O Leitor
O Leitor
O Leitor
0 LEITOR
Depois de “O que é a literatura?”, “Quem fala?”, e “Sobre
quê?”, a pergunta “Para quem?” parece inevitável. Depois da
literatura, do autor e do m undo, o elemento literário a ser
examinado com maior urgência é o leitor. O crítico do roman
tismo M. H. Abrams descrevia a comunicação literária partindo
do modelo elementar de um triângulo, cujo centro de gravidade
era ocupado pela obra, e cujos três ápices correspondiam
ao m undo, ao autor e ao leitor. A abordagem objetiva, ou
formal, da literatura se interessa pela obra; a abordagem
expressiva, pelo artista; a abordagem mimética, pelo mundo;
e a abordagem pragmática, enfim, pelo público, pela audiência,
pelos leitores. Os estudos literários dedicam um lugar muito
variável ao leitor, mas, para que se veja com maior clareza,
como acontece com o autor e com o mundo, não é inoportuno
partir novamente dos dois pólos que reúnem as posições
antitéticas: de um lado, as abordagens que ignoram tudo do
leitor, e do outro, as que o valorizam, ou até o colocam em
primeiro plano na literatura, identificam a literatura à sua
leitura. Em relação ao leitor, as teses são tão radicais quanto
em relação à intenção e à referência, e, naturalmente, elas
não são independentes das precedentes. Meu procedimento
consistirá ainda urna vez em opô-las, em criticá-las e procurar
uma saída para essa terceira alternativa em que nos fechamos.
A LEITURA FORA DO JO G O
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ill .1 I li IVii, til« 'Ml .1 .in1, paiadoxos, .r. ambigüidades, às tensões,
1.1 /d u llI do poema um sistema fechado e estável, um monu
mento verbal, de estatuto ontológico tão distanciado de sua
produção e de sua recepção quanto em Mallarmé. Segundo seu
adágio — “Um poema não deve significar, mas ser” — eles
recomendavam a dissecção do poema em laboratório para dele
retirar as virtuosidades de sentido. Os New Critics denunciavam
assim o que eles chamavam de “ilusão afetiva” (affectivefallacy),
.1 seus olhos equivalente da ilusão intencional (intentional
fallacy) da qual era imperioso paralelamente desprender-se.
"A ilusão afetiva, escrevia Wimsatt e Beardsley, é uma confusão
entre o poema e seus resultados (o que ele ée o que ele fa z)."3
Porém, um dos fundadores do New Criticism , o filósofo
I. A. Richards, não ignorava o problema enorme levantado pela
leitura empírica nos estudos literários. Em seus Principles o f
Literary Criticism [Princípios de Crítica Literária] (1924), ele
começava distinguindo comentários técnicos tratando do objeto
literário, comentários críticos tratando da experiência literária
e aprovava essa experiência a partir do modelo criado por
Matthew Arnold e pela crítica vitoriana, fazendo da literatura,
enquanto substituto da religião, o catecismo moral da nova
sociedade democrática. Mas, logo depois, Richards adotou um
ponto de vista decididamente anti-subjetivista, reforçado poste
riormente pelas experiências que tentou com a leitura e que
foram relatadas em Practical Criticism [Crítica Prática] (1929).
Durante anos, Richards pediu a seus alunos de Cambridge
para “comentar livremente”, cle uma semana para outra, alguns
poemas que ele lhes apresentava, sem citar o nome do autor.
Na semana seguinte, ele dava suas aulas sobre tais poemas, ou
melhor, sobre os comentários dos estudantes sobre os poemas.
