Tiger Tiger - Alfred Bester

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TIGER! TIGER!

ALFRED BESTER
TIGER! TIGER!
ALFRED BESTER
Alfred Bester

TIGER! TIGER!
Tradução
Geraldo Galvão Ferraz
e
José Antonio Arantes

editora brasiliense
1988
Copyright ©Alfred Bester, 1955 Título original: Tiger! Tiger!
Copyright © da tradução: Editora Brasiliense S. A.

Arte de capa:
Equipamento cedido pela Computer Graphics.

Foto:
Paulo Jantalia
z
Revisão:
Lúcio F. Mesquita Filho

ISBN: 85-11-23087-4

editora brasiliense s a
rua da consolação, 2697
01416 ■ são paulo - sp.
fone (011) 280-1222
brasiliense telex: 11 33271 DBLMBR
Prólogo

Jjra uma época dourada, um tempo de aventura intensa, vida


rica e morte dura... mas ninguém pensava nisso. Era um futuro
de fortuna e roubo, pilhagem e rapina, cultura e vício... mas
ninguém admitia isso. Era uma época de extremos, um século
fascinante de monstros... mas ninguém gostava disso.
Todos os mundos habitáveis do sistema solar estavam
ocupados. Três planetas, oito satélites e onze milhões de milhões
de pessoas formigavam numa das eras mais excitantes que já se
conhecera, embora alguns espíritos ainda ansiassem por outros
tempos, como de hábito, como sempre. O sistema solar
fervilhava de atividade... guerreava, comia e procriava,
aprendendo as novas tecnologias que irrompiam quase antes das
antigas serem dominadas, preparando-se para a primeira
exploração das estrelas no espaço profundo, mas...
— Onde estão as novas fronteiras? — gritaram os ro-
mânticos, enquanto a fronteira da mente se abria num dramático
incidente que aconteceu num laboratório de Calisto, na virada do
século XXIV. Um pesquisador chamado Jaun- te pôs fogo na
sua bancada de trabalho e em si mesmo (acidentalmente) e
soltou um grito de socorro com referência específica a um
extintor de incêndio. E quão surpresos ficaram Jaunte e seus
colegas quando ele se viu lá, de pé,
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junto ao citado extintor que estava a uns vinte e poucos metros


da bancada do laboratório.
Apagaram o fogo de Jaunte e mergulharam nos porquês e
razões de sua jornada de vinte e poucos metros. Tele- portação...
o transporte de alguém através do espaço só pelo esforço da
mente... há muito era um conceito teórico e havia algumas
centenas de provas insuficientemente documentadas de que
acontecera no passado. Esta era a primeira vez que isso ocorria
diante de observadores profissionais.
Eles investigaram selvagemente o Efeito Jaunte. Era algo
por demais revolucionário para se tratar com luvas de pelica. De
qualquer forma, Jaunte estava louco para tornar seu nome
imortal. Ele fez seu testamento e disse adeus aos amigos. Jaunte
sabia que ia morrer porque seus colegas pesquisadores estavam
decididos a matá-lo. Não havia qualquer dúvida sobre isso.
Doze psicólogos, parapsicólogos e neurometristas de várias
especializações foram convocados como observadores. Os
pesquisadores encerraram Jaunte num tanque de cristal
inquebrável. Abriram uma válvula de água, encheram o tanque e
deixaram Jaunte ver que quebravam o registro da válvula. Era
impossível abrir o tanque; era impossível deter o fluxo de água.
A teoria era a de que se fora necessária a ameaça de morte
para estimular Jaunte a se teleportar da primeira vez, era
obviamente preciso ameaçá-lo com a morte outra vez. O tanque
se encheu depressa. Os observadores coletavam dados com a
precisão tensa de um grupo fotografando um eclipse. Jaunte
começou a afundar. Em seguida, estava fora do tanque,
pingando e tossindo explosivamente. Ele se tele- portara
novamente.
Os peritos examinaram-no e o interrogaram. Estudaram
gráficos e raios-X, padrões neurais e química corporal.
Começaram a ter uma idéia de como Jaunte se tele- portara. No
boca-a-boca técnico (isso tinha de ser mantido em segredo)
fizeram um apelo por voluntários suicidas. Ainda estavam no
estágio primitivo da teleportação; a morte era o único estímulo
que conheciam.
Instruíram intensamente os voluntários. Jaunte falou- lhes
sobre o que fizera e como ele achava que fizera. Daí,
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começaram a matar os voluntários. Eles os afogaram, en-


forcaram, queimaram; inventaram novas formas de morte lenta e
controlada. Para os pacientes nunca houve qualquer dúvida de
que a morte fosse o objetivo.
Oitenta por cento dos voluntários morreram e as agonias e
o remorso de seus matadores fariam um estudo fascinante e
horrível, mas isso não cabe na nossa história, a não ser para
destacar a monstruosidade da época. Oitenta por cento dos
voluntários morreram, mas vinte por cento jauntaram (a palavra
se tornou comum imediatamente).
— Tragam de volta a era romântica — proclamavam os
românticos —, quando os homens podiam arriscar suas vidas em
grandes aventuras.
A quantidade de conhecimento cresceu rapidamente. Na
primeira década do século XXIV, os princípios da jaun- tação
foram estabelecidos e a primeira escola foi aberta pelo próprio
Charles Fort Jaunte, então com cinqüenta e sete anos,
imortalizado e envergonhado de admitir que nunca mais ousara
jauntar. Mas os dias primitivos haviam passado: não era mais
preciso ameaçar um homem com a morte para fazê-lo teleportar.
Aprenderam como ensinar o homem a reconhecer, disciplinar e
explorar outro recurso de seu cérebro ilimitado.
Como, exatamente, o homem se teleportava? Uma das
mais insatisfatórias explicações foi dada por Spencer Thompson,
assessor de publicidade das Escolas Jaunte, numa entrevista à
imprensa.
THOMPSON: Jauntar é como ver. É uma aptidão natural de
quase todo organismo humano, mas só pode ser
desenvolvida com treinamento e prática.
REPÓRTER: Quer dizer que não podemos ver sem prática?
THOMPSON: Obviamente você é solteiro ou não tem fi
lhos... De preferência ambos.
(Risos)
REPÓRTER: Não entendi.
THOMPSON: Qualquer pessoa que tenha observado um bebê
aprender a usar os olhos teria entendido.
REPÓRTER: Mas o que é teleportação?
THOMPSON: O transporte de alguém de um lugar para outro
pela simples ação da mente.
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REPÓRTER: Quer dizer que podemos nos pensar de... di-


gamos.. . Nova Iorque a Chicago?
THOMPSON: Precisamente.
REPÓRTER: E chegaríamos nus?
THOMPSON: Se partirmos nus.
(Risos)
REPÓRTER: Quer dizer, nossas roupas se teleportam com a
gente?
THOMPSON: Quando as pessoas se teleportam, também
teleportam as roupas que vestem e qualquer coisa que
consigam carregar. Lamento desapontar você, mas até as
roupas femininas chegam com elas.
(Risos)
REPÓRTER: Mas como é que fazemos isso?
THOMPSON: Como é que pensamos? REPÓRTER: Com
nossas mentes.
THOMPSON: E como a mente pensa? Qual é o processo de
pensar? Como é que lembramos, imaginamos, deduzimos,
criamos? Como é exatamente que as células cerebrais
funcionam?
REPÓRTER: Não sei. Ninguém sabe.
THOMPSON: E ninguém sabe também exatamente como
teleportamos, mas sabemos que podemos fazer isso —
precisamente como sabemos que podemos pensar. Já ouviu
falar de Descartes? Ele disse: Penso, logo existo. Dizemos:
Penso, logojaunto.
Se a explicação de Thompson é considerada irritante,
examinem esta comunicação de Sir John Kelvin à Real So-
ciedade sobre o mecanismo da jauntação:
“Estabelecemos que a capacidade teleportativa é associada
com os corpúsculos Nissl, ou Substância Tigróide nas células
nervosas. A Substância Tigróide é facilmente demonstrada pelo
método de Nissl, usando 3,75 g de azul de metileno e 1,75 g de
sabão de Veneza dissolvidos em mil cc de água.
“Onde a Substância Tigróide não aparece, a jauntação é
impossível. A teleportação é uma função tigróide’’. (Aplausos)
Qualquer homem era capaz de jauntar, desde que de-
senvolvesse duas faculdades, a visualização e a concen
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tração. Ele tinha de visualizar, completa e precisamente, o lugar


ao qual desejava se teleportar. E tinha de concentrar a energia
latente da sua mente num único impulso para ser levado até lá.
Acima de tudo, precisava ter fé... a fé que Charles Fort Jaunte
nunca recuperara. Tinha de acreditar que iria jauntar. A menor
dúvida bloquearia o impulso mental necessário para a
teleportação.
As limitações com que cada homem nasce realmente
limitavam a capacidade de jauntar. Alguns podiam visualizar
magnificamente e estabelecer com precisão as coordenadas de
seus destinos, mas não tinham a força para chegar lá. Outros
tinham esse poder mas não podiam, por assim dizer, ver para
onde iriam jauntar. E o espaço colocava uma limitação final,
pois nenhum homem jamais jauntou além de mil e seiscentos
quilômetros. Podia-se seguir caminho em saltos de jauntação
sobre terra e água, de Nome, no Alasca, até o México, mas
nenhum salto passava de mil e seiscentos quilômetros.
Nos anos 2420, este formulário de pedido de emprego
tornara-se comum:

Espaço reservado para identificação


de padrão de retina
NOME (em maiúsculas): ...........................................................
Sobrenome Nome Prenome
RESIDÊNCIA (Legal): ..............................................................
Continente País Cidade

CLASSE JAUNTE (Classificação Oficial: assinale apenas uma):

M (1600 km) ............................. L(80km) ..................................


D (800 km) ................................ X(16km) ..................................
C(160km) .................................. V(8km) ....................................

O antigo Departamento de Veículos Motorizados assumiu


a nova tarefa e testava e classificava regularmente os candidatos
a jauntar e a velha Associação Americana de Automóveis
mudou suas iniciais para A. A. J.
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Apesar de todos os esforços, nenhum homem jauntara


pelos vazios do espaço, embora muitos especialistas e tolos
tivessem tentado. Helmut Grant, um deles, passou um mês
memorizando as coordenadas de um local de jaunte na Lua e
visualizou cada quilômetro da trajetória de 386 160 quilômetros
de Times Square a Kepler City. Grant jauntou e desapareceu.
Nunca o encontraram. Nunca acharam Enzio Dandridge, um
crente de Los Angeles que procurava o Céu; Jacob Maria
Freundlich, um parafísico que deveria ter pensado melhor antes
de jauntar no espaço profundo em busca de metadimensões;
Shipwreck Cogan, um pesquisador profissional em busca de
fama e centenas de outros, limítrofes lunáticos, neuróticos,
escapistas e suicidas. O espaço estava fechado à teleportação. A
jauntação era restrita aos planetas do sistema solar.
Mas dentro de três gerações, todo o sistema solar entrara
no jaunte. A transição foi mais espetacular que a passagem do
cavalo e carroça para a era da gasolina, quatro séculos antes. Em
três planetas e oito satélites, as estruturas sociais, legais e
econômicas desabaram, enquanto os novos costumes e leis
exigidos pela jauntação universal se multiplicavam em seu
lugar.
Houve conflitos de terras quando os pobres que jaun-
tavam abandonaram as favelas para invadir planícies e florestas,
devastando o gado e a vida selvagem. Houve uma revolução na
construção de casas e escritórios, tendo de ser colocados
labirintos e dispositivos de dissimulação para evitar entradas
ilegais através da jauntação. Houve falências, pânicos, greves e
fomes à medida que as indústrias pré- jaunte se arruinavam.
As pragas e epidemias se intensificaram quando migrantes
jauntes levaram a doença e o contágio para países indefesos. A
malária, a elefantíase e a dengue rumaram para o norte até a
Groenlândia. A raiva voltou à Inglaterra depois de uma ausência
de trezentos anos. O bicudo, o gafanhoto, o fungo da castanheira
e a broca espalharam-se por toda parte, e de um esquecido
recanto pestífero em Bornéu, a lepra, que havia muito se
imaginava extinta, reapareceu.
Ondas de crimes varreram os planetas e satélites à me
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dida que os submundos passavam à jauntação, com a noite


durando o tempo todo para eles, e houve brutalidades, à medida
que a polícia os combatia sem quartel. Houve um horrível
retorno ao pior pudor do vitorianismo quando a sociedade
combateu os perigos morais e sexuais da jauntação com regras e
tabus. Uma guerra cruel e perversa explodiu entre os Planetas
Interiores, Vênus, Terra e Marte, e os Satélites Exteriores... uma
guerra causada pelas pressões econômicas e políticas da
teleportação.
Até surgir a Era Jaunte, os três planetas interiores (e a Lua)
viveram em delicado equilíbrio econômico com os sete satélites
exteriores habitados. Io, Europa, Ganimedes e Ca- listo, de
Júpiter; Réa e Titã, de Saturno; e Lassell, de Ne- tuno. Os
Satélites Exteriores Unidos forneciam matérias- primas para as
indústrias dos Planetas Interiores, além de um mercado para seus
bens manufaturados. Numa década, tal equilíbrio foi destruído
pela jauntação.
Os Satélites Exteriores, mundos novos e crus em de-
senvolvimento, compravam setenta por cento da produção de
transportes dos P. I. A jauntação acabou com isso. Eles
compravam noventa por cento da produção de comunicações
dos P. I. A jauntação acabou com isso também. Em
conseqüência, a compra de matérias-primas dos S. E. pelos P. I.
declinou.
Com o intercâmbio comercial destruído, era inevitável que
a guerra econômica degenerasse numa guerra de verdade. Os
cartéis dos Planetas Interiores recusaram-se a transportar
equipamento industrial para os Satélites Exteriores, tentando
proteger-se contra a concorrência. Os S. E. confiscaram os
projetos já em operação em seus mundos, romperam acordos de
patentes, ignoraram as obrigações de royalties... e a guerra
aconteceu.
Era uma época de aberrações, monstros e grotes- querias.
Todo o mundo estava distorcido de modos maravilhosos e
malevolentes. Os clássicos e os românticos que odiaram isso não
perceberam a grandeza potencial do século XXIV. Estavam
cegos para um frio fato da evolução... que o progresso deriva da
fusão conflitante de extremos antagônicos, do casamento de
anomalias extravagantes. Tanto clássicos como românticos não
perceberam que o sistema
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solar estava tremendo à beira de uma explosão humana que


transformaria o homem e o tornaria o senhor do Universo.
Ê contra este conturbado pano de fundo do século XXIV
que começa a vingadora história de Gulliver Foyle.
PRIMEIRA PARTE
1
Ele estava agonizando havia cento e setenta dias, mais
ainda não morrera. Lutava pela sobrevivência com a paixão de
um animal numa armadilha. Delirava e se desintegrava, mas de
vez em quando sua mente primitiva emergia do ardente pesadelo
da sobrevivência para alguma coisa que se assemelhava à
sanidade. Ele então levantava o rosto mudo para a Eternidade e
sussurava: “Qual é o problema? Eu? Socorro, malditos, socorro,
é tudo que peço’’.
Era fácil blasfemar; era metade do que falava, toda sua
vida. Fora criado na escola da sarjeta no século XXIV e só
falava a linguagem da sarjeta. De todas as feras do mundo era a
menos valiosa viva e a mais provável de viver. Então ele lutava
para sobreviver e rezava com blasfêmias. Às vezes, sua mente
confusa saltava trinta anos para trás, até a infância, e lembrava
de uma cantiga:

Gully Foyle é meu nome E a Terra minha nação.


Espaço profundo é minha morada E a morte minha
destinação

Ele era Gulliver Foyle, Mecânico de 3? Classe, trinta anos,


sólido e durão... e havia cento e setenta dias à deriva no espaço.
Ele era Gully Foyle, o lubrificador, o limpador, o abastecedor;
disposto demais para encrencas, lento de
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mais para diversão, vazio demais para amizade, preguiçoso


demais para amor. As linhas mestras letárgicas de sua per-
sonalidade surgiam até nos registros oficiais da Marinha
Mercante:
FOYLE, GULLIVER — AS — 128/127:006
INSTRUÇÃO: NENHUMA
HABILIDADES: NENHUMA
MÉRITOS: NENHUM
RECOMENDAÇÕES: NENHUMA
(COMENTÁRIOS PESSOAIS)
Um homem de força física e potencial intelectual pa-
ralisados pela falta de ambição. Atividade mínima. O este-
reótipo do Homem Comum. Algum choque inesperado podería
despertá-lo, mas a psicologia não consegue encontrar a chave.
Não recomendar para outras promoções. Foyle chegou a um
beco sem saída.
Ele chegara a um beco sem saída. Contentara-se em rolar
de um instante para outro da existência ao longo de trinta anos,
como alguma criatura fortemente encoura- çada, indolente e
apática... Gully Foyle, o estereótipo do Homem Comum; mas
agora estava à deriva no espaço havia cento e setenta dias, e a
chave do seu despertar estava na fechadura. Em breve ela iria
girar e abrir a porta para o holocausto.

***
A nave espacial Nomad flutuava a meio caminho de Marte
e Júpiter. Alguma catástrofe de guerra a destruira, pegara um
foguete brilhante de aço, com mais de noventa metros de
comprimento e trinta de diâmetro e o mastigara deixando um
esqueleto ao qual se agarravam os restos de cabinas, depósitos
de carga, conveses e tabiques. Grandes fendas na fuselagem
eram fulgores de luz do lado do Sol e gélidas manchas de
estrelas do lado escuro. O S. S. Nomad era um vazio
imponderável de sol cegante e sombra negra, gelada e
silenciosa.
O destroço estava cheio de um amontoado flutuante de
restos gelados que pendiam dentro da nave destruída como
numa fotografia instantânea de uma explosão. A mínima
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atração gravitacional mútua dos pedaços de detritos lentamente


os levava até os montes de entulho que eram periodicamente
desmanchados pela passagem através deles do único
sobrevivente naquela ruína — Gulliver Foyle, AS- 128/127:006.
Ele vivia no único local vedado e com ar deixado intacto
no destroço, um depósito de ferramentas no corredor do convés
principal. O armário tinha 2,70 m de altura, 1,20 m de
comprimento e 1,20 de profundidade. Do tamanho de um caixão
de gigante. Seiscentos anos antes, a mais refinada tortura
oriental fora prender um homem numa caixa daquele tamanho
por algumas semanas. Mas Foyle existiu naquela cela sem luz
por cinco meses, vinte dias e quatro horas.

***

— Quem é você?
— Gully Foyle é meu nome.
— De onde vem?
— Terra é minha nação.
— Onde está agora?
— Espaço profundo é minha morada.
— Para onde vai?
— Morte é a minha destinação.
No 170? dia de luta pela sobrevivência, Foyle respondeu
essas perguntas e despertou. Seu coração batia forte e a garganta
queimava. Tateou no escuro em busca do tanque de ar que
partilhava com ele o caixão e o examinou. Estava vazio. Outro
tinha de ser acionado imediatamente. Então aquele dia
começaria com uma escaramuça extra com a morte, o que Foyle
aceitou com silenciosa resignação.
Ele procurou pelas gavetas do armário e localizou um traje
espacial rasgado. Era o único a bordo da Nomad e Foyle não se
lembrava mais onde e como o havia achado. Ele fechara o
rasgão com o spray de emergência, mas não tinha como encher
ou substituir os depósitos vazios de oxigênio nas costas. Foyle
entrou no traje. Ele conservava ar suficiente do armário para lhe
permitir cinco minutos no vácuo... só isso.
18 ALFRED BESTER

Foyle abriu a porta e mergulhou no frio negro do espaço. O


ar no depósito saiu com ele e sua umidade con- gelou-se numa
nuvenzinha de neve que flutuou pelo arruinado corredor do
convés principal. Foyle ergueu o tanque de ar vazio, lançou-o
flutuando para fora do armário e o abandonou. Um minuto se
passara.
Ele virou e deu um impulso na direção dos escombros
flutuantes, rumo à escotilha do depósito de lastro. Não correu;
seu ritmo era a locomoção única da queda livre e da
imponderabilidade... impulsos com o pé, o cotovelo e a mão
contra o casco, a parede e o canto, um avanço em câmara lenta
através do espaço, como um morcego voando embaixo d’água.
Foyle enfiou-se pela escotilha para dentro do depósito de lastro
no lado escuro. Dois minutos se passaram.
Como todas as naves, aNomad era lastreada e firmada com
a massa de seus tanques de gás dispostos ao longo de sua quilha,
como uma jangada de madeira presa aos lados por um labirinto
de encanamentos. Foyle levou um minuto para desatarraxar um
tanque de ar. Não havia meio de saber se estava cheio ou vazio;
se ele iria carregá-lo até o armário só para descobrir que estava
vazio e sua vida terminara. Uma vez por semana ele suportava
esse jogo de pôquer espacial.
Houve um rugido em seus ouvidos; o ar do seu traje
espacial estava rapidamente se esgotando. Ele arrastou o maciço
cilindro rumo à escotilha do lastro, levantou-o para que ficasse à
deriva sobre sua cabeça, daí deu um impulso e se enfiou atrás
dele. Passou o tanque pela escotilha. Quatro minutos haviam
passado e ele estava tremendo e com a vista falhando. Guiou o
tanque corredor do convés principal abaixo e o enfiou no
armário de ferramentas.
Bateu a porta do depósito, trancou-a, achou um martelo
numa gaveta e o golpeou três vezes contra o tanque gelado para
soltar a válvula. Foyle virou o cabo tristemente. Com as últimas
forças, abriu o capacete do seu traje espacial, para não sufocar
dentro da roupa enquanto o armário se enchesse de ar... se o
tanque contivesse ar. Desmaiou, como desmaiara tantas vezes
antes, nunca sabendo se a morte chegara.
TIGER! TIGER! 19

***

— Quem é você?
— Gully Foyle.
— De onde vem?
— Terra.
— Onde está agora?
— Espaço.
— Para onde vai?
Acordou. Estava vivo. Não perdeu tempo rezando nem
agradecendo, continuou a tarefa de sobreviver. Na escuridão,
explorou as gavetas do armário onde guardava as rações. Só
havia mais alguns pacotes. Como ele já estava usando o traje
espacial remendado, poderia, se quisesse, passar pelos perigos
do vácuo e refazer suas reservas.
Encheu o traje espacial de ar do tanque, fechou outra vez o
capacete e partiu de novo para o gelo e a luz. Enfiou-se pelo
corredor do convés principal e subiu pelos restos de uma escada
até a ponte de controle, que não era mais que um corredor com
teto para o espaço, já que a maioria das paredes fora destruída.
Com o Sol à direita e as estrelas à esquerda, Foyle rumou
para trás, rumo à despensa da cozinha. A meio caminho no
corredor, passou por uma porta ainda de pé entre a ponte e o
teto. A folha da porta ainda estava presa em seus gonzos, meio
aberta, uma porta para o nada. Atrás dela, o espaço e as estrelas
impassíveis.
Quando Foyle passou pela porta, teve uma rápida visão de
si mesmo refletido no cromo polido da folha: Gully Foyle, uma
criatura negra gigante, barbuda, coberta de sangue seco e sujeira,
magra, com olhos doentes e pacientes... e seguiu sem parar por
uma corrente de detritos à deriva, com o entulho perturbado pelo
movimento, seguindo- o pelo espaço como a cauda de um
cometa inflamado.
Foyle virou para a despensa da cozinha e começou a se
carregar com a velocidade metódica de um hábito de cinco
meses. A maioria das provisões engarrafadas havia se congelado
e explodido. Muitos dos enlatados perderam suas embalagens,
pois a lata se transforma em pó no zero absoluto do espaço.
Foyle recolheu pacotes de ração, concentrados e um pedaço de
gelo do tanque de água rachado.
20 ALFRED BESTER

Jogou tudo num grande caldeirão de cobre, virou-se e saiu da


despensa, carregando o caldeirão.
Na porta para o nada, Foyle olhou-se outra vez, refletido na
folha de cromo emoldurada nas estrelas. Daí parou de se mover,
espantado. Ficou olhando para as estrelas além da porta, que
após cinco meses haviam-se tornado amigas familiares. Havia
um intruso entre elas; um cometa, ao que parecia, com uma
cabeça invisível e uma cauda curta e flamejante. Daí Foyle
percebeu que estava olhando para uma espaçonave, com
foguetes traseiros brilhando ao acelerar numa rota solar que
deveria passar por ele.
— Não — murmurou. — Não, cara. Não.
Estava sofrendo alucinações constantemente. Virou-se para
continuar a ida até o caixão. Então olhou outra vez. Ainda era
uma espaçonave, com foguetes traseiros brilhando ao acelerar
numa rota solar que deveria passar por ele. Discutiu a ilusão
com a Eternidade.
— Seis meses já — disse em seu linguajar de sarjeta. — Ê
agora? Escutem aqui, malditos. Tô transando um acordo,
sacaram? Vou olhar de novo, queridos malditos. Se for uma
nave, sou de vocês. Vocês me têm. Mas se for mu- tieia, meu...
Se não tiver nave... Abro agora mesmo e me apago. Tamos
jogando limpo. Agora me dêem o sinal, sim ou não, é isso aí.
Olhou pela terceira vez. Pela terceira vez viu uma nave,
com foguetes traseiros brilhando ao acelerar numa rota solar que
deveria passar por ele.
Era o sinal. Acreditou. Estava salvo.
Foyle afastou-se e foi se batendo pelo corredor do convés
de controle para a ponte. Mas na escada de saída ele parou. Não
podia ficar consciente além de alguns poucos momentos, sem
reabastecer o traje. Deu uma olhada suplicante à nave que se
aproximava, daí disparou para o armário e encheu ao máximo o
traje.
Subiu para a ponte. Pela vigia de observação viu a nave,
com os foguetes traseiros ainda brilhando, evidente- mer te
fazendo uma grande alteração na rota, pois bem devagar estava
se dirigindo para ele.
No painel em que se lia SINAIS, Foyle apertou o botão
PERIGO. Houve um intervalo de três segundos durante o qual
ele sofreu. Daí o brilho branco cegou-o quando o sinal
TIGER! TIGER! 21

de socorro explodiu em três ímpetos triplos, nove pedidos de


ajuda. Foyle apertou o botão mais duas vezes e duas vezes os
sinais cintilaram no espaço, enquanto os elementos radioativos
incorporados na sua combustão produziam um uivo de estática
que deveria ser captado em qualquer faixa de onda de qualquer
receptor.
Os jatos da nave se apagaram. Fora visto. Seria salvo.
Renascera. Exultou.
Foyle voltou ao armário e encheu outra vez o traje espacial.
Começou a chorar. Passou a reunir seus pertences... um relógio
sem mostrador que mantinha funcionando apenas para ouvir o
tiquetaque, uma chave inglesa com cabo anatômico que ele
segurava em momentos de solidão, um cortador de ovos em
cujos fios ele tocava músicas primitivas... Deixou-os cair na
excitação, catou-os na escuridão, daí começou a rir para si
mesmo.
Encheu a roupa de ar novamente e foi pulando para a
ponte. Apertou um botão luminoso com a inscrição SAL-
VAMENTO. Do casco àa.Nomad irrompeu um jorro de luz que
tremeu e depois se imobilizou, enchendo quilômetros de espaço
com uma dura claridade branca.
— Vamos, queridinha — cantarolou Foyle. — Vamos,
cara. Venha, queridinha, amorzinho.
Como um torpedo fantasma, a nave se enfiou na extre-
midade distante da faixa de luz, aproximando-se lentamente,
procurando-o no destroço. Por um momento, o coração de Foyle
se apertou; a nave estava se comportando tão cautelosamente
que ele receou que fosse um veículo inimigo dos Satélites
Exteriores. Daí viu o famoso emblema vermelho e azul no lado,
a marca registrada do poderoso clã industrial de Presteign;
Presteign da Terra, poderoso, liberal, caridoso. E ele sabia que
era uma nave irmã, pois a Noniad também era de propriedade de
Presteign. Sabia que aquele era um anjo do espaço esvoaçando
sobre ele.
— Maravilha, irmã — cantarolou Foyle. — Anjinho do
coração, voe comigo pra casa.
A nave ficou ao nível de Foyle, com as vigias laterais
iluminadas brilhando com uma luz amistosa, o nome e o número
de matrícula claramente visíveis em algarismos iluminados no
casco: Vorga-T: 1339. A nave ficou um instante
22 ALFRED BESTER

ao seu lado, passou por ele num segundo, desapareceu no


terceiro.
A irmã o rejeitara; o anjo o abandonara.
Foyle parou de dançar e cantarolar. Ficou olhando es-
tarrecido. Pulou para o painel de foguetes de sinalização e
apertou botões. Sinais de perigo, foguetes de pouso, decolagem
e quarentena dispararam da fuselagem da Nomad numa loucura
de luz branca, vermelha e verde, pulsando, implorando... e a
Vorga-T: 1339 passou silenciosa e implacavelmente, foguetes
traseiros brilhando outra vez ao acelerar numa rota solar.
Assim, em cinco segundos, ele nasceu, viveu e morreu.
Depois de trinta anos de existência e seis meses de tortura,
Gully Foyle, o estereótipo do Homem Comum não existia mais.
A chave virou na fechadura de sua alma e a porta se abriu. O
que saiu de lá riscou o Homem Comum para sempre.
— Vocês passaram por mim — disse, numa fúria que ia
crescendo devagar. — Vocês me deixaram apodrecer como um
cão. Vocês me deixaram para morrer, Vorga... Vorga-T: 1339.
Não, vou dar o fora daqui, vou. Vou seguir você, Vorga. Vou
descobrir você, Vorga. Vou dar o troco, vou. Vou apodrecer
você. Vou matar você, Vorga. Vou matar você todinha.
O ácido da fúria correu dentro dele, devorando a paciência
bovina e a preguiça que haviam feito um zero de Gully Foyle,
desencadeando uma série de reações que fariam de Gully Foyle
uma máquina infernal. Ele estava empenhado.
— Vorga, vou matar você todinha.
***
Fez o que o zero não podia fazer; salvou-se sozinho.
Durante dois dias vasculhou o destroço em incursões de
:inco minutos e inventou uma espécie de arreio para seus
ombros. Amarrou um tanque de ar ao arreio e ligou o tanque ao
capacete de seu traje com uma mangueira improvisada.
Serpenteava pelo espaço como uma formiga puxando um
pedaço de madeira, mas tinha a liberdade da Nomad o tempo
todo.
TIGER! TIGER! 23

Pensou.
Na ponte de controle aprendeu o uso dos poucos ins-
trumentos de navegação que ainda estavam intactos, estudando
os manuais-padrão que enchiam a arruinada sala de navegação.
Nos seus dez anos de serviço no espaço nunca sonhara tentar
coisa semelhante, apesar das recompensas da promoção e soldo;
mas agora ele tinha a Vorga-T: 1339 para recompensá-lo.
Fez observações. A Nomad estava à deriva no espaço em
órbita eclíptica, a quatrocentos e oitenta milhões de quilômetros
do Sol. Ã sua frente espalhavam-se as constelações de Perseu,
Andrômeda e Peixes. Pendurado lá, quase em primeiro plano,
havia um ponto laranja borrado que era Júpiter, um disco
planetário visível a olho nu. Com alguma sorte poderia fazer
uma rota para Júpiter e o salvamento.
Júpiter não era, nunca seria habitável. Como todos os
planetas exteriores além das órbitas de asteróides, era uma massa
gelada de metano e amônia: mas seus quatro maiores satélites
formigavam de cidades e população, agora em guerra com os
Planetas Interiores. Ele seria um prisioneiro de guerra, mas tinha
de ficar vivo para ajustar as contas com a Vorga-T: 1339.
Foyle verificou a sala de motores da Nomad. Ainda havia
combustível nos tanques e um dos quatro jatos traseiros ainda
estava em condições de funcionar. Foyle achou os manuais de
motores e os estudou. Consertou a ligação entre os tanques de
combustível e a câmara do jato restante. Os tanques estavam no
lado iluminado do destroço e aquecidos acima do ponto de
congelamento. O combustível ainda estava líquido, mas não
correría. Em imponderabilidade não havia gravidade para fazer o
combustível correr nos canos.
Foyle estudou um manual espacial e aprendeu algo sobre
gravidade teórica. Se conseguisse colocar a Nomad numa
espiral, a força centrífuga daria suficiente navegabilidade à nave
para puxar o combustível para a câmara de combustão do jato.
Se pudesse acender a câmara de combustão, o impulso desigual
do único jato iria colocar a Nomad em espiral.
24 ALFRED BESTER

Mas não podia acender o jato sem primeiro ter a espiral e


não conseguia a espiral sem primeiro acender o jato.
Pensou como sair do impasse; foi inspirado pela Vorga.
Foyle abriu a válvula de descarga na câmara de combustão
do jato e encheu com dificuldade a câmara com o combustível, à
mão. Aprontou a bomba. Se produzisse uma faísca no
combustível, iria acendê-lo o suficiente para conseguir o giro e
começar a gravidade. Daí viria o fluxo dos tanques e a atividade
dos foguetes continuaria.
Experimentou fósforos.
Fósforos não acendem no vácuo do espaço.
Tentou perdcrneira e aço. •
Faíscas não se produzem no zero absoluto do espaço.
Pensou em filamentos incandescentes.
Não tinha nenhuma corrente elétrica a bordo da No- mad
para tornar o filamento incandescente.
Procurou livros e leu. Ainda que muitas vezes perdesse os
sentidos e chegasse perto do colapso total, pensou e planejou.
Era inspirado à grandeza pela Vorga.
Foyle trouxe gelo dos reservatórios da cozinha, der- reteu-
o e juntou água à câmara de combustão. O combustível e a água
eram não-miscíveis, não se misturaram. A água flutuou numa
camada fina sobre o combustível.
Dos depósitos químicos, Foyle trouxe um pedaço de arame
prateado, puro sódio metálico. Enfiou o arame pela válvula
aberta. O sódio inflamou-se ao tocar a água e produziu uma
chama e grande calor. O calor chegou ao combustível, que se
inflamou numa chamazinha em forma de agulha lá da válvula.
Foyle fechou-a com uma chave inglesa. A ignição se conservou
na câmara e o motor único soltou uma chama com vibração
silenciosa, que abalou a nave.
O impulso descentralizado do jato fez a Nomad girar
lentamente. O movimento criou uma leve gravidade. O peso
voltou. Os destroços flutuantes que cobriam o casco caíram
sobre os conveses, as paredes e os tetos. A gravidade manteve o
combustível saindo dos tanques e indo para a câmara de
combustão.
Foyle não perdeu tempo com comemorações. Saiu da sala
de máquinas e avançou com dificuldade para uma última e fatal
observação da ponte de controle. Assim saberia
TIGER! TIGER! 25

se a Nomad estava condenada a um louco mergulho sem volta


no espaço profundo, ou a uma rota para Júpiter e à salvação.
A pequena gravidade tornou seu tanque de ar quase
impossível de carregar. A súbita aceleração soltara um monte de
destroços que foram lançados através da Nomad. Quando Foyle
chegou à escada de tombadilho que levava à ponte de controle, a
montanha de lixo da ponte voltou com violência pelo corredor e
o apanhou em cheio. Foi acertado pelo turbilhão, arrastado por
toda a extensão do corredor vazio e jogado contra o tabique da
cozinha com um impacto que destruiu seu último laço com a
consciência. Ficou preso no meio de meia tonelada de destroços,
impotente, quase morto, mas ainda ansioso por vingança.
— Quem é você?
— De onde vem?
— Onde está agora?
— Para onde vai?
2
EJntre Marte e Júpiter espalha-se o amplo cinturão dos
asteróides. Dos milhares deles, conhecidos e desconhecidos, o
mais estranho no Século dos Fenômenos, era o as- teróide
Sargasso, um planetóide manufaturado de rocha natural e
destroços, resgatados por seus habitantes durante duzentos anos.
Eram selvagens, os únicos selvagens do século XXIV,
descendentes de uma equipe de cientistas pesquisadores que
haviam se perdido e ficado à deriva no cinturão dos asteróides
dois séculos antes, quando sua nave entrara em pane. Na época
em que seus descendentes foram redesco- bertos, haviam
construído um mundo e uma cultura próprios, e preferiram
permanecer no espaço, resgatando e pilhando, e praticando uma
bárbara imitação do método científico que lembravam dos seus
antepassados. Chamavam-se o Povo Científico. O mundo logo
os esqueceu.
A S. S. Nomad avançou pelo espaço, nem numa rota para
Júpiter, nem para as estrelas remotas, mas flutuando pelo
cinturão de asteróides na lenta espiral de um animál- culo
agonizante. Passou a pouco mais de um quilômetro do asteróide
Sargasso e foi imediatamente capturada pelo Povo Científico
para ser incorporada em seu pequeno planeta. E descobriram
Foyle.
Ele acordou uma vez quando estava sendo carregado em
triunfo numa liteira pelas passagens artificiais e natu
TIGER! TIGER! 27

rais dentro do asteróide. Eram construídas de metal meteórico,


pedra e chapas de fuselagem. Algumas destas ainda mostravam
nomes havia muito esquecidos na história da viagem espacial:
INDUS QUEEN, TERRA; VAGABUNDO DE SYRTUS,
MARTE; CIRCO DE TRÊS PICADEIROS, SATURNO. As
passagens levavam a grandes salas, depósitos, apartamentos e
casas, todos construídos com naves resgatadas cimentadas no
asteróide.
Em rápida sucessão, Foyle foi levado através de um
cargueiro de Ganímedes, um quebra-gelos de Lassei, um
camarote de capitão, um cruzador pesado de Calisto, um
transporte de combustível do século XXII com tanques de vidro
ainda cheios de combustível de foguetes. Dois séculos de
salvamentos estavam reunidos naquela colméia: arsenais
militares, bibliotecas, museus de roupas, depósitos de ma-
quinário, ferramentas, rações, bebidas, produtos químicos,
sintéticos, e peças sobressalentes.
Uma multidão, em volta da liteira, gritava triunfalmente:
Quantum Satis!* Um coro feminino começou uma litania
excitada:
Brometo de Amônia l,5g
Brometo de potássio 3,0 g 2,0 g
Brometo de sódio quantum satis
Ácido cítrico

Quantus Satis!, gritava o Povo Científico. Quantum Satis!


Foyle desmaiou.
Acordou de novo. Haviam tirado seú traje espacial. Estava
na estufa do asteróide, onde cresciam plantas que davam
oxigênio. O casco de cem metros de um velho cargueiro de
minérios formava a sala e uma parede fora inteiramente
reconstruída com janelas resgatadas... vigias redondas, escotilhas
quadradas, em losango, hexagonais... cada forma e idade de
vigia fora introduzida até que a grande parede se tornou uma
colcha de retalhos de vidro e luz.
O Sol distante brilhava através delas; o ar era quente e

(♦) Quantum Satis: fórmula magistral empregada em farmácia, que significa


quantidade suficiente. (N. T.)
28 ALFRED BESTER

úmido. Foyle olhou em volta, tonto. Um rosto de diabo olhou


para ele. Faces, queixo, nariz e pálpebras estavam horrivelmente
tatuadas como uma antiga máscara maori. Na testa estava
tatuado JOSEPH. O “O” de JOSEPH tinha uma flexinha
subindo da direita, transformando-o no símbolo de Marte, usado
pelos cientistas para designar o sexo masculino.
— Somos o Povo Científico — disse Joseph. — Eu sou
Joseph. Estes são os meus irmãos.
Fez um gesto e Foyle olhou para a multidão sorridente que
cercava a liteira. Todos os rostos estavam tatuados com
máscaras diabólicas; todas as testas tinham nomes escritos.
— Quanto tempo ficou à deriva? — perguntou Joseph.
— Vorga — murmurou Foyle.
— Você é o primeiro a chegar vivo nos últimos cin- qüenta
anos. É um homem forte. Muito. A chegada dos mais aptos é a
doutrina de São Darwin. Muito científico.
Quantum Satis, gritava a multidão.
Joseph pegou o cotovelo de Foyle com o jeito de um
médico tomando o pulso. A boca de diabo contou solenemente
até noventa e oito.
— Seu pulso. Trinta e sete vírgula zero — disse Joseph,
puxando um termômetro e agitando-o reverentemente. — Muito
científico.
Quantum Satis!, lá veio o coro.
Joseph surgiu com um frasco de Erlenmeyer. Estava
rotulado: Pulmão, cat., c.c, hematoxilina e eosina. — Vitamina?
— perguntou Joseph.
Quando Foyle não respondeu, Joseph tirou uma pílula
grande do frasco, colocou-a no fornilho de um cachimbo e o
acendeu. Deu uma baforada e fez um gesto. Três garotas
apareceram diante de Foyle. Seus rostos estavam horrivelmente
tatuados. Em cada testa havia um nome: JOAN, MOIRA e
POLLY. O “O” de cada nome tinha uma cru- zinha na base.
— Escolha — disse Joseph. — O Povo Científico pratica a
Seleção Natural. Seja científico na sua escolha. Seja genético.
Quando Foyle desmaiou outra vez, seu braço escorregou
da liteira e tocou em Moira.
Quantum Satis!
TIGER! TIGER! 29

***

Estava numa sala circular com um teto abobadado. O


cômodo estava cheio de aparelhos enferrujados antigos: uma
centrífuga, uma mesa de operações, um fluoroscópio quebrado,
autoclaves, caixas de instrumentos cirúrgicos enferrujados.
Amarraram Foyle na mesa de operações, enquanto ele
balbuciava e delirava. Alimentaram-no. Barbearam-no e o
banharam. Dois homens começaram a acionar manualmente a
antiga centrífuga. Ela emitiu um rangido ritmado, como o soar
de um tambor de guerra. Os presentes começaram a bater os pés
no chão e a cantar.
Ligaram a antiga autoclave. Ela borbulhou e espirrou,
enchendo o cômodo com vapor sibilante. Ligaram o velho
fluoroscópio. Estava em curto-circuito e lançou cegantes
relâmpagos pela sala enfumaçada.
Uma figura de três metros de altura inclinou-se para a
mesa. Era Joseph de andas. Usava um boné cirúrgico, uma
máscara cirúrgica e um avental de cirurgião que pendia dos seus
ombros até o chão. A bata era toda bordada em preto e
vermelho, mostrando partes anatômicas do corpo. Joseph era
uma lúgubre tapeçaria saída de um livro cirúrgico.
— Eu o batizo Nômade! — entoou Joseph.
O barulho tornou-se ensurdecedor. Josehp sacudiu uma lata
enferrujada sobre o corpo de Foyle. Sentiu-se o cheiro do éter.
Foyle perdeu seus farrapos de consciência e a escuridão o
envolveu. Das trevas, a Vorga-T: 1339 surgiu repetidas vezes,
acelerando numa rota solar que irrompeu através do sangue e do
cérebro de Foyle até ele não poder parar de gritar em silêncio
por vingança.

