Artigo-Fim-Estética Da Recepção

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O DIÁLOGO ENTRE BRÁS CUBAS E O LEITOR

Silvia Carla da Silva Neves


FACULDADE SABERES
silviacn2010@gmail.com

Resumo: No campo das pesquisas sobre a leitura, o panorama das principais


orientações centram-se no leitor. Este trabalho está embasado na teoria da Estética
da Recepção postulada por Jauss, linha teórica que considera o leitor um elo vital
para qualquer trabalho crítico, e faz um breve estudo da relação dialógica entre o
leitor e o narrador em Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis.

Palavras-chave: Leitor. Diálogo; Memórias Póstumas de Brás Cubas; Estética da


Recepção

INTRODUÇÃO

O estilo machadiano é marcado pela elegância, correção, equilíbrio e clareza de sua


linguagem incorporados “à narrativa problematizante, o realismo cômico-fantático e
a forma livre própria da sátira menipeia e da carnavalização literária, trazendo
consigo o humor disparatado, a ironia, a digressão, a polifonia, a paródia, o leitor
incluso,...” (STAUT, 1999).

Desse modo, a cosmovisão do autor não se encontra somente nos recursos


gramaticais, mas também nas estratégias retóricas, entendidas como arte de
nomear para persuadir.

O leitor Machadiano deve estar sempre preparado para um espetáculo em que ele
próprio atua, pois Machado de Assis escreveu para leitores ativos que viessem
reflitir sobre a narração sem passividade para que possam tirar suas próprias
conclusões. Em Esaú e Jacó, Machado apresenta o tipo de leitor que almeja: “O
leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por
eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava,
ou parecia estar escondida” (ASSIS, 1987, p. 127).
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O leitor machadiano é alvo escolhido conscientemente no processo de elaboração


da escrita e não é apenas solicitado a decodificar a mensagem. Esse leitor é
constantemente interpelado pelo narrador que busca a segurança de um interlocutor
com o qual possa estabelecer um diálogo.

Este trabalho pretende apresentar como se dá o diálogo entre narrador e leitor de


Memórias póstumas de Brás Cubas e segue orientações dos estudos de Zilberman
(1989), Staut (1999) e Schwarz (1990) sobre Estética da Recepção e estudo crítico de
Memórias Póstumas de Brás Cubas e Machado de Assis.

Jauss e a Estética da Recepção

A Estética da Recepção surgiu nos anos 1960, na Alemanha Ocidental num período
marcado por revoltas estudantis e reforma nas universidades e está associada
sobretudo ao nome de Hans-Robert Jauss.

Por não compartilhar com orientações que não realizavam seus estudos com base
na convergência entre o aspecto histórico e o estético, Jauss retoma a problemática
da história da literatura. O desencontro do histórico com o estético resulta em
pesquisas que se preocupam somente com as obras e seus autores,
desconsiderando o leitor, que recebeu de Jauss a designação de o Terceiro Estado,
“seguidamente marginalizado, porém não menos importante, já que é condição da
vitalidade da literatura enquanto instituição social” (ZILBERMAN, 1989, p. 11)

Desse modo, Jauss também é contrário às correntes teóricas marxistas, uma vez
que essas apresentam a literatura apenas como reflexo social.

O objetivo de Jauss é propor uma história da arte que possa incluir a perspectiva do
Escritor , bem como a do leitor, e sua interação mútua. Zilberman esclarece que
“apenas esse enfoque tem meios de superar a abordagem exclusivamente mimética,
ao considerar dialeticamente a função da arte, ao mesmo tempo formadora e
modificadora da percepção” (ZILBERMAN, 1989: 32).
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Jauss apresenta os fundamentos de sua teoria sobre a recepção a partir de sete


teses; segundo Zilberman (1989), as quatro primeiras têm características de
premissa e as três últimas apontam para a ação.

A primeira tese formulada diz respeito à historicidade da literatura, que se relaciona


ao diálogo estabelecido entre a obra e o leitor, assim “a relação dialógica entre o
leitor e o texto [...] é fato primordial da literatura, e não o rol elaborado depois de
concluídos os eventos artísticos de um período” (ZILBERMAN, 1989, p. 33). Assim,
a historicidade coincide com a atualização da obra literária.

A segunda tese consiste na afirmação de que o saber prévio de um público, ou o


seu horizonte de expectativas, determina a recepção, e a disposição desse público
está acima da compreensão subjetiva do leitor. A recepção é um fato social e
histórico, pois as reações individuais são parte de uma leitura ampla do grupo ao
qual o homem, em sua historicidade, está inserido e que assemelha a sua leitura a
de outros indivíduos que vivem na mesma época.

O conceito de horizonte de expectativas abrange o limite do que é visível e pode


sofrer alterações conforme as perspectivas do leitor. O horizonte é responsável pela
primeira reação do leitor à obra, pois encontra-se na consciência individual como um
saber construído socialmente e de acordo com o código de normas estéticas e
ideológicas de uma época.