Richards lhes aconselhava a fazer leituras sucessivas dos textos
dados (em média raramente menos de quatro, e um máximo
de doze) e pedia que anotassem por escrito suas reações a
cada leitura. Os resultados foram de maneira geral pobres,
até desastrosos (aliás, nós nos perguntamos sobre o tipo de
perversão que levou Richards a continuar sua experiência por
tanto tempo); esses resultados se caracterizavam por uma
determinada quantidade cle traços típicos; imaturidade, arro
gância, falta de cultura, incompreensão, clichês, preconceitos,
sentimentalismo, psicologia popular etc. O conjunto dessas
deficiências tornava-se um obstáculo ao efeito do poema sobre
141
o'. leltoirs Porém, ao lnv<\s 1 1«• iiin ilu li poi um relatlvlsmo
radical, uni ceticismo epistemológlro absoluto cm relação a
leitura, como farão mais tarde, baseados na mesma evidência
dessa troca, os adeptos do primado da recepção (como Stanley
l'lsh, tio qual falaremos mais adiante), Richards manteve, conira
indo e todos, a convicção de que esses obstáculos poderiam
ser eliminados pela educação; esta lhes daria acesso à possi
bilidade de uma compreensão plena e perfeita de um poema,
por assim dizer, in vitro. A má compreensão e o contra-senso,
afirmava Richards, não são acidentes mas, ao contrário, cons-
lituem o curso normal e provável das coisas na leitura de um
poema. A leitura, em geral, fracassa diante do texto: Richards
e um dos raros críticos que ousaram fazer esse diagnóstico
catastrófico. A constatação desse estado de fato não o levou,
no entanto, à renúncia. Ao invés de concluir pela necessidade
de lima hermenêutica que pesquisasse o contra-senso e a má
compreensão, como a de Heidegger e de Gadamer, ele reafirmou
o,s princípios de uma leitura rigorosa que corrigiria os erros
habituais. A poesia pode ser desconcertante, difícil, obscura,
ambígua, mas o problema principal está com o leitor, a quem
e preciso ensinar a ler mais cuidadosamente, a superar suas
limitações individuais e culturais, a “respeitar a liberdade e
a autonomia do poema ”.4 Em outros termos, na opinião de
Richards, essa. experiência prática especialmente interessante,
relacionada com a idiossincrasia e com a anarquia da leitura,
longe de questionar os princípios do New Criticism, ao con
trário, reforçava a necessidade teórica da leitura fechada,
objetiva, descompromissada do leitor.
Para a teoria literária, nascida do estruturalismo e marcada
pela vontade de descrever o funcionamento neutro do texto, o
leitor empírico foi igualmente um intruso. Ao invés de favo
recer a emergência de uma hermenêutica da leitura, a narra-
lologia e a poética, quando chegaram a atribuir um lugar ao
leitor em suas análises, contentaram-se com um leitor abstrato
ou perfeito: limitaram-se a descrever as imposições textuais
objetivas que regulam a performance do leitor concreto, desde
que, evidentemente, ele se conforme com o que o texto espera
dele. O leitor é, então, uma função do texto, como o que
Riffatterre denominava o arquileitor, leitor omnisciente ao qual
nenhum leitor real poderia identificar-se, em virtude de suas
faculdades interpretativas limitadas. Em geral, pode-se dizer
142
qur, para .1 h i h i.i 111 <-1 .111:1 «1.1 incsnia forma quo os lextos
imIiviclliais miii julgados secundários cm relação ao sistema
universal ao qual eles acedem, ou tia mesma forma que a
mimesis é considerada um subproduto da sèmiosis— a leitura
real é negligenciada em proveito de uma teoria da leitura,
isto é, da definição de um leitor competente ou ideal, o leitor
que pede o texto e que se curva à expectativa do texto.
Assim, a desconfiança em relação ao leitor é — ou foi du
rante muito tempo — uma atitude amplamente compartilhada
nos estudos literários, caracterizando tanto o positivismo
quanto o formalismo, tanto o New Criticism quanto o estrutu-
ralismo. O leitor empírico, a má compreensão, as falhas da
leitura, como ruídos e brumas, perturbam todas essas abor
dagens, quer digam respeito ao autor ou ao texto. Daí a ten
tação, em todos esses métodos, de ignorar o leitor ou, quando
reconhecem sua presença, como é o caso cle Richards, a ten
tação de formular sua própria teoria como uma disciplina cla
leitura ou uma leitura ideal, visando remediar as falhas dos
leitores empíricos.
A RESISTÊNCIA DO LEITOR
143
( 1111 r lc l c .1 .11.1 | II i >| >1 l.l M l I l.li, ,l( i, | H M i \ <' 1111 >(< >, .1 S f t l. S a i H O I C S ,
144
,i li'liiu .1 m‘s.1 uni.i ■m rllura, da mcMii.i forma que ;i escritura
ei.i uina leitura, |a que cm O Tampo Rcdescoberto, a cscritura
é descrita como a tradução de um livro interior. E a leitura
como uma nova tradução num outro livro interior. “O dever
c a tarefa de um escritor”, concluía Proust, “são os de um
tradutor”.9 Na tradução, a polaridade escritura e leitura se
/ esvanesce. Em termos saussurianos, dir-se-á que se o texto
se apresenta como uma fala (parole) em relação aos códigos
e às convenções da literatura, ele se oferece também à leitura,
como uma língua (langue), à qual ele associará sua própria
fala. Através do livro, ao mesmo tempo parole e langue, são
duas consciências que se comunicam. Assim, a crítica criadora,
de Albert Thibaudet a Georges Poulet, definirá o gesto crítico
partindo de uma empatia que esposa o movimento da criação.