***

Ele tinha uma vaga idéia das abluções e refeições, do bater


de pés e dos cantos. Finalmente, despertou para um intervalo de
lucidez. Havia silêncio. Ele estava numa cama. A garota, Moira,
estava na cama com ele.
— Quem é você? — resmungou Foyle.
— Sua esposa, Nômade.
30 ALFRED BESTER

— O quê?
— Sua esposa. Você me escolheu, Nômade. Somos
gametas.
— O quê?
— Cientificamente acasalados — disse Moira, com or-
gulho. Ela levantou a manga de sua camisola e mostrou- lhe o
braço. Estava desfigurado por quatro cortes feios. — Fui
inoculada com uma coisa velha, uma nova, uma emprestada e
uma azul.
Foyle esforçou-se para sair da cama.
— Onde estamos?
— Na sua casa.
— Que casa?
— A sua. Você é um dos nossos, Nômade. Precisa casar
todo mês e ter muitos filhos. Isso será científico. Mas sou a
primeira.
Foyle ignorou-a e explorou o lugar. Estava na cabina
principal de uma pequena nave do começo dos anos 2300...
outrora um iate particular. A cabina principal fora transformada
num quarto.
Foi até as vigias e espiou para fora. A nave estava presa na
massa do asteróide, ligada por passagens ao núcleo. Foi até a
popa. Duas cabinas menores estavam cheias de plantas para
oxigenação. A sala de máquinas fora transformada em cozinha.
Havia combustível nos tanques, mas alimentava os
queimadores de um pequeno fogào sobre as câmaras de
combustão. Foyle foi para a frente. A cabina de controle agora
era uma sala de visitas, mas os controles ainda estavam em
condições de funcionamento.
Pensou.
Foi até a popa, à cozinha, e desmontou o fogão. Re- ligou
os tanques de combustível às câmaras de combustão originais.
Moira seguiu-o, curiosa.
— O que está fazendo, Nômade?
— Vou dar o fora daqui, garota — resmungou Foyle. —
Tenho negócios a tratar com uma nave chamada Vorga.
Entendeu, garota? Vou acertar nela com esta nave, é isso.
Moira deu um passo para trás, assustada. Foyle viu seu
olhar e pulou na sua direção. Estava tão fraco que ela o evitou
facilmente. Abriu a boca e soltou um grito agudo. Nesse
momento, um poderoso ruído encheu a nave; eram Jo-
TIGER! TIGER! 31

seph e seus irmãos com cara de diabo, batendo no casco


metálico, realizando o ritual de uma barulheira científica para os
recém-casados.
Moira gritou e esquivou-se, enquanto Foyle a perseguia
pacientemente. Ele a encurralou num canto, rasgou sua camisola
e a amarrou e a amordaçou com ela. Moira fazia barulho
bastante para estourar o asteróide, mas a barulhada científica era
mais alta.
Foyle acabou seu improvisado conserto da sala de má-
quinas; agora era quase um perito. Pegou a garota que se
contorcia e a levou até a escotilha principal.
— Vou embora — gritou no ouvido de Moira. — Partida.
Sair do asteróide. Um troço infernal, garota. Talvez todos nós
morramos. Talvez tudo rebente. Ê tudo arriscado. Talvez fique
sem ar. Talvez não haja mais asteróide. Vá dizer pra eles. Avisa
eles. Vá, garota.
Abriu a escotilha, jogou Moira para fora, trancou-a e
lacrou-a. A barulheira acabou abruptamente.
Nos controles, Foyle ligou a partida. A sirene automática
de decolagem começou a soar, um ruído que não ocorria há
décadas. As câmaras dos foguetes ligaram com estrondos
surdos. Foyle esperou atingir a temperatura apropriada.
Enquanto esperava, sofreu. A nave estava cimentada no
asteróide. Cercada de pedra e ferro. Os jatos traseiros estavam
enfiados na fuselagem de outra nave metida na massa. Não sabia
o que aconteceria quando seus foguetes começassem a
funcionar, mas estava disposto a arriscar por causa da Vorga.
Ligou os foguetes. Houve uma explosão oca quando o
combustível se inflamou na popa da nave. Esta tremeu, gemeu,
se aqueceu. Começou um ranger de metal. Daí a nave se lançou
em frente. Metal, pedra e vidro soltaram-se à sua volta e a nave
saltou do asteróide para o espaço.
***
A armada dos P. I. recolheu-o a 144 000 quilômetros além
da órbita de Marte. Após sete meses de guerra aberta, as
patrulhas estavam alertas, mas ousadas. Quando a nave deixou
de responder e dar contra-senhas de reconhecí-
32 ALFRED BESTER

mento, deveria ser destruída com uma salva e depois seriam


feitas perguntas aos destroços. Mas a nave era pequena e a
tripulação do cruzador estava louca por dinheiro de abordagem.
Aproximaram-se e a capturaram.
Descobriram Foyle lá dentro, rastejando como um verme
sem cabeça através de um monte de lixo de equipamentos de
nave e peças de mobília. Estava sangrando de novo, com
gangrena malcheirosa e um lado de sua cabeça estava
esmagada. Levaram-no para a enfermaria do cruzador e
vedaram cuidadosamente seu tanque. Foyle não era uma visão
agradável nem para os estômagos curtidos dos homens dos
conveses inferiores.
Remendaram sua carcaça no tanque amniótico enquanto
completavam sua missão de patrulha. Na volta à Terra, Foyle
recuperou a consciência e balbuciou palavras começando com
V. Sabia que se salvara. Sabia que só o tempo ficava entre ele e
a vingança. O ordenança da enfermaria ouviu-o exultar no
tanque e abriu a vedação. Os olhos entorpecidos de Foyle
olharam para cima. O ordenança não conseguiu refrear sua
curiosidade.
— Tá me ouvindo, cara? — sussurrou.
Foyle resmungou. O ordenança inclinou-se mais.
— O que aconteceu? Quem é que fez isso em você?
— O quê? — roncou Foyle.
— Não sabe?
— O quê? O que que há, cara?
— Espera um minuto, tá?
O ordenança desapareceu ao jauntar até uma cabina de
equipamentos e reapareceu ao lado do tanque cinco segundos
depois. Foyle lutou para sair do fluido. Seus olhos se
arregalaram.
— Tá de volta, cara. Alguma coisa. Jauntar. Não podia
jauntar naNomad, não.
— O quê?
— Não sei onde tava com a cabeça.
— Cara, você continua sem cabeça, sem.
— Não conseguia jauntar. Esqueci como era, só. Esquecí
tudo. Ainda não lembro muito, não. Eu...
Contraiu-se, aterrorizado, quando o ordenança mostrou a
imagem de uma horrível face tatuada à sua frente.
TIGER! TIGER! 33

Era uma máscara maori. Bochechas, queixo, nariz e pálpebras


estavam enfeitadas com riscos e filigranas. Na testa estava
escrito Nômade. Foyle ficou olhando, e então gritou em agonia.
A imagem era um espelho. O rosto era o seu.
3
Bravo, sr. Harris! Muito bem! L-E-S, cavalheiros.
Não esqueçam nunca. Localização. Elevação. Situação. É o
único jeito de lembrarem suas coordenadas de jaunta- ção. Être
entre le marteau e 1'enciume. Francês. Não haverá tradução.
Não jaunte já, sr. Peters. Espere sua vez. Tenham paciência,
logo estarão na classe C. Alguém viu o sr. Foyle? Onde estará?
Oh, vejam só o celestial Brown Trasher. Ouçam-no. Mozart
escrito. Oh, meu Deus, estou pensando... ou falando tudo,
senhores?
— Um pouco de cada, dona.
— Não está certo. Telepatia de mão única é uma cha-
teação. Desculpem-me por bombardeá-los com meus pen-
samentos.
— Gostamos deles, dona. Pensa bonito.
— Como é gentil, sr. Gorgas. Muito bem, alunos; de volta
para a escola e vamos começar de novo.'O sr. Foyle já jauntou?
Nunca sei onde ele está.
Robin Wednesbury estava dando sua aula de reeducação
em jauntação através de Nova Iorque. Era uma atividade tão
excitante para os casos cerebrais como quando ensinava
crianças em sua classe elementar. Tratava os alunos como
crianças e eles pareciam gostar disso. No mês passado, haviam
memorizado os estágios de jauntação em cruzamento de ruas,
cantando: L-E-S, senhora. Localização. Elevação. Situação.
TIGER! TIGER! 35

Era uma garota negra, alta e bonita, brilhante e culta, mas


prejudicada pelo fato de ser uma telemissora — uma telepata de
mão única. Podia transmitir pensamentos para o mundo, mas
não conseguia receber nada. Era uma desvantagem que a
impedia de ter carreiras mais glamurosas, mas a adequava para o
ensino. Apesar de seu temperamento volátil, Robin Wednesbury
era uma completa e metódica instrutora de jauntação.
Os homens foram trazidos do Hospital Geral Militar para a
escola de jauntação que ocupava um prédio inteiro na rua 42,
junto da ponte Hudson. Partiram da escola e andaram em fila
tranqüila até o amplo estágio de jauntação de Times Square, que
memorizaram obedientemente. Então todos jauntaram até a
escola e de volta a Times Square. A fila se reagrupou e andaram
até Columbus Castle e memorizaram suas coordenadas. Daí
jauntaram de volta à escola via Times Square e retornaram pelo
mesmo caminho a Columbus Circle. Mais uma vez a fila se
formou e lá se foram para a Grand Army Plaza, para repetir a
memorização e ajauntação.
Robin estava reeducando os pacientes (todos casos de
ferimentos na cabeça, que perderam o poder de jauntar) para os
pontos expressos, por assim dizer, dos estágios públicos de
jauntação. Depois, iriam memorizar os pontos locais em
cruzamentos de ruas. À medida que seus horizontes se
expandiam (e seus poderes voltavam), memorizavam estágios
de jauntação em círculos cada vez mais amplos, limitados tanto
pela renda como pela capacidade; pois uma coisa era certa: você
tinha de ver um lugar para memorizá- lo, o que significava que
pagara pelo transporte para chegar lá. O Grande Circuito da
cidade adquirira um novo significado para os ricos.
— Localização. Elevação. Situação — ensinava Robin
Wednesbury e a classe jauntava por estágios expressos de
Washington Heights à ponte Hudson, e vice-versa, em saltos de
400 metros cada.
O pequeno sargento de crânio de platina de repente falou
do seu jeito rústico:
— Mas não tem elevação nenhuma, dona. Nós tamos no
chão, tamos.
36 ALFRED BESTER

— “Não há", sargento Logan. “Não há” é melhor.


Desculpe. Ensinar se torna um hábito e hoje estou com pro-
blemas de controlar meu pensamento. As notícias da guerra são
tão ruins! Vamos chegar a Elevação quando começarmos a
memorizar os estágios no alto de arranha-céus, sargento Logan.
O homem com o crânio refeito digeriu isso e daí per-
guntou:
— Nós ouvimos quando a senhora pensa, não é isso?
— Exato.
— Mas a senhora não ouve a gente?
— Nunca. Sou uma telepata de mão única.
— Nós todos ouvimos a senhora, ou só eu, é isso?
— Depende, sargento Logan. Quando estou concentrada,
só aquele para quem estou pensando; quando estou distraída,
ninguém e todo mundo... pobres almas. Desculpem-me. —
Robin virou-se e disse: — Não hesite antes de jauntar, chefe
Harris. Isso dá em dúvida e a dúvida acaba com a jauntação.
Fique de pé e dê o fora.
— Me preocupo, às vezes, dona — respondeu o oficial
com v.na cabeça cheia de bandagens apertadas. Obviamente
estava paralisado na beira do estágio de jauntação.
— Se preocupa? Com quê?
— Se vai ter alguém lá na hora de eu chegar. Daí vai ter
uma merda de explosão. Desculpa, dona.
— Já expliquei isso mil vezes. Os técnicos delimitaram
exatamente cada ponto de jauntação do mundo, para acomodar
o tráfego intenso. Por isso é que os locais particulares de
jauntação são pequenos e o da Times Square tem duzentos
metros. Tudo foi estudado matematicamente e não há uma
chance em dez milhões de uma chegada simultânea. Ê menos
que sua probabilidade de morrer num desastre de estrada.
O oficial subalterno cheio de ataduras balançou a cabeça,
em dúvida, e se colocou em posição no ponto elevado. Era de
concreto branco, redondo e enfeitado na frente com desenhos
pretos e brancos que ajudavam a memória. No centro, havia
uma placa iluminada que dava o nome e as coordenada de
jauntação de latitude, longitude e elevação do lugar.
TIGER! TIGER! 37

No instante em que o homem das ataduras estava reunindo


coragem para a primeira jauntação, o local começou a se encher
de um súbito fluxo de chegadas e partidas. Vultos apareciam
momentaneamente quando jauntavam, hesitavam ao verificar as
redondezas e estabelecer novas coordenadas, e então
desapareciam quando jauntavam para longe. A cada
desaparecimento havia um fraco “pop” quando o ar deslocado
entrava no espaço antes ocupado por um corpo.
— Esperem, alunos — disse Robin. — Há um rush aqui.
Todo mundo fora do local, por favor.
Trabalhadores em pesadas roupas de labuta, ainda cobertos
de neve, estavam indo para suas casas, ao sul, depois de uma
jornada nos bosques do norte. Cinqüenta empregados de leiteria
vestidos de branco dirigiam-se para oeste, rumo a St. Louis.
Seguiam a manhã da Zona Horária Ocidental para a Zona do
Pacífico. E da Groenlândia oriental, onde já era cerca de meio-
dia, uma horda de funcionários de escritório estava afluindo para
Nova York, na sua hora de almoço.
O rush acabou em alguns instantes.
— Muito bem, alunos — disse Robin. — Vamos continuar.
Meu Deus, onde está o sr. Foley? Sempre sumido.
— Com uma cara daquela, a gente não pode culpar ele por
se esconder, dona. Lá na enfermaria cerebral chamavam ele de
Assombração.
— Ele tem um aspecto terrível, não é, sargento Logan?
Não conseguiram tirar aquelas marcas?
— Estão tentando, srta. Robin, mas ainda não sabem como,
não. Ê chamado de “tatuagem”, uma coisa esquecida, é isso.
— Então como o sr. Foyle conseguiu aquele rosto?
— Ninguém sabe, srta. Robin. Ele está na cerebral porque
perdeu a memória, perdeu. Não se lembra de nada. Cá entre nós,
se eu tivesse uma cara daquela, também não ia querer me
lembrar de nada.
— É uma pena. Ele dá medo. Sargento Logan, acha que
deixei escapar algum pensamento sobre o sr. Foyle e feri os
sentimentos dele?
O homenzinho de crânio de platina pensou um pouco.
38 ALFRED BESTER

— Não, dona. A senhora não ia ferir os sentimentos de


ninguém, não ia. E Foyle não tem nada para ser ferido, não tem.
Ele é só um boizão estúpido, só isso.
— Tenho de tomar cuidado, sargento Logan. Veja,
ninguém gosta de saber o que outra pessoa pensa realmente
sobre ela. Imaginamos que sim, mas não gostamos. Esta minha
telemissão me torna odiosa. E solitária. Eu... Por favor, não me
escutem. Estou com dificuldade de controlar meus
pensamentos. Ah! Chegou, senhor Foyle. Por onde tem
andado?
Foyle jauntara para lá e ficara quietinho, com o rosto
terrível abaixado.
— Estive treinando, eu — resmungou.
Robin reprimiu o impulso de repugnância e andou até ele
com uma expressão de simpatia. Pegou-lhe o braço.
— Deve realmente ficar mais conosco. Somos todos
amigos e estamos nos divertindo. Venha.
Foyle recusou-se a encará-la. Quando ele puxou o braço,
zangado, Robin de repente percebeu que a manga estava
encharcada. Todo o uniforme do hospital estava molhado.
“Molhado? Estivera em alguma parte em que chovia. Mas
vi as previsões do tempo de manhã. Não havia chuva a leste de
St. Louis. Então deve ter jauntado além de lá. Mas isso não
deveria conseguir. Pensam que ele perdeu toda a memória e a
capacidade de jauntar. Ele está enganando todo mundo. ”
Foyle pulou na sua direção.
— Cale-se! — Era terrível a selvageria de seu rosto.
— Então está engahando todo mundo.
— Como sabe? E quanto?
— Você está maluco. Pare de fazer cena!
— Estão ouvindo você?
— Não sei. Deixe-me. — Robin afastou-se de Foyle. —
Muito bem, alunos. Por hoje é só. Vamos voltar para a escola e
pegar o ônibus do hospital. Jaunte primeiro, sargento Logan.
Lembre-se: L-E-S. Localização. Elevação. Situação...
— O que quer? — rosnou Foyle. — Vai me dar uma
bronca, você?
TIGER! TIGER! 39

— Fique quieto. Não chame atenção. — Não hesite, chefe


Harris, posicione-se e jaunte.
— Quero falar com você.
— Claro que não. Espere sua vez, sr. Peters. Não tenha
tanta pressa.
— Vai me denunciar no hospital?
— Naturalmente.
— Quero falar com você.
— Não.
— Já foram embora, todos. Temos tempo. Te encontro no
teu apartamento.
— No meu apartamento? — Robin estava realmente
assustada.
— Em Green Bay, Wisconsin.
— Isso é absurdo. Não tenho nada para discutir com esse...
— Tem muito, srta. Robin. Tem uma família para discutir.
Foyle sorri ao ver o terror que ela emitia.
— Te encontro no teu apartamento — repetiu.
— Você não pode saber onde é — arriscou.
— Acabei de dizer, não é?
— Vo... você não pode jauntar até tão longe. Você...
— Não? — A máscara sorriu. — Você disse que eu estava
enganando todo mundo. Disse a verdade, você. Temos meia
hora. Te encontro lá.
O apartamento de Robin Wednesbury ficava num grande
edifício isolado na praia de Green Bay. Parecia que um mágico
tinha tirado o prédio de uma área residencial urbana e o
abandonara entre os pinheiros de Wisconsin. Edifícios como
aquele eram comuns no mundo da jaun- tação. Com
aquecimento local e usina elétrica, mais a jaun- tação para
resolver o problema de transporte, moradias particulares e
coletivas eram construídas no deserto, na floresta e em lugares
isolados.
O próprio apartamento era um conjunto de quatro cômodos,
fortemente vedado para proteger os vizinhos da te- lemissão de
Robin. Estava cheio de livros, músicas, pinturas e gravuras...
tudo evidência da vida culta e solitária da infeliz telepata de mão
única.
40 ALFRED BESTER

Robin jauntou para a sala de visitas do apartamento


poucos segundos depois de Foyle, que a esperava com feroz
impaciência.
— Então agora você sabe mesmo — começou ele sem
preâmbulos. Pegou o braço dela num agarrão dolorido. Mas
não vai contar nada sobre mim no hospital, srta. Robin. Nada.
— Largue-me! — Robin deu-lhe um tapa no rosto.
Animal! Selvagem! Não ouse tocar em mim!
Foyle largou-a e recuou. O impacto da sua repulsa fez
com que se virasse furioso para esconder o rosto.
— Então andou enganando a gente. Sabia jauntar. Jauntou
o tempo todo em que fingia aprender na classe iniciante...
dando grandes saltos pelo país; à volta do mundo, pelo que
imagino.
— Ê. Vou de Times Square a Columbus Circle por...
todos os caminhos do mundo, srta. Robin.
— Por isso está sempre ausente. Mas por quê? Por quê? O
que está planejando?
Uma expressão de astuta matreirice apareceu no rosto
horrível.
— Enfiado no Hospital Geral, estou. Ê minha base de
operações, sabe? Estou acertando uma coisa, srta. Robin.
Tenho uma dívida pra cobrar. Tenho de descobrir onde tá uma
certa nave. Agora tenho de acertar contas com ela. Vou fazer
ela apodrecer. Vorga. Vou matar você, Vorga. Vou acabar com
você!
Parou de gritar e a olhou em triunfo selvagem. Robin
recuou, assustada.
— Meu Deus, do que está falando?
— Vorga. Vorga-T: 1339. Já ouviu falar dela, srta. Robin?
Descobri onde ela está no registro de naves de Bo’ness e Uig.
Bo’ness e Uig são em São Francisco. Fui pra lá, fui, quando
você tava ensinando pra gente as jauntações de cruzamentos.
Fui até São Fran, fui. Achei a Vorga. Tá nos estaleiros de
Vancouver. Ê propriedade do Presteign de Presteign. Já ouviu
falar dele? Presteign é o maior homem da Terra, é. Mas não vai
me deter. Vou acabar com a Vorga. E você não vai me deter
também, srta. Robin. — Foyle aproximou o rosto do dela. —
Porque me protejo, srta. Robin. Cuido de cada ponto fraco na
linha. Descubro alguma
TIGER! TIGER! 41

coisa sobre todo mundo que pode me deter antes de matar a


Vorga... inclusive você, srta. Robin.
— Não.
' — Sim. Descobri onde mora. Sabem lá no hospital. Vim
aqui e dei uma olhada. Li seu diário, srta. Robin. Tem uma
família em Caiisto, mãe e duas irmãs.
— Meu Deus!
— O que a torna uma alienígena beligerante. Quando a
guerra começou, você e todo o resto tiveram um mês pra sair
dos Planetas Interiores e voltar pra casa. Todo mundo que não
fez isso se tornou, por lei, um espião. Tá frita, garota! — Foyle
abriu a mão — Te tenho bem aqui, garota. — E fechou a mão.
— Minha mãe e minhas irmãs tentaram deixar Caiisto há
um ano e meio. Nós somos daqui. Nós...
— Tenho você bem aqui — repetiu Foyle. — Sabe o que
fazem com os espiões? Tiram informações deles. Cortam você
em pedacinhos, srta. Robin. Cortam, pedacinho por pedacinho...
Robin gritou. Foyle balançou a cabeça, feliz, e segurou os
trêmulos ombros dela.
— Eu te peguei, garota, peguei. Nem pode fugir de mim
por que tudo o que tenho a fazer é dar uma dica para o serviço
secreto, e o que vai acontecer? Não tem nada que alguém possa
fazer pra me deter; nem o hospital, nem mesmo o Todo-
Poderoso sr. Presteign de Presteign.
— Saia daqui, sua coisa... nojenta, horrorosa. Saia!
— Não gosta do meu rosto, srta. Robin? Também não tem
nada que possa fazer a respeito.
De repente ele a pegou nos braços e a levou até um sofá
macio. Jogou-a ali.
— Nada — repetiu.
***
Dedicado ao princípio do desperdício evidente, em que
toda sociedade se baseia, Presteign de Presteign instalara em sua
mansão vitoriana no Central Park elevadores, inter- fones,
campainhas e todas as outras engenhocas que a jaun- tação
tornara obsoletas. Os empregados daquele gigantesco
42 ALFRED BESTER

castelo de brinquedo, andavam solenemente de cômodo para


cômodo, abrindo e fechando portas e subindo escadas.
Presteign de Presteign levantou-se, vestiu-se e arrumou-se
com a ajuda de seu valete e do barbeiro, desceu para a sala de
café num elevador e tomou a primeira refeição, ajudado por um
mordomo, um copeiro e criadas. Saiu da sala e entrou no seu
escritório. Numa época em que os sistemas de comunicação
estavam virtualmente extintos, já que era mais fácil jauntar
diretamente para o escritório de um homem para uma reunião
do que telefonar ou telegrafar, Presteign ainda conservava uma
antiga mesa de telefones com telefonista em seu local de
trabalho.
— Ligue-me para Dagenham.
A telefonista se esforçou e, afinal, conseguiu uma ligação
com a Dagenham Couriers, Inc. Era uma organização de cem
milhões de créditos de jauntadores contratados para realizar
qualquer serviço público ou confidencial para qualquer cliente.
A taxa era de um crédito por quilômetro. A Dagenhan garantia
um mensageiro dando a volta ao mundo em oitenta minutos.
Oitenta segundos depois de ser completada a ligação de
Presteign, um mensageiro de Dagenham apareceu no local
particular de jauntação fora da casa de Presteign, foi
identificado e admitido através do labirinto à prova de jauntação
após a entrada. Como todo membro da equipe da Dagenham,
era um jauntador de classe M, capaz de tele- portar mil
quilômetros por salto, indefinidamente, e conhecedor de
milhares de coordenadas de jauntação. Era um especialista de
alto nível em chicana e bajulação, treinado na incisiva eficiência
e audácia que caracterizava a Dagenham Couriers e refletiam a
implacabilidade de seu fundador.
— Presteign? — disse, sem perder tempo com protocolos.
— Quero contratar Dagenham.
— Pronto, Presteign.
— Não você. Quero Saul Dagenham em pessoa.
— O sr. Dagenham não presta mais serviços pessoais por
menos de cem mil créditos.
— A quantia será cinco vezes isso.
— Taxa ou porcentagem?
TIGER! TIGER! 43

— Ambas. Uma taxa de um quarto de milhão e um quarto


de milhão garantido contra dez por cento da quantia total
envolvida.
— Certo. O assunto?
— PyrE.
— Soletre, por favor.
— O nome não quer dizer nada para você?
— Não.
— Ótimo. Significará algo para Dagenham. PyrE. P
maiúsculo, Y, R, E maiúsculo. Diga a Dagenham que loca-
lizamos o PyrE. Está empenhado em achá-lo... a qualquer
preço... por intermédio de um homem chamado Foyle. Gulliver
Foyle.
O mensageiro tirou uma pequena pérola prateada, uma
cabeça de memória, repetiu as instruções de Presteign para ela e
saiu sem dizer nada. Presteign virou-se para a telefonista:
— Ligue para Regis Sheffield.
Dez minutos depois de a ligação ser feita com a firma
jurídica de Regis Sheffield, um jovem advogado apareceu no
local privado de jauntação de Presteign, foi checado e admitido.
Era um rapaz dinâmico com um rosto pequeno e a expressão de
um coelho satisfeito.
— Desculpe o atraso, Presteign. Recebemos seu chamado
em Chicago e ainda sou apenas um jauntador de classe D, de
quinhentos quilômetros. Demorou um pouco chegar aqui.
— Seu chefe está com um caso em Chicago?
— Chicago, Nova Iorque e Washington. Ficou jaun- tando
de tribunal em tribunal a manhã inteira. Nós o substituímos
quando está em outro tribunal.
— Quero contratá-lo.
— Ê uma honra, Presteign, mas o sr. Sheffield está um
bocado ocupado.
— Não pra PyrE.
— Desculpe, senhor, não estou...
— Não, não está entendendo, mas Sheffield vai entender.
Diga-lhe apenas: PyrE e a quantia de seu pagamento.
— Que é?
44 ALFRED BESTER

— Um honorário de um quarto de milhão e um quarto de


milhão garantido contra dez por cento da quantia total
envolvida.
— E o que o sr. Sheffield deverá fazer?
— Preparar todas as possibilidades legais para se se-
qüestrar um homem e conservá-lo assim, mesmo contra o
exército, a marinha e a polícia.
— Certo. E o homem?
— Gulliver Foyle.
O homem saiu, depois de sussurrar rápidas anotações para
uma cabeça-memo, enfiá-la no ouvido, escutar e sacudir a
cabeça afirmativamente. Presteign saiu do escritório e subiu os
degraus de veludo que iam até a suíte de sua filha para as
saudações matinais.
Nas casas dos ricos, os quartos das mulheres não tinham
janelas nem portas, abertos apenas para a jauntação dos
membros íntimos da família. Assim se mantinha a moralidade e
se defendia a castidade. Como Olivia Presteign era cega, não
podia jauntar. Assim, chegava-se à sua suíte por portas
cuidadosamente guardadas por velhos servidores com a libré do
clã Presteign.
Olivia Presteign era uma albina gloriosa. Seu cabelo era
pura seda branca, a pele era cetim branco, as unhas, os lábios e
os olhos eram corais. Era bonita e cega de um jeito
maravilhoso, pois só podia ver no infra-vermelho, de 7.500
angstroms a um milímetro de comprimento de onda. Ela via
ondas térmicas, campos magnéticos, ondas de rádio, radar,
sonar e campos eletromagnéticos.
Ela estava em plena recepção matinal na sala de visitas da
suíte, sentada numa poltrona de braços de brocado, tomando
chá, escoltada por uma dama de companhia, conversando e
dando audiência a uma dúzia de homens e mulheres
distribuídos pela sala. Parecia uma exótica estátua de mármore
e coral, os olhos cegos faiscando ao ver e não ver.
Ela via a sala de visitas como um fluxo pulsante de
emanações de calor que iam dos brilhos quentes às sombras
frias. Via as estranhas formas magnéticas de relógios, telefones,
luzes e fechaduras. Via e reconhecia pessoas pelas formas
térmicas características emitidas por seus rostos e corpos. Via, à
volta de cada cabeça, uma aura das débeis
TIGER! TIGER! 45

formas cerebrais eletromagnéticas e, cintilando através da


radiação térmica, os tons sempre cambiáveis de músculos e
nervos.
Presteign não ligava para artistas, músicos e vagabundos
que Olivia mantinha perto dela, mas gostou de ver um punhado
de gente importante da sociedade naquela manhã. Havia um
Sears-Roebuck, um Gillet, o jovem Sid- ney Kodak, que um dia
seria Kodak de Kodak, um Houbi- gant, Buick de Buick e R. H.
Macy XVI, chefe do poderoso clã Saks-Gimbel.
Presteign cumprimentou a filha e saiu de casa. Dirigiu- se
para a sede do clã em Wall Street, 99, num coche puxado por
quatro cavalos, conduzido por um cocheiro ajudado por um
lacaio, ambos usando a marca vermelha, azul e preta da
Presteign. O P negro num campo de escarlate e cobalto era uma
das mais antigas e notáveis marcas do registro social,
rivalizando com o “57” do clã Heinz e o “RR” da dinastia Rolls-
Royce em antiguidade.
O chefe do clã Presteign era uma visão familiar para os
jauntadores de Nova Iorque. Grisalho metálico, bonito,
poderoso, impecavelmente vestido e de maneiras antiquadas,
Presteign de Presteign era a síntese dos socialmente favorecidos,
tão cioso do seu lugar que empregava cocheiros, lacaios,
cavalariços, aprendizes e tinha cavalos para realizar uma função
para ele que os mortais comuns realizavam com a jauntação.
Naqueles dias, à medida que subiam na escada social, os
homens demonstravam sua posição pela recusa de jaun- tar. Os
recém-adotados num grande clã comercial dirigiam uma cara
bicicleta. Um homem de clã em ascensão guiava um pequeno
carro esporte. Um chefe de grupo era transportado numa relíquia
dos velhos tempos com chofer, um Bentley ou Cadillac de
época, ou um imponente Lagonda. Um herdeiro potencial na
linha direta de sucessão da liderança de um clã equipava um iate
ou um avião. Presteign de Presteign, chefe do clã de Presteign,
tinha carruagens, automóveis, iates, aviões e trens. Sua posição
na sociedade era tão elevada que não jauntava havia quarenta
anos. Desprezava os novos-ricos como os Dagenhams e
Sheffields, que ainda jauntavam e não se envergonhavam disso.
46 ALFRED BESTER

Presteign entrou na torre com ameias no n? 99 de Wall


Street, que era o Castelo Presteign. Guardado e protegido pela
famosa Guarda-Jaunte, com todos os membros na libre do clã.
Presteign entrou com a pose imponente de um líder ao ser
transportado até seu escritório. Na verdade, era maior que um
líder comum, como descobriu — para sua decepção — um
importuno funcionário do governo que esperava uma audiência.
O pobre homem saltou para a frente do meio da multidão de
suplicantes que esperava a passagem de Presteign.
— Sr. Presteign — começou. — Sou do Departamento de
Imposto de Renda e preciso falar com o senhor esta man... —
Presteign interrompeu-o com um olhar glacial.
— Há milhares de Presteign — declarou. — Todos são
chamados de senhor. Mas sou Presteign de Presteign, chefe da
casa e primeiro da família, líder do clã. Sou chamado de
Presteign. Não “senhor” Presteign. Presteign.
Virou-se e entrou no escritório onde seu pessoal cum-
primentou-o num coro surdo: “Bom-dia, Presteign”.
Presteign cumprimentou com a cabeça, deu seu sorriso de
basilisco e sentou-se atrás da grande mesa com trono, enquanto
a Guarda-Jaunte soava as gaitas e rufava os tambores. Presteign
fez um sinal para a audiência começar. Ele desprezava as
cabeças-memo e qualquer equipamento mecânico de negócios.
— Relatório sobre as empresas do Clã Presteign —
começou o Contador. — Ações ordinárias: Alta, 201,5; Baixa,
201,5. Cotações médias em Nova Iorque, Paris, Ceilão,
Tóquio...
Presteign sacudiu a mão, irritado. O Contador retirou- se,
sendo substituído pelo Guardião Vara Negra.
— Outro sr. Presto para ser investigado, Presteign.
Presteign conteve sua impaciência e foi em frente com a
tediosa cerimônia de juramento do 497? sr. Presto na hierarquia
de Prestos Presteign que gerenciavam as lojas da divisão de
varejo de Presteign. Até pouco tempo atrás, o homem tivera um
rosto e um corpo próprios. Agora, após dez anos de cuidadosas
verificações e cautelosas preparações, fora escolhido para se
juntar aos Prestos.
Depois de seis meses de cirurgia e condicionamento
psíquico, era idêntico aos outros 496 senhores Presto e ao
TIGER! TIGER! 47

idealizado retrato do sr. Presto que estava pendurado atrás do


trono de Presteign... um homem gentil e honesto parecido com
Abraham Lincoln, um homem para ser amado e confiado. Em
qualquer lugar que se comprasse, em todo o mundo, entrava-se
numa loja Presteign padrão e lá estavam os gerentes
padronizados, os srs. Presto. Era igualado, mas não superado
pelo sr. Kwik do clã Kodak e pelo Tio Monty de Montgomery
Ward.
Quando a cerimônia terminou, Presteign levantou-se
abruptamente para indicar que a audiência pública acabara. O
escritório foi esvaziado, com exceção dos funcionários
superiores. Presteign ficou andando, obviamente reprimindo sua
feroz impaciência. Nunca dizia palavrões, mas sua raiva
reprimida era mais aterrorizante que os xin- gamentos.
— Foyle — disse numa voz sufocada. — Um marinheiro
vulgar. Sujeira. Porcaria. Lama da sarjeta. E eu sou Presteign de
Presteign. Mas esse homem está entre mim e...
— Desculpe, Presteign — interrompeu timidamente o
Guardião Vara Negra. — São onze horas, horário oriental, oito
horas pelo horário do Pacífico.
— O quê?
— Desculpe, Presteign. Deixe-me lembrá-lo de que há uma
cerimônia de lançamento às nove, horário do Pacífico. Deve
presidi-la nos estaleiros de Vancouver.
— Lançamento?
— Nosso novo cargueiro, o Presteign Princess. Vai levar
algum tempo para estabelecer contato de emissão tridimensional
com o estaleiro, então seria melhor...
— Vou comparecer em pessoa.
— Em pessoa! — gaguejou Vara Negra. — Mas não
podemos voar até Vancouver em uma hora, Presteign. Nós...
— Vou jauntar — disse rispidamente Presteign de
Presteign. Tal era sua agitação.
Seu espantado pessoal fez preparativos apressados.
Mensageiros jauntaram à frente para avisar os escritórios
Presteign em todo o país. Os locais particulares de jauii- tação
foram esvaziados. Presteign foi conduzido ao ponto que havia
no escritório nova-iorquino. Era uma plataforma circular numa
sala toda preta sem janelas. Essa camu
48 ALFRED BESTER

flagem e ocultação eram necessárias para impedir pessoas não


autorizadas de descobrir e memorizar suas coordenadas. Pela
mesma razão, todas as casas e escritórios tinham janelas de face
única e labirintos para confusão atrás de suas portas.
Para jauntar era preciso (entre outras coisas) saber
exatamente onde se estava, para onde se estava indo, ou não se
tinha esperança de chegar vivo em parte alguma. Era tão
impossível jauntar de um ponto de partida indeterminado
quanto chegar a um destino desconhecido. Como ao atirar com
um revólver, era preciso saber onde mirar e qual extremidade
da arma segurar. Mas uma olhada por uma janela ou porta era o
bastante para habilitar uma pessoa a memorizar as coordenadas
L-E-S de um lugar.
Presteign ficou ereto no local, visualizou as coordenadas
de seu destino no escritório de Filadélfia, vendo a imagem
nitidamente e a posição com clareza. Relaxou e energizou um
impulso concentrado de vontade e crença rumo ao alvo.
Jauntou. Houve um momento alucinante em que seus olhos se
toldaram. O local nova-iorquino desapareceu fora de foco; o
local de Filadélfia entrou, como um borrão, em foco. Houve
uma sensação de queda, e depois de elevação. Chegou. Vara
Negra e outros de seu pessoal chegaram um respeitoso instante
depois.
Assim, em jauntes de cento e cinqüenta e trezentos
quilômetros, Presteign atravessou o continente e chegou ao
exterior dos estaleiros de Vancouver exatamente às nove da
manhã, hora do Pacífico. Saíra de Nova Iorque às onze da
manhã. Ganhara duas horas de luz do dia. Isso, também, era
uma coisa comum no mundo da jauntação.
Os quase dois quilômetros quadrados de concreto sem
cerca (que cerca poderia deter um jauntador?) pareciam uma
mesa branca coberta com moedas negras distintamente
arrumadas em círculos concêntricos. Mas vistas de perto as
moedas alargavam-se em bocas de trinta metros de poços
cavados bem fundo nas entranhas da terra. Cada boca circular
era cercada por edifícios de concreto, escritórios, guaritas,
cantinas e vestiários.
Os poços eram de decolagem e de pouso, os de doca seca e
os de construção dos estaleiros. As naves espaciais, como
navios veleiros, nunca foram desenhadas para su-
TIGER! TIGER! 49

portar seu próprio peso sem ajuda contra a atração da gravidade.


A gravidade terrestre normal quebraria o eixo de uma nave
espacial como uma casca de ovo. As naves eram construídas em
poços profundos, ficando verticalmente numa rede de
passadiços e andaimes de construção, reforçados e suportados
por barreiras antigravitacionais. Elas decolavam de poços
semelhantes, subindo pelos feixes antigravitacionais como
partículas de pó subindo pelo facho vertical de uma lanterna, até
chegar ao Limite Riche, quando podiam usar seus próprios jatos.
A nave espacial em pouso desligava os motores e usava os
mesmos feixes para baixo, na direção dos poços.
Quando a comitiva de Presteign entrou nos estaleiros de
Vancouver, puderam ver quais poços estavam em uso. Alguns
dos cascos e narizes das naves saíam deles, alçavam- se em um
quarto ou em metade acima do solo graças às barreiras
antigravitacionais, enquanto operários lá embaixo nos poços
traziam suas popas a determinados níveis operacionais. Três
transportes Presteign classe V — a Vega, a Vestal e a Vorga —
estavam parcialmente levantadas perto do centro do estaleiro,
sendo consertadas e ganhando novo revestimento, como
indicava o cintilar de maçaricos incandescentes à volta da
Vorga.
No edifício de concreto onde se lia: ENTRADA, o grupo
de Presteign parou diante de um cartaz que dizia: A ENTRADA
NÃO AUTORIZADA COLOCARÁ SUA VIDA EM PERIGO.
VOCÊ FOI AVISADO! O grupo recebeu crachás e até Presteign
de Presteign ganhou um. Colocou-o obedientemente, pois sabia
bem qual seria o resultado da entrada sem o crachá protetor. A
comitiva continuou na direção dos poços até chegar no 0-3,
onde a boca do poço estava enfeitada com as cores de Presteign,
tendo sido colocada ali uma pequena tribuna.
Presteign recebeu boas-vindas e, em troca, cumprimentou
vários funcionários. A banda de Presteign atacou o hino do clã,
em som alto e metálico, mas um dos instrumentos pareceu ter
enlouquecido. Tocou uma nota aguda que soou cada vez mais
alta até dominar toda a banda e as exclamações de surpresa. Só
então é que Presteign percebeu que não era o som de um
instrumento, mas o alarme do estaleiro.
50 ALFRED BESTER

Um intruso estava no local, alguém que não usava


identificação ou crachá de visitante. O campo de radar do
sistema de segurança fora acionado e o alarme soou. Além do
uivo lancinante do alarme, Presteign pôde ouvir uma multidão
de “pops”, quando os guardas do estaleiro jaun- taram da
tribuna para posições em torno do campo de concreto. Sua
própria Guarda-Jaunte posicionou-se em volta dele, parecendo
preocupada e alerta.
Uma voz começou a gritar no alto-falante, coordenando a
defesa: DESCONHECIDO NO ESTALEIRO.
DESCONHECIDO NO ESTALEIRO EM E DE EDUARDO
NOVE. E DE EDUARDO NOVE INDO PARA OESTE A PÉ.
— Alguém deve ter entrado sem autorização — gritou
Vara Negra.
— Sei disso — respondeu calmamente Presteign.
— Deve ser um estranho, se não jauntou até aqui.
— Também sei disso.
DESCONHECIDO APROXIMANDO-SE DE D DE
DAVID CINCO. D DE DAVID CINCO. AINDA A PÉ;
ALERTA D DE DAVID CINCO.
— O que ele quer, meu Deus? — exclamou Vara Negra.
— Conhece minha regra, senhor — disse friamente
Presteign. — Nenhum membro do clã Presteign pode usar o
nome da Divindade em vão. Esqueceu disso?
DESCONHECIDO APROXIMANDO-SE AGORA DE C
DE CHARLEY CINCO. APROXIMANDO-SE DE C DE
CHARLEY CINCO.
Vara Negra tocou no braço de Presteign.
— Está vindo nesta direção, Presteign. Quer se proteger,
por favor?
— Não.
— Presteign, houve tentativas de assassinato antes. Três
delas. Se...
— Como chego na parte de cima desta tribuna?
— Presteign!
— Ajude-me.
Ajudado por Vara Negra, ainda protestando histerica-
mente, Presteign subiu até em cima da tribuna para observar o
poder do clã Presteign em ação contra o perigo. Lá
TIGER! TIGER! 51

embaixo, podia ver operários de macacão branco enxa- meando


para fora dos poços para assistir os acontecimentos. Guardas
apareciam ao jauntar de setores distantes rumo ao ponto focal da
ação.
DESCONHECIDO MOVENDO-SE PARA O SUL,
RUMO A B DE BAKER TRES. B DE BAKER TRÊS.
Presteign observou o poço B-3. Um vulto apareceu,
correndo rapidamente para o poço, desviando-se, fazendo fintas,
arremetendo para a frente. Era um homem gigantesco em
uniforme azul de hospital com um monte selvagem de cabelos
negros e um rosto contorcido, que parecia, a distância, estar
pintado em cores vivas. Suas roupas soltavam fumaça quando o
campo protetor de indução do sistema defensivo aqueciam-nas
até se queimarem, e no pescoço, no cotovelo e nos joelhos
notava-se o brilho das chamas.
B DE BAKER TRÊS, ALERTA. B DE BAKER TRÊS,
FECHE.
Houve gritos e um tiroteio distante; o silvo pneumático de
fuzis com luneta. Meia dúzia de operários de branco saltaram na
direção do intruso. Ele se livrou deles como pinos de boliche,
continuando a correr na direção do B-3, onde aparecia o nariz da
Vorga. Suas roupas incendiaram- se totalmente e ele era uma
tocha avançando entre operários e guardas, girando, atacando,
avançando sempre, implacavelmente.
De repente ele parou, procurou algo dentro do seu casaco
em chamas, e tirou uma caixa negra. Com o gesto convulsivo de
um animal se debatendo na agonia da morte, mordeu a ponta da
caixa e atirou-a diretamente num arco alto em direção da Vorga.
No instante seguinte, foi derrubado.
EXPLOSIVO. PROTEJAM-SE. EXPLOSIVO. PRO-
TEJAM-SE.
— Presteign! — gritou o Vara Negra.
Presteign empurrou-o para longe e observou a caixa fazer
uma curva e cair na direção do nariz da Vorga, girando e
brilhando ao sol frio. Na beira do poço, foi colhida pelo feixe
antigravitacional e jogada para cima como se tivesse levado um
golpe de uma unha invisível. Subiu, subiu, girando, quinze,
vinte, trinta metros de altura. Daí houve
52 ALFRED BESTER

um clarão cegante e um instante depois um trovão titânico que


esmagou os ouvidos e fez tremer dentes e ossos.
Presteign levantou-se e desceu da tribuna até a plataforma
de lançamento. Pôs o dedo no botão de lançameto da Presteign
Princess.
— Tragam-me esse homem, se ainda estiver vivo — disse
a Vara Negra. E apertou o botão. — Eu a batizo... Presteign
Power — disse, triunfalmente.
4
.A. Câmara Estrelada do Castelo Presteign era uma
sala oval com painéis de marfim decorados com ouro, espelhos
altos e janelas de vitral. Tinha um órgão dourado e um organista
robô de Tiffany, uma biblioteca com encadernações a ouro e um
bibliotecário andróide na escada das estantes, uma escrivaninha
Luís XV com uma secretária andróide diante de um gravador de
cabeça-memo manual, um bar americano com garçom robô.
Presteign teria preferido empregados humanos, mas andróides e
robôs guardavam segredos.
— Sente-se, capitão Yeovil — disse, cortesmente. — Este
é o sr. Regis Sheffield, que me representa neste assunto. Este
jovem é o assistente do sr. Sheffield.
— Bunny é minha biblioteca jurídica portátil — res-
mungou Sheffield.
Presteign tocou um controle. A natureza morta da Câmara
Estrelada tornou-se viva. O organista tocou, o bibliotecário
ofereceu livros, a secretária escreveu, o garçom preparou
coquetéis. Era espetacular; e o impacto, cuidadosamente
calculado por psicometristas industriais, estabeleceu b controle
para Presteign e colocou os visitantes em desvantagem.
— Falou de um homem chamado Foyle, capitão Yeovil?
— perguntou Presteign.
54 ALFRED BESTER

O capitão Peter Y’ang-Yeovil da Central de Informação


era um descendente em linha direta do sábio Men- cius e
pertencia à Sociedade de Informações das Forças Armadas dos
Planetas Interiores. Por duzentos anos as F.A.P.I. confiaram
seu trabalho de espionagem aos chineses que, com uma história
de cinco mil anos de sutileza cultivada, realizaram maravilhas.
O capitão Y’ang Yeovil era membro da temida Sociedade dos
Homens de Papel, um adepto dos Fabricantes de Imagens
Tientsin, Mestre da Superstição, fluente em Idioma Secreto.
Não parecia chinês.
Y’ang-Yeovil hesitou, totalmente consciente das pressões
psicológicas que funcionavam contra ele. Examinou o rosto
ascético, de basilisco, de Presteign; a expressão áspera e
agressiva de Sheffield; o ansioso jovem chamado Bunny, cujas
feições de coelho tinham um toque inegavelmente oriental. Era
necessário que Yeovil restabelecesse o controle ou conseguisse
um acordo.
Começou a falar com um movimento de flanco.
— Será que somos aparentados dentro de quinze graus de
consangüineidade? — perguntou a Bunny em dialeto
mandarim. — Sou da casa do sábio Meng-Tse que os bárbaros
chamam de Mencius.
— Então somos inimigos hereditários — respondeu
Bunny num mandarim capenga. — Pois o ancestral formidável
de minha linhagem foi deposto do governo de Shan- tung em
342 a.C. pelo porco Meng-Tse.
— Com toda a cortesia, raspo suas sobrancelhas mal
formadas. — disse Y’ang-Yeovil.
— Com todo o respeito, queimo lentamente seus dentes
estragados — riu Bunny.
— Por favor, senhores — protestou Presteign.
— Estamos revivendo uma disputa sangrenta de três mil
anos — explicou Y’ang-Yeovil a Presteign, que parecia
suficientemente perturbado pelo diálogo e os risos que não
entendia. Tentou um ataque direto: — Quando acabará com
Foyle?
— Que Foyle? — interrompeu Sheffield.
— Que Foyle pegaram?
— Há treze com esse nome ligados ao clã Presteign.
TIGER! TIGER! 55

— Um número interessante. Sabia que sou um Mestre da


Superstição? Algum dia preciso mostrar-lhe o Ministério do
Espelho-e-Escuta. Refiro-me ao Foyle envolvido num anunciado
atentado contra a vida do sr. Presteign esta manhã.
— Presteign — corrigiu Presteign. — Não sou “senhor”.
Sou Presteign de Presteign.
— Houve três atentados contra a vida de Presteign — disse
Sheffield. — Precisa ser mais específico.
— Três esta manhã? Presteign deve ter andado ocupado —
suspirou Y’ang-Yeovil. Sheffield revelava-se um oponente de
respeito. O homem do serviço secreto tentou outro movimento.
— Gostaria que nosso sr. Presto tivesse sido mais específico.
— Seu sr. Presto! — exclamou Presteign.
— Oh, sim. Não sabe que um dos seus quinhentos Prestos
é nosso agente? Ê estranho. Tínhamos certeza de que havia
descoberto e tivesse ido em frente com uma operação de
despistamento.
Presteign pareceu espantado. Y’ang-Yeovil cruzou as
pernas e continuou a falar despreocupadamente. — E a fraqueza
fundamental no processo rotineiro do serviço secreto; começa-se
a elaborar antes que seja necessária a elaboração.
— Ele está blefando — explodiu Presteign. — Nenhum
dos nossos Prestos podería saber qualquer coisa de Gulliver
Foyle.
— Obrigado — sorriu Y’ang-Yeovil. — É esse Foyle que
quero. Quando nos deixará pegá-lo?
Sheffield olhou zangado para Presteign e então virou- se
para Y’ang-Yeovil.
— Quem é “nós”? — perguntou.
— A Central de Informações.
— Por que o querem?
— Você faz amor com uma mulher antes ou depois de tirar
as roupas?
— Essa é uma pergunta incrivelmente impertinente.
— A sua também é. Quando nos pode entregar Foyle?
— Quando nos fornecer um motivo.
— A quem?
56 ALFRED BESTER

