Paulina Chiziane Balada de Amor Ao Vento
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Ventos do Apocalipse
PAULINA CHIZIANE
O Sétimo Juramento
Niketche_ Uma história de poligamia
Baaa de Amor ao Vento BADA DE MOR
AO ENTO
ron1ance
2.' edição
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autores estrangeiros de língua portuguesa
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Aos meus filhos Domingos e Maria Salomé
À memória de Fenando Chiziane
À Madalena Bacstrom
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MOR
Í!s o tear
em que fabrico a vida...
Leite Vasconcelos
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Tenho uma filha crescida que ainda estuda embo nada melhor que uma festa para a diversão, exibição e
ra já tenha estudado muito, Um dia disse-me que a terra pesca de namoricos, Eu estava bonita com a minha
é redonda. Por fora é toda verde e lá no fundo tem um
, blusinha cor de limão, capulana mesmo a condizer,
centro vermelho. Como o melão, Que a terra é a mãe enfeitadinha com colares de marfim e missangas. Colo
da natureza e tudo suporta para parir a vida, Co0 a quei-me na rede para ser pescada, e porque não? Já era
mulher. Os golpes da vida a mulher suporta no silên mulherzinha e tinha cumprido com todos os rituais.
cio da terra, Na amargura suave segrega um líquido tris s mulheres atarefadas giravam para cá e para lá no
te e viscoso como o melão. Quem já viajou no mundo preparo do grande banquete. O aroma das canes ex
da mulher? Quem ainda não oi, que vá. Basta dar um citava o o!facto, fazendo crescer rios de saliva em todas
golpe profundo, profundo, que do centro vermelho as bocas, desafiando os estômagos, e até as gengivas
explodirá um fogo mesmo igual à erupção de um vul desdentadas já imaginavam um naco de cane, gordi
cão. nho, tenrinho e sem ossos, empurrado com toda a arte
Mas que ideias tristes me assolam hoje; estou ape por uma golada de aguardente. Os homens davam a
nas em delírio, não me levem a mal. Estou simplesmen mão aqui e ali, enquanto os outros preparavam espla
te recordando, recordando. Estou dispersa: uma parte nadas nas sombras dos cajueiros.
de mim ficou no Save, outra está aqui nesta Mafalala Os tambores rufaram ao sinal do velho Mwalo, er
suja e triste, outra paira no ar, aguardando surpresas que guendo-se cânticos e aclamações. A porta da palhota
a vida me reserva. Para quê recordar o passado se o pre abriu-se deixando sair cerca de vinte rapazes com as
sente está presente e o uturo é uma esperança? Espe pecto pálido e doentio, provocado pelas duras provas
ro que me acreditem, mas o passado é que faz o dos ritos de iniciação.
presente, e o presente o futuro. O passado persegue� Os rapazes já tonados homens passavam entre alas
-nos e vive connosco cada presente. Eu tenho um pas como heróis. As velhotas aclamavam espalhando flores,
sado, esta história que quero contar. dinheiro e grãos de milho que as galinhas se apressa
Será uma história interessante? Tenho as minhas dúvi vam a debicar. Eu assistia ao espectáculo maravilhada
das, pois ainal não é nada de novo. Há muitas mulheres quando descobri entre os rapazes um novo rosto.
que vivem assim. Deliro. A vida revolveu o centro do meu - Quem será? Rindau, conheces aquele ali?
mundo. Meu rosto chooso é viscoso como o melão. Es - É o filho do Rungo, o que vive no colégio dos
tou em explosão uriosa tão igual à erupção de um vulcão. padres.
- h!
Dissiparam-se-me as dúvidas. Era mesmo daquele
Tudo começa no dia mais bonito do mundo, bele rapaz que os velhotes falavam ontem à noite e eu,
za característica do dia da descoberta do primeiro amor. curiosa, ouvi tudo. Se eles descobrirem que escutei vão
Todos os animais trajavam-se de artura, a terra era de castigar-me à larga, pois em coisas de homens as mu
masiado generosa. Na aldeia realizava-se a festa de cir lheres não se podem meter. Disseram que ele foi dis
cuncisão dos meninos já tonados homens. Jovens dos tinto e comportou-se lindamente mesmo nas provas
lugares mais remotos estavam presentes, pois não há mais diíceis.
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PAULINA CHIZIANE BALADA DE AMOR AO VENTO
Aquela imagem maravilhou-me. Mesmo à primeira aborrecer a minha adversária, enquanto esta, de olhar
vista, o meu coração virgem estremeceu. Fiquei hipno trocista, limitava-se apenas a murmurar:
tizada, com os olhos perseguindo os passos daquele - Wê, Sanau, não vale a pena tanta fanfarra. Hoje
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desconhecido. Uma voz quebrou-me o encanto. é dia de festa e não estou para guerrinhas. Tenho um
- Sarnau, Rindau, que azem aí sentadas suas fe vestido novo que não me apetece machucar.
lhas? A malta incitava-nos para a luta, mas ao ver que o
Retribui à Eni um olhar aborrecido, respondendo de espectáculo estava perdido pois a Eni não se desfazia,
maus modos: todos se viraram contra mim. Todo o bando me rodeou
- É proibido icar sentada? e troçou.
- Wê, Sanau, chocar ovos é para galinha choca- - Mas vocês ainda não viram? A Sanau é pau de
deira. Tira o rabo daí, tenho um segredo para ti. carapau. Nem curva no peito, nem curva no rabo, é es
- Não me levanto. Estou a chocar ovos de pata. taca de eucalipto, mulher é que não, wâ, wâ, wâ!
Vomita lá esse segredo e desaparece. Fiquei zangada. Finalmente os marotos deixaram-me
Já sabia do que se tratava. Não sei quem conven em paz e pude à vontade contemplar o meu ídolo e
ceu o Khelu de que é um grande macho, mas ele quer preparar planos de abordagem. Aquele Mwando inte
namoriscar toda a gente. Eni ajoelhou-se, segurou o ressava-me, sim senhor.
meu pescoço com as duas mãos, encostou os lábios aos Aproximei-me dele, alei com doçura e, com muita
meus ouvidos e segredou. Gritei bem alto para que ela indiferença, respondia às minhas perguntas. Frustradas
desaparecesse dali. Eni levantou voo e pude finalmen as minhas tentativas, regressei a casa, entristecida.
te contemplar o meu encanto mas só por pouco tem Pela primeira vez o sono ustou-me a vir. Minha men
po. Logo a seguir um bando de raparigas fez-me saltar te deliciava-se com a imagem que acabava de descobrir.
do chão, arrastando-me até às traseiras da casa. Aquele olhar distante, penetrante, aquela voz serena . . .
- Sanau, hoje é o dia de arranjar namorados. Em e rosto sisudo! Bonito não era, comparado com o Khelu,
vez de estar ali a chocalhar, ponha-te à vista, ginga, esse zaragateiro, namoradeiro, sempre pronto a pro
rebola, para as moscas perseguirem as tuas curvas, me vocar qualquer escaramuça e esmurrar toda a gente.
nina. Olha, eu já arranjei um namorado, e que janota, O Mwando é um rapaz diferente, ala bem, conversa
amiga! bem e tem cá umas maneiras!... Estaria eu apaixona
- Os meus parabéns, então. da? Ri-me e revirei-me na esteira. Achava graça àquilo
- E tu o que esperas? Aposto que estavas a olhar tudo, pois nunca antes me tiha acontecido. Adormeci
para esse ranhoso filho do Rungo. Como se chama? h, sorrindo.
é o Mwando. Pois digo-te, menina, estás a perder tem
po, aquele está a estudar para padre.
Fiquei uriosa. A Eni ora ao encontro dos meus pen Nos dias seguintes procurei Mwando. Emboscava
samentos e ferira-me a forma como se referira àquele todas as ruas por onde pudesse passar. Comecei a ir
jovem tão distinto. Coloquei as mãos nas ancas e vo para a igreja só para vê-lo. s poucas vezes que o con
mitei todo um palavreado provocador, na intenção de segui encontrar, falou comigo sempre com a mesma in-
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PALINA CHIZIANE BAADA DE MOR AO ETO
diferença. Preparei outro plano mais perfeito que pus -Tenho medo. O padre pode censurar-me.
logo em prática. - Medo de quê? O padre nada tem a ver com isso.
Num belo domingo, vesti-me com todo o esmero, De resto já fomos todos iniciados e os velhos não se
j
eneitei-me bem e parti para o ataque. Entrei na igre a vão aborrecer.
com toda a solenidade, sentei-me à frente para que e1e -Tu não sabes, Sarnau, mas o padre! ...
me visse bem, pois estava bonitinha só para ele. O pa - Descansa que ele não saberá de nada.
dre disse tanta coisa que não entendia. O coro apresen Emudecemos de repente. As mãos encontraram-se.
tou uma canção bonita e, de toda as vozes, só ouvia o Veio o abraço tímido. Trocámos odores, trocámos ca
Mwando. Depois o padre disse ámen, levantei-me pron lores. Dentro de nós floresceram os prados. Os pássa
ta para o combate. Ou hoje, ou nunca, dizia de mim ros cantaram para nós, os caniços dançaram para nós,
para mim. o céu e a terra uniram-se ao nosso abraço e empreen
Arrastei o Mwando num passeio até às margens do demos a primeira viagem celestial nas asas das borbo
rio Save. Falámos de muitas coisinhas. Ele alava dos letas.
seus planos do futuro, pois queria ser padre, pregar o
Evangelho, baptizar, cristianizar. Adeus meus planos,
meu tempo perdido, ai de mim, o rapaz não quer nada
comigo, só pensa em ser padre.
As águas corriam tranquilas, os peixinhos banha
vam-se, os canaviais assobiavam embalando a minha
tristeza. Sentia a cabeça transtornada e fiquei algum
tempo sem conseguir falar.
- Sentes-te mal, Sanau?
- Sim, um pouco maldisposta.
Deixei que ele me acarinhasse e, a pouco e pouco,
aproximei-me dele, encostando a cabeça no seu ombro
sem que ele se apercebesse da manobra.
- E tu, Sanau, quais são os teus planos?
- Meus planos? Nenhuns. Estou apaixonada por
um rapaz que nào me quer.
- Não é possível. Mas qual é o homem capaz de
desprezar uma rapariga tão bela e tão boa?
- E tu eras capaz de gostar de mim, Mwando?
És maravilhosa. És a única pessoa na aldeia que
me trata com respeito. Todas as moças desprezam-me
por viver no colégio. Eu gosto de ti, Sanau.
- E porque não me dizias?
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PAUL!NA CHIZIANE BALADA DE AMOR AO VENTO
lá muito da sua apresentação, mas apaixonou-se pelos - Salomão, se me voltas a falar assim, rebento-te
olhos negros, dormentes, ausentes. Invejou a elegância as fuças.
dos galos e copiou-lhes o porte. Administrou algumls - E aí divulgamos o segredo ao velhote, e depois
refinações na voz, tonando-a sonante, apaixonada. En- queremos ver.
t
direitou os ombros curvos. Ao andar cego, descompas- - Desapareçam!
sado, colocou uma suavidade, um ritmo, passando a Procurou o refúgio do quarto e fechou-se. Estava
usar um caminhar altivo, soberano, característico dos transtonado. Sentia a sua devoção abalada pela paixão.
vencedores. O vinco dos calções passou a ser bem de Não conseguia fugir às tramas da serpente, a Sarnau
marcado, a carapinha penteada mil vezes, os calca arrastava-o cada vez mais para o abismo. Mas porque
nhares, esregados com pedra-pomes e besuntados com é que Deus não protege os seus filhos mais devotos, e
óleo de coco, competiam no brilho com a luz do sol. deixa serpentes espalhadas por todo o lado, porquê?
Estas modificações não passaram despercebidas aos «Mas eu quero ser padre•., dizia entre lágrimas, "eu quero
companheiros do colégio, que lhe espiavam todos os ser padre, usar batina branca, cristianizar, baptizar, mas
movimentos, acompanhando-o com olhares trocistas ela arrasta-me para o abismo, para as trevas, ah, como
que bailavam em todos os olhos. é bom estar ao lado dela. Se o padre descobrir a mi
- Wê, Mwando, parece que o pinto está a sair do nha paixão expulsa-me do colégio na frescura do en
ovo. tardecer tal como Adão no Paraíso. Mas como Adào
- Porquê? não, não vai acontecer. Saberei encontrar um esconde
- Porque a boca está debaixo do nariz, e ao galo rijo neste jardim do Éden e ninguém descobrirá. Espe
já nasceu a crista. ro que esses malditos rapazes não dêem à língua. Penso
- Não me incomodem, ouviram? que com eles não haverá problemas pois não costumam
Mwando tonou-se alvo dos gracejos dos seus com ser delatores."
panheiros e, por essa razão, decidiu isolar-se, criando À luz da vela, os olhos perdiam-se no vazio, acaban
o seu próprio mundo. Ao anoitecer, sentava-se sozinho do por convergir sobre o Jesus Cristo de bronze pen
no jardim do colégio, subia até ao universo conquistan durado na parede de cal. Então extasiava-se, pedindo
do-o e todas as estrelas cabiam no centro do seu mun perdão e compreensão do seu dilema ao Cristo de me
do. Cerrava as pálpebras para sonhar, como o galo que tal.
canta de olhos fechados, saboreando com delícia a sua Não se pode servir a dois senhores, isso ensina a
própria voz. Mesmo assim, os colegas perseguiam-no Bíblia. Fechou os olhos e riu contrafeito, ridicularizan
dirigindo-lhe provocações. do-se. Achou graça à sua vida de há semanas atrás. Ago
- Bravo, Mwando, canta, canta, o galo canta para ra sentia-se diferente. Veio-lhe uma inspiração súbita,
a galinha cacarejar,. pegou no papel e no lápis e começou a escrever:
- Mas o que pretendem insinuar? Vamos, digam?! "Teus olhos têm o encanto de um poema divino.
- Calma, filhote, a cobra deixa sempre rasto por Que pena, não saberes ler. Escrever-te-ia uma carta lin
onde passa. Todos nós farejamos, só o velhote é que da, longa. Dedicar-te-ia todas as palavras que ao teu
é cegueta e ainda não desconia de nada. lado não consigo pronunciar quando o teu sorriso es-
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BALADA DE M)R AO VENTO
PAULINA CHIZIANE
trangula a melodia da minha garganta. Escrever-te-ia um Enquanto o padre Ferreira se recriminava, dois seres
poema de sumo de ananás e batata-doce com aroma de abraçavam-se no escuro. Tudo teria passado despercebi
canho. Levar-te-ia nos meus versos a vaguear no universq do se não fosse a maldita cama de ferro chiando deses
do sonho transportados na concha do girassol. Samau, y peradamente. Pareciam as dobradiças da janela rangendo
ajudaste-me a nascer, pois se não tivesses começado, nun ao vento, o padre aproximou-se para fechá-la, e eis que
ca teria a coragem de dizer qualquer coisa sobre o meu ouve gemidos de mulher. Apurou mais o ouvido e em
coração. Semeaste em m o perume das acácias. Escuto palideceu: aqueles gemidos eram seus conhecidos.
a música dos galos à distãncia. Estou no abismo da soli - Cretino. Agora saberás o que é a úria de um leão!
dão, no gólgota da distãncia, o domingo está longe para... " O padre encheu o peito de ar, esfregou os punhos
Não acabou a rase, pois a porta abriu-se de repen e _artiu para a batalha. Abriu a porta com um pontapé
te e o padre espreitou. Mwando apanhou um valente e, as escuras, conseguiu descobrir um vulto que se es
susto e começou a tremer. Nem teve tempo de ocultar condia por baixo da cama.
o seu manuscrito. - Salomão, hoje apanhei-te. Toda a gente já me fa
- Que se passa, meu rapaz? lou de ti.
O padre pegou no papel e leu em voz alta. Mwando Arremessou um soco furioso contra o rapaz, mas
molhava-se de lágrimas. este perdeu-se no ar. O Salomão, assustado, embru
- Com que então, hem! Já entendi tudo, descansa lhou-se num lençol, afinou a voz e, com o ar mais ino
que amanhã ajustaremos contas. cente deste mundo, perguntou:
- Que se passa, Senhor Padre?
O padre ficou ainda mais urioso. Não permitia que
O padre pôs-se de atalaia. Várias vezes ouvira mexe um rapazola a quem civilizara, troçasse dele. Precipitou
ricos sobre o comportamento dos rapazes, mas não se dei -se no escuro contra o rapaz que se esquivava e este mais
xara dominar pelas línguas de serpente, mas aquela carta, d
ágil, pregou uma rasteira e o velho caiu estrondos men
aquela carta! Havia de descobrir a verdade. A cobra dei te. O rapaz ugiu como o vento no coração da noite.
a rasto por onde passa, z o povo, não há umo sem fogo.
- Agora, o Mwando!
Na hora do silêncio, abandonava a cama conortável, O velho levantou-se furioso, oi ao quarto deste que
eniava o roupão e o gorro de lã e, em passos felinos, ia dormia um sono solto e deu-lhe uma sova tão grande
espreitar os dormitórios dos rapazes. Primeiro dava vol até lhe doerem os socos.
tas pelas janelas para escutar, depois escondia-se no ar Mwando e Salomão oram expulsos do colégio, mas
busto diante da entrada, aguardando horas a io. Andou a cozinheira nem sequer foi repreendida e toda a gen
em buscas muitas semanas sem resultado. Voltou à con te sabe porquê.
clusão de que a língua do vulgo não merecia confiança.