A hermenêutica fenomenológica (já evocada no Capítulo
II) tem também favorecido o retorno do leitor à cena literária,
associando todo sentido a uma consciência. Em O que É a
Literatura?, Sartre vulgarizava a versão fenomenológica do
papel do leitor nestes termos:
145
" In'i iui 'uimu ii 11" i' drllnldo 11 iitu i um i i >n|iinl<> (Ir enigmas (|iic
compeli 1 :io leltoi desvendar, niniii Iíiz um caçadoi ou um
detetive, através de um trabalho com os indíces. listes s:u >
desalios, pequenas sacudidelas de sentido. Sem esse trabalho
o livro fica inerte. Mas Barthes persiste em abordar a leitura
pelo lado do texto, concebido como um programa (o código
hermenêutico) ao qual o leitor é submetido. Ora, a questão
central de toda reflexão sobre a leitura literária que queira
alastar-se da alternativa subjetivismo e objetivismo, ou impres
sionismo e positivismo, questão, aliás, bem colocada pela
discussão entre Proust e Lanson, é a da liberdade concedida
ao leitor pelo texto. Na leitura como interação dialética entre
o texto e o leitor, como descreve a fenomenologia, qual seria
a parte de restrição imposta pelo texto? E qual é a parte de
liberdade conquistada pelo leitor? Em que medida a leitura é
programada pelo texto, como pensava Riffatterre? E em que
medida o leitor pode, ou deve, preencher as lacunas do texto a
lim de ler, no texto atual, em filigrana, os outros textos virtuais?
Muitas questões são levantadas a respeito cla leitura, mas
todas elas remetem ao problema crucial do jogo da liberdade
e da imposição. Que faz do texto o leitor quando lê? E o que
c que o texto lhe faz? A leitura é ativa ou passiva? Mais ativa
que passiva? Ou mais passiva que ativa? Ela se desenvolve
como uma conversa em que os interlocutores teriam a possi
bilidade de corrigir o tiro? O modelo habitual da dialética é
satisfatório? O leitor deve ser concebido como um conjunto
de reações individuais ou, ao contrário, como a atualização
de uma competência coletiva? A imagem de um leitor em
liberdade vigiada, controlado pelo texto, seria a melhor?
Antes de analisar o retorno do leitor ao centro dos estudos
literários, falta, entretanto, elucidar o termo recepção, com
o qual muitas vezes a pesquisa sobre a leitura se disfarça
atualmente.
RECEPÇÃO E INFLUÊNCIA
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oh»'(T ilda d a s in 1111(• 11( i.is". S o b tvs.se a sp e c to , n a tu ra lm e n te
sem p re o da p r o d u t o da literatura, c o m a m e d ia ç ã o d o au to r
uma influência tornava-se uma fonte — levava-se em consi
deração a recepção, não sob a forma de leitura, mas, ao contrário,
sob u forma de uma obra que dava origem à escritura de outras
obras. Os leitores, na maioria das vezes, só eram levados em
/ consideração quando se tornavam outros autores, através da
noção de “destino de um escritor”, um destino essencial
mente literário. Na França, foi esse o ponto de partida da
literatura comparada, com a produção de grandes teses, como a
de Fernand Baldensperger, Goethe na França (1904). Sobre este
tema não há limites às variações. Em muitas edições comen
tadas, encontra-se uma seção sobre os “Julgamentos Contem
porâneos” e uma outra sobre a “Influência” da obra, presente
até nos libretos de ópera e roteiros de filme extraídos dela.
Conseqüentemente, mede-se o destino de uma obra pela sua
influência sobre as obras posteriores, não pela leitura dos
que a amam.
Naturalmente, há também exceções: o grande artigo de
Lanson para o centenário das Meditações, de Lamartine, em
1 9 2 1 , é uma preciosa pesquisa sociológica e histórica sobre
a difusão de uma obra literária. E Lanson sonhava com uma
história total do livro e da leitura na França. Entretanto,
como veremos no Capítulo VI, são os historiadores da escola
dos A nais que se entregaram recentemente à execução desse
programa. Graças a eles, a leitura passou a ocupar realmente
o primeiro plano dos trabalhos históricos, mas enquanto
instituição social. Com o nome de estudos da recepção, não
se pensou, contudo, nem na tradicional atenção da história
literária aos problemas de destino e de influência, nem ao
setor da nova história social e cultural consagrada à difusão
do livro, mas na análise mais restrita da leitura como reação
individual ou coletiva ao texto literário.
