Está julgando quem eu sou por uma escolha que eu fiz,
ignorando todo o resto. Não é possível que você me conheça tão
superficialmente assim. — Ele gesticula com as mãos, ansioso.
— Eu achei que conhecia você profundamente, Zayan. Mas a escolha
que fez não foi de comprar balas ácidas ao invés de balas de tutti frutti.
Você foi mais inconsequente do que isso.
— Porque eu estava com medo! Ele me fez manter a boca fechada,
porque ele me ameaçava. A vida inteira eu aprendi a não deixar que
ninguém soubesse que ele era meu irmão. Ou ele me puniria por isso. — A
voz de Zayan é cansada e embargada. — Quando eu criei coragem para
enfrentá-lo, você já me odiava, Kira. Que diferença faria para você saber se
ele era ou não meu irmão?
— Isso é algo que eu iria decidir! Cabia a você contar e a mim decidir
o que fazer disso.
— Você iria deixar de me odiar e passar a desprezar minha existência.
Você iria me afastar de vez. Não corresponderia mais às minhas
provocações.
— Não importa o que eu faria, Zayan!
— Importa para mim! Sim, fui egoísta, mas eu preferia você me
rebatendo do que me ignorando. Eu preferia qualquer pequena migalha de
sentimento que me oferecia do que nada, Kira. Eu só precisava de uma
mísera presença sua no meu dia para eu ficar bem. Só precisava estar por
perto, te ver sorrir, assistir você ser a insuportável aluna exemplar para ficar
minimamente satisfeito e feliz. Pode me punir por ter escolhido isso, mas
não pode dizer que não importa as consequências que eu sofreria com sua
ausência na minha vida. Para mim importa, e importa muito.
— Você estava pensando só em você! — Dou um passo à frente, o
enfrentando, sentindo um aperto no peito pelas palavras que embrenham
por cada poro meu e me faz implorar para que toda mágoa que ele me
causou vá embora de vez.
— É, eu estava! Me culpe por isso. Me odeie por isso. Mas não pode
me odiar por querer você, por amar você, por implorar por você sozinho e
em silêncio. — Ele dá outro passo à frente.
— Sabe qual é o seu problema, Zayan? — Olho nos olhos dele.
— Qual, Kira? — Ele respira acelerado e o tronco dele encosta em
mim cada vez que Zayan inspira e expira.
— Você nunca deixa nenhuma ponta solta. Porque agora você me dá
licença para te odiar quando já tirou de mim essa capacidade. Você fez tudo
tão bem calculado que tornou impossível minha missão de desprezar você.
Isso é algo que eu não vou ser capaz de perdoar.
Passo por ele e vou até o banheiro. Entro em uma das cabines e tranco
a porta, me odiando por estar chorando quando ele é quem deveria estar
sofrendo pela escolha que fez.
— Kira? — Meu coração palpita de susto quando batem na porta de
onde estou e eu tento segurar o choro. — Olha, eu sei que está brava
comigo, Kiki, mas me deixa estar aqui por você. Não precisa suportar tudo
sozinha. Por favor.
Eu não preciso de muito tempo para ceder ao pedido dela. Porque eu
preciso de Carmela agora. Preciso da minha amiga me consolando e
abraçando, porque eu não consigo ser sozinha. Porque não quero ser
sozinha. Porque também sinto falta dela. Todos os dias, mesmo dividindo o
mesmo teto.
Eu abro a porta e ela me aninha quando a abraço, entre soluços e
lágrimas. E eu me permito ser consolada.

Hoje é sábado e faz quase uma semana que Dante voltou. Não tive
tempo de ficar com ele porque foram dias agitados, principalmente porque
estava me preparando para aquela desastrosa apresentação.
Por isso, aceitei o convite do meu irmão para um churrasco na casa
dos Campellos. Quero passar mais tempo com ele. Temos muito o que
conversar. Dante vai enlouquecer quando souber de tudo que aconteceu na
ausência dele.
Meu pai estaciona na garagem da mansão e nós vamos juntos até os
fundos da casa. Todos eles já estão bem alegres e vejo algumas garrafas de
vinho espalhadas pela mesa.
— Irmã, você veio! — Dante dá a volta na mesa e vem até nós. —
Pai, mãe! — Nos abraça contente e acredito que o álcool tenha subido à
cabeça dele.
— Você bebeu, Dante Moretti? — minha mãe indaga.
— Só um pouco, Martina Moretti. — Ele une o indicador e o polegar
e dá uma risadinha. — Minha namorada fez um gol para mim hoje! — Ele
aponta para Aisha. Só agora noto que ela está vestida com um uniforme que
parece ser de futebol. — Ela agora joga futsal e fez um gol para mim.
— Aisha joga futsal? Desde quando? — questiono.
— Desde algum dia aí. — Dante volta para perto da ruiva e a puxa
para um abraço. Eu cumprimento Amadeo, Michaela e Max, tios de Aisha,
e vou até meu irmão e minha cunhada.
— Boa tarde, cunhadinha. Achei que não ia chegar nunca mais. Não
te abraço porque estou suada. Mas daqui a pouco vou tomar banho.
— Pode ir mesmo, Aisha. Está precisando — Antônio zomba. Vou até
ele e o cumprimento, notando que há rostos novos aqui.
— Kira, essas são Anita e Cecília. Funcionárias da Campello e
amigas minhas. — Aisha aponta para a mulher negra e em seguida para a
loira. — E essa é Helena, minha amiga brasileira. — Indica a morena.
— Prazer, eu sou Kira. Irmã de Dante. — Cumprimento cada uma
delas.
— Espera... Foi você que deu um tapa em um colega de classe e
depois beijou ele? — Anita questiona.
— Dante! — Direciono minha ira para o meu irmão.
— Eu não falei nada — ele se defende.
— Falou para Antônio.
— Dessa vez eu não fiz nada! — o Campello se defende.
— O que é um milagre. — Ouço quando Anita diz baixo com tom
ácido.
Será que eles não se dão bem? Faço uma nota mental, para perguntar
para Dante em algum momento o que aconteceu entre os dois.
— Desculpa, cunhada, a culpa foi minha. Eu bebi um pouco demais
em uma noite e nós estávamos conversando sobre tudo, e eu acabei
contando — Aisha se desculpa.
— Tudo bem, você eu perdoo. — Sorrio para ela.
— Então, onde está Zayan? — a ruiva pergunta, animada.
Meu coração falha três batidas e sinto quando meu semblante murcha.
Meu estômago remexe inquieto e eu dou de ombros, tentando parecer
indiferente.
— Hey, o que aconteceu? Vocês pareciam estar se dando bem —
Aisha questiona.
— Nada de mais. Outra hora eu explico. — Engulo o bolo que se
forma em minha garganta.
— Tudo bem.
Desvio meu olhar para meus pais, que assistiram essa curta interação,
e o semblante deles é neutro.
Eles não disseram nada sobre Zayan depois daquele dia, mas acredito
que tenham entendido que eu e ele nos desentendemos e nos afastamos,
porque nunca mais estive com ele.
Gio e Martina não opinaram sobre tudo e acho isso estranho. Eu
imaginei que viriam até mim me aconselhar a ficar longe do garoto.
— Toma, isso aqui vai ajudar. — A mulher de cabelos loiros, Cecília,
me entrega uma taça de vinho, quando todos estão distraídos em suas
conversas particulares.
— Obrigada — agradeço sem saber de onde veio essa.
— Está com uma cara perdida e os pensamentos nas nuvens. Chutaria
coração partido, pela sua reação à pergunta de Aisha.
— Já teve o coração partido?
— Na verdade, não. Acho que nunca amei alguém a esse ponto. —
Ela se senta ao meu lado no balaústre da varanda.
— Amar?
— Vai dizer que não ama o garoto? — Ela ergue uma sobrancelha,
indagativa.
— Eu não... — Nenhum som sai da minha boca depois disso.
— Me agradeça depois por esse momento de epifania, pequena
Moretti. — Ela ri e meu coração se encolhe. — Qual o problema? — Acho
que Cecília nota meu pesar.
— Zayan adora me chamar assim.
— Ah, que fofo! O que ele fez de tão ruim para não estarem juntos?
Tem tanto carinho no seu olhar, agora, falando dele. Não é possível que
tenham terminado de vez.
— Nem chegamos a namorar. Eu e Zayan nos odiávamos. E então
começamos a nos gostar. E eu estava conhecendo cada parte da história dele
e me apaixonando. Mas ele escondeu de mim uma informação muito
importante.
— E como você descobriu?
— Ele me contou. Mas contou tardiamente. Ele deveria ter falado
antes.
— Mas, Kira, no fim ele escolheu ser sincero, não foi? Sei que ele foi
errado em esconder por algum tempo e que isso te magoou. Não estou
dizendo que não tem o direito de se sentir assim. É só que... Esquece, estou
me intrometendo demais.
— Pode falar, por favor.
— É só que você parece sentir a falta dele. Talvez devesse tentar
entender porque ele fez isso e assim perdoar em algum momento o que ele
fez. Não estou dizendo que será hoje. Nem amanhã. Mas algum dia, talvez,
você seja capaz de entender Zayan, e oferecer a ele o perdão.
— Aconteceu algo essa semana que me fez pensar no que você está
falando. — Giro a taça de vinho que está na minha mão e tomo um gole. —
Tínhamos uma mesa-redonda e, como sempre, Zayan e eu estávamos
defendendo diferentes pontos de vista. Mas, no fim, ele decidiu declamar
um poema que falava sobre tudo que eu acredito.
— E como é?
— Eu não sei ele todo de cor. Mas tem uma parte que diz: “um
encontro de dois. Olhos nos olhos, face a face. E quando estiveres perto,
arrancar-te-ei os olhos e colocá-los-ei no lugar dos meus. E arrancarei meus
olhos para colocá-los no lugar dos teus. Então ver-te-ei com os teus olhos e
tu ver-me-ás com os meus”.
“Quer dizer que para entender o outro e as motivações dele, não
adianta tentar ver a situação considerando suas dores, vivências e opiniões.
Só conseguiremos enxergar verdadeiramente as pessoas e ter compaixão
quando a enxergarmos com os olhos dela. Quando a percebermos pelas
dores, vivências e opiniões dela. É algo como ‘eu não faria o que você fez,
mas entendo porque fez. Porque te vejo com seus olhos’. E se depois disso
for capaz de sentir compaixão, então vocês se encontraram.”
— E você não o encontrou?
— Já encontrei Zayan antes. Já o perdoei com facilidade por cada
provocação que ele havia feito.
— Mas os encontros são únicos? Você não pode sempre encontrar
alguém? Afinal, existem casais que vivem bem juntos uma vida inteira.
Talvez eles estejam se encontrando por uma vida inteira. Relacionamentos
não são perfeitos, e você sabe disso.
— Sim, eu sei.
— Olha para os seus pais. — Ela se vira para eles e eu a acompanho.
Meus pais têm seus desentendimentos, mas sempre escolheram estar na
companhia um do outro no fim do dia. — E tem Aisha e Dante. — Admiro
a ruiva e meu irmão, que parece provocá-la por causa da estatura. Ela fica
brava, mas ri logo em seguida. — Max e Michaela. São completos opostos.
E, ainda assim, se dão muito bem. — Analiso os tios de Aisha. Cecília tem
razão. Mesmo sendo tão diferentes, eles têm uma sintonia incontestável. —
Acha que eles não fazem sempre um exercício de tentar ver o outro pelos
olhos do outro? Imagino que seja difícil, Kira. Mas se Zayan vale a pena,
por que não se esforçar? Como eu disse, não precisa correr para o garoto
hoje e perdoá-lo. Mas talvez devesse começar a tentar.
— Você deve ter minha idade, Cecília. De onde vem tanta
maturidade?
— Acho que da vida. — Ela dá de ombros. — E eu tenho vinte e três.
— A vida foi cruel com você, não foi?
Ela fecha o semblante e fica pensativa por alguns segundos.
— Um pouco — diz com pesar.
— Se um dia precisar de alguém para conversar, estarei aqui.
— Obrigada. E, por favor, se decidir perdoar Zayan, nos apresenta o
garoto. Todas nós ficamos ansiosas para conhecer o menino depois do que
Aisha contou. — O sorriso volta a tomar conta do rosto dela.
Depois disso, passamos a conversar sobre outros assuntos. Ela tenta
narrar a paixão que tem por programação e tecnologia, sobre videogames e
sobre como conheceu Aisha e Ani. Falo para ela sobre psicologia infantil,
por já ter considerado trabalhar na área, sobre filmes de animação e sobre
One Direction.
Nos juntamos ao resto do pessoal, bebendo vinho e nos distraindo
pelo resto do dia.

— Por que eu sigo vocês quando decidem beber? Está claro que
ninguém aqui tem limites — Antônio resmunga com a voz rouca, quando
nos sentamos na mesa do café da manhã.
Aisha e Dante parecem ter sido nocauteados pelo vinho, eu só sinto
uma pequena dor de cabeça e Antônio parece mais pálido que o normal.
— Hum... — Aisha murmura, enquanto bebe um gole de água gelada.
— Vocês estão com a aparência horrível — comento, mordendo um
pedaço de pão.
— Como você está inteira, Kira? Bebeu tanto quanto a gente.
— Claro que não. Bebi muito menos. Vocês perderam as estribeiras.
— Rio.
— Como é abusada. — Antônio joga um pedaço de biscoito na minha
direção.
— Quero saber quem vai me levar de volta, já que meus pais foram
ontem mesmo.
— Eu vou, irmã. Assim que eu me recuperar. — Dante apoia a testa
na mesa, resmungando. — Quer nos contar o que houve com o projeto de
homem que você disse que gostava? — Ele volta a me encarar.
— Nada.
— Irmã...
— Certo, eu vou contar. Você vai fofocar para esses dois de qualquer
forma.
Abro a boca e narro para eles sobre tudo que aconteceu enquanto
Dante estava fora. Acabo contando para Aisha e Antônio sobre Lorenzzo,
sobre o relacionamento merda que tive e sobre a denúncia. Falo sobre
Zayan, sobre eles serem irmãos e sobre eu nunca ter conhecimento disso.
— Kira, sinto muito por isso. — Dante se levanta e vem até mim. Eu
me levanto e nos abraçamos, e então percebo que era esse abraço que eu
esperei receber desde que meu mundo desabou. — Me perdoa por não ter
estado aqui. Se eu soubesse...
— Não tinha como saber, Dan. A vida é feita de fatalidades também.
Essa foi uma. O que importa agora é que você está aqui. — Estreitamos
nossa distância um pouco mais, e eu fecho os braços apertados na cintura
dele.
— Ele está realmente preso? — Ele se refere a Lorenzzo.
— Sim.
— É por isso que você e Zayan brigaram? Por que você denunciou o
irmão dele?
— Não! Não é isso. Zayan foi uma vítima nas mãos do irmão. Só que
diferente de mim, Zay sofreu por anos, sendo maltratado por ele.
— Que loucura! — Antônio exclama.
— Eu sei. — Me afasto dos braços de Dante. — Não sei mais o que
pensar sobre tudo isso. E as provas finais começam em breve. Preciso focar
nisso.
— Tudo bem, mas sempre que precisar conversar sobre algo, estarei
aqui.
— Nós estaremos. — Aisha levanta da mesa e vem até mim.
Antônio faz o mesmo e os três me fecham em um abraço
reconfortante e calmo.
— Você está terrível — Stefano comenta assim que me sento no sofá.
— Já é a quarta sessão que você me diz isso — rebato meu terapeuta.
— E ainda assim você não melhorou.
— Estou em época de provas finais.
— Nunca chegou aqui assim em época de provas finais. Nem mesmo
xadrez quis jogar.
— Já te falei sobre tudo que aconteceu. Acho que tenho o direito de
estar com uma aparência ruim.
— É sobre seu pai?
— Também.
Meu pai está destruído. Cada dia que passa, Leonardo Castelli parece
definhar, e eu sinto a culpa e o desespero me consumir por vê-lo assim. Eu
sabia que no instante em que ele soubesse a verdade sobre meu irmão, ele
não suportaria lidar com ela.
Agora assisto a depressão assolar meu pai de mãos atadas. Tento fazer
o que posso, insisto para que ele saia de casa comigo, que visite Dafne,
qualquer coisa. Porém, nada o faz reagir.
É desesperador.
— Ele está se tratando, não está? — Stefano pergunta.
— Sim, mas não parece surtir efeito.
— Tem que dar um tempo a ele. E confiar no tratamento. Não é do
dia para a noite que ele ficará bem. Foi um baque para o seu pai, Zayan.
— Sinto que a culpa é minha. Como se eu tivesse feito de Lorenzzo
quem ele é.
— Você sente essa culpa há tempos. Sabe disso. O que precisa é se
livrar dela. Não acha que é arrogante da sua parte pensar que você é o
centro do universo para seu irmão e que ele é quem é por sua causa?
— Arrogante? — Sinto irritação pela fala dele.
— Sim, arrogante. O que você tem de tão especial que faz uma pessoa
ser como ela é? Me diz, quem é que te moldou assim, para você ser como
é? Seu pai? Sua madrasta? Kira?
— Não quero falar dela, já disse!
— Não quer falar dela porque não quer assumir as responsabilidades
do que fez.
— Estou assumindo, não estou? Deixei ela viver a vida dela em paz,
como ela sempre quis. Não é o suficiente?
— Deixou mesmo? Porque posso enxergar ela aqui e agora, na minha
frente. Você está vivendo à sombra dela.
— Estou vivendo à sombra do que eu fiz a ela.
— E não é a mesma coisa?
— Não. Não tem a ver com ela, tem a ver com o que eu fiz.
— E com a forma como ela reagiu a isso. Admite que esperava que
ela tivesse outra reação?
— Eu... — Porra, por que eu faço terapia? Só estou aqui levando
tapas na cara. — Sim. Eu pensei que se eu desse um tempo a ela, ela iria
me perdoar e poderíamos tentar de novo. Mas já faz um mês e nada
aconteceu. Quer dizer, ela parece seguir em frente com facilidade. Está
bem, alegre e parece ter esquecido rápido tudo que vivemos, enquanto eu
vivo mergulhado nesse passado recente, cada vez me afundando mais,
desejando de todo meu coração que não seja apenas uma lembrança boa que
irá me atormentar pelo resto da minha vida.
— E qual o problema com lembranças?
— São só isso. Lembranças. Eu não quero o que está aqui dentro. —
Aponto para minhas têmporas. — Quero ela aqui, na minha frente, para
entregar duas balas de tutti frutti para ela, roubar um beijo dela e ter ela me
irritando na sequência.
— Não é engraçado como ouvi de você tantas vezes que jamais iria
dizer a ela como se sente e que nunca iria se permitir envolver com ela, e
agora estamos aqui, com você desejando exatamente isso?!
— Você está sendo mau hoje — reclamo, sentindo o choro se prender
em minha garganta.
— Só estou te mostrando as ironias da vida. O que acontece quando
não vamos atrás do que desejamos e sim do que os outros desejam para nós.
— Eu sei! Caramba, não me consola em nada saber tudo isso. Eu errei
e tenho que lidar com esse erro. Fim.
— Então está pronto para aceitar as consequências do que fez?
— Eu lido com elas todos os dias.
— E está pronto para finalmente escrever sua história, Zayan? Sem a
sombra de ninguém te rondando? Está orbitando ao redor do seu pai e Kira.
Antes era seu irmão, agora esses dois. Só vai conseguir seguir em frente
quando for você o corpo celeste central do seu universo particular. E lidar
com as consequências do que fez não é olhar para as pessoas que magoou
todos os dias e lamentar suas escolhas, é entender, aceitar e seguir em
frente. Você fez o que estava ao seu alcance e fez o que era certo para você.
Agora seu pai lidará com a dor da perda e Kira vai lidar com o peso da
verdade. Mas não há nada mais que você possa fazer.
— É difícil seguir em frente quando os encaro todos os dias.
— Então talvez devesse tomar um tempo para você. Sozinho. Disse
que as aulas estão prestes a acabar. Por que não faz algo para você nessas
férias? Há tantas possibilidades.
— Vou considerar a ideia.
— Você merece isso, Zayan. Não é uma pessoa ruim. Fez escolhas
equivocadas. Todos nós fazemos em algum momento.
— Obrigado.
— Não quer mesmo jogar xadrez? Estou enferrujado, preciso praticar,
garoto.
— Certo — cedo, com um sorriso pequeno nos lábios. — Uma
partida.

Entro pela porta da minha casa, sentindo o pesar já me tomar. Tem


sido assim desde que meu irmão foi preso. É como se o peso de todas as
barbaridades que essas paredes testemunharam recaísse de uma vez sobre
nós, agora que não há mais nenhum segredo aqui.
— Onde ele está? — indago à Nina, que desce as escadas com o
semblante cansado.
— No quarto, dormindo.
— Acha que eu deveria...
— Não, Zay. Não precisa ir lá. Ele está melhor hoje. É um dia de cada
vez, certo? Eu sei que você fica mal vendo seu pai assim.
— Mas eu queria ver ele de qualquer forma.
— Daqui a pouco ele acorda e desce. Acho que hoje ele quer almoçar
com a gente. Mas enquanto ele está dormindo, quero conversar com você.
— Ela indica a sala de estar e nós vamos até lá, nos sentando no sofá. —
Nunca conversamos sobre tudo que aconteceu naquele dia, porque seu pai
adoeceu e eu estive cuidando dele. Mas preciso dizer, Zay, eu sinto muito
por tudo que te aconteceu, meu menino. Eu nunca suspeitei de
absolutamente nada do que acontecia.
— Não tinha como suspeitar. Lorenzzo escondia quem era muito
bem. Ele nunca fazia nada na frente de vocês.
— Mesmo assim... Talvez eu pudesse ter procurado saber melhor o
que se passava com você quando vi que não estava bem.
— Nina, se tem uma coisa que eu entendi hoje, é que viver em função
do que passou não vai nos levar a lugar nenhum. Eu também sinto muito
por tudo que vivi, mas não quero mais deixar meu irmão comandar minha
vida. Já temos muito o que fazer hoje para juntar nossos cacos. Então não
sinta que tem algum dever não cumprido. Está tudo bem. Você é uma
pessoa incrível e eu serei eternamente grato por todo carinho e amor que me
oferece. — Pego o braço dela e passo ao redor do meu ombro. — De
verdade. Obrigado. Por tudo.
— Não tem que me agradecer, Zay. Fiz tudo isso porque amo você e
desejo apenas seu bem.
— E eu vou ficar bem. Nós vamos. — Abraço minha madrasta, que
retribui, e eu sinto meu peito ser preenchido por todo afeto que ela sempre
me ofertou.
— Você é um bom menino, Zay. Tem um bom coração.
— Só faço escolhas impulsivas uma vez ou outra.
— Ela ainda não está conversando com você? — Nina questiona com
tristeza.
— Não, e nem sei se vai. Mas Kira tem o direito de não querer
conversar mais comigo. Eu só preciso aceitar.
— Talvez ela ainda precise de um pouco mais de tempo.
— E eu preciso me distrair de tudo isso. Tem algo que estou pensando
em fazer.
— E o que é?
Explico para ela a ideia que tive no caminho e Nina me ajuda com os
detalhes do que planejei.
Pouco antes do almoço, meu pai surge na sala, e me magoa ver a
forma como ele se encontra. Magro, com olheiras profundas e o semblante
desolado. Mas não faço nenhum comentário, já que ele aceita almoçar com
a gente e passa boa parte do dia fora do quarto. Vejo até mesmo a sombra de
um sorriso surgir no rosto de Leonardo Castelli e tenho esperanças de que,
de alguma forma, tudo vai se ajeitar.

Caminho pelo labirinto de jazigos, distraído, observando as esculturas


de pedras ao meu redor. Está silencioso. Faz alguns meses desde a última
vez que estive aqui. Paro de frente à lápide dela e leio mais uma vez as
inscrições.