— A mim. — Sheffield bateu um pesado indicador contra


sua palma. — Este é um assunto civil referente a civis. A
menos que material de guerra, pessoal de guerra ou a estratégia
e a tática de uma guerra sendo travada estejam envolvidos, a
jurisdição civil deve prevalecer sempre.
— 303 Apelos Terrestres 191 — murmurou Bunny.
— A Nomad estava carregando material bélico.
— A Nomad estava transportando um monte de platina
para o Banco de Marte — disse asperamente Presteign. — Se
dinheiro é um...
— Eu estou conduzindo esta discussão — interrompeu
Sheffield. Virou-se para Y’ang-Yeovil. — Especifique o
material bélico.
Esse brusco desafio pegou Y’ang-Yeovil de surpresa. Ele
sabia que o núcleo da questão da Nomad era a presença a bordo
da nave de nove quilos de PyrE, a quantidade total que havia no
mundo, o que era provavelmente irresgatável, já que o
descobridor desaparecera. Sabia que Sheffield sabia que ambos
sabiam disso. Achava que Sheffield preferiría manter o PyrE
fora da discussão. E lá vinha o desafio de dar nome ao
inominável.
Ele tentou enfrentar a brusquidão com brusquidão.
— Muito bem, cavalheiros. Vou dizer agora. A Nomad
transportava nove quilos de uma substância chamada PyrE.
Presteign ia dizer algo, mas Sheffield o calou.
— O que é PyrE?
— Segundo nossos informes...
— Do sr. Presto de Presteign?
— Oh, isso era um blefe — riu Y’ang-Yeovil, e mo-
mentaneamente recuperou o controle. — Segundo o serviço
secreto, o PyrE foi desenvolvido para Presteign por um homem
que depois desapareceu. PyrE é um metal Misch, um piróforo.
É tudo que sabemos de factual. Mas temos vagas informações
sobre isso... Relatórios incríveis de agentes confiáveis. Se uma
fração de nossas especulações for exata, PyrE poderia s?r a
diferença entre uma vitória e uma derrota.
— Absurdo. Nenhum material bélico fez tal diferença.
— Não? Cito a bomba de fissão de 1945. Cito as ins-
talações antigravidade Null-G de 2022. A Barreira de To
TIGER! TIGER! 57

dos os Campos de Radar de Talley, de 2194. O material pode


com freqüência ser a diferença, especialmente quando há a
chance de o inimigo pegá-lo antes.
— Não há tal chance agora.
— Obrigado por admitir a importância do PyrE.
— Não admito nada; nego tudo.
— A Central de Informações está disposta a oferecer uma
troca. Homem por homem. O inventor do PyrE por Gully Foyle.
— Vocês o pegaram? — perguntou Sheffield. — Então por
que nos incomodar com Foyle?
— Porque só temos um cadáver! — disse Y’ang-Yeo- vil.
— Os Satélites Exteriores levaram-no para Lassell durante seis
meses, tentando extrair informações dele. Nós o resgatamos
num ataque ao custo de setenta e nove por cento de baixas.
Resgatamos um cadáver. Ainda não sabemos se os S.E. estavam
nos gozando cinicamente ao nos deixar recapturar um morto.
Ainda não sabemos quanto conseguiram com ele.
Presteign sentiu-se arrasado com isso. Seus dedos im-
placáveis batucavam lenta e asperamente.
— Droga! — explodiu Y’ang-Yeovil. — Não consegue
reconhecer uma crise, Sheffield? Estamos num impasse. Que
diabo está fazendo ao apoiar Presteign nesse cambalacho? Você
é o líder do Partido Liberal... o arquipatriota da Terra. Você é o
arquiinimigo político de Presteign. Venda-o, seu tolo, antes que
ele nos venda a todos.
— Capitão Yeovil — exclamou Presteign em tom ve-
nenoso e gelado. — Estas expressões não podem ser toleradas.
— Nós queremos e precisamos do PyrE — Continuou
Y’ang-Yeovil. — Teremos de investigar esses nove quilos de
PyrE, redescobrir a síntese, ‘aprender a aplicá-lo ao esforço de
guerra... e tudo isso antes dos S.E. acabarem conosco, se é que
já não vão fazer isso agora. Mas Presteign recusa- se a cooperar.
Por quê? Porque se opõe ao partido no poder. Ele não quer
vitórias militares para os liberais. Prefere que percamos a guerra
para bem da política, porque homens ricos como Presteign
nunca perdem. Acorde, Sheffield. Você foi contratado por um
traidor. O que está tentando fazer, em nome de Deus?
58 ALFRED BESTER

Antes que Sheffield pudesse hesitar sobre sua estranha


aliança com Presteign, houve uma discreta batida na porta da
Câmara Estrelada e Saul Degenham entrou. Outrora, Dagenham
fora um dos magos pesquisadores dos Planetas Interiores, um
físico de intuições inspiradas, memória perfeita e um
computador de sexto nível como cérebro. Mas houve um
acidente em Tycho Sands e a explosão de fissão que deveria tê-
lo matado não o fez. Em vez disso, tornou-o perigosamente
radioativo; tornou-o “quente”; transformou-o numa ameaça
ambulante.
Ganhava 25 mil créditos por ano do governo dos Planetas
Interiores para tomar precauções que confiavam que ele
tomasse. Evitava contato físico com qualquer pessoa por mais
de cinco minutos por dia. Não ocupava qualquer cômodo, nem
seu quarto, por mais de trinta minutos diários. Estimulado e
pago pelo P.I. para se isolar da vida e do amor, Dagenham
abandonou a pesquisa e construiu a colossal Dagenham
Couriers, Inc.
Quando Y’ang-Yeovil viu o cadáver loiro e baixinho com
pele de chumbo e sorriso letal entrar na Câmara Estrelada,
soube que sua derrota estava garantida. Não era páreo para os
três homens juntos. Levantou-se imediatamente.
— Vou conseguir uma ordem do Almirantado sobre Foyle
— disse. — No que diz respeito ao serviço secreto, as
negociações estão suspensas. De agora em diante, é guerra sem
quartel.
— O capitão Yeovil está partindo — disse Presteign ao
oficial da Guarda-Jaunte que guiara Dagenham para dentro. —
Por favor, faça-o passar pelo labirinto.
Y’ang-Yeovil esperou até o oficial se colocar ao seu lado e
saudar. Daí, quando o homem cortesmente foi até a porta,
Y’ang-Yeovil olhou diretamente para Presteign, sorriu
ironicamente e desapareceu com um pequeno “pop”!
— Presteign! — exclamou Bunny. — Ele jauntou. Este
lugar não está vedado para ele. Ele...
— Evidentemente — disse Presteing, glacial. — Informe o
Mestre da Casa — ordenou ao espantado oficial da Guarda. —
As coordenadas da Câmara Estrelada não são mais secretas:.
Devem ser mudadas em vinte e quatro horas. E agora, sr.
Dagenham...
TIGER! TIGER! 59

— Um instante — disse Dagenham. — E essa ordem do


Almirantado?
Sem desculpas ou explicação, desapareceu também.
Presteign levantou uma sobrancelha.
— Outro que sabe do segredo da Câmara Estrelada. Mas
pelo menos ele teve o tato de esconder seu conhecimento até o
segredo não existir mais.
Dagenham reapareceu.
— Não há sentido em perder tempo nos meandros do
labirinto. Dei ordens em Washington. Vão segurar Yeovil. Duas
horas garantidas, três horas talvez, quatro horas é possível.
— Como vão retê-lo? — perguntou Bunny.
Dagenham dirigiu-lhe seu sorriso letal.
— Uma operação-padrão da Dagenham Couriers. Di-
versão, fantasia, confusão, catástrofe... Vamos precisar de todas
essas quatro horas. Droga! Desarranjei seus bonecos, Presteign.
— Os robôs de repente estavam agindo de modo alucinado,
com a radiação alta de Dagenham entrando em seus sistemas
eletrônicos. — Não importa. Estou indo.
— E Foyle? — perguntou Presteign.
— Nada ainda. — Dagenham deu seu sorriso de caveira.
— Ele é realmente inigualável. Tentei todas as drogas e rotinas
habituais nele... Nada. Por fora, ele é apenas um homem do
espaço comum... se você esquecer aquela tatuagem em seu
rosto... mas, dentro, tem nervos de aço. Alguma coisa o impede
de ceder.
— O quê? — perguntou Sheffield.
— Espero descobrir.
— Como?
— Não pergunte; você seria um cúmplice. Tem uma nave
pronta, Presteign?
Presteign fez que sim.
— Não estou garantindo que haja qualquer Nomad para
descobrirmos, mas teremos de dar um pulo nela se houver. A lei
está pronta, Sheffield?
— Pronta. Espero que não a tenhamos de usar.
— Eu também, mas, repito, não garanto nada. Muito bem.
Aguarde instruções. Vou ver se consigo dobrar Foyle.
— Onde ele está?
Dagenham sacudiu a cabeça.
60 ALFRED BESTER

— Este lugar não é seguro. — E desapareceu.


Jauntou de Cincinnati a Nova Orleans, dali para Mon-
terrey e Cidade do México, onde apareceu na ala psiquiátrica
do gigantesco hospital das Universidades Terrestres Unidas.
Ala era um nome pouco adequado para essa parte que ocupava
a totalidade de uma cidade na metrópole que era o hospital.
Dagenham jauntou até o 439 andar da Divisão de Terapia e
olhou para o tanque isolado onde Foyle flutuava, inconsciente.
Deu uma olhada para o distinto cavalheiro de barba que estava
de plantão.
— Olá, Fritz.
— Olá, Saul.
— Mas que diabo, o diretor da Psiquiatria cuidando de um
paciente para mim.
— Acho que lhe devemos uns favores, Saul.
— Você ainda está remoendo sobre Tycho Sands, Fritz?
Eu não. Estou arruinando sua ala com a radiação?
— Tudo está vedado.
— Pronto para o trabalho sujo?
— Gostaria de saber o que está procurando.
— Informação.
— E você tem de transformar meu departamento de
terapia numa inquisição para conseguir isso?
— Essa é a idéia.
— Por que não usar drogas comuns?
— Já experimentaram. Não deu certo. Ele não é um
homem comum.
— Sabe que isso é ilegal.
— Sei. Mudou de idéia? Quer voltar atrás? Posso duplicar
seu equipamento com um quarto de milhão.
— Não, Saul. Sempre deveremos favores a você.
— Então, vamos. O Teatro do Pesadelo primeiro.
Levaram o tanque pelo corredor até uma sala acolchoada
de trinta metros quadrados. Fora uma experiência superada de
terapia. O Teatro do Pesadelo fora uma antiga tentativa de
abalar pelo choque os esquizofrênicos, de modo a que
voltassem ao mundo objetivo, tornando inabi- tável o mundo de
fantasia em que estavam se ocultando. Mas a destruição e
laceração das emoções dos pacientes mostrara-se um
tratamento cruel demais e de resultados duvidosos.
TIGER! TIGER! 61

Para o uso de Dagenham, o diretor da Psiquiatria tinha


limpado os projetores visuais de 3-D e religou os projetores
sensoriais. Tiraram Foyle do seu tanque, deram-lhe uma injeção
reanimadora e o deixaram no meio do cômodo. Tiraram o
tanque, apagaram as luzes e entraram no reservado secreto de
controle. Daí, ligaram os projetores.
Toda criança do mundo imagina que seu mundo de fantasia
é único. A psiquiatria sabe que as alegrias e terrores das
fantasias pessoais são uma herança comum partilhada por toda a
humanidade. Nossos medos, culpas, terrores e vergonhas
poderiam ser trocados, de um homem para outro, e ninguém
percebería a diferença. O departamento de Terapia do Hospital
Unido gravara milhares de teipes emocionais e os combinaram
numa perfomance ter- rificante e abrangente do Teatro do
Pesadelo.
Foyle acordou, arquejante e suando, e nunca soube que
acordou. Estava no meio das Eumênides,* de olhos injetados e
cabelos de serpentes. Foi perseguido, agarrado, lançado das
alturas, queimado, dilacerado, garroteado, coberto de vermes,
devorado. Gritou. Fugiu. O radar do Teatro atrapalhou os seus
passos e transformou-os na terrível câmara lenta da corrida em
sonho. E através da caco- fonia de rangidos, uivos, gemidos,
uma perseguição que enchia seus ouvidos, murmurava um fio de
voz persistente.
— Onde está a Nomad onde está a Nomad onde está a
Nomad onde está a Nomad onde está a. Nomad*!
— Vorga — grasnou Foyle. Vorga.
Fora inoculado com sua própria obsessão. Seu próprio
pesadelo o tornara imune.
— Onde está a Nomad*! onde deixou a Nomad*! o que
aconteceu com a Nomad? onde está a Nomad?
— Vorga — gritou Foyle. — Vorga. Vorga. Vorga.
Na cabine de controle, Dagenham xingou. O chefe da
psiquiatria, manipulando os projetores, deu uma olhada no
relógio.
— Um minuto e quarenta e cinco segundos, Saul. Ele não
pode suportar muito mais.

(♦) Nome grego das mitológicas Fúrias, as terríveis irmãs que puniam os
autores de crimes não vingados, chamadas Alecto, Tisífone e Megera. (N. T.)
62 ALFRED BESTER

— Ele tem de ceder. Dê-lhe o efeito final.


Enterraram Foyle vivo, lentamente, inexoravelmente,
terrivelmente. Foi levado para negras profundezas e enfiado em
lama nojenta que lhe vedava a luz e o ar. Sufocou lentamente
enquanto uma voz distante ecoava: ONDE ESTÃ A NOMAD?
ONDE DEIXOU A NOMAD? VOCÊ PODE ESCAPAR SE
DESCOBRIR A NOMAD. ONDE ESTÃ A. NOMAD?
Mas Foyle estava de volta a bordo da Nomad em seu
caixão sem luz e ar, flutuando confortavelmente entre o chão e
o teto. Enrolou-se numa rígida bola fetal e preparou- se para
dormir. Estava contente. Iria escapar. Iria achar a Vorga.
— Maldito filho da mãe! — xingou Dagenham. — Al-
guém já resistiu antes ao Teatro do Pesadelo, Fritz?
— Nunca. Você tem razão. Ê um homem incomum, Saul.
— Devia ser dissecado. Muito bem, para o diabo com
isso. Vamos experimentar o Modo Megal agora. Os atores
estão prontos?
— Tudo pronto.
— Então vamos.
Há seis direções em que podem progredir as ilusões de
grandeza. Megal (abreviatura de Megalomania) era a técnica
dramática de diagnóstico da terapia para estabelecer e
apresentar a tendência específica da megalomania.
Foyle acordou num luxuoso leito de quatro colunas.
Estava num luxuoso quarto, cheio de brocados, forrado de
veludo. Olhou curioso, em redor. Luz solar suave filtrava-se
pelas janelas de venezianas. Do outro lado do quarto, um
criado arrumava roupas sem fazer barulho.
— Ei... — grunhiu Foyle.
O criado virou-se.
— Bom-dia, sr. Fourmyle — murmurou.
— Quê?
— Uma linda manhã, senhor. Tirei o terno castanho e os
sapatos de couro de cabra, senhor.
— Qual é o problema, qual?
— Eu... — o criado olhou curiosamente para Foyle. —
Alguma coisa errada, senhor Fourmyle?
— Como me chamou, cara?
TIGER! TIGER! 63

— Por seu nome, senhor.


— Meu nome é... Fourmyle? — Foyle mexeu-se e levantou
na cama. — Não, não é. É Foyle. Gully Foyle, esse é meu nome,
é.
O criado mordeu o lábio.
— Um instante, senhor... — Foi até a porta e chamou. Em
seguida murmurou. Uma linda moça de branco entrou correndo
no quarto e sentou na beirada da cama. Pegou as mãos de Foyle
e fixou seus olhos. O rosto mostrava preocupação.
— Querido, querido, querido — cochichou. — Você não
vai começar tudo aquilo de novo, não é? O médico disse que
você já havia superado isso.
— Começar de novo o quê?
— Toda aquela bobagem sobre Gulliver Foyle, sobre você
ser um marinheiro comum e...
— Sou Gully Foyle. Esse é meu nome, Gully Foyle.
— Querido, não é. Ê apenas uma alucinação que você teve
durante algumas semanas. Você tem trabalhado e bebido
demais.
— Tenho sido Gully Foyle a vida inteira.
— Sim, eu sei, querido. É como parece para você. Mas não
é. Você é Geoffrey Fourmyle. O Geoffrey Fourmyle. Você é...
Oh, que adianta lhe dizer? Vista-se, meu bem. Precisa ir até lá
embaixo. Seu escritório tem estado uma loucura.
Foyle deixou o criado vesti-lo e foi para baixo sem saber o
que estava fazendo. A linda garota, que evidentemente o
adorava, levou-o até um ateliê gigantesco, cheio de pranchetas,
cavaletes e telas semi-acabadas. Passou e conduziu-o para um
amplo saguão cheio de escrivaninhas, arquivos, teletipos de
cotações, escriturários, secretárias, pessoal de escritório.
Entraram num enorme laboratório cheio de vidros e cromados.
Havia bicos de gás queimado e silvando, líquidos de cores vivas
que borbulhavam e se agitavam, havia um agradável cheiro de
produtos químicos e estranhas experiências.
— O que é isso tudo? — perguntou Foyle.
A garota fez Foyle sentar-se numa fofa poltrona ao lado de
uma mesa enorme coberta de papéis interessantes escritos com
símbolos fascinantes. Em alguns, Foyle viu o
64 ALFRED BESTER

nome: Geoffrey Fourmyle, rabiscado numa assinatura im-


ponente e autoritária.
— Há algum tipo de erro maluco aqui, só isso — começou
Foyle.
A garota fez que silenciasse.
— Aí está o dr. Regan. Ele explica.
Um homem de aspecto impressionante, com modos
pausados e tranquilizadores aproximou-se de Foyle, tomou o
pulso, examinou os olhos e sacudiu a cabeça, satisfeito.
— Bom — disse. — Excelente. O senhor está perto da
recuperação completa, sr. Fourmyle. Agora, escute-me um
momento, certo?
Foyle fez que sim.
— Não se lembra de nada do passado. Só tem uma
memória falsa. Tem trabalhado demais. Ê um homem im-
portante e há muitas pressões sobre o senhor. Começou a beber
muito há um mês... Não, não, negar é inútil. O senhor bebeu.E
perdeu a cabeça.
— Eu...
— O senhor se convenceu de que não é o famoso Jeff
Fourmyle. Uma tentavia infantil de fugir à responsabilidade.
Imaginou que era um homem do espaço comum chamado
Foyle. Gulliver Foyle, não é? Com um número esquisito...
— Gully Foyle. AS: 128/127:006. Mas esse sou eu. Sou...
— Não é o senhor. Este é o senhor. — O dr. Regan fez um
gesto para os interessantes locais que podiam ser vistos pela
parede de vidro transparente.
— O senhor só pode recuperar sua memória verdadeira se
se livrar da antiga. Toda esta gloriosa realidade é sua, se
pudermos ajudá-lo a afastar o sonho do homem do espaço. —
O dn Regan inclinou-se para a frente, os óculos polidos
brilhando hipnoticamente. — Reconstruiremos a sua memória
falsa com detalhes e a destruiremos. Onde imagina que deixou
a nave Nomad? Como escapou? Onde imagina que a.Nomad
esteja agora?
Foyle abalou-se diante do charme romântico da cena que
parecia estar ao alcance de sua mão.
— Parece que deixei a Nomad em... — Interrompeu- se
bruscamente.
TIGER! TIGER! 65

Uma cara de diabo estava olhando-o, refletida nos óculos


do dr. Regan... Uma terrível máscara de tigre com Nômade
escrito na testa distorcida. Foyle levantou-se.
— Mentirosos! — grunhiu. — Sou real, sim. Isto aqui é
falso. O que me aconteceu é real. Sou real, sim.
Saul Dagenham entrou no laboratório.
— Muito bem. — disse. — Encerrem. Fracassou.
A cena agitada do laboratório, escritório e ateliê acabou. Os
atores desapareceram em silêncio, sem dar uma olhada para
Foyle. Dagenham deu seu sorriso letal para Foyle.
— Você é durão, mesmo, não é? É realmente único. Meu
nome é Saul Dagenham. Temos cinco minutos para conversar.
Venha para o jardim.
O Jardim Sedativo no alto do Edifício da Terapia era um
triunfo de planejamento terapêutico. Cada perspectiva, cada cor,
cada contorno fora projetado para aplacar a hostilidade,
amenizar a resistência, aliviar o ódio, evaporar a histeria, afastar
a melancolia e a depressão.
— Sente-se — disse Dagenham, apontando para um banco
ao lado de uma piscina onde cintilava água cristalina. — Tenho
de andar um pouco. Não posso me aproximar demais de você.
Sou “quente”. Sabe o que isso quer dizer?
Foyle fez que não, zangando. Dagenham segurou com
ambas as mãos o flamejante bulbo de uma orquídea e ficou
assim por um instante.
— Veja esta flor — disse. — Assim, saberá. — Deu alguns
passos e virou, de repente. — Você está bem, claro. Tudo que
aconteceu a você é real... Mas o que é que aconteceu?
— Vá pro inferno — grunhiu Foyle.
— Sabe, Foyle, eu o admiro.
— Vá pro inferno.
— Em seu modo primitivo, você tem ingenuidade e
coragem. Você é um Cro-Magnon, Foyle. Venho observando-o.
Aquela bomba que jogou no estaleiro Presteign foi uma beleza e
você quase arruinou o Hospital Geral levando o dinheiro e
material juntos. — Dagenham foi contando, nos dedos: — Você
arrombou armários, roubou a enfer
66 ALFRED BESTER

maria, roubou remédios da farmácia, roubou aparelhos dos


depósitos do laboratório.
— Vá pro inferno.
— Mas o que você tem contra Presteign? Por que tentou
explodir o estaleiro? Disseram-me que você apareceu e foi
direto para os poços como um índio comanche. O que estava
tentando fazer, Foyle?
— Vá pro inferno.
Dagenham sorriu.
— Se vamos conversar — disse —, você precisa cuidar do
seu lado. Seu diálogo está ficando monótono. O que aconteceu
àNomadl
— Não sei nada sobre a.Nomad, nada.
— A última notícia da nave foi há sete meses. Daí... Você
é o único sobrevivente? E o que esteve fazendo esse tempo
todo? Enfeitando o rosto?
— Não sei nada sobre a.Nomad, nada.
— Não, não, Foyle, assim não dá. Você apareceu com
Nômade tatuado no rosto. Recém-tatuado. O serviço secreto
verificou e descobriu que você estava a bordo quando a nave
partiu. Foyle, Gulliver: AS: 128/127:006, Mecânico de 3?
Classe. Como se isso não bastasse para colocar a Central de
Informações em polvorosa, você voltou numa nave particular
que estava desaparecida há cinqüenta anos. Cara, você está
cozinhando no reator. A Central quer resposta para todas estas
perguntas. E você deve saber como a Central de Informações,
com seus açougueiros, consegue as respostas das pessoas.
Foyle sobressaltou-se. Dagenham balançou a cabeça, ao
ver que seu argumento pegava.
— Ê por isso que acho que você vai ouvir a voz da razão.
Queremos informações, Foyle. Tentei uns truques com você,
Foyle; confesso. Fracassei porque você é durão demais;
confesso. Agora estou oferecendo um acordo honesto. Nós o
protegeremos se você cooperar. Se não, passará cinco anos num
laboratório da Central com informações sendo arrancadas de
você.
Não era a perspectiva de torturas que assustou Foyle, mas
o pensamento da perda de liberdade. Um homem precisava
ficar livre para ganhar dinheiro e achar a Vorga de novo; para
dilacerar, destruir e acabar com a Vorga.
TIGER! TIGER! 67

— Que tipo de acordo?


— Diga-nos o que aconteceu com a Nomad e onde a
deixou.
— Por que, cara?
— Por quê? Por causa do resgate.
— Não tem nada pra resgatar. Virou uma ruína, nada mais.
— Mesmo uma ruína é resgatável.
— Quer dizer que ia atravessar um milhão de quilômetros
pra catar pedaços? Não me goze, cara.
— Tudo bem — disse, exasperado, Dagenham. — É a
carga.
— Tá toda arrebentada. Não sobrou carga.
— Era uma carga que você desconhecia — disse Da-
genham confidencialmente. — A Nomad transportava um
montão de platina para o Banco de Marte. De quando em
quando, os bancos têm de acertar contas. Normalmente, há
suficiente comércio entre os planetas para as contas serem
equilibradas apenas com papel. A guerra interrompeu o
comércio normal e o Banco de Marte descobriu que Pres- teign
lhe devia vinte milhões de créditos sem nenhum jeito de
conseguir o dinheiro a não ser por uma entrega direta. Presteign
estava mandando o dinheiro em barras de platina a bordo da
Nomad. Estava trancado no cofre do comissário.
— Vinte milhões — sussurrou Foyle.
— Com alguns milhares a mais ou a menos. A nave estava
no seguro, mas isso quer dizer apenas que os seguradores,
Bo’ness e Uig, ficam com os direitos de resgate e eles são ainda
mais duros que Presteign. Contudo, haverá uma recompensa
para você. Digamos... vinte mil créditos.
— Vinte milhões — sussurrou Foyle outra vez.
— Imaginamos que um patrulheiro dos S. E. teve um
confronto com a Nomad em algum lugar da rota e acertou-a em
cheio. Não podem ter abordado e saqueado, senão você não
seria deixado vivo. Isso significa que o cofre do comissário
ainda está lá... Está ouvindo, Foyle?
Mas Foyle não estava ouvindo. Estava vendo vinte mi-
lhões... não vinte mil... vinte milhões num montão de platina
como uma ampla estrada para a Vorga. Nada de roubos
vagabundos de vestiários e laboratórios; vinte milhões para
pegar e destruir a Vorga.
68 ALFRED BESTER

— Foyle!
Foyle despertou. Olhou para Dagenham.
— Não sei nada sobre a Nomad, nada.
— Mas que diabo você tem, agora? Por que está mentindo
outra vez?
— Não sei nada sobre a Nomad, nada.
— Estou lhe oferecendo uma recompensa justa. Um
homem do espaço pode ir longe com vinte mil créditos... Que
mais você quer?
— Não sei nada sobre a Nomad, nada.
— Nós ou a Central de Informações, Foyle.
— Você não deve estar tão ansioso pra que eles me
peguem, ou não teria armado tudo isto. Mas não faz mal, de
qualquer jeito. Não sei nada sobre a Nomad, nada.
— Seu filho da... — Dagenham tentou exprimir sua raiva.
Revelara um pouco demais para aquela astuta e primitiva
criatura. — Tem razão — disse. — Não estamos ansiosos para
que a Central pegue você. Mas fizemos nossos preparativos. —
Sua voz endureceu. — Você acha que pode nos enganar e
afastar. Você acha que pode nos deixar e ir atrás da Nomad.
Você até teve a idéia de que pode chegar primeiro e pegar o
resgate.
— Não — disse Foyle.
— Ouça, agora. Temos um advogado esperando em Nova
Iorque. Ele tem uma acusação criminal de pirataria contra você;
pirataria no espaço, assassinato e roubo. Vamos jogar tudo
contra você. Presteign conseguirá uma condenação em vinte e
quatro horas. Se você tiver ficha criminal de alguma espécie,
isso quer dizer uma lobotomia. Vão abrir a tampa da sua cabeça
e queimar metade do seu cérebro para impedir que você jaunte
novamente.
Dagenham parou e lançou um olhar duro para Foyle.
Quando Foyle sacudiu a cabeça, continuou:
— Se você não tiver ficha, vão lhe dar dez anos do que é
conhecido jocosamente como tratamento médico. Não punimos
criminosos em nossa idade esclarecida, nós os curamos. E a
cura é pior que o castigo. Enfiam você num buraco negro num
dos hospitais subterrâneos. Você será mantido em trevas
permanentes e confinamento solitário para não poder jauntar.
Fingirão que lhe darão injeções e terapia, mas na verdade você
estará apodrecendo no escuro.
TIGER! TIGER! 69

Ficará lá e apodrecerá até decidir falar. Manteremos você lá


para sempre. Pense bem.
“ Vorga, vou acabar com você todinha. ”
— Não sei nada sobre a Nomad, nada.
— Muito bem. — Dagenham cuspiu. De repente, apontou
para o bulbo da orquídea que segurara entre as mãos. Estava
murcha e apodrecendo. — Isso é o que vai lhe acontecer.
5
Ao sul de Saint-Girons, perto da fronteira franco-es-
panhola, fica o mais profundo abismo da França, o Gouffre
Martel. Suas cavernas retorcem-se por quilômetros sob os
Pirineus. Ê o mais formidável hospital-caverna na Terra.
Nenhum paciente jamais jauntou da sua total escuridão. Nenhum
paciente jamais conseguiu se orientar e saber as coordenadas
jaunte das profundezas do negro hospital.
Além da lobotomia pré-frontal, só há três maneiras de
evitar que um homem jaunte: um golpe na cabeça que produz
concussão, sedação que impede a concentração e a ocultação das
coordenadas de jauntação. Das três, a era da jauntação
considerava a ocultação a mais prática.
As celas que se sucedem em linha nas passagens ventosas
do Gouffre Martel são escavadas na rocha viva. Nunca são
iluminadas. As passagens nunca são iluminadas. Lâmpadas
infravermelhas banham as trevas. É luz negra só visível para os
guardas e serventes que usam óculos especiais com lentes
preparadas. Para os pacientes, só havia o silêncio negro do
Gouffre Martel, rompido pelo fluir distante de águas
subterrâneas.
Para Foyle só havia o silêncio, o marulhar e a rotina do
hospital. Ãs oito horas (ou o que podia ser essa hora naquele
abismo intemporal) era despertado por uma campainha.
Levantava e recebia a refeição matinal, enfiada na cela por um
tubo pneumático. Tinha de ser comida ime
TIGER! TIGER! 71

diatamente, pois a falsa louça de xícaras e pratos era programada


para se dissolver em quinze minutos. Às oito e meia, a porta da
cela se abria e Foyle mais centenas de outros tropeçavam
cegamente pelos corredores labirínticos até a Sanitarização.
Ali, ainda no escuro, eram tratados como carne num
matadouro: lavados, raspados, irradiados, desinfetados,
inoculados. Seus uniformes de papel eram removidos e
queimados. Novos uniformes eram providenciados. Então, eram
conduzidos de volta a suas celas que eram automaticamente
limpas enquanto estavam na Sanitarizaçao. Na sua cela, Foyle
ouvia intermináveis palestras terapêuticas, aulas, orientação
moral e ética pelo resto da manhã. Daí, vinha o silêncio outra
vez e nada além do fluir da água distante e os passos suaves dos
guardas de óculos nos corredores.
De tarde, vinha a terapia ocupacional. A tela de TV em
cada cela iluminava-se e o paciente enfiava as mãos na moldura
de sombra da tela. Via tridimensionalmente e sentia objetos e
ferramentas. Cortava uniformes de hospital, costurava-os,
manufaturava utensílios de cozinha e alimentos. Embora na
verdade não tocasse nada, seus movimentos eram transmitidos
para as oficinas onde o trabalho era realizado por controle
remoto. Após uma curta hora desta atividade, vinham outra vez
a escuridão e o silêncio.
Mas de vez em quando... uma ou duas vezes por semana
(ou talvez uma ou duas vezes por ano) vinha o estrondo abafado
de uma explosão distante. As concussões eram suficientemente
estranhas para distrair Foyle da fornalha de vingança que ele
estocava através de todos os silêncios. Cochichava perguntas
para as figuras invisíveis ao seu redor na Sanitarização.
— Que são aquelas explosões?
— Explosões?
— Estouros. Ouço um bocado deles.
— S ão j auntes cegos.
— O quê?
— Jauntes cegos. De vez em quando um cara se enche
daqui e não agüenta mais. E jaunta pro nada, explodindo nas
montanhas.
72 ALFRED BESTER

— Meu Deus.
— É. Não sei onde estão não. Não sei pra onde vão. Jaunte
cego no escuro... e vem o barulho nas montanhas. Bum! Jaunte
cego.
Estava espantado, mas podia entender. A escuridão, o
silêncio, a monotonia destruíam o bom senso e traziam o
desespero. A solidão era intolerável. Os pacientes enterrados no
hospital-prisão do Gouffre Martel esperavam ansiosamente pelo
período matinal da Sanitarização para terem chance de
cochichar uma palavra e ouvir uma palavra. Mas esses
fragmentos não eram o bastante e vinha o desespero. Então
haveria outra explosão distante.
Ãs vezes, os homens atormentados viravam-se um contra
o outro e acontecia uma luta selvagem na Sanitarização. Que
era imediatamente apartada pelos guardas de óculos; a palestra
matinal transformava-se de Fibra Moral em Virtude da
Paciência.
Foyle aprendeu as gravações de cor; cada palavra, cada
clique e craque das fitas. Aprendeu a odiar as vozes dos
palestrantes; o Barítono Compreensivo, o Tenor Jovial, o Baixo
Homem-a-Homem. Aprendeu a não ouvir a monotonia
terapêutica e a realizar sua terapia ocupacional mecanicamente,
mas não tinha recursos para agüentar as infinitas horas
solitárias. A fúria não era o bastante.
Perdeu conta dos dias, das refeições, dos sermões. Não
sussurrava mais na Sanitarização. Sua mente se perdeu e
começou a delirar. Imaginava que estava de volta à Nomad,
revivendo sua luta pela sobrevivência. Daí perdeu até mesmo
esse débil elo na ilusão e começou a mergulhar cada vez mais
fundo no poço da catatonia, do silêncio uterino, treva uterina e
sono uterino.
Havia sonhos rápidos. Um anjo murmurou certa vez para
ele. Outra vez, ela cantou baixinho. Três vezes ele a ouviu
dizendo: “Oh, Deus...’’ e “Que diabo!’’ e “Oh!”, numa nota
iescendente que cortava o coração.
Mergulhou em seu abismo, escutando-a.
— Há um jeito de sair — o anjo murmurou no seu ouvido,
docemente, confortadoramente. Sua voz era suave e calorosa,
embora queimasse de raiva. Era a voz de um anjo furioso. —
Há um jeito de sair.
TIGER! TIGER! 73

Cochichava-lhe no ouvido, de parte alguma, e, de repente,


com a lógica do desespero, ocorreu-lhe a idéia de que havia um
modo de escapar de Gouffre Martel. Fora um idiota em não tê-lo
percebido antes.
— É — guinchou. — Há um jeito de sair.
Houve um soluço baixo e uma pergunta, baixinho:
— Quem está aí?
— Eu, só eu. — disse Foyle. — Você me conhece.
— Onde você está?
— Aqui. Onde sempre estive.
— Mas não há ninguém. Estou sozinha.
— Tenho de te agradecer por me ajudar.
— Ouvir vozes é ruim — murmurou o anjo furioso. — O
primeiro passo do fim profundo. Tenho de parar.
— Você me mostrou o jeito de sair. O jaunte cego.
— Jaunte cego! Meu Deus, isto deve ser real. Você está
usando o jargão daqui de baixo. Deve ser real. Quem é você?
— Gully Foyle.
— Mas você não está na minha cela. Nem perto dela. Os
homens estão no quadrante norte do Gouffre Martel. As
mulheres estão no sul. Estou na Sul-900. Onde está você?
— Norte-111.
— Você está a 400 metros. Como podemos... Meus Deus!
Claro! É a Linha do Cochicho. Sempre pensei que fosse uma
lenda, mas é verdade. Está funcionando agora.
— Eu vou — sussurrou Foyle. — Jaunte cego.
— Foyle, escute-me. Esqueça o jaunte cego. Não jogue isto
fora. É um milagre.
—O que é um milagre?
— Há um fenômeno acústico do Gouffre Martel...
acontecem em cavernas subterrâneas... um fenômeno de ecos,
passagens e galerias sussurrantes. Os veteranos chamam-no de
Linha do Cochicho. Nunca acreditei neles. Ninguém acredita,
mas é verdade. Estamos falando um com o outro pela Linha do
Cochicho. Ninguém pode ouvir, a não ser nós. Podemos falar,
Foyle. Podemos planejar. Talvez possamos escapar.

***
74 ALFRED BESTER

O nome dela era Jisbella McQueen. Era de pavio curto,


independente, inteligente e estava passando por uma cura de
cinco anos no Gouffre Martel por roubo. Jisbella fez para Foyle
um relato alegremente furioso de sua revolta contra a sociedade.
— Você não sabe o que jauntar fez para as mulheres,
Gully. Encerrou-nos; mandou-nos de volta ao serralho.
— O que é serralho, garota?
— Um harém. Um lugar onde as mulheres são conservadas
no gelo. Depois de mil anos de civilização (é o que dizem),
ainda somos uma propriedade. A jauntação é um tal perigo para
nossa virtude, nosso valor, nossa condição de matriz preciosa,
que somos guardadas como uma placa de ouro num cofre. Não
há nada que possamos fazer... nada respeitável. Nenhum
emprego. Nenhuma carreira. Não há escapatória, Gully, a não
ser que você mande tudo para o inferno e quebre todas as regras.
— Você precisa fazer isso, Jiz?
— Tenho de ser independente, Gully. Tenho de viver
minha vida e este é o único jeito que a sociedade me reserva.
Então, fugi de casa e me tornei uma ladra. — E Jiz contou os
detalhes crus da sua revolta, o Assalto Temper, o Assalto da
Catarata, os Roubos da Lua-de-Mel e do Obituário, o Jaunte
Badger e o Golpe da Vela.
Foyle contou-lhe sobre a Nomad e a Vorga. Seu ódio e
seus planos. Não falou a Jisbella do seu rosto ou dos vinte
milhões de platina que esperavam nos asteróides.
— O que aconteceu com a Nomad? — perguntou Jisbella.
— Foi como aquele homem, o Dagenham, disse? Ela foi
acertada por um caça dos S.E.?
— Não sei. Não me lembro, garota.
— O impacto deve ter variado sua memória. Choque. E
ficar à deriva por seis meses não ajudou. Você viu alguma coisa
que valesse a pena salvar na Nomad?
— Não.
— Dagenham mencionou alguma coisa?
— Não — mentiu Foyle.
— Então ele deve ter outro motivo para jogá-lo no Gouffre
Martel. Deve haver outra coisa que ele quer da Nomad.
— Certo, Jiz.
TIGER! TIGER! 75

— Mas você foi um idiota em tentar explodir a Vorga desse


jeito. Você bancou uma fera tentando punir a armadilha que o
machucou. O aço não é vivo. Não pensa. Você não pode castigar
a Vorga.
— Não sei o que quer dizer, garota. A Vorga me aban-
donou lá.
— Você castiga o cérebro, Gully. O-cérebro que colocou a
armadilha. Descubra quem estava a bordo da Vorga. Descubra
quem deu a ordem de passar por você. Cas- tigue-o.
— Tá. E como?
— Aprende a pensar, Gully. A cabeça que imaginou como
conseguir fazer zNomad funcionar e como fazer uma bomba
deve ser capaz de imaginar isso. Mas chega de bombas; cérebros
agora. Localize um membro da tripulação da Vorga. Ele dirá
quem estava a bordo. Siga-os. Descubra quem deu a ordem.
Então o castigue. Mas isso vai demorar, Gully... tempo e
dinheiro, mais do que você tem.
— Tenho a vida toda.
Murmuraram horas pela Linha do Cochicho, suas vozes
parecendo baixas, mas próximas ao ouvido. Só havia um lugar
exato em cada cela no qual o outro podia ser ouvido, razão pela
qual demorou tanto antes de descobrirem o milagre. Mas agora
recuperavam o tempo perdido. E Jis- bella educava Foyle.
— Se sairmos do Gouffre Martel, Gully, terá de ser juntos e
não vou confiar num parceiro analfabeto.
— Quem é analfabeto?
— Você — respondeu Jisbella firmemente. — Tenho de
falar a metade do tempo em gíria.
— Sei ler e escrever.
— E isso é tudo... o que quer dizer que tirando a força bruta
você será inútil.
— Tá falando bobagem, tá.
— Nada disso. De que serve a melhor lâmina do mundo se
não tiver fio? Temos de afiar suas capacidades, Gully. De educar
você, cara, é isso aí.
Ele cedeu. Percebeu que ela tinha razão. Precisava de
treinamento não só para a fuga mas também para a busca da
Vorga. Jisbella era filha de um arquiteto e recebera uma
educação de primeira classe. Transmitiu-a a Foyle, tempe
76 ALFRED BESTER

rada com a experiência cínica de cinco anos no submundo. De


vez em quando ele se revoltava contra o trabalho duro e daí
havia brigas sussurradas, mas no fim ele se desculpava e cedia
outra vez. E às vezes Jisbella se cansava de ensinar e daí
começavam a divagar, partilhando sonhos na escuridão.
— Acho que estamos nos apaixonando, Gully.
— Também acho, Jiz.
— Sou uma puta velha, Gully. De cento e cinco anos.
Como é você?
— Horroroso.
— Quanto?
— Meu rosto.
— Você faz isso parecer romântico. É uma dessas ci-
catrizes excitantes que tornam um homem atraente?
— Não. Você verá quando nos encontrarmos, a gente. Está
errado, não é? Basta dizer: quando nos encontrarmos. Ponto.
— Bom menino.
— Um dia vamos nos encontrar, não é, Jiz?
— Logo, espero, Gully. — A voz distante de Jisbella se
tornou áspera e formal. — Mas temos de parar de ficar es-
perando e começar a agir. Temos de planejar e preparar.
No submundo, Jisbella reunira uma porção de informações
sobre o Gouffre Martel. Ninguém jauntara para fora das
cavernas, mas por décadas o submundo reunira e avaliara
informações sobre elas. Foi com esses dados que Jisbella
formara sua rápida conclusão sobre a Linha do Cochicho que os
juntara. Com base nessa informação é que ela começou a
discutir a fuga.
— Podemos sair daqui, Gully. Nunca duvide disso por um
instante. Deve haver dúzias de furos no sistema de segurança.
— Ninguém os achou antes.
— Ninguém nunca trabalhou com um parceiro. Vamos
unir nossas informações e teremos sucesso.
Ele não fazia mais mecanicamente o caminha de ida e
volta da Sanitarização. Sentia as paredes do corredor, notava
portas, sua textura, contava, ouvia, deduzia e relatava tudo a
Jisbella. Tomou nota de cada passo na Sanitarização e o
transmitia. As perguntas que sussurrava aos homens que o
cercavam no chuveiro e na limpeza tinham finali
TIGER! TIGER! 77

dade. Juntos, Foyle e Jisbella traçaram um retrato da rotina do


Gouffre Martel e seu sistema de segurança.
Certa manhã, de volta da Sanitarização, foi detido quando
estava indo de volta para a cela.
— Fique na fila, Foyle.
— Aqui é Norte-111. Sei onde ir agora.
— Continue andando.
— Mas... — estava aterrorizado. Estão me mudando?
— Visita.
Foi levado até o fim do corredor do norte onde dava nos
três outros corredores principais que formavam a enorme
estrutura do hospital. No centro estavam os escritórios de
administração, as oficinas de manutenção, clínicas e instalações.
Foyle entrou numa sala, escura como sua cela. A porta se fechou
atrás dele. Percebeu uma forma levemente brilhante na
escuridão. Era apenas o fantasma de uma imagem com um corpo
borrado e um rosto de morte. Dois discos negros na cara de
caveira eram órbitas ou óculos infravermelhos.
— Bom-dia — disse Dagenham.
— Você? — exclamou Foyle.
— Eu. Tenho cinco minutos. Sente-se. A cadeira está atrás
de você.
Foyle tateou em busca da cadeira e sentou devagar.
— Está se divertindo? — perguntou Dagenham.
— O que quer, Dagenham?
— Houve uma mudança — disse Dagenham, secamente. —
Da última vez que conversamos, sua parte no diálogo era apenas
“Vá para o inferno”.
— Vá para o inferno, Dagenham, se isso fizer com que se
sinta melhor.
— Sua resposta melhorou; seu jeito de falar também. Você
mudou. — disse Dagenham. — Mudou muito e muito depressa.
Não gosto disso. O que aconteceu à você?
— Tenho ido à escola noturna.
— Você passou dez meses nessa escola noturna.
— Dez meses! — repetiu Foyle, espantado. — Tudo isso?
— Dez meses sem ver ou sem ouvir. Dez meses na soli-
tária. Devia estar arrasado.
— Oh, estou arrasado.
78 ALFRED BESTER

— Deveria estar gritando. Eu estava certo. Você não é


comum. Nesse passo, vai demorar demais. Não podemos
esperar. Gostaria de fazer uma nova oferta. Dez por cento da
carga da. Nomad. Dois milhões.
— Dois milhões! — exclamou Foyle. — Por que não
ofereceu isso da primeira vez?
— Porque não sabia o seu calibre. De acordo?
— Quase. Ainda não.
— O que mais?
— Fico livre do Gouffre Martel.
— Naturalmente.
— E alguém mais comigo.
— Isso pode ser arranjado — a voz de Dagenham ficou
cortante. — Mais alguma coisa?
— Quero acesso aos fichários de Presteign.
— Fora de cogitação. Está louco? Seja razoável.
— Os fichários de navegação.
— Para quê?
— Uma lista do pessoal de bordo de uma das suas naves.
— Oh — ansiedade de Degenham reapareceu. — Isso eu
posso conseguir. Algo mais?
— Não.
— Então, estamos acertados. — Dagenham estava
satisfèíto. A espectral mancha de luz levantou-se da cadeira. —
Você estará fora em seis horas. Começaremos imediatamente os
acertos para seu amigo. É uma pena que tenhamos perdido esse
tempo, mas você é inimaginável, Foyle.
— Por que não mandaram um telepata para me examinar?
— Um telepata? Seja razoável, Foyle. Não há dez telepatas
completos em todos os Planetas Interiores. Seu tempo está
tomado nos próximos dez anos. Não conseguiriamos
interromper o trabalho deles nem por amor nem por dinheiro.
— Desculpe, Dagenham. Achei que você não conhecia seu
negócio.
— Você quase feriu meus sentimentos.
— Agora sei que está mentindo.
— Você está me lisonjeando.
TIGER! TIGER! 79