A terceira tese postula que o texto pode satisfazer o horizonte de expectativas do


leitor ou provocar o estranhamento e o rompimento desse horizonte, levando-o a
uma nova percepção da realidade. Como o horizonte varia no decorrer do tempo,
uma obra que surpreendeu pela novidade, pode tornar-se comum e sem atrativos
para futuros leitores; segundo Zilberman (1989), é por isso que Jauss considera uma
grande obra aquela que consegue provocar o leitor de todas as épocas, permitindo
novas leituras em momentos históricos diversos.

A quarta tese consiste no exame das relações atuais do texto com a época de sua
publicação, averiguando qual era o horizonte de expectativas do leitor naquele
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momento e quais as necessidades desse período foram atendidas pela obra. Por
meio da releitura e do diálogo com a época anterior, a história da literatura recupera
a historicidade do texto literário.

As três últimas teses apresentam uma metodologia, por meio da qual, Jauss prevê o
estudo da obra literária; qual sejam, os aspectos diacrônico, sincrônico e
relacionados com a literatura e a vida. O aspecto diacrônico, exemplificado na quinta
tese, diz respeito à recepção da obra literária ao longo do tempo, e deve ser
analisado, não apenas no momento da leitura, mas no diálogo com as leituras
anteriores. Esse pressuposto demonstra que o valor de uma obra literária
transcende à época de sua aparição e o novo não é apenas uma categoria estética,
mas histórica, conduzindo à análise. A contemplação diacrônica somente alcança a
dimensão verdadeiramente histórica quando não deixa de considerar a relação da
obra com o contexto literário no qual ela, ao lado de outras obras de outros gêneros,
teve de se impor.

A partir do aspecto sincrônico, abordado na sexta tese, a história da literatura


procura um ponto de articulação entre as obras produzidas na mesma época e que
provocaram rupturas e novos rumos na literatura. A última tese, contrapondo-se à
posição marxista que entende a literatura como reflexo da sociedade, trata das
relações entre literatura e sociedade.

O diálogo entre narrador e leitor em Memórias Póstumas de Brás


Cubas

Dominado pela estridência, vários artifícios e a vontade de chamar atenção, o


começo de Memórias Póstumas de Brás Cubas apresenta um tom abusivo e ao
mesmo tempo utiliza uma sintaxe rebuscada, um narrador que, apesar de não ter
credibilidade, apresenta-se culto ao produzir um jogo intertextual em que
predominam as construções antitéticas. Segundo Schwarz (1997),

Paradoxalmente, o artifício retórico e a insinceridade ostensiva fazem


efeito de nudez, a mais indiscreta, pelo desejo que relevam de
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manipular as aparências. [...] Em lugar da convenção de veracidade,


que as infrações do narrador a todo momento impedem de se formar,
cria-se entre autor e leitor um relação de facto , uma luta pela fixação
do sentido e também pela rotulação recíproca ─ que espécie de
manhoso é esse narrador? Que espécie de infeliz é este leitor? ─ em
que um procura rebaixar o outro. Assim, a representação flui
francamente no elemento da vontade, ou melhor, do arbítrio, e a
objetividade é no máximo uma aparência de que Brás ocasionalmente
gosta de se valer. (SCHWARZ, 1997, p. 23)

Assim, desde o início de Memórias Póstumas, fica claro que o leitor é de vital
importância para a obra. O diálogo que se estabelece entre narrador e leitor ocorre
logo no início da obra. Antecedendo a narração, o narrador constrói um prólogo a
um leitor que supostamente não seja nem “grave”, nem “frívolo”, e que possa
responder ao apelo do texto, evidenciando a importância desse leitor quando o
coloca em destaque na narrativa. O narrador dirige-se ao “fino leitor” esclarecendo-
lhe o método utilizado na construção de sua escrita, alertando para a importância de
uma nova leitura coerente com a sua condição de “defunto autor”.

Esse diálogo se dá por meio de formas amigáveis, zombeteiras, irônicas e até


mesmo agressivas: “A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me
da tarefa; se não te agradar, pago-te com um piparote, e adeus.” (ASSIS, 2004, p.
11). Vale ressaltar que as palavras utilizadas nas obras machadianas não são
ingênuas. Segundo Schwarz (1997), nos romances machadianos, não há frase que
não tenha segunda intenção ou propósito espirituoso.

Assim, o leitor não é um elemento implícito, não é somente e expectador da história


de Brás Cubas. É um elemento ativo que vive como um personagem da obra e vive
ao lado de outras personagens “uma existência de carnaval” (STAUT, 1999).