Ridicularizou-se pelo facto de ter sacriicado o repouso
precioso em espionagem vergonhosa, expondo-se às cor Mwando não teve outro remédio senão conformar-se.
rentes de ar que poderiam criar uma dessas complicações Facilmente se adaptou aos trabalhos dos rapazes da sua
tropicais que nem os melhores médicos podem curar. idade. Todas as tardes nos encontrávamos no rio ' dá-
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PAULINA CHIZIANE BALADA DE MOR AO VENTO
vamos largos passeios, subíamos às árvores, colhíamos coroou-me rainha dos prados, rainha bela, rainha des
flores, frutos, e tudo para nós era uma verdadeira ma calça.
ravilha. Um dia trepámos até ao cimo da figueira. ó sol, corre mais depressa, desapareça, que a ser
- Sanau , diz se a terra não é bela vista por estás pente deu-me a maçã. O sol não me escuta, caminha
/,
alturas. lento como uma vaca pachorrenta. Ó nuvem, tapa daí
-Vejo tudo maravilhoso. Tudo é belo quando as o sol, que a serpente deu-me a maçã e o Adão está an
pessoas se amam. sioso por trincá-la. A nuvem nem me liga, caminha rá
- Diz se não é maravilhosa a beleza dos campos; pido em direcção oposta. Vento, traga-me a nuvem para
aquele verde é a machamba de arroz ainda pequenino. tapar o sol. O vento está surdo e só az o que lhe ape
O verde-amarelo é o arroz pronto para colher. Vê aque tece.
le mar verde com os braços do milheiral movendo-se ó sol indiscreto, ó nuvem cretina, ó vento surdo, ne
assim, às ondas, como serpentes. Vês ali, mais ao fun nhum de vós me assusta, porque a erva nos protege, a
do? Um manto verde com muitos verdes. É a macham serpente deu-me uma maçã e o Adão vai trincá-la mes
ba de mandioca, amendoim, gergelim. mo debaixo do vosso nariz. Ide, ide queixar-vos a Deus
- Sim, Mwando, tudo em nós é verde, verde ver- que eu não me importo, as ervas serão nossas confiden
dadeiro. tes.
- Olha para ali. O que é? A maçã era ainda verde, por isso arrepiante. Trin
- Vejo uma palhota. cámos um pouco e não me pareceu muito agradável;
- Não te parece um cogumelo de capim? E ali? senti o doce-amargo das pevides e polpa e, lá do meu
- Uma casa branca com tecto vermelho. É a casa fundo, escorreu um fio de sangue, que as águas do Save
do administrador. lavaram.
- É antes uma caixinha branca com tampa verme Mwando deu o primeiro golpe. Os nossos sangues
lha. Sim, as árvores e as palhotas parecem cogumelos, uniram-se. Neste momento os defuntos que estão no
as vacas parecem cabritinhos, os cabritos formiguinhas, fundo do mar festejam, porque eu hoje sou mulher.
e as formigas insigniicantes. O barco à vela é uma bor - Sarnau, o nosso amor é o mais belo do mundo.
boleta no horizonte. É fácil compreender porque é que - Sim, mais verde que todos os campos, maior que
tudo é belo nos olhos de Deus. Ele vê do alto, e tudo todas as águas do Save e do oceano.
é belo visto pelas alturas. Os braços do Save são boni - É maravilhoso.
tos com os seus dedos gigantescos, e parecem árvores - Agora, Mwando, tens que agradecer à minha de-
com muitos ramos. O tronco é de um verde-azul, as funta protectora pelo prazer que acaba de te dar. Ofe
mãos de verde-matope, e os dedos, matope mesmo. rece-lhe dinheiro, rapé e pano vermelho.
A olhagem é toda verde, verde verdadeiro. Há muito que Mwando jurou não acreditar em al
Descemos à raiz da figueira e os campos ofereciam mas do outro mundo, mas naquele momento quebrou
-nos flores. Mwando apanhava-as, depositava nelas um o juramento.
beijo e depois oferecia-mas. Fez uma grinalda amare - Hei-de oferecer cem escudos, muito rapé e pano
la, vermelha, branca, com lírios, cardos, buganvílias, e vermelho. Dar-lhe-ei milho e mapira; dir-lhe-ei que sou
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PAULINA CHIZJANE
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PAULINA CHIZIANE BALADA DE AMOR AO VENTO
onde só tu habitas. Dentro de m lorescem os cam ma, sei que vais ficar perturbada, mas compreende-me,
pos. Tudo em m é verde. Eu sou a terra fértil onde um é contra a minha vontade.
dia lançaste a semente. O sol, a nuvem, o vento, tudo vi - Porque andas com tantos rodeios e não dizes
ram. A tua semente tomou-se verde, verde verdadeiro. Na logo o que se passa?
próxima colheita teremos artura e mostraremos ao muh - Está bem, eu digo. Não vou partir para lado ne
do como é belo o nosso amor. nhum. Vou casar-me brevemente com uma rapariga que
os meus pais escolheram para mim.
- Mas isso não é problema disse entre lágrimas.
- Sarnau, não nos vemos há dois meses, mas isto - Eu aceito ser a segunda mulher, ou terceira, como
é por causa do trabalho intenso que tenho tido, não quiseres. Se tivesses dez mulheres eu seria a décima
descanso nada, sabes? Já te disse que as minhas irmãs primeira. Mesmo que tivesses cem, eu seria a centési
são preguiçosas e eu tenho que fazer todo o trabalho ma primeira. O que eu quero é estar ao teu lado.
da casa. Fui três vezes à cidade para tratar dos negó - Samau, o teu desejo não pode ser realizado. Nun
cios do velho, espero que me compreendas. ca serás minha mulher, nem segunda, nem terceira, nem
- Assim matas-me, eu morro de saudades. centésima primeira. Eu sou cristão e não aceito a poli
- Eu também tive muitas saudades, mas o trabalho, gamia.
entendes? Escuta, meu amor, hoje é o dia da nossa des - Oh, Mwando!
pedida. Vou partir para muito longe. Uma terrível escuridão precipitou-se dentro de mim.
- Para longe? Onde? Sumiram-se as entranhas e, do poço enorme que era o
- Não sei bem. O velhote é que decidiu. Sei que meu íntimo, brotaram palavras ocas que a garganta
me amas e que vais sofrer muito, mas tenho um dever transformou em gritos histéricos. Os cantos dos meus
a cumprir. lábios segregando espuma abriram alas para escoar a
- Vais para a África do Sul? Mas não há problemas. dor melodiosa e fúnebre, fazendo coro ao coaxar das
Eu espero-te. Agora mais do que nunca tenho razões rãs. Meu coração ribombava trovoadas, relâmpagos
para te esperar. dourados rasgavam o céu do cérebro, e a chuva dos
- Quais razões? olhos precipitava forte, prenunciando o dilúvio do meu
- Vamos ter um filho, Mwando. Há quarenta dias ser. Todos os sonhos de amor, num só instante foram
que não vejo a lua. destruídos pela força da tempestade. Mergulhada em
- É interessante. Acho bonito ser pai mas há uma ondas de sal, celebrei o baptismo de fel. Acuda-me meu
coisa que não entendo. As raparigas do teu clã só fi Deus. Semeei amor em terras sáfaras e no lugar de mi
cam grávidas quando querem. lho, produzi espinhos.
- Eu quis, Mwando. Desejo loucamente este fi Mwando recolheu-me num abraço do naufrágio
lho. diluviai onde me abandonara, aninhou-me no seu pei
- Tu amas-me, e isso tira-te por vezes a razão. Eu to, coroando-me com beijos sem sal, tem calma Sarnau,
agora vou partir para não mais voltar. O que será de ti prometo ser bom pai, terás de mim tudo o que quise
e da criança? Gostaria de te esclarecer bem o proble- res, casar é que não, compreende Sanau, é o desejo
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PAULINA CHIZ!ANE BALADA DE AMO( AO VtNTO
dos meus pais e de todos os defuntos. Eu debatia-me eu deixar o Mwando, mas como podia eu dizer não à
com todas as forças, quero amor, tenho fome de amor. voz do coração? Tudo para mim é desespero: o garga
Mas quem diria que este romance acabaria num due lhar das estrelas, o piar dos mochos, o marulhar das
lo? A lança caiu bem no centro do coração e o venée ondas ao luar, a dança do fogo, tudo me entristece.
dor exibe a arma, triunfante. A sua voz vibrava 1de Gostaria de desaparecer da superfície da terra, mer
emoção, conseguiu remover um empecilho e estava gulhar nas águas profundas do Índico, arrastada pe
livre para prosseguir o seu destino. Não teria ele a sua las minhas mágoas. Eu quero morrer, vou morrer,
razão? Cada um de nós segue o seu destino, aquele que assim o amor e o ódio jamais perturbarão o meu re
há muito oi traçado na palma da sua mão. pouso.
- Adeus, Mwando. Que sejas feliz, com aquela fe Atirar-me ao mar? Nunca. Subirei ao cimo do imbon
licidade que sempre sonhei para mim. deiro e, quando a primeira coruja cantar, atirar-me-ei ao
Regressei à tranquilidade da floresta e a canção da chão, rebentando o coco do meu cérebro. Semear-me-ão
natureza perdia-se no eco dos meus suspiros. Cantei a em terra negra na melodia dos galos da alvorada, serei
melodia dos desesperados sobre as cinzas e os escom regada de lágrimas e geinarei antasma. Atirar-me do
bros dos meus sonhos. Uma cobra espreita-nos e ergue alto também não. Preiro aundar-me nas águas paradas
cabeça pronta para o ataque. da lagoa e ser o pasto dos peixes; o meu sangue irá fer
- Samau, mamba! mentar as profundezas para que as algas cresçam mais
Arrancou-me rapidamente do chão, protegendo-me bem nutridas.
num abraço frenético. Quem me dera ser a estrela sonâmbula e vaguear
- Escapámos de morte certa. O que significa isto no infinito sem destino em todas as noites de luar. Gos
neste preciso momento? Os teus defuntos estão contra taria de ser um vaga-lume, acender e apagar despreo
m, mandaram esta cobra para me aniquilar, o que sig cupada, sobrevoando as copas negras dos cajueiros.
nifica isto? A passo trôpego mergulhei na escuridão da palho
- Bendita seja essa mamba que queria levar-me ta e estendi-me, meia morta, na esteira de palha. s aves
para o mundo do além onde iria repousar todas as da noite embalaram a minha angústia, adormeci tristo
mágoas, e tu arrancaste-me da porta do paraíso. nha, mergulhando em seguida num sonho delicioso.
- Samau, sinto muito, eu amo-te, eu... Vi-me numa paisagem de vales e montanhas, de ár
Não deixei acabar a rase e parti disparada como o vores majestosas que se acasalavam com trepadeiras de
vento para o infinito. folhas largas. Uma paisagem de amor em que todos os
seres se harmonizavam ao sabor da liberdade, onde até
as raízes abandonavam os cárceres de areia para balan
O ogo crepitava dançando a música do vento, ele çar ao resco debaixo dos braços múltiplos das figuei
vando as labaredas até às alturas. Todos os habitantes ras. As águas dos vales serpenteavam em sincronismo
do sol recolheram aos seus ninhos confortáveis, eu com a suavidade das brisas enquanto os bambus balan
fiquei sozinha e perdida, deixem-me chorar, chorar. çavam em contradança. Mwando estava sentado ao meu
A Eni pressagiou este fim e disse-me tantas vezes para lado na fertilidade do tapete de relva. A aproximação
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PAULINA CHIZIANE BALADA DE AO VENTO
do seu corpo adolescente levou-me ao mundo das ilu as águas engoliram-me, e só consegui erguer o braço
sões incontestáveis, à maravilha do sonho e da fantasia. num gesto de adeus e desespero.
Pronunciava o seu nome pela centésima vez quando Foi tudo. Do sono mortífero que me envolveu, ouvi
vozes distantes que aumentavam de volume. Serão vo
,
acordei bruscamente.
t
- Sanau, estás a sonhar alto, isso dá azar. zes das almas do outro mundo ou dos espíritos das
- Porque interrompeste o meu sonho? Era tão bo- águas? As vozes aproximavam-se e ouvia-as com mais
nito, Rindau. nitidez, mexi os braços e descobri que não estava no
- O quê? lago e o meu corpo jazia por cima da esteira de palha.
- Não é nada contigo. Dorme, que te faz bem. Num esorço tremendo descerrei as pálpebras e vi-me
no interior da palhota rodeada de muitos vultos dos
quais só consegui reconhecer a minha mãe. A curan
A manhã nasceu onamentada de sol, com pássaros deira, ajoelhada, arejava o meu corpo de ponta a ponta,
alegres, vento resco e borboletas coloridas, tão igual varrendo suavemente os maus espíritos com a pelugem
a todas as outras desde os tempos do primeiro sol. macia do rabo de hiena.
Igual a todas as outras não, porque era a última. O sol - Que aconteceu? Onde estou?
era mais dourado, os campos peumadíssimos, as águas - las-te afogando e um pescador salvou-te, os bons
de um azul ímpar e as borboletas mais garridas. Tudo espíritos protegem-te, benditos sejam todos os defuntos.
era mais belo, porque último. Minha jonada termina Sim, os defuntos rejeitaram-me, ainda não é chega
va, a caminhada fora curta e salgada. da a minha hora, nunca mais serei antasma.
Lancei olhares de despedida a todas as coisas, tu Mergulhei na melancolia dos desesperados vogando
do me inspirava para a partida e suspirei: quero levar em ondas viscosas e amargas. A centopeia entrou
aos habitantes das trevas a mais bela imagem do rei -me pelos olhos, oi até ao coração, fez um nó na gar
no do sol. Dir-lhes-ei que abandonei o sol para ser ganta e subiu rapidamente para o cérebro. Sentia as suas
o sal, que amo a vida mas prefiro as trevas, o sono e o cem patinhas a coçarem-me todos os nervos.
repouso. - Sanau, expulsa o nó da centopeia, rebenta a an
Caminhei nas nuvens, radiante, ondulante, até ã bei gústia que tens no peito, Sarnau, rebenta o nó.
ra do lago. Mais uma vez disse adeus a todas as coisas. A curandeira tanto gritou que a sua voz acabou por
Mergulhei nas águas paradas que giraram de mansinho encravar-se-me no centro do coração. As lágrimas de
ã volta dos meus pés e caminhei decidida. O lago su sesperadas da minha mãe fizeram-me voltar à razão,
biu-me até aos ombros, até aos maxilares, hesitei uns contagiei-me com elas e rompi num choro convulsivo.
instantes e reflecti rápido: vou, quero morrer, quero ser O nó da centopeia quebrou numa explosão violenta.
fantasma para atormentar esse Mwando em todas as Senti movimentos estranhos no ventre e as coxas fica
noites de lua cheia. O lago subiu-me até às orelhas, ram empapadas de sangue. O meu corpo inerte vibrou
adeus tudo, adeus Mambone, adeus Mwando, adeus. com espasmos de dor, estava perdida, ninguém podia
Avancei mais, e de repente senti o medo a sufocar-me azer nada por mim. A cabeça em remoinho martelava
o peito, gritei, quis voltar atrás, lutei com viva força mas dolorosamente todas as veias.
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PAULINA CHIZIANE
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PAULINA CHIZ!ANE BALADA DE AMOR AO VENTO
"Alegrai-vos, cantai, espíritos dos Guiamba e Twa esbelta, de pele clarinha como os homens gostam, des
luo, que a grande sorte caiu sobre vós. Os antepassa de o nascimento escolhida para esposa natural da fa
dos sempre disseram: a mulher é a galinha que se �ria mília real. Foi educada para ser esposa do futuro rei
para com ela presentear os visitantes. Chegou o mo mas, quando chegou o momento do lobolo, as línguas
mento doloroso. Criámos a Sarnau com amor e sadií de serpente puseram a nu todas as suas maldades; ela
cio, os visitantes estão à porta e vêm buscá-la para é feiticeira e herdou este dom da falecida mãe. Tem o
sempre. Defuntos dos Guiamba e dos Twalufo, a vossa sangue infestado pela doença da lepra que vitimou uma
filha é hoje lobolada. O vosso sangue vai hoje perten tia patena. É mulher de capulana na mão sempre pron
cer à nobre família dos governantes desta terra. O nú ta a abrir-se a qualquer um com quem se deita ape
mero de vacas com que é lobolada é tão elevado, coisa nas por um copo de aguardente. E, por fim, disseram
que nunca aconteceu desde os tempos dos nossos an que nas mãos não ostentava nenhum sinal de trabalho.
tepassados. Alegrai-vos, cantai, espíritos da terra e do A rainha disse logo que nào. Semelhante mulher não
mar. Recebei as ofertas que nos trazem e abri todos os ocuparia o seu lugar depois de morta. Foi assim que as
caminhos da felicidade. Que do ventre da vossa pro conselheiras da rainha se viram obrigadas a procurar em
tegida saiam rebentos assim como ela nasceu de nós. todo o território uma mulher que fosse bela, bondosa,
Aclamai, abençoai, espíritos da terra e do mar, por trabalhadora, fiel, que não fosse feiticeira. Não imagi
que a vossa filha oi escolhida para esposa do filho do nam vocês a sensação que esta novidade causou em to
rei.,, das as famílias. Cada mulher jogou a sua sorte. As mães
O meu tio era o responsável dos negócios do meu procuraram os melhores curandeiros para tirar os aza
lobolo. Com a devida vénia, levantou a voz e disse. res e maus-olhados às filhas. Nem calculam a fortuna
- Minha filha, ergue-te e vê com os teus olhos a que os curandeiros fizeram na altura. As conselheiras
manada com que te lobolam, para que, nos dê numa recebiam subornos; os ndunas cobravam dinheiros.
palavra certa e nos faça um juramento sincero. A rainha recebia cada dia mais prendas, as mães apre
Levantei-me cambaleante e muitos braços me am sentavam as filhas e a velhota só dizia não, não e não.
pararam. Dei uns passos para ora, minha mãe levan Aquela de pernas de cegonha? Não, não serve para
tou-me o véu de capulana e eu não quis acreditar. Trinta mulher do meu filho. A Eni? Sim, é bonita como eu
e seis vacas que ainda não pariram e um cortejo de mais gosto, mas aqueles lábios vermelhos de mulata e rapé
de dez homens adornados com peles de leopardo fazem a boca tão nojenta que parece o cu do macaco,
acompanhavam a manada. Minha mãe voltou a cobrir não, não quero. Todas as raparigas foram vasculhadas
-me o rosto e retornámos para o interior da palhota. e não havia nenhuma que agradasse à rainha. A velhota
Hoje sou a mais feliz das mulheres, ah, Mwuando, adoeceu de angústia, pois via a época da colheita a
que sorte que tu me deste pois agora serei a esposa do passar, altura que fora escolhida para o casamento do
uturo rei desta terra. Deixem-me contar-vos como isto filho. Um dia resolveu dar um passeio, e encontrou-me
aconteceu. Os defuntos existem, é verdade, os defun com o meu pote de água na cabeça.
tos protegem-nos. A sorte andou à roda e caiu sobre - Quem és tu rapariga que eu não reconheço?
mim. Este lobolo estava destinado à Khedzi, mulher - Sou a Sarnau, filha da Rindau.