O LEITOR IMPLÍCITO
147
pois .1 |>.i i \:1c>do livro c* 1.11111te-111 i aç;lo de lo Io, A :i n.11isc• d.i
ircrpçao visa ao eleito produzido no leitor, individual ou
roleiivo, e sua resposta — Whiuiny,, em alemão, response, em
inglês ao texto considerado como rstímulo. Os trabalhos
drsse gênero se repartem em duas grandes categorias: por
um lado, os que dizem respeito ã fenomenologia do ato indivi
dual dr leitura (originalmente em Roman Ingarden, depois em
Wolfgang Iser), por outro lado, aqueles que se interessam
pela hermenêutica da resposta pública ao texto (em Gadamer
e particularmente Hans Robert Jauss).
O ponto de partida comum dessas categorias remonta à
fenomenologia como reconhecimento do papel da consciência
na leitura: “O objeto literário” — escrevia Sartre — “é um
estranho pião que só existe em movimento. Para fazê-lo surgir
é preciso um ato concreto que se chama leitura e ele só dura
enquanto essa leitura puder durar.”12 Enquanto tradicional
mente o objeto literário era concebido no espaço como um
volume, pelo menos desde a imprensa e a força do modelo
do livro (em suas Divagações, Mallarmé opõe sistematicamente
volume e interioridade do livro ã superfície e à exposição do
jornal), a fenomenologia insistiu sobre o tempo de ler. Os
estudos da recepção se proclamam filhos de Roman Ingarden,
fundador da estética fenomenológica no entreguerras, que
via no texto uma estrutura potencial concretizada pelo leitor,
na leitura, um processo que põe o texto em relação com normas
e valores extra-literários, por intermédio dos quais o leitor
dá sentido à sua experiência do texto. Encontra-se neste caso a
noção de pré-compreensão como condição preliminar, indis
pensável a toda compreensão, que é uma outra maneira de
dizer, como Proust, que não há leitura inocente, ou transpa
rente: o leitor vai para o texto com suas próprias normas e
valores. Mas Ingarden, como filósofo, descrevia o fenômeno
da leitura bem abstratamente, sem dizer de maneira exata a
latitude que o texto deixa ao leitor para preencher suas lacunas
— por exemplo, a ausência de descrição de Manon — a partir
de suas próprias normas, nem o controle que o texto exerce
sobre a maneira como é lido, questões que logo se tornarão
cruciais. Em todo caso, as normas e valores do leitor são
modificados pela experiência da leitura. Quando lemos, nossa
expectativa é função do que nós já lemos — não somente no
texto que lemos, mas em outros textos — , e os acontecimentos
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Imprevistos <|iic encontramos no decorrer de nossa leitura
obrigam nos .1 reformular nossas expectativas e a reinter-
prelar o que ja lemos, tudo que já lemos até aqui neste texto
e em outros. A leitura procede, pois, em duas direções ao
mesmo tempo, para frente e para trás, sendo que um critério
de coerência existe no princípio da pesquisa do sentido e das
/revisões contínuas pelas quais a leitura garante uma signifi
cação totalizante à nossa experiência. ^
Iser, em Le Lecteur Im plicite[O Leitor Implícito] (1972) e em
L’Acte de Lecture [O Ato de Leitura] (1976), retomou esse mo
delo para analisar o processo cla leitura: “Efeitos e respostas”,
escreve ele, “não são propriedades nem do texto nem do leitor;
o texto representa um efeito potencial que é realizado no
processo da leitura ”.13 Pode-se dizer que o texto é um dispo
sitivo potencial baseado no qual o leitor, por sua interação,
constrói um objeto coerente, um todo. Segundo Iser,
149
<) M'lllUlo ill Vi Ml ll III ul 11III I ||| lllll.I lllll'l .ll>,ll I I'lllll' 111 S111.11s
11 '\
Itill Is r us ill (is (lo li it111 in tiis.K I iln It'lloi I li 11 ' 11 ■ii li.Iii
|iutli' desprendei so do.ssii Ini■ i.k.ih; an contrário, .1 atividade
osiliiuiliida 110I0 o llgaril necessariamente an toxto o o indu/irá
a i riar a.s condições nocossarlas à eficácia desse texio. Como
o texto e o Icitor so fundem assim numa única situação, a
divisão entre sujeito e objeto não funciona mais; segue-se
<|uo o sentido não é mais um objeto a ser definido, mas um
efeito a ser experim entado.15
150
Afiilm ‘ .ti l.i \ iiii . v i» v que i -.11 • livro tom uni.i máo
branca, vni <• 11111 '.i' acomoda numa poltrona macia, dizendo:
Talvez Isln vá me divertir. Depois de ter lido os infortúnios
secretos do rclbo Cioriot, você jantará com apetite, debitando
sua insensibilidade na conta do autor, taxando-o de exage
rado, acusando-o de poeta. Ah! saiba disso: este drama não é
nem uma ficção, nem um romance. AIl is true, ele é tão verda
deiro que cada um de seus elementos pode ser reconhecido
em você, em seu coração talvez.