— Poderia ter contratado um telepata. Por uma fatia dos


vinte milhões poderia ter conseguido um facilmente.
— O governo nunca...
— Nem todos trabalham para o governo. Não. Você deve
estar com uma coisa grande demais nas mãos para deixar um
telepata se aproximar.
A mancha de luz pulou pela sala e segurou Foyle.
— Quanto é que você sabe, Foyle? O que está escondendo?
Para quem está trabalhando? — As mãos de Da- genham
tremeram. — Meu Deus! Que idiota tenho sido. Claro que você
é incomum. Você não é um homem do espaço comum. Eu lhe
perguntei: para quem está trabalhando?
Foyle afastou as mãos de Dagenham.
— Para ninguém. Só para mim.
— Ninguém, hein? Incluindo seu amigo no Gouffre Martel
que você está tão ansioso por livrar? Por Deus, quase me
enganou, Foyle. Diga ao capitão Y’ang-Yeovil que lhe dou
parabéns. Tem um pessoal melhor do que eu pensava.
— Nunca ouvi falar de nenhum Y’ang-Yeovil.
— Você e seu amigo vão apodrecer aqui. Não há acordo.
Vão se arrebentar aqui. Você vai ser mudado para a pior cela do
hospital. Vou meter você no fundo do Gouffre Martel. Eu...
Guarda, aqui! Guar...
Foyle agarrou a garganta de Dagenham, puxou-o para o
chão e bateu a cabeça dele nas lajes. Dagenham agitou-se uma
vez e ficou inerte. Foyle tirou os óculos do seu rosto e os
colocou. A visão chegou em luzes e sombras vermelhas, suaves
e rosas.
Estava numa pequena sala de recepção com uma mesa e
duas cadeiras. Foyle tirou o casaco de Dagenham e vestiu-o com
dois arrancos rápidos que rasgaram os ombros. O chapéu de aba
larga de Dagenham estava na mesa. Foyle enfiou-o na cabeça e
puxou a aba para o rosto.
Na parede oposta havia duas portas. Foyle abriu uma fresta
em uma delas. Ela levava ao corredor norte. Fechou- a,
atravessou a sala até a outra porta, que se abria para um labirinto
à prova de jauntação. Foyle passou pela porta e entrou no
labirinto. Sem um guia para orientá-lo, perdeu- se
imediatamente. Começou a correr pelos meandros e aca
80 ALFRED BESTER

bou voltando à sala de recepção. Dagenham estava lutando para


se levantar.
Foyle voltou de novo para o labirinto. Correu. Chegou a
uma porta fechada e a escancarou. Ela mostrou uma grande
oficina iluminada por claridade normal. Dois técnicos
trabalhando numa bancada de máquina olharam espantados.
Foyle pegou uma marreta, saltou sobre eles como um
homem das cavernas e os derrubou. Atrás dele, ouviu Da-
genham gritar a distância. Olhou em volta selvagemente,
receando a descoberta de que estava preso num beco sem saída.
A oficina tinha forma de L. Foyle dobrou o canto, chegou à
entrada de outro labirinto à prova de jauntação e ficou perdido
outra vez. O alarme do Gouffre Martel começou a soar. Foyle
bateu nas paredes do labirinto com a marreta, arrebentou a fina
superfície de plástico e se viu no corredor sul do quadrante
feminino, iluminado a infravermelho.
Duas guardas apareceram no corredor, correndo rápido.
Foyle girou a marreta, abatendo-as. Estava perto da ponta do
corredor. À sua frente, espalhava-se uma longa sucessão de
portas de celas, cada uma com um número vermelho brilhante.
Acima, o corredor era iluminado por brilhantes globos
vermelhos. Foyle ficou na ponta dos pés e golpeou o globo que
estava sobre ele. Acertou o soquete e destruiu o fio de corrente.
Todo o corredor ficou escuro... até para os óculos.
— Estamos empatados; todos no escuro agora. — Foyle
tomou fôlego e avançou pelo corredor, tateando a parede
enquanto corria, contando as portas das celas. Jis- bella dera-lhe
um retrato verbal acurado do Quadrante Sul. Estava contando
no rumo da Sul-900. Chocou-se com um vulto; outra guarda.
Foyle acertou-a uma vez com a marreta. Foyle perdeu a
contagem, correu, parou.
— Jiz! — gritou.
Ouviu sua voz. Encontrou outra guarda, deixou-a fora de
combate, correu, localizou a cela de Jisbella.
— Gully, pelo amor de Deus... — sua voz estava abafada.
— Afaste-se, garota. Afaste-se. — Golpeou três vezes
TIGER! TIGER! 81

a porta com a marreta e ela cedeu. Entrou e chocou-se contra


alguém.
— Jiz? — disse, sufocado. — Desculpe-me. Eu estava
passando. Pensei que seria bom entrar.
— Gully, em nome de...
— É. Um jeito dos diabos para nos encontrarmos, hein?
Venha. Para fora, garota. Fora! — Puxou-a para fora da cela. —
Não podemos tentar fugir pela administração. Não gostam de
mim lá. Qual é o caminho para a Sanitari- zação de vocês?
— Gully, você é louco.
— O quadrante todo está escuro. Destruí o cabo de força.
Temos metade de uma chance. Vamos, garota, vamos.
Ele deu um forte empurrão nela e ela o guiou pelas
passagens até as cabinas automáticas da Sanitarização feminina.
Enquanto mãos mecânicas tiravam seus uniformes, lavavam os
dois, borrifavam e desinfetavam, Foyle buscava o vidro da
janela da observação médica. Descobriu-o, rodopiou a marreta e
o arrebentou.
— Passe, Jiz.
Ele a enfiou janela adentro e a seguiu. Estavam nus,
escorregadios de sabão, cortados e sangrando. Foyle passou e
avançou pela escuridão, procurando a porta pela qual os
médicos entravam.
— Não consigo achar a porta, Jiz. A porta da clínica. Eu...
— Psiu!
— Mas...
— Fique quieto, Gully.
Uma mão ensaboada achou sua boca e a cobriu. Ela
agarrou o ombro dele tão fortemente que as unhas entraram na
pele. No tumulto das cavernas, soava o ruído de passos
próximos. Guardas estavam correndo cegamente pelas cabinas
da Sanitarização. As luzes infravermelhas ainda não haviam sido
consertadas.
— Não podem ver as janelas — cochichou Jisbella. —
Fique quieto.
Estenderam-se no chão. Os passos percorreram as cabinas
numa sucessão desconcertante. Daí, se afastaram.
82 ALFRED BESTER

— Tudo bem agora — cochichou Jisbella. — Mas a


qualquer instante eles terão lanternas. Vamos, Gully, para fora.
— Mas a porta da clínica, Jiz. Pensei...
— Não há porta. Eles usam escadas espirais e as sus-
pendem de volta. Pensaram nessa fuga também. Temos de
tentar o elevador da lavanderia. Deus sabe o que adiantará para
nós. Oh, Gully, seu louco. Seu louco rematado!
Subiram para a janela de observação e voltaram às ca-
binas. Na escuridão procuraram os elevadores em que os
uniformes sujos eram retirados e os limpos eram fornecidos. Na
escuridão, as mãos mecânicas novamente ensaboaram,
borrifaram e desinfetaram. Não acharam nada.
O uivo de uma sirene de repente ecoou pelas cavernas,
silenciando todos os outros sons. Daí veio uma quietude tão
sufocante quanto a escuridão.
— Estão usando o G-fone para nos localizar, Gully.
— O quê?
— Geofone. Pode localizar um sussurro através de meio
quilômetro de rocha sólida. Por isso é que deram o toque da
sirene, para conseguir silêncio.
— O elevador da lavanderia?
— Não consigo achar.
— Então venha.
— Para onde?
— Vamos correr.
— Para onde?
— Não sei, mas não vou ser apanhado parado. Vamos. O
exercício lhe fará bem.
Empurrou Jisbella outra vez para a frente dele e correram,
arquejando e tropeçando, pela escuridão, rumo aos confins mais
profundos do Quadrante Sul. Jisbella caiu duas vezes,
chocando-se contra esquinas das passagens. Foyle tomou a
frente e correu, segurando a marreta de nove quilos, o cabo
estendido diante dele como uma antena. Daí bateram numa
parede lisa e perceberam que haviam chegado ao fim do
corredor. Estavam sem saída, apanhados.
— E agora?
— Não sei. Parece o beco sem saída das minhas idéias,
também. Não podemos voltar, claro. Acertei Dagenham na
TIGER! TIGER! 83

administração. Homem horroroso. Parece o rótulo de uma


garrafa de veneno. Tem alguma idéia, garota?
— Oh, Gully... Gully... — soluçou Jisbella.
— Estava contando com você para ter idéias. “Chega de
bombas”, você disse. Gostaria de ter uma agora. Podería...
espere um minuto. — Ele tocou a parede úmida em que estavam
encostados. Sentiu as depressões de tabuleiro de xadrez das
junções de argamassa. — Últimas notícias de G. Foyle. Isto não
é uma parede natural de caverna. É artificial. Tijolo e pedra.
Veja.
Jisbella tocou na parede.
—Eaí?
— Quer dizer que a passagem não acaba aqui. Continua.
Eles a fecharam. Afaste-se.
Empurrou Jisbella para o corredor, esfregou a mão no chão
para enxugar as mãos ensaboadas e começou a bater a marreta
contra a parede. Golpeava num ritmo constante, grunhindo e
arquejando. A marreta de aço golpeava a parede com o ruído
surdo de pedras batendo sob água.
— Estão vindo — disse Jiz. — Estou ouvindo.
Os golpes surdos ganharam um ruído de esmagamento e
derrubada. Houve um silvo, daí um forte barulho de argamassa
em pedaços caindo. Foyle redobrou os esforços. De repente
houve um estrondo e um sopro de ar gelado bateu em seus
rostos.
— Abriu.
Foyle atacou as beiradas do buraco aberto na parede com
ferocidade. Tijolos, pedras e argamassa velha voaram. Foyle
parou e chamou Jisbella.
— Experimente passar.
Deixou cair a marreta, pegou a garota e a levantou até a
abertura ao nível de seu peito. Ela gritou de dor ao tentar se
enfiar pelas beiradas aguçadas. Foyle empurrou-a, sem
descanso, até ela conseguir passar os ombros e os quadris.
Deixou que puxasse as pernas e ouviu-a cair do outro lado.
Foyle alçou-se até a abertura e se enfiou pelo buraco
dentado na parede. Sentiu as mãos de Jisbella tentando
amortecer sua queda quando ele desabou numa massa de tijolo e
argamassa em pedaços. Estavam nas trevas geladas das cavernas
desocupadas do Gouffre Martel... quilômetros de grutas e
cavernas inexploradas.
84 ALFRED BESTER

— Meu Deus, vamos conseguir — resmungou Foyle.


— Não sei se há um jeito de sair, Gully — disse Jis- bella,
tremendo de frio. — Talvez isto seja apenas um beco sem saída,
com uma parede junto ao hospital.
— Tem de haver uma saída.
— Não sei se a descobriremos.
— Temos de achá-la. Vamos, garota.
Foram em frente, tropeçando no escuro. Foyle tirou o
inútil par de óculos dos seus olhos. Bateram em rochas, cantos,
tetos baixos. Caíram em ladeiras e degraus desiguais. Subiram
numa encosta que parecia uma lâmina até um platô e seus pés
de repente pisaram o vazio. Os dois caíram pesadamente num
chão vítreo. Foyle tocou-o com as mãos e a língua.
— Gelo — resmungou — Bom sinal. Estamos numa
caverna de gelo, Jiz. Uma geleira subterrânea.
Levantaram-se, trêmulos, esticando as pernas, e foram em
frente pelo gelo que se formara por milênios no abismo do
Gouffre Martel. Subiram até uma floresta de arbustos de pedra
que eram estalagmites e estalactites irrompendo do chão
recortado e caindo dos tetos. As vibrações de cada passo
abalavam as enormes estalactites e de vez em quando uma
agulha de pedra gigantesca caía lá de cima sobre eles. No limiar
da floresta, Foyle parou, esticou a mão e puxou. Houve um
claro tinir metálico. Pegou a mão de Jisbella e enfiou nela o
comprido cone partido de uma estalagmite.
— Bengala — resmungou. — Use-a como um cego.
Quebrou outra e foram batendo, tateando, tropeçando
pelas trevas. O único som era o galope do pânico... a respiração
arquejante e os corações disparados, o bater de suas bengalas de
pedra, a multidão de águas gotejando, o fluir remoto do rio
subterrâneo sob o Gouffre Martel.
— Não por aí, garota — Foyle falou sobre o ombro. —
Mais à esquerda.
— Você tem a menor idéia para onde estamos indo,
Gully?
— Para baixo, Jiz. Seguindo qualquer encosta que leve
para baixo.
— Tem alguma idéia?
— Sim. Surpresa, surpresa! Cérebro no lugar de bombas.
TIGER! TIGER! 85

— Cérebro no lugar de... — Jisbella deu uma risada


histérica. — Você explodiu no Quadrante Sul com... com uma
marreta e essa... essa é sua idéia de cérebro em vez de bo...
bom... — Ela não agüentou mais e gargalhou além de todo
controle, até Foyle agarrá-la e sacudi-la.
— Cale a boca, Jiz. Se estiverem nos seguindo com o G-
fone poderão ouvi-la lá em Marte.
— Des... desculpe, Gully. Desculpe... — Ela respirou
fundo. — Por que para baixo?
— O rio, aquele que ouvíamos o tempo todo. Deve ser
perto. Provavelmente vem do derretimento da geleira que
passamos.
— O rio?
— Único jeito seguro de fugir. Deve sair da montanha em
alguma parte. Vamos nadar.
— Gully, você é insano!
— Qual é o problema? Não sabe nadar?
— Sei. mas...
— Então temos de tentar. Vamos, Jiz. Vamos.
O ruído do rio ficou cada vez mais alto à medida que as
forças deles começaram a falhar. Jisbella resolveu parar, enfim,
arquejante.
— Gully, tenho de descansar.
— Está frio demais. Mantenha-se em movimento.
— Não posso.
— Mantenha-se em movimento. — Pegou-lhe o braço.
— Tire as mãos de mim — gritou furiosamente. Num
instante, ela era fúria pura. Ele a soltou, espantado.
— Que houve com você? Cabeça fria, Jiz. Estou de-
pendendo de você.
— Para quê? Eu lhe disse que tínhamos de planejar...
trabalhar numa fuga... e agora você nos meteu nisso.
— Eu estava num impasse. Dagenham ia mudar minha cela.
Não havería mais Linha do Cochicho. Tive de fazer isso, Jiz... e
estamos fora, não é?
— Fora de onde? Perdidos no Gouffre Martel. Procurando
um maldito rio para nos afogarmos. Você é um idiota, Gully, e
eu sou uma idiota por deixar que me metesse nisso. Maldito seja!
Maldito! Você trouxe tudo para seu nível imbecil e me trouxe
também para baixo. Correr. Lu
86 ALFRED BESTER

tar. Socar. Ê tudo o que você sabe. Bater. Quebrar. Arrasar.


Destruir... Gully!
Jisbella gritou. Houve um ruído de pedras soltas na es-
curidão e o grito dela foi se amortecendo até um mergulho
pesado. Foyle ouviu o impacto do corpo dela na água. Pulou
para a frente, gritando: Jiz! — e balançou na beira de um
precipício.
Caiu e bateu na água de frente com um impacto terrível.. O
rio gelado envolveu-o e ele não sabia onde estava a superfície.
Lutou, sufocou, sentiu a rápida corrente puxá-lo contra o gélido
limo das rochas e daí foi levado para a superfície, borbulhando.
Tossiu e gritou. Ouviu a resposta de Jisbella, a voz fraca e
abafada pela torrente que rugia. Nadou na direção da corrente,
tentando superá-la.
Gritou e ouviu a voz dela em resposta, cada vez mais débil.
O rugido cresceu e, abruptamente, foi lançado para baixo na
cortina uivante de uma cachoeira. Mergulhou até o fundo de um
lago profundo e lutou novamente para atingir a superfície. A
corrente em redemoinho juntou-o a um corpo frio agarrado a
uma lisa parede de pedra.
— Jiz!
— Gully! Graças a Deus!
Abraçaram-se por um instante, enquanto a água os
fustigava.
— Gully... — tossiu Jisbella. — Ele passa por baixo daqui.
— O rio?
— Sim.
Ele passou por ela e, apertado contra a parede, sentiu a
boca de um túnel embaixo da água. A corrente os puxava para
lá.
— Um instante — disse Foyle. Explorou para a esquerda e
para a direita. As paredes do lago eram lisas, sem ter lugar para
se agarrar.
— Não conseguiremos subir. Temos de passar por baixo.
— Não há ar, Gully, nenhum espaço entre a água e a
parede.
— Não pode ser para sempre. Seguraremos a respiração.

— Pode ser mais longe do que nosso fôlego agüenta.


TIGER! TIGER! 87

— Temos de arriscar.
— Não consigo.
— Tem de fazer. Não há outro jeito. Encha os pulmões.
Segure-se em mim.
Ficaram enlaçados na água, segurando-se mutuamente,
respirando fundo, enchendo os pulmões. Foyle empurrou
Jisbella para o túnel subaquático. — Você vai primeiro. Estarei
bem atrás... Para ajudá-la se estiver em dificuldades.
— Dificuldades! — Jisbella gritou, com voz trêmula. Ela
mergulhou e deixou a corrente sugá-la para a boca do túnel.
Foyle seguiu-a. As águas poderosas puxaram os dois para baixo,
para baixo, para baixo, jogando-os de um lado para outro de um
túnel que parecia cavado em vidro. Foyle nadou bem perto, atrás
de Jisbella, sentindo suas pernas batendo, tocando em sua cabeça
e ombros.
Foram seguindo pelo túnel até seus pulmões quase ar-
rebentarem e os olhos saírem das órbitas. Daí houve um novo
rugido e apareceu a superfície. Puderam respirar. Os lados
vítreos do túnel foram substituídos por rochas dentadas. Foyle
pegou uma perna de Jisbella e agarrou uma saliência de pedra na
margem do rio.
— Vamos subir aqui — gritou. — Vamos subir. Está
ouvindo esse rugido aí na frente? São cataratas. Cascatas
enormes. Que nos farão em pedaços. Saia, Jiz.
Ela estava fraca demais para sair da água. Ele puxou seu
corpo para as rochas e caiu. Estavam sobre pedras molhadas,
cansados demais para falar. Afinal, Foyle levantou- se
cambaleando.
— Temos de continuar — disse. — Seguir o rio. Pronta?
Ela não podia responder; podia protestar. Ele a ergueu e
foram tropeçando nas trevas, tentando seguir a margem da
torrente. Os penhascos por que passavam eram gigantescos,
eretos como dólmens, amontoados, empilhados, espalhados
como num labirinto. Perderam-se entre eles e acabaram
perdendo o rio. Não podiam ir a parte alguma.
— Perdidos... — disse Foyle, zangado. — Estamos
perdidos de novo. Realmente perdidos desta vez. O que vamos
fazer?
88 ALFRED BESTER

Jisbella começou a chorar. Ela soltava sons impotentes mas


furiosos. Foyle parou, sentou-se e a puxou para fazer o mesmo.
— Talvez você tenha razão, garota — disse tristemente. —
Talvez eu seja um maldito maluco. Meti a gente nessa enrascada
sem jauntar e estamos estrepados.
Ela não respondeu.
— Que os miolos vão para o diabo! A maldita educação
que você me deu. — Ele hesitou. — Acha que deveriamos
voltar para o hospital?
— Nunca conseguiriamos.
— Acho que não. Estava só fazendo a cabeça funcionar.
Deveriamos começar uma barulheira? Fazer barulho para que
nos localizassem pelo G-fone?
— Nunca nos ouviríam... Nunca nos achariam a tempo.
— Podemos fazer bastante barulho. Você pode me surrar
um pouco. Seria um prazer para nós dois.
— Cale-se.
— Droga! Que inferno! — Esticou-se, encostando a cabeça
num tufo de grama macia. — Pelo menos a bordo da Nomad
tive uma chance. Havia comida e eu podia ver para onde estava
tentando ir. Eu podia... — Interrompeu- se e sentou-se num
salto. — Jiz!
— Não fale tanto.
Tocou o solo embaixo dele e puxou punhados de terra e
tufos de grama. Levou-os até a cara dela.
— Cheire isso — riu. — Prove. É grama, Jiz. Terra e
grama. Estamos fora do Grouffre Martel.
— O quê?
— Ê noite. Negra como breu. O céu deve estar enco-: berto.
Saímos das cavernas e nem percebemos. Estamos livres, Jiz!
Conseguimos.
Levantaram-se, olhando para todos os lados, escutando,
farejando. A noite era impenetrável, mas ouviram o suspirar
suave dos ventos noturnos e o cheiro doce de coisas verdes
crescendo chegou às suas narinas. Longe, bem longe, um
cachorro latiu.
— Meu Deus, Gully — Jisbella cochichou, sem acreditar.
— Você tem razão. Estamos fora do Gouffre Martel. Só
precisamos esperar pela manhã.
TIGER! TIGER! 89

Ela riu. Estendeu os braços para ele e o beijou; ele abraçou-


a em troca. Falaram excitadamente. Deitaram de novo na grama,
exaustos, mas incapazes de descansar, ansiosos, impacientes,
com toda a vida diante deles.
— Olá, Gully, querido Gully. Olá, Gully, após todo esse
tempo.
— Olá, Jiz.
— Eu lhe disse que nos encontraríamos algum dia... algum
dia próximo. Eu lhe disse, querido. E o dia é hoje.
— A noite.
— A noite, claro. Mas nada de ficar murmurando na noite
pela Linha do Cochicho. Não há mais noite para nós, Gully
querido.
De repente eles lembraram que estavam nus, deitados um
junto do outro, não mais separados. Jisbella ficou quieta, mas
não se mexeu. Ele a apertou, quase com ódio, e a envolveu com
um desejo que não era menor que o dela.
Quando chegou a manhã, ele viu que ela era linda; alta e
esbelta, com cabelo ruivo de tons cambiantes e uma boca
generosa.
Mas quando a manhã chegou, ela viu o rosto dele.
6
Uarley Baker, médico, tinha um pequeno consultório de
clínica geral em Washington — Oregon, que era legítimo e mal
pagava o diesel que ele consumia em cada fim de semana,
participando dos ralis de tratores da época em que estavam em
moda no Saara. Sua renda verdadeira vinha da sua Fábrica de
Fenômenos em Trenton, para onde Baker jauntava a cada
segunda, quarta e sexta à noite. Ali, por enormes horários e sem
fazer perguntas, Baker criava monstruosidades para o negócio
do entretenimento e retocava pele, músculo e osso para o
submundo.
Parecendo uma parteira masculina, Baker estava sentado
na arejada varanda de sua mansão de Spokane, ouvindo Jiz
McQueen terminar a‘história de sua fuga.
— Assim que chegamos a terreno aberto fora do Gouf- fre
Martel, foi fácil. Achamos uma cabana de caça, entramos e
arranjamos roupas. Havia armas lá, também... lindas coisas
antigas de aço para matar com explosivos. Pegamos elas e as
vendemos à gente do local. Daí, compramos passagens para o
mais próximo local de jauntação que memorizamos.
— Qual?
— Biarritz.
— Viajaram a noite, hein?
— Naturalmente.
— Fizeram alguma coisa com o rosto de Foyle?
TIGER! TIGER! 91

— Tentamos maquiagem, mas não funcionou. A maldita


tatuagem aparecia através dela. Daí comprei uma falsa pele
escura e a apliquei com spray.
— E deu certo?
— Não — disse Jiz, furiosa. — Ê preciso ficar com o rosto
imóvel ou a pele falsa racha e descasca. Foyle não conseguiu se
controlar. Nunca consegue. Foi um inferno.
— Onde está agora?
— Sam Quatt está cuidando dele.
— Pensei que Sam estivesse aposentado dos negócios.
— Ele está, mas me deve um favor. Está tomando conta do
Foyle. Estão circulando em jaunte para ficar à frente dos tiras.
— Interessante. Nunca vi um caso de tatuagem em toda
minha vida. Pensei que fosse uma arte morta. Gostaria de
acrescentá-lo à minha coleção. Sabe que coleciono coisas
estranhas, Jiz?
— Todo mundo sabe daquele seu zoológico em Tren- ton,
Baker. É horroroso.
— Arranjei um genuíno quisto fraternal no mês passado —
começou Baker, entusiasmado.
— Não quero saber disso — cortou Jiz. — E não quero
Foyle no seu zoológico. Você pode tirar aquele horror da cara
dele? Limpá-la? Ele conta que ficaram sem ação no Hospital
Geral.
— Eles não têm a minha experiência, querida. Hum. Parece
que li algo, certa vez... em algum lugar... Ora, onde eu... Espere
um instante. — Baker levantou-se e desapareceu com um débil
“pop”. Jisbella ficou zanzando pela varanda, furiosa, até ele
reaparecer vinte minutos depois com um livro arruinado nas
mãos e uma expressão de triunfo no rosto.
— Achei. Eu o vi na biblioteca de Caltech há três anos.
Pode admirar minha memória.
— Vá para o inferno com sua memória. E o rosto dele?
— Pode-se fazer — Baker virou as páginas frágeis e
meditou. — Sim. Pode ser feito. Ácido dissulfônico-indigo- tina.
Talvez tenha de sintetizar o ácido, mas... — Baker fechou o livro
e sacudiu enfaticamente a cabeça. — Posso
92 ALFRED BESTER

fazer isso. Só que parece uma pena estragar esse rosto, se é tão
único quanto você descreve.
— Quer deixar seu hobby de lado? — exclamou Jis- bella,
furiosa. — Estamos quentes, entendeu? Os primeiros a escapar
do Gouffre Martel. Os tiras não vão descansar enquanto não nos
levarem de volta. Ê prioridade total para eles.
— Mas...
— Quanto tempo você acha que poderemos ficar fora do
Gouffre Martel com Foyle andando por aí com aquela cara
tatuada?
— Por que você está tão brava?
— Eu não estou brava. Estou explicando.
— Ele ficaria contente no zoológico — disse Baker, em
tom persuasivo. — E estaria seguro lá. Eu o colocaria no quarto
junto da garota ciclope...
— Chega de zoológico. Ê definitivo.
— Tudo bem, querida. Mas por que você está preocupada
com ó fato de Foyle ser recapturado? Não tem nada a ver com
você.
— Por que você quer saber as minhas razões? Estou lhe
pedindo para fazer um serviço. E estou pagando.
— Será caro, querida, e gosto de você. Estou tentando
economizar seu dinheiro.
— Não, não está.
— Então estou curioso.
— Então digamos que estou grata. Ele me ajudou e agora
eu o estou ajudando.
Baker sorriu cinicamente.
— Então vamos ajudá-lo dando-lhe um rosto novo em
folha.
— Não.
— Pensei que fosse isso. Você quer o rosto dele limpo
porque está interessada no rosto dele.
— Maldito seja, Baker, você vai fazer o serviço ou não?
— Custará cinco mil.
— Explique isso.
— Mil para sintetizar o ácido. Três mil para a cirurgia. E
mil para...
— Sua curiosidade?
TIGER! TIGER! 93

— Não, querida — ele sorriu de novo. — Mil para o


anestesista.
— Por que anestesia?
Baker reabriu o texto antigo.
— Parece ser uma operação dolorosa. Sabe como se faz
uma tatuagem? Pega-se uma agulha, mergulha-se na tinta e
enfia-se na pele. Para tirar essa tinta fora, terei de trabalhar no
rosto dele com uma agulha, poro a poro, e limpá-lo com
dissulfônico-indigotina. Vai doer.
Os olhos de Jisbella cintilaram.
— Você pode fazer sem dopá-lo?
— Posso, querida, mas Foyle...
— Pro inferno com Foyle. Vou pagar quatro mil. Sem
dopar, Baker. Deixe Foyle sofrer.
— Jisbella! você não sabe o que está pedindo!
— Eu sei. Deixe-o sofrer. — Riu tão furiosamente que
Baker ficou espantado. — Deixe o rosto dele fazê-lo sofrer.
***

A Fábrica de Fenômenos de Baker ocupava um edifício


industrial de cinco andares, atrás dos silos de foguetes
deTrenton, que fora uma fábrica de vagões de metrô antes que a
jauntação acabasse com a necessidade do metrô urbano. As
janelas traseiras davam para as bocas circulares dos silos que
lançavam seus raios antigravidade para cima; os pacientes de
Baker podiam se divertir com a visão dos foguetes sendo levados
para cima e para baixo pelos raios, com as vigias iluminadas, os
sinais de orientação piscando, as fuselagens cobertas de fogo de
Santelmo à medida que a atmosfera inflamava as cargas
eletrostáticas conseguidas no espaço.
O andar subterrâneo da fábrica continha o zoológico de
curiosidades anatômicas de Baker, com fenômenos naturais e
monstros comprados, alugados, raptados, seqües- trados. Baker,
como o resto de seu mundo, era apaixonada- mente dedicado a
essas criaturas infelizes e passava longas horas com elas,
sorvendo o espetáculo de suas distorções da mesma forma que
outros homens se saturavam com a beleza da arte. Os andares
intermediários do prédio continham quartos para pacientes em
recuperação, laboratórios
94 ALFRED BESTER

cômodos para o pessoal e cozinhas. O andar superior era para as


salas de operação.
Numa delas, uma sala pequena usada para experiências de
retina, Baker estava trabalhando no rosto de Foyle. Sob uma
implacável bateria de lâmpadas, ele se inclinava sobre a mesa de
operação, trabalhando meticulosamente com um martelinho de
aço e uma agulha de platina. Baker estava seguindo o padrão da
velha tatuagem no rosto de Foyle, buscando cada cicatriz
minúscula na pele, levando a agulha até ela. A cabeça de Foyle
estava imobilizada, mas o corpo estava livre. Seus músculos
enrijeciam a cada toque do martelinho, mas ele não mexia o
corpo. Agarrava os lados da mesa de operação.
— Controle — disse, entre dentes. — Você queria que eu
aprendesse a me controlar, Jiz. Estou treinando. — Ele
estremeceu.
— Não mexa — ordenou Baker.
— Estou fazendo graça.
— Está indo muito bem, filho — disse Sam Quatt, com
cara aflita. Deu uma olhada para o rosto furioso de Jisbella. —
Que acha, Jiz?
— Ele está aprendendo.
Baker continuou a enfiar e golpear a agulha.
— Escute,Sam — Foyle murmurou, quase indistinta-
mente. — Jiz me disse que você tem uma nave particular. O
crime compensa, hum?
— Ê. O crime compensa. Tenho uma nave para quatro
pessoas, com dois reatores. Da espécie que chamam de Fim de
Semana em Saturno.
— Por que Fim de Semana em Saturno?
— Por que um fim de semana em Saturno dura noventa
dias. A nave pode transportar comida e combustível para três
meses.
— Exatamente o que preciso — murmurou Foyle. Ele
estremeceu e se controlou. — Sam, quero alugar sua nave.
— Para quê?
— Algo quente.
— Legal?
— Não.
— Então nada feito, filho. Perdi a coragem. Jauntar
TIGER! TIGER! 95

com você, um passo à frente dos tiras, mostrou-me isso.


Aposentei-me para valer. Tudo que quero é paz.
— Eu lhe pago cinqüenta mil. Não quer cinqüenta mil?
Podia passar os domingos contando isso.
A agulha se enfiava implacavelmente. O corpo de Foyle
reagia a cada impacto.
— Já tenho cinqüenta mil. Tenho dez vezes isso em
dinheiro num banco em Viena. — Quatt enfiou a mão no bolso e
tirou um anel com brilhantes chaves radioativas. — Aqui está a
chave do banco. Esta é da minha casa em Joburg. Vinte
cômodos, vinte acres. Esta é a chave do Fim de Semana de
Saturno, que está em Montauk. Você não está me tentando,
filho. Eu larguei tudo quando estava por cima. Vou jauntar para
Joburg e viver feliz pelo resto da minha vida.
— Deixe-me ficar com o Fim de Semana. Você pode ficar
seguro em Joburg e esperar a colheita.
— Esperar para quando?
— Quando eu voltar.
— Você quer minha nave em confiança, com uma
promessa de pagamento?
— Uma garantia.
Quatt bufou.
— Que garantia?
— É um trabalho de resgate nos asteróides. Uma nave
chamada Nomad.
— O que há na Nomad? O que faz o resgate valer a pena?
— Não sei.
— Está mentindo.
— Não sei — Foyle resmungou teimosamente. — Mas tem
de haver algo valioso. Pergunte a Jiz.
— Escute — disse Quatt. — Vou lhe ensinar uma coisa.
Confiamos uns nos outros, certo? Não tapeamos nossa gente.
Não contamos as coisas pela metade. Sei o que tem na cabeça.
Você arranjou alguma coisa suculenta, mas não quer repartir
com ninguém. Por isso está pedindo favores...
Foyle enrijeceu sob a agulha, mas, ainda agarrado à idéia
de sua posse, foi forçado a repetir:
— Não sei, Sam. Pergunte a Jiz.
96 ALFRED BESTER

— Se você tem um acerto honesto, faça uma proposta


honesta — disse Quatt, zangado. — Não venha rondando como
um maldito tigre tatuado imaginando como saltar sobre a presa.
Somos os únicos amigos que você tem. Não tente tapear...
Quatt foi interrompido por um grito arrancado dos lábios
de Foyle.
— Não se mexa — disse Baker, com uma voz indiferente.
— Quando você mexe a cara, não consigo controlar a agulha. —
Ele olhou dura e longamente para Jisbella. Os lábios dela
tremeram. De repente, ela abriu a bolsa e tirou duas notas de 500
créditos. Jogou-as ao lado do frasco de ácido.
— Vamos esperar lá fora — disse.
Ela desmaiou no corredor. Quatt arrastou-a para uma
cadeira e mandou uma enfermeira reanimá-la com amônia
aromática. Ela começou a chorar com tanta violência que Quatt
ficou com medo. Mandou a enfermeira embora e ficou andando
de um lado para o outro até o choro acabar.
— Que diabo está havendo? — perguntou. Para que é esse
dinheiro?
— É dinheiro de sangue.
— Para quê?
— Não quero falar disso.
— Está bem?
— Não.
— Há qualquer coisa que eu possa fazer?
— Não.
Houve uma longa pausa. Daí Jisbella perguntou num tom
preocupado:
— Você vai arranjar a nave com Gully?
— Eu? Não. Parece uma aposta de mil a um.
— Deve haver algo valioso na Nomad. Senão Dagen- ham
não teria perseguido Gully.
— Ainda não estou interessado. E você?
— Eu? Também não. Não quero nenhuma parte de Gully
Foyle outra vez.
Depois de outra pausa, Quatt perguntou:
— Posso ir para casa agora?
— Foi duro para você, não é, Sam?
TIGER! TIGER! 97

— Acho que morri mil vezes acompanhando esse tigre


pelo circuito de jauntação.
— Desculpe, Sam.
— Eu tinha de fazer isso para você depois do que lhe fiz
quando foi flagrada em Memphis.
— Escapar de lá só foi natural, Sam.
— Sempre fazemos o que é natural, só que às vezes não
deveriamos fazer.
— Sei, Sam, eu sei.
— E a gente passa o resto da vida tentando justificar. Acho
que tenho sorte, Jiz. Pude compensar isso hoje à noite. Posso ir
para casa?
— Para Joburg e a boa vida?
— Hum-hum.
— Não me deixe sozinha ainda, Sam. Estou envergonhada
comigo.
— Por quê?
— Crueldade com animais estúpidos.
— O que quer dizer isso?
— Não importa. Fique por aí um pouco mais. Conte- me
como é a vida feliz. O que há de tão feliz nela?
— Bem — disse Quatt, pensativamente. — Ê ter tudo que
você quis quando era criança. Se você, aos cinqüenta, pode ter
tudo que quis aos quinze, está feliz. Agora, quando eu tinha
quinze anos... — E Quatt continuou, descrevendo os símbolos,
ambições e frustrações de sua meninice que agora ele estava
satisfazendo, até Baker sair da sala de operações.
— Acabou? — Jisbella perguntou ansiosamente.
— Acabei. Depois de tranqüilizá-lo, pude trabalhar mais
depressa. Estão colocando as ataduras no rosto dele. Sairá em
alguns minutos.
— Está fraco?
— Naturalmente.
— Quanto tempo ficarão as ataduras?
— Seis ou sete dias.
— O rosto dele ficará limpo?
— Pensei que não estivesse interessada no rosto dele,
querida. Deve ficar limpo. Acho que não deixei nenhum ponto
de pigmento. Pode admirar minha capacidade, Jis-
98 ALFRED BESTER

bella... e minha sagacidade. Vou financiar a viagem de resgate


de Foyle.
— O quê? — Quatt riu. — Você vai entrar numa aposta de
mil a um, Baker? Pensei que fosse esperto.
— Eu sou. Ele falou sob efeito da anestesia. Há vinte
milhões de platina a bordo da Nomad.
— Vinte milhões! — O rosto de Sam Quatt ficou sombrio
e ele se virou para Jisbella. Mas ela também estava furiosa.
— Não olhe para mim, Sam. Não sabia. Ele me contou
pela metade também. Jurou que não sabia porque Da- genham
estava perseguindo-o.
— Foi Dagenham que lhe contou — disse Baker. — Ele
deixou escapar isso também.
— Vou matá-lo — disse Jisbella. — Vou estripá-lo com
minhas próprias mãos e não acharão nada dentro da carcaça
dele, a não ser podridão. Vai ser uma curiosidade para seu
zoológico, Baker; meu Deus, como gostaria de tê-lo dado a
você!
A porta da sala de operação abriu-se e dois enfermeiros
conduziram a maca com rodas em que Foyle jazia, tremendo de
leve. Toda sua cabeça estava num capacete de ataduras.
— Está consciente? — Quatt perguntou a Baker.
— Deixem comigo — Jisbella explodiu. — Vou falar com
o filho da... Foyle!
Foyle respondeu debilmente pela máscara de ataduras.
Quando Jisbella encheu os pulmões para dizer tudo o que
queria, uma parede do hospital desapareceu e houve o estrondo
de um trovão que os derrubou. Todo o edifício tremia com
repetidas explosões, e através dos buracos nas paredes homens
uniformizados começaram a jauntar para dentro, como recrutas
enfiando-se pelas trincheiras de um campo de batalha.
— Batida! — gritou Baker. — Batida!
— Meu Deus! — disse Quatt, abalado.
Os homens fardados estavam enxameando pelo prédio,
gritando: “Foyle! Foyle! Foyle! Foyle!’’. Baker desapareceu
com um “pop’’. Os enfermeiros também jauntaram,
abandonando a maca em que Foyle mexia os braços e as pernas
debilmente, fazendo sons surdos.
TIGER! TIGER! 99

— Ê uma maldita batida! — Quatt sacudiu Jisbella. —


Vamos, garota! Vamos!
— Não podemos deixar Foyle! — Jisbella gritou.
— Acorde, garota! Vamos!
— Não podemos fugir sem ele.
Jisbella pegou a maca e a dirigiu pelo corredor. Quatt
correu ao seu lado. O barulho no hospital ficou mais alto:
“Foyle! Foyle! Foyle!’’.
— Deixe-o, pelo amor de Deus! — pediu Quatt. — Deixe
que o peguem.
— Não.
— Vai dar lobotomia para nós, garota, se nos pegarem.
Lobotomia, Jiz!
— Não podemos abandoná-lo.
Dobraram uma esquina e deram com uma multidão
ululante de pacientes em recuperação, homens-pássaros com
asas batendo, sereias arrastando-se pelo chão como focas,
hermafroditas, gigantes, pigmeus, gêmeos de duas cabeças,
centauros e uma esfinge que choramingava. Lançaram-se
aterrorizados na direção deles.
— Tire-o da maca — gritou Jisbella.
Quatt puxou Foyle para fora da maca. Foyle ficou sobre os
próprios pés e vacilou. Jisbella pegou-lhe o braço e os dois
arrastaram-no para uma porta que dava para uma enfermaria
cheia de fenômenos temporais de Baker... pacientes com sentido
de tempo acelerado, dardejando pela sala com a rapidez de um
raio como pássaros barulhentos, soltando gritos agudos como os
de morcegos.
— Jaunte-opara fora, Sam.
— Depois do jeito que ele tentou nos trair e tapear?
— Não podemos abandoná-lo, Sam. Você deveria saber
isso agora. — Jaunte-o para fora. Até o lugar de Caister.
Jisbella ajudou Quatt a colocar Foyle nos ombros. Os
fenômenos pareciam encher a enfermaria com gritos lanci-
nantes. As portas se escancararam. Uma dúzia de disparos de
armas pneumáticas silvou através da enfermaria, imobilizando
os pacientes no seu vaivém. Quatt foi lançado contra uma
parede, deixando Foyle cair. Uma mancha preta e azulada
apareceu na sua têmpora.
— Dê o fora daqui — rugiu Quatt. — Me pegaram.
— Sam!
100 ALFRED BESTER

— Me pegaram. Não posso jauntar. Vá, garota!


Tentando superar a concussão que o impedia de jauntar,
Quatt levantou-se e investiu contra os homens fardados que
enxameavam na enfermaria. Jisbella pegou um braço de Foyle e
puxou-o para a parte de trás da enfermaria, até uma despensa,
depois uma clínica, uma lavanderia e uma escada de antigos
degraus que cediam e levantavam uma poeirada de cupins.
Chegaram a um porão onde era guardada a comida. O
zoológico de Baker escapara de suas jaulas no caos e os
fenômenos estavam saqueando o lugar como abelhas festejando
com o mel de uma colmeia invadida. Uma garota ciclope estava
enchendo a boca com punhados de manteiga tirada de um
barrilete. Seu olho único sobre a ponte do nariz fixou-os.
Jisbella levou Foyle pelo porão, descobriu uma porta
empenada de madeira e abriu-a com um chute. Caíram por um
lance de degraus arruinados e chegaram ao que fora um depósito
de carvão. Os estrondos e rugidos lá em cima soavam cada vez
mais profundos. A entrada de uma calha, num lado do depósito,
estava fechada por uma porta metálica segura por grampos de
ferro. Jisbella colocou as mãos de Foyle sobre os grampos.
Juntos, abriram a porta e saíram do portão pela calha de carvão.
Estavam fora da Fábrica dos Fenômenos, encostados na
parede dos fundos. Diante deles estavam os silos de foguetes de
Trenton, e, quando tentavam recuperar o fôlego, Jiz viu um
cargueiro descendo por um feixe anti-grav até um silo. As vigias
brilhavam e os sinais luminosos piscavam como um lúgubre
anúncio de néon, iluminando a parede dos fundos do hospital.
Uma figura saltou do telhado do hospital. Era Sam Quatt,
tentando uma fuga desesperada. Ele se lançou no espaço, com as
pernas e os braços mexendo-se, tentando alcançar o raio anti-
grav do poço mais próximo, que podería pegá-lo no meio do voo
e amortecer sua queda. Sua pontaria foi perfeita. A vinte e um
metros acima do chão, ele caiu exatamente no alcance do feixe.
Mas não estava funcionando. Ele caiu e se arrebentou na beirada
do silo.
Jisbella chorou. Mantendo automaticamente sua mão no
braço de Foyle, ela correu pelo concreto rachado até o
TIGER! TIGER! 101

corpo de Sam Quatt. Ali, largou de Foyle e tocou ternamente a


cabeça de Quatt. Seus dedos se mancharam de sangue. Foyle
puxou as ataduras sobre seus olhos, fazendo buracos para a vista
no tecido. Resmungou consigo mesmo, ouvindo Jisbella chorar
e ouvindo os gritos atrás dele, na fábrica de Baker. Suas mãos
tocaram o corpo de Quatt, daí ele se levantou e tentou erguer
Jisbella.
— Precisamos ir — guinchou. — Precisamos ir. Eles nos
viram.
Jisbella não se mexia. Foyle reuniu todas as suas forças e a
puxou.
— Times Square — sussurrou. — Jaunte, Jiz! Times
Square. Jaunte!
Figuras uniformizadas apareceram em volta deles. Foyle
sacudiu o braço de Jisbella e jauntou para Times Square, onde
massas de jauntadores no local gigantesco ficaram olhando
espantados para o enorme homem com um capacete branco de
bandagens na cabeça. O local era do tamanho de um campo de
futebol. Foyle olhou em volta, através das ataduras. Não havia
sinal de Jisbella, mas ela poderia estar em outra parte. Levantou
a voz, num grito.
— Montauk, Jiz. Montauk! O local da Extravagância!
Foyle jauntou com um último ímpeto de energia e uma
oração. Um vento noroeste gelado soprava da Black Island e
varria agudos cristais de gelo pelo local no lugar de uma ruína
medieval conhecida como Extravagância de Fisher. Havia outra
figura no local. Foyle cambaleou para lá através do vento e da
neve. Era Jisbella, parecendo gelada e perdida.
— Graças a Deus — sussurrou Foyle. — Graças a Deus.
Onde Sam guarda sua nave? — Sacudiu o cotovelo de Jisbella.
— Onde Sam guarda sua nave?
— Sam morreu.
— Onde ele guarda o Fim de Semana em Saturno?
— Ele está aposentado, o Sam. Não tem mais medo.
— Onde está a nave, Jiz?
— No espaço junto ao farol.
— Vamos.
— Onde?
— Até a nave de Sam. — Foyle estendeu sua mão enorme
para a frente dos olhos de Jisbella; um monte de
102 ALFRED BESTER

chaves brilhantes estava na sua palma. — Peguei as chaves dele.


Vamos.
— Ele as deu para você?
— Eu as peguei do corpo dele.
— Monstro! — Ela começou a rir. — Mentiroso...
Traidor... Tigre... Monstro. Câncer ambulante... Gully Foyle.
Apesar de tudo, ela o seguiu pela tempestade de neve até o
farol de Montauk.