O leitor de Brás Cubas, contudo, não deve ser visto somente como personagem. Ele
também é provocado a participar no processo de elaboração da narrativa, conforme
o trecho a seguir:
E vejam agora com que destreza, com que arte faço eu a maior
transição deste livro. Vejam: o meu delírio começou em presença de
Virgília; Virgília foi o meu grão pecado da juventude; não há juventude
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sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui como


chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que
nasci. Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção
pausada do leitor: nada.” (ASSIS, 2004, p. 28)

O narrador de Memórias Póstumas, apresenta-se ao leitor de maneira representativa


do empenho do escritor em colocar o leitor numa posição ativa, o que é pertinente
ao movimento da Estética da Recepção, pois admite o leitor no lugar de um dos
fatores determinantes do sistema literário. Dessa forma, pode-se dizer que Machado
de Assis tratou da estética da recepção em sua obra, mesmo que esse segmento
dos estudos literários viesse a ser teorizado somente na segunda metade do século
XX.

Na conversação entre narrador e leitor, um dos recursos machadianos é o emprego


do vocativo para dialogar com o leitor fazendo deste um participante ativo. Quando o
narrador pede para o leitor prestar atenção em tal ponto está na verdade,
encaminhando-o para outro bem diferente. Esse aspecto dialoga com a terceira tese
formulada por Jauss que postula a satisfação do horizonte expectativas ou o
estranhamento. Segundo Staut (1999), aí está a maestria de Machado de Assis e
sua relação constante com o leitor.

Para exemplificar o que foi dito anteriormente, tome-se as relações amorosas de


Brás Cubas em que o leitor percebe a princípio um grande interesse do narrador que
se desinteressa sem muitas explicações pelas mulheres que passaram por sua vida:
a paixão por Marcela parecia que iria enlouquecer Brás Cubas que, no entanto, a
trocou pelos sonhos de ascensão antes mesmo de desembarcar na Europa onde foi
estudar; Eugênia, depois de cortejada, foi abandonada à sua deformação de modo
cruel tanto para ela quanto para o leitor que nesse momento possivelmente estaria
chorando com a má sorte da menina sendo chamado de “alma sensível” : “Não
havia ali a atmosfera somente da águia e do beija-flor; havia também a da lesma e a
do sapo. Retira, pois, a expressão, alma sensível, castiga os nervos, limpa os
óculos, ─ que ás vezes é dos óculos, ─ e acabemos de uma vez com esta flor da
moita” (ASSIS, 2004, P. 34).
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Percebe-se claramente o exercício da volubilidade do narrador que, para Schwarz


(1997), é o princípio formal de Memórias Póstumas uma vez que Brás Cubas “não
permanece igual a si mesmo por mais de um curto parágrafo, ou melhor, muda de
assunto, de opinião ou estilo quase que a cada frase.” (Schwarz, 1997, p. 29).

Memórias Póstumas de Brás Cubas foi publicada há mais de cem anos e realiza um
diálogo que sobrevive até hoje e sustenta o interrogativo, o que garante sua
permanência e sua vitalidade.

Em uma profunda pesquisa realizada com o intuito de compreender em que medida


a obra dialoga com os leitores de seu tempo e de outros tempos, Cardoso (2008),
tenta mostrar que os diferentes olhares sobre uma obra literária, ainda que advindos
de épocas e cenários distintos e sustentados em tendências teóricas as mais
ecléticas, “não respondem por inteiro às perguntas formuladas pelo autor e, por sua
vez, também ‘deliram’ diante de tantos enigmas. Resta sempre um resíduo, deixado
em cada geração, que se adere a outros sentidos que se desdobram, se confrontam,
se completam ou se negam, impulsionando autor e leitor a velarem pela
permanência da obra. (CORDEIRO, 2008, p. 125)

De acordo com as premissas da estética da recepção, a forma literária adotada por


Machado em Memórias Póstumas, é capaz de provocar uma nova percepção das
coisas, um abalo de valores, um confronto com o vazio e um trabalho de dimensão
ética, especialmente considerando que o leitor é convocado a se implicar na leitura e
tirar conclusões coerentes, já que não é possível fantasiar a partir de uma escrita de
estrutura errante como a da obra em questão.
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REFERÊNCIAS

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Coleção
Clássicos da Literatura: Editorial Sol90, Espanha, Barcelona, 2004.

_______. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Globo, 1987.

CORDEIRO, Verbena Maria Rocha. Memórias Póstumas de Brás Cubas: Trilhas


de leitura. Revista Signo. Santa Cruz do Sul. 33. Número especial, p. 121-127,
julho, 2008.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis.


3ª. Ed. São Paulo:Editora 34, 1997.

STAUT, Lea Mara Valezi. Machado de Assis e o leitor ruminante. 1999.


Disponível em http:// WWW. Faficp.br/graduação/c_letras/massis/textos/palestra-
leitorruminate.htm – Acessado em 18/07/2012.

ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo:


Ática, 1989.

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