Cassandra Pisano Castelli


23.11.1967
21.04.2000

Tiro as flores secas que estão ali e coloco as novas que trago em
mãos.
— Oi, mãe. — Meus olhos já ardem e eu deixo que as lágrimas
desçam. — Faz um tempo que não venho aqui. Faz um tempo que não olho
para as estrelas para te encontrar, como meu pai disse uma vez para eu
fazer. Faz um tempo que minha vida virou de cabeça para baixo.
Limpo a poeira da lápide e fico um longo tempo em silêncio, até que
meu choro cessa. Eu continuo:
— Nunca tivemos a chance de criar memórias, Cassie. E por muito
tempo eu me senti culpado por isso. Te disse isso várias vezes quando vinha
aqui te visitar — suspiro. — Mas hoje eu não vim me desculpar pela nossa
fatalidade, mãe. Hoje eu vim aqui dizer que, mesmo sem ter criado
nenhuma memória, eu te conheço tão bem, que sinto que preciso te contar
isso. Sinto que ficará feliz em saber que não tenho mais o peso da culpa
sobre meus ombros. E tudo isso é graças a uma pulguinha intrometida e
atrevida. — Rio fraco. — Kira Matilda Moretti. Você se lembra dela? Já te
contei do meu amor antes. Mas antes eu sofria por ilusões. Te contei dela
quando falei da minha dor de não me permitir viver tudo que sonhava viver
ao lado dela. Mas hoje eu tive parte de tudo que sonhei, e, mãe... Como eu
me senti incrivelmente agraciado por isso! Foi você, não foi? Você sabia
que a presença dela em minha vida seria minha maior dádiva e me
presenteou com dias ao lado de Kira. Obrigado por isso. Porque foi Kira
que me fez ver que eu mereço ser amado. Ela me mostrou a pureza e
grandeza que o verdadeiro amor carrega, e por ela eu disse adeus à culpa e
nos libertei da nossa parte triste. Cassie, a vida nos pregou uma grande
peça... Eu realmente sinto muito por não ter tido a chance de compartilhar
com você todos os momentos que venho aqui te contar. Mas saiba que eu
tenho muito orgulho de ser parte sua e espero te orgulhar daqui para frente,
vivendo de maneira plena. Errando, acertando, celebrando e nunca
esquecendo a beleza que é apreciar o intervalo entre o nascimento e a
morte. É o que tenho agora. Espero que você tenha apreciado. Quem sabe
um dia a gente se encontra? Em outras vidas, eu espero.
Tomo mais um tempo, aproveitando a calmaria que estar aqui hoje me
traz. E então decido falar sobre a última coisa que queria dizer hoje a ela.
— Sinto muito por Lorenzzo, mãe. Não queria que as coisas tivessem
sido assim com ele. Sei que você também não. Sei que teria sofrido se
tivesse vivido para ver o que seu filho mais velho se tornou. Sinto muito
pelas escolhas que ele fez.
Porque sim, meu irmão escolheu ser quem é, fazer o que fez, e por
isso hoje enfrenta as consequências da crueldade que ele cultivou.
— Tenho que ir agora. Preciso estar com meu pai. Mas eu volto.
Sempre volto. E de onde estiver, torce por mim. Quem sabe você não me dá
uma forcinha, mãe? Queria aquela atrevida de volta. — Sorrio tímido. — Te
amo, mãe. Para sempre.
Passo os dedos pela inscrição na lápide mais uma vez antes de me
afastar, sentindo pela primeira vez uma leveza me tomar depois das
inúmeras vezes que estive aqui.

— Suas notas sempre mantêm o nível de excelência que esperamos


dos alunos, Zayan. Você se saiu muito bem, mais uma vez, e se não tem
mais nada para nos entregar, então está livre para aproveitar suas férias.
Tenho certeza que não precisará voltar — o professor anuncia depois de
terminarmos o teste oral.
— Obrigado, professor.
Saio da sala e caminho pelo corredor. Estou quase saindo do prédio
quando sou chamado:
— Zayan Castelli?
— Sim? — Me viro para o homem desconhecido.
— Eu sou funcionário da reitoria. Vim aqui buscar você.
— Eu não fiz nada agora!
— Olha, eu não faço ideia do que seja, mas preciso que venha
comigo.
— Certo.
Eu não posso ter um pouco de tranquilidade. O caos parece farejar
meu cheiro e vir de encontro a mim.
— Espera aqui só um minuto. — Ele volta para dentro do prédio e
poucos minutos depois volta acompanhado.
Ah, não! Não, não. Por que hoje? O que eu fiz de tão errado para
merecer isso?
Meu coração já não suporta mais tanta judiação.
Oi, linda. Faz alguns dias que não te vejo. Meu coração não te
esqueceu, viu? Estou prestes a infartar, mas saiba que eu iria feliz se a
última imagem que eu tivesse visto fosse você.
Ela para de andar ao me ver aqui e parece tão surpresa quanto eu. O
funcionário a encara, confuso, porque ela não o acompanha. Ele a cutuca,
que reage e volta a andar lado a lado com ele.
— O que está acontecendo? — Kira indaga quando nós começamos a
caminhar na direção da reitoria.
— Não sei dizer. O reitor mandou chamar vocês. É tudo que sei.
— Você sabe de alguma coisa? — Pela primeira vez em semanas, ela
dirige a palavra a mim, e acho que meu corpo vai parar de funcionar por
estar tomado pela euforia de ouvir ela próxima a mim, de sentir o cheiro de
bala que vem dela e por estar a uma distância tão curta do meu amor.
— Não faço ideia — respondo contido.
Não sei mais reagir à presença dela. Desaprendi, porque meus
sistemas neurais não me dão paz agora.
Como estão as coisas, linda? Está feliz? O que importa para mim é
só isso.
O caminho é curto, ou talvez eu quisesse prolongar nosso tempo
juntos. Mas em um piscar de olhos, estamos na porta do reitor, que nos
recebe com uma carranca séria.
Pelo menos nossos pais não estão aqui dessa vez.
— Kira, Zayan, sentem-se. — Obedecemos. — Quero começar
dizendo que recebi o relatório de vocês do cumprimento da detenção
durante o semestre. Fico satisfeito em saber que conseguiram aproveitar o
tempo juntos e que resolveram as diferenças de vocês da melhor maneira.
Estão dispensados dos serviços na biblioteca. A segunda coisa é que a
atuação de vocês no debate da Universidade de Bolonha chamou a atenção
de alguns professores. Inclusive, o professor João, que entrevistou vocês
dois no fim. Ele teve acesso aos professores de vocês, que teceram muitos
elogios quanto às performances dos dois enquanto alunos da nossa
universidade. Por isso, foram convidados para participarem do programa de
mestrado no Brasil. Ainda terão que apresentar um pré-projeto no semestre
que vem, mas o convite está feito. — Mestrado? No Brasil? Porra, seria
incrível! — Só um detalhe importante. O convite é para os dois. Então é
uma decisão conjunta. Se recusarem, nenhum dos dois vai. Se aceitarem,
então vocês têm seis meses para se preparar.
Esse cara virou mesmo um grande fã da nossa história.
Ah, linda! Por favor, diz que sim. Eu adoraria viver isso com você. Te
disse que somos uma dupla imbatível. Aceite, por favor.
— Temos que dar a resposta hoje? — Kira questiona.
— Não. Por favor, descansem e aproveitem as férias. Têm até
setembro para dar essa resposta.
— Tudo bem. Eu e Zayan vamos pensar com carinho, senhor
Mancini, e voltamos aqui.
— Certo, senhorita Moretti. Bom, estão dispensados.
Eu e ela levantamos e caminhamos para fora da sala.
— Então, o que você acha? — indago com cautela.
— Não sei, Zayan. Preciso pensar.
— Tudo bem. Fique à vontade.
— E quanto a você?
— Eu adoraria ir. Com você, claro.
Ela para de andar e vira para mim. Me encara com os olhinhos
castanhos levemente arregalados e um sorriso começa a se formar nos
lábios dela.
— Prometo pensar com calma e carinho, certo? — Kira interpõe.
— Certo. — Aceno, concordando.
Ficamos por mais alguns segundos assim, parados. Acho que nós dois
queremos abrir a boca para falar de tudo, mas nenhum de nós o faz. Até que
ela suspira alto e diz:
— Preciso ir agora. A gente se vê.
— Acho que daqui dois meses.
— Como assim? — Parece assustada.
— Bom, as férias estão começando, e eu já fiz todos os meus testes.
— Já fez? Todos? Não tem mais nada para fazer?
Quer que eu fique aqui, linda? Diz que sim. Eu seguiria você como
um vira-latinha por todo esse campus.
— Não. Para mim acabou.
— Hum... Boas férias, então. — A testa dela se franze e ela leva as
mãos à boca, para roer as unhas.
Por reflexo, seguro a mão e afasto do rosto dela.
Nossas respirações ficam suspensas por um segundo quando uma
descarga elétrica parece se originar desse contato e faz meus dedos
formigarem e meu corpo entorpecer. Ela não puxa a mão de volta, e por isso
abuso da minha sorte, trazendo o dorso para perto dos meus lábios e
depositando um beijo casto na região.
Sinto tanto, tanto, tanto, sua falta, pequena Moretti.
Não desvio o olhar, assistindo a reação dela. Kira não consegue
impedir que um sorriso se espalhe no rosto lindo dela, e assim, eu mesmo
sorrio como um filho da mãe sortudo que acabou de ganhar um prêmio na
loteria.
— Aproveite suas férias, pulguinha.
— Você também, Zayzay.
Ai. Meu. Deus! Se não morri quando a vi, vou morrer agora. Cairei
nesse concreto duro depois de ser levado pelos anjos que cantarão
animados suas trombetas, felizes por saber que Zayan Castelli morreu, mas
morreu de amor.
Ela desfaz nosso toque e caminha para leste, enquanto eu ando para o
sentido oposto, quase saltitando de felicidade e com um sorriso imenso de
satisfação.
“Você também, Zayzay.”
Eu irei, pulguinha. Eu irei.
Entro no meu apartamento depois de um dia extenso e exaustivo de
testes. O que me conforta é saber que agora estou livre para curtir minhas
férias. Finalmente.
— Então, como foi? — Carmela questiona.
Depois daquele dia, decidi que não tinha razão para ficar com raiva
dela, porque eu sentia falta da minha amiga. Conversei com ela, depois com
Matteo e até mesmo Marco.
Eles frisaram que não concordaram com Zayan quando ele decidiu
não contar, mas entenderam o pedido dele e por isso não haviam dito nada.
Eu os perdoei.
— Cansativo. Mas enfim acabou. — Descalço meus pés e deito no
sofá, mirando o teto. — Como você e Zayan conseguiram fazer os testes
antes?
— Bom, no meu caso, como sabia que eu iria viajar amanhã, marquei
meus testes assim que abriram as datas, para poder fazer o mais cedo
possível.
— Já fez as malas?
— Tudo pronto.
— Então agora fará minhas unhas. Estão horríveis.
Estou sem meu fazedor oficial de unhas.
— E por que eu faria isso?
— Porque é minha melhor amiga.
— Não sou Zayan ou seu irmão, para atender seus desejos, princesa.
— Faz um gesto de dispensa.
— Mel, por favor — imploro.
— Não, Kira. Tenho mais o que fazer.
— Por favor.
— Não.

— Você é terrível. Deveria tentar negociar a paz mundial com esse


poder de convencimento — Carmela reclama enquanto pinta minhas unhas
com o esmalte azul.
— Você está fazendo porque me ama, Mel.
— Só por isso — resmunga. — Então, mestrado no Brasil? —
começa como quem não quer nada.
Contei para ela no dia em que o convite foi feito, porque precisava
dividir minhas dúvidas com alguém.
— Ainda não sei o que pensar. Zayan ficou muito animado. Me sinto
mal em negar.
— Aposto o que quiser que ele ficou animado com a ideia de fazer
algo junto com você.
— Não sei.
— Kiki. — Ela termina de limpar os excessos de esmalte. Ergue o
olhar e me encara com seriedade. — Aquele garoto te ama. Genuinamente.
Ele se arrependerá pelo resto da vida de ter demorado a dizer a verdade.
Não duvide disso.
— Eu sei. — Por mais que quisesse duvidar, não consigo. Vi
sinceridade nos sentimentos de Zayan.
— Você não quer mais estar com ele?
Eu quero. Quero tanto que parece que meu corpo só sabe desejar
Zayan por perto. Ficar longe dele deixa meus dias sem graça e
melancólicos. Já não sei fazer mais nada a não ser suspirar pelos cantos pela
ausência dele, pensando em como tudo que eu mais queria era o humor
ranzinza e as reclamações dele.
Mas Zayan escondeu uma verdade importante. Ele escolheu manter
essa informação oculta de mim. Como eu vou confiar nele mais uma vez?
— Você pensa demais às vezes, Kiki. Precisa tomar algumas atitudes
impensadas vez ou outra. — Carmela me tira dos meus devaneios.
— Não estou pensando em nada.
— Sei. Bom, vou ligar para minha mãe e combinar os detalhes finais
da viagem.
Ela se levanta e vai para o quarto dela, me deixando sozinha para
sonhar acordada.
— Que cara de quem chupou limão azedo é essa? — Antônio
pergunta quando perco mais uma partida de futebol no videogame para ele.
É sábado e estamos no sofá da casa dos Campellos, passando tempo,
junto de Aisha e Dante, que cochicham sentados na poltrona ao nosso lado,
dando risadinhas um para o outro.
— Você deveria me deixar ganhar! — exclamo.
— Só porque seu irmão te deixa sair vencedora, não quer dizer que
farei o mesmo — ele zomba.
— Idiota.
— Seu mau humor tem a ver com aquele branquelo?
— Eu nem vejo Zayan, Antônio!
— Ah, então é por isso. Realmente, a falta de sexo...
— Antônio! — corto a fala dele.
Do lado oposto da sala, Dante me encara com os olhos arregalados e
furiosos.
— Kira!
— O que foi, Dante? Eu transo. Fim. Não é como se você fosse um
virgem.
— Ih, está azeda mesmo. — Antônio ri.
Dante fala algo no ouvido de Aisha e ela acena, saindo do colo dele.
Ele se levanta e eu reviro os olhos, prevendo o que vem na sequência.
— Me acompanha. — Ele se dirige a mim, e eu me levanto,
entregando o console do jogo para Aisha, que ocupa meu lugar ao lado de
Antônio.
Sigo ele pelo corredor, pisando duro, e viramos à direita, entrando em
um escritório desocupado.
Ele se senta em um divã que tem ali e eu fico de pé, encostada na
parede de frente a ele.
— O que é? — indago com irritação.
— Eu que te pergunto, Kira. O que está acontecendo? Pensei que
quando se apaixonasse por alguém, ficaria alegre e radiante.
— Quem disse que estou apaixonada?
— Se eu te falar como eu sei, você vai ficar irritada. Quer que eu fale
mesmo assim?
— Não. — Viro a cara. Considero por alguns segundos e acabo
cedendo. — Vá em frente, me irrite.
Ele ri antes de começar.
— Não tem muito o que dizer. Eu só vejo nos seus olhos o que vi nos
meus por anos. O jeito que fala dele suspirando, a tristeza que carrega por
não estar com ele e a forma como nos contou com os olhos brilhando sobre
a possibilidade de estudar fora com ele. Não é só pelo convite que recebeu
do professor, é principalmente porque é com Zayan.
Ele encerra o discurso e nenhum de nós diz nada por um longo tempo.
Até que meu irmão decide quebrar o silêncio.
— Então? Estou certo?
— Não sei...
— Claro que sabe, Kira. É bem mais fácil de saber do que você pensa.
— Eu não sei, Dante!
— É amor, Kira! Não é difícil de saber!
— Qual a diferença, Dante? Amor não é tudo nessa vida. — Eu sinto
falta dele, mas ele me magoou. O que garante que ele não fará de novo?
— Não é tudo, mas é muito. Você está se martirizando e sofrendo
porque ele fez uma burrada e você o ama. Você se decepcionou porque tem
sentimentos pelo garoto.
— Bom, isso é uma coisa que você tem propriedade para dizer, não é,
irmão? Porque você se acovardou por anos, e quando teve a chance do seu
final feliz, quase ferrou com tudo! — esbravejo. Não entendo porque ele
está aqui defendendo Zayan. Dante o odeia.
Vejo como minhas palavras atingem ele em um ponto dolorido,
porque os olhos de Dante se enchem de água.
— Desculpa, eu não quis...
— Não, você tem razão. — Ele tenta limpar as bochechas, mas o
choro dele cai livremente.
— Dante, me perdoa.
— Não, Kira. Você tem razão. Eu fui mesmo um grande covarde.
— O que te fez esperar tanto tempo para se declarar? Por que não
disse logo para Aisha como se sentia? — Por que as pessoas insistem em
esconder coisas umas das outras?
— Porque eu sabia que eu não seria bom o suficiente para ela, Kira!
Porque tudo que eu sentia por Aisha me dava medo. Eu tinha medo de que
ela um dia perceberia que ela merece muito mais, e então ela iria me chutar
da vida dela. Eu sou superprotetor, impulsivo e covarde, e ela merecia coisa
melhor. Eu sempre achei que não era suficiente para ela, Kira. E foi por isso
que eu passei anos tentando me desfazer do que eu sentia ao invés de dizer
alguma coisa. Se ela me desse uma chance, eu sabia que poderia ferrar com
tudo na primeira oportunidade. — Ele soluça. — Já pensou que o garoto
estava apavorado e por isso não disse nada? Já pensou que ele talvez
achasse que você merecia algo melhor e te deixou viver a vida em paz, sem
precisar enfrentar o fato de que ele tinha um sádico como irmão? — Dante
funga, tentando conter o choro.
— Não, mas isso não justifica...
— Para de achar que tudo tem uma justificativa! Enfrente os fatos e
escolha o que fará com eles. Ou você luta pelo que sente ou desfaz esse
humor horroroso que já dura semanas e segue em frente.
Abro a boca para responder, mas Dante e eu somos surpreendidos
com a voz de Aisha.
— Baby?
Nós nos viramos para ela, que está parada na porta. Não sei há quanto
tempo, mas acho que tempo suficiente para ouvir o desabafo dele, porque a
expressão dela é de pesar quando encara meu irmão.
— Kira, pode ir ajudar Antônio? Ele vai fazer pipoca — Aisha pede.
— Claro.
Saio apressada do escritório e ela entra, fechando a porta.

Tranco a porta do escritório antes de caminhar e parar na frente dele.