151
Mascado no Iclloi implfcllti, h .1111 (hl leitura ci insiste cm
concretizar a visaii esquemática du tcxlo, Islo c, cm linguagem
comum, a imaginar os personagens c os aconlccimentos, a
preencher as lacunas das narrações e descrições, a construir
uma coerência a partir de elementos dispersos e incompletos.
A leitura se apresenta como uma resolução de enigmas (conforme
aquilo que Barthes chamava de “código hermenêutico”, ou de
modelo cinegético, citado a propósito da mimèsis). Utilizando
a memória, a leitura procede a um arquivamento de índices.
A todo momento, espera-se que ela leve em consideração todas
as informações fornecidas pelo texto até então. Essa tarefa é
programada pelo texto, mas o texto a frustra também, neces
sariamente, pois uma intriga contém sempre falhas irredutíveis,
alternativas sem escolha, e não poderia haver realismo integral.
Km todo texto, existem obstáculos contra os quais a concreti
zação se choca obrigatória e definitivamente.
Para descrever o leitor, Iser recorre não à metáfora do
caçador ou do detetive, mas à do viajante. A leitura, como
expectativa e modificação da expectativa, pelos encontros
imprevistos ao longo do caminho, parece-se com uma viagem
através do texto. O leitor, diz Iser, tem um ponto de vista
móvel, errante, sobre o texto. O texto todo nunca está simulta
neamente presente diante de nossa atenção: como um viajante
num carro, o leitor, a cada instante, só percebe um de seus
aspectos, mas relaciona tudo o que viu, graças à sua memória,
e estabelece um esquema de coerência cuja natureza e confia
bilidade dependem de seu grau de atenção. Mas nunca tem
uma visão total do itinerário. Assim, como em Ingarden, a
leitura caminha ao mesmo tempo para a frente, recolhendo
novos indícios, e para trás, reinterpretanclo todos os índices
arquivados até então.
Enfim, Iser insiste naquilo que ele chama de repertório, isto
é, o conjunto de normas sociais, históricas, culturais trazidas
pelo leitor como bagagem necessária à sua leitura. Mas também
o texto apela para um repertório, põe em jogo um conjunto
de normas. Para que a leitura se realize, um mínimo de inter
seção entre o repertório do leitor real e o repertório do texto,
isto é, o leitor implícito, é indispensável. As convenções que
constituem o repertório são reorganizadas pelo texto, que
desfamiliariza e reforma os pressupostos do leitor sobre a rea
lidade. Toda essa bela descrição deixa, no entanto, pendente
152
inn.I |M'i^iim.i < I >In 111 >’..I ((im o sc c iic o iilia in , .sc drlronlam
p iiilIc .im c n lc o Iclio i Implícito (conccilu;il, fenomenológico)
c os leitores empíricos e históricos? Estes se curvam necessa
riamente its instruções do texto? E, se não se curvam, como
detectar suas transgressões? No horizonte, surge uma interro
gai, ao difícil: a leitura real poderia constituir um objeto teórico?
/
A OBRA ABERTA
153
numa descrição total, eclctli.i d.t leitura. T.mlnentemrnle
dialética, guiada por uma preocupação de equilíbrio prudente,
a leitura faz parte da estrutura do texto e tia interpretação tio
leitor, da indeterminação relativa e tia participação controlada
(da imposição e da liberdade). O leitor de Iser é um espírito
aberto, liberal, generoso, disposto a fazer o jogo do texto. No
fundo, é ainda um leitor ideal: extremamente parecido com
um crítico culto, familiarizado com os clássicos, mas curioso
em relação aos modernos. A experiência descrita por Iser é
essencialmente a de um leitor culto, colocado diante dos
textos narrativos pertencentes à tradição realista e principal
mente ao modernismo. Na verdade, é a prática dos romances
do século XX, que, aliás, retomam certas liberdades correntes
no século XVIII, é a experiência de seus enredos frouxos e de
seus personagens sem consistência, talvez mesmo sem nome,
que permite analisar, retrospectivamente, a leitura (normal)
dos romances do século XIX e das narrativas em geral. A
hipótese implícita é que, diante de um romance moderno,
cabe ao leitor informado fornecer, com a ajuda de sua memória
literária, algo com que transformar um esquema narrativo
incompleto numa obra tradicional, num romance realista ou
naturalista virtual. Secundariamente, a norma de leitura pressu
posta por Iser é, assim, o romance realista do século XIX,
como um paradigma do qual toda leitura proviria. Mas que
dizer do leitor que não recebeu essa iniciação tradicional
ao romance, para quem a norma seria, por exemplo, o novo
romance? Ou, então, o romance contemporâneo, às vezes quali
ficado de pós-moderno, fragmentário e desestruturado? Seu
comportamento seria ainda regulado por uma busca de coe
rência baseada no modelo do romance realista?