***

Saul Dagenham falou a três acrobatas com perucas


empoadas, quatro mulheres espalhafatosas carregando serpentes,
uma criança com cachos dourados e boca cínica, um duelista
profissional de armadura medieval e um homem usando uma
perna oca de vidro em que nadavam peixes dourados:
— Muito bem, a operação acabou. Chamem o resto deles e
digam-lhes para se apresentar na sede dos Mensageiros.
A troupe jauntou e desapareceu. Regis Sheffield esfregou
os olhos e perguntou:
— Para que foi essa loucura, Dagenham?
— Perturba sua mente legal, hein? Isso foi parte de nossa
operação FFCC. Folia, Fantasia, Confusão e Catástrofe. —
Dagenham virou-se para Presteign e sorriu seu sorriso de
caveira.
— Eu lhe devolvo os honorários, se quiser, Presteign.
— Você não está desistindo?
— Não, estou me divertindo. Faço o trabalho por nada.
Nunca me defrontei com um homem do calibre de Foyle. Ele é
único.
— Como? — perguntou Sheffield.
— Preparei a fuga dele do Gouffre Martel. Ele fugiu, claro,
mas não do meu jeito. Tentei mantê-lo fora das mãos da polícia
com a confusão e catástrofe. Ele enganou a polícia, mas não do
meu modo... à sua maneira. Tentei mantê- lo fora das mãos da
Central de Informação com folia e fantasia. Ele ficou livre...
outra vez do jeito dele. Tentei empurrá-lo para uma nave, a fim
de que pudesse ir até à No-
TIGER! TIGER! 103

mad. Ele não foi empurrado, mas conseguiu uma nave. Está a
caminho, agora.
— Você o está seguindo?
— Naturalmente — hesitou Dagenham. — Mas o que ele
estava fazendo na fábrica de Baker?
— Cirurgia plástica? — Sheffield sugeriu. — Um rosto
novo?
— Não é possível. Baker é bom, mas não pode fazer uma
plástica tão depressa. Foi uma cirurgia pequena. Foyle estava
andando com a cabeça em ataduras.
— A tatuagem — disse Presteign.
Dagenham fez que sim e o sorriso deixou seus lábios.
— É isso que me preocupa. Percebe, Presteign, que se
Baker removeu a tatuagem, nunca reconheceremos Foyle?
— Meu caro Dagenham, o rosto dele não mudou.
— Nunca vimos seu rosto... só a máscara.
— Nunca encontrei o homem — disse Sheffield. — Como
era a máscara?
— Parecia um tigre. Estive com Foyle em dois longos
períodos. Deveria conhecer seu rosto de cor, mas não conheço.
Tudo que vi foi a tatuagem.
— Ridículo — disse Sheffield, bruscamente.
— Não. Foyle tem de ser visto para se acreditar nele.
Porém, não importa. Ele nos levará à Noniad. Nos levará à sua
platina e a PyrE, Presteign. Quase tenho pena de que tudo tenha
acabado. Como disse, eu me diverti, realmente, ele é único.
7
O Fim de Semana em Saturno fora construído como um
iate de lazer; era amplo para quatro, espaçoso para dois, mas
não bastante espaçoso para Foyle e Jiz McQueen. Foyle dormia
na cabine principal; Jiz ficava no salão maior.
No sétimo dia de viagem, Jisbella falou com Foyle pela
segunda vez:
— Vamos tirar essas ataduras, Monstro.
Foyle deixou a cozinha onde estava esquentando café
melancolicamente e pulou de volta para o banheiro. Flutuou
atrás de Jisbella e se enfiou no cômodo diante do espelho da pia.
Jisbella se impeliu até a pia, abriu um recipiente de éter e
começou a umedecer e a retirar as ataduras com mãos pesadas e
iradas. As bandagens de gaze foram desenroladas aos poucos.
Foyle estava numa agonia de suspense.
— Acha que Baker conseguiu?
Nenhuma resposta.
— Será que ele falhou em alguma parte?
A retirada das ataduras prosseguiu.
— Parou de doer há dois dias.
Sem resposta.
— Pelo amor de Deus, Jiz! Ainda estamos em guerra?
As mãos de Jizbella pararam. Ela olhou o rosto ainda
coberto de Foyle com ódio.
— O que é que você acha?
— Eu fiz a pergunta.
TIGER! TIGER! 105

— A resposta é sim.
— Por quê?
— Você nunca entenderá.
' — Explique-me.
— Cale a boca.
— Se é guerra, por que veio comigo?
— Para pegar o que pertence a Sam e a mim.
— Dinheiro?
— Cale a boca.
— Não precisava disso. Bastava ter confiado em mim.
— Confiado? Em você? — Jisbella riu sem alegria e
recomeçou o trabalho. Foyle afastou as mãos dela.
— Eu faço isso sozinho.
Ela o esbofeteou através das ataduras.
— Você vai fazer o que eu lhe disser. Fique quieto,
Monstro!
Continuou a tirar as bandagens. Saiu uma faixa revelando
os olhos de Foyle. Eles fixaram Jisbella, negros e curiosos. As
pálpebras estavam limpas, a parte de cima do nariz estava limpa.
Uma faixa saiu do queixo de Foyle. Ele estava preto-azulado.
Foyle olhando fixo para o espelho, engoliu em seco.
— Ele deixou o queixo! — exclamou. — Baker não...
— Cale-se — disse Jiz, rápida. — Ê a barba.
As ataduras mais próximas do rosto foram tiradas logo,
revelando faces, boca e testa. A testa estava limpa. As faces sob
os olhos estavam limpas. O resto estava coberto por uma barba
preto-azulada de sete dias.
— Faça a barba — ordenou Jiz.
Foyle abriu a água, molhou o rosto, passou creme de
barbear e tirou a barba. Daí inclinou-se para perto do espelho e
se examinou, sem perceber que a cabeça de Jisbella estava junto
à sua, fixa no espelho. Nenhuma marca da tatuagem permanecia.
Os dois suspiraram.
— Está limpo. Limpo. Ele fez o trabalho — disse Foyle.
De repente ele se inclinou mais para a frente e se examinou mais
de perto. Seu rosto lhe parecia novo, tão novo quanto parecia
para Jisbella. — Eu mudei. Não me lembro de ter essa cara. Ele
fez cirurgia em mim, também?
— Não — disse Jisbella. — O que está dentro é que
106 ALFRED BESTER

mudou. Você está vendo o monstro, juntamente com o


mentiroso e o traidor.
— Pelo amor de Deus. Pare. Deixe-me sozinho!
— Monstro! — repetiu Jisbella, olhando para o rostq de
Foyle com olhos brilhantes. — Mentiroso! Traidor!
Ele agarrou seus ombros e a jogou para fora dali. Ela foi
correndo para o salão principal, pegou uma alavanca e a
rodopiou.
— Monstro! — gritou. — Mentiroso! Traidor! Monstro!
Tarado! Animal!
Foyle perseguiu-a, agarrou-a outra vez e a sacudiu vio-
lentamente. O cabelo ruivo escapou da presilha que o segurava
no alto da nuca e flutuou como as tranças de uma sereia. A
ardente expressão do seu rosto transformou o ódio de Foyle em
paixão. Ele a abraçou e mergulhou o novo rosto em seus seios.
— Tarado — murmurou Jiz. — Animal...
— Oh, Jiz...
— A luz — sussurrou Jisbella. Foyle tateou cegamente na
direção dos interruptores e apertou os botões. O Fim de Semana
em Saturno rumou para os asteróides com vigias escuras.

***

Flutuaram juntos na cabine, cochilando, murmurando,


tocando-se carinhosamente durante horas.
— Pobre Gully — cochichou Jisbella. — Pobre e querido
Gully...
— Pobre, não — disse ele. — Rico... logo.
— Sim, rico e vazio. Você não tem nada dentro de você,
querido Gully... Nada, além de ódio e vingança.
— Ê o bastante.
— Bastante por ora. E depois?
— Depois? Isso depende.
— Depende do seu íntimo, Gully; do que você tiver dentro.
— Não. Meu futuro depende do que eu fizer.
— Gully... por que você me escondeu coisas lá no Gouffre
Martel? Por que não me disse que sabia haver uma fortuna a
bordo da Nomad/t
TIGER! TIGER! 107

— Não podia.
— Não confiava em mim?
— Não era isso. Eu não conseguia. Ê o que tenho dentro dè
mim... de que tenho de me livrar.
— Controle de novo, hein, Gully? Você é levado a agir.
— Sim, sou levado. Não posso aprender o controle, Jiz.
Quero, mas não posso.
— Você tenta?
— Sim. Sabe Deus. Eu tento. Mas aí acontece alguma coisa
e...
— E daí você pula. “Vilão sem remorso, luxurioso, traidor,
empedernido...’’
— O que é isso?
— Algo que um homem chamado Shakespeare escreveu.
Descreve você, Gully... quando está fora de controle.
— Se eu pudesse fazer você entrar na minha cabeça, Jiz...
para me avisar... enfiar um alfinete em mim...
— Ninguém pode fazer isso por você, Gully. Tem de
aprender sozinho.
Ele digeriu isso por um longo instante. Daí falou, hesitante:
— Jiz... sobre o dinheiro...
— Pro inferno com o dinheiro!
— Você está falando sério?
— Oh, Gully!
— Não que eu... eu esteja tentando passar a perna em você.
Não fosse a Vorga eu lhe daria tudo que quisesse. Tudo! Eu lhe
darei cada centavo que sobrar quando acabar. Mas tenho medo,
Jiz. A Vorga é um osso duro de roer... com Presteign, Dagenham
e aquele advogado Shef- field. Tenho de me agarrar a cada
centavo, Jiz. Tenho medo de que se deixar você me pegar um
crédito, isso poderá ser a diferença entre a Vorga e mim.
— Eu.
— Eu. — Ele esperou. — E então?
— Você está possuído — disse ela, sombriamente. — Não
apenas uma parte de você, mas você todo.
— Não.
— Sim, Gully. Você todo. Ê apenas sua pele que faz amor
comigo. O resto está se alimentando da Vorga.
108 ALFRED BESTER

Nesse instante, o alarme do radar na cabine de controle da


proa soou, estridente e indesejável.
— Nosso destino — resmungou Foyle, deixando de estar
relaxado, possuído novamente. Disparou para a cabine de
controle.
Foyle desabou sobre o asteróide com a fúria súbita de um
ataque vândalo. Surgiu rugindo do espaço, freou com um fulgor
de chamas nos jatos fronteiros e lançou o Fim de Semana numa
órbita fechada em volta do montão de lixo. Circundaram-no,
passando pelas vigias escurecidas, pela escotilha que Joseph e
seus irmãos usavam para sair e coletar os destroços espaciais à
deriva, a nova cratera que Foyle arrancara do lado do asteróide
na sua primeira viagem à Terra. Passaram pelas gigantescas
colchas de retalho das janelas da estufa do asteróide e viram
centenas de rostos olhando-os, pontinhos brancos riscados com
tatuagem.
— Então eu não os matei — resmungou Foyle. — Eles se
enfiaram no asteróide... Provavelmetne moraram lá no fundo
enquanto consertavam o resto.
— Irá ajudá-los, Gully?
— Por quê?
— Você fez o estrago.
— Pro inferno com eles. Tenho meus problemas. Mas é um
alívio. Eles não irão nos chatear.
Orbitou o asteróide mais uma vez e levou o Fim de Se-
mana até a boca da nova cratera.
— Vamos trabalhar a partir daqui. Ponha um traje, Jiz!
Vamos! Vamos!
Ele a empurrou, louco de impaciência. Empurrou a si
mesmo. Entraram nos trajes espaciais, saíram do Fim de Semana
e correram pelos destroços da cratera até alcançarem as
entranhas negras do asteróide. Foyle ligou o emissor de
microondas do traje e falou com Jiz.
— Cuidado para não se perder. Fique comigo. Bem perto.
— Onde vamos, Gully?
— Procurar a Nomad. Lembro-me de que a estavam
cimentando no asteróide quando parti. Mas não lembro onde.
Tenho de encontrá-la.
TIGER! TIGER! 109

Os túneis eram sem ar e o andar deles era silencioso, mas


as vibrações se propagavam através do metal e da rocha.
Pararam uma vez para descansar e quando se apoiaram no casco
de uma velha nave de guerra, sentiram vibrações vindas do
interior, pancadas ritmadas.
Foyle deu um sorriso amargo.
— São Joseph e o Povo Científico, lá dentro. Querem falar
comigo. Vou lhes dar uma resposta evasiva. — Bateu duas vezes
na fuselagem. — E agora uma mensagem particular para minha
mulher. — O rosto dele ficou sombrio. Bateu furiosamente no
casco e se virou. — Vamos, vamos embora.
Quando continuaram a busca, os sinais foram acom-
panhando-os. Era evidente que a periferia do asteróide fora
abandonada e que a tribo se retirara para o centro. Então, no
fundo de um túnel feito de chapas de alumínio batido, abriu-se
uma escotilha, surgiu uma luz e Joseph apareceu numa antiga
roupa espacial de fibra de vidro. Ficou lá, na roupa
desconjuntada. o rosto de diabo atento, as mãos juntas em
súplica, a boca de diabo mexendo sem parar.
Foyle ficou olhando o velho, deu um passo na sua direção,
mas depois parou, com os punhos cerrados. Jisbella, olhando
para Foyle, gritou horrorizada, porque a velha tatuagem voltara
ao seu rosto, vermelha como sangue sobre a palidez da pele,
escarlate em vez de negra, uma verdadeira máscara de tigre não
apenas na cor como também no desenho.
— Gully! — gritou. — Meu Deus, o seu rosto!
Foyle ignorou-a. Ficou olhando para Joseph, enquanto o
velho fazia seus gestos persuasivos, convidando-os a entrar no
asteróide. Só quando ele desapareceu é que Foyle se virou para
Jisbella e perguntou:
— O quê? O que você disse?
Pelo globo transparente do capacete ela podia ver dis-
tintamente o rosto dele. E, à medida que a raiva dentro de Foyle
amortecia, Jisbella viu que a tatuagem sanguínea se desvanecia e
desaparecia.
— Você viu aquele palhaço? — perguntou Foyle. — Era o
Joseph. Você viu como pedia e implorava depois do que me
fez...? O que você disse?
110 ALFRED BESTER

— O seu rosto, Gully. Sei o que aconteceu com seu rosto.


— Do que está falando?
— Você queria algo que o controlasse, Gully. Bem,
conseguiu. O seu rosto. Ele... — Jisbella começou a rir his-
tericamente. — Você terá de aprender a se controlar agora,
Gully. Nunca mais poderá se entregar à emoção... qualquer
emoção... porque...
Mas ele estava olhando além dela e, de repente, correu
pelo túnel de alumínio com um grito. Parou subitamente diante
de uma porta aberta e começou a gritar em triunfo. A porta se
abriu para um depósito de ferramentas, de 1.20 m por 1,20 m
por 2,70 m. Havia prateleiras no armário e uma confusão de
velhas provisões e recipientes vazios. Era o caixão de Foyle a
bordo da Nomad.
Joseph e seus irmãos tinham conseguido unir o destroço ao
seu asteróide antes do holocausto da fuga de Foyle tornar
impossível mais algum trabalho. O interior da nave íicou
virtualmente intocado. Foyle pegou o braço de Jisbella e a levou
para uma rápida volta pela nave e finalmente até o camarote do
comissário, onde Foyle arrombou as janelas, retirando
escombros e lixo até chegar a um cofre de aço maciço, sólido e
impenétrável.
— Podemos escolher — arquejou. — Ou carregamos o
cofre para fora do casco e o levamos de volta à Terra onde
poderemos trabalhar nele, ou o abrimos aqui. Voto por aqui.
Talvez Dagenham estivesse mentindo. Tudo depende de quais
ferramentas Sam tivesse no Fim de Semana. Volte para a nave,
Jiz.
Ele não percebeu o silêncio e a preocupação dela até
voltarem para bordo do Fim de Semana e ele ter acabado sua
apressada busca de ferramentas.
— Nada! — exclamou, impaciente. — Não há nem um
martelo ou uma furadeira a bordo. Só máquinas de abrir garrafas
e rações.
Jisbella não respondeu. Não tirava os olhos do rosto dele.
— Por que você está me olhando desse jeito? — perguntou
Foyle.
— Estou fascinada — respondeu Jisbella, devagar.
— Com quê?
TIGER! TIGER! 111

— Vou lhe mostrar algo, Gully.


— O quê?
— Quanto eu o desprezo.
Jisbella deu-lhe três tapas. Furioso com os golpes, Foyle
partiu para cima dela. Jisbella pegou um espelhinho de mão e o
estendeu para ele.
— Dê uma olhada em você, Gully — disse baixinho. —
Veja seu rosto.
Ele olhou. Viu as velhas marcas da tatuagem flame- jando
rubras sob a pele, transformando seu rosto numa máscara
escarlate e branca de tigre. Ficou tão aterrorizado com o incrível
espetáculo que sua raiva morreu imediatamente e,
simultaneamente, a máscara desapareceu.
— Meu Deus... — sussurrou. — Oh, meu Deus...
— Eu precisava fazer você ficar zangado para lhe mostrar
— disse Jisbella.
— O que quer dizer, Jiz? Baker falhou na operação?
— Acho que não. Acho que você ficou com cicatrizes sob a
pele, Gully... da tatuagem original e daí da limpeza Cicatrizes de
agulha. Não aparecem normalmente, mas aparecem, rubras de
sangue, quando suas emoções tomam conta e seu coração
começa a bombear sangue... quando você está furioso ou
atemorizado, apaixonado ou possuído... Entende?
Ele sacudiu a cabeça, ainda olhando para seu rosto,
tocando-o, espantado.
— Você disse que queria me carregar na cabeça para
espetar alfinetes em você quando perdesse o controle. Você
conseguiu uma coisa melhor que isso... ou pior, pobre querido.
O seu rosto.
— Não! Não!
— Você nunca mais poderá perder o controle, Gully.
Nunca mais poderá beber demais, comer demais, amar demais,
odiar demais... Terá de se dominar com pulso de aço.
— Não! Isso deve ter uma solução. Baker poderá dar um
jeito, ou algum outro. Não posso ficar por aí com medo de sentir
qualquer coisa porque isso vai me transformar num monstro!
— Acho que não é possível dar um jeito, Gully.
— Enxerto de pele...
112 ALFRED BESTER

— Não. As cicatrizes são profundas demais para isso. Vai


ter de aprender a conviver com elas.
Foyle jogou o espelho para longe, num ataque de raiva, e
mais uma vez a máscara de tigre surgiu sob sua pele. Lançou-se
em direção da escotilha principal e começou a vestir de novo a
roupa espacial.
— Onde você vai? O que vai fazer?
— Vou arranjar ferramentas. Ferramentas para o maldito
cofre.
— Onde?
— No asteróide. Há dúzias de depósitos cheios de fer-
ramentas tiradas das naves destruídas. Não venha comigo. Pode
haver problemas. Como é que está minha maldita cara, agora? A
máscara está lá? Meu Deus, estou torcendo para haver
problemas!
Enfiou-se na roupa e foi para o asteróide. Descobriu uma
escotilha separando o núcleo habitado do vazio exterior. Bateu
na porta. Esperou e bateu de novo, continuando os golpes
autoritários até que afinal a escotilha foi aberta. Braços o
puxaram para dentro e a escotilha fechou-se atrás dele. Não
tinha válvula de ar.
Ele piscou com a luz e franziu a testa ao ver Joseph e seus
irmãos inocentes reunidos diante dele, com os rostos
horrivelmente enfeitados. E ele sabia que seu próprio rosto
deveria estar chamejando em vermelho e branco, pois viu
Joseph se adiantar e viu a boca de diabo formar as síladas:
Nômade.
Foyle enfiou-se pela multidão, abrindo caminho bru-
talmente. Derrubou Joseph com um golpe com as costas da mão
coberta com malha de ferro. Procurou pelos corredores vazios,
reconhecendo-os vagamente e chegou, enfim, à câmara, meio
caverna natural, meio salão antigo, onde as ferramentas estavam
guardadas.
Escolheu e fuçou, reunindo furadoras, brocas de diamante,
ácidos, termites, cristalizadores, explosivos plásticos,
detonadores. No asteróide que orbitava devagar, o enorme peso
do equipamento se reduzia a menos de cin- qüenta quilos. Ele
arrumou tudo numa massa, prendeu tudo com fios e saiu da
caverna-depósito.
Joseph e seus irmãos esperavam por ele, como pulgas
esperando um lobo. Atacaram-no e ele se enfiou através
TIGER! TIGER! 113

deles, apressado, satisfeito, selvagem. A couraça de sua roupa


espacial protegia-o dos ataques e ele avançou pelas passagens,
buscando a escotilha que o levaria ao vácuo.
A voz de Jisbella chegou até ele, baixinha nos fones de
ouvido e vibrou:
— Gully, está me escutando? Aqui é Jiz. Gully, ouça.
— Diga.
— Outra nave chegou há dois minutos. Está flutuando do
outro lado do asteróide.
— O quê?
— Tem pintura amarela e preta, como uma vespa.
— -As cores de Dagenham.
— Então fomos seguidos.
— Sem dúvida. Dagenham deve estar me seguindo desde
que saímos do Gouffre Martel. Fui um idiota em não pensar
nisso. Como ele me seguiu, Jiz? Por você?
— Gully!
— Esqueça. Só estou brincando. — Riu sem alegria. —
Temos de agir rápido, Jiz. Enfie-se num traje e me encontre a
bordo da Nomad. No camarote do comissário. Vá, garota.
— Mas, Gully...
— Desligue. Podem estar grampeando nossa faixa de onda,
vá!
Avançou pelo asteróide, atingiu uma escotilha com grades,
quebrou-a e foi para o váculo dos corredores externos. O Povo
Científico estava desesperado demais fechando a escotilha, para
tentar detê-lo. Mas ele sabia que iriam segui-lo; estavam
furiosos.
Arrastou o pesado equipamento através das curvas e
esquinas até os restos da Nomad. Jisbella esperava-o no
camarote do comissário. Ela fez um gesto para ligar o equi-
pamento de microondas, mas Foyle a impediu. Juntou seu
capacete ao dela e gritou:
— Nada de rádio. Estão alertas e irão nos localizar. Você
consegue me ouvir assim, não é?
Ela concordou.
— Muito bem. Devemos ter uma hora antes de Dagenham
nos localizar. Devemos ter uma hora antes de Jo- seph e sua
turma virem até aqui. Estamos num maldito buraco. Temos de
agir depressa.
114 ALFRED BESTER

Ela concordou outra vez.


— Não há tempo para abrir o cofre e transportar a carga.
— Se estiver aqui.
— Dagenham está, não é? Isso prova que a platina está
aqui. Temos de arrancar o cofre todo da Nomad e levar para o
Fim de Semana. Daí, daremos o fora.
— Mas...
— Apenas escute e faça o que digo. Volte para o Fim de
Semana. Esvazie-o. Jogue fora tudo que não precisarmos...
todas as provisões menos as rações de emergência.
— Por quê?
— Porque não sei quantas toneladas pesa este cofre e a
nave pode não agüentá-lo quando voltarmos à gravidade. Temos
de deixar uma folga desde já. Será uma viagem dura, mas valerá
a pena. Limpe a nave. Rápido! Vá, garota, vá!
Ele a empurrou e, sem outro olhar na sua direção, atacou o
cofre. Ele era feito com o aço estrutural do casco, uma maciça
bola de aço com cerca de 1,20 m de diâmetro. Estava agarrada
aos destroços da Nomad em uns doze pontos diferentes. Foyle
atacou cada suporte sucessivamente com ácidos, brocas, termite
e congelantes. Estava agindo com base na teoria da fadiga
estrutural... aquecer, esfriar e perfurar o aço até sua estrutura
cristalina ser distorcida e sua força física destruída. Estava
cansando o metal.
Jisbella voltou e ele percebeu que havia passado quarenta e
cinco minutos. Estava pingando e tremendo, mas o globo do
cofre pendia livre do casco com uma dúzia de ca- lombos
saindo de sua superfície. Foyle fez um gesto desesperado para
Jisbella e ela juntou seu peso ao dele contra o cofre. Não
conseguiram mover a massa juntos. Quando mergulharam na
exaustão e no desânimo, uma breve sombra eclipsou a luz do sol
que passava pelas fendas do casco da Nomad. Olharam para
cima. Uma nave orbitava o aste- róide a menos de 400 metros.
Foyle encostou o capacete no de Jisbella.
— Dagenham — disse, arquejante. — Procurando por nós.
Provavelmente tem alguns homens atrás de nós, também. Assim
que falarem com Joseph, estarão aqui.
— Oh, Gully...
TIGER! TIGER! 115

— Ainda temos uma chance. Talvez eles não percebam o


Fim de Semana do Sam até fazerem mais umas duas órbitas.
Está escondido na cratera. Talvez possamos levar o cofre para
bordo, enquanto isso.
— Como, Gully?
— Não sei, droga! Não sei. — Ele bateu um punho no
outro, frustrado. — Estou acabado!
— Não podemos explodir?
— Explodir?... O quê? Bombas em vez de miolos? É a
Intelectual McQueen falando?
— Escute. Usaremos algo explosivo. Isso agiria como um
jato de foguete... lhe daria um impulso.
— Sim, entendi. Mas e daí? Como o colocaremos na nave,
garota? Não poderemos ficar explodindo. Não temos tempo.
— Não, traremos a nave para o cofre.
— O quê?
— Mandaremos o cofre bem para o espaço. Daí, levaremos
a nave para lá e deixaremos o cofre flutuar até a escotilha
principal. Como pegar uma bola com um chapéu. Que tal?
Ele adorou.
— Meu Deus, Jiz, podemos fazer isso. — Foyle pulou até a
pilha de equipamentos e começou a selecionar bananas de
dinamite, plástico, detonadores e rastilhos.
— Temos de usar o rádio. Um de nós fica com o cofre; o
outro pilota a nave. Quem estiver com o cofre fala com o que
tem a nave em posição. Certo?
— Certo. É melhor você pilotar, Gully. Eu falo.
Ele concordou, arrumou o explosivo na frente do cofre,
ligando rastilhos e detonadores. Daí juntou o capacete ao dela.
— Detonadores de vácuo, Jiz. Programados para dois minutos.
Quando eu der a ordem por rádio, puxe as cápsulas dos
detonadores e dê no pé. Certo?
— Certo.
— Fique com o cofre. Quando ele entrar na nave, entre
também. Não espere por nada. Vai ser por pouco.
Deu uma pancadinha no ombro dela e voltou para o Fim de
Semana. Deixou a escotilha externa aberta, bem como a porta
interna da câmara de ar. O ar da nave se
116 ALFRED BESTER

esvaziou imediatamente. Sem ar e descarregada por Jis- bella,


parecia lúgubre e desajeitada.
Foyle foi diretamente para os controles, sentou-se e ligou o
rádio.
— Prepare-se — sussurrou. — Estou indo.
Ligou os foguetes, deixou os laterais por três segundos e
daí os dianteiros. O Fim de Semana decolou facilmente,
levantando destroços na sua traseira e dos lados, como uma
baleia chegando à superfície. Ao ir para cima e para trás, Foyle
gritou:
— Dinamite, Jiz! Já!
Não houve explosão; não houve clarão. Uma nova cratera
se abriu no asteróide embaixo da nave e uma flor de destroços
subiu, ultrapassando rapidamente uma bola de aço maciço que
seguia devagar, numa espiral lenta.
— Calma. — A voz de Jisbella veio fria e competente
através dos fones de ouvido. — Você está descendo depressa
demais. E, aliás, chegaram os problemas.
Ele freou com os foguetes traseiros, olhando para baixo,
assustado. A superfície do asteróide estava coberta por um
enxame de abelhas. Eram a tripulação de Dagen- ham com
roupas espaciais amarelas e negras. Estavam se dirigindo para
uma única figura de branco que escapava, fintava e os enganava.
Era Jisbella.
— Firme assim — disse Jiz, tranqüila, embora pudesse
ouvir como ela estava arquejante. — Diminua um pouco mais...
Agora, um quarto de volta.
Obedeceu-a quase automaticamente, ainda observando sua
luta lá embaixo. O flanco do Fim de Semana cortava- lhe a visão
da trajetória do cofre à medida que se aproximava dele, mas
ainda podia ver Jisbella e os homens de Da- genham. Ela
acendeu o jato de seu traje... pôde ver a pequena chama que saiu
das suas costas... e logo veio flutuando, decolando da superfície
do asteróide. Uma porção de chamas saiu das costas dos homens
de Dagenham quando a seguiram. Meia dúzia deles largou a
perseguição de Jisbella e se dirigiu para o Fim de Semana.
— Vai ser por pouco, Gully — Jisbella estava ofegante,
mas sua voz ainda era firme. — A nave de Dagenham vem lá de
baixo pelo outro lado, mas provavelmente já
TIGER! TIGER! 117

o informaram agora e ele está a caminho. Mantenha sua posição,


Gully. Cerca de dez segundos, agora...
As abelhas fecharam o cerco e cobriram o pequeno traje
branco.
— Foyle! Está me ouvindo? Foyle! — A voz de Da-
genham veio cheia de estática, depois clara. — Aqui é Da-
genham chamando na sua faixa. Vamos, Foyle!
— Jiz! Jiz! Não pode se livrar deles?
— Mantenha a posição, Gully... Lá vai! Bem no buraco,
meu!
Um choque surdo sacudiu o Fim de Semana, quando o
cofre, movendo-se lenta mas maciçamente, entrou na escotilha
principal. No mesmo instante, a figura vestida de branco
escapou do monte de vespas amarelas. E veio, impelida pelo
foguete, para o Fim de Semana, perseguida de perto.
— Venha, Jiz! Venha! — Foyle uivou. — Venha, garota!
Venha!
Enquanto Jisbella desaparecia de vista atrás do flanco do
Fim de Semana, Foyle preparou os controles em aceleração
máxima.
— Foyle! Responda! É Dagenham falando.
— Vá pro inferno, Dagenham — gritou Foyle. — Diga-me
quando estiver a bordo, Jiz, e segure-se.
— Não vou conseguir, Gully.
— Vamos, garota!
— Não consigo entrar a bordo. O cofre está bloqueando a
escotilha. Está enfiado na metade...
— Jiz!
— Não há jeito de entrar — gritou, desesperada. — Estou
bloqueada.
Ele olhou selvagemente em volta. Os homens de Da-
genham estavam abordando o casco do Fim de Semana com o
ímpeto ameaçador de profissionais. A nave de Dagenham estava
aparecendo no pequeno horizonte do asteróide, numa rota mortal
para ele. Sua cabeça começou a rodar.
— Foyle, você está acabado. Você e a garota. Mas ofereço
um acordo...
— Gully, me ajude. Faça algo, Gully. Estou perdida!
— Vorga — disse ele, numa voz estrangulada. Fechou os
olhos e acionou os controles. Os jatos traseiros rugiram.
118 ALFRED BESTER

O Fim de Semana tremeu e saltou para a frente. Libertou- se


dos homens de Dagenham, de Jisbella, de avisos e pedidos.
Foyle foi empurrado para trás na poltrona do piloto, com o
blecaute da aceleração de 10 G, uma aceleração que era menos
premente, menos dolorosa, menos traiçoeira que a paixão que o
impelia.
E, quando ele perdeu a visão, surgiram em seu rosto os
sinais vermelho-sangue da sua possessão.
SEGUNDA PARTE

Com um coração de furiosas fantasias,


Do qual sou comandante,
Com uma lança ardente e um cavalo alado, Do
deserto sou errante.
Com um paladino de sombras e espectros
Convocado sou para o torneio,
Dez léguas além do fim do vasto mundo —
Acho que não é passeio.

TOM-A-BEDLAM
8
O ano velho azedava enquanto a peste destruía os
planetas. A guerra recrudesceu e de um remoto incidente de
românticos ataques de surpresa e escaramuças no espaço evoluiu
para um holocausto iminente. Ficou claro que a última das
guerras mundiais havia chegado ao fim e começava a primeira
Guerra Solar.
As potências envolvidas concentravam homens e armas
para a devastação. Os Satélites Exteriores recorreram ao
recrutamento universal e os Planetas Interiores viram-se
forçados a fazer o mesmo. Convocaram-se indústrias, com-
mércio, ciências, habilidades e profissões; criaram-se regu-
lamentos e opressões. Os exércitos e as marinhas requisitavam e
comandavam.
O comércio obedecia, pois essa guerra (como todas as
guerras) era a fase decisiva de uma luta comercial. Mas
populações se rebelaram, e os jauntamentos de contingente e de
mão-de-obra se tornaram um problema crítico. O temor à
espionagem e à invasão generalizou-se. Os histéricos se
transformaram em Informantes ou em Lynchers. Um mau
presságio paralisou todos os lares, da ilha de Baffin às
Falklands. O ano que agonizava foi revivido apenas pelo
advento do Circo Four Mile.
Era este o apelido popular da grotesca companhia de
Geoffrey Fourmyle de Ceres, um jovem e abastado bufão
122 ALFRED BESTER

oriundo de um dos maiores asteróides. Fourmyle de Ceres era


extremamente rico; e extremamente divertido também. O
clássico bourgeois gentilhomme, o próprio nouveau riche de
todos os tempos. Sua companhia era uma mistura de circo de
interior com a corte de cômicos de um reizinho da Bulgária,
como confirma esta típica chegada em Green Bay, no
Wisconsin.
Logo cedo pela manhã, um advogado, usando a cartola de
um clã legítimo, apareceu com uma lista de locais de
acampamento na mão e uma pequena fortuna no bolso. Fixou-se
numa campina de quatro acres em frente ao Lago Michigan e a
arrendou por um preço exorbitante. Em seguida veio um grupo
de topógrafos do clã de Mason e Di- xon. Em vinte minutos
planejaram um acampamento, ao mesmo tempo que se
espalhava a notícia de que o Circo Four Mile estava chegando.
Habitantes de Wisconsin, Michigan e Minnesota acorreram para
assistir ao espetáculo.
Vinte tarefeiros jauntaram no terreno, cada um carregando
nas costas uma barraca. Houve uma poderosa introdução de
ordens em voz alta, gritos, imprecações, e o guincho torturado
de ar comprimido. Vinte barracas gigantescas inflaram-se, as
superfícies de laca e látex reluzindo enquanto secavam ao sol de
inverno. Os espectadores vibravam.
Um helicóptero de seis motores baixou e pairou sobre uma
rede de acrobatas. Sua barriga abriu-se e liberou uma cascata de
equipamentos. Empregados, criados, cozinheiros e garçons
jauntaram. Mobiliaram e decoraram as barracas. Nas cozinhas a
fumaça começou a subir, e o cheiro de fritura, assado e cozido
impregnou o acampamento. A polícia particular de Fourmyle já
estava de serviço, patrulhando os quatro acres, contendo a
imensa multidão de espectadores.
Então, de avião, de carro, de ônibus, de caminhão, de
bicicleta e de jaunte chegou a companhia de Fourmyle. Bi-
bliotecários e livros, cientistas e laboratórios, filósofos, poetas,
atletas. Montaram-se estantes de sabre e de espadas, tatames de
judô e um ringue de boxe. Uma piscina de quinze metros foi
instalada no solo e enchida com água bombeada do lago.*Uma
interessante discussão surgiu entre
TIGER! TIGER! 123

dois robustos atletas, para decidir se a piscina deveria ser


aquecida para a natação ou congelada para a patinação.
Músicos, atores, malabaristas e acrobatas chegaram. A
gritaria tornou-se ensurdecedora. Uma equipe de mecânicos
fundiu um silo de manutenção e começou a acelerar os motores
da excepcional coleção de ceifeiras a diesel de Fourmyle. Por
fim chegaram as vivandeiras: esposas, filhas, amantes,
prostitutas, mendigas, trapaceiras, trambi- queiras. No meio da
manhã, o estrondo do circo podia ser ouvido num raio de quatro
milhas — daí seu apelido.
Ao meio-dia, Fourmyle de Ceres chegou com uma de-
monstração de ostensivo transporte tão bizarra que lhe jus-
tificava a fama de fazer rir empedernidos melancólicos. Um
anfíbio gigante veio zunindo do sul e aterrissou no lago. Uma
barcaça L. S. T. saiu do avião e, cruzando as águas
ruidosamente, deu na praia. Abrindo sua parede frontal
transformou-se numa ponte levadiça, por onde saiu um carro de
comando século vinte. Uma surpresa acarretava outra para os
encantados espectadores, pois o carro de comando andou cerca
de vinte metros até o centro do acampamento e depois parou.
— Que será que vem agora? Bicicleta?
— Não, patins de rodas.
— Ele vai aparecer com pernas-de-pau de molas.
Fourmyle suplantou as mais desvairadas expectativas. A
boca de um canhão de circo despontou no carro de comando.
Ouviu-se o estrondo de uma explosão de pólvora e Fourmyle de
Ceres foi lançado do canhão num elegante arco até a porta de
sua barraca, onde foi colhido numa rede segurada por quatro
criados. Os aplausos que o receberam ecoaram por quatro
milhas. Fourmyle subiu nos ombros de um criado pessoal e
pediu silêncio.
— Meu Deus! Aquilo vai fazer um discurso!
— Aquilo? Você quer dizer “ele”, não?
— Não. Aquilo. Aquilo não pode ser humano.
— Amigos, romanos, conterrâneos — começou Fourmyle
com veemência. — Ouvi-me com atenção. Shakes- peare. 1564-
1616. Droga! — Quatro pombas brancas escaparam das mangas
da camisa de Fourmyle e bateram asas. Ele as observou atônito
e, em seguida, prosseguiu: — Amigos, salve, saudações,
bonjour, bon ton, bon vivant, bon
124 ALFRED BESTER

voyage, bon... Mas que diabo! — Os bolsos de Fourmyle


inflamaram-se e dispararam rojões. Ele procurou proteger- se.
Serpentinas e confetes saíam dele. — Amigos... Silêncio! Agora
vou fazer este discurso direito. Quietos! Amigos...! — Fourmyle
olhou-se desalentado. Suas roupas estavam se dissolvendo,
expondo as apavorantes cuecas vermelhas. — Kleinmann! —
gritou ele com fúria. — Klein- mann! Que aconteceu com a
droga do seu treinamento hipnótico?
Uma cabeça cabeluda surgiu numa barraca.
— Estudar para este discurso ontem à noite, Fourmyle?
— Claro que sim. Eu estudar por duas horas. Não tirei
minha cabeça do hipno-fogão, Kleinmann da Prestidi- gitação.
— Não, não, não! — respondeu o homem cabeludo. —
Quantas vezes tenho de dizer? Prestidigitação não é discurso
fazer. É mágica. Dumbkropf! Você hipnose errado fazer!
A cueca vermelha começou a se dissolver. Fourmyle
desceu dos ombros do criado trêmulo e desapareceu dentro de
sua barraca. Explodiu uma onda de risos e de hurras, e o Circo
Four Mile efervesceu. As cozinhas crepitaram e cuspiram
fumaça. Houve um perpétuo comer e beber. A música nunca
mais parou. O espetáculo de variedades nunca mais cessou.
Dentro da barraca, Fourmyle mudou de roupa, mudou de
idéia, mudou de novo, despiu-se de novo, chutou os criados e
chamou o alfaiate com um falso idioma francês, sofisticado e
afetado. Quando estava pondo a roupa nova, lem- brou-se de
que tinha se esquecido de tomar banho. Esbofeteou o alfaiate,
pediu que dez galões de perfume fossem despe ados na piscina e
de repente viu-se tomado pela inspiração poética. Mandou
chamar o poeta residente.
— Tome nota — ordenou Fourmyle. — Le roi est mort,
les... Espera! O que é que rima com lua?
— Rua — sugeriu o poeta. — Crua, grua, nua, sua, tua,
pua, falcatrua...
— Esqueci da minha experiência! — exclamou Fourmyle.
— Dr. Bohun! Dr. Bohun!
TIGER! TIGER! 125

Seminu, correu agitado para o laboratório, onde chocou-se


com o dr. Bohun, o químico residente, antes mesmo de entrar na
barraca. Enquanto o químico tentava levan- tar-se do chão, viu-
se vítima de uma dolorosa e embaraçosa gravata.
— Noguchi! — gritou Fourmyle. — Hai! Noguchi! Acabei
de inventar um novo golpe de judô!
Fourmyle se pôs de pé, ergueu o asfixiado químico e
jauntou até o tatame do judô, onde o pequeno japonês ins-
pecionou o golpe e balançou a cabeça.
— Não, por favor — chiou ele polidamente. — Chhhh.
Pressão na traquéia não é éter perpétuo. Chhhh. Deixe-me
mostrar, por favor. — Segurou o atordoado químico, girou-o e o
depositou sobre o tatame numa perpétua posição de auto-
estrangulamento. — Por favor, está observando, Fourmyle?
Mas Fourmyle estava na biblioteca batendo na cabeça do
bibliotecário com um volume do Das Sexual Leben, de Bloch
(de três quilos e novecentos gramas), porque o infeliz não
encontrava nenhum texto sobre a fabricação de máquinas de
moto-perpétuo. Precipitou-se para o laboratório de física, onde
destruiu um caríssimo cronômetro destinado ao experimento de
cremalheiras, jauntou para o coreto, onde segurou uma batuta e
enlouqueceu a banda, colocou patins e caiu dentro da piscina
perfumada, de onde foi retirado, xingando raivosamente pela
falta de gelo e expressando o desejo de ficar sozinho.
— Quero refletir na solidão — disse Fourmyle, chutando os
criados em todos os lados. Antes que o último deles claudicasse
até a porta e a fechasse atrás de si, ele estava roncando.
O ronco cessou e Foyle levantou-se.
— Isso basta para contê-los hoje — murmurou, e foi para o
camarim. Diante do espelho, respirou fundo e prendeu o ar,
enquanto olhava o rosto. Ao final de um minuto, o rosto
permanecia imaculado. Continuou a prender a respiração,
mantendo rígido controle sobre a pulsação e a musculatura,
dominando a tensão com uma calma férrea. Ao final de dois
minutos e vinte segundos, apareceram as marcas, vermelhas de
sangue. Foyle soltou a respiração. A máscara de tigre
desapareceu.
126 ALFRED BESTER