Ele permanece sentado, encarando o chão, batendo ansiosamente com a
perna. Por longos segundos não diz absolutamente nada.
— Dante? — chamo, mas ele não responde. — Dante? — Tento de
novo.
Nada.
Dante não ergue o olhar, então eu seguro o queixo dele e o obrigo a
me encarar. Ele vira o rosto, me proibindo de o ver chorar.
— Por que você disse aquilo à sua irmã?
— Porque é a verdade, Aisha. — A voz de Dante entrega a dor que
sente. O pranto dele não cessa e eu vejo as lágrimas molharem o carpete.
Ele sofre. Há anos ele sofre por coisas que não tenho noção da
dimensão. E isso me parte o coração.
— Por que fica guardando as coisas de mim? Já chega disso, Dante.
Se vamos ser sinceros, então que sejamos! Sem mais meias verdades, por
favor. Olha onde os segredos nos levaram.
— É, eu sei. — Ele se levanta e passa por mim, indo até a janela do
fundo. — Eu faria qualquer coisa para que isso não tivesse acontecido,
Aisha. Voltaria no tempo e te contaria tudo que eu sabia sobre seu pai, mas
eu não posso. — Ele parece frustrado por não ter esse poder. Genuinamente
frustrado.
— Por que não contou?
— Porque eu sou a porra de um covarde, Aisha!
— Não, você não é!
— Eu sou! — Ele se vira para mim e a expressão de dor dele me
quebra. — Olha para mim, olha o quão patético eu sou. Eu fiquei anos
amando você em silêncio, incapaz de ser honesto com você quanto aos
meus sentimentos, porque eu achava que você merecia mais. Você sempre
foi demais para mim, ruiva. Você tem um coração tão lindo. Sua
sensibilidade é encantadora. Sua mente funciona em uma frequência acima
da média. Você é extraordinária, pequena. Olha... — ele suspira
profundamente. — Olha a linda mulher que você se tornou. Você pode ter o
mundo aos seus pés. Eu sabia que você não era para mim, e por isso eu
estava mais que satisfeito sendo seu melhor amigo. A dor que eu sentia por
ter que sufocar esse amor não tinha nada a ver com a felicidade que nossa
amizade fazia nascer em meu peito. Porque lá no fundo, eu sempre soube
que se eu tivesse qualquer chance com você, eu daria um jeito de foder
tudo. Sempre amei você demais para suportar essa ideia. Mas, no fim, foi
exatamente o que fiz. — Ele ainda chora e eu não suporto mais assisti-lo se
martirizar assim.
— Dante, não diga isso. — Caminho até ele e ficamos frente a frente.
Dessa vez ele não se afasta e permite que eu passe o polegar pelas
bochechas molhadas.
— Tenho idade e maturidade o suficiente para admitir e assumir meus
erros. Foi uma grande merda o que eu fiz e você não deveria ter me
perdoado.
— Você escondeu as coisas de mim porque queria me magoar?
— Claro que não!
— Você viajou porque queria que eu sofresse?
— Aisha, óbvio que não! Isso não muda o fato de que você sofreu.
— Você quer que eu volte atrás na decisão de te perdoar e abra uma
ferida no meu coração pela saudade que sentirei te ignorando?
— Não, mas eu não queria que...
— Não queria que eu sentisse saudade? Eu sinto. Não queria que eu
sofresse com sua ausência? Eu sofro. Não queria que eu esquecesse com
facilidade toda essa confusão que você arrumou apenas porque a sensação
de ter seus braços ao meu redor é mais importante do que alimentar uma
mágoa por algo que já se resolveu? Eu esqueci. E isso diz muito sobre você.
Porque é impossível me afastar de você. Porque você é igualmente incrível.
Você fez uma merda ou duas, e daí? Não é como se você acordasse todo dia
e escolhesse me machucar. Você vai fazer uma merda maior se ficar
dizendo que não é bom para mim. Tudo que você fez desde o dia em que
nos conhecemos foi ser bom para mim. E eu sinto muito que não consiga
enxergar a pessoa maravilhosa que você é. Eu sinto muito mesmo, porque
você não estaria aqui, agora, sofrendo, e não teria passado anos se
convencendo de que eu merecia algo melhor. Você entendeu meu luto
melhor que ninguém. É você que me incentiva a ser minha melhor versão
sempre. Foi você, Dante, que sempre me enxergou por inteiro. Você traduz
cada movimento meu sem que eu diga uma palavra. Você parece ler meus
pensamentos de alguma forma. Eu sinto frio e você já está me entregando
um casaco. Se estou triste, você já está me abraçando. Você percebe cada
respirar diferente meu, cada mudança minha. Se eu entrar no seu carro
agora, eu sei que tocarão as músicas que eu tenho ouvido nos últimos
tempos. E eu não te disse o nome de nenhuma delas. Você sabe, você
simplesmente sabe. Porque eu posso ter demorado anos para entender, mas
hoje eu sei. Você é minha alma gêmea, Dante. E como eu posso deixar
qualquer coisa atropelar isso? É muito maior do que tudo lá fora. Você
nunca me magoaria intencionalmente. E eu sei que você vai se culpar o
suficiente por nós dois pelo que aconteceu. Por muito tempo ainda. Porque
também te conheço do fundo da minha alma, baby. Já nos sacrificamos
demais. Por favor, por favor, não me diga que eu deveria me sacrificar e me
torturar um pouco mais quando tudo que desejo é só ter você por perto. Por
favor.
Não sei o que na minha fala mexe com ele, mas o choro dele piora e
eu não suporto mais o ver assim. Abraço meu amor pela cintura, desejando
ardentemente curar essa ferida aberta em Dante. Os braços dele se fecham
com força ao redor do meu ombro e ouço o coração de Dante bater
acelerado.
— Você sabe que em uma relação madura, quando duas pessoas têm
um problema, ao invés de ficar remoendo ele e criando cenários
imaginários, elas conversam e se entendem, certo? — digo com suavidade.
— Hum... — Acho que é um sim da parte dele.
— Você sabe que nós conversamos e nos entendemos, não é? Você
contou o que havia te acontecido e eu entendi. Vi as coisas sob sua
perspectiva e entendi. Mas se você acha que conversar não foi o suficiente,
você pode fazer massagem nos meus pés todos os dias, cozinhar nosso
jantar para sempre, me deixar ganhar toda vez que formos jogar algum
jogo...
— Você está me fazendo sorrir.
— É exatamente esse meu objetivo, baby. Como você já fez por mim
tantas e tantas vezes. Mas não terminei a lista ainda. Você pode fazer as
compras do supermercado...
— Lavar as roupas sempre. Fazer bolo de chocolate com brigadeiro,
ouvir Lizzo dia e noite, foder bem.
— Dante! — Dou um tapinha no peito dele.
— Você que disse que eu faço isso bem, e eu vou acreditar em você.
— Arrisco olhar para cima e vejo que o choro se foi. Limpo as últimas
lágrimas do rosto lindo dele e sorrio. — Então basicamente eu tenho que
mimar você?
— Pelo resto das nossas vidas.
— Você sabe que isso não é um castigo para mim. Você realizaria
meu maior sonho.
— Realizarei. Eu realizarei. O que te faz ser tão inseguro, baby? — O
sorriso tímido se vai e ele está triste de novo. — Não, não, por favor, não
fique assim.
— Tudo bem, vai passar. É só... Eu não sei, ruiva. Eu nunca fui bom
em nada. Eu sou um amontoado de coisas e nenhuma delas parece ser boa o
suficiente.
— Eu sempre te disse que você é um bom amigo.
— Sim. Um excelente amigo, e acho que por isso tive medo de perder
esse lugar na sua vida. Se eu fosse capaz de estragar isso, então o que seria
de mim?
— Dante, você é bom em inúmeras coisas. Não tem que ser bom em
um papel que assume. Tem que ser bom sendo você. E isso você é. Você é
engraçado, gentil, é um excelente leitor de romances, o melhor agrônomo
de todos, tem os melhores cafunés.
— O que é cafuné? — Ele fica confuso com a palavra dita em
português.
— É quando você pega essa mão aqui... — Seguro a mão direita dele.
— E coloca ela aqui. — Levo-a até meu cabelo. — E acaricia o topo da
minha cabeça até eu dormir.
Ele leva meu rosto até o peitoral dele e faz carinho no meu cabelo.
— Quer que eu durma de pé? — digo quando a carícia começa a me
relaxar.
— Eu te carrego, pequeno Hobbit.
— Pequeno Hobbit é redundante. Hobbits são pequenos sempre. Sabe
de uma coisa? Seu maior defeito é criar apelidos para sua namorada.
— Ela ama. Sei que ama. Se eu conheço bem o coração dela, sei que
no fundo ela adora, porque só eu a chamo assim.
E ele me conhece bem. Porque eu adoro. Porque é único. E porque é
ele.
— Tem que se resolver com suas inseguranças, baby.
— Eu sei — ele suspira e beija meus cabelos.
— Terapia?
— Estou considerando.
— Te fará bem.
— Obrigado, ruiva. E obrigado por ser sempre perfeita.
— Não sou. Mas sou perfeita para você. E você é perfeito para mim.
Mesmo com todas nossas imperfeições.
— Amo você, Aisha.
— Amo você, Dante inseguro.
— Então você já disse que ama o Dante bravinho e o Dante inseguro.
— E também o Dante fofo, o Dante observador, o Dante medroso, o
Dante protetor, o Dante mandão. Todos eles. — Mais uma vez busco o
olhar dele, e dessa vez o sorriso é expansivo e aquieta meu coração.
Fico na ponta dos pés e ele se curva para tocar meus lábios com
suavidade e delicadeza. Aprofundo nosso beijo, pedindo passagem com a
língua, e ele cede. Puxo-o pela nuca, para que ele não se afaste e encerre o
beijo cedo demais. O ritmo vagaroso das nossas línguas, buscando uma pela
outra se vai, e então damos vazão à necessidade. Aquela crua e vertiginosa
que sempre entregamos um ao outro.
— Aisha, amor... — Ele desgruda nossas bocas brevemente.
— Não, você não vai me parar agora. — Desabotoo um a um os
botões da camisa dele.
— Nós estamos no escritório do seu avô.
— Mais um lugar dessa casa para carimbarmos no passaporte de
cômodos que transamos. — Abro a camisa e suspiro ao ver o peitoral dele
exposto e marcado de tinta. Lindo. Perfeito.
— Eu odeio quando me olha assim.
— Porque você perde seu autocontrole e finalmente decide me foder.
— Sim, você me conhece bem. — O braço dele se fecha em minha
cintura e ele me puxa para cima.
E nós provamos mais uma vez como nos conhecemos tão bem. E
como não há nada melhor no mundo do que Dante e Aisha juntos.
— Acha que devemos ir avisar a eles que está pronta? — Aponto para
a vasilha de pipoca na bancada da cozinha. Pego um punhado e levo à boca.
— E se eles estiverem brigando? — Antônio questiona.
— Aí a gente vai parar a briga deles. Eles não têm que brigar. São
Dante e Aisha. Dante e Aisha não brigam.
— Tem razão. Vou lá.
Antônio sai da cozinha. Cinco minutos depois está de volta, com o
semblante assustado.
— O que houve? — Ele chega até mim e leva a mão até a pipoca.
— Eu juro que esses dois um dia vão povoar Florença apenas com a
prole Campello Moretti.
— Eles estão... — começo a questionar, segurando uma risada.
— Sim, eles estão. E pode esquecer aquele escritório por pelo menos
uma hora. Ou duas, talvez. Meu Deus, esses dois vão me traumatizar! É
como se eu tivesse flagrado meus pais transando. — Antônio esfrega os
olhos, como se quisesse limpar alguma imagem.
— Sim, porque você é um santo, puro e virgem.
— Nunca disse que era. Mas agora você não pode falar de mim. —
Antônio ri. — Estou magoado porque não veio me contar que deixou de ser
virgem.
— Para você publicar na sua coluna de fofocas? — pergunto com
zombaria.
— Sim, ando sem pauta para notícias.
— Por que não publica algo sobre “a mulher que não caiu nos
encantos do príncipe Campello”? Eu leria essa história.
— Não existe tal mulher, Kira — retruca.
— Ah, existe! E eu já idolatro a Anita. — Foi Aisha quem me contou
sobre o embate de Antônio e Anita e sobre ela negar as investidas do
Campello.
— Esquece essa mulher. Ela não é normal.
— Por que ela não quer você? — Dou uma risada sonora. — Talvez
ela seja bastante normal por isso.
— O que eu te fiz para estar sendo insultado assim? — diz com uma
careta no rosto. — Agora eu entendo porque o branquelo não te quis mais.
— Ele não me quis mais?
— Então você que não o quis?
— Quis.
— Não quer?
— Quero.
— Quer?
— Quero.
Antônio abre um sorriso largo depois de ter arrancado de mim minha
confissão, e eu faço o mesmo.
Meu peito alivia por ter dito em voz alta depois de tanto tempo a
verdade absoluta que me rege há bastante tempo: quero Zayan. Quero como
nunca quis ninguém antes. Quero ele aqui e agora. Nesse momento.
— Vamos, eu vou te levar! — Antônio anuncia, animado, me
puxando pelo braço.
— Para onde, Antônio? — Meu coração palpita quando o sigo.
— Para o branquelo.
— O nome dele é Zayan! — Nós saímos porta afora.
— E você acabou de se condenar de vez. Eu poderia estar falando de
qualquer branquelo.
Eu nem mesmo fico brava com ele. Estou animada demais, seguindo
Antônio em sua loucura, feliz com as expectativas que meu coração cria.
Nós entramos no carro dele e Antônio dirige para fora da mansão.
Peço a Marco por mensagem o endereço de Zayan, coloco no GPS para
instruir Antônio e ele me xinga quando mando ele virar em uma rua errada.
Conversamos alvoroçados sobre eu estar prestes a dizer ao garoto que... O
que eu vou dizer?
Quase desisto quando Antônio vira a esquina da rua. Sinto uma
ansiedade crescente, porque já fiz esse caminho uma única vez. Para aquela
festa em que conheci Lorenzzo.
Respiro fundo, tentando não pensar sobre aquele dia, focando no
presente. Estou prestes a encontrar Zayan, e é só isso que importa.
Reconheço a fachada quando Antônio para no endereço indicado.
Tudo está estranhamente quieto. As janelas estão todas fechadas e não noto
nenhuma movimentação do lado de dentro.
— Tem alguém aí? — Antônio mira a fachada com o mesmo
questionamento que eu.
Saio do carro e ele vem logo atrás. Procuro com o olhar alguém que
possa me esclarecer sobre o que está acontecendo aqui, quando um carro
estaciona próximo à calçada.
— Kira? — Nina sai do automóvel e vem até mim, com a testa
franzida em confusão.
— Nina, como vai? Eu vim... Hum... Vim aqui...
— Veio ver Zayan? — Ela sorri largamente.
— Sim — admito sem hesitar.
— Eu acho que ele não te avisou.
— Avisou o quê? — pergunto com agonia.
— Zayan está no Canadá.
— Canadá? — Desespero começa a me tomar. — Mas quando?
Como? Ele não disse nada. Por quê?
— Desculpa dar a notícia assim.
— Ele volta? — Por favor, diz que ele volta. Ou terei que comprar
uma passagem e trazê-lo arrastado para cá.
— Ah, volta sim, querida! Não se preocupe. Ele só foi visitar a avó.
Espairecer a cabeça. Foram dias difíceis para nós. — O rosto dela entrega o
cansaço de Nina. Eu tento imaginar como deve ter sido para eles.
Zayan falou que o pai sentiria muito a perda de um filho. Perda no
sentido figurado. Lorenzzo nunca foi quem o pai sonhava. Deve ter sido
desesperador para Leonardo Castelli quando tudo veio à tona.
— Sinto muito pelo que passaram — expresso meu pesar.
— Eu também. Mas vamos ficar bem. Só que Zayan precisava de um
tempo longe disso, e por isso eu o ajudei a organizar a viagem. Mas em
breve ele retorna.
— Sabe me dizer quando?
— Quatro ou cinco semanas, eu acho.
— Cinco semanas? — Minha voz escapa aguda pelo desespero.
— Sim — Nina responde, quase se desculpando.
— Tudo bem — digo com desolação. — Vamos, Toni — chamo o
Campello que assistiu nossa interação em silêncio.
— Kira, espera. — Me viro para Nina. — Nós estamos de mudança.
Vamos morar com Dafne. Eu acho que Zayan passou por muita coisa ruim
nessa casa. E minha mãe fica muito sozinha, então decidimos, eu e
Leonardo, ficar lá. Eu vim aqui buscar algumas coisas e vou levar para lá.
Quer me ajudar? — propõe com animação.
— Quer minha ajuda?
— Claro, por que não?
— Eu topo! — E em seguida me viro para Antônio. — Pode ir, Toni.
Eu vou ficar com Nina. Avisa ao meu irmão.
— Como vai voltar, Kira?
— Eu a levarei de volta — Nina diz, indo até o porta-malas do carro
dela.
— Tudo bem, então. Qualquer coisa, me manda mensagem — Toni
fala antes de entrar no carro e ir embora.
Vou até Nina e ajudo-a a tirar duas caixas organizadoras do carro.
Caminhamos para dentro da casa e a ansiedade volta a me tomar quando
entro.
É muito diferente assim, à luz do dia, sem que uma festa universitária
esteja acontecendo aqui.
O ambiente é amplo e claro, com enormes paredes, móveis modernos
e cores escuras. Subo as escadas acompanhando Nina, até chegar na porta
do quarto que visitei naquela noite. Estremeço quando paro na frente dele e
Nina pede:
— Pode pegar o que tem aí e guardar nessa caixa que tem em mãos?
— Nesse quarto? — pergunto, atordoada pelo nervosismo.
— Sim. É o quarto de Zayan.
— De Zayan? — Então o desgraçado mentiu quando me trouxe aqui!
A coleção de LEGO e os livros de suspense não eram de Lorenzzo. Eram de
Zayan!
— É. Algum problema?
— Não, nenhum. — Entro no cômodo e Nina vai até a ponta do
corredor.
Olhando agora, conhecendo os dois Castellis, percebo que o quarto
não pertenceria a mais ninguém senão Zayan.
É um ambiente organizado, limpo e arejado. Todos os livros estão em
seu devido lugar e os LEGOs foram construídos categoricamente.
Começo a juntar tudo cuidadosamente, notando que alguns móveis já
não estão mais aqui.
Vou até a mesa de estudos e vejo alguns porta-retratos. Tem fotos dele
com Nina e com o pai. E fotos de uma outra mulher sozinha. Julgo ser
Cassandra, mãe dele, porque ela não aparece em nenhuma foto com Zayan.
E eu reconheço os traços dela. São os mesmos de Zay. É incrível a
semelhança entre os dois.
Largo a foto na caixa e pego alguns cadernos que estão sob a
superfície. Minha curiosidade fala alto e decido folhear as páginas.
Anotações e mais anotações. Levo um tempo até chegar à última
página e o que vejo ali quase me faz chorar.

FATOS SOBRE KIRA MORETTI

Ela gosta de rosa. Talvez seja a cor preferida dela, porque


quase sempre usa rosa.
Ela gosta de balas de tutti frutti. Com frequência coloca
uma dessas na boca.
Se o nariz e as bochechas dela estão vermelhos, ela está
irritada.
Kira odeia praias. Sempre reclama para a amiga quando
volta de Sicília.
Kira assiste novelas turcas nas horas livres. Talvez seja fã
de romances.
Kira odeia as segundas-feiras (todos nós odiamos, pequena
Moretti).
Kira adora maçã verde.
Se Kira está de cabelo preso, moletom e tênis,
provavelmente está de TPM. Não devo provocá-la nesses
dias!
Kira parece criança comendo. Suja a cara toda de creme
quando come donuts.
Kira sempre prende o cabelo com presilhas. Nunca com
elásticos.
Kira se recusa a visitar um oftalmologista, e por isso fica
estreitando o olhar para tentar enxergar as coisas que são
projetadas na aula.
Kira rói as unhas quando está nervosa.

— Tudo certo por aqui? — Me assusto com a voz de Nina, e fecho o


caderno, colocando-o na caixa.
— Sim, acho que sim.
Caminho com ela até o carro e ajustamos as caixas. Entro no banco de
passageiro e ela assume a direção. E nós vamos conversando sobre tudo o
que o tempo entre a casa antiga e a nova morada deles nos permite.
Entro com a caixa pelo corredor principal da casa de Dafne e quase
caio para trás de susto quando me deparo com a imagem no fim do
corredor.
Não previ esse encontro e não teorizei sobre como seria. Embora eu
devesse imaginar, já que ele mora aqui agora.
— Le-Leonardo...
Ele está quase irreconhecível. Parece ter perdido peso nos últimos
tempos e tem olheiras profundas embaixo dos olhos castanhos. A barba
cresceu, assim como os fios de cabelos.
— Oi, Kira. — Ele tenta repuxar os lábios para um sorriso.
— Co-como o senhor está?
— Não precisa ficar ansiosa na minha presença. Se alguém aqui
deveria se sentir assim, esse alguém sou eu.
— Imagina, não tem motivo. Não me deve nada, senhor Leonardo.
— Por favor, me chame de Leonardo. E eu devo desculpas eternas a
você por ter criado aquele... — A voz dele embarga e ele se cala.
— Leonardo, viver no passado pode ser triste e solitário. Temos que
deixar o que passou ir. Eu não guardo mágoa. Tenho profunda tristeza por
tudo que aconteceu, mas escolhi não deixar essa tristeza se apossar de mim
e definir meus dias.
— Você tem um bom ponto, Kira.
— Kira, pode levar isso para o segundo... andar. — A voz de Nina
morre no fim da frase. — Leonardo?
— Vim ver se precisam de ajuda — ele oferece.
— Bom, agora que perguntou, tenho que deixar essa pilha na
biblioteca e organizar. — A voz dela entrega o alívio que sente. Foram dias
dolorosos para Leonardo, posso ver. E espero de coração que ele possa sair
dessa onda de tristeza que o toma.
— Eu vou levar isso para o quarto de Zayan. Acho que sei o caminho.
— Aponto para a caixa e Nina acena.
— Nina, o que é que está acontecendo aqui? Ah, Kira. É você,
menina. — Dafne sorri ao me ver aqui e me cumprimenta como se
fôssemos velhas conhecidas.
— Sou eu.
— Que bom que voltou. Tenho uma coisa para lhe mostrar.
— Deixa a caixa aí no chão, Kira. Depois organizamos. Você deveria
ir lá — Nina diz em tom cúmplice. E eu sigo Dafne para os fundos da casa,
em direção ao jardim.
Passamos pela estufa, mas ela continua caminhando, até parar na
entrada do caminho cercado de flores.
— Vá em frente. — Acena para que eu tome o caminho de pedras e
cascalhos, e eu vou.
Chego na ponta e rapidamente entendo do que se trata. Porque as
flores são as mais bonitas e floridas que há nessa parte do jardim. Assumem
um tom de rosa vivo e vibrante, se espalhando como uma nuvem feita de
peônias.
— Em todos esses anos que cultivo esse jardim, nunca vi uma flor
brotar tão rápido e com tanta vivacidade. Essa espécie daí com certeza veio
para ficar, Kira.
— Espero que sim, Dafne. — Limpo uma lágrima que rola do meu
rosto, sorrindo com a satisfação e alegria irrefreáveis que tomam meu
coração e me trazem calmaria e alento.
Espero que floresça cada dia mais.
Termino de organizar as prateleiras dos LEGOs por cor. Não faço
ideia de como Zayan organizava antes, mas por cor ficou uma graça, então
ele terá que aceitar a nova formatação.
Coloco os livros na prateleira e ajusto o material escolar dentro do
armário.
Quando tudo está em seu devido lugar, vou até a cama de Zayan.
Boas lembranças. Muito boas lembranças.
Me sento e pego o travesseiro. Esfrego meu cabelo na fronha, para
deixar meu cheiro aqui. Se ele não me quiser de volta, ao menos irá se
torturar sentindo meu aroma.
Talvez eu devesse visitar esse quarto com frequência nessas semanas
e deixar minha marca.
— Tudo certo por aqui? — Nina surge na porta. Coloco o travesseiro
no lugar, disfarçando.
— Sim.
— Já quer ir para casa?
— Acho que sim, se não for problema para você.
— Estou liberada.
Me levanto e sigo Nina. Estamos na ponta do corredor quando ouço a
voz de Leonardo.
— Deveria voltar mais vezes durante suas férias, Kira.
O pedido me pega fora de guarda, principalmente porque ele parece
animado com a ideia.
— Claro que vai voltar. A garota precisa aprender a cozinhar. Mal
sabe sovar uma massa.
— Mãe! — Nina repreende o comentário da mãe.
— É verdade, Nina. Não posso permitir que as refeições da menina
sejam congelados. Diga a verdade, vive de congelados, não é, Kira?
— Bom...
— Viu, Nina?! Como posso permitir uma atrocidade dessas? Vai
trazer a menina para cá e vou ensiná-la a cozinhar.
Dafne não deixa espaço para contestação e eu não me oponho à ideia.
Já passou da hora de eu aprender a fazer algo útil na cozinha.
E assim poderei colocar meu plano em prática. Vou deixar meu cheiro
impregnado naquele quarto e vou decorar ele à minha maneira. Se o maldito
realmente chutar minha bunda, vai ser torturado pela marca que deixarei no
cômodo.
— Eu vou vir, Dafne — anuncio e ela acena com satisfação.