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PAULINA CHIZIANE BALADA DE l10R AO VENTO
tas. Meu tio recolhe os dinheiros. Canta-se e dança-se. que cada mundo tem a sua beleza. Há os que conside
As vacas mugem cada vez mais alto. ram belas as mulheres de pele clara. Outros acham belas
as feições harmoniosas e o caminhar elegante. Ainda há
- Conduzi o gado ao novo curral! quem considere belas aquelas que transportam enor
/
A minha partida foi combinada para a semana seguin mes abóboras no traseiro. É como vos digo, cada mun
te. O padre Ferreira prontificou-se a dar-nos um casamen do tem a sua beleza. No campo é mais belo o rosto
to cristão, a nós, que nem sequer fomos baptizados. queimado de sol. São belas as pernas fortes e musculo
Ofereceu-me um vestido de noiva magnífico. sas, os calcanhares rachados que galgam quilómetros
Digo francamente que nunca tinha assistido a uma para que em casa nunca falte água, nem milho, nem
festa tão grandiosa e logo em minha honra. Muitos lume. São mais belas as mãos calosas, os corpos que
olhos vieram contemplar-me: olhos sinceros, falsos, in lutam ao lado do sol, do vento e da chuva para fazer
vejosos, trocistas, odiosos, e eu retribuí-lhes o meu novo da natureza o milagre de parir a felicidade e a ortuna.
ar: de arrogância e triunfo.
Não vos falei ainda do meu marido, o Nguila, o ho
mem mais desejado por todas as fêmeas do território.
Não o conheço muito bem, mas estou devidamente in
formada sobre ele. É um búfalo enorme e orte como
exige a nobreza da sua raça. Tem a pele bem negra,
testa e nariz esbeltos, dentes branquíssimos, o que lhe
cotfere um aspecto de espécie rara. Tem um caminhar
dinâmico, dominante, sedutor. É um excelente caçador,
o melhor atirador de arco e flecha. Não há quem meça
forças com ele. Nas bangas e tabernas é o primeiro a
entrar e o último a sair e, quando se embriaga, é a coi
sa mais insuportável deste mundo. Dizem que é doido
varrido pelo sexo oposto, o que orgulha o rei, seu pai.
O padre Ferreira tentou cristianizá-lo sem resultado. Fez
tudo para que ele estudasse, pois não fica bem ao fu
turo rei ser analfabeto, e lá aprendeu algumas coisas,
ao menos sabe ler uma carta.
Com certeza devem estar a imaginar-me tão bonita
para ser esposa dó futuro rei, com uma daquelas bele
zas que pululam por esta Mafalala de onde vos conto
esta história. Devem julgar-me mulher de mãos suaves,
rosto clarinho, cabelo desfrisado com vaselina e lábios
vermelhos borradíssimos de bâton. Digo-vos, porém,
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PAULINA CHIZIANE BALADA DE AMO_R AO VENTO
pertences a um só rei até ao fim dos teus dias. As atitu simos, a mamã está triste, e o papá está indiferente.
des dos homens, os seus caprichos, são mais inofensi Come-se, bebe-se, dança-se. Hoje é o dia de arranjar
vos que os efeitos das ondas no mar calmo. Não ligues namorados e outras Sarnaus descobrem Mwandos.
importância às amantes que tem; respeita as concubi As mulheres exibem-se e tecem intrigas. Os homens en
nas do teu senhor, elas serão tuas irmãs mais nova� e charcam-se no álcool e declaram amor à mulher do
todas se unirão à volta do mesmo amor. Sanau, ama vizinho, usando o disfarce da embriaguez. As adúlte
o teu homem com todo o coração. ras embebedam os maridos sem piedade, para quando
Vozes de pilões rebentam o céu com as suas ngalan o sol se esconder roubarem um momento de amor pro
gas. Mas de quem são esses lamentos que interrompem tegidas pela inconsciência do parceiro. Nesta noite
os meus sonhos, ferindo-me os tímpanos com conse haverá orgias. Nesta noite dormirei com o meu marido
lhos loucos? Não compreenderam ainda como sou e num lençol de estrelas. O sol é meu. É minha toda a
liz? É meu esse homem tão desejado; é meu esse lugar elicidade deste mundo.
tão cobiçado; o poder é meu, calem a boca, velhas es
túpidas!
s minhas mães, tias, avós, fecharam-me há uma se O sol caminhava rápido para o leito animado pelo rit
mana nesta palhota tão quente e dizem que me preparam mo dos atabaques. O tantã-embriagava ainda mais as gen
para o matrimónio. Falam do amor com os olhos emba tes já inebriadas pelo álcool, e as mulheres, agrupadas
ciados, falam da vida com os corações dilacerados, falam num círculo, moviam-se extasiadas, batendo palmas, au
do homem pelas chagas desferidas no corpo e na alma mentando o delírio com vozes roufenhas, descompassa
durante séculos, Samau, fecha a tua boca, esconde o teu das, e, no centro da roda, outras tantas anestesiavam-se
sofrimento quando o homem domir com a tua irmã mais na dança, ausentando-se da vida e do mundo. A alegria
nova mesmo na tua presença, fecha os olhos e não cho já ultrapassava o auge quando a minha tia ordenou uma
res porque o homem não foi feito para uma só mulher. pausa.
A atenção de todos foi concentrada num grupo de
mulheres trajadas de capulanas vermelho-estampadas
Como estou bela, vestida de branco. Como é boni e blusas brancas que cochichavam num canto em gesto
to o meu marido, trajado de preto. Este anel no meu de conspiração. A festa ia mudar de cenário. O grupo
dedo brilha como o sol. Como é emocionante esta me desfilou para nós, os noivos, numa marcha musicada,
lodia com que o povo nos saúda, e que sempre pen gestos ensaiados, com as mãos repletas de presentes
sei que era apenas dedicada aos anjos. Hoje sou a lua, como panelas de barro, cestos de palha, tigelas e pra
sou a rainha, o mundo inteiro curva-se aos meus pés. tos de madeira e tantas outras coisas que nos ofereciam
O padre Ferreira fez uma linda bênção. O meu marido com palavras carinhosas de parabéns, que tenham
assinou o livro com uma caneta de ouro e eu apenas muitos filhos, estás linda, felicidades, e outras palavras
marquei o sinal do meu dedo. bonitas. Na multidão de assistentes, explodiam culun
Nunca vi este povo tão enfeitado com todos os ros guanes ensurdecedores, sonantes, emocionantes. A ve
tos a irradiar elicidade. Meus irmãos estão satisfeitís- lha tia, arrastando-se em passos já gastos, depositou nos
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PAULINA CH!Z!ANE BALADA DE MOR AO VENTO
meus pés um pesado pilão, soltando um suspiro can mente. As minhas mães amparavam-me enquanto fa
sado. Fez uma pausa para retomar o fôlego, inspirar ziam a minha entrega aos novos donos.
-se e erguer a voz. No novo lar, os Zucula receberam-me triunfalmen
- Sarnau, o lar é um pilão e a mulher o cere..L te, com batucadas que esfacelavam o ar, a sentenciada
Como o milho serás amassada, triturada, torturada, pÍra meteu a cabeça na forca. Senti em mim a negra partin
fazer a felicidade da família. Como o milho suporta do para a escravatura; a prisioneira caminhando para
tudo, pois esse é o preço da tua honra. o cadafalso. Olhei para todos os lados ã procura de au
Os olhos da velha humedeceram-se num pranto sua xílio e encontrei rostos desconhecidos, sorridentes.
ve, deixando transparecer no gesto e no movimento Descobri amparo nos olhinhos da Rindau, minha doce
amarguras distantes. Os casamentos têm sempre este irmãzinha, a única testemunha da minha desgraça.
cenário ora triste, ora alegre. Mas porquê a tristeza? Não Mas onde está o meu pai? Onde está a minha mãe?
será o casamento um acontecimento feliz? Ah, o meu pai, minha mãe, deixei-os além, e estou a
Chegou o momento derradeiro. Os Zucula estão ã sofrer sozinha nos caminhos distantes.
porta e vêm buscar-me para sempre. As minhas mães
e madrinhas levam-me novamente para o interior da
palhota. Querem dar-me o último adeus.
- Mãe, exageras demasiado em todas as tuas ati
tudes. Por que choras, mãe? Há aqui algum funeral? Por
que é que todas têm os olhos tão tristes? Vamos,
alegrai-vos porque hoje é dia de festa, hoje casei-me
com o futuro rei desta terra.
- Sarnau, sangue do meu sangue, nem todas as
lágrimas são tristezas, nem todos os sorrisos são alegrias.
Os teus antepassados fremiam de dor, mas cantavam
belas canções quando partiam para a escravatura. Os
mortos vestem-se de gala quando vão a enterrar. Os vi
vos semeiam jardins nos túmulos tal como hoje te
oferecemos lores. Os condenados sorriem quando ca
minham para o cadafalso, mas choram quando são
libertados. Sanau, minha Sarnau, partes agora para a
escravatura.
É momento de despedida. Todas as vozes unem-se
numa só, erguendo a canção de adeus, tão bonita, tão
suave, que provocava em mim um tumulto inexplicá
vel. Meu pai rompeu em lágrimas, meu Deus, nunca
vi o meu pai a chorar, contagiei-me e chorei perdida-
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PAULINA CHIZIANE BALADA DE MQR AO VENTO
deiro e a sua primeira esposa. Foi mobilizado um efec É deste meu ventre que nascerá o homem que depois
tivo de vinte homens para se ocuparem da sua cons do meu marido irá dirigir os destinos deste povo.
trução. Outros tantos oram encarregados da decoração, Continuei devaneando, espreguiçando. Fechei no
e não há dúvida de que esses homens utilizaram o mí vamente os olhos e vesti-me de sonhos. Voei até aos
ximo do seu bom gosto para o arranjo desta casa. Mah pássaros, até às nuvens, até ao sol. Fiz uma descida verti
daram vir de Lourenço Marques este mobiliário de ginosa, minhas asas de sebo derretiam ao sol. Pousei nas
madeira esculpida, que se diz ter custado cerca de trinta nuvens e voei com elas. Mergulhei num bando de pássa
vacas, quase o preço do meu lobolo. Gosto de poisar ros e, do alto, observei a aldeia real onde o meu corpo
os pés neste chão fofo, todo coberto de peles de leo cansado repousava, esta pequena cidade que passaria a
pardo, que o meu marido coleccionou em todas as suas ser minha depois da morte do rei. Vi outros pássaros
caçadas. a esvoaçarem na savana que orla a pequena cidade de
Tenho um roupeiro invejável; a minha primeira so palha. Ao lado da grande figueira ergue-se o palácio
gra veste-me de capulanas vermelhas, luxuosíssimas, onde repousam os corpos do rei e sua rainha. Outros
blusas bordadas com fios de ouro, colares de marfim, dois palaciozinhos, mesmo ao lado do palácio maior,
ouro e cobre, coisas que ela coleccionou durante lar pertencem às duas rainhas de segunda classe. As ou
go tempo, só para presentear a primeira nora, a futura tras habitações, dispostas em círculo, em nada se distin
rainha. Cada vez que recebo visitas tenho de usar um guindo das vulgares, pertencem às doze rainhas, da
traje novo, dierente. terceira à última categoria. É cidadezinha bela, vista do
Foi há duas semanas que o casamento se realizou, alto. Mas cidade não. É antes uma enorme pocilga com
mas a festa continua cada vez mais brava. Quase todos dezasseis compartimentos onde cada fêmea pare as suas
os dias, gente de todos os reinos chega em procissão, crias. É uma enorme pocilga, sim senhor, onde o povo vai
cada um com mais oferendas que o outro, numa espé despejar a ração para que o varrasco engorde e segre&>ue
cie de competição que mais parece um acto de subor mais sémen para fecundar as suas quinze porcas reluzen
no ao rei ou ao herdeiro. Servem-se grandes banquetes tes de gordura, de ócio, de lixo que os seus braços ocio
que sempre terminam num bailado à volta da ogueira sos não conseguem limpar. Não exagero, não. s minhas
e gente requebrando-se ao som do tantã, aumentando quinze sogras são mais gordas que as porcas e mais pre
o delírio com vozes ébrias. guiçosas do que elas, essas porcas inúteis a quem o vul
Nunca sonhei ser a primeira esposa do herdeiro, go considera sobrenaturais.
mas agora só penso em ser rainha. Cada vez que me Da minha árvore vi o rei a ser aclamado por uma gran
aproximo da velha, excito-me, e desejo ardentemente de população de porquinhos negros, troncos nus, cabe
que a sua morte seji breve para herdar os grandes bra los desgrenhados, rostos remelosos e sorrisos alegres,
celetes de ouro qu; ela usa nos braços e nos pés. enquanto a terra cedia ao peso do monstruoso varrasco,
O poder é como o vinho. No princípio confunde, engolindo-o pouco a pouco até deixarem de se ver os
transtona, quase que amarga; pouco depois agrada, e, cabelos artos.
no im, embriaga. Eis-me aqui, finalmente, senhora dos As minhas asas derretiam, voei poisando no tecto
destinos desta terra. Serei rainha sem dúvida alguma. do palácio principal. Todos os porcos se espantaram
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por ver uma porca em cima de uma casa. É que eu já - Inveja, minha filha, inveja. Quando cheguei a esta
não era pássaro, mas uma porca tão porca como todas casa, o nosso marido dava-me muito carinho, eu era a
as outras. mais bonita de todas, e nova! As outras trataram logo
,
Abri os olhos ainda vestida de fantasia. Qual é a im de me pregar uma partida, mas enganaram-se redonda
portância dessa massa anónima chamada gente, quai mente. Os meus defuntos protegem-me e os nhamus
do dentro de si não encerra um saco de sonhos? Os soros já pressagiaram o meu futuro. Eu só morrerei de
melhores dias da minha vida são aqueles em que con velhice. Aqui o que há de mais é feitiço. Todas essas
segui sonhar. tuas sogras são grandes feiticeiras. Foi a doença que me
Saúdo o sol, saúdo o vento e toda a natureza traja pôs feia e velhota.
da de sonhos. Hoje é o dia de visitar a minha oitava Pousei os olhos naquele fardo feio e bojudo, trans
sogra, pilar para ela, cozinhar para ela, lavar para ela, pirando gordura por todos os poros. Uma lagartixa ama
pois cada sogra tem de conhecer o sabor dos meus relo-acastanhada despenhou-se da árvore caindo no
cozinhados e o aroma das roupas lavadas pelas minhas meu regaço, e fugindo célere enterrou-se no areal. Arre
mãos. galei os olhos, o coração pulsou, e fui percorrida por
Pilei como uma máquina, cozinhei como uma artis um grande arrepio. Presságio de desgraça! Alguém vai
ta deixando as minhas habilidades de mulher bem mar morrer hoje. Este dia não acabará sem que eu tenha
�
c das. Tudo terminou em apoteose, a minha oitava notícias de morte. A lagartixa já deu o sinal.
sogra teceu-me elogios extraordinários, estúpidos e até - Vês, Sanau, vês, já estão a actuar as feiticeiras,
ridículos, pois eu sabia que ela exagerava, que iria di estão a experimentar-te, eu não disse? Eu não minto, o
zer o contrário nas minhas costas. que há de mais são feitiços nesta casa. Tu tens sorte,
Reparei que esta minha sogra coxeava um pouco, não te vão abusar muito. Primeira mulher do herdeiro
e tratei logo de saber porquê. é coisa sagrada, és uma mulher cheia de sorte. Nós es
- Minha ilha, minha filha, estás a revolver-me o fel. tamos aqui a mais, para aumentar o número de cabe
A doença que me atacou só os meus deuntos são tes ças neste curral, e dar o nosso esorço nas machambas,
temunhas. É uma doença triste e vergonhosa. Os feiti apanhar com os feitiços das outras, o que é que nós
ceiros penduraram-me no cimo do imbondeiro. Foi somos?
preciso chamarem os grandes curandeiros para me ti
rar de lá e, quando voltei a mim, iquei paralítica por
muito tempo, recuperando pouco a pouco. Que dia tão impossível, que sol tão violento, em toda
- Penduraram-na mesmo lá em cima? Mas o imbon a minha vida nunca vi um dia assim. Felizes são os pei
deiro é altíssimo! xes debaixo da água, sem apanhar estes teniveis raios de
- Não foi bem .o meu corpo que levaram. São coi sol, e estão sempre limpinhos e resquinhos. Felizes são
sas de passa-noites. Levaram o meu espírito para lá os pássaros que em dias como este voam até às ribeiri
quando eu dormia. São segredos de feiticeiros, coisas nhas e refrescam-se. Em todo o lado só se ouvem choros
da noite. de criancinhas incomodadas pelo sol. Corpos de tronco
- Que pena! Mas porque fizeram isso? nu procuram abrigos frescos nas sombras dos cajueiros.