— Melhor — resmungou. — Muito melhor. O velho faquir


estava certo. A ioga é a solução. Controle. Pulsação, respiração,
entranhas, cérebro.
Despiu-se e examinou o corpo. Sua condição física era
magnífica, embora a pele ainda mostrasse delicadas cicatrizes
prateadas, formando uma rede que ia do pescoço aos tornozelos.
Como se tivessem gravado, na carne de Foyle, o desenho do
sistema nervoso. Eram cicatrizes de uma operação, e teimavam
em não desaparecer.
Para conseguir a operação, subornara por 200.000 créditos
o cirurgião-chefe da Brigada do Comando de Marte, que o
transformara numa extraordinária máquina de guerra. Cada
plexo de nervos recebera novas ramificações; transistores
microscópicos e transformadores foram implantados nos
músculos e nos ossos, uma minúscula tomada de platina inserí
da na base da espinha. Nesta Foyle encaixou uma unidade de
alimentação do tamanho de uma ervilha e a acionou. Seu corpo
deu origem a uma vibração eletrônica interna que era quase
mecânica.
— Mais máquina que homem — pensou ele.
Vestiu-se; trocou a roupa extravagante de Fourmyle de
Ceres pelo anônimo macacão preto apropriado para a ação.
Jauntou para o apartamento de Robin VVednesbury, no
isolado edifício entre os pinheiros do Wisconsin. Era ela a
verdadeira causa da vinda do Circo Four Mile a Green Bay.
Jauntou e, chegando num espaço vazio mergulhado nas trevas,
caiu imediatamente. “Meu Deus”, pensou, “jauntei errado?’’.
Feriu-se ao raspar na ponta quebrada de um caibro e desabou
pesadamente num pavimento destroçado, parando sobre os
restos putrefatos de um cadáver.
Pôs-se de pé numa súbita reação silenciosa. Comprimiu a
língua contra o primeiro molar superior da direita. A operação
que transformara metade de seu corpo numa máquina eletrônica
situara no dente o painel de controle. Foyle pressionou um dente
com a língua e as células periféricas da retina excitaram-se,
emitindo uma luz suave. Olhando para baixo, projetou dois
pálidos raios de luz sobre o cadáver de um homem.
O corpo jazia no apartamento que ficava embaixo do de
Robin Wednesbury. Estava estripado. Foyle olhou para
TIGER! TIGER! 127

cima. Sobre sua cabeça, um buraco de três metros indicava o


local que antes fora o assoalho da sala de estar de Robin. O
prédio inteiro exalava cheiro de fogo, fumaça e coisa podre.
— Saqueado — disse Foyle num sussurro. — Este lugar foi
saqueado. Que aconteceu?
A era da jauntação havia cristalizado vagabundos,
mendigos e andarilhos do mundo em uma nova classe. Ela
acompanhava a noite do leste ao oeste, sempre nas trevas,
sempre em busca de despojos, restos de desastres, carniça. Se
um terremoto destruía um armazém, eles o saqueavam na noite
seguinte. Se o fogo dava acesso a uma casa ou uma explosão
arrebentava as grades de proteção de uma loja, eles jauntavam e
faziam a limpeza. Denominavam-se zé- jauntadores. Eram
chacais.
Foyle subiu pelos escombros até o corredor do andar
superior. Os zé-jauntadores tinham feito um acampamento ali.
Assavam um bezerro inteiro numa fogueira que lançava faíscas
para o céu através de um buraco no telhado. Em volta da
fogueira reuniam-se uns doze homens e três mulheres,
desordeiros, perigosos, tagarelando na gíria rimada do dialeto
dos chacais. Usavam roupas desproporcionais e be- biam cerveja
de batata em copos de champanha.
Um ameaçador resmungo de raiva e terror soou à aparição
de Foyle, o homem gigantesco que, vestido de preto, caminhava
sobre os entulhos, os olhos atentos emitindo pálidos raios de luz.
Calmamente ele passou pelo bando que se erguia e dirigiu-se ao
apartamento de Robin Wednes- bury. O controle férreo, que ele
transforifiava em hábito, deu-lhe um ar de indiferença.
“Se ela estiver morta”, pensou ele, “estou liquidado.
Preciso dela. Mas se estiver morta...”
O interior do apartamento de Robin estava destruído, como
o resto do edifício. A sala de estar reduzira-se a uma forma oval
em torno do buraco denteado no centro. Foyle procurou o corpo.
No quarto, dois homens e uma mulher estavam deitados na
cama. Os homens praguejaram. A mulher emitiu um grito agudo
ao ver aquela aparição. Os homens arremessaram-se contra
Foyle. Ele recuou um passo e pressionou a língua contra os
incisivos superiores. Circuitos
128 ALFRED BESTER

neurais zuniram e cada sentido e reação de seu corpo ganhou


uma aceleração de fator cinco.
Como efeito, houve uma imediata redução do mundo
exterior a movimentos extremamente lentos. Os sons passaram
por uma profunda deturpação, o espectro de cores deu lugar ao
vermelho. Os dois agressores pareciam flutuar na direção dele
com uma languidez onírica. Para o resto do mundo, Foyle
tornou-se uma mancha ativa. Ele desviou-se do golpe que
avançava gradualmente sobre ele, colocou-se atrás do homem,
ergueu-o no ar e atirou-o para dentro da cratera da sala de estar.
Atirou o segundo homem. Para os sentidos acelerados de Foyle,
os corpos pareciam estar sendo carregados pelo ar com lentidão,
ainda no meio da trajetória, os punhos cerrados avançando, as
bocas abertas emitindo pesados sons coagulados.
Foyle avançou num zás para a mulher que se encolhia de
medo na cama.
— Tiamcrpaqui? — perguntou a imagem turva.
A mulher guinchou.
Foyle pressionou de novo os incisivos superiores, inter-
rompendo a aceleração. O mundo exterior despertou da lentidão
e voltou ao normal. Sons e cores irromperam no espectro, os
dois chacais desapareceram na cratera e espatifaram-se no
apartamento do andar inferior.
— Tinha um corpo aqui? — repetiu Foyle com paciência.
— Uma negra? — A mulher era ininteligível. Ele a puxou pelo
cabelo, sacudiu-a e em seguida a arremessou pela cratera da
sala.
Á busca de uma pista que o levasse ao destino de Ro- bin
foi perturbada pela turba no vestíbulo. Carregavam tochas e
armas improvisadas. Os chacais não eram matadores
profissionais. Assustavam apenas vítimas indefesas.
— Não me aborreçam — alertou Foyle calmamente,
inspecionando com atenção armários embutidos e móveis
virados.
Eles avançaram mais, incitados pelo celerado de casaco de
pele e chapéu de três bicos, e inspirados pelas im- precações que
vinham do andar inferior. O homem de chapéu jogou uma tocha
contra Foyle. Ela o queimou. Foyle acelerou mais uma vez e os
chacais se transformaram em estátuas vivas. Foyle pegou os
restos de uma cadeira e, sem
TIGER! TIGER! 129

perder a calma, golpeou as figuras que se movimentavam em


câmara lenta. Imobilizaram-se. Ele atirou no chão o homem com
chapéu de três bicos e ajoelhou-se sobre ele. Em seguida
desacelerou.
De novo o mundo exterior ganhava vida. Os chacais
tombaram ali mesmo onde estavam, abatidos. O homem de
chapéu e casaco de pele urrou.
— Tinha um corpo por aqui? — perguntou Foyle. — Uma
negra. Bem alta. Bem bonita.
O homem contorceu-se e tentou arrancar os olhos de Foyle.
— Vocês vivem atrás de corpos — disse Foyle suave-
mente. — Alguns de vocês gostam mais de garotas mortas do
que vivas. Viu o corpo dela aqui?
Não recebendo resposta satisfatória, pegou uma tocha e
ateou fogo no casaco de pele. Seguiu o chacal até a sala e o
observou com indiferença. O homem uivou, caiu sobre a borda
da cratera e despencou nas trevas ardendo em chamas.
— Tinha um corpo? — perguntou Foyle para baixo, sem se
exaltar. Balançou a cabeça ante a resposta. — Não é nada hábil
— murmurou. — Preciso dar um jeito de conseguir a
informação. Dagenham poderia me ensinar alguma coisinha.
Desligou o sistema eletrônico e jauntou.
Apareceu em Green Bay, com um cheiro tão horrível de
cabelo chamuscado e pele queimada que entrou na loja
Presteign local (jóias, perfumes, cosméticos, iônticos e aces-
sórios) para comprar um desodorante. Mas o sr. Presto local
havia, evidentemente, testemunhado a chegada do Circo Four
Mile e o reconheceu. Foyle logo despertou de sua des-
preocupada densidade e tornou-se o exótico Fourmyle de Ceres.
Fez palhaçadas e deu cambalhotas, comprou um frasco de Euge
n? 5, de doze onças, ao preço de 100 créditos a onça, aplicou-se
o perfume com leves pancadinhas e atirou o frasco na rua, para
deleite e edificação moral do sr. Presto.
O Secretário de Cadastro da Secretaria de Cadastro do
Condado, que ignorava a identidade de Foyle, era duro e
inflexível.
130 ALFRED BESTER

— Não, Senhor. Os Registros Do Condado Não Podem


Ser Vistos Sem Apropriada Autorização Da Corte Para Uma
Causa Suficiente. Esta É Minha Ültima Palavra.
Foyle o examinou com intensidade e sem rancor.
“Tipo astênico”, concluiu ele. “Magro, esguio, fraco.
Personalidade epileptóide. Egocêntrico, pedante, ingênuo,
néscio. Insubornável; recalcado e escrupuloso em demasia. Mas
o recalque é a fissura de sua couraça.’’
Uma hora depois, seis vivandeiras do Circo Four Mile
abordaram de surpresa o secretário. Tinham como dons a
persuasão feminina e uma extrema imoralidade. Duas horas
depois, atordoado pela carne e pelo demônio, ele entregou a
informação. O prédio de apartamentos havia sido aberto à
jauntação dos chacais por uma explosão de gás ocorrida duas
semanas antes. Todos os moradores viram- se obrigados a
mudar. Robin Wednesbury estava em prisão preventiva no
Hospital Misericórdia, próximo ao campo de provas de Iron
Mountain.
“Prisão preventiva?’’, perguntou-se Foyle. “Por quê? O
que ela fez?’’
Em trinta minutos organizou-se uma festa de Natal no
Circo Four Mile, integrada por músicos, cantores, atores e gente
da ralé que conheciam as coordenadas de Iron Mountain.
Liderados pelo chefe bufão, jauntaram com música, fogos de
artifício, aguardente e presentes. Desfilaram pela cidade
distribuindo presentes e risos. Entraram como que por acaso no
campo de radar do sistema de defesa do campo de provas e
saíram expulsos às gargalhadas. Fourmyle de Ceres — vestido
de Papai Noel, espalhando cédulas que tirava do enorme saco no
ombro e pulando de dor quando o campo de indução do sistema
de defesa lhe queimou o traseiro — fez um espetáculo
arrebatador. Irromperam todos no Hospital Misericórdia atrás do
Papai Noel, que gritava e saltitava com a despreocupada calma
de um solene elefante. Beijou as enfermeiras, empolgou os
plantonistas, encheu os pacientes de presentes, espalhou di-
nheiro pelos corredores e de repente desapareceu, exatamente
quando a alegre algazarra atingiu um ponto em que foi
necessário chamar a polícia. Mais tarde descobriu-se que uma
paciente também havia desaparecido, apesar de estar sob o
efeito de sedativos e impossibilitada de jaun-
TIGER! TIGER! 131

tar. Na verdade ela saíra do hospital dentro do saco do Papai


Noel.
Levando-a no ombro. Foyle jauntou para o terreno do
hospital. Ali, num pequeno bosque de pinheiros sob um céu
gélido, ajudou-a a sair do saco. Ela usava um austero pijama
branco do hospital e estava linda. Ele tirou a fantasia,
observando a garota atentamente, esperando que ela o reco-
nhecesse e se lembrasse dele.,
Ela estava alarmada e confusa; sua telemissão era como
relâmpago: "Meu Deus! Quem é ele? O que aconteceu? Chacais
de novo? Assassinato, desta vez? A música. A gritaria. Por que
raptada num saco? Bêbados tocando mal trombones. ‘Sim.
Virgínia, há um Papai Noel. ’ Adeste Fidelis. Lá se vão rojões.
Feu de joi ou feu d enfer? O que ele quer de mim? Quem é ele?".
— Sou Fourmyle de Ceres — disse Foyle.
— O quê? Quem? Fourmyle de...? Sim, claro. O bu- fão. O
bourgeois gentilhomme. Vulgaridade. Imbecilidade.
Obscenidade. O Circo Four Mile. Meu Deus! Estou tele-
mitindo? Você pode ouvir?
— Estou te ouvindo, srta. Wednesbury — disse Foyle
calmamente.
— O que você fez? Por quê? O que quer de mim? Eu...
— Quero que me olhe.
— Bonjour, Madame. Dentro do meu saco, Madame. Ecco!
Olhe para mim.
— Estou olhando — disse Robin, tentando controlar o
emaranhado de pensamentos. Ela levou o olhar até o rosto dele e
não o reconheceu. — E um rosto. Vi muitos como este. Os rostos
dos homens, ah meu Deus! Os traços masculinos. O cio de todos.
Deus nunca nos livrará dos desejos dos brutos?
— Minha época de cio já acabou, srta. Wednesbury.
— Lamento que tenha ouvido. Naturalmente estou
apavorada. Eu... Você me conhece?
— Eu te conheço.
— Nos vimos antes? — Examinou-o detidamente, mas sem
reconhecê-lo. No âmago de Foyle havia uma onda de triunfo. Se
aquela mulher, entre todas as mulheres, não
132 ALFRED BESTER

conseguisse se lembrar dele, ele estava salvo, desde que


mantivesse sob controle sangue, cérebro e rosto.
— Nunca nos vimos — disse ele. — Ouvi falar de você.
Quero uma coisa de você. Por isso estamos aqui. Para falar
sobre isso. Se não gostar da minha proposta, pode voltar para o
hospital.
— Quer uma coisa? Mas não tenho nada... nada, nada.
Nada me restou a não ser a vergonha e... Oh, meu Deus! Por
que o suicídio não deu certo? Por que não pude...
— Então é isso? — interrompeu Foyle suavemente. —
Tentou matar-se, não é? Daí a explosão de gás que arrombou o
edifício... E sua prisão preventiva. Tentativa de suicídio. Como
saiu da explosão sem se ferir?
— Tantos se feriram. Tantos morreram. Mas eu não. Acho
que não tenho sorte. Não tive sorte a vida inteira.
— Por que suicídio?
— Estou cansada. Arrasada. Perdi tudo... Estou na lista
negra do exército... suspeita, observada, fichada. Sem emprego.
Sem família. Não... Por que suicídio? Pelo amor de Deus, que
mais senão suicídio?
— Pode trabalhar para mim.
— Posso... O que foi que disse?
— Quero que trabalhe para mim, srta. Wednesbury.
Ela irrompeu num riso histérico.
— Para você? Outra vivandeira. Outra Prostituta da
Babilônia no Circo. Trabalhar para você, Fourmyle?
— Você tem sexo no cérebro — disse ele delicadamente.
— Não estou atrás de mulheres da vida. Elas me procuram, em
geral.
— Desculpe. Estou obcecada pelo bruto que me destruiu.
Eu... Eu tentarei ser sensata. — Robin acalmou-se. — Deixe-me
entendê-lo. Você me tirou do hospital para me oferecer trabalho.
Você ouviu falar de mim. Isso significa que quer algo especial.
A minha especialidade é telemissão.
— E charme.
— O quê?
— Quero comprar o seu charme, srta. Wednesbury.
— Não compreendo.
— Ora — disse Foyle com brandura. — Isso devia ser
simples para você. Sou o bufão. Sou a vulgaridade, a imbe
TIGER! TIGER! 133

cilidade, a obscenidade. Essa coisa tem de acabar. Quero que


seja minha secretária social.
— Espera que eu acredite nisso? Com seu dinheiro você
poderia contratar centenas... milhares de secretárias sociais.
Espera que eu acredite que sou a única para você? Que precisou
me seqüestrar da prisão preventiva para contar com meus
serviços?
Foyle fez que sim.
— Exatamente. Existem milhares, mas apenas uma que
pode telemitir.
— Que é que isso tem a ver?
— Você será a minha ventriloquista. Eu serei o seu boneco.
Não conheço as classes superiores. Você sim. Eles falam do jeito
deles, fazem as piadas deles, têm os comportamentos deles. Se
um homem quer ser aceito por eles, tem de falar a linguagem
deles. Eu não posso, mas você pode. Você poderá falar por mim,
através da minha boca...
— Você poderá aprender.
— Não, levaria muito tempo. E, depois, charme não se
aprende. Quero comprar o seu charme, srta. Wednes- bury.
Agora o salário. Eu lhe pagarei mil créditos por mês.
Ela arregalou os olhos.
— É muito generoso, Fourmyle.
— E limparei essa mancha do seu suicídio.
— Você é muito gentil.
— E garantirei que seu nome saia da lista negra do
exército. Quando tiver terminado de trabalhar para mim, seu
nome estará na lista branca. Você começará do zero e com uma
gratificação. Você começará a viver de novo.
Os lábios de Robin tremeram e ela começou a chorar.
Soluçou, estremeceu, e Foyle precisou tranqüilizá-la.
— Bom — perguntou ele —, aceita?
Ela fez que sim.
— Você é tão bom... É... Desacostumei com a bondade.
O efeito atordoante de uma explosão distante fez Foyle
empertigar-se.
— Droga! — exclamou, num pânico súbito. — Outro
jaunte cego. Eu...
— Não — fez Robin. — Não sei do que está falando, mas
ali é o campo de provas. Eles... — Olhou para o rosto
134 ALFRED BESTER

de Foyle e gritou. O inesperado choque da explosão e a vivida


cadeia de associações enfraqueceram seu controle férreo. As
cicatrizes da tatuagem vermelha de sangue surgiram sob sua
pele. Ela o fitou horrorizada, ainda gritando.
Ele tocou o rosto uma vez e então, avançando sobre ela,
silenciou-a. Retomou o autocontrole.
— Apareceu, não é? — murmurou ele com um sorriso
pálido. — Perdi o controle por um minuto. Pensei que tinha
voltado a Gouffre Martel, ouvindo um jaunte cego. Sim, sou
Foyle. O bruto que a destruiu. Você descobriria, cedo ou tarde,
mas a minha esperança era que fosse tarde. Sou Foyle, mais uma
vez de volta. Promete ficar calada e ouvir-me?
Ela acenou com a cabeça, excitada, procurando livrar- se
dele. Com uma calma natural, ele lhe deu um soco. Ro- bin
fraquejou. Foyle pegou-a e, depois de envolvê-la com seu
casaco, ergueu-a nos braços, esperando que voltasse à
consciência. Quando as pálpebras dela mexeram-se, ele tornou a
falar.
— Não se mova, senão se sentirá mal. Talvez eu não tenha
dado direito o soco.
— Bruto... Animal...
— Eu poderia ter feito isso pior — disse. — Eu podia te
chantagear. Sei que sua mãe e suas irmãs estão em Ca- listo, que
você está classificada como combatente estrangeira por
associação. Isso a coloca na lista negra, ipso facto. Certo? Ipso
facto. “Por isso mesmo.’’ Latim. Não pode confiar no hipno-
aprendizado. Devo« salientar que tudo o que tenho a fazer é
mandar uma informação anônima para a Central de Informações,
e você deixaria de ser suspeita para sempre. Eles obteriam
informações sobre você num espaço de doze horas...
Ele percebeu que ela estremeceu.
— Mas não vou fazer nada disso. Vou lhe dizer a verdade,
porque quero que seja minha parceira. Sua mãe está nos Planetas
Interiores. Ela está nos Planetas Interiores — repetiu. — Pode
estar na Terra.
— Salva? — sussurrou ela.
— Não sei.
— Ponha-me no chão.
— Você está gelada.
TIGER! TIGER! 135

— Ponha-me no chão.
Ele a obedeceu.
— Você me destruiu uma vez — disse ela com voz em-
bargada. — Está tentando me destruir de novo?
— Não. Quer escutar?
Ela fez que sim.
— Perdi-me no espaço. Fiquei morto, apodrecendo durante
seis meses. Apareceu uma nave que poderia ter me salvado. Ela
passou direto. Me deixou morrendo. Uma nave chamada Vorga.
Vorga-T: 1339. Isso faz algum sentido para você?
— Não.
— Jiz McQueen... Uma amiga minha, que está morta, uma
vez me disse para descobrir por que me deixaram apodrecendo.
Assim eu saberia quem deu a ordem. Então comecei a comprar
qualquer informação sobre a Vorga. Qualquer uma.
— O que isso tem a ver com a minha mãe?
— Escute. Era difícil comprar informação. Os registros da
Vorga foram retirados dos arquivos de Bo’ness e Uig. Consegui
localizar três nomes... três de uma tripula- ção-padrão de quatro
oficiais e doze homens. Ninguém sabia de nada ou ninguém
queria falar. Então encontrei isto. — Foyle tirou do bolso um
medalhão de prata e entregou-o a Robin. — Algum astronauta da
Vorga o penhorou. Foi tudo o que descobri.
Robin emitiu um grito e abriu o medalhão com dedos
trêmulos. Dentro havia a fotografia dela e a das duas outras
garotas. Quando o medalhão se abriu, as fotos tridimensionais
sorriram e sussurraram: “Lembranças de Robin, mamãe...
Lembranças de Holly, mamãe... Lembranças de Wendy,
mamãe...”.
— É da mamãe — chorou Robin. — Ele... Ela... Por
piedade, onde está ela? Que aconteceu?
— Não sei — disse Foyle com firmeza. — Mas posso
imaginar. Acho que sua mãe saiu daquele campo de con-
centração. .. de um jeito ou de outro.
— E minhas irmãs também. Ela jamais as abandonaria.
— Talvez suas irmãs também. Acho que a Vorga estava
transportando refugiados de Calisto. Sua família pa
136 ALFRED BESTER

gou com dinheiro e com jóias para entrar a bordo e ser levada
para os Planetas Interiores. Isso explica que algum astronauta da
Vorga pôs em penhora este medalhão.
— Mas então onde estão elas?
— Não sei. Talvez tenham sido deixadas em Marte ou
Vênus. Mais provavelmente foram vendidas num campo de
trabalhos forçados na Lua, daí não terem podido entrar em
contato com você. Não sei onde estão, mas a Vorga irá nos
dizer.
— Você está mentindo? Me enganando?
— Este medalhão é mentira? Estou te dizendo a verdade...
toda a verdade que sei. Quero descobrir por que me deixaram
morrendo, e por ordem de quem. O homem que deu a ordem
saberá onde estão sua mãe e suas irmãs. Ele lhe dirá... antes que
eu o mate. Ele terá muito tempo. Ele terá muito tempo de
agonia.
Robin olhou-o horrorizada. A paixão que o dominava
estava fazendo as marcas vermelhas aparecerem em seu rosto.
Ele se assemelhava a um tigre pronto para matar.
— Tenho uma fortuna para gastar... não importa como a
consegui. Tenho três meses para terminar esse trabalho. Aprendi
matemática o bastante para calcular as probabilidades. Três
meses são o tempo máximo para que percebam que Fourmyle de
Ceres é Gully Foyle. Noventa dias. Do Ano-Novo ao Primeiro
de Abril. Vai ficar do meu lado?
— Você?! — bradou Robin enojada. — Ficar do seu lado?
— Esse Circo Four Mile é apenas um disfarce. Ninguém
desconfia de um palhaço. Mas estive aprendendo, estudando, me
preparando para o desfecho. Agora só preciso de você.
— Por quê?
— Não sei até onde essa caçada irá me levar... à alta
sociedade ou à escória. Devo me preparar para os dois. Com a
escória posso lidar sozinho. Não me esqueci da sarjeta; mas
preciso de você para a sociedade. Não quer vir comigo?
— Você está me machucando. — Robin livrou o braço das
garras de Foyle.
— Desculpe. Perco o controle quando penso na Vor-
TIGER! TIGER! 137

ga. Então, vai me ajudar a descobrir a Vorga e a sua família?


— Eu te odeio — explodiu Robin. — Te desprezo. Você
está podre. Destrói tudo o que toca. Um dia te darei o troco.
— Mas vamos trabalhar juntos do Ano-Novo até o Pri-
meiro de Abril?
— Vamos trabalhar juntos.
9
véspera do Ano-Novo, Geoffrey Fourmyle de Ce-
res fez sua investida na sociedade. Apareceu primeiro em
Canberra, no baile da sede do governo, meia hora antes da meia-
noite. Tratava-se de um acontecimento altamente cerimonioso,
uma explosão de cores e de pompa, pois em formalidades como
esta a sociedade costumava usar os trajes a rigor em voga no ano
em que foram fundados os clãs ou patenteadas suas marcas.
Assim, os Morse (Telefones e Telégrafo) usavam sobre-
casacas do século XIX, e as mulheres, saias-balão. Os Skoda
(Pólvora e Armas) recuaram ao final do século XVIII, usando
malhas e crinolinas da Regência. Os audaciosos Peenemunde
(Foguetes e Reatores), datando dos anos de 1920, usavam
smoking, e as mulheres revelavam, desembaraçadamente,
pernas, braços e colos no décolletée das antigas túnicas Worth
and Mainbocher.
Fourmyle de Ceres vestia traje a rigor bastante moderno e
de um negro intenso, quebrando a monotonia apenas um broche
branco em forma de sol irradiante no ombro, marca registrada
do clã dos Ceres. Acompanhava-o Robin Wednesbury, que
vestia uma túnica branca cintilante, a cintura esguia moldada por
uma cinta, a anquinha da túnica acentuando as costas longas e
eretas e o caminhar elegante.
TIGER! TIGER! 139

O contraste entre o branco e o preto resultava tão im-


pressionante que se mandou um ordenança verificar a marca
registrada do broche no Almanaque de Nobiliários e Patentes.
Ele retornou trazendo a notícia de que se tratava da Companhia
de Mineração Ceres, organizada em 2250 para a exploração das
reservas minerais de Ceres, Paios e Vesta. As reservas nunca
foram encontradas, eclipsando-se assim, mas não se
extinguindo, a Casa de Ceres. Ao que parecia, naquele momento
ela começava a renascer.
— Fourmyle? O palhaço?
— Sim. O Circo Four Mile. Todo mundo só fala dele.
— Será o mesmo homem?
— Claro que não. Ele parece humano.
A sociedade cercava Fourmyle, curiosa mas cautelosa.
— Aí vêm eles — cochichou Foyle para Robin.
— Relaxe. Querem comunicar-se superficialmente.
Aceitarão qualquer coisa que seja divertida. Fique em sintonia.
— Você é Fourmyle, aquele horrendo homem do circo?
— Claro que é. Sorria.
— Sim, senhora. Pode tocar em mim.
— Ora, você realmente parece vaidoso. Orgulha-se de seu
mau gosto?
— O problema hoje em dia é ter algum gosto.
— O problema hoje em dia é ter algum gosto. Acho que
sou afortunado.
— Afortunado mas terrivelmente indecente.
— Indecente mas não estúpido.
— E horrendo mas maravilhoso. Por que não está dando
cambalhotas agora?
— Estou “sob influência’’, senhora.
— Oh, meu caro. Está embriagado? Sou Lady Shrap- nel.
Quando voltará a ficar sóbrio?
— Estou sob a sua influência, Lady Shrapnel.
— Você é um jovem perverso. Charles! Charles, venha
salvar Fourmyle. Eu o estou pondo a perder.
— Este é Victor de R. C. A. Victor.
— Fourmyle, é? Prazer. Quanto lhe custa aquela com-
panhia?
— Diga-lhe a verdade.
140 ALFRED BESTER

— Quarenta mil, Victor.


— Deus meu! Por semana?
— Por dia.
— Meu Deus! E por que diabo você gasta tanto dinheiro?
— A verdade!
— Para conseguir fama, Victor.
— Ha! Está falando sério?
— Eu lhe disse que ele era perverso, Charles.
— Muito interessante. Klaus! Venha cá um momento. Este
homem atrevido aqui está gastando quarenta mil por dia. Para
ganhar fama, se me permite.
— Skoda de Skoda.
— Boa noite, Fourmyle. Estou muito interessado neste
renascimento do nome. Será você, talvez, o filho mais moço
descendente dos fundadores da Ceres, Inc.?
— Conte-lhe a verdade.
— Não, Skoda, comprei o título. Comprei a companhia.
Sou novo-rico.
— Bom. Toujours audace!
— Muito bem, Fourmyle! Você é franco.
— Eu lhe disse que era atrevido. Muito interessante. Há
um bocado de novos-ricos por aí, meu jovem, mas não o
admitem. Elizabeth, venha conhecer Fourmyle de Ceres.
— Fourmyle! Estava doida para conhecê-lo!
— Lady Elizabeth Citroen.
— Ê verdade que viaja com uma universidade portátil?
— Seja superficial.
— Um colégio portátil, Lady Elizabeth.
— Mas por quê, Fourmyle?
— Oh, senhora, é tão difícil gastar dinheiro nos dias de
hoje. Temos que encontrar os mais tolos pretextos. Se ao menos
alguém inventasse uma nova extravagância.
— Deveria viajar com um inventor portátil, Fourmyle.
— Já tenho um. Não é mesmo, Robin? Mas ele consome o
tempo dele na pesquisa do moto-perpétuo. O que preciso de fato
é de um perdulário residente. Será que algum dos seus clãs não
poderia me emprestar um filho caçula?
TIGER! TIGER! 141

— Salve, por Deus! E muitos clãs pagariam pelo privilégio


do desencargo.
— E o perdulário do moto-perpétuo não lhe basta,
Fourmyle?
— Não. É uma escandalosa perda de tempo. A carac-
terística da extravagância é comportar-se cómo tolo, sentir- se
como tolo, mas desfrutá-la. Onde está o prazer do moto-
perpétuo? Há alguma extravagância na entropia? Milhões para o
contra-senso mas nenhum centavo para a entropia. Este é o meu
lema.
Riram, e enquanto isso a multidão em torno de Fourmyle ia
crescendo. Encantavam-se e divertiam-se. Ele era um novo
brinquedo. Então chegou a meia-noite e, quando o enorme
relógio assinalou o Ano-Novo, as pessoas prepararam-se para
jauntar com a meia-noite pelo mundo inteiro.
— Venha conosco para Java, Fourmyle. Regis Shef- field
estará dando uma maravilhosa festa oficial. Vamos tocar
“Sensato, o Juiz”.
— Hong Kong, Fourmyle.
— Tóquio, Fourmyle. Está chovendo em Hong Kong.
Venha para Tóquio e leve o seu circo.
— Obrigado, não. Vou para Xangai. O Duomo Soviético.
Prometo dar uma recompensa extravagante para o primeiro que
descobrir minha fantasia. Encontrarei vocês daqui a duas horas.
Pronta, Robin?
— Não jaunte. Falta de educação. Ande. Devagar. Langor
é chique. Cumprimentos ao governador... Ao comissário... Às
suas esposas... Bien. Não esqueça de dar gorjeta aos serviçais.
Não este, idiota! Este é o vice-gover- nador. Muito bem, você
teve sorte. Foi aceito. E agora?
— Agora o que nos trouxe a Canberra.
— Pensei que tínhamos vindo para o baile.
— Para o baile e para o homem chamado Forrest.
— Quem é ele?
— Ben Forrest, astronauta da Vorga. Tenho três meios de
chegar ao homem que ordenou que me deixassem morrer. Três
nomes. Um cozinheiro em Roma chamado Poggi; um charlatão
em Xangai chamado Orei; e este homem, Forrest. Esta é uma
operação dupla... sociedade e busca. Compreende?
142 ALFRED BESTER

— Compreendo.
— Dispomos de duas horas para abrir a boca de For- rest.
Conhece as coordenadas da Enlatados Australianos? A cidade
empresarial?
— Não quero participar da sua vingança da Vorga. Estou
procurando minha família.
— Esta é uma operação combinada... abrangente — disse
ele, com uma ferocidade tão espontânea que ela estremeceu e
jauntou imediatamente.
Quando Foyle chegou à barraca do Circo Four Mile, em
Jervis Beach, ela já estava vestindo a roupa de viagem. Foyle a
olhou. Embora a tivesse obrigado a morar na sua barraca por
motivos de segurança, não tornou a tocá-la. Robin apreendeu o
olhar dele, parou de se vestir e aguardou.
— Está tudo acabado — falou ele, balançando a cabeça.
— Mas que interessante! Desistiu do estupro?
— Vista-se — ordenou, controlando-se. — Avise o pessoal
que eles têm duas horas para levar o acampamento para Xangai.
À meia-noite e meia Foyle e Robin chegaram no escritório
principal da Enlatados Australianos. Pediram crachás de
identificação e foram recebidos pelo próprio prefeito.
— Feliz Ano-Novo — cantou ele com alegria. — Feliz!
Feliz! Feliz! Visitando? É um prazer levá-los para passear.
Permitam-me. — Conduziu-os até o interior de um helicóptero e
decolou. — Muitos visitantes hoje. Nossa cidade é hospitaleira.
A cidade empresarial mais hospitaleira do mundo. — O
helicóptero circundou edifícios gigantescos. — Ali é o nosso
palácio de gelo... Banhos de piscina à esquerda... A enorme
cúpula ali é a nossa plataforma de esqui. Neva o ano inteiro...
Jardins tropicais dentro daquela estufa de vidro. Palmeiras,
papagaios, orquídeas, frutos. Ali é o nosso mercado... cinema...
temos a nossa própria rádio, também. 3D-5S. Olhem só o
estádio de futebol. Dois dos nossos rapazes jogaram em todas as
regiões dos Estados Unidos este ano. Turner no Right Rockne e
Kowalsky no Left Heffilfinger.
— Não me diga — murmurou Foyle.
TIGER! TIGER! 143

— Pois é, temos tudo. Tudo. Não é preciso jauntar pelo


mundo atrás de diversão. A Enlatados Australianos traz o
mundo até você. Nossa cidade é um pequeno universo. O
pequeno universo mais feliz do mundo.
— Pelo que vejo, está com problemas de mão-de-obra.
O prefeito recusou-se a interromper o papo de vendedor.
— Olhem as ruas lá embaixo. Estão vendo aquelas bi-
cicletas? Motocicletas? Carros? Oferecemos mais transportes
luxuosos per capita do que qualquer outra cidade da Terra.
Olhem aquelas casas. Mansões. Nosso povo é rico e feliz. Nós
os mantemos ricos e felizes.
— Mas vocês os mantêm?
— O que quer dizer com isso? Claro que nós...
— Pode nos dizer a verdade. Não somos candidatos a
emprego. Vocês os mantêm?
— Droga, não conseguimos mantê-los por mais de seis
meses — gemeu o prefeito. — É uma tremenda dor de cabeça,
Mac. Nós lhes damos de tudo, mas não conseguimos segurá-los
aqui. Dá-lhes vontade de viajar e jauntam. O absenteísmo reduz
nossa produção em doze por cento. Não conseguimos conservar
estável a mão-de-obra.
— Ninguém consegue.
— Mas devia ter uma lei. Forrest, você disse? Ê ali.
Ele os deixou diante de um chalé suíço incrustado no
centro de um acre de jardim e decolou, falando sozinho. Foyle e
Robin pararam à porta da casa, esperando que o monitor os
recebesse e os anunciasse. Em vez disso, a porta irradiou uma
luz vermelha e apareceu uma caveira com ossos cruzados. Uma
voz enlatada falou: “AVISO. ESTA RESIDÊNCIA DISPÕE DE
ARMADILHAS CONTRA HOMENS PRODUZIDAS PELA
COMPANHIA DE DEFESA LETAL DA SUÉCIA. R: 77-23.
VOCÊ FOI LEGALMENTE NOTIFICADO’’.
— Mas o que é isso! — resmungou Foyle. — Na noite do
Ano-Novo? Sujeitinho legal, hein? Vamos tentar os fundos.
Contornaram o chalé, perseguidos pela caveira com ossos
cruzados que acendia a intervalos e pela advertência enlatada.
De um lado, viram o topo de uma janela de porão
144 ALFRED BESTER

brilhantemente iluminada e ouviram vozes abafadas cantando:


“O Senhor é meu pastor, não hei de querer...”.
— Cristãos subterrâneos! — exclamou Foyle. Ele e Robin
espiaram pela janela. Trinta devotos de variadas fés
comemoravam o Ano-Novo com um culto misto e altamente
ilegal. O século XXIV ainda não havia abolido Deus, mas havia
abolido a religião organizada.
— Não admira que a casa tenha armadilhas contra homens
— comentou Foyle. — Práticas sórdidas como esta! Veja, há
um padre e um rabino, e aquilo atrás deles é um crucifixo.
— Você já parou alguma vez para pensar no que significa
uma imprecação? — perguntou Robin calmamente. — Você
diz, “Jesus”, “Jesus Cristo”, e sabe o que é isso?
— Simples imprecação, nada mais. Como “Ai” ou “Puxa”.
— Não, é religião. Você não sabe, mas existem dois mil
anos de significado por detrás de palavras como essas.
— Agora não é hora de falar bobagens — disse Foyle
impacientemente. — Deixe para depois. Venha.
Os fundos do chalé eram uma sólida parede de vidro, uma
janela panorâmica de uma sala vazia e mal-iluminada.
— Abaixe-se — ordenou Foyle. — Vou entrar.
Robin deitou-se com o rosto para baixo no pátio de
mármore. Foyle acionou o corpo, acelerou-o até tornar-se um
borrão de luz e abriu um buraco na parede de vidro. Muito
longe, no espectro sonoro, ouviu concussões surdas. Eram
disparos. Rápidos projéteis passavam por ele. Foyle atirou-se ao
chão e regulou os ouvidos, mudando da baixa velocidade para a
supersônica, até enfim captar o zumbido do mecanismo de
controle das armadilhas. Girou a cabeça de leve, localizou com
precisão a instalação pelo binaural D/F, serpenteou pelo fluxo
de projéteis e destruiu o mecanismo. Desacelerou.
— Depressa, venha!
Robin juntou-se a ele na sala, trêmula. Os cristãos sub-
terrâneos derramavam-se em alguma parte dentro da casa,
emitindo sons de mártires.
— Espere aqui — resmungou Foyle. Acelerou, turvou pela
casa toda, localizou os cristãos subterrâneos em posi
TIGER! TIGER! 145

ções de voo congeladas e os examinou um a um. Voltou para


junto de Robin e desacelerou.
— Nenhum deles é Forrest — informou. — Talvez esteja
lá em cima. Pelos fundos, enquanto eles saem pela frente.
Vamos!
Precipitaram-se escada acima. No patamar, detive- ram-se
para se orientar.
— Tem que ser rápido — murmurou Foyle. — Entre os
disparos e o tumulto religioso, o mundo e a mulher dele
jauntarão por aqui fazendo perguntas... — Interrompeu- se. Um
vagido baixo veio por uma porta em frente à escada. Foyle
farejou. — Análogo! — exclamou. — Deve ser Forrest. Que tal,
hein? Religião no porão e droga no andar superior.
— Do que é que você está falando?
— Explico depois. Vamos. Só espero que a droga ainda
não tenha batido como gorila.
Foyle entrou pela porta como um trator a diesel. Estavam
num enorme quarto vazio. Uma pesada corda pendia do teto.
Um homem nu estava enroscado na corda em pleno ar. Ele se
contorcia de um lado e de outro, emitindo um gemido e um odor
almiscarado.
— Píton — disse Foyle. — É violenta. Não chegue perto
dele. Se tocar nele ele lhe quebrará os ossos.
No andar de baixo vozes chamaram:
— Forrest! O que foram aqueles disparos? Feliz Ano-
Novo, Forrest! Mas onde é a festa?
— Aí vêm eles — grunhiu Forrest. — Tenho de jaun- tá-lo
daqui. Encontro você na praia. Vá!
Sacou uma faca do bolso, cortou a corda, jogou sobre as
costas o homem que gemia e jauntou. Robin chegou à praia
deserta de Jervis um pouco antes dele. Foyle chegou com o
homem enroscando-se em seu pescoço e ombros como uma
píton, comprimindo-o num apavorante abraço. As marcas
vermelhas de repente surgiram no rosto de Foyle.
— Sinbad — disse ele com a voz estrangulada. — Velho
homem do Mar. Depressa, garota! Bolsos direitos. Três em
cima. Dois embaixo. Ferrão-ampola. Aplique em qualq... — Sua
voz extinguiu-se.
Robin abriu um bolso, encontrou um pacote de ampo- las
de vidro e as pegou. Cada ampola tinha um ferrão na
146 ALFRED BESTER

extremidade. Ela introduziu o ferrão de uma ampola no pescoço


do homem que se contorcia. Ele desmaiou. Foyle livrou-se dele
e pôs-se de pé.
— Cristo! — resmungou, massageando o pescoço.
Respirou fundo. — Sangue e entranhas. Controle — disse,
recuperando o ar de calma despreocupada. A tatuagem vermelha
desapareceu do rosto.
— Por que todo aquele pavor? — perguntou Robin.
— Análogo. Entorpecente psiquiátrico para psicóticos.
Ilegal. Uma convulsão de algum modo o libertará; o devolverá
ao normal. Ele se identifica com uma determinada espécie de
animal... gorila, urso, touro, lobo... Ele toma a droga e
transforma-se no animal que gosta. Forrest estava obcecado por
cobras, ao que parece.
— Como sabe tudo isso?
— Te disse que andei estudando... me preparando para a
Vorga. Esta é uma das coisas que aprendi. Te mostro outra coisa
que aprendi, se não estiver com medo. Como provocar espasmo
com um Análogo.
Foyle abriu outro bolso do macacão de guerra e começou a
lidar com Forrest. Robin observou durante alguns instantes e
então soltou um grito de horror; virou-se e caminhou em direção
ao mar. Ali ficou, contemplando cegamente a espuma das ondas
e as estrelas, até que cessaram os gemidos e os espasmos, e
Foyle a chamou.
— Pode vir, agora.
Robin voltou e encontrou uma criatura exausta sentada na
areia, fitando Foyle fixamente com olhos baços e sóbrios.
— É Forrest?
— Quem é você?
— Você é Ben Forrest, primeiro astronauta. Em tempos
passados a serviço na Vorga de Presteign.
Tomado de terror, Forrest gritou.
— Esteve a bordo da Vorga no dia 16 de setembro de
2336.
O homem soluçou e balançou a cabeça.
— No dia 16 de setembro você passou pelos destroços de
uma nave. Próximo do cinturão de asteróides. Destroços da
Nomad, sua nave irmã. Ela transmitiu sinais de so
TIGER! TIGER! 147

corro. Mas Vorga passou por ela. Deixou-a à deriva até a morte.
Por que Vorga não parou?
Forrest começou a gritar histericamente.
— Quem deu ordem para a Vorga prosseguir?
— Jesus! Não! Não! Não!
— Nos arquivos de Bo’ness e Uig não existem registros.
Alguém se apossou deles antes de mim. Quem foi? Quem estava
a bordo da Vorga? Quem navegava com você? Quero o nome de
oficiais e de tripulantes. Quem estava no comando?
— Não! — gritou Forrest. — Não!
Foyle estendeu um maço de cédulas e o segurou diante do
rosto do homem histérico.
— Pagarei pelas suas informações. Cinqüenta mil. Análogo
para o resto da sua vida. Quem deu ordem para me deixarem
morrer, Forrest? Quem?
Com um golpe o homem derrubou as cédulas da mão de
Foyle, levantou-se e correu pela praia. Foyle o agarrou junto à
rebentação das ondas. Forrest caiu de cabeça para baixo, a cara
mergulhada na água. Foyle o manteve ali.
— Quem comandava a Vorga, Forrest? Quem deu a
ordem?
— Você o está afogando! — gritou Robin.
— Deixe-o sofrer um pouco. Âgua é mais suportável que
vácuo. Sofri durante seis meses. Quem deu a ordem, Forrest?
O homem borbulhava, engasgado. Foyle tirou o rosto dele
da água.
— Que pensa que é? Leal? Louco? Apavorado? Gente da
tua laia se vendería por cinco mil. Estou oferecendo cinqüenta.
Cinqüenta mil por uma informação, seu filho da puta, ou
morrerá devagar e penosamente. — A tatuagem apareceu no
rosto de Fourmyle. Forçou a cabeça de Forrest contra a água e
assim manteve o homem que se debatia. Robin tentou libertá-lo.
— Está matando ele!
Foyle voltou o rosto aterrador para Robin.
— Tira as mãos de mim, sua cadela! Quem estava a bordo
com você, Forrest? Quem lhe deu a ordem? Por quê?
Forrest torceu o rosto, tirando-o da água.
148 ALFRED BESTER

— Doze de nós na Vorga — urrou. — Cristo me salve! Eu


e Kemp...
Contraiu-se espasmodicamente e caiu de lado. Foyle tirou
seu corpo da água.
— Vá em frente. Você e quem? Kemp? Quem mais? Fala!
Não houve resposta. Foyle examinou o corpo.
— Morreu — rosnou.
— Oh, meu Deus! Meu Deus!
— Uma pista que foi pro inferno. Justo quando estava se
abrindo. Maldita droga. — Respirou fundo e acalmou- se, como
se se cobrisse com um manto de ferro. A tatuagem desapareceu
do rosto. Ele ajustou o relógio para 120 graus de longitude leste.
— Quase meia-noite em Xangai. Vamos. Talvez tenhamos mais
sorte com Sergei Orei, o ajudante do farmacêutico da Vorga.
Não fique tão assustada. Foi apenas um assassinato. Vamos,
garota. Jaunte!
Robin engoliu em seco. Ele percebeu que ela olhava para
além do seu ombro com uma expressão de incredulidade. Foyle
virou-se. Um corpo em chamas surgia na praia, um homem
enorme com roupas que ardiam e um rosto horrivelmente
tatuado. Era ele mesmo.
— Meu Deus! — exclamou Foyle. Avançou um passo em
direção da imagem flamejante, mas ela desapareceu
abruptamente. Voltou-se para Robin, trêmulo, com uma ccr
acinzentada. — Viu aquilo?
— Sim.
— O que era?
— Você.
— Deus do céu! Eu? Como é possível? Como...
— Era você.
— Mas... — gaguejou, sem a força e a possessão furiosa.
— Era ilusão? Alucinação?
— Não sei. Também vi.
— Deus todo-poderoso! Ver a si mesmo... cara a cara... As
roupas pegavam fogo. Viu aquilo? O que, em nome de Deus, era
aquilo?
— Era Gully Foyle — disse Robin — ardendo no inferno.
— Está bem — explodiu Foyle raivosamente. — Era eu no
inferno, mas ainda vou até o fim. Se ardo no inferno,
TIGER! TIGER! 149

a Vorga arderá comigo. — Juntou as mãos, estimulando-se a


retomar a força e a determinação. — Ainda vou até o fim, juro!
Xangai é a próxima parada. Jaunte!
10
No baile à fantasia em Xangai, Fourmyle de Ceres
eletrizou a sociedade ao aparecer como a Morte, do quadro A
morte e a donzela, de Dürer, ao lado de uma criatura
deslumbrante vestida com véus transparentes. Para uma
sociedade vitoriana — que ocultava as mulheres com cortinados
e que considerava excessivamente audaciosas as túnicas dos
anos de 1920 adotadas pelo clã dos Peenemunde — foi um
choque. Mas, quando Fourmyle revelou que aquela mulher era
uma magnífica andróide, logo as opiniões tornaram-se
favoráveis. A sociedade encantou-se com o engodo. O corpo nu,
vergonhoso nos seres humanos, era somente uma curiosidade
assexuada nos andróides.
 meia-noite, Fourmyle pôs a andróide em leilão para os
cavalheiros presentes no baile.
— O dinheiro será destinado à caridade, Fourmyle?
— Claro que não. Você conhece meu lema: nenhum
centavo para a entropia. Cem créditos por esta dispendiosa e
graciosa criatura, foi o que ouvi? Cem, cavalheiros? Ela é de
uma beleza pura e altamente adaptável. Duzentos? Obrigado.
Trezentos e cinqüenta? Obrigado. Façam os lances...
Quinhentos? Oitocentos? Obrigado. Mais algum lance para este
admirável produto do gênio residente do Circo Four Mile? Ela
anda. Ela conversa. Ela se adapta. Foi condicionada para
responder ao arrematador que fizer o lance mais alto.
Novecentos? Estou ouvindo mais
TIGER! TIGER! 151

algum lance? Ninguém mais? Esgotaram-se os lances? Vendida,


por novecentos créditos, para Lord Yale.
Aplausos tumultuados e cálculos espantosos:
— Deus do céu! Uma andróide como esta deve ter custado
noventa mil! Como pode ele dar-se ao luxo?
— Queira entregar o dinheiro à andróide, Lord Yale. Ela
reagirá adequadamente. Senhoras e senhores, nos veremos de
novo em Roma... No Palácio Borghese, à meia- noite. Feliz
Ano-Novo.
Fourmyle já havia partido quando Lord Yale descobriu,
para seu próprio prazer e o de outros solteiros, que um duplo
logro fora praticado. A andróide era, na verdade, uma criatura
viva e humana, de uma beleza pura e altamente adaptável. Ela
reagiu muito bem p.os novecentos créditos. A brincadeira
transformou-se no assunto do ano no salão de fumar. Os homens
não podiam esperar pelo momento de cumprimentar Fourmyle.
Mas Foyle e Robin Wednesbury estavam passando sob um
anúncio que dizia em sete idiomas: DUPLIQUE SUA
JAUNTAÇÃO OU DUPLIQUE SEU DINHEIRO DE VOLTA;
e entrando no empório do DR. SERGEI OREL, AMPLIADOR
CELESTIAL DA CAPACIDADE CRANIANA.
A sala de espera era decorada com sinistros diagramas de
cérebros, mostrando como o dr. Orei colocava cata- plasma,
aplicava ventosa e bálsamo, eletrolisava o cérebro de modo a
duplicar sua capacidade ou duplicar seu dinheiro de volta.
Também duplicava a memória com purga- tivos antifebris,
elevava a moral com tônicos fortificantes e regulava todas as
psiques angustiadas com o Vulnerário Epulótico de Orei.
A sala de espera estava vazia. Foyle abriu uma porta ao
acaso. Ele e Robin viram uma longa ala de hospital. Foyle
rosnou desgostoso.
— Clandestino. Eu devia ter imaginado que ele dirigia uma
espelunca para viciados em narcóticos.
A espelunca servia de instrumento aos Colecionadores de
Doenças, os viciados neuróticos mais incorrigíveis. Pros- tavam-
se nos leitos e sofrian; a indução ilegal de para-sa- rampo, para-
gripe e para-malária; atendidos com devoção
152 ALFRED BESTER

por enfermeiras de uniformes brancos engomados, desfrutavam


avidamente da doença ilegal e da atenção recebida.
— Olhe só para eles — falou Foyle com desprezo. — Ê
repugnante. Se existe uma coisa mais asquerosa que a religião-
droga, é a doença-culto.
— Boa noite — disse uma voz atrás deles.
Foyle fechou a porta e voltou-se. O dr. Sergei Orei curvou-
se. O bom médico parecia firme e asséptico com o clássico
gorro branco, o avental e a máscara cirúrgica dos clãs dos
médicos, aos quais ele pertencia apenas por reivindicação
fraudulenta. Era baixo, moreno e de olhos azeitonados,
reconhecivelmente russo somente pelo nome. Mais de um século
de jauntação havia misturado de tal modo as populações do
mundo que os tipos raciais estavam desaparecendo.
— Não esperava que você estivesse trabalhando na véspera
do Ano-Novo — disse Foyle.
— O nosso Ano-Novo russo é daqui a duas semanas —
respondeu o dr. Orei. — Por aqui, por favor. — Ele indicou uma
porta e desapareceu com um “pop”. A porta dava para um longo
lanço de escada. Quando Foyle e Robin começaram a subir, o
dr. Orei apareceu no alto. — Por aqui, por favor. Oh... um
momento. — Desapareceu e reapareceu atrás deles. — Vocês
esqueceram de fechar a porta. — Fechou a porta e tornou a
jauntar. Desta vez reapareceu no patamar da escada. — Aqui,
por favor.
— Exibindo-se — murmurou Foyle. — Duplique sua
jauntação ou duplique seu dinheiro de volta. Mesmo assim, ele é
bastante rápido. Precisarei ser mais rápido ainda.
Entraram no consultório. Era uma cobertura com telhado
de vidro. As paredes estavam forradas de aparelhos médicos
reluzentes, mas antiquados: uma banheira medicinal sedativa,
uma cadeira elétrica destinada ao tratamento de choque para
esquizofrênicos, um analisador de eletrocar- diograma para
investigar padrões psicóticos, antigos microscópios ópticos e
eletrônicos.
O charlatão os esperou atrás da escrivaninha. Jauntou até a
porta, fechou-a, jauntou de volta para a escrivaninha, curvou-se,
indicou as cadeiras, jauntou para trás de Robin e estendeu-lhe a
cadeira, jauntou para a janela e ajustou a
TIGER! TIGER! 153

persiana, jauntou para os interruptores e ajustou a intensidade


das luzes, e então reapareceu atrás da escrivaninha.
— Há um ano eu era incapaz de jauntar — disse ele
sorrindo. — Descobri então o segredo, o Abstergente Salu-
tífero, que...
Foyle encostou a língua no painel de controle instalado nas
terminações nervosas de seu dente. Acelerou. Levantou-se sem
pressa, caminhou em direção à figura em câmara lenta atrás da
escrivaninha, com seu “bluuooo-fuaa- lardee-vaaa-gaar”, reuniu
uma poderosa energia e cientificamente golpeou a fronte de
Orei, abalando os lóbulos frontais e obstruindo o centro de
jauntação. Ergueu o charlatão e, sentando-o na cadeira elétrica,
prendeu-o com as correias. Tudo isso em aproximadamente
cinco segundos. Para Robin Wednesbury, ele era um borrão em
movimento.
Foyle desacelerou. O charlatão abriu os olhos, mexeu- se,
descobriu onde estava e ficou irado e perplexo.
— Você é Sergei Orei, o ajudante de farmácia da Vorga —
disse Foyle calmamente. — Estava a bordo da Vorga no dia 16
de setembro de 2336.
A ira e a perplexidade transformaram-se em pânico.
— No dia 16 de setembro você passou por uma nave
destroçada. Perto do cinturão de asteróides. Eram os destroços
da Nomad. Ela transmitiu sinais de socorro, mas a Vorga passou
direto. Você a deixou vagando e morrendo. Por quê?
Orei girou os olhos mas não respondeu.
— Quem deu ordem para passar direto por mim? Quem
estava querendo que eu apodrecesse e morresse?
Orei começou a tagarelar desarticuladamente.
— Quem estava a bordo da Vorga? Quem embarcou com
você? Quem estava no comando? Vou arrancar uma resposta.
Não pense que não — disse Foyle com calma ferocidade. — Eu
a comprarei ou a arrancarei de você. Por que me deixaram
morrendo? Quem te mandou me deixar morrendo?
Orei gritou.
. — Não posso falar sobre isso... Espera, eu con...
Desfaleceu.
Foyle examinou o corpo.
154 ALFRED BESTER

— Morreu — resmungou. — Justo quando ia falar. Como


Forrest.
— Assassinado.
— Não. Eu não o toquei. Foi suicídio. — Foyle gargalhou
sem prazer.
— Você está louco.
— Não, estou me divertindo. Não os matei; forcei-os a se
matarem.
— Mas que absurdo é esse?
— Deram Bloqueios Simpáticos para ele. Sabe o que são
os B.S., garota? O serviço secreto os usa nos agentes de
espionagem. Pegue um determinado corpo de informações que
você não queira ver divulgadas. Ligue-o ao sistema nervoso
simpático que controla automaticamente a respiração e as
pulsações. Assim que o sujeito tenta revelar aquelas
informações, o bloqueio ocorre, o coração e os pulmões param
de funcionar, o homem morre, o segredo é mantido. Um agente
não precisa se preocupar em suicidar-se para evitar a tortura;
fazem isso por ele.
— Fizeram isso com estes homens?
— Sem dúvida.
— Mas por quê?
— Como posso saber? Fuga de refugiados não é a resposta.
A Vorga deve ter se metido em operações ilegais piores do que
essa para tomar tanta precaução. Mas estamos com um
problema. Nosso último homem é Poggi, em Roma. Ângelo
Poggi, auxiliar do cozinheiro-chefe da Vorga. Como vamos
obter a informação sem... — interrompeu-se.
Sua imagem surgiu diante dele, silenciosa, agourenta, o
rosto vermelho-sangue ardendo, as roupas em chamas.
Foyle ficou paralisado. Respirou fundo e disse com a voz
trêmulà:
— Quem é você? O que você...
A imagem desapareceu.
Foyle voltou-se para Robin, umedecendo os lábios.
— Você viu? — A expressão dela foi a resposta. — Era
real?
Ela apontou para a escrivaninha de Sergei Orei, ao lado da
qual estivera a aparição. Os papéis sobre a mesa haviam se
inflamado e crepitavam nas chamas. Foyle re
TIGER! TIGER! 155

cuou, ainda aterrorizado e perplexo. Levou a mão ao rosto.