Nina me deixa na porta dos meus pais, prometendo me buscar no dia


seguinte, para que eu passe o dia com eles. Aceno, me despedindo, e entro
em casa.
Tenho passado alguns dias aqui, já que ficar no apartamento tem sido
tedioso.
Encontro Gio e Martina no quintal dos fundos, rindo e bebendo vinho.
— Oi, filha. Como foi a tarde?
— Foi ótima. Eu estive na nova casa de Zayan.
— Zayan? — Meu pai engasga com a bebida.
Os olhos dele parecem querer sair de órbita. Minha mãe me encara
com pânico e eu mantenho a calma.
— Vocês... — Gio pigarreia. — Vocês estão namorando de novo?
— Não. Não sei. Zayan não está aqui. Eu não o vi. Ele foi viajar.
Estava com a avó, a madrasta e o pai dele.
— Kira... — Há um tom de alerta na voz da minha mãe.
— Mãe, não preciso de nenhum sermão. A família Castelli não é
Lorenzzo. A família Castelli sofre como a nossa. Leonardo Castelli afundou
em depressão pela culpa que sente. — Esse é meu palpite depois de ter visto
o homem hoje. Não está bem. Está se recuperando do golpe que a vida lhe
deu. Não posso culpá-lo inteiramente pelo filho que teve. Lorenzzo é
enganador e ardiloso. — Fomos vítimas de um ser humano cruel e
desprezível. Mas, mãe... Eu gosto de Zayan. Sou apaixonada por ele.
— E como um relacionamento que começou com uma mentira daria
certo, filha?
Machuca a forma como ela fala, mas sei que é porque ela é mãe.
Porque sou nova e porque ela me acha ingênua e sonhadora.
Mas eu só saberei se minha relação com Zayan vai funcionar quando
eu tentar fazer dar certo. Não posso fazer Zayan mudar a atitude dele, mas
posso fazê-lo entender que foi errado. E eu não preciso dizer isso a ele.
Zayan sabe. Zayan entende. E se ele escolher fazer diferente daqui para
frente, então eu me abrirei para essa mudança e a abraçarei.
— Mãe, não há regras para relacionamentos. E eu não tenho como
prever o futuro. Não começamos com uma mentira. Começamos com uma
discussão, um tapa e em seguida uma detenção. A senhora deveria se
preocupar com isso. Mas a verdade é que não tem que se preocupar com
nada, porque eu e Zayan vamos nos preservar e vamos cuidar um do outro.
E essa é uma certeza que eu carrego em meu coração. Porque já
fizemos isso. E somos bons nisso.
— Eu sei disso. — Meu pai me surpreende, falando com seriedade e
calma.
— Sabe? — questiono.
— Naquele dia que você nos contou sobre o que tinha acontecido,
queríamos que você voltasse para cá. Não estávamos dispostos a abrir mão
disso. Mas então o menino pediu para conversar com a gente. Tudo que
Zayan fez nos minutos seguintes foi se propor a cuidar de você. Disse que
andaria na sua cola o dia todo, se necessário. Disse que se ligasse na
madrugada, ele estaria na sua porta em cinco minutos. Zayan disse que faria
isso tudo com o coração alegre. Ele já fazia, na verdade. Zayan estava
disposto a lutar por você e pela sua felicidade. Ele falou que tudo que ele
mais queria era te ver sorrir, livre, e que faria o possível para que fosse
assim. Inclusive enfrentar os seus pais apenas para ver alegria estampada
em sua feição. Zayan nos contou como se apaixonou por você desde o
primeiro momento, filha. Talvez desde o primeiro puxão de cabelo.
Palavras dele.
— Puxão de cabelo? — Do que meu pai está falando?
— Espere um segundo. — Se levanta e caminha para dentro da casa.
Olho indagativa para minha mãe e ela dá de ombros, sem explicar nada.
Segundos depois, meu pai volta com um pequeno porta-retratos na
mão.
— Vê aqui? — Ele aponta para uma fotografia.
Sou eu no primário, com os cabelos trançados, braços cruzados e uma
careta brava. Estou com alguma fantasia, provavelmente era uma
apresentação da escola.
Ao meu lado está um garoto de cabelos lisos e castanhos. Ele tentava
me abraçar, mas eu não permitia.
— Dias depois fomos chamados na escola porque você puxou o
cabelo do garoto e deu um tapa nele.
Eu reconheço o menino da foto! Eu já o vi antes. Nas fotos que usei
de Nina para a apresentação daquele trabalho, quando quis provocar Zayan.
É o mesmo garoto!
— Esse é Zayan? — Minha voz expressa minha incredulidade. Eu já
o conhecia?
— Ele estudou um ano nessa escola. Foi o que ele disse. Ele
reconheceu você, pequena, quando viu essa foto na sala. Abriu o telefone e
mostrou uma fotografia. — Minha mãe aponta para a imagem que meu pai
me mostrou. — O pai dele tem uma quase idêntica guardada.
— Ele me provocava desde sempre, esse bastardo!
— Kira! — Sou repreendida pelo meu pai. — Eu senti tudo que
aquele garoto quis passar com as palavras, Kira. Confiei no que ele sente. E
confio no que você sente e deseja também, filha. Se quer estar com Zayan,
não vou impedir.
— Não vamos — Martina corrige meu pai. — Não posso interferir
em suas escolhas, filha. Só preciso saber que está feliz. E é o que me
importa.
— Eu estou. E estarei muito mais, mãe. Quando encontrar Zayan,
transbordarei felicidade.
Ela sorri e me abraça junto do meu pai.
Estou te esperando, Zay. Venha logo.
Encaro o teto do quarto de hóspedes, consumido pelo tédio. Lá fora o
sol brilha. O clima no Canadá está morno e convidativo, mas não sinto
vontade de sair daqui.
Tudo culpa daquele projeto de Barbie. Tudo sem ela é sem graça. O
que será que está aprontando agora, Moretti? Está irritando alguém?
Quantas balas já comeu hoje?
Pego o celular. Minha tela de bloqueio me tortura. Agora é a nossa
foto juntos no primário que está ali. Me recordo do dia que descobri que foi
ela a criança que puxou meu cabelo na pré-escola.
Estou na frente dos pais dela, agitado, sentindo minha coragem se
esvair pouco a pouco.
Agora não é hora de me acovardar. Preciso fazer isso por ela.
— Por que queria falar comigo e minha esposa a sós, garoto?
Kira está neste momento no andar de cima. Não faz ideia que estou
prestes a abrir meu coração para os pais dela.
— Martina. Giorgio. Eu sei que vocês estão tentando proteger Kira, e
eu também prezo acima de tudo pela segurança dela. Mas também quero
que ela esteja feliz. Eu sei o que é ser aprisionado pelo medo. Também tive
meu algoz particular, alguém que me aterrorizava dia e noite, mas não é
disso que eu quero falar.
“Kira estará em segurança, nós vamos garantir isso. Eu, vocês,
nossos amigos, todos ao redor dela farão o possível para que ela não esteja
mais sozinha, para que ela caminhe sem a sombra do ex pairando sobre
ela.
“Vamos garantir que ele não chegue perto. Uma denúncia foi feita na
faculdade e os fatos serão apurados. Já é um começo. Se vocês quiserem,
eu fico com ela o dia todo na faculdade. Faço o que for preciso. Mas não
tirem o sorriso dela, como eu já fiz tantas vezes. Como alguém que ama
Kira assim como vocês, digo que será doloroso assisti-la se fechar para o
mundo.
— Amor, Zayan? Vocês começaram a namorar agora. — Martina está
cética.
— Eu não conheci sua filha esse mês, Martina. Conheci há mais
tempo. Tempo suficiente para me apaixonar. Eu sei que não parece que a
amo há tanto tempo assim, sei que minhas atitudes foram erráticas, mas eu
não me achava bom para ela. E por isso agi dessa maneira torta por esses
anos. Quis afastá-la. Só que ficou impossível resistir ao que eu sentia. Sua
filha é uma pessoa incrível, alegre e dona de uma mente brilhante. É
também mimada, atrevida e agitada. — Eles me olham torto, mas não
posso negar que ela é tudo isso. E que, ainda assim, ela tomou meu
coração. — Eu amo tudo isso nela. Mesmo que ela não saiba ainda.
— Não disse isso a ela? — Giorgio indaga.
— Não. Não digam nada a ela, por favor. Quando eu me sentir
seguro, eu vou me abrir.
— Nós não podemos simplesmente entregar nossa filha sob seus
cuidados, Zayan. São dois jovens irresponsáveis.
— Eu nunca vou negligenciar o bem-estar de Kira, Martina. Eu acho
que você não entende a dimensão do que eu estou falando. — Caminho
pela sala, ansioso, tentando racionalizar sobre tudo que sinto e colocar em
palavras. — Se um dia eu for me casar e ter uma família, a sua filha é a
única pessoa para quem eu entregaria essa parte minha. E isso só depende
dela. Eu estou cem por cento entregue e comprometido a ela, e faria o
possível e impossível para garantir que ela fique bem. Para que ela seja
feliz. Então se no momento, o que ela precisa é estar no lugar que dê a ela
a sensação de liberdade e autonomia, então vou garantir que seja assim.
Mesmo que para isso eu tenha que buscar ela todos os dias em casa e
depois levar de volta, garantir que todas as portas estejam trancadas
quando ela sai e entra no apartamento, vigiar o nosso redor para ter
certeza de que ninguém está perseguindo ela, desmarcar todos os meus
compromissos para estar com ela, atender qualquer ligação na madrugada
dela, convencer a melhor amiga a se mudar para o apartamento dela,
então eu farei. Farei feliz. Farei exultante e sem esperar absolutamente
nada de Kira. Nem de vocês. Farei porque desejo que meu futuro seja com
ela, e eu preciso garantir que ela esteja nele. Eu a amo, e não é só porque
eu gosto da sensação dos dedos dela entrelaçados nos meus. Eu a amo
porque Kira é um ser humano único, com uma capacidade enorme de
tornar qualquer dia um dia espetacular. E ela merece andar livremente e
estar onde deseja estar. Confiem em mim para cuidar dela. Eu vou. Vou
garantir que ela esteja segura.
Mesmo que para isso eu tenha que decepcionar meu pai, contando a
verdade sobre meu irmão. Mesmo que eu possa desmoronar ao ter que vê-
la me rejeitando quando souber a verdade. Porque ela vai saber. Porque
agora não tenho escolha. Porque Lorenzzo precisa estar preso. E Kira
precisa estar livre.
— Zayan, isso é loucura. Nós somos os pais dela, podemos cuidar de
Kira.
— E eu também. Não estou dizendo que sou o herói dela. Estou
dizendo que eu posso garantir a segurança dela pelo tempo que ela pediu.
Tenho recursos e boa vontade para isso. E se depois desse prazo, nada
acontecer, ela não denunciar, então vocês trazem ela de volta. Enquanto
isso eu tento convencer ela a fazer a denúncia o quanto antes.
Eles ficam em silêncio por minutos. Eu passeio o olhar pelas paredes
e observo com curiosidade as fotografias pregadas.
E então uma delas me chama atenção.
Não, não pode ser! Não é possível uma coisa dessas.
Pego meu celular e abro um álbum com fotos antigas minhas que eu
digitalizei e guardei como lembrança. Procuro pelas imagens até encontrar
a que eu quero. A risada que me escapa é audível e eu me viro para eles,
que me encaram como se eu fosse louco.
— Me perdoem, mas é que...
Vou até eles e mostro a foto que tenho no celular. Foi feita pela nossa
professora. Meu pai me disse. Eu e ela. Eu tentando abraçar Kira. Ela
irritada. Quem diria que anos depois os papéis iam se inverter e eu seria o
irritadiço da relação.
Eles reconhecem a fotografia no mesmo instante.
— Esse é você? — Martina pergunta e eu aceno positivamente.
— Estudei um ano nessa escola.
— Foi você o menino que ela puxou os cabelos! — a mãe de Kira
quase berra.
— Sim, fui eu.
— Foi uma semana depois dessa foto ter sido tirada.
— Você é meio bagunçado da cabeça, não é, garoto? Está me dizendo
que ama a menina que puxou seus cabelos?
— Acho que desde esse puxão de cabelo, para ser sincero, Giorgio.
Ele ri e eu sinto um alívio parcial me consumir.
— Zayan, não podemos esperar de braços cruzados nossa filha
decidir cuidar da própria segurança. Vamos respeitar o prazo que ela pediu
e vamos confiar na sua palavra. Mas saiba que estamos prontos para
intervir no instante em que ele aparecer de novo. Não vamos dar margem
para que ele se aproxime demais — Martina diz com seriedade.
— Eu entendo você. E garanto que farei o possível para que esse cara
esteja longe dela. De uma vez por todas.
Ela acena uma vez.
— Agora vai chamar ela para o jantar. E não demore mais que dois
minutos, ou mando Giorgio buscar vocês — Martina alerta e eu aceno.
Subo as escadas e vou atrás da minha garota.
Duas batidas na porta me tiram do meu momento de dispersão. Ergo o
tronco e apoio os cotovelos na cama, assistindo minha avó entrar por ela.
— Posso ajudar, dona Olga?
— Dona Olga, Zayan? De onde veio toda essa formalidade? Sou sua
avó, menino. — Ela sorri, ressaltando as linhas de expressão. — Acabei de
conversar com seu pai.
Sinto minhas sobrancelhas unidas quando percebo o tom de
preocupação na voz dela.
— Sobre o quê?
— Várias coisas, Zayan. Primeiro queria me certificar de que meu
filho está se tratando. Tudo que você me contou quando chegou aqui me
preocupou muito, meu neto. Sinto muito ter sido tão ausente esses anos. Eu
deveria ter estado lá, perceberia o que estava acontecendo.
— Não tinha como você perceber, vó. Se Nina e meu pai não
perceberam, não quer dizer que você perceberia.
— Nina e seu pai esperam sempre o melhor de todos. Eu sei enxergar
maldade, Zayan. Infelizmente, a vida me moldou para isso. Mas não vamos
lamentar pelo que passou. Eu conversei com Leonardo e ele me pareceu
bem pelo telefone. Me garantiu que está tomando os remédios e se tratando.
Por isso, decidi conversar com ele sobre um assunto mais sério.
— Que assunto?
— Sabe que seu irmão não vai ficar preso para sempre, não é?
— Vó, não precisa pensar nisso agora.
— Claro que sim. Ou você e aquela menina vão ficar mais cinco anos
com o medo dele pairando sobre vocês. Precisa de um fim definitivo, meu
neto.
— O que você quer dizer com isso?
— Primeiro de tudo, tem que entender que seu pai continua sendo pai
dele. Isso é algo que não se apaga nem se esquece.
— Eu sei disso — respondo com desgosto.
Queria que não fosse assim, mas as coisas são o que são.
— Certo. Mas quero que saiba que isso não quer dizer que ele irá
fazer parte da sua vida. Nós entendemos que você queira cortar laços e não
vamos trazê-lo de volta para perto de você nunca mais.
— Ok. — Que assim seja.
— O que nós decidimos é que vamos oferecer a ele um tratamento
psiquiátrico na Suíça. Se ele aceitar, então ele passará a viver no país. Para
sempre. Se ele não aceitar, tomaremos as medidas judiciais para que ele
mantenha distância de vocês dois. Seu pai me garantiu que pode fazer isso.
O tom de voz resoluto dela me traz certo alívio. Saber que aquele
monstro nunca mais vai chegar perto de Kira é o que eu precisava ouvir.
— O que importa é que ele fique longe da gente, vó. O resto eu
consigo lidar. Se quiserem estar na vida dele, não vou brigar nem impedir.
Sei a importância da reintrodução de um ex-detento na sociedade. Não
precisa isolar ele do mundo. Mas perto de mim e Kira, ele não chega mais.
Nunca mais.
— Não chegará, neto. Te garanto.
Aceno, querendo que esse assunto seja encerrado de vez. Ela fica em
silêncio por mais um tempo e eu me sento na cama, esperando.
— Quando eu vejo jovens da sua idade falando sobre casamento,
amor e família, sempre tenho a sensação de que vocês não viveram o
suficiente para falar sobre essas coisas ainda. Fico pensando que o
ceticismo ainda os alcançará e que deixarão de lado essa ilusão de “viveram
felizes para sempre”. É uma forma racional de ver as coisas — ela discorre.
— Mas você está me provando como eu ainda posso me equivocar
grandemente nessa vida, Zayan, que eu ainda tenho muito o que aprender.
— Do que está falando?
— Sempre que eu ouço você falar dessa garota, há tanta lucidez, afeto
e amor em seu discurso, que me faz acreditar na certeza de que ela é a
pessoa certa para você, que vocês têm grandes chances de um futuro
duradouro juntos. É impossível duvidar de que você e Kira sejam um casal
perfeito.
— Mas isso é um sonho, vó. Não somos um casal.
— Ah, Zayan! E é nesses momentos que me prova que é realmente
um jovem imaturo ainda. Meu neto, tudo muda, a vida é fluida, um
movimento constante. Deveria saber isso. Nada permanece. Até mesmo o
ódio mais ardente pode se transformar em algo bom, quando mágoas,
inseguranças e incertezas se vão.
Ah, eu sei bem disso! Assisti aquela pequena se entregar para mim
mesmo depois de termos jurado nos odiar por anos. Eu vi Kira se encorajar
e enfrentar tudo que nos impediria de mergulhar fundo no que sentíamos
um pelo outro.
Só queria que tudo que vivemos fosse o suficiente para que ela nos
desse mais uma chance.
Eu não falharia.
— Dê um tempo a ela, neto. Ela vai repensar melhor a decisão de se
afastar. — Minha avó segura minhas mãos e acaricia minha bochecha.
— É meu maior desejo. Mas não quero criar nenhuma ilusão.
— Vamos dar tempo ao tempo, Zay. Agora levanta. Temos que
comprar roupas novas para você. — Ela levanta e me puxa pela mão e eu
vou.
— Não preciso de roupas novas — resmungo.
— Vocês estão de mudança. Precisa renovar seu guarda-roupa
também.
— Eu não acredito que Nina vai mesmo organizar uma mudança.
Fui avisado por mensagem quando cheguei aqui que a nossa casa
seria colocada à venda. Posso imaginar as razões que fizeram minha
madrasta tomar essa decisão. E eu sou grato por ela fazer isso. Estar
naquela casa estava me sufocando.
— Conhece a madrasta que tem, Zayan. Quando coloca uma coisa na
cabeça, nada mais tira — Olga diz, me puxando para fora da casa.
Despeço-me mais uma vez da minha avó, antes de caminhar para
dentro do aeroporto.
Hora de voltar para casa.
Foi bom passar um tempo aqui, embora eu não ache que tenha sido a
melhor companhia para Olga e o marido. Passei grande parte do tempo no
quarto, passeando pelas redes sociais e me torturando com as fotos que Kira
postava. Ela parece estar feliz e, no fim, isso é o que importa.
Não sei como sobreviver ao próximo semestre tomado pela agonia,
pela presença e pela ausência dela em meus dias. É horrível estar perto dela
sem poder tocá-la, importunar a pulguinha e ser irritado por ela. É ainda
mais terrível não ver ela de jeito nenhum.
Caralho, eu estou um porre!
Eu deveria desintoxicar meu organismo dos pensamentos e sonhos
que envolvem ela. Não a pregar ainda mais na minha mente.
Pulguinha. Tudo que eu precisava era de apenas uma chance. Apenas
uma.
Embarco no avião, perdido em pensamentos, apenas desejando estar
logo em casa.
Cinco semanas se passaram desde o dia que Nina me levou para a
casa de Dafne e eu vi minhas peônias plantadas e comecei a mudar o quarto
de Zayan.
Algumas coisas aconteceram desde então.
A começar pelo fato de que o quarto dele agora tem mais cor. Com a
ajuda de Nina, colocamos um sofá no quarto, com almofadas de estampas
variadas, e pintamos algumas paredes.
Além disso, adicionei um item na coleção dele: um LEGO de
unicórnio. Sequer sabia que existia, mas quando vi, não pude resistir.
Secretamente, trouxe meu perfume e o borrifei por todo ambiente.
Encostei em cada móvel que pude e coloquei um esmalte escondido em
uma gaveta da cômoda. Esse cretino não vai se esquecer de mim. Não
mesmo.
Aprendi a cozinhar. Na verdade, aprendi o básico da cozinha e talvez
agora eu deva começar a dar razão a Zayan quando ele diz que é o melhor
aluno. Mas darei razão silenciosamente. Ele nunca ouvirá essas palavras
saírem da minha boca.
Eu li os livros que estavam na estante dele que eu não conhecia. São
incríveis e torço para que eu possa comentar sobre tudo com ele. Por favor,
Zay. Espero que não tenha me esquecido.
Compareci a uma festa de noivado e assisti um casal feliz me torturar
com as juras apaixonadas.
Chegamos, enfim, a parte mais difícil e mais importante da semana.
Hoje. Hoje é o dia que Zayan volta.
Pedi à Nina que me deixasse buscá-lo com Dante e ela não se opôs.
Há uma semana escolhi o vestido cor-de-rosa e a sandália que eu
usarei, porque se eu deixasse para última hora, iria ser caótico.
Saio do banho já sentindo o nervosismo me abater, e se eu sobreviver
ao dia de hoje com essa ansiedade que me toma, então já terá sido uma
grande vitória.
Coloco a roupa no corpo e termino de me arrumar já quase
colapsando. Pego meu celular e envio uma mensagem para Dante, que
responde na sequência.

Kira
Está lembrado que
vai me levar no aeroporto?

Dante
É a centésima sétima vez que
você me lembra, Kira.
Por Deus! Não tem como eu esquecer.
Kira
Não venha estressar!
Eu estou agitada,
dê um desconto.

Dante
Já estou de pé.
Já estou tomando café.
Em breve eu te busco.

Kira
Se apressa!

Dante
Já mandou mensagem para o
comandante da aeronave também,
mandando ele voar mais rápido?

Kira
Só vem logo, Dante!
E não me irrita.

Decido sair do apartamento que começa a me sufocar e vou para a


frente do prédio esperar meu irmão.
Trinta longos minutos se passam e estou prestes a arrancar os cabelos
quando Dante finalmente chega.
Entro apressada, já colocando o cinto, e ele me olha, analisando meus
movimentos.
— Bom dia para você também.
— Dante, não começa.
Ele ri, o abusado.
— Sabe que vamos chegar com uma hora de antecedência, não é?
— Não importa, Dante. Só preciso chegar lá.

— De quem foi a ideia de chegar com uma hora de antecedência? —


reclamo, irritada, depois de já ter andado por cada centímetro de chão desse
aeroporto com meu irmão no meu encalço.
— Sua — Dante responde com calma, piorando um pouco mais meu
estado de espírito.
— Vai se ferrar.
— Te amo, princesa. — Ele sorri e se distrai, mexendo no telefone.
A joia que Dante usa no anelar me rouba a atenção por alguns
segundos.
Foi a esse noivado que assisti. Aisha e Dante.
— Você vai realmente se casar. — Ele me encara com um sorriso
largo.
— Sim, eu vou.
— Sortudo.
— Sim, eu sou.
— Então, como está indo a terapia? — indago.
— Bem. Não imaginei que eu fosse gostar tanto, mas foi uma decisão
muito boa.
— Acho que te caiu bem.
— Também acho.
Depois disso, não dizemos mais nada.
Olho pela vigésima sétima vez o painel que indica o andamento dos
voos e dessa vez meu coração dá um pulo quando o voo do Canadá para
Florença aparece como finalizado.
Meu estômago retorce e meu cérebro parece prestes a dar pane.
Pontos negros tomam minha visão, e por um instante minha alma parece
voar para longe do meu corpo.
— Dante, eu acho que eu vou desmaiar. — Levo dois dedos até meu
pescoço, medindo minha pulsação.
— Claro que não, Kira! Vai passar mal agora que o voo acabou de
chegar? Teve uma hora para fazer isso. Agora, contenha-se.
Não tem como me conter quando estou prestes a cair dura no chão.
Nunca tremi tanto quanto agora. Eu não deveria ter vindo. Deveria ter
deixado Nina buscá-lo e esquecido essa loucura.
Que merda! Desde quando eu sou covarde assim?
— Você não ficou nervoso assim quando se declarou?
— Então você está prestes a se declarar? — Ele ri.
— Não enche!
— Eu fico nervoso toda vez que eu olho para Aisha, Kira.
— Você é patético. — Tento fazer graça.
— E é você que está aqui prestes a passar vergonha desmaiando no
aeroporto — ele devolve a provocação.
— Acho que a gente deveria ir embora.
— Você garantiu à Nina que levaria ele, Kira. Deixa de besteira.
Mais alguns minutos se passam e nenhum sinal de Zayan.
E se ele decidiu ficar nas Américas e não contou a ninguém? Droga,
não é possível uma coisa dessas! Será?
Que inferno de verão! Por que tanto calor assim? Eu estou suando
horrores aqui.
— É ele ali? — Dante aponta para o portão de desembarque e eu sinto
meu coração gelar e em seguida bater forte.
Procuro o ponto onde Dante apontou com o olhar, e quando encontro
decido que vamos ir embora daqui e fingir que nada aconteceu. Quem é
aquela garota ao lado de Zayan? Por que conversam animadamente?
Ele arrumou outra. Claro, eu chutei a bunda dele e ele arrumou outra.
É óbvio que isso ia acontecer, porque ele é lindo, cheiroso, inteligente e
fode deliciosamente bem. Ai, Kira! Não é hora de pensar nisso.
— Dante, vamos virar lentamente e voltar para o estacionamento
antes que eles nos vejam — falo entredentes, já girando meu corpo.
Tento caminhar para a direção contrária, mas meu irmão me impede,
me puxando pelo braço e me colocando de frente para ele.
— O que eu te ensinei sobre derrotas? — Coloca as mãos nos meus
ombros e me encara sério.
— Que ser derrotada não é uma opção.
— E por que você está fugindo sem ir atrás da sua vitória?
— E eu lá sou mulher de competir por homem, Dante?
— Não estou dizendo para competir com ela. Estou dizendo para
competir com seu medo e covardia e vencê-los.
— Quero ver se fosse Aisha ali com alguém do lado!
— É diferente. Eu amo ela!
— Não seja ridículo, Dante! Você sabe que eu amo o moleque.
— Como é? — Ele abre um sorriso, mostrando todos os dentes.
— Você está com problemas, irmão? Acabei de dizer que ia me
declarar para ele!
— Então você ama Zayan?
— Sim, eu amo Zayan! — Qual o problema dele?
— Você me ama? — Ouço a voz vir atrás de mim.
Ah, merda! Merda, merda, merda!
Correr. É isso. Preciso correr daqui.
Meu irmão me paga! Essa praga vai se resolver comigo.
— Você fez de propósito! — acuso Dante. — Sabia que ele estava
ouvindo.
— Você sabe como é. Arrancar o band-aid de uma vez.
— Kira?
Eu travo quando Zayan chama meu nome, sentindo borboletas
baterem asas no meu estômago.
— Vou deixar vocês dois conversarem. — Dante começa a se afastar.
Passo o polegar pelo meu pescoço e aponto para ele, sinalizando que
meu irmão é um homem morto, antes de me virar e encontrar o dono dos
meus pensamentos e de semanas de tormenta e saudade na minha frente.
Tragam monitores cardíacos e uma maca. Estou infartando. Não
estava fazendo calor há alguns segundos? Por que toda essa tremedeira
que chega até meus ossos?
— Eu ouvi certo? — A voz dele é esperançosa. — Você disse que me
ama?
— É. Não fique se achando por isso, Castelli. — Faço um gesto de
indiferença, abanando com as mãos no ar. — Eu geralmente faço escolhas
estúpidas na vida e meu coração também. Não é por livre e espontânea
vontade, se quer saber. Você é e continua sendo um grande idiota. A
começar pelo fato de que viajou por semanas sem me avisar. Quanto drama!
Fez tudo isso para que eu sentisse sua falta e percebesse que eu odeio sua
ausência, não é, ordinário? Pois bem, saiba que conseguiu. Eu...
Ele é rápido ao segurar meu rosto e trazer os lábios de encontro aos
meus.
No primeiro instante sou pega de surpresa. E logo em seguida eu me
entrego.
Toda tensão do meu corpo se vai, cada fibra do meu ser se derrete e
amolece quando os braços de Zayan me envolvem e me abraçam como se
ele prometesse que não irá me soltar nunca mais.
Nossas línguas entrelaçam com firmeza, se reconhecendo enquanto
tentamos provar um para o outro o tamanho da saudade que sentimos.
Envolvo a nuca dele e me entrego ao beijo doce e calmo.
E finalmente estou em paz.
Perco a noção do tempo até que ele se afasta e então abro os olhos.
Apenas para encontrar aquele sorriso desgraçado no rosto lindo dele.
— Vamos voltar ao início, pulga falante. O que você estava dizendo?
— Que você é um grande...
— Não, não. — Ele coloca o indicador nos meus lábios. — Sabe que
não é disso que eu estou falando. Não estrague meu momento. Por favor.
Preciso disso.
— Disse que amo você, limãozinho.
— Sério? Esse apelido? — Ele contém um sorriso, puxando uma
mecha do meu cabelo para trás da orelha.
— Amo você, Zayzay.
— O que te faz pensar que me ama, pulguinha?
— Uma vez um garoto me disse que para conhecer alguém de
verdade, é necessário arrancar os olhos da pessoa e colocá-los no lugar dos
seus, então assim entenderemos o outro e o encontraremos. Eu vi você com
seus olhos, Zayan. Entendi suas razões. E então nos encontramos. Eu e
você. Vejo tudo de você, te enxergo por completo, e quando faço isso, não
consigo fazer outra coisa que não seja te amar. Suas falhas e suas partes
mais bonitas, amo tudo. E se por acaso um dia tudo isso mudar, então te
olharei de novo com seus olhos e te amarei mais uma vez. — Tomo fôlego,
porque minha fala sai desenfreada, e continuo: — Esses últimos meses
foram os mais sem graça desde que te conheci. Preciso das suas
provocações e do seu jeito de se irritar com facilidade. Preciso de você
fazendo minhas unhas. Elas ficam muito perfeitas se Carmela faz. Não
gosto delas perfeitas. Gosto delas no estilo Zayan. Preciso de você me
mimando e reclamando que eu sou mimada logo em seguida. Preciso de
você me entregando balas de tutti frutti e também de você provando que é
sim o melhor da classe. Não! Eu não disse isso. Espera, Zayan. Por que
ainda não me interrompeu? Já falei demais e você está me deixando falar.
— Você está se declarando, pequena Moretti. Jamais te pararia nesse
momento.
— Você poderia fazer o mesmo, Zay. Estou ficando nervosa.
— Kira, nada mudou desde a última vez que disse que te amo. Na
verdade, te amo um tanto mais desde aquele dia. Cada dia mais, pulguinha.
Você é o arco-íris com sete tons de rosa que eu preciso no meu dia, para que
tudo fique mais alegre e brilhante. Senti sua falta em cada segundo que
estive longe e agora vai ter que me suportar reclamando da sua ausência se
ficar longe demais. Porque vai levar um tempo para eu desfazer de toda
falta que você me fez. Talvez eu nunca desfaça e terá que me aturar grudado
em você todos os dias, o dia todo, então espero que...
Dessa vez sou eu quem silencio o dono do meu coração, que tagarela
sem parar. Seguro a nuca dele e trago os lábios de encontro aos meus, para
um beijo desenfreado e quente, que me faz esquecer das pessoas, do
aeroporto, da vida lá fora.
Não existe mundo, só existe Zayan e Kira, tentando fazer de dois, um
só.
— Eu deixo vocês sozinhos por um minuto e vocês aprontam.
Impressionante. — A voz irritada de Dante é que faz nosso beijo cessar.
Abro os olhos e encontro o sorriso mais lindo do universo, o que me faz
sorrir junto.
O polegar de Zayan acaricia minha bochecha e ele me encara com
amor e ternura, antes de se virar para meu irmão.
— Eu senti falta dela, cunhado. Me dê um desconto.
— Cunhado desde quando, garoto? — Dante protesta.
— Não me venha com essa loucura mais uma vez, Zayan. Já disse.
Sem pedido, sem namoro — provoco.
— Tudo bem. Mas saiba que você que pediu.
Não compreendo o que ele quer dizer, até que ele se afasta e começa a
se abaixar.
— Zayan Castelli! Levanta desse chão agora! — ordeno em pânico,
mas ele não obedece.
Um joelho dele está no chão e a mão segura a minha. Olho apavorada
para as pessoas ao nosso redor, que começam a parar e assistir com
curiosidade o que esse garoto louco faz. Ele puxa levemente minha mão,
demandando minha atenção, e eu cedo.
— Kira Matilda Moretti, aceita ser minha namorada?
Os olhos dele brilham e acho que é de felicidade. Minhas bochechas
chegam a doer quando sorrio como uma boba apaixonada para o garoto que
tomou conta dos meus pensamentos e do meu coração, com seu humor
irritadiço e sua capacidade incondicional de amar.
— Eu aceito, Zayan Castelli.
Ele se levanta e aproxima para mais um beijo, mas eu sou puxada
pela mão, para longe de Zayan, antes que nossas bocas se toquem.
— Vocês não me venham aprontar de novo. Tem crianças assistindo!
— Dante nos interrompe.
— Só um beijo singelo, irmão. Só para selarmos o nosso
compromisso — peço.
— Tudo bem. Mas um só. Curto. Rápido. — Ele me solta e eu seguro
o rosto de Zayan e deposito um beijo casto nos lábios dele, ouvindo alguns
assobios e sons celebrativos do nosso pequeno público.
— Te amo, Zayzay.
— Te amo, pequena Moretti.