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PAULINA C!ZIANE BALADA DE AMOR AO VENTO
No calor da savana, duas mambas batem-se pela posse como enguia, e mil picos me beijaram os pés, mas não
de um pardal. s ervas já moribundas sofrem das serpen lhes liguei importância, quero a minha lenha, quero o
teadas velozes das mambas. Os gala-galas, centopeias, rou-
,
meu petróleo, eu sou aúlha, eu acendo-me, quero esse
xinóis e grilos abancaram na copa da anoneira tristonha homem que é meu, eu gosto dele a valer.
de olhas enrodilhadas em caracol, para se protegerem do
sol, e assistem ao espectáculo divertidos, enquanto os
xiricos fazem a arbitragem. Uma das mambas cai em com Abri com violência a porta do meu quarto. Meu
bate, a outra engole o pardal já morto e zarpa. Deus, acode-me! Caí de olhos apavorada, duas gotas de
Os espectadores aplaudem. Reinicia-se o coro dos água rasgaram verticalmente o meu rosto enquanto os
grilos e pássaros, o sol já está amarelo .. As mulheres lábios tentavam dissimular um sorriso orçado, Sarnau,
reacendem as fogueiras para preparar o milho e a man nem todos os sorrisos são alegrias, nem todas as lágri
dioca. Recomeça a ngalanga dos pilões, o sol já está mas são tristezas. Meu marido está ao lado de outra
simpático. Os meninos regressam ao jogo interrompi mulher mesmo na minha cama, sorriem, suspiram en
do, os bebês chupam os mamilos, mansinhos, os raios voltos nas minhas capulanas novas, meu Deus, eu sou
de sol já são inofensivos e a minha sogra ainda me fala cadáver, eu gelo, abre-te terra, engole-me num só tra
de feitiços. go, Sanau, o teu homem é o teu senhor. Quando ele
Já sei que todas são feiticeiras menos ela. Todas são dormir com a tua irmã mais nova mesmo debaixo do
más, voam ã noite, executam danças de fantasmas na nariz, fecha os olhos e a alma, porque o homem não
sua palhota, comem os corações dos seus meninos e é foi feito para uma mulher. Os caprichos de um homem
por isso que o mais novo acorda sempre com gripe, to são mais inofensivos que os efeitos das ondas no mar
das as suas curandeiras são testemunhas disso, já apa calmo.
nharam essas feiticeiras várias vezes, essas curandeiras Caminhei vencida para a ogueira e aqueci a água
é que lhe salvam a vida. para o banho deles. Voei até aos cômoros vestidos de
O sol está vermelho, rebola e joga ãs escondidas cardos e lírios que o anoitecer escondia, subi o socalco
com os imbondeiros no interior da savana, ah, as mu passo a passo, tão pesada como quem caminha para o
lheres são mesmo bisbilhoteiras, intriguistas, o sol já cadaalso. Minhas lágrimas caindo em catadupas orma
dormiu, a minha sogra ainda me fala de feitiços. ram um enorme lago onde os peixes vemelho-pérolas
Mergulho a mão no mar de areia. A trama dos meus dançavam ao ritmo dos meus soluços, caminhando em
dedos pesca cardumes de raminhos secos, pedrinhas, parada para as margens do rio Save.
folhinhas perdidas, bolinhos de areia, meu Deus eu sou - Sanau!
faúlha, eu aísca, meu marido é palha de coco, o meu A voz parecia vir das profundezas da terra e até as
marido é lenha de sândalo, é petróleo para eu acender, sustou os mochos e corujas com o seu ribombar. É o
para juntos ardermos, juntos explodirmos com o ribom meu marido que me chama. Regressei voando, colo
bar do nosso amor. Abandonei a minha sogra ainda a quei-me de joelhos perante o meu soberano, baixei os
falar do feitiço. Quebrei a corrente que me impedia olhos como manda a tradição e disse:
a corrida com o peso do meu corpo, navegando nele - Diga, pai.
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PAULINA CHIZIANE
BALADA DE MOR AO VENTO
- A água está pronta? - Samau, não te rales com essas cabras. Tu és a her
- Sim, pai. deira dos braceletes que orlam os meus braços e os
- Hum, parece que choraste. Morreu alguém? meus pés. Todas as riquezas são para ti. As outras mu
Arremessou-me um violento pontape no traseiro
, ·'
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PAULINA CHIZIANE BALADA DE AMOR AO VENTO
justiça divina, pois Deus deserdara de encantos todas três prestações. A primeira, de seis vacas, seria antes do
as outras para concentrá-los numa só. casamento. A segunda, de três, teria lugar depois do nas
Os homens não choram, ensinam os pais aos filhos. cimento da primeira criança, e a última depois do nasci
Mwando é homem e chora, mas com razão. Acabararh mento da segunda. Para pagar a primeira, o pai do
-se os prazeres de vaguear com a bela Sumbi nos da Mwando viu-se obrigado a bater a várias portas, pedin
minhos tortuosos, ela ã frente e ele atrás. do emprestada mais uma vaca para juntar às cinco que já
As suas mãos jamais passeariam naquela paisagem possuía.
exuberante de altos e baixos, terminando sempre en Mwando casara-se sonhando construir um ninho de
calhadas na elegantíssima cintura de pilão. O seu cor amor, mas o diabo tomou-lhe a dianteira. Tudo acabou
po jamais beberia daquele sangue de ogo, pote de mel, numa trágica separação, foi sol de pouca dura.
fonte da vida. No primeiro dia da vida conjugal, a Sumbi não cum
Recordava-se dela quando pilava, aí, quando ela pi priu com as regras. Simulando dores de cabeça, não pi
lava no fenecer da tarde, ele sentado debaixo do cajuei lou nem cozinhou para os sogros. Sentava-se na cadeira
ro, apreciando aquele levanta e baixa renético ao ritmo como os homens, recusando o seu lugar na esteira ao
das pancadas. Terminado o trabalho, ela colocava as pe lado das sogras e das cunhadas.
neiras debaixo dos braços caminhando bonita, serena, Os recém-casados, como dois pombinhos, não se
ao encontro dele, deixando-o alquebrado, possesso, en separavam um só instante. Acordavam felizes muito de
feitiçado, porque parecia a lua a descer do céu, sorrin pois de o sol nascer, na hora em que os mais madru
do só para ele. gadores regressavam ã casa completamente esgotados
Como um livro aberto, olheava na memória as ima pelo sol. Só come quem trabalha, ensina a sabedoria
gens do dia do triunfo, quando na Igreja de São Pedro popular. O casal, tão preocupado com os seus amores,
se unira ã mulher dos seus sonhos, numa boda que cau esqueceu por instantes esta lição, transmitida de boca
sou inveja e espanto a todos os presentes. em boca a todas as gerações, o que provocou murmú
O casamento fora arranjado pelos pais dela, gente rios no seio da família.
rica que, na impossibilidade de casar a filha com um - Querida Sumbi, as chuvas acabam de cair, o chão
nobre, quiseram presenteá-la com um homem culto e está molhado. Temos de semear antes que a terra seque.
bem-parecido, tendo a escolha recaído sobre o Mwan - Não posso, mãe. Sinto ligeiras dores de cabeça.
do, pois não havia outro que o igualasse. Aos pais do - Sendo assim, ficas a preparar a refeição.
rapaz também agradou o negócio. Qual era a família de - Tenho febres, mãe. Com o calor da cozinha a si-
Mambone que não queria possuir a famosa flor do tuação pode piorar.
Índico a embelezar o seu jardim? E assim ela continuava dormindo. Depois da refei
As exigências do lobolo eram superiores às pos ção pronta, era chamada a comer, o que azia com o
sibilidades da família do Mwando. Queriam doze vacas, maior apetite de sempre.
tendo eles apenas cinco. Para ultrapassar o impasse, fize - Minha filha, que doença é essa que nunca te tira
ram-se várias reuniões, encontros, conversas, acabando o apetite?
tudo numa feliz concordância. O lobolo seria pago em - Por favor, será que a mãe nunca ficou doente?
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Nos poucos dias que ela se dignou a azer alguma Quando os celeiros da família se esvaziaram, ela
coisa, o marido estava sempre ao seu lado, ajudando começou a receber presentes dos seus admirado
na cozinha, na lavagem da roupa, demonstrando, assi;, res.
a força do seu amor. O amor ao luxo levavam-na algumas vezes a tomar
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As línguas do povo começaram a actuar, o caso nao atitudes condenáveis e o marido, apanhando-a em la
era vulgar. Onde já se viu um homem colar-se como um grante, em vão tentava assumir o seu papel de homem
piolho nas capulanas da mulher, cozinhar para ela, la oendido, digno e honrado. Quando ele a repreendia,
var para ela? As gentes conspiraram, pois o casal seria ela chorava de mansinho pedindo mil desculpas. Quan
capaz de contaminar a aldeia com aquele modo de vida. do a fúria o impelia à agressão física, ela clamava por
Afastavam-se do mal, impedindo as esposas e os filhos piedade, pois era tão doentia, fraquinha, sensível. En
de se aproximarem daquela mulher para não serem quanto ele soria, a mulher oferecia sorrisinhos boni
contaminados por aquele génio do feitiço. As mulhe tos, dominando-o completamente. Quem pode levantar
res, por sua vez, tratavam a Sumbi com desdém, que a mão contra um anjo?
mais não era senão cobiça dos seus dotes naturais, e Está enfeitiçado, está engarrafado, dizia o povo.
outras porque viam os seus maridos completamente Comeram-lhe o coração e fizeram dele um cesto de rou
perdidos pelos encantos dessa mulher. A estes burburi pa suja, pois homem assim nunca se viu em lado
nhos, Mwando reagia com arrogância, porque não via nenhum. Os comentários uravam os tímpanos dos con
mal nenhum em agradar a mulher que era sua. Sumbi, selheiros da aldeia, que consideraram o caso como uma
por sua vez, desafiava o mundo com sorrisos e gestos afronta directa à sua autoridade, ofensa à moral públi
sensuais, como se alguém lhe tivesse segredado que o ca, e eles, guardiões das leis da tribo das ilustres tradi
seu sorrir dominava o mundo. ções legadas pelos antepassados, moderadores da
A vida do casal deteriorara-se com o passar dos conduta da comunidade, sentiram-se na obrigação de
dias. A Sumbi, ao saber-se adorada e protegida, não intervir. Homem que se deixa dominar por uma mulher,
tardou a t ornar-se tirana. As manifestações carinho não merece a dignidade de ser chamado homem, e muito
sas do marido passaram a obrigações, situação que menos ser considerado filho de Mambone. Não se com
piorou com a chegada da gravidez. Fazia dos sogros pra uma mulher para trazer prejuízos à família, antes pelo
e cunhados seus joguetes. Passou a exigir capulanas contrário, o lobolo é uma troca de rendimentos. Mulher
novas e panos brilhantes, daqueles que eram trazi lobolada tem a obrigação de trabalhar para o marido e
dos pelos mercadores indianos em troca de cereais. os pais deste. Deve parir filhos, de preferência varões,
Mwando chegou ao cúmulo de esvaziar completa para engrandecer o nome da família. Se o rendimento
mente os celeiros da família, para satisfazer os capri não alcança o desejável, nada há a fazer senão devolver
chos da esposa, filha do senhor de terras, a quem a mulher à sua origem, recolher as vacas e recomeçar o
nunca faltaram capulanas garridas e colares de luxo negócio com outra amília. Mulher preguiçosa não pode
para dar mais graça àquele corpo talhado pelos deu ser tolerada, muito menos a libertina.
ses da arte, não ia ela regressar ao lar paterno por Os conselheiros destacaram indivíduos velhos e
sentir-se privada do luxo em que sempre vivera. novos para abordagens individuais ao casal. Mwando
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lher. Louco de furor, mais convencido de que aquele com pobreza não faz felicidade, arrumou as coisas dela
encontro não era de ajuda, mas sim de injúria e destrui e partiu.
ção, ergueu-se bruscamente e, de mãos mergulha as �
nos bolsos, abandonou a gentalha e as suas fofoquices.
Quem são eles para aviltá-lo? Que entendem eles 1da A ogueira estava quase consumida. Mwando aviva-a
vida e do amor? Vivem nos abismos da cegueira, ado colocando mais ramos secos. Estende-se embrulhado na
rando as trevas, os mortos e os feiticeiros. Campone manta de algodão, procurando o sono libertador que
ses sem história, vieram ao mundo apenas para cultivar, se recusava a vir. As vozes da madrugada já ressuscita
reproduzir-se e morrer. Como podem humilhá-lo, a ele, vam a terra fria quando inalmente conseguiu adorme
civilizado, erudito, cristianizado? cer.
O pai, envergonhado das atitudes do filho, vocife Adormecido soltava gritos desesperados, o corpo
rou torrentes de palavras azedas, só parando quando soria vibrações renéticas, esticando e encolhendo os
o ôlego se esfumou. Os outros velhos icaram petrifi membros, encharcandoe suor a manta cinzenta. Fan
cados. Semelhante atitude era intolerável, sobretudo tasmas e monstros perturbavam o seu repouso. Sonhava
num rapaz daquela idade. Estava enfeitiçado, não ha com o menino alegre e saudável no seu regaço, e a
via dúvida alguma. Homem que teima em viver com Sumbi esvoaçando pelos ares, levada arrastada pelos
uma só mulher, ainda por cima preguiçosa, não é dig seus cabelos de seda, baloiçando no ar como uma bor
no de ser chamado homem. O galo que não consegue boleta de asas largas. Apareceu-lhe um monstro medo
galar todas as frangas é eliminado, não presta. nho que o perseguiu, deu um grito e despertou. Limpou
- Acalma-te, homem diziam os outros ao pai do o suor da testa com a palma da mão. Mais uma vez,
Mwando. - Acalma-te. Não te esqueças de que a cul procurou a mulher e o filho e encontrou o vazio. Não
pa está também do teu lado. Fizeste má sementeira dei tinha mais dúvidas. Estava vencido e arruinado.
xando um ilho teu aprender coisas estranhas à nossa Da ogueira restava apenas a cinza, a solidão e o
tradição. De resto tudo leva a indicar que o rapaz é ví frio. Abriu a porta da barraca, deu uns passos para
tima de um feitiço forte, terrível! o pátio, experimentando uma sensação de alívio e paz
Nesse mesmo dia, o jovem casal abandonou a aldeia interior, reanimado pela corrente fria da madrugada.
natal, fixando-se muito longe dali, do outro lado do Sentia-se leve, gelado, e vazio como um cadáver. Já não
rio. sentia amor nem ódio. Vivia uma paz de morte, nada
Longe da protecção da falia, os problemas tomaram mais lhe perturbando a alma. A paz é a morte, a vida é
-se ainda mais graves. Os anos que viveram depois do a luta. Perdeu a luta, perdeu a vida. Por momentos
nascimento da criança oram infenais. Quando o ilho sentiu saudades dos tempos de ansiedade, quando
morreu, os pais da mulher inventaram uma história qual percorria caminhos tortuosos à procura de nada. Já ti
quer de feitiços, afirmando que os defuntos não abençoa nha alcançado tudo, estava morto. Tinha saudades dos
vam aquela união, razão pela qual levaram consigo o tempos da vida.
primeiro ilho, primeira sorte. Aquilo era pretexto, toda a Voltou à penumbra da barraca e adormeceu tranqui
gente sabia, Sumbi já tinha arranjado um marido rico, amor lamente, despertando quando o sol atingia o pico do
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céu. Ergueu-se cambaleante, sentando-se na soleira da Achava os campos verdes sem vida, as flores sem
porta, revoltado contra a vida e o mundo. aroma, as árvores inertes e os pássaros de gelo arre
Levantou-se vacilante e caminhou sem rumo. Segi;iu fecendo o céu. Arrastou os pés até perder o fõlego,
o mesmo trilho dos homens com enxadas no ombJO, acabando por sentar-se à beira de uma rua qual
interrogando-se da razão de ser da sua presença na quer.
terra, no meio daquela multidão formigando em todos Mesmo ao alcance da mão estava um pé de giras
os carreiros. Sentia que a vida devia ser algo mais do sol. Descarregou todas as suas frustrações sobre a planta
que nascer, sorer, lavrar e morrer. Insultou o ventre da inofensiva, arrancando-a brutalmente do chào. Raivo
mãe que o trouxe ao mundo dos tormentos. Lutava com samente, despedaçou-a folha a olha, pétala a pétala.
um esforço sobre-humano para conter o desejo irresis A seiva leitosa da planta escorria como lágrimas verda
tível de realizar com as próprias mãos um genocídio deiras, lágrimas quentes. De repente sentiu o coração
libertador, aliviando todos os seres humanos de uma da lor a vibrar e parecia alar de mansinho: "Porque me
existência miserável. De punhos cerrados no fundo dos arrancaste do meu mundo? Era tão feliz entre as ervas,
bolsos, olhou para os velhos que lhe passavam de lar embelezava a natureza e tu mataste-me"' Sentiu mais um
go, e a torrente de pragas que lhes desejava atirar aos nó na garganta, a flor tinha razão, acto contínuo, ati
rostos espiralava-se na garganta, formando um pesado rou o girassol ao chão, já sem vida.
nó. Sublevou-se contra si próprio, ao saber-se incapaz De repente abriu os olhos para o mundo. Foi en
de levar a cabo os seus ideais. Só os olhos túrgidos, ruti tão que se apercebeu de que a floresta estava viva, os
lantes, conseguiam fulminar o mundo, numa acção pássaros alegres, os ventos e as borboletas voavam fe
destrutiva que não ultrapassava o espaço ocupado pelo lizes para o horizonte, ele é que olhava para o mundo
seu próprio corpo. com olhos fechados, olhos de morto, e todos os seres
Escaldando, fervilhando, conseguia apenas murmu continuavam na dança da vida. Compreendeu inalmen
rar asperezas para seu íntimo, monologando: mas o que te que a vida é a dor e a alegria, a vitória e a derrota, a
é que andam a fazer estes velhos desgraçados? O que ofensa e o perdão, o amor, o ódio, e todos os contrá
pensam que ainda fazem neste mundo? Os males da ter rios. O que seria a terra sem a presença humana? Se as
ra são causados pelos velhos, guardiões das antigas tra mulheres morressem, quem daria luz à luz do sol? Que
dições, que só acarretam desgraças às novas gerações. seria a vida sem os pássaros, árvores e lores? O uni
Esquivou-se a um grupo de mulheres e crianças dirigin verso não teria sentido, não existiria.