Estava molhado de suor.
Robin correu até a escrivaninha e tentou apagar o fogo. Em
vão abafou maços de papéis e cartas. Foyle permaneceu imóvel.
— Não consigo apagar — arfou ela finalmente. — Te-
.mos de sair daqui.
Foyle fez que sim com a cabeça, e então, reunindo energia
e disposição, recompôs-se.
— Roma — grasnou. — Vamos jauntar para Roma. Deve
ter alguma explicação para isso. E vou descobri-la, por Deus! E
antes disso não vou desistir. Roma. Vá, garota! Jaunte!
***

Desde a Idade Média a Escadaria da Espanha era o centro


da corrupção em Roma. Começando na Piazza di Spagna e
estendendo-se até os jardins de Villa Borghese, numa longa e
ampla curva, a Escadaria da Espanha é, foi e sempre será o local
da efervescência da imoralidade. Ca- fetões vadiam nos degraus,
prostitutas, degenerados, lésbicas, viados. Atrevidos e arrogantes,
exibem-se e mexem com pessoas respeitáveis que por ali às
vezes passam.
A Escadaria da Espanha foi destruída pelas guerras
atômicas do final do século XX. Foi reconstruída e de novo
destruída na guerra da Restauração do Mundo no século XXL
Mais uma vez foi reconstruída, mas então protegida com uma
cobertura de cristal à prova de impacto, trans- formando-se numa
Galeria. A cúpula da Galeria obstruía a visão da câmara de morte
da casa de Keats. Nunca mais os visitantes poderiam espiar pela
estreita janela e ter o último vislumbre dos olhos do poeta
agonizante. Agora viam a enegrecida cúpula da Escadaria da
Espanha e, através dela, as distorcidas figuras de Sodoma e
Gomorra lá embaixo.
A Galeria da Escadaria era iluminada à noite, e na véspera
do Ano-Novo estava caótica. Havia mil anos Roma saudava o
Ano-Novo com um bombardeio... bombinhas, rojões, torpedos,
tiros, garrafas, sapatos, velhos vasos e panelas. Os romanos
guardavam lixo durante meses para atirá-lo das janelas dos
últimos andares dos prédios quando
156 ALFRED BESTER

soava a meia-noite. O crepitar das fogueiras no interior


Escadaria e o estrondo dos entulhos chocando-se contra o teto
da Galeria eram ensurdecedores quando Foyle e Robin
Wednesbury voltavam do carnaval no Palácio Borghese.
Ainda trajavam fantasias; Foyle com gibão e malhas justas
de um vermelho e preto fortes, como César Borgia, e Robin com
a túnica prateada de Lucrécia Borgia. Usavam grotescas
máscaras de veludo. O contraste entre suas roupas renascentistas
e as modernas das pessoas à volta provocou vaias e zombarias.
Até mesmo os Lobos que freqüen- tavam a Escadaria da
Espanha, os desventurados criminosos comuns que tiveram
queimado um quarto de cérebro por lobotomia pré-frontal,
receberam estímulo para abandonar a melancólica apatia e
observar. A ralé fervilhou em volta do casal à medida que este
descia pela Galeria.
— Poggi — chamou tranqüilamente Foyle. — Ângelo
Poggi?
Uma prostituta urrou, esconjurando-o.
— Poggi? Ângelo Poggi? — Foyle continuou indiferente.
— Soube que a gente pode encontrá-lo à noite na Escadaria.
Ângelo Poggi?
Uma prostituta xingou sua mãe.
— Ângelo Poggi? Dez créditos para quem o trouxer até
mim.
Foyle foi tocado por mãos estendidas, algumas imundas,
algumas perfumadas, todas ávidas. Ele balançou a cabeça.
— Primeiro o homem.
A ira romana estalou à sua volta.
— Poggi? Ângelo Poggi?
Depois de seis semanas de perda de tempo na Escadaria da
Espanha, o capitão Peter Y’ang-Yeovil afinal ouviu as palavras
que esperava ouvir. Seis semanas de tediosas suposições sobre a
identidade de um certo Ângelo Poggi, auxiliar de cozinha da
Vorga, havia muito morto, finalmente traziam resultados. Fora
uma tentativa arriscada, principalmente porque a Central de
Informações comunicou ao capitão Y’ang-Yeovil que alguém
estava fazendo cautelosas investigações sobre a tripulação da
Vorga de Presteign, e pagando alto por informação.
— É um risco — dissera Y’ang-Yeovil —, mas Gully
TIGER! TIGER! 157

Foyle, AS-128/127:006, de fato fez aquela tentativa louca de


explodir a Vorga. E nove quilos de PyrE justificam o risco.
Agora bamboleava-se escada acima em direção ao homem
de máscara e fantasia renascentista. Engordara vinte quilos
aplicando-se doses glandulares. Escurecera a pele com
manipulações dietéticas. Seus traços, que não eram de tipo
oriental, mas mais próximas das feições aquilinas dos antigos
índios americanos, ganharam uma duvidosa configuração, com
um mínimo de controle muscular.
O homem da Central de Informações bamboleava-se pela
Escadaria da Espanha acima, um corpulento cozinheiro com
uma expressão de gatuno. Estendeu um pacote de envelopes
encardidos para Foyle.
— Fotos obscenas, signore? Cristãos subterrâneos
ajoelhando-se, rezando, cantando salmos, beijando a cruz?
Muito picante. Muito indecente, signore. Diverte seus amigos...
Excita as senhoras.
— Não — disse Foyle, afastando as fotos pornográficas. —
Estou procurando Ângelo Poggi.
Y’ang-Yeovil fez sinais microscópicos. Seu grupo na
escada começou a fotografar e a gravar a entrevista sem in-
terromper a cafetinagem e a prostituição. O Idioma da So-
ciedade Secreta das Forças Armadas dos Planetas Interiores
agitava-se em torno de Foyle e de Robin com uma enxurrada de
tiques, fungadelas, gestos, poses, movimentos. Era a antiga
linguagem gestual chinesa de pálpebras, pestanas, pontas de
dedos e movimentos corporais ínfimos.
— Signore? — arquejou Y’ang-Yeovil.
— Ângelo Poggi?
— Si, signore. Sou Ângelo Poggi.
— O auxiliar de cozinha da Vorga? — Esperando o mesmo
estremecimento de terror manifestado por Forrest e por Orei,
que ele afinal compreendeu, Foyle esticou uma mão e agarrou o
cotovelo de Y’ang-Yeovil.
— Sim?
— Si, signore. — respondeu Y’ang-Yeovil com tran-
qüilidade. — Como servir vossa reverência?
— Talvez com este dê certo. — sussurrou Foyle para
Robin. — Não está com medo. Talvez saiba como evitar o
bloqueio.
158 ALFRED BESTER

— Quero algumas informações de você, Poggi. Compro


todas as que tiver. Qualquer uma. Faça seu preço.
— Mas, signoreX Sou um homem que viveu muitos anos e
muitas experiências. Não me vendo por atacado. Quero receber
item por item. Faça sua seleção e eu farei meu preço. O que
quer?
— Estava a bordo da Vorga no dia 16 de setembro de
2336?
— O preço deste item é dez créditos.
Foyle sorriu sem perder a seriedade e pagou.
— Estava, signore.
— Quero saber sobre uma nave pela qual vocês passaram,
perto do cinturão de asteróides. Os destroços da Nomad. Vocês
passaram por ela no dia 16 de setembro. A Nomad transmitiu
sinais de socorro, mas a Vorga não parou. Quem deu a ordem?
— Ah, signoreX
— Quem deu a ordem, e por quê?
— Por que pergunta, signore?
— Não importa por que pergunto. Faça o preço e fale.
— Preciso saber por que faz a pergunta antes de eu
responder, signore. — Y’ang-Yeovil sorriu sebosamente. — E
pagarei pela minha precaução reduzindo o preço. Por que está
interessado na Vorga e neste chocante abandono da Nomad no
espaço? Será o senhor, talvez, o desventurado que foi tão
cruelmente tratado?
— Ele não é italiano! O sotaque é perfeito, mas os padrões
de fala estão errados. Nenhum italiano construiría frases como
essas.
Foyle enrijeceu o corpo, alertado. Os olhos de Y’ang-
Yeovil, aguçados para detectar minúcias e a partir delas fazer
deduções, perceberam a mudança de postura. Compreendeu de
imediato que, de algum modo, cometera um erro. Sinalizou para
seus homens com urgência.
Um excitado alvoroço explodiu na Escadaria da Espanha.
Num instante, Foyle e Robin foram cercados por uma turba que
gritava e se debatia. Os homens da Central da Sociedade Secreta
eram ex-mestres desta estratégia OP-I, destinada a sobrepujar
em astúcia o mundo da jaun- tação. O ritmo de uma fração de
segundo era capaz de perturbar qualquer homem e desnudá-lo
para a identificação.
TIGER! TIGER! 159

O sucesso desta equipe baseava-se no simples fato de que, entre


um ataque de surpresa e a reação de defesa, sempre havia uma
demora no reconhecimento. Dentro do espaço dessa demora, a
Central da Sociedade Secreta conseguia impedir qualquer
homem de proteger-se.
Em três quintos de um segundo Foyle foi dominado,
obrigado a cair de joelhos, golpeado na testa, atirado contra os
degraus e açoitado, de braços e pernas estendidos. Arrancaram-
lhe a máscara do rosto, rasgaram-lhe partes da roupa, e ele se viu
imobilizado e indefeso ante a invasão das câmaras de
identificação. Mas então, pela primeira vez na história da
Sociedade Secreta, a operação foi interrompida.
Surgiu um homem, a cavalo sobre o corpo de Foyle... Um
homem gigantesco com um rosto horrivelmente tatuado e roupas
que fumegavam e se incendiavam. A aparição era tão
estarrecedora que os homense se imobilizaram e se puseram a
observar. A multidão na Escadaria emitiu um grito ao ver aquele
espetáculo assustador.
— A tocha humana! Olhem! A tocha humana!
— Mas este aí é Foyle! — murmurou Y’ang-Yeovil.
Durante cerca de um quarto de minuto ali ficou a aparição,
silenciosa, queimando-se olhando com olhos cegos. Em seguida
desapareceu. O homem estirado no chão também desapareceu.
Transformou-se num borrão de luz em ação que passou
rapidamente em meio à multidão, localizando e destruindo
câmaras, gravadores, toda a aparelhagem de identificação. Então
uma mancha agarrou a garota de túnica renascentista e
esvaneceu.
A Escadaria da Espanha voltou à vida, penosamente, como
se se esforçasse para despertar de um pesadelo. Os perplexos
homens da Central juntaram-se à volta de Y’ang- Yeovil.
— O que, em nome de Deus, era aquilo, Yeo?
— Acho que era o nosso homem. Gully Foyle. Vocês
viram o rosto tatuado.
— As roupas que queimavam! Deus Todo-Poderoso!
— Parecia uma bruxa na fogueira!
— Mas se aquela tocha humana era Foyle, com quem então
a gente estava perdendo tempo?
160 ALFRED BESTER

— Não sei. Será que a Brigada do Comando tem um


serviço secreto e esqueceu de comunicar a gente?
— Por que os Comandos, Yeo?
— Vocês viram como aquele relâmpago acelerou, não
viram? Destruiu todos os nossos registros.
— Ainda não posso acreditar no que meus olhos viram.
— Ora, vocês podem acreditar naquilo que não viram.
Aquilo foi uma técnica ultra-secreta do Comando. Eles es-
colhem seus homens, trocam as instalações elétricas e os
reequipam. Vou ter que checar com o Q.G. de Marte para
descobrir se a Brigada do Comando está fazendo uma in-
vestigação paralela.
— O exército informa a marinha de guerra?
— Informa a Central — disse irado Y’ang-Yeovil. — Este
caso já está bastante crítico sem dispustas jurisdi- cionais. E
outra coisa: não havia necessidade de envolver aquela garota na
operação. Foi indisciplinado e desnecessário. — Y’ang-Yeovil
fez uma pausa, pela primeira vez alheio aos olhares
significativos à sua volta. — Tenho de descobrir quem é ela —
acrescentou, devaneando.
— Se ela também foi reequipada, vai ser bem interessante,
Yeo — comentou uma voz branda, claramente isenta de
comprometimento. — Homem Enfrenta Comando.
Y’ang-Yeovil enrubesceu.
— Muito bem — falou abruptamente. — Sou transparente.
— Pura rotina, Yeo. Todos os seus casos amorosos
começam da mesma forma. “Não é preciso envolver aquela
garota...’’ E daí Dolly Quaker, Jean Webster, Gwynn Ro- get,
Marion...
— Sem nomes, por favor! — interrompeu uma voz
abalada. — Romeu informa Julieta?
— Vocês todos serão escalados para lavar o banheiro
amanhã — disse Y’ang-Yeovil. — Macacos me mordam se vou
tolerar esta insubordinação desavergonhada. Não, amanhã não;
mas logo que esse caso estiver resolvido. — Seu rosto aquilino
se fechou. — Meu Deus, que confusão! Vocês algum dia irão se
esquecer de Foyle ali de pé, ardendo como um tição? Mas onde
está ele? O que ele pretende? O que significa tudo isso?
11
Ak Mansão de Presteign, no Central Park, estava toda
iluminada para o Ano-Novo. Graciosas e antigas lâmpadas
pontiagudas e de filamentos em ziguezague difundiam luz
amarela. O labirinto à prova de jaunte fora retirado e a grande
porta foi aberta para a ocasião especial. Colocada logo após a
entrada, uma tela adornada com jóias protegia o interior da casa
dos olhares da multidão que se amontoava do lado de fora.
Excursionistas cochichavam e exclamavam cada vez que
algum clã famoso ou quase famoso chegava de carro, de coche,
de liteira, de todas as formas de transporte luxuoso. Presteign de
Presteign em pessoa estava diante da porta, cinzento-escuro,
elegante, sorrindo com seu sorriso de basilisco, para receber a
sociedade na casa aberta a todos os amigos. Mal uma
celebridade atravessava o umbral da porta e desaparecia atrás da
tela, outra, ainda mais famosa, chegava ruidosamente num
veículo ainda mais espantoso.
Os Cola chegaram num carro de banda de música. A
família Esso (seis filhos, três filhas) surgiram majestosos num
Ônibus Greyhound com teto de vidro. Mas o ônibus chegou a
custo sobre quatro rodas (numa baratinha Edison Electric),
provocando muitos risos e piadinhas à porta da casa. Mas
quando os Edison de Westinghouse desceram de sua charrete
movida a gasolina Esso, comple
162 ALFRED BESTER

tando o círculo, os risos nos degraus transformaram-se num


estrondo de gargalhadas.
Exatamente no momento em que a multidão de convidados
preparava-se para entrar na casa de Presteign, suas atenções
foram atraídas por um tumulto distante. Era um ribombo, um
violento trepidar de punções pneumáticas e um escandaloso
rugido metálico. Aproximava-se rapidamente. Lá fora, o grupo
de excursionistas abriu um amplo caminho. Um pesado
caminhão estrondeou pela passagem. Seis homens tiravam vigas
da traseira do caminhão e as deitavam na terra. Em seguida, um
grupo de vinte homens enfileirou metodicamente as vigas.
Presteign e os convidados observavam estupefatos. Uma
gigantesca máquina, rugindo e vibrando, arrastou-se sobre os
dormentes. Logo atrás dela, depositaram trilhos de aço soldado.
Homens com martelo e perfuradores pneumáticos grampearam
os trilhos aos dormentes. A via férrea estendeu-se até a porta da
casa de Presteign, primeiro num arco majestoso, depois numa
curva que se diluía. A ruidosa máquina e as equipes de
trabalhadores desapareceram na escuridão.
— Deus do céu! — ouviram Presteign exclamar niti-
damente. Convidados afluíam para fora da casa para observar.
Um apito estridente soou a distância. Pela via férrea veio
um homem cavalgando um cavalo branco, carregando uma
enorme bandeira vermelha. Atrás dele arquejava uma
locomotiva a vapor, puxando apenas um vagão de passageiros
com janelas panorâmicas. O trem parou em frente à porta de
Presteign. Um chefe de trem saltou do vagão seguido por um
cabineiro. O cabineiro preparou a escadinha. Uma senhora e um
cavalheiro de traje a rigor desceram.
— Não demoraremos — disse o cavalheiro ao chefe de
:rem. — Venha buscar-nos daqui a uma hora.
— Deus do céu! — exclamou Presteign mais uma vez.
O trem partiu lançando jatos de fumaça. O casal subiu a
escadaria.
— Boa-noite, Presteign — disse o cavalheiro. — Lamento
muito que o cavalo tenha estragado seu gramado, mas a velha
franquia de Nova Iorque ainda insiste em que se use a bandeira
vermelha à frente dos trens.
TIGER! TIGER! 163

— Fourmyle! — bradaram os convidados.


— Fourmyle de Ceres! — saudaram os excursionistas.
Agora a festa de Presteign era sucesso garantido.
No interior do salão de recepção, amplo e luxuosamente
decorado com veludo, Presteign examinou Fourmyle cheio de
curiosidade. Foyle sustentou com serenidade o olhar penetrante
e cinzento-escuro de Presteign, ao mesmo tempo que, sorrindo,
cumprimentava com a cabeça os entusiásticos admiradores que
conquistara de Camberra a Nova Iorque.
— Controle — pensou. — Sangue, entranhas e cérebro.
Ele me torturou em seu escritório durante uma hora depois
daquele meu louco atentado contra a Vorga. Irá me
reconhecer? Seu rosto me é familiar, Presteign — disse
Fourmyle. — Já nos vimos antes?
— Não tive a honra de conhecer um Fourmyle até esta
noite —respondeu Presteign ambiguamente. Foyle treinara para
ler os homens, mas o rosto duro e simpático de Presteign era
inescrutável. Colocados face a face, um neutro e constrangido, o
outro reservado e indômito, olhavam-se como duas estátuas de
bronze incandescentes na iminência da liquefação.
— Segundo consta, Fourmyle, você se orgulha de ser um
novo-rico.
— Sim. Adotei como modelo o primeiro Presteign.
— É mesmo?
— Você deve se lembrar de que.ele se vangloriava de ter
começado a fortuna da família no mercado negro do plasma,
durante a Terceira Guerra Mundial.
— Foi durante a Segunda Guerra, Fourmyle. Mas os
hipócritas de nosso clã nunca o reconhecem. Na época o nome
era Payne.
— Não sabia disso.
— E qual era o seu nome infeliz antes de mudá-lo para
Fourmyle.
— Presteign.
— Ê mesmo? — O sorriso de basilisco denunciou que o
alvo fora atingindo. — Reivindica uma relação com o nosso clã?
— Eu a reivindicarei no momento certo.
— E em que grau de parentesco?
164 ALFRED BESTER

— Digamos... sangüíneo.
— Mas que interessante. Percebo que tem um certo
fascínio por sangue, Fourmyle.
— Sem dúvida uma fraqueza de família, Presteign.
— Agrada-lhe ser cínico — disse Presteign, não sem uma
dose de cinismo —, mas você fala a verdade. Sempre tivemos
uma fraqueza fatal por sangue e dinheiro. Ê o nosso defeito.
Admito.
— E partilho dele.
— Uma paixão por sangue e dinheiro?
— De fato, sim. Apaixonadamente.
— Sem piedade, sem perdão, sem hipocrisia?
— Sem piedade, sem perdão, sem hipocrisia.
— Fourmyle, você é um jovem bem ao meu gosto. Se não
reivindicar uma relação de parentesco com o nosso clã, serei
obrigado a adotá-lo.
— Chegou tarde demais, Presteign. Eu já o adotei.
Presteign pegou Fourmyle pelo braço.
— Precisa conhecer minha filha, Lady Olivia. Permi- te-
me?
Atravessaram o salão de recepção. A vitória irrompeu
dentro de Foyle: Ele não Sabe. Nunca saberá. Mas então veio a
dúvida: Mas eu nunca saberei se ele sabe. E um crisol de aço.
Podería me ensinar algumas coisas sobre controle.
Pessoas conhecidas cumprimentaram Foyle.
— Foi um belo truque o que você preparou em Xangai.
— Maravilhoso o carnaval de Roma, não? Ouviu falar
sobre o homem incandescente que apareceu na Escadaria de
Espanha?
— Procuramos você em Londres.
— Foi divina a sua chegada — disse Harry Sherwin-
Williams. — Superou a nós todos, pelo amor de Deus! Reduziu-
nos a um bando de mesquinhos.
— Está esquecendo de si mesmo, Harry — disse Presteign
friamente. — Você sabe que não admito obscenidade na minha
casa.
— Desculpe, Presteign. Onde está o circo neste momento,
Fourmyle?
— Não sei — respondeu Foyle. — Espere um pouco.
Um grupo aproximou-se, rindo antecipadamente da mais
recente extravagância de Fourmyle. Ele pegou um re
TIGER! TIGER! 165

lógio de platina e o abriu. O rosto de um criado pessoal surgiu


no mostrador.
— Ahhh... sei lá como você se chama... Onde estamos
exatamente agora?
A resposta foi breve e metálica.
— O senhor Fourmyle deu ordens para fazer de Nova
Iorque sua residência permanente.
— Oh, dei? E?
— Compramos a catedral de São Patrício, Fourmyle.
— E onde fica?
— A velha São Patrício, Fourmyle. Na Quinta Avenida
com a antiga rua 50. Armamos acampamento no interior.
— Obrigado. — Fourmyle fechou o Caçador de platina. —
Meu endereço é a velha São Patrício, de Nova Iorque. Tenho
uma coisa a dizer em favor das religiões banidas... Pelo menos
construíram igrejas grandes suficiente para abrigar um circo.
Olivia Presteign estava sentada num trono, cercada de
admiradores. Uma Donzela de Neve, uma Princesa de Gelo de
olhos e lábios corais, arrogante, inatingível, bela. Foyle olhou-a
uma vez e baixou os olhos, perturbado com seu olhar cego capaz
de ver apenas ondas eletromagnéticas e luz infravermelha. Seu
coração começou a bater descom- passadamente.
“Não seja tolo!", pensou desesperado. “Controle-se. Isso
pode ser perigoso..."
Foi apresentado; uma voz argêntea e seca lhe falou; uma
mão esguia e fria estendeu-se para ele; mas, ao tocar a sua, a
mão pareceu explodir num choque elétrico. Era como que o
começo de um mútuo reconhecimento.
“De quê? Ela é um símbolo. A Princesa dos Sonhos... A
Inatingível... Controle!"
Debatia-se consigo mesmo de tal forma que mal percebeu
que fora dispensado, graciosa e indiferentemente. Não conseguia
acreditar nisso. Ali ficou, de boca aberta como um palerma.
— Quê! Ainda está aqui, Fourmyle?
— Não posso acreditar que tenha sido dispensado, Lady
Olivia.
166 ALFRED BESTER

— Mais ou menos isso, mas receio que você se comporta


como meus amigos.
— Não estou acostumado a ser dispensado. (Não. Não.
Estou completamente errado!) Pelo menos por uma pessoa de
quem eu gostaria de ser amigo.
— Não seja chato, Fourmyle. Desça.
— Ofendi-a de alguma maneira?
— Ofender-me? Agora está sendo ridículo.
— Lady Olivia... (Cristo! Será que não consigo dizer nada
certo? Onde está Robin?) Por favor, começamos de novo, sim?
— Se está tentando ser desajeitado, Fourmyle, está
conseguindo de forma admirável.
— Dê-me sua mão de novo, por favor. Obrigado. Sou
Fourmyle de Ceres.
— Muito bem. — Ela riu. — Admito que é um palhaço.
Agora desça. Estou certa de que encontrará alguém paia divertir.
— O que aconteceu desta vez?
— O senhor realmente está querendo me deixar irritada?
— Não. (Sim, estou. Estou querendo tocá-la de algum
jeito... atravessar o gelo.) Nosso primeiro aperto de mão foi...
forte. Agora não é nada. Que aconteceu?
— Fourmyle — disse Olivia com enfado —, admito que
seja divertido, original, espirituoso, fascinante... qualquer coisa,
desde que se vá.
Desceu perplexo o estrado. “Vaca. Vaca. Vaca. Não. Ela é
o sonho tal como a sonhei. O pináculo a ser alcançado e
tomado tempestuosamente. Sitiá-la... invadi-la.., arrebatá-la...
subjugá-la de joelhos... ”
Deparou-se com Saul Dagenham.
Ficou paralisado, reprimindo sangue e entranhas.
— Ah, Fourmyle — disse Presteign. — Este é Saul
Dagenham. Ele tem apenas trinta minutos para nós e insiste em
passar um deles com você.
— Ele sabe? Terá chamado Dagenham para confirmar?
Ataque. Toujours audace. O que houve com o seu rosto,
Dagenham? — perguntou com desinteressada curiosidade.
A cabeça da morte sorriu.
TIGER! TIGER! 167

— E eu achava que eu era famoso. Contaminação radiativa.


Sou quente. Foi-se o tempo em que diziam: “Mais quente que
um revólver’’. Hoje dizem: “Mais quente que Dagenham”. —
Os olhos implacáveis devassaram Foyle. — O que é que há por
detrás daquele seu circo?
— Uma paixão pela fama.
— Eu mesmo sou um especialista em disfarce. Reconheço
sinais. Qual é o seu crime?
— Dillinger informa Capone? — Foyle respondeu sor-
rindo, começando a relaxar, refreando sua vitória. — Desafiei os
dois. Você me parece mais feliz, Dagenham. — Logo percebeu
que cometera um deslize.
Dagenham compreendeu num instante.
— Mais feliz do que quando? Onde nos vimos antes?
— Não mais feliz do que quando... Mais feliz do que eu. —
Foyle dirigiu-se a Presteign. — Apaixonei-me perdi- damente
por Lady Olivia.
— Saul, sua meia hora terminou.
Dagenham e Presteign, ladeando Foyle, viraram-se. Uma
mulher alta aproximava-se, imponente com sua túnica
esmeralda, o cabelo ruivo reluzente. Era Jisbella McQueen. Os
olhares deles se encontraram. Antes que o impacto formigasse
seu rosto, Foyle virou-se, caminhou apressado até a primeira
porta que viu, abriu-a e disparou por ela.
A porta bateu atrás dele. Ele estava num pequeno e escuro
corredor. Houve um clique, uma pausa, e então uma voz
enlatada falou cortesmente: “Você invadiu uma seção particular
desta residência. Por favor, retire-se’’.
Foyle engoliu em seco e lutou contra si mesmo.
“Você invadiu uma seção particular desta residência. Por
favor, retire-se.’’
“Não sabia... Pensei que a tinham matado no espaço... Ela
me reconheceu... ”
“Você invadiu uma seção particular desta residência. Por
favor, retire-se.”
“É o meu fim... Ela nunca me perdoará... Deve estar
contando para Dagenham e Presteign neste momento. ”
A porta do salão de recepção abriu-se e, por um ins- tane,
Foyle pensou ter visto sua imagem incandescente. Então
percebeu que estava olhando para o cabelo flame
168 ALFRED BESTER

jante de Jisbella. Ela não esboçou nenhum movimento, ficando


ali parada, sorrindo para ele com um furioso sentimento de
vitória. Ele empertigou-se.
“Por Deus, não vou choramingar.”
Sem apressar-se, Foyle desceu o corredor, pegou o braço
de Jisbella e reconduziu-a até o salão de recepção. Em nenhum
momento se preocupou em olhar para os lados, à procura de
Dagenham ou de Presteign. Eles estariam presentes, com tropas
e armas, na hora certa. Sorriu para Jisbella; ela respondeu com
outro sorriso, ainda de vitória.
— Obrigado por ter dado no pé, Gully. Nunca imaginei
que pudesse ser tão satisfatório.
— Dar no pé? Minha querida Jiz!
— Então?
— Nem sei dizer como você está bonita esta noite. Foi um
longo caminho de Gouffre Martel até aqui, não foi? — Foyle
dirigiu-se para o salão de baile. — Dança?
Os olhos dela arregalaram-se de surpresa ante a serenidade
dele. Consentiu que ele a acompanhasse até o salão e a tomasse
nos braços.
— A propósito, Jiz, como conseguiu sair de Gouffre
Martel?
— Dagenham deu um jeito. Então agora você dança,
Gully?
— Danço, falo mal e porcamente quatro idiomas, estudo
ciência e filosofia, escrevo uma deplorável poesia, me arrebento
com experimentos idiotas, me defendo como palhaço, luto boxe
como um bufão... Em resumo, sou o famoso Fourmyle de Ceres.
— Não mais Gully Foyle.
— Só para você, minha querida, e para quem mais você
contou.
— Só para Dagenham. Está chateado por que deixei
escapar?
— Tanto quanto eu, não podería ter evitado.
— Não, não podería. Seu nome simplesmente saltou da
minha boca. Quanto me pagaria para eu manter a boca fechada?
— Não seja tola, Jiz. Este incidente lhe renderá cerca de
17.980.(XX) créditos.
— Como assim?
TIGER! TIGER! 169

— Eu disse que lhe daria o que sobrasse depois de acabar


com a Vorga.
— Acabou com a Vorga? — perguntou ela, surpresa.
— Não, minha querida, você acabou comigo. Mas manterei
minha promessa.
Ela riu.
— O generoso Gully Foyle. Seja de fato generoso, Gully.
Corra para consegui-lo. Divirta-me um pouco.
— Guinchando como um rato? Não sei como, Jiz. Fui
treinado para caçar, nada mais.
— E eu matei o tigre. Dê-me uma satisfação, Gully. Diga
que esteve bem perto da Vorga. Acabei com você quando estava
a um passo do fim. Certo?
— Antes pudesse, Jiz, mas não posso. Estou em parte
alguma. Estava tentando apanhar um outro líder esta noite, aqui.
— Pobre Gully. Acho que posso te ajudar a sair desta
enrascada. Posso dizer... Oh... que cometi um engano... ou que
fiz uma piada... que você na realidade não é Gully Foyle. Sei
como confundir Saul. Posso fazer isso, Gully... se você ainda me
ama.
Ele a fitou e balançou a cabeça.
— Nunca houve amor entre nós, Jiz. Você sabe disso. Sou
muito limitado para ser outra coisa além de caçador.
— Muito limitado para ser outra coisa além de idiota!
— Jiz, o que quis dizer... “Dagenham deu um jeito de tirar
você de Gouffre Martel”, “Você sabe como confundir Saul
Dagenham’’? O que teve de fazer com ele?
— Trabalho para ele. Sou um de seus mensageiros.
— Está dizendo que ele a chantageia? Ameaça mandá-la de
volta senão...
— Não. A gente se deu bem de cara. Ele começou me
capturando; eu terminei capturando-o.
— Mas de que modo?
— Não adivinha?
Ele olhou-a fixamente. Os olhos dela estavam opacos, mas
ele compreendeu.
— Jiz! Com ele?
— Sim.
— Mas como? Ele...
170 ALFRED BESTER

— Existem precauções. É... Não quero falar sobre isso,


Gully.
— Desculpe. Ele já deve estar voltando.
— Voltando?
— Dagenham. Com o exército dele.
— Oh, sim, claro. — Jisbella riu de novo, em seguida falou
num tom de voz grave e furioso: — Você não sabe em que
corda-bamba andou, Gully. Se tivesse me implorado, subornado
ou tentando iniciar um namoro comigo... Por Deus, eu o teria
arruinado. Teria contado ao mundo quem você é... Aos gritos,
do alto da casa.
— De que está falando?
— Saul não está voltando. Ele não sabe. Pode ir para o
inferno sozinho.
— Não acredito em você.
— Acha que demoraria tanto assim para ele te pegar? Saul
Dagenham?
— Mas por que não lhe contou? Depois do jeito que fugi
de você...
— Porque não quero que ele vá para o inferno com você.
Não estou falando sobre a Vorga. Refiro-me a outra coisa, PyrE.
Por isso caçavam você. Estavam era atrás disso. Nove quilos de
PyrE.
— O que é isso?
— Quando você abriu aquele cofre não havia uma pequena
caixa dentro dele? Feita de Isômero Interchumbo?
— Sim.
— O que havia dentro da caixa?
— Vinte lingotes que pareciam cristais de iodo com-
primido.
— O que fez com os lingotes?
— Submeti dois deles a análise. Ninguém descobriu o que
eram. Estou tentando analisar um terceiro no meu laboratório...
quando não estou divertindo o público.
— Oh, está, está mesmo? Por quê?
— Estou crescendo, Jiz — disse Foyle delicadamente. —
Não demorou muito para eu perceber que Presteign e Dagenham
estavam atrás daquilo.
— Onde guarda o resto dos lingotes?
— Num lugar seguro.
TIGER! TIGER! 171

— Não estão seguros lá. Nunca estarão seguros. Não sei o


que é o PyrE, mas sei que é o caminho para o inferno, e não
quero que Dagenham siga por este caminho.
— Ama-o tanto assim?
— Eu o respeito assim. É o primeiro homem que me deu
uma desculpa para os critérios morais dos machistas.
— Jiz, o que é PyrE? Você sabe.
— Imaginei. Fui juntando as dicas que ouvi. Tenho uma
idéia. E poderia lhe dizer, Gully, mas não vou. — Era luminosa
a fúria estampada em seu rosto. — Desta vez vou te abandonar.
Vou deixá-lo perdido nas trevas. Veja como é, meu rapaz!
Aproveite!
Ela livrou-se dele e saiu precipitadamente do salão. Neste
momento, caíram as primeiras bombas.
Vinham como enxames de meteoro; não muitos, mas muito
mais fatais. Vinham no quadrante da manhã, aquela quarta parte
do globo mergulhada nas trevas, da meia-noite ao alvorecer.
Chocavam-se com a face anterior da Terra em sua revolução em
torno do Sol. Percorreram uma distância de 643 milhões de
quilômetros.
À sua excessiva velocidade contrapunha-se a rapidez dos
computadores de defesa na Terra, que num espaço de
microssegundos rastreavam e interceptavam esses presentes de
Ano-Novo enviados dos Satélites Exteriores. Em grande
número, ferozes estrelas novas furavam o céu e esvaneciam;
eram bombas detectadas e detonadas 800 quilômetros acima dos
alvos.
Mas era tão estreita a margem entre a velocidade da defesa
e a velocidade do ataque que muitas delas continuavam em seu
avanço. Atravessavam o nível da aurora, o nível de meteoro, o
limite do crepúsculo, a estratosfera, e atingiam a Terra. As
trajetórias invisíveis terminavam em convulsões titânicas.
A primeira explosão atômica que destruiu Newark sacudiu
a mansão de Presteign com um inacreditável tremor. Pisos e
paredes estremeceram e os convidados tombaram em pilhas
junto com móveis e objetos de decoração. Um tremor seguia
outro, enquanto a chuva errática caía em torno de Nova Iorque.
Eram ensurdecedores, entorpecedores, desesperadores. Os sons,
os impactos, os clarões de luz sinistra no horizonte eram tão
gigantescos que a razão esca
172 ALFRED BESTER

pava à humanidade, nada restando senão espoliados animais que


guinchavam, acovardavam e fugiam. Num espaço de cinco
segundos, a elegância da festa de Ano-Novo de Presteign
transformou-se em anarquia.
Foyle ergueu-se do chão. Olhou para os corpos que se
debatiam no piso do salão de baile, viu Jisbella esforçando- se
para libertar-se, avançou em passo na direção dela e então se
deteve. Girou a cabeça repetidas vezes, atordoado, sentindo que
não fazia parte de seu corpo. Os estrondos não cessavam.
Avistou Robin Wednesbury no salão de recepção, cambaleante
e machucada. Avançou um passo na direção dela e de novo se
deteve. Sabia aonde devia ir.
Acelerou. Os estrondos e os clarões reduziram-se no
espectro a rangidos e bruxuleios. Os tremores converteram- se
em ondulações escorregadias. Foyle deslizou como um borrão
pela enorme casa, buscando-a, até que afinal a encontrou no
jardim, equilibrando-se nas pontas dos pés sobre um banco de
mármore, uma estátua de mármore para seus sentidos
acelerados... o estado de exaltação.
Desacelerou. As sensações retornaram ao espectro e de
novo foi fustigado por aquele bombardeio muito maior do que a
morte.
— Lady Olivia — chamou.
— Quem é?
— O bufão.
— Fourmyle?
— Sim.
— E veio à minha procura? Estou sensibilizada, realmente
sensibilizada.
— Você é louca de ficar aqui desse jeito. Permita-me que...
— Não, não, não. É lindo... Magnífico!
— Permita-me jauntar com você para um lugar seguro.
— Ah, considera-se um cavaleiro de armadura? Cavalaria
para o resgate. Não combina com você, meu caro. Não tem
talento para isso. Ê melhor ir embora.
— Ficarei.
— Como um amante da beleza?
— Como um amante.
TIGER! TIGER! 173

— Você continua maçante, Fourmyle. Vamos, inspire-se.


Isto é Armagedon... Monstruosidade florescente. Diga-me o que
vê.
— Não há muito que ver — respondeu ele, olhando ao
redor e estremecendo. — Luzes tomam conta de todo o
horizonte. Velozes nuvens de luz. No alto há uma... uma espécie
de efeito de centelhas. Como lâmpadas de Natal piscando.
— Oh, seus olhos vêem tão pouco. Veja o que vejo! Há
uma cúpula no céu, uma cúpula de arco-íris. As cores variam do
metálico profundo ao abrasado mais brilhante. É assim que
chamo as cores que vejo. O que será essa cúpula?
— A tela do radar — murmurou Fourmyle.
— E depois há vastas hastes de fogo estirando-se para
cima, oscilando, entrelaçando-se, dançando, deslizando. O que
são?
— Feixes interceptadores. Você está vendo todo o sistema
de defesa eletrônico.
— E também posso ver as bombas caindo... rápidas listras
do que você chama de vermelho. Mas não é o seu vermelho; é.o
meu. Por que posso enxergá-las?
— Elas são aquecidas pela fricção do ar, mas o invólucro
de chumbo neutralizador não nos permite ver a cor.
— Vê como você se dá melhor como Galileu do que como
Galaad? Oh! Uma bomba está descendo a leste. Procure-a! Está
vindo, vindo, vindo... Agora!
Um clarão de luz no horizonte oriental demonstrou que não
se tratava da imaginação dela.
— Tem uma outra ao norte. Muito próxima. Muito. Agora!
Um impacto sacudiu impetuosamente o norte.
— E as explosões, Fourmyle... Não são apenas nuvens de
luz. São texturas, teias, tapeçarias de cores mescladas. Tão
lindas. Como mortalhas refinadas.
— O que não deixam de ser, Lady Olivia.
— Está com medo?
— Sim.
— Então fuja.
— Não.
— Ah, é desafiador.
174 ALFRED BESTER

— Nào sei o que sou. Estou apavorado, mas não fugirei.