— Zay! Seja bem-vindo de volta, meu menino. — Nina vem até nós,
quando Zayan, eu e Dante entramos pela porta da casa deles.
— Obrigado, Nina. — Eles se abraçam.
— Você deve ser o irmão de Kira. — A madrasta de Zayan vai até
Dante e o cumprimenta. — Prazer.
— Prazer.
— Obrigado por trazer meu filho — Leonardo agradece, enquanto
aperta a mão de Dante.
— Imagina. Bom, agora se me dão licença, minha noiva está me
esperando. Preciso ir. Ciao.
— Ciao — a família Castelli se despede e meu irmão sai pela porta.
— Noiva? — Zayan indaga quando ele já se foi.
— Sim. Ele pediu a Aisha em casamento.
— Poxa, e eu perdi isso?
— Pois é, decidiu ir para longe. — Cutuco o peitoral dele,
provocando.
— Como foi a viagem, filho? — Leonardo pergunta, levando a mala
de Zayan até a escada.
— Deixa que eu levo isso, pai! — Zayan pega a alça das mãos do pai.
— Foi cansativa. A passageira que veio ao meu lado não parava de falar por
nenhum segundo. Eu saí do avião com ela tagarelando no meu ouvido. —
Ah, então era uma passageira do voo dele a menina que eu vi. — Onde
Dafne está?
— Na estufa — Nina diz.
— Bom, eu vou tomar um banho e já venho conversar melhor com
vocês. — Ele começa a subir as escadas com a mala em mãos.
— Eu vou com você! — anuncio, animada, e ouço a risada baixa de
Leonardo e Nina quando sigo Zayan.
Andamos pelo corredor até a porta do quarto e eu paro na frente dele,
impedindo Zayan de entrar.
— Qual o problema, pulguinha?
— Bom, eu não sei se você já sabe, mas vocês agora vão morar aqui.
— Sim, Nina me avisou.
— Eu assumi a tarefa de decorar seu quarto, sabe?
Ele morde os lábios, tentando conter a risada.
— Deixa eu ver o que você aprontou aí, pequena Moretti.
— Só para você saber, se quiser mudar algo, não te dou essa opção.
— Claro que não, criatura mimada.
Me viro e abro a porta. Nós entramos.
— Uau, um cenário que veio diretamente do universo Barbie Vida
Universitária! — ele diz com zombaria, deixando a mala de lado e olhando
ao nosso redor.
— Não está tão fofo assim.
— Parece que um unicórnio passou por aqui.
— Talvez eu seja um unicórnio fêmea.
— Olhando para esse quarto, não tenho dúvidas quanto a isso. Aquilo
é minha coleção de LEGO? Separado por cores? — Zayan não parece
muito satisfeito.
— Fica muito melhor assim — defendo meu trabalho.
— E o que é aquele bicho na prateleira do centro? — Ele se aproxima
das prateleiras para ver melhor.
— É um unicórnio. A nomeei de Lira Goretti. — Ele gargalha do meu
comentário.
— Por que eu sinto cheiro de tutti frutti misturado ao seu perfume? —
Zayan dá uma fungada no ar.
— É o novo cheiro do seu quarto.
— Você queria deixar sua marca, não é? — Sorri com divertimento.
— Óbvio, Zayan!
— Já marcou meu coração, pulguinha. — Vem até mim e segura
minha cintura, com a expressão alegre. — Uma marca eterna, se quer saber.
— Fico feliz de saber. Porque você também marcou o meu.
Beijo os lábios que senti tanta falta, sentindo uma euforia crescente
por finalmente tê-lo aqui, em meus braços, sabendo que nunca mais
deixarei ele ficar longe.
— Senhorita Kira, Dafne pediu para chamá-la. — Somos
interrompidos por uma batida na porta.
— Já estou indo, Nicoletta — respondo à empregada. — Te espero lá
embaixo, lindo.
— Você vai aprontar mais alguma coisa lá embaixo? — Zayan me
encara desconfiado.
— Não. É só mais uma aula de culinária que sua avó está me
oferecendo.
— Aulas de culinária? — Eu confirmo com um menear de cabeça e
ele ri.
Eu me viro e acompanho Nicoletta até a cozinha.

— Kira, o almoço está quase pronto. Pode chamar Zayan? — Dafne


pede e eu aceno, subindo em direção ao quarto dele.
Abro a porta e entro.
— Zayan, Dafne está chamando para o... — Minha fala morre pouco
a pouco quando o vejo. Delicioso. Está apenas com um short no corpo. Vejo
gotículas de água descendo pelo peitoral exposto, deslizando pela tatuagem
de mariposa no peitoral. Ele seca o cabelo com a toalha. — Almoço. — A
última palavra sai com atraso.
— Almoço, pulguinha? — Zayan pergunta com malícia na voz, e
quando encontro os olhos castanhos, quase me derreto no chão que piso.
Tantas promessas promíscuas, lindo. Espero que as cumpra.
Ele caminha vagaroso, sem quebrar nosso contato visual. Passa por
mim e vai até a porta. Ouço o barulho do trinco e percebo quando Zayan se
aproxima. Chuto as sandálias que estão nos meus pés para longe e ele ri da
minha avidez.
— Sim, nós... O almoço foi... — Troco o peso das pernas, nervosa
com a expectativa que paira sobre nós. — Servido.
As pontas dos dedos dele estão no meu couro cabeludo e Zayan junta
os fios, os prendendo em um rabo de cavalo improvisado. Minha nuca está
exposta e logo os lábios dele tocam com suavidade minha pele. Zayan
assopra e um arrepio me toma por inteira. Tombo a cabeça para o lado,
silenciosamente pedindo por mais.
— Está com fome, linda? — Aceno que sim, sentindo meu ventre
retorcer pela espera por mais um toque. — Eu também. Kira Moretti está no
cardápio do dia? — Quase posso imaginar o sorriso desgraçado que ele tem
no rosto.
— Para você, sim, Zayzay. Sirva-se.
Sinto os dedos dele dentro da barra do vestido e todo meu corpo
arrepia quando começa a subir a peça. Zayan cessa o movimento no meio
do caminho, quando minha calcinha está exposta. Sorrio, imaginando o que
se passa na cabeça depravada dele quando vê o tecido branco rendado.
— Isso veio parar aqui porque você é uma coisinha inocente, não é,
linda? Não é porque você é uma provocadora infernal? — Puxa o elástico
da calcinha e solta, me fazendo arfar, surpresa.
— É só um pedaço de pano, Zayan — retruco com falsa inocência.
— É. É só um pedaço de pano minúsculo e atormentador que me
persegue dia e noite em minhas fantasias.
Antes que eu possa oferecer uma resposta atrevida, um tapa atinge em
cheio minha bunda, causando uma ardência e formigamento que se
espalham de um jeito delicioso.
— O que eu fiz? — indago.
— Não finja que não sabe, provocadora.
Ele continua a subir o vestido, até tirá-lo completamente do meu
corpo.
— Porra, como é gostosa!
Sinto o fecho do sutiã ser aberto e meus seios são libertos.
A mão dele sobe pela minha barriga, até alcançar meus bicos rígidos e
inchados. Uma picada de dor misturada a êxtase se espalha por mim com o
beliscão que recebo, e seguro um gemido.
— Acho que já ensinei você a gemer, linda. Se eu não ouvir esse som
sair direito, vou ter que te mostrar como é da pior maneira. — Sou
repreendida.
— E qual é a pior maneira? — provoco.
As mãos dele se firmam em meu quadril e sou girada o suficiente para
encarar a parede.
— Apoia nela. — Zayan aponta para a superfície e eu obedeço. —
Agora vamos ver se algum som sai dessa boca atrevida.
Meu corpo todo está em alerta, porque sei exatamente o que vem a
seguir. E eu anseio por isso. Ouço o estalo e sinto a ardência do tapa. O
gemido que sai de mim mistura a agonia e o prazer que me tomam. Zayan
parece absorver com deleite minha reação.
Os dentes dele se fecham em meu ombro exposto e ele deposita um
beijo casto. Um contraste do golpe que vem a seguir. Minha nádega queima.
Meu coração acelera. Adrenalina corre pelas minhas veias. É confuso,
porque dói e excita na mesma proporção. Sinto a calcinha pesar enquanto
meu corpo espera por mais.
— Senti falta de fazer você obedecer, linda. — Mais um tapa
esquenta minha pele e eu choramingo. — Três é suficiente hoje. Te ouvi
bem melhor agora. — A voz dele entrega a satisfação que sente.
Sou girada quando ele segura meu quadril firmemente e então minhas
costas estão na parede. Zayan ajoelha e segura a barra da calcinha, se
livrando do pequeno pedaço de tecido.
Sou tomada por uma sensação divinamente enlouquecedora quando
ele toma minha boceta com a boca, circulando e pressionando o clitóris com
a ponta da língua, me fazendo levar meu corpo de encontro a Zayan,
pedindo silenciosamente por mais.
Ele entrega, enfiando três dedos em mim. Os sinto deslizar com
facilidade, me preenchendo. Meu traseiro é amassado como uma massa de
modelar por Zayan, que me mantém quieta e controla meus movimentos,
que começam a se intensificar quando sinto a ponta do dedo alcançar o
ponto mais fundo de prazer dentro de mim. A língua quente e macia explora
todo meu exterior e mal consigo me equilibrar quando minhas pernas
começam a amolecer.
Ele me tem por completo e eu não poderia querer diferente.
Desesperada pelo alívio, puxo os fios do cabelo de Zayan, o trazendo
para mais perto. Sinto que alcancei os céus quando os lábios dele se fecham
no meu pequeno e pulsante ponto de prazer, e então ele suga. Me sinto cada
vez mais encharcada, extasiada e perto da libertação. Tenho os dedos e a
boca dele me fodendo de uma maneira deliciosa.
Meu tronco ganha vida própria, meu cérebro derrete e eu flutuo em
uma nuvem densa do mais cru e atordoador prazer quando a língua dele
pressiona uma última vez meu clitóris, me fazendo explodir em um
orgasmo intenso e avassalador, que varre cada partícula minha e me faz
chamar por ele.
Sempre por ele.
Eu amo essa garota e amo a forma como o pecado está inscrito na
expressão de quem acabou de ser muito bem fodida.
E eu só comecei.
Devo a ela e a mim uma tarde interminável do meu pau metendo nela
até esfolar a boceta de Kira. Tenho dois meses de falta para compensar.
— Te amo tanto, amor. Muito mesmo. Mas não vou te foder de uma
forma amorosa hoje, tudo bem? — Seguro o maxilar dela e a beijo, sentindo
uma inquietação absurda por querer ter cada centímetro dela sob meu
domínio agora.
— Se quiser me comer até eu desmaiar, não me importo — diz com
sua boca atrevida, ofegante, quando separo nossos lábios.
— Muito bem, linda. Agora eu vou chupar esses peitos deliciosos.
Senti tanta falta deles.
E eu os devoro. Raspo os dentes ao redor dos bicos antes de sugar e
circundar com a língua. Seguro-a pela cintura e deslizo a mão até alcançar a
bunda. Colo nossas pélvis e ela se esfrega em mim, sentindo quão duro
estou por ela.
— Zay... — geme, manhosa.
As unhas dela passeiam pelo meu couro cabeludo, quase acariciando,
mas quando seguro o mamilo com os dentes, o carinho se transforma em
um puxão, e o gemido em um som sufocado de agonia.
Alivio a pontada de dor com a língua e volto a chupar o peito gostoso
dela.
Toda gostosa. Não tem uma parte de Kira que eu não tomaria e não
devoraria com satisfação. Como faço agora, enquanto assisto-a se entregar e
se desmanchar em meus braços.
Esmago o seio livre em minhas mãos e belisco o mamilo. A
respiração dela sai descompassada.
Trilho um caminho de beijos molhados e mordidas pelo vão dos seios,
colo e pescoço, até alcançar a boca. A beijo, ávido, e ela entrega o mesmo.
Puxo Kira pela cintura e ela me escala, enroscando as pernas ao meu
redor. O encaixe perfeito. Somos perfeitos em tudo, amor. Tudo.
Nossos troncos estão esmagados um no outro e o calor dos nossos
corpos se misturam. Coloco o pequeno corpo na cama sem cessar nosso
beijo, enquanto minha mão trata de decorar a anatomia de Kira.
Escorrego com os dedos até chegar na boceta e encontro a entrada
lambuzada. Meto mais uma vez com os dedos e com o polegar acaricio o
ponto inchado. Kira me suga a cada estocada dentro dela.
Separo nossos lábios e olho para baixo, hipnotizado nos movimentos
de vaivém que minha garota faz para me receber. Alucinado com o rebolar
dela, desfaço o toque, apenas para me livrar com uma só mão do short que
visto.
— Ainda toma remédio, amor?
— Sim. Hummmm... — Kira geme quando pincelo a cabeça do pau
no clitóris.
— Eu preciso muito disso. — Ainda encaro os nossos quadris quase
unidos, provocando ela um pouco mais, esfregando meu membro por toda
extensão melada dela, desejando sentir a boceta dela me esmagar.
— E o que você está... Ohhh! — Não deixo que ela termine o
questionamento, metendo de uma só vez. Sublime, divino! Um arrepio sobe
por minha coluna quando finalmente estou no melhor lugar do mundo.
Dentro dela.
— Como se sente sabendo que um único homem vai foder você pelo
resto da vida, linda? — Lentamente, deslizo quase todo para fora. E então,
mais uma vez para dentro, fazendo ela arquear o corpo e se segurar em
mim.
— O que te garante... — Coloco o indicador na frente da boca
atrevida, a silenciando.
— Vigia essa boca e esse atrevimento. — Estou dentro dela, mas não
me mexo. — Agora responde. E pensa bem na resposta que vai dar. — Saio
pela metade e entro firme. — Alguém mais esteve aqui? — Acena que não.
— Alguém além de mim vai te comer, provocadora Moretti? — Mais um
aceno negativo. — Aprende rápido, amor.
Seguro a pélvis dela e a mantenho no lugar, pressionando o quadril
dela para baixo, para que eu possa foder Kira no meu ritmo. Deslizo para
dentro e para fora com vagareza, sentindo a boceta alargar e contrair a cada
estocada minha.
— Zayan!
— Posso ficar... — Impulsiono o quadril para trás e meto. — O dia
todo aqui. — Escorrego para fora e então dentro. Fundo. Firme.
Impaciente, ela enrosca as pernas ao meu redor e tenta ditar o ritmo,
pressionando o calcanhar na minha bunda.
Me enterro nela, aumentando pouco a pouco a velocidade, arrancando
gemidos curtos e agudos de Kira. Paro de me conter quando sinto a
musculatura da vagina me comprimir e espalhar arrepios por todo meu
corpo.
Os cabelos castanhos estão espalhados por todo o rosto da minha
provocadora. Os olhos reviram e a boca expele ar com dificuldade.
Espalmo a mão na face dela, afastando os fios que se prendem ao
suor, e puxo o lábio inferior com os dentes.
— Você é tão viciante, pequena Moretti. — Ela rebola e aperta meu
pau, me fazendo gemer gostoso com o movimento.
Perfeita.
— Zay! — chama por mim de um jeito indecente. — Meu... Só meu.
— Sim, provocadora. — Ergo o tronco e ajoelho, puxando e trazendo
o quadril dela de encontro a mim, metendo em movimentos curtos. — Só
seu.
Ela está mais apertada assim, com as coxas fechadas na minha
cintura. Direciono o olhar para cima e me deparo com os seios cheios
sacudindo cada vez que preencho Kira em estocadas curtas e duras. Me faz
meter ávido. Que tesão do caralho!
As coxas dela mal se sustentam quando nosso suor faz dos nossos
corpos uma superfície escorregadia. Por isso, inclino o tronco e trago as
pernas para cima. As panturrilhas de Kira estão em meus ombros. Quando a
penetro assim, nessa posição, ouço o grito de prazer tomar as quatro
paredes do quarto.
— Tão... — Contrai a boceta. — Fundo... — diz com a voz doce.
Me enlouquece quando ela fala assim, usando um tom inocente que
contrasta com a criatura selvagem e perigosa que é. O sorriso ardiloso no
rosto dela delata a devassidão escondida na feição cândida.
Giro meu rosto e deixo uma mordida na perna dela, apenas para
desfazer esse sorriso e ter de volta a expressão herege que oferece quando
meu pau é torturado pela boceta quente que lateja ao redor do meu membro.
Imprimo velocidade em um movimento selvagem, sentindo a cabeça
do meu pau bater fundo dentro dela. Estou preso nos sons entrecortados que
escalam, até virar um som agudo e contínuo de alívio e prazer.
Ela tomba a cabeça para trás.
Contrai a boceta.
Endurece os músculos.
E goza comigo dentro.
Desfaço nosso contato e fico de pé. Arreganho as coxas de Kira
quando ela tenta fechar as pernas, assistindo com satisfação o gozo escorrer
pelo canal vermelho e inchado.
— Fica de quatro, amor. Ainda não acabei.
— Zay... — Respira com dificuldade.
— De quatro. Não disse que eu poderia te comer até desmaiar? Eu
levei a sério, linda.
Obediente, ela gira o corpo e eu seguro o quadril, trazendo-a para a
ponta da cama. Arrebita a bunda redonda e eu não resisto à tentação,
estalando um tapa seco no traseiro macio.
— Se alguém perguntar, diga que morri... Porra, Zayan! — Se cala
quando penetro de uma vez. — Diga que eu morri muito, muito, muito
feliz!
Arremeto, insaciável, ainda sem ter tido o suficiente de Kira. Fodo o
pequeno corpo, e então entendo que nunca terei o suficiente. Quanto mais
eu possuir Kira, mais vou querer. Meto bruto, punindo-a por me estragar
desse jeito. Ela se entrega, sem pudor, me mostrando que eu não preciso
temer.
Enquanto eu for inteiro dela, ela será inteira minha.
Aperto as nádegas e a puxo para mim, nossos corpos se chocam. Suor
escorre da minha face e cai gotícula por gotícula nas costas molhadas dela.
Aprecio quando as mãos dela tateiam em busca de algo palpável, para que
ela possa se segurar da queda.
Inevitável.
Não há como fugir.
Estoco em um ritmo descompassado que faz ecoar um som erótico
cada vez que nossos corpos se chocam.
Sons de sofreguidão se misturam a sons de êxtase, quando Kira emite
palavrões incoerentes, me esmagando e puxando para dentro, pedido mais
uma vez por libertação. Encosto meu peito nas costas dela e levo os dedos
ao clitóris inchado. Estimulo, circundo, acaricio. Ela começa a se
desmanchar, respira ofegante, se contrai.
— Zaaaaaaaayan! — grita contra o lençol.
Impulsiono o quadril. Movimento curto e impetuoso. Ela se entrega
ao prazer. Todo o corpo estremece quando mais um orgasmo a toma.
Ergo o corpo, e quando ela quase desaba de barriga para baixo,
seguro a cintura e a giro de frente para mim. Os calcanhares de Kira estão
apoiados na beira da cama. Subo na cama e coloco os joelhos ao lado do
quadril dela.
— Segura esses peitos, amor. Vou marcá-los com a minha porra.
Com o rosto vermelho e a respiração acelerada, ela sorri, maliciosa, e
faz o que peço. Seguro meu pau e me masturbo com movimentos rápidos.
Cada músculo meu pulsa, acompanhando o ritmo acelerado do meu
coração. Meu estômago contrai e uma onda irrefreável e absurda de prazer
me atinge e me desnorteia. Espasmos me consomem quando jatos de porra
saem de mim e pintam o decote dela.
Provocadora como é, leva a ponta do indicador até uma gota branca
que escorre pelo mamilo, e então prova com a ponta da língua, sorrindo
como se acabasse de me amaldiçoar.
“Você é meu, Zayan Castelli.”
Sim. Sim, eu sou.

— O que é que as crianças estavam fazendo que demoraram quase


duas horas?
Não quer saber, nonna.
Termino de descer as escadas com a mão dela entrelaçada na minha,
depois de ter tomado outro banho com Kira de companhia.
— Estava desfazendo as malas. E Kira estava me explicando o novo
conceito da decoração do meu quarto.
A marca que deixei no pescoço dela durante o banho é uma boa
decoração para o corpo delicioso que ela tem.
Ouço a risada baixa do meu pai, que disfarça com uma tossida quando
Nina o encara com repreensão.
— O almoço já esfriou, mas posso esquentar para vocês — minha
madrasta oferece.
— Eu e Kira fazemos isso. Não precisa se preocupar, Nina.
Nós pegamos os pratos, nos servimos e vamos até a cozinha.
Esquento nossas refeições e voltamos para a mesa de jantar, entrando na
conversa que havia sido iniciada. Eles me fazem narrar sobre a viagem e
faço um breve resumo.
Ouça Kira engasgar quando a narrativa chega na parte que desci do
avião e me surpreendi com a presença dela.
— Não precisa contar tudo, Zayan — diz envergonhada.
— Faço questão, pulguinha.
A garota que mal recordo o nome não parou de falar por nenhum
segundo. Agradeço por passar pelo portão de desembarque, já que
finalmente irei me livrar desse falatório todo.
Só tem uma pessoa que me faz aturar qualquer falatório nesse
mundo. E eu posso jurar que estou vendo os cabelos sedosos e médios dela
nesse exato instante, mas acredito que seja meu cérebro me enganando
mais uma vez, me fazendo acreditar que poderei tê-la perto de mim de
novo.
Não, não é uma enganação ou uma miragem. Porque nos momentos
em que sonho acordado com Kira, certamente o irmão dela não está por
perto.
— Foi um prazer conversar com você, mas tenho que ir — despeço-
me com educação da moça que sequer decorei o nome, enquanto caminho
apressado na direção dela.
Meu movimento chama a atenção de Dante, que me encara por um
segundo, antes de voltar a prestar atenção no que a irmã está dizendo.
— Quero ver se fosse Aisha ali com alguém do lado! — Kira diz com
irritação.
— É diferente. Eu amo ela! — Dante rebate e eu assisto a interação
dos dois, sentindo meu coração começar a bater forte quando compreendo
os rumos que a conversa está tomando.
— Não seja ridículo, Dante! Você sabe que eu amo o moleque.
E então meu mundo para de girar. Para logo em seguida assumir um
novo sentido de rotação. E tudo ganha mais cor, mais alegria e mais gosto
de tutti frutti.
Ela me ama!
— Como é?
— Você está com problemas, irmão? Acabei de dizer que ia me
declarar para ele!
— Então você ama Zayan?
— Sim, eu amo Zayan!
Ela me ama!
— Você me ama? — Preciso ter certeza de que não estou preso em
um sonho muito bom.
E eu não estou. Ela diz com todas as letras e com toda paixão que
guarda. E faz de mim o garoto mais feliz do universo.
Ela é minha agora. E eu sou dela.
Somente dela.
E desse jeito, tudo parece se encaixar e funcionar, como sempre
deveria ser.
— Não vai contar da parte que ajoelhou e implorou para ser meu
namorado? — indaga com a expressão inquisidora.
— Nunca fiz isso.
— Eu tenho provas, sabe?
— Provas?
Se levanta e pega o telefone na mesa da sala. Vem até mim e me
mostra a tela de início do telefone. É uma foto minha, ajoelhado, segurando
a mão dela.
— Seu irmão me paga!
— Meu irmão é meu herói. — Sorri, atrevida.
— Me manda essa foto, pulce.
— Por que chamou a menina de pulga, Zayan? — Sou repreendido
por Dafne.
— É meu jeito de amar, nonna.
— Jeito esquisito de amar. — Rio do comentário.
— Te mando a foto quando mandar nossa foto de quando éramos
crianças.
— Seus pais te contaram dessa loucura. — Sorri. — Acho que era o
destino começando a nos unir, pulguinha.
— Destino? Vai falar de destino quando temos um belo conceito para
“Sincronicidade” de Jung?
— Jung? Está citando Jung?
— Eu gosto dele!
— Então o problema está em Freud, pulguinha?
— Exato.
— Sincronicidade. Pode me dizer como sincronicidade explica esse
encontro, Kira? — pergunto em tom provocativo.
— É simples. Você gostou de mim desde o momento que puxei seus
cabelos. Estava esperando me encontrar de novo por aí. E soube que
encontrou quando lhe dei um tapa. — Que explicação maluca, linda.
Maluca.
— Você puxou os cabelos dele? — Meu pai está confuso.
— Quando estava no primário.
— Eu me lembro desse dia! — A expressão do meu pai se ilumina
com a lembrança.
— Zayan, cada dia acho sua escolha para namorada mais peculiar. —
Dafne me faz rir.
— Me diz uma coisa. As peônias... — Passo o braço ao redor do
ombro de Kira e há um sorriso enorme no rosto dela.
Como eu imaginei que seria.
— São as flores mais bonitas daquele jardim — Dafne diz com
satisfação.
— Então você sabe, nonna. Peculiar ou não, é a escolha mais acertada
que eu fiz.
— É, eu sei. — Ela sorri.
Nina sorri.
Meu pai sorri.
Kira sorri.
E eu sorrio, me sentindo em paz.
Me sentindo vivo.
Me sentindo amado.
Me sentindo digno de todos esses sentimentos.
É o primeiro dia do nosso último semestre de aula.[32]
É algo novo para mim, porque não houve um semestre que não dei
início às nossas discussões logo no primeiro dia. Hoje não haverá briga.
Não haverá discussão. Hoje tem eu e ela andando de mãos dadas, sorrindo
um para o outro, conversando sobre uma bobagem qualquer.
Algumas coisas não mudam, no entanto. Ainda haverá ela me
irritando e provocando de alguma forma. Haverá eu admirando o sorriso
dela, mesmo que em silêncio. Haverá eu e ela sendo os melhores em sala.
Somos ambos arrogantes o suficiente para admitir que sim, somos os
melhores.
— O mundo fica em paz agora que o casal mais amado de Florença
está em paz. — Marco chega até nós quando estamos prestes a entrar para a
sala.
— Defina paz, meu amigo. Eu acabei de concordar com um jantar
com a família Moretti e Campello, para ser apresentado oficialmente como
namorado.
— Tem que ter, limãozinho. Eles querem te conhecer.
— Já conheço todos eles, Kira.
— Aisha também conhecia, e ainda assim fizemos o jantar. Vai ser
divertido, eu prometo.
— Viu isso, Marco? Aparentemente eu não tenho escolha.
— Aparentemente você não quer ter escolha. — Ele ri, enquanto
caminhamos.
Deixo que Kira escolha o lugar da vez, porque sei que a palavra final
é sempre da pequena Moretti, mimada e atrevida. Ela vai até o fundo da
sala minúscula.
— Fundo, Moretti? Não parece seu estilo.
— As pessoas mudam, Marco — retruca.
Mas quando ela vai se sentar, entendo o porquê da escolha dessas
carteiras.
Lentamente, ela dobra os joelhos, e com todo cuidado, coloca o
traseiro em uma das poucas cadeiras almofadadas da sala. Os lábios se
comprimem e ela parece levar alguns segundos para se recuperar do
encontro da bunda com a superfície.
Foi assim também quando entrou no carro quando a busquei. Sentar
parece estar sendo um sofrimento para a Barbie.
Sorrio provocativo, antes de me colocar ao lado dela. Marco se ajeita
na carteira à frente da nossa e se distrai com o telefone.
— Algum problema, pulguinha?
Um dedo do meio e um “vá se foder” gesticulado com os lábios é o
que eu ganho de resposta.
Pego o celular, incapaz de deixar a provocação passar.