Iser estende, enfim, a noção de desfamiliarização, oriunda
do formalismo, às normas sociais e históricas. Enquanto os
formalistas visavam sobretudo à poesia, que alterava princi
palmente a tradição literária, Iser, pensando no romance
moderno mais do que na poesia, relaciona o valor da expe
riência estética com as mudanças que ela acarreta nos pressu
postos do leitor sobre a realidade. Mas, então — uma outra
restrição — essa teoria não sabe o que fazer das práticas de
leitura que ignoram as imposições históricas que pesam sobre
o sentido, que abordam, por exemplo, a literatura como um
só conjunto sincrônico e monumental, à maneira dos clássicos.
154
A Inn,,.I de (pirn I 111 ,i Iii<*i p;uvs distintos, sincronia c diacronia,
Irnomrnologla I- lormallsmo, cone si- o risco de sc estar de
lodos os l.ulos, pelo monos tanto do lado dos antigos quanto
do lado dos pós-modernos.
Mas a objeção mais séria já formulada contra essa teoria
da leitura consistiu em criticá-la por dissimular seu traclicio-
/ nalismo modernista, por suas referências ecumênicas. Ela
confere ao leitor um papel (já que se aceitou desempenhá-lo)
,u> mesmo tempo livre e imposto, e essa reconciliação do
texto com o leitor, deixando de lado o autor, parece evitar
os obstáculos habituais da teoria literária, principalmente o
binarismo e as antíteses exarcebadas. Como em toda busca
pelo meio-termo, no entanto, não se deixou de criticar sua
abordagem conservadora. A liberdade concedida ao leitor está
na verdade restrita aos pontos de indeterminação do texto,
entre os lugares plenos que o autor determinou. Assim, o
autor continua, apesar da aparência, dono efetivo do jogo:
ele continua a determinar o que é determinado e o que não o é.
Essa estética da recepção, apresentada como um avanço da
teoria literária, poderia bem não ter sido, afinal cle contas,
mais que uma tentativa para salvar o autor, conferindo-lhe
uma embalagem nova. O crítico britânico Frank Kermode não
se enganava a esse respeito. Ele afirmava que, com a estética
da recepção cle Iser, a teoria literária havia enfim se encon
trado com o senso comum ( literary theory has now caught up
untb common sense).19 Todo mundo sabe, lembrava Kermode,
cjue os leitores competentes lêem os mesmos textos de modo
diferente dos outros leitores, mais a fundo, mais sistematica
mente, e isso basta para provar que um texto não está plena
mente determinado. Aliás, os professores dão as melhores
notas aos estudantes que se afastam mais — sem, no entanto,
fazer contra-sensos ou cair no absurdo — da leitura “normal” de
um texto, aquela que fazia parte do repertório até então. No
fundo, a estética da recepção não diz nada mais do que diria
uma observação empírica, atenta, cla leitura, e ela poderia
bem não ser senão uma formalização do senso comum, o que,
afinal de contas, já não seria tão mal. Para Kermode, isso era um
elogio, mas há elogios comprometedores, que não fazem falta.
Os partidários de uma maior liberdade do leitor criticaram,
pois, a estética da recepção por voltar sub-repticiamente ao
155
.Hiloi I I it u i > I ii it 11 i . i , o u I I m u I i n .1 11 ii 1.1 1 1l i e i l i ' I i n i ' . i s . l i i M s i l r
jo g o in I lo x lo , e a.ssim ,s;ii IIIii .ii I in ii 1.1 pt'la opinião corrente.
Ncsse aspedo, Iscr loi atacad<i cm particular por Stanley Fish,
<|Uc lamentou (|iic a pluralidade tie scntitlo reconhecida no
le x lo não seja infinita ou ainda que a obra não esteja real
mente aberta, mas simplesmente entreaberta. A posição mode
rada tie Iser, sem duvida conforme ao senso comum, que
reconhece que as leituras podem ser diversas (como negar a
evidência?), mas que identifica imposições no texto, não tem
certamente a radicalidade da tese de Umberto Eco, para quem
toda a obra de arte é aberta a um leque ilimitado de leituras
possíveis, ou ainda da tese de Michel Charles para quem a
obra atual não tem maior peso do que a infinidade das obras
virtuais que sua leitura sugere.