do-se ao rio e, para elas, também rogou pragas. Mulhe Revoltou-se contra as suas próprias atitudes. Homem
res! Os olhos delas deviam cegar e as línguas etirpadas. que é homem deve saber resistir às vicissitudes da vida,
Foi por amor a uma mulher que se destruíra. Deus devia pois todos os seres vivos têm as suas amarguras. As ár
mandar um fogo sagrado para destruir todas essas ser vores sofrem da chacina dos homens, mas nunca deixa
pentes do inferno. Apenas se compadeceu das crian ram de viver. As ervas sorem do pisoteio desordenado
ças, ah, pobres crianças que um dia subirão ao calvário de todos os bichos da selva, mas nunca se queixaram.
construído pelos seus pais. De facto o mundo não de Os animais mais fracos são o pasto dos mais ortes, mas
via existir. nunca deixaram de se multiplicar. Os pássaros são apri-
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ce-me evaporando a minha angústia, que vontade louca aves voaram baixo e os gala-galas enfiaram-se nos abri
de ser amada, mas onde está o homem para isso? gos pressagiando a tempestade. A noite caiu grávida de
Nestes últimos tempos vejo mulheres a sucederelj-Se todos os mistérios. Um bando de corujas interrompeu
umas atrás das outras e agora somos sete. Que pod�res o repouso com os seus coros agoirentos espalhando a
tem um só homem para amar cinco, sete mulheres jovens ressonância até ao interior das palhotas adormecidas.
e ortes? A chegada da Phati, a quinta esposa do meu ma Os ventos do infortúnio sopravam na noite quente de
rido, veio transtonar toda a nossa vida e eu morri com mágoas, mas a quem se dirigiam? Cada um de nós pen
pletamente no coração daquele homem. Já passam dois sou em si e nos seus. A serenata agoirenta ofereceu
anos que não come a minha comida, que não me ofere -nos uma noite tumultuosa, cheia de pesadelos.
ce uma carícia. Essa Phati, essa Phati, não sei que espé O céu nasceu nublado, mas a orça dos ventos afas
cie de tatuagens ela tem no baixo-ventre para transtonar tou a tempestade, e o sol soergueu-se preguiçoso e frio.
desta forma um homem a ponto de esquecer-se dos seus Os camponeses dirigiram-se às fainas, cabisbaixos, e
deveres. Essa vaca tenta brincar comigo, pensa que o fi entrecruzavam-se silenciosos. Os olhos fulminavam-se
lho dela será eleito herdeiro, mas engana-se. Hei-de ter de soslaio e os lábios encarceravam os grãos de milho
um filho varão, e só esse é que vai govenar este teritó enfileirados nas gengivas, abafando os cumprimentos
rio. de bom-dia, compadre, dormiu bem?
Sinto-me tão só e abandonada. Ainda há quem in Alguns camponeses viram os seus atalhos atraves
veje a minha posição, pois dizem que sou rainha, mas sados por mambas negras e outra coisa não fizeram
que grande decepção. De que vale usar braceletes de senão retomar a casa e dialogar com os defuntos para
ouro, capulanas de luxo, ornamentar-me como um pa a decifração de tão enigmáticas mensagens.
vão, quando nem sequer tenho ar para respirar? Nos Foi nessa manhã que se realizou o último conselho
anos passados nutri a ambição de usar estes ferros, da Corte do Rei Zucula. Ditadas as últimas vontades, o
agora tenho-os, são meus e já não me interessam. Es rei foi acocorar-se na raiz da igueira secular falando
tavam bem no corpo da antiga proprietária, a minha com os antepassados remotos e recentes. Diz-se que
rainha, minha Rassi, mãe, amiga, confidente, que os nesse momento apareceu uma cobra enorme que se
defuntos a guardem em boa companhia. Descansa em enrolou no tronco da figueira, lançando línguas de
paz, nobre alma, junto do teu esposo que em vida não fogo. Foi nesse momento que a sua vida se esfumou.
te soube amar. É com muita mágoa que recordo a morte O rei morreu de cócoras, e de cócoras foi enterrado,
do rei e da rainha e dos tormentos que se viveram na com a lança de guerreiro à direita, e o escudo à esquer
época. da, pois se outra coisa fizessem não choveria.
Tudo começou numa tarde em que a natureza en Depois do cantar dos galos, os tambores violaram a
viou mensagens estranhas a todos os habitantes. s bor tranquilidade do meio-dia, numa mensagem que não era
boletas negras voaram pelos campos e, na nossa casa, de alegria nem de festa. O tantã não era um tambor vul
uma codorniz esvoaçou, solitária, caindo no meio do gar, mas aquele que só se usa nos momentos especiais.
quintal. Levantaram-se vozes de exclamação e as men Desde o começo da noite que o povo vivia na ânsia de
tes quedaram pensativas. As nuvens cobriram o céu, as desvendar o pesado mistério. A mensagem era clara:
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de morte. Mas quem teria morrido? O som repetia-se de homem amado, sem filho nem protector e, para cúmu
instante a instante. lo, o rei não lhe legara um palmo de terra como heran
"Vinde, vinde e chorai porque hoje estamos na 9r- ça, da mesma forma como o seu ventre nunca lhe dera
fandade. a alegria de um filho. Num pranto silencioso a rainha
, principal fungava divertida com o arrebatamento paté
Vinde, vinde e cantai porque o pai entrou no reino
de além." tico da Mayi, num misto de júbilo e piedade.
O eco das batucadas correu por toda a aldeia. Os Lá fora, a aldeia real apinhava de gente vinda de
que estavam na sacha abandonaram a enxada; as mu todas as direcções para chorar e prestar a última ho
lheres suspenderam a cozinha; os meninos largaram o menagem ao filho amado do povo. Os gritos das car
jogo. Pelos carreiros, as pessoas cruzavam-se e interro pideiras tornavam o ambiente mais solene, os seus
gavam-se: Mas quem morreu? Só pode ser o rei. O rei? arrebatamentos tão pereitos contagiando mesmo aque
Não, não é possível. Mas é possível sim. O pangolim les cuja presença era simples curiosidade.
apareceu no cruzamento dos caminhos, os homens Com a morte do rei vão-se os privilégios de uns e
tentaram apanhá-lo, mas este desapareceu misteriosa os favores de outros. Reacendem-se vinganças e dívi
mente. É verdade. Não, não é verdade. Os reis não mor das antigas. Haverá ajustes de contas. Não era sem ra
rem assim, como qualquer um. zão que os grandes do reino, em poses solenes, estavam
A mensagem repetia-se. Os espíritos incrédulos não serenos, absortos, distantes, sem uma lágrima nos olhos.
tiveram outro remédio senão render-se à evidência. Caí Não era pela morte do chefe, não. Estavam a contas
m de borco, ulminados. Suspiros de angústia escapa com a sua consciência, revolvendo o passado, os ac
ram de muitas gargantas, uma desgraça nunca vem só, o tos praticados, pois não é em nome do rei que se come
rei nunca morre só. As mulheres, de crianças ao colo, tem violações, torturas, prisões, roubos e vinganças
escancaravam as bocas, rasgavam as roupas, mostrando pessoais? O sustentáculo caiu, e os grandes homens,
o seu nu, a sua humilhação e submissão ao sol, aos deu órfãos, encontravam-se à mercê dos seus inimigos. Che
ses e aos defuntos de todas as famílias, clamando por gou o momento crucial temido por uns e desejado por
socorro, pedindo perdão para os seus rebentos que não outros. Os avoritos do sucessor, em gestos patéticos,
conhecem as maldades deste mundo, que ainda não be gritavam mais alto que as carpideiras numa represen
beram a sura do feitiço, da devassidão e da imundície. tação perfeita, camuflando o júbilo, pois tinha chega
A noite cai. O defunto jazia na cama real, atapetada do a sua oportunidade. Entre lágrimas recenseavam as
com quinze capulanas das quinze esposas, rodeado bonitas mulheres que iriam submeter; as pessoas de que
pelos familiares e servidores mais devotos. No compar se iriam vingar, os prestígios de que iriam desfrutar, os
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timento ao lado, as catorze viúvas, movidas pelo sen roubos e as ofertas que iriam exigir.
timento de dor, caíram sobre a pobre Mayi, esposa mais A noite ainda era criança quando soaram três batu
cadas fortes calando todas as vozes. Tudo ficou em si
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querida do falecido rei, proferindo as mais incríveis
injúrias, acusando-a de ter enfeitiçado o soberano. Para lêncio só se ouvindo o rugir de leões famintos no
as catorze viúvas aquele momento simbolizava o fim da interior da selva. À volta da grande ogueira iniciaram
humilhação e, para a Mayi, o principio dela, sem o -se as batucadas solenes que mergulharam todos os cor-
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pos na dança fúnebre, dança dos mortos, acompanhan Os homens renderam homenagem à perfeição da
do a alma do rei na sua viagem ao reino de além. natureza. A trovoada anuncia a chuva, o granizo anun
Cantaram os primeiros galos, o céu tornava-se ela- cia fartura na colheita de cereais, os pombos anunciam
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ro. Um vento frio soprou nas copas das árvores anun- a paz, a noite anuncia o dia. Toda a gente prognosti
ciando a tempestade. Os batuques silenciaram. O nSvo cou a morte do rei, a natureza enviou aos homens
rei, meu marido, pronunciou breves palavras e prestou mensagens alarmantes, e todos aguardavam a des
juramento diante do defunto. Nos seus olhos embacia graça, pois as corujas cantaram ao meio da noite, os
dos adivinhava-se o regozijo e, na voz, uma virilidade gatos miaram nos tectos das palhotas, as toupeiras aban
inédita, o filho herdeiro sempre festeja a morte do pai. donaram os subterrâneos, as borboletas negras voaram
Abriu-se o coval onde o rei foi colocado de cócoras. pelos campos, as mambas cruzaram os caminhos e os
Quando o corpo poisou no fundo, a chuva começou burros, arrebitando os orelhões, zurraram sem parar
a cair, miudinha. Quando se lançou a última pá de areia arejando o feitiço no ar. Houve uma mensagem mais
a chuva caiu em catadupas. evidente, a mensagem do pangolim. Quando este apa
Todos os rostos floresceram de alegria, Zucula é o rece, é porque vai chover e morrer o rei. Tudo isso
rei de todos os reis, os defuntos mandaram a chuva para aconteceu.
acompanhá-lo ao mundo dos mortos, para purificar a Os mais novos comentavam as mensagens da natu
terra enegrecida pelo luto, é grande o nosso rei, a chuva reza, mas os velhos mantinham a língua encarcerada
saudou o novo rei, haverá felicidade e fartura. Os tam entre os dentes.
bores vibraram mais alto envolvendo todos os presen - Se o rei morreu é porque chegou o momento.
tes na dança jubilar de todos os antepassados. - Os reis não deviam morrer assim, avô.
Em toda a dinastia nunca houve funeral mais su - Como qualquer um, eles germinam no ventre das
blime, testemunhavam os mais velhos. A chuva caiu, mulheres.
abençoou a terra, haverá fartura, Zucula foi um gran - Não devia ser assim.
de rei. - Ó gente nova. Como dizer-vos a verdade? O dia
Do meu canto, participava no festival, maravilhada. morre para nascer outro dia. Todos morremos. Cada
Finalmente seria chamada esposa do rei. Brevemente dia que passa aproximamo-nos do fim. A vida é assim.
iria usar os braceletes reais. Era para mim um grande - Mas como é possível?
momento. - Ignorantes! Eu só lamento uma coisa. Antigamen-
A natureza é voraz, alimenta-se de carne fresca. te os homens não morriam tão cedo, com tantas espo
O rei não morreu de velho nem de doente, ainda trans sas ainda por cobrir. Dê-me essa pitada de rapé.
pirava saúde quando os defuntos vieram buscá-lo. Um rei nunca morre só. O ministro principal do rei
O seu corpo repousava na terra molhada e em breve no enforcou-se na noite do velório e especula-se por
seria pasto dos vermes, seria fermento, iria adubar a ter aí que foi para fugir da sua própria consciência, e uma
ra, para que o milho cresça. Assim acaba a vida, assim das esposas, desgostosa, meteu fogo na palhota, mor
morreu o senhor dos territórios, dono dos campos, do rendo calcinada com os três filhos. O chefe do exérci
gado e das sementes. to também se enforcou . Na mesma noite do velório, a
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crapulosa Mayi, depois de tanta humilhação, apro viva, acredito que as coisas não seriam assim. Ela ama
veitou a confusão para roubar parte do tesouro real, va-me e defendia-me. Agora sinto-me tão só. Ela teve
tentando fugir ao abrigo da noite, e foi comida por una morte repentina, quase igual à do seu deunto rei.
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leões, mas os animais não lhe tocaram os seios, as ta- Foi no oitavo dia da morte do marido que ela se
tuagens e o coração, e nem deixaram um arranhão Ao aproximou da figueira para fazer as oferendas. Apare
rosto que, conforme se diz, estava bonito e sereno ceu a mesma cobra que lançou línguas de fogo, levan
como sempre fora em vida. do consigo a vida da rainha. Ela morreu de joelhos, e
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Os dias seguintes foram ainda mais sangrentos. de joelhos oi enterrada, com una faca encravada na
Os súbditos mais devotos do antigo rei reivindicaram palma da mão direita, una moeda de ouro e grãos de
as antigas posições e foram silenciados para sempre. mapira na outra, pois se outra coisa fizesse, não have
Duas das viúvas foram calcinadas com os seus filhos, ria paz para todos os seus descendentes. Realizaram os
por disputarem o poder. mesmos rituais fúnebres e houve outras mortes que nin
Oh, amargas recordações. Que solidão, que tris guém consegue explicar, como o caso dos cinco jovens
teza, a vida para mim já não tem sentido. A angústia da mesma idade, circuncisados a mesma época, que apa
habita o meu mundo, mas este marulhar das ondas receram mortos no rio. E claro que eu não vi essas cobras
acalenta-me, anima-me, ressuscita-me, a manhã está de que se fala pois, quando se deram estes aconte
vestida de amor, os peixes amam-se, os caranguejos cimentos, eu estava gravemente doente, uma doença de
amam-se, as moscas amam-se, até os caracóis se amam, feitiço provocada pela Phati, a esposa mais querida do
só eu é que amo em sonhos, rebolando .solitária no leito meu marido. Essa mulher daria tudo para me ver mor
vazio, nestas noites frias de junho, enquanto o meu ta, mas perde o seu rico tempo, os nhamussoros já va
marido se esfrega sobre mil tatuagens, noite aqui, noi ticinaram a minha sorte. Eu morrerei em terras distantes,
te ali, semana aqui, semana acolá. O mais doloroso é que do outro lado do mar.
há una mulher que tem a cana aquecida cada noite, pois Rebolo no chão despreocupada. As crianças estão
o marido vagueia por todo o lado, terminando a noite entregues à nacaiaia e só se lembram de mamar quan
lá, onde dorme até ao nascer do sol. Todas as outras do estou presente. O trabalho das nachambas não é
recebem as sobras, mas comigo ainda é bem pior. Pas comigo, tenho muitas servas que se encarregam disso.
sam já dois anos que eu espero a minha vez mas ele não Fecho mais os olhos deleitando-me com as carícias
vem. Sou a melhor cozinheira, cada dia faço o máximo do sol. Sinto os passos de alguém que se aproxima, tal
para agradar, e quando chega o meio-dia, prova a mi vez seja.um pescador. Escuto uma voz que me saúda,
nha comida e diz logo que não tem sal, não tem gosto. e quando abro os olhos, vejo um homem ajoelhado, in
Quando chega a noite e reclamo, diz que é porque não clinando o tronco numa reverência.
tonei banho. Vou ao banho e volto, inventa que a cana - Saúdo-a, rainha, mãe de todo o povo de Man
tem cheiro de urina do bebé. Quando argumento, vo bone.
mita-me um discurso degradante que não ouso repetir. - Ahêêê, obrigado, bom dia.
Ah, maldita vida de poligamia, quem me dera ser soltei Num salto coloco-me sentada. Aquela voz ulminou
ra, ou voltar a ser criança. Se a minha rainha estivesse -me o íntimo.