Zayan
O que aconteceu,
meu amor?

Ela não demora a responder.

Kira
Não enche, Zayan.

Zayan
Só queria saber para
cuidar de você.

Kira
Não se faça de sonso.

Zayan
Amor, estou preocupado.

Kira
Quando maltratou meu
pobre rabo com tapas,
não pareceu muito preocupado.

Não consigo evitar minha risada. Olho para o lado e ela me encara
com olhos assassinos.

Zayan
Foram poucos tapas.
Kira
Foram tapas fortes.

Zayan
Não pareceu se importar
na hora.

Kira
E eu estava raciocinando
na hora? Estava no meu estado
de lucidez?

Zayan
Perdão, linda.
Não farei de novo.

Kira
Não farei de novo??
Vou fingir que não li isso.

Zayan
Mas você está com dor.
Não quero te ver com dor.

Kira
Não estou com dor nenhuma.
Está tudo ótimo.
Analgésico resolve.

Zayan
Você é doida.

Kira
Não sou eu que namora
a garota que me deu um tapa.

Zayan
Somos doidos.

Kira
Nos amamos.
Amor é isso.

Sorrio. E esse parece ser um gesto que nunca me abandonará.


Enquanto eu tiver ela ao meu lado, sorrir vai ser a coisa mais natural.
— Onde está Carmela, Kira? — Marco indaga, virando para nós.
— Não faço ideia — Kira responde.
— Eu chutaria que estava transando.
— Por quê? — Eles me encaram especulativos.
— Conheço aquele sorriso de satisfação ali.
Aponto com a cabeça para a garota que acaba de entrar na sala com
uma plenitude nunca vista antes. Ela caminha até nós quase saltando e se
senta ao lado de Marco, soltando um suspiro alto.
— Bom dia! — exclama com um humor adorável.
— Transou sim. — Kira balança a cabeça, rindo com zombaria.
— Do que está falando, Kiki? — Carmela tenta disfarçar.
— Vou mandar mensagem para um amigo meu e perguntar como ele
está.
— Não sei o que quer dizer, Kira.
Minha namorada pega o telefone, abre a tela e começa a digitar algo.
Noto Carmela se agitar, encarando o telefone na mão dela, antes de tomá-lo.
— Certo! Eu estava com Santino. Pronto. Satisfeita?
— Muito! — Kira sorri e pega o telefone de volta.
Carmela mostra a língua, antes de se virar para frente. Nossa aula
começa e não temos mais tempo para implicar com a garota.

Levanto da mesa e seguro as mãos de Kira, saindo com ela, Marco e


Carmela para fora da sala. Quando estamos quase fora do prédio, a Barbie
para de andar e diz aos nossos amigos:
— Eu e Zayan temos um assunto a resolver. A gente se vê depois.
Eles acenam e se afastam, e eu olho para ela, perdido.
— O que foi, pulguinha? — Kira começa a andar no sentido oeste.
— Nós não tivemos tempo de conversar sobre isso, mas eu penso que
você não vai querer desperdiçar essa oportunidade. Estou certa?
— Do que você está falando?
— Do mestrado, Zay.
— No Brasil? — Não consigo conter minha animação. Paro de andar
com ela e seguro os ombros de Kira. Há um sorriso enorme enfeitando o
rosto lindo dela, me mostrando a felicidade que sente. — É sério, amor?
— Se você quiser, é claro.
Abraço a cintura dela e aperto o corpo dela contra o meu. Beijo Kira,
sem me importar com mais nada ao meu redor.
— Não tem nada que eu queira mais nesse mundo do que descobrir
ele com você, linda. Quero viver cada experiência que eu tiver a
oportunidade de viver ao seu lado.
— Também quero tudo isso, Zayzay. Te amo, meu menino. Muito.
— Te amo, pulce. Agora vamos. Temos um convite para aceitar. E um
projeto de dissertação para montar. Estou animado para nosso primeiro
trabalho. Vamos destronar tantos pesquisadores medíocres juntos.
— Sim!
— Temos que estudar português! Como vamos aprender português
em tão pouco tempo?
— Aisha — diz simplesmente, e então me recordo que a ruiva é de
origem brasileira. — Vamos irritar muita gente, lindo. — Ela sorri,
confidente.
— Você só não pode me irritar antes, Kira — aviso sério, mas sei que
é vão.
Ela vai me irritar. É Kira. O amor da minha vida.

Eu conheço os pais dela e o irmão. Conheço Aisha e já vi Antônio. Eu


fui corajoso o suficiente para tentar convencer Martina e Giorgio de que eu
poderia cuidar dela. Eu beijei Kira no aeroporto, na frente de uma pequena
multidão, inclusive do irmão dela.
Então por que caralhos as minhas mãos estão suando e meu coração
bate acelerado, me mandando correr para longe daqui, no instante em que
eu estaciono na calçada da casa dos Morettis?
— Isso é realmente necessário, Kira? — reclamo quando desligo o
carro.
— Sim, Zayan.
Ela sai do automóvel e eu vou atrás.
— Eu conheço todos eles.
— Não conhece. Você não conhece Amadeo, Michaela e Max, avô e
tios de Aisha. Não conhece Anita e Cecília, amigas de Aisha e agora
minhas amigas também.
— Que tanto de gente é esse? Você não disse nada sobre essas duas.
Kira! — Obrigo ela a parar no meio do caminho e ela me encara com
repreensão. — Para que chamar os tios e avô de Aisha?
— Zayan, é só um jantar com as pessoas que são importantes para
mim. O que tem de mais? Não vamos esquecer que você me levou para
almoçar com seu pai no seu aniversário sem me avisar. Agora anda, deixa
de ser medroso e vamos entrar. E me dá uma bala. Você me deixou nervosa.
— Não fiz nada — resmungo, tirando a bala do bolso e entregando a
ela. — Você me colocou nessa roubada. E eu não sou medroso.
— Não é o que parece. — Ela coloca o doce na boca e abre a porta.
O falatório que estava engatado cessa. Todos os olhares se voltam
para nós dois. Eu travo, mas ela me puxa, me obrigando a acompanhá-la.
— Buonasera, família! — Kira cumprimenta a todos com animação.
Um, dois, três... dez pares de olhos me analisam com curiosidade e eu
sinto uma gota de suor escorrer pela minha nuca.
Ela continua me guiando até chegar nos pais que estão de pé, na sala
de estar. Junto deles estão um casal e um senhor de cabelos cinzas e olhos
azuis.
— Mãe, pai, vocês já conhecem Zayan. Amadeo, Michaela, Max,
esse é Zayan Castelli.
— É um prazer, rapaz. — O senhor, que deduzo ser Amadeo, estende
a mão e diz com a voz serena.
— O prazer é todo meu — o cumprimento. Max e Michaela fazem o
mesmo.
Sou puxado por Kira para o outro grupo que está de pé, ao redor da
mesa de jantar.
— Finalmente trouxe o branquelo para a gente analisar de perto, Kira
— Antônio é quem diz, com um sorriso de zombaria. — É verdade que
ajoelhou no meio de um aeroporto, garoto?
— Sim — respondo com naturalidade. — E faria de novo.
Decido que não há espaço para agitação aqui. Tudo que faço por ela,
faço feliz. E se ela quer que eu conheça oficialmente todas as pessoas
importantes para ela, então vou me abrir a eles sendo quem sempre fui.
— Você é do tipo em extinção, Zayan — a mulher negra comenta. —
Anita. — Estende a mão e nos cumprimentamos.
— Ele é um fofo, Kira. — Me viro para a loira que fez o comentário.
— Eu sou Cecília, a propósito. — Se apresenta.
Passo pelas duas e vou até o casal de noivos.
— Aisha — saúdo a ruiva. — Cunhado — implico com Dante.
— Já disse para não me chamar assim, garoto — responde com
irritação.
— Tem que aceitar que vou casar com sua irmã, Dante. Sei que é
difícil entender isso, mas ela cresceu. — Pouso a mão no ombro dele, e ele
a retira, me fazendo rir.
— Eu gostei desse daqui! — Antônio me puxa pelos ombros e me
oferece tapinhas de cumplicidade. — Ah, Dan, arrumou um belo carma na
sua vida!
— Já tenho você, Antônio. Não preciso de outro. Você está vendo
isso, Aisha? — Ele se vira para a noiva. — Está vendo? Depois você vem
defender o moleque.
— Zayan, seja bem-vindo de volta. Não liga para o meu noivo. Ele é
um ciumento superprotetor sem causa.
— Aisha!
— Que foi, baby? Você é mesmo. Mas eu te amo assim. — Dante
desiste de qualquer repreensão quando ela diz isso com a voz apaixonada e
deposita um beijo curto nos lábios dele.
— Você está vendo esse exemplar de cachorro adestrado, Zayan? —
Antônio aponta para o amigo. — É assim que você estará no futuro. Vá se
preparando e separando uma coleira.
— Antônio, eu acho que esse não será meu futuro. — Trago a
pequena Moretti para perto de mim. — Esse é meu momento presente. Eu
sou inteiramente dela. Rendido. Laçado. Um vira-lata fiel.
E com isso arranco risadas de todo o grupo. Eu mesmo sorrio, mas
não me corrijo. As coisas são o que são e eu sou feliz por ser de Kira. Por
finalmente ser dela.
— Deus! Que eu jamais fique assim — Antônio pede aos céus.
— Palhaço — Anita comenta com acidez.
— Você disse algo, Docinho? — Antônio vai até ela e puxa um cacho
dela, recebendo um tapa na mão.
— Disse “palhaço”, playboy.
— Você está adoravelmente chata hoje.
— Você está insuportavelmente irritante.
— Sabe que eu posso melhorar esse seu humor, não é?
— Claro. É só você desaparecer da minha vida e meu humor melhora
horrores, stronzo[33].
— O que aconteceu ali? — sussurro para Kira, enquanto a discussão
entre Anita e Antônio segue acalorada.
— Aparentemente eles se odeiam — Kira sussurra de volta.
— Sabe quem também se odiava, pulguinha?
— É, eu sei! — Kira exclama, animada, enquanto assistimos com
deleite a troca de farpas que não cessa.
— Vocês sabiam que eles já transaram? — Cecília sussurra atrás de
nós.
— Como é? — Eu e Kira nos viramos para ela, em choque.
— E tem mais. Olha essa foto aqui. Aparentemente os dois fizeram
uma aposta.
— Ninguém tem direito de fofocar da minha vida sem minha
presença, Cecília Ventura! — Antônio berra e notamos que a discussão
entre ele e Anita foi encerrada e que ela agora está com a cara emburrada.
O primo de Aisha volta para nosso lado, tirando o telefone da mão de
Cecília. Noto quando Aisha, Dante e Anita caminham para o quintal dos
fundos da casa, com ela reclamando de Antônio.
— O que você fez para a mulher, Toni? — Kira pergunta, se
entretendo.
— Nada, Kira. Eu apenas existo.
— Você é você. Nem todo mundo consegue lidar com a forma como
construiu seu ego. Estava mesmo precisando de alguém para abaixar essa
crista sua. Playboy. — Kira ri.
— Todos vocês me amam assim. Anita não é normal. É isso.
É minha vez de rir.
— Qual a graça, branquelo? Ainda não foi aprovado para entrar na
família. É bom se comportar.
— Que tal se fizermos uma aliança, Antônio? Eu e você vamos irritar
muito Dante. Juntos.
— Agora você foi aprovado, Castelli. — Abre um sorriso largo. —
Vamos ser uma boa dupla, garoto.
Ganho dois tapinhas no ombro do Campello.
— Peguem leve com meu irmão. Ele vai se casar em breve, precisa de
paz.
— Eu mal posso esperar por esse evento — Cecília comenta com um
ar apaixonado.
— Estou rodeado de românticos apaixonados! — Antônio reclama.
— Quem disse que eu estou apaixonada, Toni? Só acho bonito ver
casais apaixonados e seus finais felizes.
— Não duvido nada que sua vez logo chega, loira — Antônio
comenta.
— Não chega não. Romance não é para mim.
— Mas você acabou de dizer que acha bonito ver casais se
apaixonarem — Kira contrapõe.
— Mas isso não quer dizer que eu vou viver um romance.
— Está pior que Antônio.
— Hey! — ele protesta.
— É diferente — Cecília se defende. — Antônio acha que
relacionamento é perda de tempo. Eu não acho. Só... Não é para mim. —
Dá de ombros.
— Não sei se minha opinião importa — digo. — Mas se tem algo que
aprendi nos últimos tempos é que amor é para quem se abre para ele. Eu
achava que não merecia, porque me fizeram acreditar nisso, mas encontrei
alguém que me mostrou o contrário.
Kira me encara e sorri. Acho que vejo orgulho brilhar no olhar
castanho antes dela me abraçar.
— Eu entendo você, Zay. Posso te chamar de Zay?
— Zay, sim. Só Zayzay que é exclusivo.
— Exclusivo? Vocês, apaixonados, têm manias estranhas — Antônio
diz, rindo. — Vou ali atrás do meu algoz.
Assistimos ele sair e ir até Anita. Ele puxa de novo um cacho dela, e
ela estapeia mais uma vez a mão dele.
— Enfim, Zay. — Volto a prestar atenção em Cecília. — Entendo
você. Mas algumas coisas escapam do nosso controle.
— Nada do que diz respeito à sua felicidade deve sair do seu controle.
Mas talvez ainda não seja hora de você descobrir isso, Ceci. Posso te
chamar de Ceci? — Ela acena que sim. — Talvez, no momento certo,
saberá que você pode escolher seu caminho para a felicidade.
Ela não oferece uma resposta. Parece pensativa e eu espero que ela
guarde minhas palavras. Tenho a sensação de que ela vai precisar.

— Não foi tão ruim — Kira diz.


Estamos no antigo quarto dela, deitados em sentidos opostos.
— Não, não foi. Foi ótimo, amor.
— Você disse ao meu irmão que vai se casar comigo.
— Esse é o plano, linda.
Ela deixa escapar uma risada baixa.
— Ainda precisamos ver como seu humor ficará nos próximos meses,
Zayzay. Tenho muitas provocações guardadas. Preciso saber se vai mesmo
aguentar todas elas.
— Só vai diminuir alguns anos da minha expectativa de vida, me dar
alguns cabelos brancos precocemente e provavelmente terei que visitar um
cardiologista com certa frequência, principalmente se decidir usar sempre
aqueles fios de tecido que chama de calcinha.
— Sabe o que deveríamos fazer? Ioga. Eu e você. Você precisa
controlar seu azedume. Você não tem um monte de óleos essenciais
guardados? Tem que fazer uso deles.
— Não existe ioga e óleo essencial no mundo que me prepare para
você, Kira Moretti.
— Sou um anjo.
— É uma provocadora vestida de anjo. Tem esse rostinho inocente,
mas no fundo é uma criatura maléfica e atrevida.
— Fala como se fosse são, Zayan. Mas se apaixonou pela criança que
puxou seu cabelo no primário.
— Masoquismo, o nome. Sabe se tem tratamento, linda?
— Tem sim. Doses homeopáticas de tutti frutti. Tem que extrair da
boca de um unicórnio fêmea de nome Kira Matilda Moretti.
— Acho que vou conseguir me curar, então.
— Mas é um tratamento que dura uma vida inteira.
— Acabei de dizer que vou me casar com você.
— Você pode se divorciar em algum momento.
— Faça um favor. Se algum dia eu cometer essa loucura, me arraste
mais uma vez para o altar e nos casaremos de novo.
— Nem nos casamos ainda.
— Nos casaremos quantas vezes for preciso, até garantir que
estaremos unidos para a vida toda.
— Quer mesmo isso, não é?
— É um dos meus maiores sonhos, Kira.
— E quais são seus outros maiores sonhos?
— Conhecer o mundo com você, publicar artigos e ganhar prêmios
com você, ter filhos com você, acordar todos os dias com você.
— Tudo comigo?
— Tudo com você. — Ela se silencia. — E quais são seus maiores
sonhos? — pergunto.
— Só tenho um, na verdade.
— Qual?
— Que One Direction volte.
— Eu sou um palhaço para você.
Levanto da cama irritado, ouvindo a gargalhada alta que ela profere,
depois de quebrar o nosso momento mágico e carinhoso. Ouço a
movimentação dela antes dos braços enroscarem no meu pescoço e as
pernas na minha cintura, quando ela se pendura nas minhas costas.
— Te amo, limãozinho.
— Me ama ou ama Zyan Malik? O nome é parecido, talvez você se
confundiu — digo ácido.
— Amo você, Zayzay. Você é meu único amor. — Ela desfaz os nós
da perna e para na minha frente. Segura minha nuca e acaricia a região. —
Meu maior sonho é acordar e dormir vendo esse sorriso lindo que tem agora
no rosto. — É, eu estou sorrindo como um bobo. — Meu sonho é
conquistar o mundo com você ao meu lado. Porque somos sim a melhor
dupla, Zay. E nada irá nos parar.
— Absolutamente nada, linda.
Sou puxado e ela me toma para um beijo calmo, vagaroso e cheio de
promessas. Promessas minhas para ela e dela para mim. Minha mão desliza
pelo corpo dela, até chegar na bunda, e então a puxo. As unhas me
arranham e a língua tortura a minha com o peso da luxúria que ela coloca
no toque.
— Kira, nós já... Mas que pouca vergonha é essa? — Separamos
nossos lábios e olhamos para o lado a tempo de ver um Dante furioso
irromper pela porta. — Kira Moretti!
— O que está acontecendo? — Aisha surge logo em seguida.
— De novo. Estou vivendo esse pesadelo horrível em que esse
moleque está com as mãos em cima da minha irmã mais uma vez. — Dante
esfrega os olhos, como se tentasse se livrar da imagem.
Kira ri e começa a se afastar de mim. Mas pego a cintura dela e a
coloco na minha frente. Não pode se mexer, pulguinha. Preciso disfarçar
minha atual situação. Me deixou duro com um só beijo.
— Devo chamar Antônio para que ele narre o que ouviu outro dia no
escritório do avô de Aisha, irmão?
Eu não tenho ideia do que aconteceu, mas a vermelhidão no rosto de
Aisha e os olhos arregalados de Dante denunciam que não foi uma cena
inocente.
— Você não... Não precisa chamar... Ãn... Andiamo, Aisha. Só vim
dizer que já estamos indo. Buonanotte.
— Boa noite, pombinhos. Usem camisinha. — Aisha acena, sorrindo
quando Dante a puxa para fora do quarto.
— Vocês não precisam usar, eu quero sobrinhos! — Kira berra.
— Boa noite, Kira! — Dante responde do corredor com outro berro.
— Que história é essa de Antônio flagrar os dois? — questiono com
curiosidade.
— Foi há algum tempo. Na casa dos Campellos. Estávamos lá
passando o tempo e Dante e Aisha foram conversar no escritório. Antônio
foi chamá-los para comerem pipoca e acabou escutando o que não devia.
— Eles parecem ser tão fofos juntos. Não consigo imaginar uma cena
dessas.
— São fofos como coelhos, entende?
— Ah, merda! Queria não ter entendido, Kira. Pelo amor de Deus, é
seu irmão!
— É, e nesse ritmo terei sobrinhos muito cedo. — Ela ri.
— Não sendo a gente o casal que irá fazer de Martina e Gio avós
agora, tudo certo.
— Não, não estamos nada prontos para isso!
— Mas podemos praticar, pulguinha. — Afasto os cabelos da nuca
dela e mordisco o lóbulo, beijando a nuca dela.
— Podemos sim. Podemos praticar muito.
DOIS MESES DEPOIS

— Pronta? — Zayan segura minhas mãos.


Estamos no corredor, esperando nosso nome ser chamado para
podermos defender nossa monografia e concluir o curso. Há mais dois
alunos aqui, prontos para acabar com esse suplício.
Depois disso ainda temos que entregar atividades e fazer algumas
provas, mas se formos aprovados hoje, estaremos praticamente com o
diploma em mãos.
Meu estômago gela. Meu coração acelera. Estou ansiosa.
— Acho que não. Preciso de balas.
— Sem balas para você, linda. Já comeu muitas. Daqui a pouco fica
elétrica de tanto açúcar no sangue.
— Quanto tempo ainda falta?
— Alguns minutos. — Ele acaricia o dorso da minha mão. — Vai dar
tudo certo. Você é uma das melhores alunas, linda.
— A melhor, Zayan. Eu sou a melhor.
— Devo te lembrar que foi sua boca que admitiu que eu sou o
melhor? — ele me provoca.
— Está querendo mais um tapa, lindo?
— Eu não. — Ele abraça minha cintura e passeia com a ponta do
nariz pelo meu pescoço. Arrepio deliciosamente. — E você, linda? —
Mordisca meu lóbulo.
— Talvez. — Meu suspiro sai pesado.
— Hoje vou comer você no meio da festa, amor — anuncia, como se
tivesse dito que vai à padaria comprar pão.
Para a nossa festa de formatura, Nina e minha mãe fizeram questão de
algo exorbitante. Tivemos que frear as duas na preparação, porque não
queremos nada além de celebrar essa nossa conquista com quem amamos.
Se Zayan e eu fôssemos escolher, teríamos feito um jantar simples, mas aí
teríamos que lidar com os dramas de Martina e Nina.
Alguns conhecidos da família e até mesmo a avó paterna de Zayan
foram convidados e irão. Haverá flores, bufê, bebidas e música.
— Não fará isso no meio de toda aquela gente, Zayan. E pare de falar
essas coisas. Tem gente ouvindo — sussurro para ele.
— Ninguém está ouvindo, pulguinha. E nós vamos ver se farei ou não
algo quando eu estiver me enfiando no meio das suas pernas.
— Zayan Castelli. — O nome dele é chamado e ele se levanta com
um sorriso maldito no rosto.
Pisca para mim, sabendo que me desestabilizou por completo e agora
passarei os próximos minutos idealizando sobre a promessa dele.
— Declaro você, Kira Matilda Moretti, bacharel em psicologia,
formada com honras.
Puta que pariu, caralho, vai tomar no cu, porra!
— Obrigada, professor!
— Parabéns, Kira. Foi uma honra ter você como aluna na nossa
universidade. E desejo sucesso a você e Zayan na nova empreitada. Espero
ver vocês aqui de novo, como colegas de profissão.
— Eu vou adorar fazer parte do corpo docente da nossa universidade!
Ele ergue o braço e eu o cumprimento. Corro para fora da sala e saio
para o corredor. Ele já está de braços abertos e com um sorriso imenso de
orgulho no rosto. Zayan me recebe quando enrosco no pescoço dele e pulo,
sem me importar com a meia dúzia de pessoas que transitam por aqui.
— Parabéns, Kira Moretti, psicóloga e futura pesquisadora.
— Parabéns Zayan Castelli, psicólogo, futuro pesquisador e dono do
meu coração.
— Te amo, pulguinha. E obrigado por me conceder a honra de ser seu
namorado e colega de pesquisa. — Eu saio do colo dele e encaro Zayan. —
Vai ser um prazer dividir cada segundo do meu dia com você.
— Vocês dois podem desgrudar por um minuto? Precisamos coroar a
dupla. — Olho para trás de Zayan e encontro Carmela, Marco, Matteo e
Santino sorrindo na nossa direção.
— Vocês vieram!
— É óbvio, Kiki! Temos tradições a cumprir. — Ela ergue minha
coroa de louro e vejo que Marco traz a de Zayan consigo.
Abaixo a cabeça e Zayan faz o mesmo, e somos coroados.
— Parabéns, Kiki. Parabéns, Zayan. E obrigada por terem sido nosso
maior entretenimento nesses últimos anos.
— Foi um imenso prazer, Mel. — Faço uma pequena reverência,
rindo.
— Parabéns, Matilda. Parabéns, Zayan. — Santino me abraça e ganha
um aperto de mãos de Zayan.
— Parabéns, meus dois carmas — Matteo diz, divertido.
— Porra, eu vou sentir falta de vocês! — Marco funga e então noto
que está chorando. — Por favor, não se demorem no Brasil. Eu sou fã
demais de vocês, vou sentir falta dos dois.
— Também somos seus fãs, cara. Não se preocupe, voltamos logo. —
Zayan puxa o amigo para um abraço consolador.
— Sem tristeza, pessoal! Temos mais tradições a cumprir!
Pergamino[34]! E tem mais formandos lá fora esperando vocês se juntarem a
eles — Carmela diz.
— Peguem leve, por favor — peço com carinho.
— Vamos tentar. — Carmela tem um sorriso maldoso, que entrega
que estamos ferrados.
Adeus, vestido.