156
( ) ( . I NI U< ) ( < )M< ) M( )l )l l.( ) I >1 I.I .n IIKA
157
i li VlM.I 1 1,1 11 i i | H .u ), I u " , 1c < i .< i III ,lt >i lc< > I V M M Hl ,se ( 1 1 1 1 ' e l e
.u icd ll a vil n.i ,’.i 11 IsU•i h i.i do gPnrio, e.vterloi às obras, cm
ia/.ào desta declaração: "Como Iodas .i.s coisas dcssc mundo,
eles mio nascem senão para monei Mas tratava se de uma
imagem viva. Como crítico, cie adola realmente, sempre, o
ponto de vista da leitura, e o gênero desempenha em suas
análises um papel de mediação entre a obra e o público —
incluindo aí o autor— , como o horizonte de expectativa. Inver
samente, o gênero é o horizonte do desequilíbrio, da distância
produzida por toda grande obra nova: “Tanto por ela própria
quanto por seu contexto, uma obra literária se explica por
aquelas que a precederam e aquelas que a sucederam”, decla
rava Brunetière, em seu verbete “Crítica”, de A Grande E nci
clopédia?' Assim, Brunetière opunha a evolução genérica,
como história da recepção, à retórica (explicar a obra por ela
mesma) e à história literária (explicá-la por seu contexto).
Assim revisto, o gênero torna-se realmente uma categoria legí
tima da recepção.
A concretização que toda leitura realiza é, pois, inseparável
tias imposições de gênero, isto é, as convenções históricas
próprias ao gênero, ao qual o leitor imagina que o texto per
tence, lhe permitem selecionar e limitar, dentre os recursos
oferecidos pelo texto, aqueles que sua leitura atualizará. O
gênero, como código literário, conjunto de normas, de regras
do jogo, informa o leitor sobre a maneira pela qual ele deverá
abordar o texto, assegurando desta forma a sua compreensão.
Nesse sentido, o modelo de toda teoria dos gêneros é a tripar-
tição clássica dos estilos. Ingarden distinguia assim três modos
— sublime, trágico e grotesco — que constituíam, a seu ver,
o repertório fundamental da leitura. Frye, por sua vez, reco
nhecia na romança, na sátira e na história os três gêneros
elementares, conforme fosse o mundo ficcional representado
como melhor, pior que o mundo real, ou igual a ele. Essas
duas tríades se baseiam na polaridade da tragédia e da comédia,
que, desde Aristóteles, constitui a forma elementar de qualquer
distinção genérica, como antecipação feita pelo leitor e que
regula seu investimento no texto. Assim, a estética da recepção
— mas é ainda o que a torna demasiado convencional aos
olhos de seus detratores mais radicais — não seria outra coisa
senão o último avatar de uma reflexão bem antiga sobre os
gêneros literários.
158
A I I I I I 11<A S I M AMAKKAS
159
h id .I .1 s lg n lfli .içrto, •' n*clc*llulu i III<'ial11ra, n .io m ills c in n ii
u n i o b jr lo , lo ssr e ll 1 virtual, mas i n iim " i > <|iie acontece q u a n d o
le m o s ". A c e n tu a n d o a te m p o r a lid a d e da c o m p r e e n s ã o , a n o v a
d is c ip lin a literária q u e e le d e c id ira fu n d a r, c o m o n o m e d e
“estilística a fe tiv a ”, p re te n d ia ser “u m a a n á lis e tia resposta
p ro g re ss iv a d o le ito r às p a la v ra s q u e se s u c e d e m 110 t e m p o ”.22
F.ssa atitude, porém, logo lhe parece ainda fazer concessões
demais ao antigo intencionalismo. Insistir na leitura como
experiência literária fundamental pode realmente conceber-se
em dois sentidos, todos dois implicando um resíduo culpado
de intencionalismo. Seja esta leitura vista como o resultado
da intenção do autor que a programou — nesse caso a autori
dade do leitor torna-se artificial: como vimos, essa é a crítica
feita muitas vezes a Iser. Ou essa leitura é descrita como o
efeito da afetividade do leitor; nesse caso este permanece
fechado no seu solipsismo e tudo que se fez foi substituir sua
intenção à do autor: crítica às vezes formulada contra Eco e
contra os outros partidários do texto virtual, e a invocação
ile um terceiro termo entre a intenção do autor e a intenção
do leitor, 1’intentio operis parece, como já disse, um sofisma
que não resolve de maneira alguma a aporia. Para eliminar
esse resto de intencionalismo dissimulado numa apologia do
leitor, evitando cair naquilo que os New Critics denominavam
“ilusão afetiva”, tão vergonhosa quanto a “ilusão intencional”
e a “ilusão referencial”, Fish, depois de ter substituído a auto
ridade do autor e a autoridade do texto pela autoridade do
leitor, julgou necessário reduzir as três à autoridade das “comu
nidades interpretativas”. Seu livro de 1980, H á um Texto nesta
Sala?, coletânea de artigos da década precedente, caminha para
essa posição drástica e ilustra, por seu movimento niilista, a
grandeza e a decadência da teoria da recepção: depois de
conceder poder ao leitor, questionando a objetividade do texto,
depois de ter declarado a total autonomia do leitor e susten
tado o princípio de uma estilística afetiva, é a própria dualidade
do texto e do leitor que é recusada e, assim, a possibilidade
de sua interação. A tese final — absoluta, indiscutível — drama
tiza ainda as conclusões da hermenêutica pós-heideggeriana,
isolando o leitor em seus preconceitos. Aqui, texto e leitor
são prisioneiros da comunidade interpretativa à qual perten
cem, a menos que o fato de chamá-los de “prisioneiros” lhes
confira ainda mais identidade.