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despreza, odeio as minhas gémeas inocentes que me ausente, vejo-o todos os dias, desejo-o todos os dias,
impedem o caminho da felicidade, não suporto mais mas ele vira-me as costas, tortura-me, consciência, ainda
estes braceletes de ouro que me prendem indissoluvel- me acusas? Entreguei-me de corpo e alma a outro ho
mente a um homem que não diz nada ao meu coraçã-
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apaixonadamente dizendo que estava bela. Sussurrou a minha cama, é sempre comigo que tem o melhor
-me coisas doces, delirou como nunca o vi delirar e des- sono, é sempre comigo que desperta depois do nascer
cobri nele uma verdadeira paixão. 1.
do sol. Cada vez que ele sai, traz-me sempre alguma
Foi o outro homem que me vestiu desta beleza qpe coisa; uma peça de caça; uma abóbora; um cacho de
o enlouquece. Foi o outro que me irradiou este calor bananas, e até mesmo uma laranja.
que o aconchega. É de outro a vida que se move no Sinto que ele me ama. Acaricia o meu ventre, e
meu ventre, e a criança será bela, meu marido orgulhar aguarda ansiosamente o nascimento do herdeiro. Mas
-se-á de um rebento alheio. Só peço a Deus que a crian porque me desprezou todo este tempo? Porque espe
ça não seja parecida com o verdadeiro pai e, mesmo rou que eu desse o meu coração ao outro para depois
assim, não será muito difícil de convencer que é pare vir-me contar historiazinhas de amor? O mal já está feito
cida com o bisavô, venham todos os deuntos em meu e cresce no meu ventre com a velocidade de um mun
auxílio. Só penso em partir para muito longe. Mas para do. Não podem imaginar o esforço que faço para cor
onde? Como? Será difícil começar a vida em terras des responder às suas carícias. Quem me dera voltar a ser
conhecidas sem amigos nem família. Não, não partirei como era, quem me dera voltar a nascer para colocar
nada. Nunca poderei sair desta prisão com guardas por cada pedra no seu lugar. Sinto-me perdida, já não con
todo o lado. De resto não trocaria o meu bem-estar sigo disfarçar os meus sentimentos e não tardará mui
por nada neste mundo, nada! Este filho do adultério to que se descubram as malhas da traição, venham
nascerá neste curral e, se for varão, será o herdeiro. Será todos os defuntos em meu socorro.
o sangue da traição a govenar esta terra, terrível des A Phati está doente, muito doente mesmo. Na se
tino! Mas que culpa tenho eu de tudo isto? O destino é gunda-feira, trouxe um feitiço para eu morrer no par
cruel para comigo, mas não ui eu quem inventou o to, mas o meu marido descobriu isso em sonhos,
amor e a poligamia. espancou-a impiedosamente, e, desgostosa, tomou um
veneno que em vez de a matar, provocou uma diarreia,
rebentando-lhe toda a pele que até parece uma lepro
A Phati anda doida de ciúme e já ameaça abandonar sa. O nosso marido já nem quer saber dela; distribui o
o lar, az zaragata com toda a gente e, antes de ontem, amor por todas nós como se ela já não existisse, mas é
envolveu-se em cenas de pancadaria com três das nossas a mim que ele ama de verdade. O meu dilema cresce,
irmãs. Foi ao curandeiro dela para nos enfeitiçar, mas qual e pouco falta para o rebento conhecer o sol e não sei
é o curandeiro capaz de matar seis esposas do rei só para o que vai acontecer.
satisfazer os caprichos de uma perversa, crapulosa e ciu
menta?
Meu marido está mais amoroso que nunca, os feiti Sarnau, um dia sem te ver é uma tortura de um
ços da minha curandeira uncionam bem, e ele até se ano. Preciso de estar ao teu lado. Porque me escondes
tonou simpático para as outras minhas irmãs. Esta se o teu belo rosto que me dá a vida? Amo-te desespera
mana faz uma escala rotativa, dorme metade da noite damente e sem ti a vida não tem sentido.
com cada uma delas e, à meia-noite, vem sempre para - Temos de ser cautelosos, Mwando.
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As rajadas frias da noite, as labaredas arco-íris, as libertada, o menino berrava com uma vozarra de " oatar-
sombras, as árvores prateadas, o choro do menino, rão velho, kenguelekezêêê!
as vozes embriagadas dos homens lá do outro lado, p Seu maroto, deste-nos tanto trabalho com a tua ca
cantar dos grilos e o silêncio dos pássaros testemunhc beça de melão, sorriam as parteiras; o meníno é belo, tem
ram a saudação do menino à lua cheia, altiva, apaixo- a cara da mãe, o menino é valente, tem a força do pai,
nada. o menino é rei, grita como um leão no interior da lo
O florescimento dos sorrisos contrastava com os tor- resta, o meníno é clarinho como a Phati, pudera, a Samau
mentos passados há um mês. O sol já ultrapassava o e a Phati odeiam-se por causa dos ciúmes da última, e é
zénite quando a criança deu sinais de nascer. O pavor mesmo por isso que o bebé tem a cor da pele dela.
do escândalo apoderou-se de mim, fiquei nervosa, afli Olhei timidamente para a criança; parecedíssima
ta, começou a altar-me o ar, sentia dores terríveis e gri comigo. Tem a cor clara do Mwando, seu verdadeiro
tava como louca, correndo de um lado para o outro tão pai. Aquele corp� que prometia a virilidade de um guer
louca como uma galinha poedeira. reiro era caractenst1ca comum dos meus dois maridos.
- Comeu ovo, comeu ovo - diziam as minhas so Ainda bem que toda a gente acredita que a cor clara é
gras - comeu ovo, é por isso que se comporta como causada pelas desavenças que tive com a Phati, quan
uma galinha que quer pôr, comeu ovo! do mcubava a criança no ventre, pois é assim mesmo,
As dores eram terríveis, a voz morria, e sentia a vida o ventre da mulher é um mundo que encerra os misté
a fugir. As parteiras lutavam sem sucesso. Puseram-me rios mais tenebrosos deste mundo.
o pilão na cabeça para ajudar a criança a descer e nada. Conta-se que aqui em Mambone, há muitos anos,
Como último recurso colocaram o pilão no estômago um homem se enorcou numa mangueira quando a
e nada. Todos transpiravam. Vieram os nhamussoros, mulher estava grávida. Depois do funeral, a mulher
fizeram-se as adivinhas e apanhou-se o nó do proble angustiada sentou-se diante da árvore durante muitos
ma: Phati. A feiticeira é a Phati que foi imediatamente dias e muitas noites contemplando-a, até que um dia
amarrada e espancada até sangrar e nada. Phati, se a o seu ventre rompeu, e de lá saiu uma criatura com
Sarnau morrer saberás o que é a fúria de um leão. Le corpo de gente, cabeça de manga, mas manga verdadei
vanta o feitiço que fizeste, não se mata uma rainha as ra, amarela, e tinha como cabelo folhas de mangueira.
sim. Phati gritava e chorava lágrimas de morte. Na Também ouve casos de mulheres que dos seus ventres
minha agonia restavam forças para me compadecer nasceram cobras, lagartixas, peixes e até ovos de aves
dela, pois é inocente, se a criança não sai é porque é truz. O caso mais recente oi de uma mulher que depois
filha de adultério. Rogou-se a todos os muzimos e nada. de nove meses de esperança, no lugar de um filho saiu
Na impotência 'dos deuses, no silêncio das almas em -lhe uma bacia de barro com um ovo de galinha lá den
suplício, no coração frio da noite, um violento choro tro, e em vez de sangue, eram feijões. O meu caso não
rompeu. é inédito; o meu ilho tem a cor da mulher que detesto.
Kenguelekezêêê!. .. cantaram os galos. Kengueleke- O meu filho é realmente bonito e o meu marido não
zêêê!, brilhou a lua, kenguelekezêêê!, as vozes mori se contém de tanto orgulho. Este menino é de uma for
bundas rea.nimaram-se no silêncio da noite, a Phati foi mosura que irá transtonar todo o mundo de Mambone.
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Mwando, eis o teu filho em mãos alheias; eis o teu 12
filho a encher de orgulho os corações dos outros, onde
estarás tu neste momento? Talvez nem imagines e1te
terrível desfecho. Nunca assisti a um nascimento com
tanta fanfarra. O Nguila anda inebriado de álcool e 8e
alegria, uma alegria que é tua, a vida está trocada, as
pessoas deviam andar de cabeça para baixo.
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tirar-te-ei desta escravatura da poligamia, e serás uma Aqui chamam-te rainha, mas rainha de quê? Tens uma
só mulher para um só homem, viverei em ti, viverás em alsa ortuna porque nada do que dizes ter te pertence,
mim, num corpo só, numa alma só, numa existência não tens amor, nem felicidade, nem vida. Vem, Sanau,
'
única num mundo único, numa vida única. que a felicidade espera-nos do outro lado do mar.
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N ssos corpos agitavam-se na agonia dos bosqtfes Mwando alava como um possesso de olhos perdi
incendiados. No naufrágio intolerável do prazer, nos dos no céu azul. Sua voz penetrava-me pelas chagas
sos braços debatiam-se à procura de uma tábua de sal abertas e corria no meu sangue para cima e para bai
vação, e chorávamos, e gritávamos, mas as lágrimas xo; suas palavras eram um pote de mel doce, doce.
perdiam-se no encanto do canto. Minha cabeça girava em «hula-hoop"; meus olhos en
Lá das alturas os habitantes do cêu em voo rasante xergavam mil cores ao mesmo tempo. Levantei-me va
desceram aos pares, trazendo-nos cada bico uma flor cilante e voltei a cair; as árvores, o céu, o sol e eu,
de laranjeira, saudando respeitosamente o duelo origi giráva-mos ã volta das árvores, do sol e de mim mes
nal em homenagem ao Adão e Eva de todos os seres. ma. Venceu-me a cane, venceu-me o coração, sou ape
O duelo era de morte e ressurreição. De nós restaram nas a escrava do sentimento que é mais forte do que
apenas os corpos derrubados, a cinza e o pó. eu. Hei-de partir com o meu amor, deixar tudo e todos,
Éramos dois pombinhos imolados em sacrifício. Era ,
mas não, não partirei. Não posso deixar os meus três
mos o vento abalando o universo, nós éramos tudo, o filhos. Não, parto, não, não parto. Parto, não parto.
princípio e o fim. Não éramos nada. Éramos um macho O amor é tudo na vida; o amor é a felicidade etena; o
e uma fêmea no princípio do mundo. Ou no fim do filho é tudo na vida; o filho é a felicidade em cada
mundo. momento. Tenho o amor de um e filhos do outro. Se
Renascemos do pó num sonho único, numa reali com uma lança na mão me puserem a escolher qual dos
dade única. Meu corpo estava maltratado, os cabelos dois deve morrer, entre o homem que amo e o pai
amarfanhados, o rosto laureado de carícias, os olhos dos meus filhos, qual dos dois mataria primeiro?
embaciados de orvalho doce, e a felicidade conquista A búfala, a leoa, a pomba e a avestruz escolheriam a
da era tão vasta, tão suave como profunda. felicidade dos seus filhinhos; e eu? Ah, em primeiro lu
- Mwando, leva-me até ao céu, até ao m do mun gar está a felicidade dos meus inocentes, mas eu estou
do. louca, pro-vei a carne de um homem, chupei o tutano
- Vem; trajar-te-ei com flores verdadeiras, flores dos seus ossos, bebi a sura das suas palavras, não pos
belas· vestir-te-ei de renda e onamentar-te-ei com pul so mais viver sem esta gota de água, terrível dilema. De
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seira de missangas, de ouro e colares de marfim; nos sesperada revolvo o céu, a floresta e a terra negra;
pés calçar-te-ei flores de cristal. Levar-te-ei para a cidade revolvo a alma, o coração e as entranhas; qual o cami
onde a vida é mais bela e civilizada. Ali não há poliga nho a seguir? Consciência, dá-me um conselho, uma só
mia, cada homem só tem uma mulher; as pessoas vi palavra tua, e eu seguirei os teus passos. A consciên
vem em ninhos de amor e não em currais imensos; as cia não me responde, eu morro, terrível dilema!
famílias são mais pequenas e unidas. Vamos para a ci - Partiremos na semana próxima quando a lua se
dade, Sarnau, em Mambone nunca conhecerás o sol. esconder.
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- Mas antes deixa-me pensar um pouco mais, um - Tu não viste nada, não ouviste nada, e nem vais
pouco mais. fazer coisa nenhuma. Os meus braceletes não usarás '
A loresta era um mar vestido de flores. Já sentia os - Sanau, vejo-te cada dia mais distante. O teu rosto
sapatos de cristal a aconchegar os meus pés, o farfalhar irradia uma felicidade estranha e sinto que não fui eu
das rendas roçando o corpo, e as capulanas de seda quem te vestiu dessa alegria. A beleza que ostentas,
mais luxuosas do que as que tenho a escorregar nas Sanau, não fui eu que te dei.
minhas ancas. Veio-me a imagem dos meus filhos; não, - Não compreendo nada do que me dizes, meu
não partirei, acabemos com estas loucuras. O meu ma marido.
rido já deixou de existir no meu coração, mas não par - Compreendes, sim. Andas a enganar-me. Esta
tirei. Esta é a minha terra e o meu mundo. Aqui nasci, manhã estiveste com um homem na zona das cavenas.
aqui os meus filhos e todos os meus antepassados tam O que procuravas por lá?
bém nasceram, adeus, Mwando, não partirei. Isso não é verdade. Eu sei quem inventou toda
Caminho acelerada, animada pela suprema decisão, essa história. Bem sabes que a Phati me odeia e daria
deixando para trás o velho mundo com os seus sonhos tudo para me ver morta.
e ilusões. - Não sei qual das duas mente. A verdade é que
- Sanau! tenho a lança já afiada. Quem fere o orgulho do rei é
Apanhei um choque. Phati estava escondida num punido de morte. Amanhã ao nascer do sol, convoca
arbusto e espiava-nos. Estou perdida. Brevemente todo rei todos os ndunas, u e a Phati beberão wanga. O san
o mundo saberá de tudo, venham todos os defuntos em gue da traição jorrará sobre a minha lança. Sarnau,
meu auxílio. andas a enganar-me. Quem é o homem com quem
- Sarnau, não sabia que também és feiticeira. dormes?
- Porquê? - Senhor, poupa-me deste flagelo. És o meu único
- Ninguém penetra nesta floresta e sai com vida, homem, meu marido, meu senhor. Deste-me a honra
com excepção dos que têm o génio do feitiço. Estavas sobre todas as mulheres da nossa tribo. A Phati odeia
tão bem acompanhada que nem deste pela minha pre -me, sabes muito bem.
sença, não é verdade? - Nos olhos dela, não encontrei sombras de men-
- E que tens tu a ver com isso? tira, e na tua voz não encontro o som da verdade. Sou
- Amiguinha, vi e ouvi tudo. Chegou o momento um búfalo ferido de morte, um cão ousou ferir o orou-'
da vingança. Serão meus os braceletes que te enfeitam. lho do rei. Sarnau, a desgraça aproxima-se, e a nossa
A vitória está do meu lado, Sarnau.A minha vingança separação será eterna. Se me trais, amanhã morrerás na
será maior que todos os tormentos que me fizeste pas ponta da minha lança. A Phati é a mulher que mais amo
sar. nesta vida, mas nunca a perdoarei por esta ferida que
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o ódio, o amor, o arrependimento e a alegria até ago amanhã beberás da minha sura, beberei da tua sura, até
ra continuam a revolver o meu íntimo. Ao raiar do sol me embriagar, e te embriagares, nos embriagarmos e
desembarcámos em Bazaruto, Mwando vendeu o barço juntos enlouquecermos, e vivermos, e morrermos, para
ao primeiro pescador e entrámos noutro que nos cqn renascermos em novos mundos, novos mares e novos
duziu até Vilanculos. horizontes. Dorme, dorme, meu anjinho!
Aqui estamos nesta barraca de caniço tão pequena
que só dá para dois. Mwando é pescador num barco
de indianos e trabalha bem. Ele é que faz todas as com
pras, traz-me tudo para casa, uma vez que nem posso
sair para não ser descoberta. Nunca imaginei que na
vida houvesse homens tão meigos, carinhosos e amo
rosos como o Mwando. Mas ele não volta! Terá sido
engolido pelas águas?
Meu Deus, protegei-o, mas que vida tão linda, tão
diferente da poligamia. É maravilhoso ter um homem
que é marido, amor, amante, irmão, amigo, pai e mãe.
A separação dos meus filhos tortura-me, mas tenho um
homem que é todo o meu consolo. O único problema
será devolver as trinta e seis vacas do meu lobolo, mas
o Mwando já vai tratar disso. Mas ele não volta, meu
Deus, muzimos, protegei-o! Ah, ele vem aí, corro a
abraçá-lo, recebo-o com um sorriso belo; alivio-o do
peso do cesto; conduzo-o ao nosso ninho, despojo-o
da roupa molhada, e massajo o corpo frio com água
quente. Sirvo-lhe comida quentinha, meu amor, traba
lhaste bem? Ele oferece-me um sorriso, sim trabalhei
bem. O mar está violento, está rio, pescaram alguma
coisa? O rosto rasga-se mostrando-me os dentes bran
quíssimos, de colher suspensa entre os lábios, sim, a
pesca foi boa, mas a comida é mais saborosa, está quen
tinha e gostosa, mas prefiro outro calor e outro gosto,
larga a colher e procura novo paladar na frescura do
meu sorriso que o embala.
Mwando, exausto, adormece sorrindo. Dorme, dor
me meu menino que amanhã beberemos outra cabaça
de mel mais doce e mais gostosa. Sonha, sonha, que
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e fossem seus partidários. Mwando participava nos Naquela manhã convulsiva, vagabundeou debaixo
comentários como se de facto estivesse alheio ao caso. do sol ameno em todos os cantos da aldeia à procura
Este herói não vivia em harmonia com a própria con,s de algo que desvendasse os seus mistérios. As carícias
ciência, fugindo da aproximação de cada arbusto, ca9a da mulher, os alimentos ingeridos, não lhe transmitiam
sombra, pois o medo acompanhava-o em cada passo. sabor nem calor. Estavam simplesmente insípidos.