Meus pés protestam depois de andar um dia inteiro com uma coroa na
cabeça, sendo atingida por tinta e farinha[35]. Bebi três shots de vodca antes
de ler o texto do pergaminho e bebi mais algumas coisas que me deram pelo
caminho.
— Você está adorável, linda. — Zayan segura uma mecha do meu
cabelo, endurecida pela mistura de tinta e farinha.
— Você também não está nada mal. — Tento limpar uma mancha
branca que ele tem no rosto, mas isso só piora a bagunça.
— Meu pai já está esperando a gente. Vamos?
— Como vamos entrar no carro nesse estado, Zay?
— Vamos dar um jeito, pulce.
Ele segura minha mão e caminhamos de volta para o estacionamento
da universidade. Leonardo nos espera com um sorriso de satisfação.
— É uma bagunça e tanta. — Ele ri.
E eu fico feliz por o ver assim. Não foi fácil para Leonardo lidar com
toda verdade sobre o filho. A depressão o assolou. Mas ele tem se tratado,
feito terapia e se recuperado.
E por isso, hoje é capaz de sorrir pela conquista do filho mais novo.
Ainda vai levar um tempo para que ele se cure por inteiro, mas é um dia de
cada vez.
— Eu estou bonito assim? — Zayan faz graça, apontando para a
sujeira das roupas.
— Está sempre lindo, limãozinho.
— Um primor, meu filho. Agora vamos, temos uma festa nos
esperando.
A porta de trás é aberta e vejo que os bancos estão cobertos por
toalhas. Me sento e Zayan se coloca ao meu lado. Vamos pelo caminho até
a casa de Dafne contando sobre nossa apresentação, sobre as brincadeiras e
sobre uma das tardes mais felizes das nossas vidas.
Nós chegamos à casa dos Castellis, onde acontecerá a festa, e um
pequeno desespero começa a me tomar quando vejo Aisha e Dante parados
na entrada.
— Zayan, acho melhor ficarmos no carro.
Ele acompanha a direção do meu olhar.
— Sim, também acho.
— Sem essa, crianças — Leonardo diz antes de rir com maldade.
— Zayan...
— Kira...
— Vamos andando. — Leonardo destranca a porta e sai. Vem até nós
e abre nossa porta, esperando um movimento nosso.
— Só nos resta correr, pulguinha. O mais rápido que conseguir —
Zayan sussurra.
Acato a sugestão dele e saio como um raio do carro. Mas antes de
chegar à entrada, sinto algo atingir minhas costas.
— Não! — Tento alcançar com o braço o ponto onde a coisa
gosmenta escorre, e quando entendo o que é, me viro para xingar a pessoa
que me atacou. — Antônio! Ovo?
Ele está com uma caixa de ovos nas mãos. O bastardo sorri, antes de
pegar mais um e mirar em mim. Tudo que faço é fechar os olhos, esticar o
braço e tentar me proteger. No entanto, não sinto nenhum golpe. Abro os
olhos e minha armadura humana sorri para mim.
— Eu te protejo, pulguinha — Zayan diz.
— Não tem como proteger sempre, Zayan! — Aisha berra e dessa vez
eu sou novamente atingida.
— Aisha, eu vou feder... — Outro ovo vem do meu irmão.
E mais um e outro. E em pouco tempo, eu e Zayan somos uma meleca
de ovos, sem chance de escapar do ataque.
— Está faltando algo. — Ouço a voz da minha mãe, e quando me viro
para protestar, uma chuva de farinha atinge nós dois. — Agora sim.
Cuspo todo o pó que está em minha boca e limpo os olhos, tentando
enxergar de novo.
— Sorriam, meninos. — Nina aparece com o celular na mão. Coloco
um sorriso fingido no rosto, que se vai no instante em que Zayan me abraça,
espalhando toda meleca.
— Zayan! — protesto, mas ele não se afasta. Continua a esfregar o
corpo em mim, até eu desistir da repreensão e começar a espalhar a bagunça
que cobre o corpo dele, rindo.
Quando já estamos suficientemente nojentos e sujos, somos liberados
para nos limpar na mangueira que fica do lado de fora da casa. Tiramos o
que conseguimos, antes de nos enrolar em uma toalha e subir para tomar
banho.
Fico quase uma hora debaixo do chuveiro, esfregando o cabelo,
tentando tirar toda bagunça que se formou. Quando já usei um vidro de
xampu, me dou por satisfeita. Confiro se nenhuma gota de tinta que
Carmela jogou em mim mais cedo ficou, antes de desligar a água e sair para
o quarto de hóspedes da casa.
Meu vestido rosa já está na cama. Mas antes de vestir, seco meu
cabelo e faço uma maquiagem bem elaborada.
Pego o vestido e coloco no corpo. Vou até o espelho e sorrio. É um
modelo lindo, com a parte superior corset, mangas ombro a ombro e a saia
solta que vai até as minhas coxas.
— Linda. — Olho para trás e Aisha caminha até mim com um sorriso.
— A porta estava aberta.
— Tudo bem, pode entrar.
— Quer tranças? — Ela aponta para o meu cabelo e eu aceno que
sim.
Caminho até a cama e me sento. Ela pega alguns itens que estão na
penteadeira, antes de vir até mim e começar a mexer no cabelo.
— Então... — começo um assunto. — Vai dizer porque você e meu
irmão estão agindo estranho ultimamente?
Notei isso há algum tempo. Dante e Aisha têm estado distantes em
alguns momentos. Somem de repente. A preocupação não deixa por nada o
semblante deles. Até mesmo o desânimo parece acompanhá-los. E depois
reaparecem alegres, animados. O humor tem oscilado. As aparições são
cada vez menos frequentes.
— Já disse, Kira. Estamos organizando...
— As coisas do casamento — completo a fala dela. — Já disseram
isso tantas vezes. E, ainda assim, ninguém acredita nessa desculpa.
— Não acreditam porque ficam criando fantasias na cabeça fértil de
vocês — ela se defende.
— Diz só uma coisa. Vocês vão demorar a revelar esse mistério?
— Não tem mistério, Kira.
— Você quer que eu busque meu irmão e conte como eu sei que tem
algo acontecendo? Ele sabe que eu sei. — Ela não diz nada. Fica um longo
minuto em silêncio, então eu continuo: — O olhar dele fica vidrado com
frequência, e nesses momentos ele sorri, como se tivesse se lembrado de
algo muito bom ou estivesse fantasiando um cenário alegre. E quando ele
volta para a realidade, a preocupação o consome. Ele tem pedido mais
abraços de consolo. Tem me feito perguntas nunca feitas antes sobre
psicologia. Ele está irritantemente grudado em você, mais do que esteve nos
últimos meses. Se quiser, eu continuo.
Mais silêncio. Até que ela finalmente suspira.
— Vocês dois são bons nisso — diz, derrotada. — Em breve vamos
poder falar sobre o que está acontecendo. Muito em breve.
— Tudo bem. Vou aguardar. E espero que não tenha acontecido nada
grave.
— Não, não é. É... Não tenho palavras, Kira. Eu só sei que tinha que
acontecer. — A voz dela é carregada de emoção. — Pronto. Veja o que
achou.
Vou até a penteadeira e fico maravilhada com o penteado. Há duas
tranças, uma em cada lado do cabelo, moldadas com perfeição.
— Obrigada, cunhada. — Caminho até Aisha e puxo-a para um
abraço. — E se precisarem de qualquer coisa, estarei aqui.
— Até fevereiro — ela diz, chorosa.
— Até fevereiro.
— Não acredito que vai para a minha terra. Vou montar todo um
itinerário de todos os lugares que tem que visitar em São Paulo.
— Mas Zayan e eu vamos para Mina... Como se diz?
— Minas Gerais. Mas vocês terão férias, poderão visitar muitos
lugares. Precisam visitar. Tem praias lindas no Nordeste do país. Promete
que vai explorar o que conseguirem do Brasil?
— Prometo que vamos tentar.
— E venham para o casamento, viu?
— Não precisa nem falar! Nós estaremos aqui, ruiva.
— Agora vamos descer. As pessoas estão esperando por você.
— Vamos! — Dou a mão a ela e descemos as escadas juntas.
Saímos para o jardim e caminhamos até a área gramada que foi
transformada em um espaço para evento. Há uma pista improvisada e mesas
e cadeiras espalhadas, já ocupadas com alguns convidados.
— Ela é toda sua, Zay. — Aisha desfaz nosso toque e se afasta
quando meu namorado vem até mim.
Lindo. Blusa e calça social. Dois botões abertos. Delicioso. O
piercing na orelha brilha com a luz. O sorriso de quem sabe que é gostoso
faz meu coração palpitar. Ele segura minha mão e me faz girar. Quando
paro de frente a ele, Zayan segura minha cintura e me puxa para perto.
— Perfeita. Meu coração está acelerado nesse momento, porque eu
acabei de gravar em minha memória a imagem mais esplêndida que meus
olhos tiveram o prazer de apreciar.
— Bobo. — Mas ainda assim deslizo a mão pelo peitoral dele, até
alcançar a região do peito direto, e constato que algo ali pulsa feliz e
descompassado. Troco minha mão pelo ouvido e ouço o som lindo das
batidas do coração dele. Suspiro, sentindo meu próprio coração expandir
para caber um pouco mais do amor que sinto por esse garoto. — Te amo
tanto, Zayzay. Você é meu encontro eterno, meu amor. Sempre vou procurar
por você no fim do dia.
— Também amo muito você, pequena Moretti. E sempre estarei te
esperando no fim do dia.
Ergo o olhar e encaro os olhos castanhos por alguns segundos, antes
de fechar as pálpebras e tocar meus lábios com suavidade e carinho nos
lábios dele.
Meu Zayzay. Hoje e sempre.
Eu danço. Pulo. Abraço as pessoas que amo e celebro. Meus amigos e
minha família, estão todos aqui. Os amigos e a família de Zayan, estão
todos aqui. E eu estou completa. Transbordo felicidade e me sinto nas
nuvens. Hoje é um ótimo dia. Hoje é um dia perfeito.
— Kiki! Eu amo você demais! — Carmela me abraça apertado. Está
bêbada, mas continua linda e adorável.
— Também amo você, Mel. Você já conheceu minha amiga Aisha,
minha amiga Cecília e minha amiga Anita? — Aponto para o trio que dança
no meio da pista.
— Eu conheci. Elas são lindas. Mas, Kiki, eu sou sua melhor amiga,
não sou?
— Sim, ciumenta. Você é minha melhor amiga. — Beijo a bochecha
dela.
— Carmela, vem dançar, bebê. — Santino puxa ela, que vai para os
braços dele rindo. Beija os lábios dele antes de ser guiada por ele para a
dança.
— Então eles estão juntos mesmo. — Zayan me abraça por trás e
beija meu pescoço.
— Sim. E aqueles dois ali? — Aponto para Marco e Matteo, que
balançam juntos, abraçados, sorrindo um para o outro.
— Sim.
— E a família de Marco? — questiono.
— Ainda não aceitou. Mas eles não têm que validar a relação dos
dois, certo?
— Não. Mas imagino que seja difícil para ele.
— E é, mas ele vai superar. Ele está feliz. Muito feliz. E isso é o que
importa no fim.
— Sim — suspiro. Me viro e fico de frente para ele, abraçando a nuca
de Zayan. — Zay, estou aqui pensando...
— Sim?
— Sabia que você fez uma promessa hoje cedo?
Ele tenta conter o sorriso.
— Fiz?
— Acho que sim.
— Então tenho que cumprir, pulguinha.
— É bom que cumpra, porque me preparei para isso.
— Preparou? Como?

— Porra, Kira! Sem calcinha, amor?


Minhas costas estão pressionadas contra a porta do banheiro do
segundo andar. Não conseguimos alcançar o quarto. No momento em que
terminamos de subir as escadas, as mãos dele estavam por todo meu corpo.
Abrimos a primeira porta e estávamos nos devorando em um beijo urgente e
quente.
Minhas pernas se enroscaram na cintura dele e a mão de Zayan subiu
pela minha perna até alcançar meu quadril. E então ele entendeu como eu
me preparei para isso.
— Não podemos demorar, amor, ou seus pais vêm atrás de mim e eu
sou um homem morto. Mas prometo te compensar, provocadora. Cadê o
fecho dessa porcaria? — Ele tateia o vestido.
— Lateral. — Os dedos encontram e abrem o zíper.
Puxo os braços e me livro das mangas, adivinhando o que ele quer.
— Peitos. — Os encara, maravilhado, como se estivesse em um
parque de diversões. E então abocanha um, fazendo todo meu corpo
acender de prazer e deleite.
Tão gostoso. A forma como ele se perde e me leva junto, sugando e
circundando um mamilo e depois o outro, mordiscando na sequência e
fazendo o pico de dor se fundir ao êxtase frenético e desenfreado que me
possuem, é sublime.
Dois dedos pinçam o outro bico e logo em seguida Zayan o massageia
de um jeito delicioso.
— Já está se esfregando em mim e pedindo por mais, linda. Acho que
já está pronta. — Ele beija a curva de cada um dos meus seios antes de
tomar minha boca e amassar meus lábios em um beijo alvoroçado.
Ouço o som do zíper da calça dele e sinto ele roçar a cabeça do pau
na minha entrada antes de meter fundo de uma vez.
— Hummm, Zayan! — Me delicio com a sensação de ter minha
boceta preenchida.
Ele segura meu quadril firme, metendo em estocadas curtas, que
chegam no ponto mais fundo de prazer dentro de mim. Rebolo no colo dele
e me contraio, ávida para que ele me leve logo para o lugar em que só existe
Kira, Zayan e a onda de excitação que nos consome.
Nossa respiração está sincronizada, fora do ritmo. Sinto as lufadas
curtas saírem da boca dele e baterem contra meu rosto. Meu pescoço é
exposto e os dentes mordiscam minha pele. Sugo o pau para dentro de mim
e o gemido grave dele é recompensador. Zayan segura meu maxilar e puxa
meu lábio inferior, acelerando a cadência das investidas. Embrenho meus
dedos pelo cabelo liso e macio, e puxo os fios, tomando a boca dele para
mim, possuindo a língua quente e firme em um beijo inquietante.
Afasto o rosto dele em busca do ar que ele me tomou e ele sai e entra
com mais força. Sinto aquela névoa familiar que me deixa beirando à
inconsciência se formar. Não sou nada além de um amontoado de euforia
que flutua em uma onda de êxtase e luxúria.
— Volta aqui, linda. Nós vamos juntos. — Ele me convida para a
realidade, percebendo que estou quase lá.
As mãos se fecham com firmeza na minha bunda e Zayan choca
minha pelve a dele, me fodendo com ímpeto, se perdendo no ritmo
desgovernado que imprime.
— Zay...
— Goza, linda.
Meu corpo, servo da forma como ele me conduz nesse mar revolto de
prazer, obedece. Aperto Zayan com pressão dentro de mim, gozando e
chamando baixinho por ele. Zayan vem comigo, esporrando dentro de mim,
quente e forte.
Leva um tempo até recuperarmos nossa respiração, e então ele sai de
dentro de mim, me deixando vazia e bamba.
— Vou te soltar agora, amor.
Aceno para que ele saiba que entendi e apoio os pés no chão quando
ele deixa minhas pernas escorregarem.
Ajustamos nossas roupas e Zayan tenta organizar o emaranhado que
se formou em meu cabelo.
— Vamos? — questiona.
— Vamos.
Abrimos a porta e saímos para o corredor.
A sequência de acontecimentos que protagonizamos a seguir me pega
desprevenida.
Assim que Zayan sai do banheiro, atrás de mim, ouvimos uma porta
se abrir. Congelo no lugar, desesperada e sem saber como reagir. Giro o
rosto na direção do som, me surpreendendo com o que encontro.
Dante sai do quarto de Zayan com Aisha no encalço. Ele arruma o
cabelo bagunçado. As roupas estão amarrotadas. Quando me vê parada com
meu namorado, com a mesma aparência que ele e Aisha ostentam agora, ele
não se mexe mais.
Ele sabe o que eu fiz e eu sei o que ele fez. Ele quer me dar um
sermão, ao mesmo tempo que parece querer que o chão abra um buraco e o
transporte para longe. Aisha, que estava escondida nas costas dele, tomba o
corpo levemente para o lado e segura a risada, analisando minha aparência.
Estamos presos nesse flagra constrangedor quando uma terceira porta
se abre.
Meu irmão e eu viramos o rosto para a biblioteca a tempo de ver
Antônio sair de lá, puxando Anita pela mão. Os lábios dele estão inchados e
vermelhos, denunciando o que aconteceu dentro daquelas paredes.
Eles também param, em silêncio, e nos observam.
Anita e Antônio.
Anita.
E Antônio.
Silêncio. Nenhum de nós seis diz nada. Tudo que ouvimos é o som
abafado da música que vem do andar de baixo.
Conto mentalmente. Setenta e três segundos se passam sem que
ninguém faça nenhum movimento.
— A gente nunca se viu aqui — Antônio diz finalmente, passando
apressado com Ani por mim e Zayan.
— É, nunca se viu — concordo, caminhando com Zayan até as
escadas.
— Nunca — Dante reforça, vindo logo em seguida, puxando Aisha.
Nos dispersamos no primeiro andar, agindo como se nada do que
vimos há cinco minutos tivesse acontecido.
TRÊS MESES DEPOIS

— Obrigada por nos trazer, irmão. — Abraço Dante mais uma vez,
segurando a vontade de chorar.
Zayan está afastado, me esperando, enquanto me despeço dele.
Já chorei o suficiente depois de me despedir de todos eles. Quase
desisti quando parei no apartamento de Dante e Aisha hoje. Mas eu e Zayan
sonhamos dia e noite com essa viagem. São dois anos. Passarão voando. E
então estarei de volta.
— Não precisa agradecer. Apenas aproveite tudo que puder e volte
logo para nós.
— E a previsão para a festa de casamento?
— Seis meses. Se tudo der certo.
— Não deixem de pedir ajuda.
— Eu sei, irmã. Vamos ficar bem.
— É, eu sei.
Depois do anúncio que ele e Aisha fizeram, tudo que eu faço é querer
cuidar deles, mesmo sabendo que eles não precisam, que eles têm tudo sob
controle e que eles são duas pessoas maduras e responsáveis. Ainda assim,
cuidado é tudo que posso oferecer a eles, minha família, enquanto estiver
longe.
— Promete fazer uma videochamada todos os dias?
— Vou tentar.
— Dante, por favor!
— Vou tentar, irmã. Prometo dar o meu melhor.
— Tudo bem. Mas eu vou mandar inúmeras fotos, e é bom que você
faça o mesmo.
— Fotos eu prometo mandar.
— Vou sentir falta de vocês. — Engulo o bolo em minha garganta.
— Nós vamos sentir muita falta de você também, princesa. Estaremos
te esperando.
— Nós vamos vir para o casamento.
— Claro que sim, ou eu mesmo vou buscar vocês!
— Agora eu tenho que ir.
— Pode ir.
Mas não vou ainda. Preciso de algo. Não consigo pedir. Ele abre os
braços e faz o pedido por mim. Eu me aconchego no abraço dele, já
depositando nessa nossa troca a saudade imensa que sentirei.
— Amo você, irmão.
— Amo você, irmã.
Me afasto e caminho até Zayan, que segura minha mão livre.
— Cuida dela — Dante pede, se direcionando para o meu namorado.
— Eu vou cuidar — Zayan responde em tom de promessa antes de
nos conduzir para o balcão da companhia aérea.
Despachamos nossa bagagem e vamos em direção aos portões de
embarque para voos internacionais.
Nos sentamos em um banco próximo ao nosso portão e esperamos.
— Está triste, pulguinha? — Ele abraça meus ombros e me puxa para
perto.
— Um pouco. Vou sentir falta deles.
— Eu também.
— Mas estou feliz também. E animada, Zayzay. Vai ser incrível!
— Já está sendo, amor. — Ele coloca uma mecha do meu cabelo atrás
da orelha. Ergo o olhar e vejo aquele brilho nos olhos castanhos que me
derrete sempre e faz meu coração pular alegre.
Zayan Castelli faz meu coração bater feliz.
Zayan, que há um ano levou um tapa meu.
Zayan, que jurou que me faria odiá-lo e falhou miseravelmente na
missão.
Zayan, que me encantou quando se permitiu ser por inteiro meu e que
mesmo com as falhas e tropeços, me fez amá-lo tão puramente.
Em Zayan eu me encontrei. E em mim Zayan se encontrou. E esse é
só o início do caminho que eu e ele ainda vamos nos encontrar muitas
vezes.
Olhos nos olhos.
Eu vejo você, amor.
E você me vê.
— Amo você, pulguinha.
— Amo você, Zayzay.
— Para sempre.
Para sempre.
DOIS ANOS DEPOIS

— Zayan Castelli, declaro que você é oficialmente mestre em


psicologia pela Universidade de Minas Gerais. Parabéns, garoto! Foi uma
honra ter você e Kira Moretti em nossa universidade.
— Obrigado, professor João — respondo em português.
As aulas que fizemos com Aisha e dois anos morando no país
garantiram a mim e Kira uma certa fluência na língua.
— Queria muito que tivessem aceitado fazer parte do nosso grupo de
doutorado — ele diz com pesar.
— É uma oportunidade incrível, mas eu e Kira pertencemos à Itália. E
é hora de voltar.
Voltaremos para a Universidade de Florença, depois de ter nosso pré-
projeto de tese para o doutorado aprovado. Além disso, Kira e eu temos a
intenção de começar a atender em uma clínica nossa. Vamos planejar tudo
quando chegarmos à Itália.
— Eu entendo. Mas saiba que nossas portas estarão sempre abertas
para vocês.
— Eu sei. Mais uma vez, muito obrigado. A você e a toda a banca. —
Agradeço às professoras que avaliaram meu trabalho final.
Kira já apresentou a tese há uma semana, e é claro que aquela Barbie
Vida Universitária foi aprovada com nota cem por cento. Ela passou os
últimos dois anos trabalhando incansavelmente na pesquisa.
Ela é meu maior exemplo, meu modelo de disciplina e dedicação, e
fez por merecer todo esforço.
Estou tão orgulhoso dela. E ela também parece orgulhosa, me
assistindo do fundo da sala, com um sorriso lindo aberto no rosto.
— Vocês estão livres para celebrar, meus pupilos — João diz com
divertimento e minha pulguinha levanta da mesa e vem até mim.
Me abraça apertado, trazendo a calmaria que sempre me traz quando
está por perto.
— Parabéns, lindo. Estou tão feliz por nós!
— Eu também, amor. Vamos? Temos um grupo de brasileiros nos
esperando para encher a cara.
— Vamos!
Camila, Elis e Lucas já estão no corredor. Nosso grupo de brasileiros
preferidos, que nos “adotou”, depois de ajudar a mim e Kira quando nos
perdemos pelas ruas de Belo Horizonte.
— Nosso casal de italianos e agora mestres em psicologia! Que honra
ter vocês como amigos. — Elis vem até nós, nos fechando em um abraço
conjunto. — Vou sentir saudade de vocês.
— Também vamos, Lili. — Kira sorri para ela. — Vocês virão nos
visitar, não é?
— Não precisa convidar duas vezes, Kiki. — Camila sorri.
— Vamos juntar nossas economias de bolsistas, mas em breve
estaremos lá — Lucas diz.
— Tem dúvidas, garota? Vocês dois vão ter que rodar toda aquela
Itália com a gente. É bom que se preparem — Elis anuncia, animada.
— Estaremos prontos para receber vocês.
— Agora vamos logo, porque o bar do Gê deve tá lotado. — Somos
conduzidos pela garota de cabelos negros e curtos.
— Bora — Kira diz, abrasileirada.

Algumas coisas não mudam. Não importa quantos anos passam, não
importa se você passou por um processo de autoconhecimento e tomou uma
rota diferente.
Algumas coisas simplesmente não mudam.
Como a capacidade dessa garota de me irritar profundamente.
— Não — respondo ainda com a voz rouca e um sono do caralho.
Faz uma semana que estamos nos despedindo de todas as pessoas que
conhecemos e criamos laços no Brasil. Todas elas fizeram questão de
celebrar nossa conquista e dizer adeus do jeito mais brasileiro possível:
cerveja gelada, churrasco e música. Foi ótimo quando estávamos nos
divertindo, mas agora eu tenho que lidar com uma ressaca prolongada de
horas, antes de pegar o voo de volta.
E para piorar, estou encarando esse ser humano que esbanja um
excelente humor e uma aparência impecável, que me acordou do meu sono
profundo para fazer um pedido que segundo ela é de extrema necessidade.
— Por favor! — As palmas das mãos estão unidas e há um biquinho
no rosto lindo dela.
— Kira, eu só precisava dormir pelas próximas duas horas. —
Esfrego os olhos, que estão irritados de sono.
— Mas olha o estado disso aqui. Está horrível! — Abre os dez dedos
das mãos e quase enfia as unhas nos meus olhos, para provar o argumento.
— Preciso que faça minhas unhas, Zayzay. Não posso chegar na Itália com
elas assim — diz manhosa.
— Eu ainda não consigo acreditar que você me acordou às seis da
manhã, quando eu podia dormir algumas horas a mais, para me pedir para
fazer as suas unhas, Kira. — Vou até o banheiro do apartamento que
dividimos nesses dois anos, tentando despertar meu corpo, que parece
implorar para que eu volte para a cama.
— Então você vai fazer? — questiona antes que eu feche a porta.
Cinco minutos depois eu saio do banheiro, e ela ainda me aguarda
com aqueles olhinhos pidões na minha direção.
— Vou fazer, criatura mimada! — Caminho até a sala e ela vem atrás
de mim, saltitando, com o kit para unhas na mão. — Qual é a cor?
— Rosa.
— Claro que é. — Pego o esmalte, a lixa e todos os demais itens e
começo meu trabalho.