160
I r .l i j u M l i l< i I r llm ln a v .lo n 1n u 1 11.1n t •;i d o autor, d o tex to c
ili i iH to i n«\sli\s I<■i ui« is:
161
i liirin.i <l,i > \| i<-1 l('in l,i ilu Irllin i>i imlil.iili". |i H111.1 1■t, r .1
i",li ui ui .1 (III IntençiU) .s.lii iini,i iliih ;i e iilCNinU Coisa; ellis ftc
11uiiiiICsl:itu slum 11ancüliic 1111■, r ,i questão d.i prioridade e da
Independência não é, pois, <<>l<><.■<I.i. I,cvania-se uin;i outra
questão: o c|ue é que as produ/? l .m outras lermos, se a intenção,
a forma e a experiência do leitor silo simplesm ente diferentes
maneiras de se referir (diferentes pontos de vista sobre) ao mesmo
alo interpretativo, de qual esse ato seria uma interpretação?2'1
162
i.iiiii p .1 i!í >•. i• iii. 1111.1111(i ,i (!(>,s Ic-11<ires () leitor é um oulr<>
i«•\t«», como It;i11 In ", i i.i c|)0 ( ,i sugci Ira, uiiis :i lógica é levada a
um grau m.ii:. .ilii i, <■ii(|iiilo que chamamos ainda de literatura,
conservando, sem dúvida, por um vestígio humanista, e apesar
de Iodas as desilusões teóricas, uma dimensão da individua
lidade dos textos, dos autores e dos leitores, não resiste mais.
Para resolver as antinomias levantadas pela introdução do
leitor nos estudos literários, seria suficiente anular a literatura.
Posto que nenhuma definição desta seja plenamente satisfa
tória, por que não adotar essa solução definitiva?
DEPOIS DO LEITOR
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B a n h e s , até <|iu- H sh , m aglslraliiirni«-, »1«••.< a iio u se dos m*?.
de uma só vez. Na re a lid a d e , o p r im a d o d o le ilo i le v a n la
tantos problemas quanto, a n te rio rm e n te , o d o a u to r e o d o
texto, e o leva à sua perda. Parece impossível à teoria preservar
o equilíbrio entre os elementos da literatura. Como se a prova
da prática não fosse mais necessária, a radicalização teórica
parece muitas vezes uma fuga para frente, para evitar as difi
culdades, que — Fish lembrava — não devem sua existência
senão à “comunidade interpretativa” que as faz surgir. Por
isso a teoria leva às vezes a pensar na gnose, numa ciência
suprema, desprovida de todo objeto empírico.
Uma vez mais, entre as duas teses extremas que têm a seu
favor uma certa consistência teórica, mas que são claramente
exacerbadas e insustentáveis ■ — a autoridade do autor e do
texto permite instituir um discurso objetivo (positivista ou
formal) sobre a literatura, e a autoridade do leitor, instituir um
discurso subjetivo — , todas as posições medianas parecem
frágeis e difíceis cle serem defendidas. É sempre mais fácil
argumentar a favor de doutrinas desmedidas e, afinal de contas,
não deixamos de nos confrontar com a alternativa de Lanson
e de Proust. Mas, na prática, vivemos (e lemos) no espaço
existente entre os dois. A experiência da leitura, como toda
experiência humana, é fatalmente uma experiência dual,
ambígua, dividida: entre compreender e amar, entre a filologia
e a alegoria, entre a liberdade e a imposição, entre a atenção
ao outro e a preocupação consigo mesmo. A situação mediana
repugna aos verdadeiros teóricos da literatura. Mas, como dizia
Montaigne, na “Apologia de Raymond Sebond”: “É uma grande
temeridade perder-vos vós mesmos para perder um outro.”
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