O sono é a dádiva mais sublime dos seres racionais, Ao cair da tarde procurou a companhia dos homens
já que é quando se dorme que se restabelece a ponte despreocupados e felizes. Talvez aproximando-se de
entre os deuses e os homens. No sono, os defuntos les, recebesse um pouco da tranquilidade que pos
visitam-nos, expressam os seus desejos e vontades, pre suíam. Procurou a sedação da sura para afastar os
vinem-nos do perigo, prognosticando o amanhã, quer tormentos que lhe acompanhavam a cada passo.
seja ele doce ou penoso. Em casa da Maria havia uma banga onde a sura fluía
Na última noite os defuntos levaram Mwando a va aos borbotões. Os homens acocorados reuniam-se à
guear num cenário macabro, que não era mais do que volta do garrafão de sura que ocupava um lugar de
o vaticínio dos próximos dias de amargura. Sonhara importância no meio do círculo, enquanto o canecão
estar acorrentado por homens invisíveis, arrastando o de barro percorria a rodada. s moedas de prata, ganhas
seu corpo pela terra argilosa, sofrendo arranhões de nos biscates para os momentos de lazer, enchiam as
raminhos de árvores, pedrinhas, e tantos outros objec conchas almofadadas das mãos da gorda Maria que
tos pontiagudos esparsos pelo chão. O suplício era distribuía sorrisos, pois o negócio coria mesmo a conten
acompanhado por um cortejo de mulheres antasmas to. O ambiente era acompanhado por uma algazarra de
cujos rostos estavam vendados por capulanas. O sur homens embriagando-se, petiscando, namoriscando as
gimento repentino de um homem empunhando uma mulheres que ali apareciam para azer companhia à
zagaia em posição de morte fê-lo acordar em sobres clientela da casa. Mwando participava no rebuliço, reu
salto e, com os olhos ainda turvos de sono, procurou nido em confraternização com os outros leões do mar.
os seus captores no interior da barraca silenciosa, ou Apesar da semiembriaguez, Mwando estava atento
vindo apenas o ruído dos seus movimentos e o ronro a todos os movimentos, não fosse ser esfaqueado a
nar angélico da mulher que dormia ao seu lado. qualquer momento, tendo consciência do perigo que
Maus sonhos me perseguem. Graves acontecimen pairava sobre a sua vida. A chegada de três forasteiros
tos decorrem em Mambone, pensou. É preciso saber a colossais, de passadas largas e seguras, que mais pare
verdade. Não esperou pela lavagem do rosto, o caso era ciam guerreiros pela sua arrogância, pois não possuíam
de urgência. Remexeu os bolsos do casaco e de lá ti a humildade dos pescadores, atemorizou-o. A luz escas
rou uma moeda de prata, abriu a portinha da barraca, sa do quarto crescente ajudou a identiicar o rosto de
e, em passos rápidos, galgou furioso o chão negro ao Nhambi, seu irmão de circuncisão, que pertencia à corte
encontro da casa do adivinho. Escutou o oráculo que do rei de Mambone. Foi percorrido por um grande ar
lhe contou uma história de antasia, que nada tinha a repio, o sexto sentido já lhe indicava a razão da presença
ver com as suas preocupações. Largou a moeda, aban dos três homens. Discretamente, afastou-se do grupo,
donando o adivinho sem um olhar de despedida. procurando o abrigo da sombra densa no pátio da casa.
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Nhambi ora seu grande amigo nos tempos da in ros do reino de ter enfeitiçado a rainha para ocupar
fância. Foram parceiros nos ritos de iniciação e, juntos, o lugar desta, depois do abandono do lar. Por essa
souberam ajudar-se mutuamente, vencendo as dificu) mesma razão foi condenada à morte e enterrada num
dades _riais incríveis. Juntaram os seus sangues na cif lugar secreto, longe do acesso da família. Do Mwando?
cunc1sao, tonando-se, deste modo, mais irmãos do que Nem sequer se fala. Quem é ele para figurar na lista
os nascidos do mesmo ventre. A ascensão de Nhambi das preocupações reais? Algumas pessoas tentaram
para cargo de privilégio deu-lhe satisfação, mas muito levantar a questão do seu desaparecimento na noite
depressa compreendeu que tinha perdido o melhor do sinistro. A justificação foi a seguinte: é um renega
amigo da sua vida. As obrigações do poder interdita do. Esteve em Mambone ao serviço dos Ndaus para a
vam-no de conviver com as antigas amizades. Era um recolha de informações, foi descoberto e perseguido,
homem importante, sempre ocupado. Valeria a pena mas afortunadamente conseguiu fugir às mãos da jus
tentar uma conversa amiga, invocando os velhos tem tiça. Quanto aos pais dele e outros familiares directos,
pos? Seria este irmão capaz de ajudá-lo a sair do seu corriam o perigo de serem deportados para o xibalo. .
dilema? Nhambi é um bom homem, conheço-o. Talvez No decurso do relato, Mwando arregalava os olhos
me diga alguma coisa, vou tentar, pensou. arrependidos, arrepiados, chocados. Ficara tão petrifi
Levai;tou-se, deu alguns passos e, pensando melhor, cado que até o cérebro perdeu o movimento. Largou
recuou. E bem possível que ele tivesse mudado. O po um suspiro de angústia, falando em voz baixa.
der transforma. Casos há em que os pais renegam os - Fui demasiado longe com a minha ousadia. Sou
filhos, as esposas traem os maridos, os irmãos ignoram o principal culpado de tantas desgraças: gente morta,
-se, perseguem-se, matam-se para ganhar um quinhão perseguições, convulsões. Se soubesses como estou
do poder. arrependido.
Enquanto Mwando meditava, a sorte quis que - Arrependido? É nojento!
Nhambi, acasalado com uma das mulherzinhas da casa , Nhambi fez uma carantonha de nojo, visível no
procurasse a protecção da mesma sombra para fugir dos rendilhado de luz tecido pelo luar na copa da goiabei
olhos indiscretos dos beberricantes. Este, por milagre, ra, lançando um jacto de saliva - sinal máximo de
descobriu o amigo. Deu-lhe uma palmadinha nos om desprezo -, que desembocou na areia, entre as per
bros, falando-lhe a meia voz. nas acocoradas do seu interlocutor.
- Aguarda-me ali na outra sombra. Tenho uma - O arrependimento nas mulheres é tolerável, mas
conversa importante para ti. Enquanto aguardas vou nos homens condenável. Porque julgas que Deus deu
ocupar os meus companheiros com mulheres e álcool. inteligência aos seres humanos? É para pensar antes de
As palavras de Nhambi, numa voz ora suave ora agir e não agir e depois pensar, como fazem as mulhe
dura, rápida ou pausada, pareciam vir dos pesadelos da res e as crianças. É nojento. Eu costumo vomitar no
noite anterior. Nada lhe diziam de novo, servindo ape rosto dos arrependidos.
nas para confirmar os seus receios. - A razão está do teu lado, Nhambi, meu mais que
O rei anda abalado, magro e doente. A sua espo irmão. O erro já está feito. O que devo fazer para sair
sa mais querida fora acusada por todos os curandei- desta situação? Estou desesperado.
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- És bem pior que uma mulher. Já reparaste nas deixei apaixonar pelos teus títulos de nobreza. Sanau,
bananeiras? Morrem de parto, orgulhosas dos seus ac és a mais miserável das criaturas. Agora olho para ti com
tos. Como homem que se preza, enterra-te com orgu- os olhos desanuviados. Não encontro em ti beleza nem
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lho no coval aberto pelas tuas próprias mãos. encantos. O que vi eu em ti?
- Fui louco. Como as ovelhinhas corri nos pradbs - Mwando, juraste-me amor eterno.
de olhos vendados e caí no osso. Estou perdido. - Foi apenas um pesadelo do qual despertei. Sa-
- Mwando, meu mais que irmão, tenho para con tisfazia em ti o orgulho másculo de dormir com a mu
tigo uma antiga dívida de gratidão, desde os tempos de lher do soberano. Agora acabou-se. És uma camponesa
inância. Salvaste-me a vida, matando a jibóia que me tão rústica como todas as demais. Regressa a Mambone,
ia atacar, quando estávamos nos ritos de iniciação, lem ainda és a mulher do rei.
bras-te? Agora escuta: eu e os meus dois companheiros - Mwando, tu queres que eu volte para a morte,
estamos aqui numa missão especial: Matar-te! Preciso de tu matas-me, eu amo-te, izemos juntos um ilho, não
silenciar-te para ganhar os louvores do rei. Tens a noi me deixes, senão morro!
te inteira para decidir a tua sorte, porque ao nascer do - Não morrerás, não. Se esse filho é meu porque
sol será demasiado tarde. não o trouxeste contigo? Foi tudo uma invenção tua
A vegetação tremia nos olhos do Mwando, que tro para complicar-me. Entre nós está tudo acabado, a
peçava nos arbustos, caindo, levantando-se. A aneste minha vida corre perigo, adeus, Sanau.
sia da sura volatilizara-se, e, extralúcido, caminhava em Colocou o casaco nos ombros, ofereceu-me as cos
passos largos fugindo da morte. Chegou a casa com os tas, as corujas cantavam no escuro. Corri atrás dele,
músculos tesos, gelados, cadavéricos, e os olhos emba agarrei-o, debati-me como uma fera e ele deu-me um
ciados de amargura. violento golpe na nuca que me deixou inconsciente.
Quando voltei a mim, ouvia-se a música do amanhecer.
Corri desvairada ao encontro dos ventos marítimos;
- Amor, não comeste nada todo o dia, voltas tar mergulhei nas águas furiosas na tentativa desesperada
de, o teu rosto parece embriagado, louco, transtorna de encontrar não sei o quê, que dissesse algo sobre o
do. Qual a razão deste tormento? meu amor. A praia estava repleta de gente. Os pesca
- As notícias que me chegam de Mambone são dores reparavam as redes à frescura do vento. As mu
assustadoras, Sarnau. Estamos a ser perseguidos, a mi lheres, absortas, estavam entretidas na apanha dos
nha vida corre perigo. O rei enviou os seus homens caranguejos. As crianças divertiam-se fazendo buracos
para matar-me e levar-te de volta. A Phati foi morta, e no chão à procura das amêijoas inofensivas, eu grita
a minha amília está numa situação crítica. va, eu chorava, ninguém me acudia e cada um estava
- A Phati foi culpada em grande medida, mas não encarcerado no seu mundo.
merecia a morte. Ela sabia muito bem que intrometer Ô ondas do mar, não viram o meu amor? Verdes
-se na vida da rainha é coisa que dá muito azar. Foi tudo palmeiras, aves do céu, peixes, caranguejos, barcos
por causa dos ciúmes desmedidos. acostados, por onde anda o meu amor? As águas não
- Grande rainha que tu eras. Pobre de mim que me me responderam continuando o seu marulhar maravi-
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lana, lançando gritos histéricos, inúteis, insigniicantes.
vento que se perde no horizonte; és a nuvem negra que
Não longe dali, na branca areia do mar, crianças de
vem com as tempestades, Mwando, tu és nuvem, nu
tanga e de tronco nu por um instante suspenderam a
vem, nuvem!
brincadeira, regressando despreocupados à bola de tra
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pos, indiferentes ao cenário que se lhes apresentava à
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PAULINA CHIZIANE
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guardas nem capatazes. Para quê? A natureza encarre Pela :anhã a loresta teve o seu baptismo de fogo.
gava-se de azer a guarnição. Quem tentasse fugir não Os quadrupedes empreenderam galopes desenreados,
escaparia de se tornar manjar das hienas e leões, ou d}S as aves voaram sobre o ogo. Todos tentaram fugir me
J
·
picadas traiçoeiras dos oídeos. A morte residia na SOl nos as fêmeas que preferiram morrer calcinadas unto
bra de cada arbusto e jogava às escondidas com os seres dos seus rebentos. Quem ama de verdade sacrifica-se
humanos. pelo objecto do seu amor. As árvores amam a terra' não
Os residentes da floresta prepararam uma recepção arredaram pé, suportando a tortura, a destruição, pro
calorosa para os novos vizinhos. Os macacos, as cobras, tegendo a terra adorada.
os morcegos, as hienas, aproximaram-se do acampa A desgraça entrou na floresta. O homem julga-se
mento, farejaram, uivaram, silvaram e choraram, numa senhor do mundo. Onde ele põe a mão, tudo é devas
saudação de boas-vindas aos recém-chegados. tado sem razão.
Os reis da selva não gostaram dos intrometidos, lan Veio a destronca e a sementeira. Os cafezeiros eram
çando rugidos ensurdecedores que faziam eco nas alinhados de uma orma artística e, em pouco tempo,
copas das árvores com uma fúria capaz de despertar as a floresta medoha cedeu lugar a uma roça de um verde
almas há muito sepultadas, num acto de protesto e resis bonito, verde-sangue, verde-dinheiro, regado com 0
tência à penetração bárbara dos invasores. suor dos condenados.
Por sua vez, os mochos e as corujas oram saudar As tendas cresciam com a chegada de mais homens.
os novos habitantes, oferecendo o mais belo das suas As _ãos negras construíam beleza, construíam rique
vozes, num gesto nobre, altruísta. Pobres bichos inde za. La no alto erguiam-se palacetes brancos com tectos
sejáveis, se soubessem o pânico que estavam a criar! vermelhos.
Quando os leões e as hienas ameaçaram, os homens
empunharam as catanas dispostos a vender cara a sua
vida, mas quando os mochos e as corujas cantaram, as
esperanças dos homens desapareceram, os braços e as
pernas caíram vencidos. Os animais agoureiros não
mentem. Quando piam é porque é chegado o momento
supremo. Desesperados clamaram pelos vivos e pelos
mortos que ficaram nas terras distantes. Alguns tenta
ram fugir da morte na densa escuridão da noite, mas
foram precisamente ao encontro dela. Não escaparam
à vingança dos leões que apenas deixaram os ossos e
as vísceras. Os que preferiram aguardar a morte tiveram
mais sorte, pois nessa noite o rei do terror estava em
reunião de alto nível com Satanás e a perseguição das
vítimas não estava contemplada no plano das priorida
des.
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- Parem! - gritou o colono. - Dois de vocês en lhor que os verdadeiros padres que por aí andavam.
carregam-se do homem. Outros limpam a máquina, rá- A fama de Mwando correu por todas as sanzalas, e o
pido, tempo é dinheiro! , povo não tardou a apelidá-lo de padre Moçambique.
A lua já brincava no céu sem nuvens, quando 9s Gente das aldeias distantes vinha procurá-lo. Lógico: os
homens rudes de chapéu de palha e calcanhares de ma padres de verdade cobravam dinheiro que o povo não
tope regressaram ao dormitório. Veio a refeição de fuba tinha. Mwando fazia missas bem jeitosas e só cobrava
que comeram com apetite mesmo ao lado do morto. algumas moedas. Muito depressa os colonos reconhe
Depois veio a cachaça. Era todos os dias assim. Em cada ceram nele o homem de que precisavam, o pacificador
noite eram presenteados com um cadáver vitimado por das revoltas nas roças, com a doutrina do sofrimento
uma cobra , uma máquina, febre, ou pelo calor exces na terra e recompensa no céu. Deram-lhe um estatu
sivo das torradeiras de café. to diferente e casa independente; tinha amigas em
- Depressa, Damião, vai chamar o padre Moçam enxame e das boas. Trabalhava pouco nas macham
bique e o curandeiro Januário. bas, ocupando a maior parte do tempo nos rituais da
A cachaça rodava enquanto aguardavam a chegada Igreja.
dos dirigentes espirituais, velando pelo morto sem uma As orações continuam.
lágrima nos olhos, contando histórias da terra, da tra - Bendito seja Deus!
vessia dos mares e das lutas de resistência. Bendito seja! - os homens repetiam em coro.
Mwando, o padre Moçambique , chegou trajando a Todos se fizeram sérios. As cabeças voavam. Nin
sua batina de pano cru, chapéu de palha e pés descal guém prestava atenção às palavras do padre que afinal
ços, levando a Bíblia na mão esquerda. Logo a seguir eram sempre as mesmas. Cada um pensava em si, to
chegou também o angolano Januário. Todos se ergue dos acabariam assim. A porta rangeu, abrindo-se. Era
ram, tiraram os chapéus curvando-se numa vénia, em o colono.
saudação aos seus dirigentes. - Ora, estejam à vontade. Enterrem esse, esta noi
O padre Moçambique iniciou as orações que repe- te. Pela manhã quero todos no trabalho e no fim-de
tiam em coro. -semana terão folga, entendido? Vocês são uma raça de
- Deus abençoe esta alma. Que durma em paz! feiticeiros do diabo. Enterrem o preto onde quiserem.
- Ámen! Veio a vez do feiticeiro angolano. Queimou os seus
Mwando leu as orações num latim tão perfeito que preparados que encheram a casa de fumo acre. Invo
nem o melhor pároco, dando mais solenidade ao acto. cou os defuntos antigos e recentes. Deu voltas e mais
Apesar do trabalho forçado, encontrou felicidade no voltas ao cadáver, uivou, gritou no idioma dos mortos.
degredo. Finalmente conseguira satisfazer a ambição de O morto oi envolvido na sua manta e levado a enter
usar batina branca, baptizar, cristianizar. Fazia missas rar ao luar, na roça dos crucifixos que era o cemitério
aos domingos e algumas vezes tivera que celebrar casa dos condenados.
mentos. As suas habilidades eclesiásticas foram aperfei O corpo desceu ao coval estreito e sem geometria,
çoadas nas roças onde as mortes eram muito frequentes. as canções acompanhavam-no, a lua substituía o sol.
Ele preparava os funerais com muita dignidade e me- Benzeram-se dizendo em coro:
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- Santíssimo, santíssimo, salve-nos! As que ali apareciam eram velhas, desdentadas. As no
O angolano Januário proferiu a sua oração. vas e boas procuravam o dinheiro que ali não havia, o
,,Irmão A>ostinho.
'
Partiste finalmente para a Guiné condenado é um miserável e o que ganhariam elas ao
e invejamos-te esta sorte suprema. Neste momento ep-
.•
Correram rios de lágrimas na sua despedida. Entrou recusou, preferindo morrer debaixo do
tecto leoa
' do
no navio, e para trás iam ficando as terras de Angola pelo seu defunto.
com a sua miséria e as suas tristezas. , O fumo elevava-se pelos ares, moldand
o uma si
Finalmente desembarcou na baía do Espírito Santo . lhueta que fazia lembrar o filho desaparecido
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. , que ora
Durante dias vagueou pela cidade de Lourenço Mar- deportado para terras distantes sem dizer adeu
s. Os cães
ques para recobrar as orças, pois a viagem ora tormen ganiam furiosos no quintal, colocando a pobr
e velha em
tosa. Mais tarde, tomou outro barco que o levou a sobressalto.