Esse foi o voo mais longo da minha vida e acredito que a sensação de
que ele se prolongou tanto seja por conta da nossa ansiedade ao finalmente
estar de volta para nosso lar.
Viemos para Itália apenas uma vez, seis meses depois de ter chegado
ao Brasil. Não poderíamos deixar de vir para o casamento.
Depois disso, não conseguimos mais voltar, porque nossas
responsabilidades começaram a crescer e tentamos conciliar os estudos com
nosso desejo de conhecer todos os cantos do Brasil. Visitamos lugares
lindos em nosso tempo livre, mas isso significou abrir mão de vir para cá.
Nós perdemos alguns momentos, e por vezes ficamos tristes por
estarmos ausentes.
Mas hoje estamos de volta e o nervosismo me toma de assalto.
Quero abraçar Nina, meu pai e Dafne. E rever toda a família
Campello, os Morettis e os Salvatores.
Como será que estão todos eles? Será que sentem nossa falta? Esse
avião ainda demora a pousar?
Poucos minutos se passam até que o capitão da aeronave anuncia que
pousaremos, e eu sinto meu coração acelerar.
— Eu nem acredito que estamos de volta! — Kira ostenta um sorriso
enorme no rosto desde que saímos da Espanha, nossa última escala.
— Eu sei. Nós estamos de volta, pulguinha. — Balança as pernas
animada.
Pousamos em solo italiano e pegamos nossa bagagem de mão,
agitados, ansiando por sair logo em direção ao nosso lar.
Seguimos a fila de passageiros impacientes, vamos até a esteira de
bagagens afoitos, e quando finalmente saímos de mãos dadas pelos portões
de desembarque, sinto meu peito expandir e meu espírito se acalentar.
Quase corro na direção do meu pai, largando a mala de lado quando o
puxo para um abraço apertado, enquanto Nina recebe Kira.
Nos braços de Leonardo Castelli, uma sensação calma e lúcida
começa a se apossar de mim, quando pouco a pouco, vou tomando
consciência de que aqui e agora, depois de alguns poucos anos afastados,
nós começamos a reescrever nossa história.
Ele teve o tempo dele para se curar e eu tive meu tempo para
amadurecer e crescer longe dele. E era necessário para nós dois. Para que
pudéssemos deixar o passado no passado e criar novos laços, maduros e
firmes.
— Senti sua falta, pai. — Minha voz é embargada pelo choro de
alívio que me toma.
— Também senti a sua, bambino[36]. Muito.
Nos afastamos e ele segura meu rosto, dando tapas leves antes de
enxugar minhas lágrimas.
— Venha cá, Zayan. Também quero um abraço desses. Largue um
pouco do seu pai — Dafne pede e eu sorrio, antes de me virar para ela e
atender seu pedido.
Fico no abraço dela por longos minutos, antes de ser puxado por
Nina, que também reivindica meu carinho. Ofereço, mesmo sabendo que
ainda não é o suficiente para cessar toda a falta que eles fizeram. Mas
teremos tempo. Muito tempo.
— Vamos, Kira tem que ver a família. — Nina se afasta, limpando o
rosto vermelho de choro. Vai até minha namorada e abraça os ombros dela,
consolando Kira, que também está em prantos.
É um pranto de alívio e alegria, e eu entendo minha Barbie.
— Vamos, querida. Hoje a mansão Campello nos aguarda.
Caminhamos com minha família até o carro.
Somos recebidos com muito entusiasmo por todos nossos amigos e
família. Choramos mais uma vez quando encontramos todos reunidos,
felizes com nosso retorno, esbanjando afeto e entusiasmo.
Passamos a tarde narrando sobre tudo que conseguimos, matando a
saudade de todos.
É bom descobrir o mundo.
Mas não tem nada melhor do que estar de volta ao nosso lar. Um lar
renovado, maior e, ainda assim, cheio de amor.

UM ANO DEPOIS

— E como está o consultório de vocês? — Nina pergunta quando


estamos reunidos na mesa de jantar da casa deles.
Eu e Kira conseguimos realizar nosso sonho de abrirmos nosso
consultório juntos. Foi uma loucura conciliar as pesquisas do doutorado
com a reforma do espaço, busca por clientes e todos os pequenos
empecilhos que surgiram. Mas há quatro meses nosso espaço foi finalmente
inaugurado.
— Uma correria — Kira diz ao meu lado. — Mas uma ótima correria.
Nós adoramos tudo isso e acho que tem sido um grande sonho tudo que
estamos vivendo.
— Vocês dois precisam parar e tirar férias. Nunca mais fizeram isso
desde que se formaram. Só estudam e agora trabalham. Estudam e
trabalham.
— Nós iremos, dona Dafne. Algum dia, nós iremos — respondo antes
de levar uma porção de carbonara à boca.
Terminamos nosso jantar e voltamos para nosso apartamento.
Para mim, o melhor lugar do mundo. Porque é meu e dela. Porque é
onde sempre a encontro no fim do dia.
— Zay, depois de amanhã nossas aulas do doutorado voltam. — Kira
se espreguiça quando entramos pela porta.
— Sim, mas temos que ir à universidade amanhã.
— Verdade. Eu tenho reunião com meu orientador e você precisa
assinar documentos.
— Exatamente. — Seguro a cintura dela e beijo o pescoço de Kira,
nos conduzindo até nosso quarto. — Posso te dizer uma coisa?
— Pode.
— Amo você, pulguinha.
— E eu amo você, Zayzay.
Ela se vira e fica de frente para mim, sorrindo. Puxa minha nuca e
desliza as unhas pelo meu cabelo, tomando minha boca, me beijando
docemente, acendendo todo meu corpo, me fazendo me entregar para ela.
De novo.
Mesmo já sendo inteiramente dela.

— Eu te devo essa — agradeço.


— Com certeza. — Matteo sorri. — O que disse a ela?
— Que vim matar a saudade dos tempos de detenção na biblioteca. E
pedi que ela me encontrasse aqui.
— Não posso mesmo ficar para assistir? — ele questiona com pesar.
— Não, Matt! É entre eu e ela.
— Nem acredito que isso vai finalmente acontecer! — Ele dá
pulinhos animados.
Matteo se tornou bibliotecário-chefe depois que Angelina se
aposentou, e para mim foi uma excelente e feliz surpresa saber disso
quando voltamos a estudar aqui, agora como doutorandos.
E agora, depois de meses de volta, a promoção dele me serviu para
algo que já estou planejando há algum tempo. Foi empolgante planejar tudo
até aqui, mas está sendo impossível me manter calmo quando tudo que
apenas sonhei por um tempo está prestes a virar realidade.
Eu espero que vire.
Estou nervoso.
— Como conseguiu fechar a biblioteca?
— Disse que passaríamos por manutenção por uma hora. É o tempo
que tem — Matteo responde.
— Certo. É o suficiente.
— Posso ligar as câmeras e assistir? — Ele tenta me persuadir.
— Não, Matteo! Eu já estou ansioso o suficiente. — Minhas mãos
estão tremendo convulsivamente e eu não sei se chegarei até o final sem
desmaiar. Que patético, Zayan. Patético!
— Tudo bem — diz, resignado. — Eu vou indo, porque ela já deve
estar chegando. Uma hora. — Aponta para mim e avisa, antes de caminhar
para fora.
Ando de um lado para o outro, encarando a ponta do meu tênis, como
se isso fosse me distrair do tsunami de emoções que me dominam. Acho
que meu coração vai sair pela boca quando ouço passos se aproximarem.
— Zay?
Me viro na direção dela, e apenas um pensamento me arrebata.
Cada segundo que eu passar ao lado de Kira, meu amor por ela se
expandirá. Cada vez que eu beijá-la, meus lábios pedirão por mais. Cada
vez que ela sorri, buscarei um novo motivo para deixá-la feliz. Cada
respirar dela conduzirá meu próprio respirar.
Ela é o amor da minha vida. E essa é uma verdade selada que abraço
com todo meu coração.
— Pulguinha. — Caminho até ela e seguro as mãos delicadas. As
unhas estão pintadas de rosa. Eu mesmo fiz.
— Que esquisito. Não há ninguém por aqui. — Ela olha ao nosso
redor. — Viu Matt por aí?
— Vi, mas ele se foi.
— E ele vai voltar?
— Daqui um tempo. Eu pedi a ele para me deixar sozinho com você
por alguns minutos.
— Po-por quê? — gagueja e aposto que o ritmo do coração dela nesse
momento alcança o meu próprio. Espertinha, já sabe o que está por vir,
pequena Moretti?
— Porque eu queria que fosse só eu e você, aqui, onde tudo começou.
— Zay...
— Me deixa dizer tudo, amor. Ou eu vou me perder, porque está tudo
uma bagunça aqui... — Aponto para minha testa. — E aqui. — Pouso a mão
no meu coração. — Kira, você entrou em minha vida da forma mais torta e
bagunçada. Eu era ingênuo e medroso e não queria permitir sua estada. Por
isso agi dia e noite para te manter afastada. Ou pelo menos era o que eu
pensava. Mas, de alguma forma, eu só queria chamar sua atenção. Queria
que você enxergasse tudo de mim, e que me dissesse que apesar de tudo,
seria capaz de me amar. Levou um tempo para que eu percebesse que era
esse meu maior desejo. E levou um tempo para que você o escutasse. E
acatasse. Você me abraçou e eu te abracei, e nesse abraço, nos encontramos
um no outro. Nossas dores se encontraram, nossos desejos, nossas partes
bonitas e aquelas que, às vezes, tentamos esconder. Mas nós nos vemos. Eu
te vejo, você me vê. E por ser tão crua e verdadeira a forma como nos
enxergamos é que eu sei que com você eu ficarei para sempre. Eu amo
você, tudo de você, e cada vez que você me mostra uma nova parte sua, eu
te amo mais. E eu só tenho um pedido a fazer. Me deixa continuar te
amando pelo resto de nossas vidas, pulguinha? — Tiro a caixinha de veludo
do bolso, me ajoelho, abro, seguro a mão dela e peço: — Casa comigo, Kira
Matilda Moretti?
As lágrimas escorrem livremente pelos olhos dela e também pelos
meus. Espero ansioso pela resposta que não demora a vir e que espalha uma
onda de alívio e felicidade imensurável por cada parte minha.
— Sim. Sim! Eu caso, Zayan Castelli! — Fecho a caixinha e coloco
no bolso, porque a ansiedade não me deixa esperar.
Fico de pé e abraço a cintura dela, tomando a boca macia para um
beijo quente e avassalador, sentindo nossas lágrimas e nosso sorriso se
misturarem. Seguro o rosto dela e ela segura o meu, e nós rimos e nos
beijamos, entregues à sensação de plenitude que é pertencermos um ao
outro.
— Te amo, Zay.
— Te amo, pequena Moretti.
— Para sempre — dizemos juntos.
E então ela volta a me beijar e me beija com paixão. Pouco a pouco,
ela me domina. Me faz render ao comando que o toque firme e ardente me
dá. As mãos de Kira estão por todos os lugares e eu mesmo trato de
redecorar cada centímetro do corpo delicioso dela.
— Kira... — Separo nossos lábios. Minha respiração é ofegante. —
Estamos na biblioteca, linda.
— Eu ouvi dizer que tem um almoxarifado por aqui.
— É mesmo? Onde fica? — indago com malícia, e ela sorri, perversa.
— Vem, eu vou te mostrar. — Ela segura minha mão e me guia pelo
caminho que conheço muito bem.
Ávida, abre a porta e me puxa para dentro, e eu chuto a madeira, nos
fechando aqui dentro.
Os dedos de Kira trabalham com destreza quando adentram minha
blusa e tiram a peça do meu corpo. Sou empurrado contra a parede e ela
passeia com as unhas pelo meu peitoral e logo as unhas são substituídas
pela boca e ela distribui beijos e mordidas por onde passa.
Começa a se ajoelhar, mas eu seguro os ombros dela e impeço,
fazendo com ela fique de pé.
— O que foi? — Me olha confusa.
— Eu estava me esquecendo de algo. — Pego mais uma vez a
caixinha e tiro a aliança e o solitário de dentro dela. — Quero te foder como
minha noiva.
— Que fantasia é essa? — Ela ri, mas me dá a mão esquerda.
Deslizo a peça que se encaixa perfeitamente no anelar e sorrio.
Coloco também o solitário, antes de ela fazer o mesmo comigo,
ornamentando meu dedo com a peça dourada que me pertence.
— Agora sim, linda. — Fecho a caixinha e deixo na mesa ao lado.
Seguro o queixo dela e a beijo. E passo a devorá-la, puxando os lábios
com os dentes, amassando os seios dela contra minha palma. Giro e agora é
ela quem está pressionada contra a parede.
— Por que você sempre dificulta meu acesso ao que é meu? — Tateio
em busca do zíper do maldito vestido.
— Atrás, Zayan! — responde impaciente e eu finalmente encontro o
fecho. Deslizo para baixo e ela passa os braços pelas mangas.
— Porra, sutiã para quê? — Quase rasgo a peça ao desabotoar.
Finalmente. Passo a língua pelo lábio superior antes de abocanhar o
mamilo endurecido e sugar.
Gemido. Sonoro. Profano. Sempre tão entregue.
Mamo, mordisco, deslizo com a língua pelos seios, e o tom dos sons
se elevam. Uma sinfonia e tanto. Aperto a bunda e a trago para mim. Kira
se esfrega, choraminga, arranha minhas costas. Enfio as mãos pela barra do
vestido, afasto a calcinha e meto.
Quente, molhada. Deliciosamente excitada. Meus dedos deslizam
com facilidade para dentro dela e Kira me suga e aperta. A cabeça dela
tomba para trás e ela se ocupa de absorver as sensações. A sensação da
minha língua brincando com os bicos e a sensação das pontas do meu
indicador e dedo médio se movimentando dentro dela a tomam e parecem
tirá-la de órbita.
Meu polegar circunda o clitóris inchado, pulsante, e o tronco dela
vem de encontro a mim. Manhosa, ela geme preguiçosamente.
Meu corpo agora é comandado pelo tesão enlouquecedor que minha
garota me provoca, e eu não tenho mais nenhum motivo para esperar. Tiro
os dedos de dentro dela, subo com a boca e a beijo. Abraço a cintura e ela
prende as coxas no meu quadril. Ando dois passos para o lado antes de a
colocar sentada na mesa.
Ainda nos beijamos. Ainda buscamos nos fundir apenas com esse
contato. Ainda maltratamos a língua e os lábios um do outro em um beijo
desesperado. Ela toma todo meu fôlego e eu entrego sem impedimento.
É uma pequena provocadora perversa e minha.
— Zay. — Nosso beijo cessa. — Meu Zay. — Sorriso inocente e voz
de pecadora. Minha perdição. — Meu noivo. — Porra!
Me perco.
Subo a barra do vestido e ela ergue o quadril, facilitando meu
trabalho. A peça está enrolada na cintura e eu trato de tirar a calcinha.
Guardo a peça no bolso e abro o botão da minha calça. Desço o jeans e a
cueca apenas o suficiente para colocar meu pau para fora e meter nela.
— Uh! — Me aperta. Gulosa, a boceta estreita me engole por inteiro.
Puxo o quadril para a beira da mesa e ela deita. E então eu fodo.
Gostoso, em um deslizar compassado e sincronizado com o rebolar dela.
Toco a testa dela com a minha e mantenho os olhos abertos. Assim
como Kira.
— Diz de novo. O que eu sou seu, linda? — Impulsiono o quadril
para trás e para frente, sempre indo fundo.
— Meu amor. — Os dedos dela se fecham em meus braços, que agora
se apoiam na superfície da mesa. — Meu noivo. — Caralho. — Meu
Zayzay.
— Seu.
Mergulho no abismo de luxúria e paixão que encontro nos olhos dela
e aumento o ritmo do vaivém do meu quadril. Cada investida minha toma
parte do controle que tenho sobre meu próprio corpo. Estou sendo
conduzido para aquele ponto alto, divino e igualmente profano de prazer.
Por ela. É ela quem me conduz com os gemidos indecentes e o revirar de
olhos sacana.
Kira começa a se contrair ao meu redor, me apertando e me
convidando a acelerar. Meter bruto. Firme. De novo. De novo. E então ela
arqueia o tronco e fecha as unhas na minha pele, gemendo alto, gozando.
Um som rouco escapa pela minha garganta quando, alucinado,
esporro dentro dela, sentindo cada parte minha desmanchar depois de ser
estraçalhado pelo orgasmo insano que me consome.
Ela me abraça, enquanto tentamos achar o ritmo certo para nossa
respiração.
— Meu Zayzay.
— Minha Barbie.
Sorrimos.
Nos declaramos.
Nos entregamos.

— Zay! — Kira sussurra, chamando minha atenção, e desvio o olhar


do livro que estou lendo e foco nela.
No dorso da mão, uma borboleta está pousada, abrindo e fechando as
asas com lentidão.
— Elas me adoram! — fala animada.
— Impossível não adorar você, pulguinha. — A borboleta voa e Kira
acena para ela, como se estivesse se despedindo.
Acho a cena uma graça.
Ela vem até mim e senta no meu colo. Abandono o livro na superfície
do banco e acomodo Kira, a abraçando pela cintura.
— Eu adoro estar aqui. — Ela enrosca o braço no meu pescoço e
sorri.
Estamos no jardim de Dafne, aproveitando o sol matutino, depois de
termos tomado café e anunciado nosso noivado para minha família.
— Eu sei, e é por isso que venho sempre para cá com você.
— Vamos nos casar — diz, alegre. — Eu nem acredito que vamos nos
casar!
— Como não acredita? Estamos juntos há mais de três anos, Kira! Te
disse inúmeras vezes que você é o amor da minha vida.
— Nunca imaginei que você realmente iria me pedir em casamento.
— Sorri, se divertindo.
— Achou que eu faria o quê? Você deveria me levar mais a sério,
Moretti.
— Não fica bravo, limãozinho. Estou brincando com você.
— Está me irritando.
— É o que eu faço de melhor.
— Não posso discordar.
— One Direction não se uniu, mas pelo menos tenho um noivo. —
Beija minha bochecha.
— Ainda me irritando. Sou um prêmio de consolação por acaso?
— Meu melhor prêmio. — Beija a outra bochecha.
— Me entrego por inteiro e, no fim, é isso que eu recebo? Desprezo?
— Não estou te desprezando, dramático. Você se enraivece muito
facilmente. — Ela ri.
— Você me tira do sério facilmente.
— E ainda assim você colocou isso aqui no meu dedo. — Ergue a
aliança.
— Sim, porque eu amo você.
— Também amo você, limãozinho.
E então me beija, dissipando toda irritação causada por ela mesma.
Assim serão nossos dias daqui para frente até a eternidade. Porque
nada faria tanto sentido do que ter Kira me irritando e me fazendo amá-la
por isso.
Nada faz tanto sentido do que acordar todos os dias ao lado da pessoa
que me fez acreditar que o amor é para todos. Que o amor é para mim.
Eu só precisava encontrá-lo. Nela eu encontrei. E para sempre
encontrarei.
A minha maior alegria ao escrever esses agradecimentos é saber que
tenho muito mais gente para expressar minha gratidão do que tive em
Vinhos e Vinagre. De lá para cá eu criei amizades que espero levar para a
vida e que foram essenciais para que esse livro virasse realidade.
Mas antes de agradecer a esses seres iluminados, quero dizer muito
obrigada a você, leitor de Dante e Aisha, que me abriu os olhos para aquilo
que era uma verdade incontestável: Kira tinha uma história para contar. E
tudo que eu precisava era abrir meu coração e atentar meus ouvidos para o
que ela tinha a dizer.
Agora deixo aqui os agradecimentos às pessoas que o mundo literário
colocou na minha vida, que me ajudaram a seguir em frente e me
impediram de desistir a cada surto que eu pensava em jogar tudo para o alto
e desistir.
À Maria Eduarda e à Larissa, minhas duas primeiras betas da vida.
Duda, a primeira pessoa que enxergou tudo que Aisha e Dante tinham
a contar e se entregou e se apaixonou por eles. E desde então tem estado
presente nos meus dias, mesmo que sua aparição seja como a de um
cometa, que nos concede a graça da sua visita apenas de tempos em tempos.
Lari, minha swifiter e fã de hóquei que ainda me fará escrever um
livro com a temática. Obrigada por me fazer rir, por compartilhar suas fics e
por me permitir compartilhar minhas loucuras e surtos com você. E
obrigada pela capa perfeita, que me faz suspirar sempre que eu a vejo e
pelos posts mais incríveis.
À Lele, minha “esposa”. Ainda bem que insisti com você para que
viesse até mim comentar sobre Aisha e Dante. Sou eternamente grata a você
por ter me ouvido, e sou eternamente grata por tudo que compartilhamos e
criamos desde então. Eu abraço sua sensibilidade e me vejo nela. Eu admiro
demais você e a amizade que temos cultivado.
À Vitória, minha assessora. Você me deu uns bons sacolejos e me
trouxe à realidade sempre que precisei. À sua maneira, claro (uma maneira
nada sutil, mas necessária). Já disse e repito: você é uma das poucas
geminianas que eu adoro, e isso é muito difícil de acontecer (isso não é um
hate a geminianos. Ou talvez seja, e você, geminiano, pode me cancelar por
isso).
À Aurorinha. Nós entramos juntas nessa loucura, publicamos nossos
primeiros livros no mesmo dia e essa está longe de ser a única sincronia
entre nós duas. Nos entendemos e dividimos as mesmas dores e também as
mesmas alegrias. Sentimos juntas toda a montanha-russa de sentimentos
que colocar nosso livro no mundo traz. Obrigada, minha beta.
Agradeço ao meu irmão, psicólogo de formação, e também à minha
terapeuta, que me ajudaram e deram o suporte necessário para que eu
pudesse construir esses dois estudantes de psicologia que eu amo de todo
meu coração.
E mais uma vez, agradeço às vozes da minha cabeça por nunca se
calarem. Nunca mesmo. Até quando eu estou cheia de sono e quero dormir,
vocês continuam falando sem parar. Vocês fazem com que eu pareça uma
louca no meio da rua, quando paro para conversar com vocês.
Muito obrigada a todos e todas. De todo meu coração!
SÉRIE VINÍCOLA CAMPELLO
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Aisha costuma dizer que a vida dela é feita de reviravoltas e


surpresas. Mas uma coisa é certa: nessas voltas que o mundo da ruiva deu,
parar na Itália, ganhar uma família e cultivar uma amizade inabalável com o
charmoso Dante Moretti é algo que ela escolheria viver mil vezes.
Já Dante gostaria que a vida dele desse apenas uma guinada, e que
nessa guinada, a melhor amiga de olhos bicolores se abrisse para todo o
amor que ele tem para oferecer. Mas enquanto esse acontecimento parece
ser apenas um sonho distante, a pergunta que o agrônomo não cansa de se
fazer é: vale mesmo a pena arriscar uma amizade tão bem construída para
lutar por um amor que parece cada dia mais impossível?

[1]
Vá se foder.
[2]
Boa noite.
[3]
Vamos.
[4]
Merda!
[5]
Coquetel habitualmente consumido na Itália, feito com prosecco, água com gás e
Aperal.
[6]
Ah, qual é?!
[7]
Refere-se à princesa de gelo da animação Frozen.
[8]
Papai.
[9]
Avó.
[10]
Pulga, em italiano.
[11]
Oi.
[12]
Irmã.
[13]
Filha.
[14]
Filme de animação do estúdio de animações Pixar.
[15]
Sequência de jogadas do jogo de vôlei, que começa no saque e termina quando o ponto é
feito.
[16]
Set de desempate disputado quando as duas equipes vencem dois sets.
[17]
Personagem do filme O Grinch, conhecido por ser rabugento.
[18]
Espera...
[19]
Nesse sentido, “escuta”.
[20]
Deus.
[21]
Obrigado.
[22]
Nada.
[23]
Irmão .
[24]
Bem...
[25]
Eu?
[26]
Vamos, pulga.
[27]
Oi, prazer em conhecer.
[28]
Por favor.
[29]
Estou fora de mim, mas sou diferente deles
E você está fora de si, mas é diferente deles.
[30]
As pessoas falam, infelizmente
Falam, não sabem sobre o que falam
Me leve até onde eu flutue
Pois aqui me falta ar.
[31]
Nós somos diferentes deles.
[32]
A maioria das graduações na Itália dura três anos.
[33]
Idiota.
[34]
Pergaminho. Na Itália, quando se forma, existe uma tradição em que os amigos do formando
escrevem um poema em forma de trava-língua em um pergaminho e o formando tem que ler em voz
alta sem errar. Para cada erro, ele deve beber e recomeçar a leitura.
[35]
Diferente do Brasil, na Itália são os formandos que recebem um “trote”. Pode ser algo como
andar fantasiado pelas ruas, ter fotos espalhadas pela cidade ou jogam tinta e farinha no formando.
[36]
Garoto.

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