Vilanculos. Percorreu as ruelas da cidadezinha e sur - Mau agoiro. Espíritos, protegei-me. Terá
morrido
preenderam-no as grandes modificações operadas pe alguém? As desgraças aparecem sempre ao
abrigo da
los homens nos últimos anos. Procurou a casinha que noite. Escuto passos que se aproximam. Que
m será?
fora o seu ninho de amor nos momentos felizes que As pancadas na porta, e a voz masculina pedi
ndo
viveu com a Samau. Nesse mesmo local tinha sido cons licença, aumentaram os receios da velha.
truído um grande armazém pesqueiro e nem as român - Sou eu, mãe, o teu primeiro ilho.
ticas palmeiras escaparam da ceifa. Perguntou aos mais A velha chorou nos braços do seu rebento
feito
velhos se por acaso não tinham conhecido uma mulher homem. Iria morrer feliz, os deuses ouviram
as suas
com o nome de Samau. A resposta negativa deixara-o preces. Só depois de passado o momento da
emoção,
convencido de que ela talvez tivesse regressado à ter a velha relatou todos os acontecimentos na
família.
ra natal. Mwando chorou muito pela morte do pai. Soub
e que
Entrou noutro barco e rumou para Mambone, che a Samau não era casada, e estava em Lourenço Marq
ues
gando ao sol do meio-dia. Como um ladrão, procurou a azer uma vida desgraçada. Aguardou o nasc
imento
a confidência do matagal aguardando a noite, e esta da nova noite, para partir da mesma forma como
che
surgiu, cúmplice. Procurou os caminhos mais escuros gara. Tinha que encontrar Samau.
para atingir a aldeia. Quanto mais se aproximava, mais
a expectativa aumentava, o coração apertava, recons
tituía e destruía o passado, tentando adivinhar o pró
ximo presente.
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Recolho as moedas. Minha mente regressa ao mer ças estranhas, e cada dia que passava a situação piora
cado encharcado de lodo, de saliva de mulala e odo va. No terceiro mês já não chorava, não comia, e o
res putrefactos, onde ganho a vida vendendo legumes, coração batia cada vez menos. Passei noites de lágrimas:
'
enxugando as lágrimas, esgotando as últimas forças nos o fogo da vida apagava-se e eu não tinha dinheiro para
1 ir ao hospital. Numa dessas noites parti desesperada
gritos de atracção aos compradores, compre também
banana, menina bonita. para casa de uma curandeira e esta acudiu-me pronta
A vida não me corre mal. Já lá vão os tempos em mente. Expliquei-lhe o que se passava. A velha entrou
que vivi de miséria e morte, mas hoje existe em mim em acção trajando-se de conveniência com panos e re
bem demarcada a realidade e o sonho. Mas para quê, líquias sagradas. Entrou em transe e, aos gritos, invo
recordar isso agora? Passaram já dezasseis anos que o cou os espíritos elo pai e la mãe. Escutou os horáculos
Mwando me abandonou e talvez já tenha morrido. e disse-me, minha filha, há um espírito maligno que te
Tudo fiz para que ele regressasse. Os melhores curan persegue, que está apostado em destruir toda a tua feli
deiros fizeram tudo ao seu alcance tentando produzir cidade. De momento é este filho, amanhã serão os ou
o milagre elo regresso e nada. Acredito que oi tudo tros. Vais enterrá-los um por um com as tuas próprias
obra dos maus espíritos, que é o sangue da Phati que mãos. É preciso resolver o problema. Mas que solução,
clamava por vingança. Todos os curandeiros foram perguntei eu. Faça um sacrifício, uma oferenda, para
unânimes em afirmar que os meus espíritos e os do que este espírito não mais te persiga. Tente recordar,
Mwanclo estão em pé de guerra lá no fundo da terra de todas as pessoas da tua família já falecidas, ou al
e por essa razão recusaram sempre a nossa união. gum dos teus conviventes já falecidos, qual deles te
O Mwando era um homem majestoso, mas tinha aquela queria mal.
cortina de mistério que nunca consegui desvendar. Não - É a Phati, é a Phati, a quinta esposa do meu
quero mais saber dele, mas guardo doces recordações marido, que foi morta recentemente.
do tempo dos sonhos. A velha recuou no tempo. Falou com os mortos
- Mãe, já vendi todas as amêijoas. durante tempos intermináveis, e a criança apagava-se
Poiso os olhos no rostinho bonito la minha filha, a cada vez mais. Quando voltou a si, disse-me que a
minha Phati, de corpinho elegante e sorriso le sol. Quan criança devia ter. o nome desse espírito maligno, pois
do Mwando me abandonou, já esta criatura se hospedava o que se passava, na realidade, é que esse deunto não
no meu ventre. Nessa altura saí de Vilanculos para Lou aguentava a vida nas profundezas, porque sofria mui
renço Marques, fixando-me nesta triste Mafalala. Primeiro to pelos males que causara em vida.
empreguei-me como criada numa casa de comerciantes A solução não me agradou nada, mas eu estava
indianos. Dormia no armazém de carvão onde também impotente, não podia recusar o sacrifício, pois tratava
dormiam os cães. Foi nesse ambiente que a criança nas -se da vida da minha ilha. Abanei a cabeça em gesto
ceu, saudável mas raquítica. Dei-lhe o nome de Chivite, de concordância. Então a velha pegou na criança e er
para marcar a angústia que me torturava. guendo-a pelos ares proferiu a prece da ressurreição:
A criança viveu bem nos primeiros dias mas quan - Acorda, Phati, sai do túmulo para o reino do sol,
do chegou ao segundo mês, foi acometida por cloen- mais límpida e mais inocente que todos os anjos. Que
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os feiticeiros se aastem e a lua te proteja, Phati, regresse mais não fica bem a um cristão dar a entender que tem
ao reino do sol. ilhos por aí. Mwando também é cristão, mas aban
Preparou algumas infusões que a criança tomou, e donou-me com uma criança no ventre. Ser cristão é
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decorreram horas amargas sem que esta desse sinais de uma coisa, mas a perversão e o afastamento dos deve
melhorias. O sono veio abraçar-me libertando-me d. res patenais porque se é cristão, é coisa que ainda não
ânsia e desespero. entendo bem. A poligamia tem todos os males, lá isso
- Kenguelekezêêê!. .. é verdade, as mulheres disputam pela posse do homem,
Acordei em sobressalto. Era o galo a saudar o sol. matam-se, enfeitiçam-se, não chegam a conhecer o
Na rescura do amanhecer, a canção também acordou prazer do amor, mas tem uma coisa maravilhosa: não
a criança que desatou a chorar. Peguei-lhe carinhosa há filhos bastardos nem crianças sozinhas na rua. To
mente, colocando-a no seio que sugou com um apeti dos têm um nome, um lar, uma amília. Não há nada
te invulgar. mais belo neste mundo que um lar para cada criança.
A partir desse dia comecei a amar a Phati. Por todo Por um lado, prefiro a poligamia, mas não, a poligamia
o lado procuro a beleza do seu rosto desaparecido. Nas é amarga. Ter o marido por tunos dormindo aqui e ali,
noites de solidão revolvo as profundezas da terra e noite lá, outra acolá, e, quando chega o meio-dia e
apenas encontro os ossos e o sorriso eteno da sua ca prova a comida da mulher de quem não gosta diz logo
veira. Onde antes se alojavam os músculos esbeltos e que não tem sal, que não tem gosto. Quando à noite a
as pupilas negras que tanto enlouqueceram o meu mulher reclama, diz que a cama cheira a urina de bebé,
marido, encontro apenas ninhos de vermes e terra hú e lá se vai furtando aos seus deveres. Com a poligamia,
mida. Que triste é a morte. Porque odiava eu a Phati? com a monogamia ou mesmo solitária, a vida da mu
Ela era minha irmã mais nova, amou o seu marido e lher é sempre dura.
lutou pelo objecto do seu amor da mesma forma que - Compre batata, que eu dou bacela!
eu abandonei tudo à procura desse mesmo amor. Fe Gritos de vendedeir.as beijam-se em todos os ângu
lizmente ela renasceu de mim, é a minha deusa, minha los, no compasso das melodias, embalando a marcha
protectora, construí-lhe um santuário mesmo atrás da do sol, e assim escoa-se o dia, amanhã será outro dia,
minha barraca, ela protege-me e não tenho razào de boa tarde, sol!
queixa, a vida não me corre mal, compre o tomate, mãe - Compre couve, papai.
do bebé, tomate vermelhinho, fresquinho! - Peixe fresquinho, magumbââã! . . .
- Mãe, está quase na hora da escola. - «Amêjoâââ! . .
·"
- Vai. Diz ao João para acabar de torrar o amen- Una fadiga intensa. abraça-me as canes e as suas
doim e trazê-lo aqui ,para eu vender. carícias penetram-me até aos ossos. O sol já se põe, em
Sou tão feliz com os meus dois filhinhos. O João breve saudarei a noite, beijarei a lua, mergulharei na
zinho também não tem pai. O homem soube encher escuridão da paz, no silêncio da paz.
-me a barriga para abandonar-me logo em seguida.
O pai aasta-o da sua mesa, não o deixa conviver com
os outros irmãos, diz que é por ele ser casado e para
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que é impossível viver sem ti. Incrível, prostituíste-te, Sanau, os homens fize
- Não podes viver sem mim? E se não tivesse nas ram-te puta.
cido? - E tu o que fizeste de mim? Amaste-me como nun
- Mas nasceste, nasceste, Sanau! Agora que te en ca se amou uma mulher. Raptaste-me mas não pagaste
contrei não te deixarei jamais. Fui louco em abandonar o meu resgate. A minha virgindade consumiste-a e nem
-te, perdoa-me Sarnau. · agradeceste à minha defunta protectora, não lhe ofe
Senti o seu bafo acendendo-me pelo pescoço, o receste os cem escudos, o rapé e o pano vermelho, mas
mesmo hálito que conheci há tantos anos passados, tudo aceitei porque te amava, agora acabou-se, Mwan
o mesmo sorriso, a mesma voz e o mesmo olhar sereno. do, paga-me, eu odeio-te.
Só a saudade era mais louca, mais ardente, insuportável! As águas do Save correm tranquilas. Foram elas que
- Eu quero-te, Sarnau. lavaram o sangue da minha inocência. s águas do Save
Já não me abraçava, os nossos corpos estavam se são testemunhas da loucura que tive por este homem.
parados a uma distância considerável, mas sentia-lhe o As algas, os peixes, os caniços, as ervas, os lagartos, as
bombar rápido do coração transmitindo uma mensagem árvores e o céu azul, tudo viram. Mas as águas do rio,
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não. As que me viram já correram e talvez se encon ovário, cortaram lá no hospital, pois estava todo podre
trem no fundo do mar. As algas e os peixes também de porcaria. Repara bem nas minhas coxas: minhas be
não. As algas oram comidas pelos peixes, os peixes fo- , las tatuagens confundem-se com as cicatrizes de uma
ram para os estômagos das pessoas e estas já defecaram 1 doença complicada que apanhei por aí. Como vivo eu
por aí. Os caniços e as ervas já morreram, os pássaros e agora? Vendo no mercado, vendendo também o cora
lagartos deram a vida a outros pássaros e lagartos e os ção, as lágrimas, e tudo o que tinha de mais sagrado já
que agora existem são os tetranetos ou trinetos das vendi para sobreviver.
minhas testemunhas, ai de mim, do meu passado já Não chores, Sanau, que assim vou chorar tam
nada resta senão este fardo e esta angústia que trans bém. Vamos, conta-me todo o teu sofrimento que não
porto. Mas resta alguma coisa, sim. As árvores e o céu oi mais pequeno do que o meu. Eu também sori mui
azul. Não estou assim tão perdida . to. Depois da nossa separação, liguei-me a uma mulher
Mwando arrasta-me com o seu braço forte, meus pés que me traiu. Disse-me que não era casada quando afi
caminham cegos, vacilantes, todo o meu corpo freme nal era mulher de um sipaio. Fui deportado para An
de desejo, de amor, de angústia, toda eu respondo no gola, e só voltei no mês passado. Consumi toda a minha
tumulto do sim, minha alma grita bem alto que não, pa vida a plantar cana e café e, em cada planta, há uma
ga-me, quero o meu preço, o meu resgate, a minha lágrima que derramei por ti. Tu oste a única felicida
honra. No meu ser trava-se a batalha mortal do sim e de em todo o decurso da minha trajectória. Não tenho
do não e não sei quem sairá vencedor. nem mulher nem ilhos, Sanau.
Os músculos do Mwando derrubam-me, os seus - Tens filhos, sim, que nasceram deste meu ven
braços maltratam-me, arranham-me, despem-me, o seu tre. Quando partiste incubava a pequena Phati que vai
ventre cai sobre o meu desfazendo-se como um balão agora completar quinze anos. Em Mambone ficou o
zinho que se esvazia. Beijou-me na boca, ai, Mwando, Zucula, que agora é um homem e foi coroado rei, com
há quanto tempo não sentia o sal da tua boca! a doença do pai. Tenho mais um filho, o João, e o pai
Sussurro agonizada, meus lábios carnudos movem- desse perdeu-se pelo mundo ora. As minhas gémeas
-se, a voz toca os seus acordes e a alma reclama. casaram-se lá em Mambone.
- Mwando, paga-me, paga-me, paga-me! - É mesmo verdade o que me dizes, Sanau? Te
- Sanau, minha Sanau, os homens izeram-te puta. nho dois filhos, eu?
- Tu izeste mais do que todos os outros. Raptas- - Tão verdade como eu estar aqui ao teu lado.
te-me do meu mundo e traíste-me. Lutei sozinha, jun - Como oi possível que eu tenha sido tão cruel?
tei dinheiro para comprar as trinta e seis vacas do meu Como é que conseguiste sobreviver de tanto sorimento,
lobolo e devolver ao· Nguila, meu primeiro marido. minha Sanau? O meu filho está em mãos alheias e foi
- Pobre querida. Fui culpado de todo o teu sofri coroado rei da minha terra. O meu ilho é rico, alegre ,
mento. feliz, enquanto eu, o verdadeiro pai, vivo na maior mi
- Deixa-me dizer-te. Percorri mundos, fui usada e séria de todos os tempos.
abusada, meu sexo era máquina de fabricar dinheiro. - Ignora tudo, esquece tudo, e colhe os espinhos
Apanhei doenças vergonhosas, olha, já não tenho um que as tuas mãos semearam.
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Os lábios da rapariga abriram-se em ovo para logo Os meninos recolheram ao quarto trajando nos ros
a seguir alargar os olhos enormes, rasgados, soltar uma tos um sorriso novo, e as cabecitas laureadas de fanta
exclamação e gritar: sias. Mwando sentou-se na borda da minha cama de
- João, é o papá! palha. Estávamos frente a frente para uma nova bata
O João correu ao encontro deles. Três vultos enxer lha.
gavam-se no escuro. Seis olhos brilhavam como faróis - Sanau, as crianças precisam de um pai.
de gatos na noite de chuva. Os três sentiam a mesma E eu preciso de um homem, e deste homem que
hesitação; aproximaram-se; abraçaram-se. Caminharam está aqui ao meu lado. Venceu-me. Atacou-me com a
em passos lentos fazendo uma breve paragem na en arma que extermina todas as fêmeas do mundo. Colo
trada da barraca. A chuva caía intensamente banhan cou-se ao lado dos filhos, fez a guerra e venceu. Vive
do os três vultos. rá comigo. Tenho casa, tenho negócio, tenho dinheiro.
- Entrem! Hei-de alimentá-lo. Não será fácil para ele arranjar um
O homem curvou solenemente o seu tronco alto posto de trabalho nesta terra. Embora vencida, ainda me
como quem se inclina numa reverência, entrou pela resta o orgulho, mas orgulho de quê? O orgulho cega
porta baixa da barraca de duas divisões. Sentou-se. -me e destrói-me, preciso de ser feliz, estou vencida e
- É o meu pai, mamã?
perdida.
- Sim, minha filha, é o teu pai. O vento sopra lá ora.
- Afinal onde esteve todo este tempo, papá? A chuva cai em catadupas.
O candeeiro a petróleo banhava o escuro com a sua As águas serpenteiam nas ruelas sinuosas.
luz amarelinha, iluminando os rostos que se procura Todos os animais recolheram aos abrigos e nada
vam, se descobriam, que se identificavam. Os olhos de resta. Há apenas o silêncio, o frio e os soluços. Enrenta
Mwando devoravam a pequena Phati, o seu sorriso, os mo-nos no silêncio diluído na etenidade. As lágrimas
seus gestos, o gesticular dos seus lábios, enquanto jorraram novamente.
os olhos dos meninos se alargavam de alegria e de emo - Sanau!
ção. Embrulhei-me de novo na manta e desta vez os Enterrei o passado. Puxei o candeeiro, soprei, apa
soluços eram mais audíveis, mas ninguém lhes ligou gou-se. Mergulhámos na escuridão da paz, no silêncio
importância. As crianças bombardeavam o homem es da paz, no esquecimento de todas as coisas, naquela
tranho com perguntas loucas. ausência que encerra todas as maravilhas do mundo.
- Papá, fica connosco! A solidão desfez-se. O vento espalha melodia em todo
- Sim, João, ficarei se a tua mãe quiser. o universo. Continua a chover lá fora.
- A mãe quer. Fica connosco, papá!
Faz-se um silêncio de morte. Seis olhos convergiram
sobre os meus, aguardando a resposta que os lábios se
recusavam a pronunciar.
- Meninos, vamos dormir, já é tarde e faz frio.
Amanhã teremos que acordar cedo.
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