— Então não se envergonha de seu comportamento. Está
fazendo um espetáculo de coragem cavalheiresca. — A voz
roufenha sugeria diversão. — Pense bem, Galaad. Quanto
tempo leva para jauntar? Você estaria seguro em segundos... no
México, no Canadá, no Alasca. Tão seguro. Deve haver milhões
de pessoas lá agora. Provavelmente somos os últimos que
restaram na cidade.
— Nem todo mundo pode jauntar para tão longe e tão
depressa.
— Então somos os últimos que devem ser levados em
conta. Por que não me deixa? Busque sua segurança. Serei
morta em breve. Ninguém jamais saberá que sua pretensão
transformou-se em covardia.
— Cadela!
— Ah, está furioso. Que linguajar chocante. Ê o primeiro
sinal de fraqueza. Por que não exercita melhor sua capacidade e
me carrega daqui? Este seria o segundo sinal.
— Dane-se!
Aproximou-se dela, cerrando irado os punhos. Ela lhe
tocou o rosto com uma mão fria e calma, mas de novo houve
aquele choque elétrico.
— Não, é tarde demais, meu caro — disse ela com
serenidade. — Aí vem um enxame de listras vermelhas...
caindo, caindo, caindo... na nossa direção. Não teremos como
escapar. Depressa, agora! Corra! Jaunte! Leve-me com você.
Depressa! Depressa!
Ele a arrancou rapidamente do banco.
— Cadela! Nunca!
Agarrou-a, encontrou os macios lábios corais e os beijou;
feriu-os com os seus, esperando o derradeiro escureci- mento.
O impacto não veio.
— Me enganou! — exclamou ele. Ela gargalhou. Ele a
beijou mais uma vez e por fim forçou-se a soltá-la. Ela arfou,
sem respiração, e em seguida riu de novo, os olhos corais
inflamados.
— Acabou — disse.
— Mal começou.
— Refere-se à guerra?
TIGER! TIGER! 175

— À guerra entre nós.


— Faça dela uma guerra humana — retrucou com fe-
rocidade. — Você é o primeiro a não se deixar enganar pela
minha aparência. Oh, Deus! O tédio dos cavaleiros galantes com
sua paixão morna pela princesa. Mas não sou assim... por
dentro. Não sou. Não sou. Nunca. Faça com que a guerra entre
nós seja selvagem. Não me conquiste... me destrua!
De repente voltava a ser Lady Olivia, a graciosa donzela de
neve.
— Acho que o bombardeio acabou, meu caro Four- myle.
O espetáculo terminou. Mas que excitante prelúdio ao Ano-
Novo! Boa-noite.
— Boa-noite? — ecoou ele, incrédulo.
— Boa-noite — repetiu ela. — O meu caro Fourmyle é tão
desajeitado mesmo a ponto de nunca perceber quando está
sendo dispensado? Pode ir agora. Boa-noite.
Ele hesitou, procurou palavras e então, virando-se, deixou
os limites da casa. Estremecia, tomado de exaltação e confusão.
Caminhava aturdido, sem prestar atenção à desordem e às ruínas
à sua volta. Agora o horizonte estava iluminado pela luz das
chamas vermelhas. As ondas de choque do ataque haviam
agitado a atmosfera de maneira tão violenta que os ventos ainda
sopravam em estranhas lufadas. O tremor das explosões abalara
a cidade tão fortemente que tijolos, cornijas, vidros e metais
desabavam e se espatifavam. E isso a despeito do fato de que
nenhuma bomba atingira Nova Iorque diretamente.
As ruas estavam desertas; a cidade estava vazia. Toda a
população de Nova Iorque, de todas as cidades, jauntou numa
desesperada busca de segurança... até o limite de suas
capacidades... oito quilômetros, oitenta quilômetros, oitocentos
quilômetros. Alguns haviam jauntado para dentro de um centro
de impacto. Milhares morreram em explo- sões-jaunte, pois os
pontos de jauntação públicos nunca foram projetados para
acomodar o afluxo de massas em êxodo.
Foyle percebeu a presença de Equipes de Desastre de
couraça branca nas ruas. Por meio de um sinal imperativo,
alertaram-no de que ele estava sumariamente convocado para o
serviço de resgate. O problema da jauntação não era
176 ALFRED BESTER

evacuar a população das cidades, mas forçá-la a retornar e


restaurar a ordem. Foyle não pretendia passar uma semana
lutando contra os incêndios e os saqueadores. Acelerou e
escapou da Equipe de Desastres.
Na Quinta Avenida, desacelerou; o consumo de sua energia
na aceleração era tão grande que só com relutância ele a
mantinha por mais de alguns segundos. Longos períodos de
aceleração exigiam dias de recuperação.
Os saqueadores e os jauntadores-chacais já estavam em
ação na avenida, sozinhos, aos bandos, furtivos e no entanto
selvagens; chacais lacerando o corpo de um animal vivo, mas
indefeso. Caíram sobre Foyle. Naquela noite, qualquer coisa era
presa deles.
— Não estou nada disposto — disse-lhes. — Vão brincar
com outro.
Esvaziou os bolsos de dinheiro e o atirou na direção deles.
Eles o arrebataram, mas não se deram por satisfeitos. Queriam
diversão e ele era, sem dúvida, um cavalheiro indefeso. Meia
dúzia de homens cercaram Foyle e foram chegando perto para
torturá-lo.
— Meu bom senhor — sorriram. — Vamos fazer uma
festinha.
Certa vez Foyle vira o corpo mutilado de um dos convi-
dados das festinhas deles. Suspirou e desligou a mente das
visões de Olivia Presteign.
— Tá bom, chacais — disse. — Vamos ter uma festinha.
Eles prepararam-se para envolvê-lo numa dança de urros.
Foyle disparou o painel de controle de sua boca e durante doze
devastadores segundos transformou-se na máquina mais
mortífera jamais criada... o assassino do Comando. Ele agiu sem
intenção consciente ou vontade; seu corpo simplesmente seguia
as diretrizes ligadas aos músculos e aos reflexos. Ele deixou seis
corpos estirados na rua.
A velha São Patrício estava lá, intacta, eterna, as chamas
distantes bruxuleando sobre o cobre esverdeado do teto. Seu
interior estava deserto. As barracas do Circo Four Miles
enchiam a nave, iluminadas e mobiliadas, mas os funcionários
haviam partido. Empregados, cozinheiros, criados pessoais,
atletas, filósofos, vivandeiras e escroques, todos fugiram.
TIGER! TIGER! 177

— Mas voltarão para o saque — murmurou Foyle.


Entrou na sua barraca. A primeira coisa que viu foi um
vulto de branco, agachado sobre um tapete, cantarolando com
alegria. Era Robin Wednesbury, a túnica em farrapos, a mente
em farrapos.
— Robin!
Ela continuou a cantarolar, sem articular palavras. Ele a
levantou, sacudiu-a e a esbofeteou. Ela sorriu exultantemente e
cantarolou. Ele encheu uma seringa e injetou-lhe forte dose de
ácido nicotínico. O efeito de sobriedade da droga atuou sobre
sua patética fuga da realidade de maneira penosa. A pele
acetinada acinzentou-se. Os músculos do belo rosto
contorceram-se. Ela reconheceu Foyle, lembrou-se do que
tentara esquecer, gritou e caiu de joelhos. Começou a chorar.
— Assim é melhor — disse ele. — Você é boa em matéria
de fuga, não? Primeiro o suicídio. Agora isso. Que mais?
— Vá embora.
— Talvez religião. Consigo vê-la adepta de uma seita
subterrânea com senhas como Pax Vobiscum. Contrabando de
bíblias e martírio em nome da fé. Não vai nunca enfrentar
alguma coisa?
—> Você nunca foge?
— Nunca. Fuga é para frustrados. Neuróticos.
— Neuróticos. A palavra preferida do brutamontes
educado tardiamente. Você é tão ilustrado, não? Tão estável.
Tão equilibrado. Você tem fugido a vida inteira.
— Eu? Nunca. Tenho caçado a vida inteira.
— Tem fugido. Nunca ouviu falar de fuga-ataque? Fugir
da realidade atacando-a... negando-a... destruindo-a? E isso
que tem feito.
— Fuga-ataque? — Foyle parou atingido por um golpe. —
Quer dizer que tenho fugido de alguma coisa?
— Evidentemente.
— De quê?
— Da realidade. Não consegue aceitar a vida tal como ela
é. Recusa-se. Você a ataca... quer metê-la à força dentro do seu
molde. Você ataca e destrói tudo o que encontra no caminho de
seu molde maluco. — Ergueu o rosto manchado de lágrimas. —
Não suporto mais. Deixe-me ir.
178 ALFRED BESTER

— Ir? Para onde?


— Viver minha vida.
— Mas e a sua família?
— Vou encontrá-la do meu jeito.
— Por quê? O que há agora?
— Ê demais... você e a guerra... porque você é tão maligno
quanto a guerra. Pior. O que aconteceu comigo esta noite é o
que acontece comigo toda vez que estou com você. Sou capaz
de suportar ou um ou outro; os dois não.
— Não — fez ele. — Preciso de você.
— Estou preparada para comprar minha liberdade.
— Como?
— Você perdeu todas as suas pistas para chegar à Vorga,
não perdeu?
— E...?
— Encontrei outra.
— Onde?
— Não importa onde. Concorda em me deixar ir embora
se te entregar essa pista?
— Posso tomá-la de você.
— Então vá em frente. Tome-a. — Os olhos dela lam-
pejaram. — Se sabe o que é, não terá nenhum problema.
— Posso obrigá-la a me dar.
— Pode? Após o bombardeio desta noite? Tente.
Ele surpreendeu-se com o desafio lançado por ela.
— Como saber se não está blefando?
— Vou te dar uma dica. Lembra-se do homem na
Austrália?
— Forrest?
— Sim. Ele tentou te dizer o nome dos tripulantes.
Lembra-se do único nome que ele chegou a falar?
— Kemp.
— Morreu antes de completá-lo. O nome é Kempsey.
— É essa a tua pista?
— Sim. Kempsey. Nome e endereço. Dou em troca da sua
promessa de que me deixará ir.
— Isso é venda — disse. — Pode ir. Me dê.
Ela caminhou imediatamente até o vestido que usara em
Xangai. Do bolso tirou uma folha de papel parcialmente
queimada.
TIGER! TIGER! 179

— Vi isto aqui em cima da escrivaninha de Sergei Orei,


quando estava tentando apagar o fogo... o fogo que o homem
incandescente deflagrou...
Entregou-lhe o papel. Era um fragmento de um pedido.
Dizia:
... qualquer coisa pra sair destes campos de bactéria. Por que é que
um homem só porque não consegue jauntar tem que ser tratado
como um viralata? Por favor, Serg, me ajude. Ajude um camarada
de bordo de uma nave que a gente nem menciona. Você pode
emprestar cem créditos. Se lembra de todos os favores que te fiz?
Me mande cem, ou mesmo cinqüenta créditos. Não me
decepcione.

Rodg Kempsey
Barracão 3
Bactérias Inc. Mare Nubium Lua

— Por Deus! — exclamou Foyle. — Este é o líder. Desta


vez não podemos falhar. Saberemos o que fazer. Ele vai vomitar
tudo... tudo. — Sorriu para Robin. — Partimos para a Lua
amanhã à noite. Reserve passagens. Não, por causa desse ataque
não haverá problemas. Compre uma nave. De qualquer forma eles
a venderão barato.
— Nós? — fez Robin. — Você quer dizer você.
— Quero dizer nós — respondeu Foyle. — Vamos para a
Lua. Nós dois.
— Estou indo embora.
— Não está, não. Vai ficar comigo.
— Mas você me prometeu que...
— Cresça, garota. Eu tive de prometer muita coisa- para
chegar a isso. Preciso de você mais do que nunca. Não para a
Vorga. Me viro sozinho com a Vorga. Para uma coisa mais
importante.
Ele viu no rosto dela a incredulidade estampada e sorriu
com tristeza.
— Tremendo azar, garota. Se tivesse me dado esta carta
duas horas atrás, eu manteria minha palavra. Mas agora é tarde
demais. Preciso de uma secretária afetiva. Estou apaixonado por
Olivia Presteign.
180 ALFRED BESTER

Ela deu um passo atrás rapidamente, num assomo de raiva.


— Está apaixonado por ela? Olivia Presteign? Apai-
xonado por aquele pálido cadáver? — A rancorosa fúria de sua
telemissão soou como surpreendente revelação para ele. — Ah,
agora me perdeu. Para sempre. Agora irei destruí-lo!
E desapareceu.
12
O capitão Peter Y’ang-Yeovil manipulava relatos no Q.
G. da Central de Informações em Londres a uma média de seis
por minuto. As informações eram transmitidas por telefone,
telégrafo, cabograma, jaunte. O quadro do bombardeio
desdobrava-se rapidamente.

ATAQUE SATUROU AMÉRICAS DO N E DO S DE 60°


PARA 120° LONGITUDE OESTE... LABRADOR A ALASCA AO
N... RIO A EQUADOR AO S... ESTIMADOS DEZ POR CENTO
(10%) MÍSSEIS PENETRARAM TELA DE INTER- CEPTAÇÃO...
PERDA POPULACIONAL ESTIMADA: DEZ A DOZE MILHÕES...

— Graças à jauntação — disse Y’ang-Yeovil. — Se não as


perdas seriam cinco vezes maiores. Mesmo assim, está perto de
um golpe arrasador. Mais uma carga dessa e a Terra estará
acabada.
Ele estava se dirigindo aos auxiliares que jauntavam para
dentro e para fora do escritório, aparecendo e desaparecendo,
deixando relatórios sobre sua escrivaninha e marcando com giz
resultados e equações no quadro de vidro que tomava toda uma
parede. Como a informalidade era a regra, Y*ang Yeovil
surpreendeu-se e desconfiou quando um auxiliar bateu à porta e
entrou com uma rebuscada formalidade.
182 ALFRED BESTER

— Qual é a sacanagem agora? — perguntou.


— Uma senhorita quer te ver, Yeo.
— Isso é hora para brincadeira? — disse Y’ang-Yeovil
num tom brusco. Apontou para as equações brancas soletrando
desastres no quadro transparente. — Leia isso e- suma-se daqui.
— Uma senhorita muito especial, Yeo. A tua Vênus da
Escadaria da Espanha.
— Quem? Que Vênus?
— A tua Vênus congo.
— Oh! Aquela? —Y’ang-Yeovil enrubesceu. — Mande-a
entrar.
— Irá entrevistá-la em particular, é claro?
— Ê claro coisa nenhuma. Estamos em guerra. Continue
mandando os relatórios, mas instrua todo mundo para se
comunicar no Idioma Secreto, se precisarem falar comigo.
Robin Wednesbury entrou no escritório, ainda usando o
vestido de noite rasgado. Jauntara imediatamente de Nova
Iorque para Londres sem se preocupar em mudar de roupa.
Havia marcas de cansaço em seu rosto, mas ainda era belo.
Y’ang-Yeovil a inspecionou por uma fração de segundo e
concluiu que não se equivocara em sua primeira apreciação.
Robin respondeu com outra inspeção e seus olhos se dilataram.
— Mas você é o cozinheiro da Escadaria da Espanha!
Ângelo Poggi!
Como oficial da Central, Y’ang-Yeovil estava preparado
para lidar com aquela crise.
— Cozinheiro, não, senhorita. Não tive tempo de mudar
para a minha habitual e fascinante personalidade. Por favor,
sente-se aqui, senhorita...
— Wednesbury. Robin Wednesbury.
— Encantado. Sou o capitão Y’ang-Yeovil. Foi muita
gentileza sua vir me ver, srta. Wednesbury. Poupa-me assim
uma longa e difícil investigação.
— M-Mas não entendo. O que estava fazendo na Es-
cadaria da Espanha ? Por que estava atrás de... ?
Y’ang-Yeovil percebeu que os lábios dela não se moviam.
— Ah, é uma telepata, srta. Wednesbury? Como é
TIGER! TIGER! 183

possível? Eu pensei que conhecia todos os telepatas do sistema.


— Não sou uma telepata completa. Sou uma telemis- sora.
Posso apenas emitir... não receber.
— O que, naturalmente, a torna sem valor para o mundo.
Compreendo. — Y’ang-Yeovil olhou simpaticamente para ela.
— Que piada de mau gosto, srta. Wednes- bury... Sobrecarregar-
se com todas as desvantagens da telepatia e privar-se de todas as
vantagens. Solidarizo-me. Acredite.
— Graças! E o primeiro a perceber isso sem que alguém
lhe tivesse alertado.
— Tome cuidado, srta. Wednesbury, eu a recebo. Agora,
falemos sobre a Escadaria da Espanha.
Fez uma pausa, ouvindo atentamente a agitada tele- missão
de Robin:
— Por que estava caçando? A mim! Belig estrangeira...
Oh, Deus!Irão me machucar? Cortar e... Informação. Eu...
— Minha cara — disse gentilmente Y’ang Yeovil. Tomou-
lhe as mãos e segurou-as compassivamente. — Escute- me um
pouco. Está assustada por nada. Ao que parece é uma Beligerante
Estrangeira. Certo?
Ela fez que sim.
— Isso é lamentável, mas não iremos nos preocupar com
isso agora. Quanto a cortar ou recortar informações das pessoas...
isso não passa de propaganda.
— Propaganda?
— Não somos inábeis, srta. Wednesbury. Sabemos como
extrair informações sem sermos medievais. Mas espalhamos por
aí essa lenda para amaciar as pessoas antecipadamente, por assim
dizer.
— É verdade? Está mentindo. E um engodo.
— É verdade, srta. Wednesbury. Sei usar de artimanhas,
mas agora é desnecessário. Sim, porque a senhorita
evidentemente veio de livre e espontânea vontade oferecer
informação.
— Ê astuto demais.., rápido demais... Ele...
— Você dá a impressão de ter sido muito enganada
recentemente, srta. Wednesbury... Muito escaldada.
184 ALFRED BESTER

— Fui. Deus, fui. Por mim mesma, principalmente. Sou


uma tola. Uma tola detestável!
— Nunca uma tola, srta. Wednesbury, e nunca detestável.
Não sei o que aconteceu que destruiu sua opinião sobre si
mesma, mas espero restaurá-la. Assim... foi enganada, não foi?
Por si mesma, principalmente? Todos nós incorremos nisso.
Mas foi ajudada por alguém. Quem?
— Eu o estou traindo.
— Então não me conte.
— Mas tenho de encontrar minha mãe e minhas irmãs...
Não posso continuar confiando nele... Tenho de fazê-lo sozinha.
— Robin suspirou fundo. — Quero lhe falar sobre um homem
chamado Gulliver Foyle.
Imediatamente Y’ang-Yeovil foi ao que lhe interessava.

***

— É verdade que ele chegou de trem? — perguntou Olivia


Presteign. — Uma locomotiva e um vagão de passageiros? Que
audácia prodigiosa.
— Sim, ele é um jovem notável — respondeu Presteign.
Cinzento e duro como ferro, estava no salão de recepção de sua
casa, sozinho com a filha. Guardava a honra e a vida enquanto
esperava os criados e o corpo de empregados retornarem de sua
apavorada jauntação em busca de segurança. Conversava com
Olivia sem perturbar-se, não permitindo, em nenhum momento,
que ela percebesse o perigo que corriam.
— Papai, estou exausta.
— Foi uma noite difícil, minha querida. Mas, por favor,
não se recolha ainda.
— Por que não?
Presteign absteve-se de dizer que ela estaria mais segura
ao seu lado.
— Sinto-me solitário, Olivia. Conversemos por alguns
minutos.
— Atrevi-me a fazer uma coisa, papai. Assisti ao ataque
no jardim.
— Minha querida! Sozinha?
TIGER! TIGER! 185

— Não. Com Fourmyle.


Pesadas batidas começaram a sacudir a porta da frente, que
Presteign havia trancado.
— O que foi isso?
— Saqueadores — respondeu Presteign calmamente.
— Não se assuste, Olivia. Não conseguirão entrar. — Foi até
uma mesa em que depositara uma variedade de armas, dispostas
como num jogo de paciência. — Não há perigo, minha querida.
— Procurou distraí-la. — Você estava me falando de
Fourmyle...
— Oh, sim. Assistimos juntos... um descrevendo as bombas
para o outro.
— Sem nenhuma dama-de-companhia? Isso não foi nada
discreto, Olivia.
— Sei disso. Comportei-me vergonhosamente. Ele parecia
tão grande, tão seguro de si mesmo, que lhe dei o tratamento de
Lady Arrogância. Lembra-se da srta. Post, minha governanta,
que por ser tão digna e altiva chamei de Lady Arrogância? Agi
como a srta. Post. Ele ficou furioso, papai. Por isso foi me
procurar no jardim.
— E você permitiu que ele continuasse? Estou chocado,
querida.
— Também eu. Acho que a excitação me deixou um pouco
fora de mim. Como é ele, papai? Conte-me. Como ele lhe
parece?
— Ele é grande. Alto, moreno, extremamente enigmático.
Como um Borgia. Ele parece oscilar entre firmeza e selvageria.
— Ah, então ele é selvagem? Pude vê-lo. Ele brilha de
perigo. A maioria das pessoas apenas tremeluz... ele parece um
relâmpago. Terrivelmente fascinante.
— Minha querida — advertiu Presteign gentilmente.
— Moças solteiras são recatadas demais para falar desse modo.
Desagradar-me-ia, querida, se você iniciasse uma ligação afetiva
com um parvenu como Fourmyle de Ceres.
Os empregados de Presteign jauntaram no salão, cozi-
nheiros, garçonetes, mordomos, pajens, cocheiros, criados,
criadas. Todos perturbados e descompostos depois de sua fuga
da morte.
— Vocês desertaram seus postos. Disso não me esquecerei
— disse com frieza Presteign. — Minha segurança e
186 ALFRED BESTER

minha honra estão de novo em suas mãos. Guarde-as. Lady


Olivia e eu nos recolheremos.
Pegou a filha pelo braço e conduziu-a pela escada, sel-
vagem protetor de sua princesa pura como o gelo.
— Sangue e dinheiro — murmurou Presteign.
— O que, papai?
— Estava pensando num defeito de família, Olivia.
Agradecia a Deus por você não tê-lo herdado.
— Que defeito, papai?
— Você não precisa saber. Um que faz parte de Four-
myle.
— Ah, ele é cruel? Sabia disso. Como Borgia, o senhor
disse. Um Borgia cruel de olhos negros e linhas no rosto. Isso
explica o desenho.
— Desenho, querida?
— Sim. Posso ver um estranho desenho sobre o rosto
dele... não a habitual eletricidade de nervos e músculos. Algo
que está sobre eles. Isso me fascinou desde que o vi.
— Que tipo de desenho?
— Fantástico... Maravilhosamente maligno. Não consigo
descrevê-lo. Dê-me algo com que possa desenhar. Eu lhe
mostrarei.
Pararam diante de uma escrivaninha de estilo rococó.
Presteign tirou da gaveta uma placa de cristal engastada com
prata e a entregou a Olivia. Ela a tocou com a ponta do dedo;
uma mancha negra apareceu. Deslizou o dedo e a mancha
alongou-se, formando uma linha. Com rápidos traços ela
esboçou as espirais e as chamas hediondas de uma máscara de
diabo.
***
Saul Dagenham deixou o quarto escuro. Um momento
depois, quando uma parede iluminou-se, o aposento foi
inundado de luz. Era como se um gigantesco espelho refletisse o
quarto de Jisbella, embora de maneira peculiar. Jis- bella estava
deitada sozinha na cama, mas, no reflexo, Saul Dagenham
sentou-se na beirada da cama sozinho. O espelho era, na
verdade, uma folha de chumbo envidraçada que separava
quartos idênticos. Dagenham havia apenas iluminado o seu.
TIGER! TIGER! 187

— Amor com hora marcada — soou a voz de Dagen- ham


através do auto-falante. — Revoltante.
— Não, Saul. Nunca.
— Frustrante.
— Nem isso, também.
— Mas infeliz.
— Não. Você é voraz. Contente-se com o que obteve.
— Deus sabe que é maior do que o que eu obtive. Você é
magnífica!
— Você é extravagante. Agora vá dormir, querido.
Amanhã vamos esquiar.
— Não, houve uma alteração em nossos planos. Preciso
trabalhar.
— Oh, Saul... você prometeu. Nada de trabalho, de
desgaste, de pressa. Não cumprirá a promessa?
— Como posso, com uma guerra estourando?
— Ao inferno a guerra. Já se sacrificou bastante em Tycho
Sand. Não podem exigir mais de você.
— Tenho um trabalho para terminar.
— Vou ajudá-lo.
— Não. É melhor ficar fora disso, Jisbella.
— Não confia em mim.
— Não quero que se machuque.
— Nada poderá nos machucar.
— Foyle pode.
— Q-Quê?
— Fourmyle é Foyle. Você sabe disso. Sei que sabe.
— Mas eu nunca...
— Não, nunca me disse. Você é magnífica. Mantém- se
leal comigo da mesma maneira, Jisbella.
— Então como descobriu?
— Foyle cometeu um deslize.
— Qual?
— O nome.
— Fourmyle de Ceres? Ele comprou a, companhia Ce- res.
— Mas e Geoffrey Fourmyle?
— Inventou.
— Ele pensa que inventou. Ele se lembrou. Geoffrey
Fourmyle é o nome que usam no Teste de Megalomania no
Hospital Unido, na Cidade do México. Apliquei o Modo
188 ALFRED BESTER

Megal em Foyle, quando tentei forçá-lo a falar. O nome deve ter


ficado enterrado na memória dele. Ele o trouxe à tona e pensou
que fosse original. Isso me alertou.
— Pobre Gully.
Dagenham sorriu.
— Sim, não importa como nos defendemos do exterior,
sucumbimos por algo que surge do interior. Não há defesa
contra a traição, mas nós todos nos traímos.
— O que irá fazer, Saul?
— Fazer? Eliminá-lo, é claro.
— Por nove quilos de PyrE?
— Não. Para vencer uma guerra perdida.
— O quê? — Jisbella aproximou-se da parede de vidro que
separa os dois quartos. — Você, Saul? Patriótico?
Ele fez um sim com a cabeça, quase culposamente.
— É ridículo. Grotesco. Mas sou. Você me transformou
completamente. Sou um homem saudável de novo.
Ele pressionou o rosto contra a parede e os dois beijaram-
se através de três centímetros de chumbo envidra- çado.
***

O Mare Nubium era idealmente adaptado para o cultivo de


bactérias anaeróbicas, organismos do solo, fage, fungos raros e
todas as formas de vida microscópica, essenciais para a
medicina e a indústria, que requeriam cultura privada de ar. A
Bactérias, Inc., consistia num imenso mosaico de campos de
cultura atravessados por passarelas distribuídas em torno de um
bloco central de barracões, escritórios e instalações. Cada campo
era um gigantesco tanque de vidro, com 30 m de diâmetro, 30
cm de altura e não mais que duas moléculas de espessura.
Um dia antes de a linha do Sol, que se deslocava pela face
da Lua, alcançar Mare Nubium, enchiam-se as cubas com meio
de cultura. Ao nascer do sol, abrupto e ofuscante na atmosfera
lunar, semeavam-se as cubas, que, durante os catorze dias de sol
permanente que se seguiam, eram vigiadas, protegidas,
reguladas e nutridas... os trabalhadores do campo científico
andavam de um lado para outro pelas passarelas, com seus trajes
espaciais. Quando a
TIGER! TIGER! 189

linha do crepúsculo invadia pouco a pouco o Mare Nubium,


fazia-se a colheita nas cubas, que então congelavam e este-
rilizavam durante as duas semanas de geada da noite lunar.
A jauntação não tinha utilidade neste maçante cultivo
desenvolvido em etapas. Por isso a Bactérias, Inc., havia
contratado infelizes incapazes de jauntar e pagava-lhes salários
de escravos. Esta era a forma mais desprezível de mão-de-obra,
a ralé e a escória do Sistema Solar; e durante o período de
inatividade, que se estendia por duas semanas, os barracões da
Bactérias, Inc., transformava-se num verdadeiro inferno. Foi o
que Foyle descobriu ao entrar no Barracão 3.
Ele deparou com um espetáculo estarrecedor. Ali dentro
havia duzentos homens; entre eles, prostitutas e seus cafetões
carrancudos, jogadores profissionais com suas mesas portáteis,
traficantes, agiotas. Havia uma névoa de fumaça acrimoniosa,
cheiro de álcool e Análogo. Espalhados pelo chão, imóveis,
roupas de cama, roupas, corpos inconscientes, garrafas vazias,
restos de alimento putrefato. Tudo típico de Hogarth.
Uma onda de urros desafiou a aparição de Foyle, mas ele
estava preparado para enfrentar a situação. Ele falou com o
primeiro rosto peludo que o encarou.
— Kempsey? — perguntou calmamente. Como resposta
obteve um insulto. Ainda assim ele sorriu e deu ao homem uma
nota de 100 créditos. — Kempsey? — perguntou para outro. Foi
insultado. Pagou de novo e continuou o passeio pelo barracão,
distribuindo notas de 100 créditos e calmos agradecimentos a
cada insulto e invectiva. No centro do barracão encontrou seu
homem-chave, o óbvio valentão dali, um homem monstruoso,
nu, sem pêlos, ali- sando duas prostitutas e bebendo uísque
servido por aduladores.
— Kempsey? — perguntou Foyle no velho linguajar da
sarjeta. — Tô atrás de Rodger Kempsey.
— E eu a fim de te deixar teso — respondeu o homem,
estendendo uma enorme pata para agarrar o dinheiro de Foyle.
— Me dá.
A multidão emitiu um uivo de prazer. Foyle sorriu e cuspiu
no olho dele. Despencou um silêncio vil. O homem sem pêlos
desembaraçou-se das prostitutas e avolumou-se
190 ALFRED BESTER

para exterminar Foyle. Cinco segundos depois rastejava no chão


com o pé de Foyle plantado em seu pescoço.
— Ainda tô atrás do Kempsey — disse Foyle branda-
mente. — E tô mesmo, cara. Melhor dedar logo, cara, senão tá
perdido.
— Banheiro! — gemeu o homem sem pêlos. — Escon-
dido. Banheiro.
— Agora me deixou teso — disse Foyle. Jogou o resto do
dinheiro no chão diante do homem sem pêlos e caminhou
apressado em direção ao banheiro.
Kempsey estava encolhido no canto de um chuveiro, a cara
prensada contra a parede, gemendo num ritmo monótono que
indicava que ele estava assim durante horas.
— Kempsey?
O gemido respondeu.
— Que que há com você?
— Roupas — chorou Kempsey. — Roupas. Por todo lado
roupas. Como sujeira, como doença, como lixo. Roupas. Por
todo lado, roupas.
— De pé, cara. Levanta.
— Roupas. Por todo lado, roupas. Como sujeira, como
doença, como lixo...
— Kempsey, tô aqui, cara. Orei me mandou.
Kempsey parou de choramingar e virou o rosto ensopado
para Foyle.
— Quem? Quem?
— Sergei Orei me mandou. Trouxe a tua libertação. Você
tá livre. Vamos nos mandar daqui.
— Quando?
— Já.
— Oh, Deus! Deus abençoe Orei! Deus o abençoe!
Kempsey começou a pular de exausta alegria. O rosto
inchado e machucado abriu um fac-símile de riso. Ele riu e
pulou, e Foyle o levou para fora do banheiro. No barracão,
porém, ele tornou a gritar e a chorar, e, à medida que Foyle
avançava com ele pelo longo salão, prostitutas nuas jogavam
para o ar punhados de roupas e as balançavam diante dos olhos
dele. Kempsey espumou e tagarelou desarticula- damente.
— Que há com ele? — perguntou Foyle para o homem
sem pêlos no linguajar da sarjeta.
TIGER! TIGER! 191

O homem sem pêlos transformara-se num neutro res-


peitável, senão num amigo.
— Acho que roubo — respondeu. — Sempre assim, ele.
Mostram roupas velhas e ele se encolhe. Cara!
— Por que, isso?
— Por quê? Pancada, só.
Na câmara de compressão do escritório central, Foyle fez
Kempsey entrar no traje espacial e, depois de entrar no seu,
conduziu-o até o campo de foguetes, onde pálidos feixes de raios
antigrav saíam de um poço e apontavam para o alto, para a
protuberante Terra pensa no céu escuro. Entraram num poço,
entraram no escaler de Foyle e tiraram o traje. Foyle foi até um
armário, pegou uma garrafa e uma ampola-ferrão. Encheu um
copo e entregou-o a Kempsey. Depositou a ampola na palma da
mão, sorrindo.
Kempsey bebeu o uísque; ainda tonto, ainda exultante.
— Livre — resmungou. — Deus o abençoe! Livre. Cristo,
o que eu passei. — Bebeu de novo. — Ainda nem acredito.
Parece um sonho. Por que não decola, cara? Eu... — Kempsey
engasgou-se e deixou cair o copo, olhando horrorizado o rosto
de Foyle. — Tua cara! — exclamou. — Meu Deus, tua cara!
Que aconteceu com ela?
— Você fez isso com ela, seu filho da puta! — gritou
Foyle. Avançou num salto, o rosto de tigre em chamas, e
enterrou a ampola como uma faca. Ela penetrou no pescoço de
Kempsey e ali ficou, trepidando. Kempsey tombou.
Foyle acelerou, turvou em direção ao corpo, ergueu-o a
meio caminho da queda e o transportou até o camarote a
estibordo. Havia dois camarotes principais no escaler, e Foyle
tinha preparado os dois antecipadamente. O aposento de
estibordo fora transformado numa sala de cirurgia. Foyle
prendeu o corpo com correias na mesa de operações, abriu um
estojo de instrumentos cirúrgicos e deu início à delicada
operação que aprendera naquela manhã através do
hipnotreinamento... uma operação só possível pela aceleração do
fator cinco.
Cortou a pele e a fáscia, cerrou a caixa torácica, expôs o
coração, tirou-o fora e conectou veias e artérias aos complexo
bombeamento de sangue ao lado da mesa. Iniciou o
bombeamento. Vinte segundos cronológicos passaram-se.
192 ALFRED BESTER

Colocou uma máscara de oxigênio no rosto de Kempsey e ligou


a alternância de aspiração e expiração da bomba de oxigênio.
Foyle desacelerou, examinou a temperatura de Kempsey,
aplicou injeções antichoque em suas veias e esperou. O sangue
borbotou pela bomba e pelo corpo de Kempsey. Passados cinco
minutos, Kempsey tirou a máscara de oxigênio. O reflexo de
respiração continuava. Kempsey estava sem o coração, e no
entanto vivia. Foyle sentou-se ao lado da mesa de operações e
esperou. Os sinais estavam estampados em seu rosto.
Kempsey permaneceu inconsciente.
Foyle esperou.
Kempsey despertou gritando.
Foyle avançou, apertou as correias e debruçou-se sobre o
homem sem coração.
— Oi, Kempsey — disse.
Kempsey gritou.
— Olhe para você mesmo, Kempsey. Está morto.
Kempsey desmaiou. Foyle trouxe-o de volta com a
máscara de oxigênio.
— Me deixe morrer, pelo amor de Deus!
— O que é que há? Dói? Morri durante seis meses e não
me queixei.
— Me deixe morrer.
— Quando chegar a hora. Quando chegar a hora, se se
comportar. Você estava a bordo da Vorga no dia 16 de setembro
de 2336?
— Pelo amor de Cristo, me deixe morrer.
— Estava a bordo da Vorga?
— Sim.
— Vocês passaram por uns destroços no espaço. Destroços
da Nomad. Ela transmitiu sinais de socorro e vocês passara por
ela. Certo?
— Sim.
— Por quê?
— Cristo! Oh, Cristo, me ajude!
— Por quê?
— Oh Jesus!
— Eu estava a bordo da Nomad, Kempsey. Por que me
deixaram apodrecendo lá?
TIGER! TIGER! 193

— Bom Jesus, me ajude! Cristo, livrai-me!


— Eu o livrarei, Kempsey, se me responder perguntas. Por
que me deixaram apodrecendo lá?
— Eu não podia te salvar.
— Por que não?
— Refugiados a bordo.
— Oh! Eu estava certo, então. Transportavam refugiados
de Calisto?
— Sim.
— Quantos?
— Seiscentos.
— É um bocado, mas vocês podiam ter arranjado lugar
para mais um. Por que não me recolheram?
— A gente estava despejando os refugiados.
— Quê!? — gritou Foyle.
— Para o espaço... todos... seiscentos... Limpamos todos...
tiramos roupas, dinheiro, jóias, bagagem... Soltamos eles pela
câmara de compressão, de fornada... Cristo! As roupas
espalhadas pela nave... Os gritos e os... Jesus! Se Se pelo menos
eu pudesse esquecer! As mulheres nuas... azuis... os peitos
estourados... rodopiando atrás de nós... As roupas por todo lado
da nave... seiscentos... Pro espaço!
— Filho da puta! Era trapaça? Pegaram o dinheiro deles e
nunca pensaram em trazê-los de volta para a Terra?
— Era um plano!
— E por isso não me resgataram?
— A gente ia ter de despejar você também, de qualquer
maneira.
— Quem deu a ordem?
— O capitão.
— Nome?
— Joyce. Lindsey Joyce.
— Endereço?
— Colônia Sklotsky. Marte.
— Quê!? — Era como se Foyle tivesse sido atingido por
um raio. — Ele é um Sklotsky? Está dizendo que, depois de
caçá-lo por um ano, não posso tocá-lo... feri-lo... fazê-lo sentir o
que eu senti? — Afastou-se do homem torturado na mesa, ele
mesmo torturado pela frustração. — Um Sklotsky! A única
coisa em que nunca pensei... Depois de ter preparado aquele
camarote para ele... O que é que
194 ALFRED BESTER

vou fazer? O que, em nome de Deus, vou fazer agora? —


grunhiu furioso, as marcas lívidas aparecendo no rosto.
Ao ouvir um gemido desesperado, lembrou-se de
Kempsey. Voltou à mesa e debruçou-se sobre o corpo dissecado.
— Vamos esclarecer isso pela última vez. Este Sklots- ky,
Lindsey Joyce, deu ordem para despejar os refugiados?
— Sim.
— E para me deixar apodrecendo?
— Sim. Sim. Por Deus, chega. Me deixe morrer.
— Viva, seu porco... Seu puto impiedoso e nojento! Viva
sem coração. Viva e sofra. Vou mantê-lo vivo para sempre,
você...
Um lúgubre fulgor de luz atingiu os olhos de Foyle. Ele
ergueu os olhos. Sua imagem flamejante espiava pela enorme
vigia do camarote. Quando correu até a vigia, o homem
incandescente desapareceu.
Foyle deixou o camarote e disparou para os controles
centrais, onde a cabina de observação lhe oferecia 270° de visão.
O homem incandescente não estava em parte alguma.
— Não é real — resmungou. — Não pode ser real. É um
sinal; um sinal auspicioso... um Anjo da Guarda. Ele me salvou
na Escadaria da Espanha. Está me dizendo para ir em frente e
encontrar Lindsey Joyce.
Apertou os cintos na cadeira do piloto, acendeu a ignição
dos jatos do escaler e comandou a ruidosa e total aceleração.
“Lindsey Joyce, Colônia Sklotsky, Marte’’, pensou, en-
quanto era atirado violentamente contra o fundo da cadeira
pneumática. “Um Sklotsky... Sem sentidos, sem prazer, sem dor.
A supremacia na fuga estóica. De que modo vou puni-lo?
Torturá-lo? Colocá-lo no camarote de bombordo e fazê-lo sentir
o que senti a bordo da Nomad? Maldição! É como se ele já
estivesse morto! Ele está morto. E preciso descobrir como
vencer um corpo morto e fazê-lo sentir dor. Chegar tão perto do
fim e ter a porta fechada na cara!... A abominável frustração da
vingança. A vingança é coisa de sonho... nunca de realidade!’’
Passada uma hora, libertou-se da aceleração e da fúria,
desafivelou-se da cadeira e lembrou-se de Kempsey. A
TIGER! TIGER! 195

excessiva aceleração da decolagem obstruiu o bombeamento de


sangue o suficiente para matá-lo. De repente Foyle viu-se
tomado por uma insólita e violenta revolta contra si mesmo.
Lutou contra ela inutilmente.
— O que que há com você, você? — sussurrou. — Pense
nos seiscentos, despejados... Pense em você mesmo... Está se
convertendo num cristão subterrâneo poltrão, que dá a outra
face e pede perdão? Olivia, o que está fazendo comigo? Dê-me
força, não covardia...
No entanto desviou o olhar quando despejou o corpo no
espaço.
13
T ODAS AS PESSOAS QUE SE SABE EMPREGADAS
DE FOURMYLE DE CERES OU LIGADAS A ELE EM QUAL-
QUER CONDIÇÃO DEVEM SE SUBMETER A INTERRO-
GATÓRIO. Y-Y: CENTRAL DE INFORMAÇÕES.
TODOS OS EMPREGADOS DESTA COMPANHIA DEVEM
MANTER ESTRITA VIGILÂNCIA SOBRE FOURMYLE DE
CERES E SUBMETER RELATÓRIO A UM SR. PRESTO
PRESTEIGN LOCAL.
TODOS OS MENSAGEIROS ABANDONARÃO SERVIÇOS
ATUAIS E SE APRESENTARÃO PARA NOVAS FUNÇÕES NO
CASO FOYLE. DAGENHAM.
ESTÃO DETERMINADAS FÉRIAS BANCÁRIAS IME-
DIATAS EM NOME DA CRISE DE GUERRA PARA QUE SE
INTERROMPA O GIRO DE CAPITAL DE FOURMYLE. Y-Y:
CENTRAL DE INFORMAÇÕES.
TODO AQUELE QUE PERGUNTAR SOBRE S.S. “VORGA4’
SERÀ ENCAMINHADO AO CASTELO PRESTEIGN PARA
INVESTIGAÇÃO. PRESTEIGN.
TODOS OS PORTOS E PISTAS DOS PLANETAS INTE-
RIORES DEVEM ESTAR ALERTAS PARA CHEGADA DE
FOURMYLE. POSTOS DE OBSERVAÇÃO E ALFÂNDEGAS
DEVEM CHECAR TODOS OS POUSOS. Y-Y: CENTRAL DE
INFORMAÇÕES.
SONDAR E VIGIAR VELHA IGREJA DE SÃO PATRÍCIO.
DAGENHAM.
TIGER! TIGER! 197

EXAMINAR ARQUIVOS DE BO’NESS E UIG E DES-


COBRIR NOMES DE OFICIAIS E HOMENS DA “VORGA” PARA
EVITAR, SE POSSÍVEL, PRÓXIMOS PASSOS DE FOYLE.
PRESTEIGN.
COMISSÃO DE CRIMES EXPEDIRÁ LISTA DE INIMIGOS
PÚBLICOS COLOCANDO FOYLE COMO NÚMERO UM. Y-Y:
CENTRAL DE INFORMAÇÕES.
UM MILHÃO DE CRÉDITOS DE RECOMPENSA POR
INFORMAÇÕES QUE LEVEM À PRISÃO DE FOURMYLE DE
CERES, VULGO GULLIVER FOYLE, VULGO GULLY FOYLE,
AGORA EM LIBERDADE NOS PLANETAS INTERIORES.
PRIORIDADE! URGENTE! PERIGOSO!

***

Depois de dois séculos de colonização, a luta pelo ar em


Marte continuava tão crítica que a Lei V-L — a Lei Vegetativa-
Linch — ainda estava em vigor. Considerava-se ofensa mortal
colocar em perigo ou destruir qualquer planta vital para a
transformação da atmosfera de dióxido de carbono em atmosfera
de oxigênio. Até lâminas de ervas eram sagradas. Tornara-se
desnecessário colocar avisos de NÃO PISE NA GRAMA. O
homem que se desviasse de um caminho para atravessar um
gramado morria instantaneamente. A mulher que colhesse uma
flor morria sem piedade. Dois séculos de mortes repentinas
inspiraram uma reverência ao verde que quase se tornou religião.
Foyle lembrou-se disso ao se precipitar pelo caminho
elevado que levava à St. Michele de Marte. Jauntara diretamente
do aeroporto de Syrtis para o ponto de St. Michele, junto ao
elevado que se estendia por quase um quilômetro pelos campos
verdes até St. Michele de Marte. Fez a pé o resto do percurso.
Tal como a Mont St. Michele original da costa francesa, a
St. Michele de Marte era uma majestosa catedral gótica com
agulhas de torres e arcobotantes que se avulta- vam sobre a
colina e ansiavam atingir o céu. Na Terra, marés oceânicas
circundavam a Mont St. Michele. Ali, marés de verdejantes
gramados circundavam St. Michele de Marte. Ambas fortalezas.
A Mont St. Michele fora uma forta
198 ALFRED BESTER

leza da fé antes da abolição da religião organizada. A St.


Michele de Marte era uma fortaleza da telepatia. Nela vivia o
solitário telepata completo Sigurd Magsman.
— Agora são estas as fortalezas que protegem Sigurd
Magsman — entoou Foyle, entre a histeria e a litania. —
Primeiro, o Sistema Solar; segundo, a Lei Marcial; terceiro,
Dagenham-Presteign and Co.; quarto, a própria fortaleza; quinto,
os guardas fardados, auxiliares, empregados e admiradores do
sábio barbado que todos nós conhecemos, Sigurd Magsman,
vendendo seus espantosos poderes por preços também
espantosos...
Foyle riu para valer.
— Mas conheço um sexto fator: o Calcanhar de Aquiles de
Sigurd Magsman... Pois paguei um milhão de créditos para
Sigurd III... Ou foi o IV?
Graças às credenciais falsificadas, transpôs o labirinto
exterior da St. Michele de Marte e viu-se tentado a ludibriar ou a
seguir a direção que lhe indicava o Comando de Ação para uma
audiência com o próprio Salomão, mas o tempo urgia, os
inimigos o cercavam, e ele não pôde satisfazer a curiosidade.
Em vez disso, acelerou, turvou e encontrou uma humilde cabana
localizada num jardim fechado da chácara interna da St. Michele
de Marte. Com suas janelas embaciadas e telhado de sapé,
poderia confundir-se com um estábulo. Foyle resvalou para
dentro.
A cabana era um quarto de crianças. Três simpáticas babás
estavam sentadas imóveis em cadeiras de balanço, tricotando
aprumadas com as mãos imobilizadas. O borrão que era Foyle
surgiu atrás delas e calmamente aferroou-as com ampolas. Em
sçguida desacelerou. Olhou para a criança anciã; o menino
enrugado e murcho que estava sentado no chão, brincando com
trens eletrônicos.
— Oi, Sigurd. — disse Foyle.
A criança começou a chorar.
— Bebê chorão! Está com medo de quê? Não vou ma-
chucar você.
— Você é um homem mau com cara de mau.
— Sou seu amigo, Sigurd.
— Não, não é. Você quer que eu faça coisas más.
— Sou seu amigo. Escute, conheço tudo sobre aqueles
TIGER! TIGER! 199

homens cabeludos que fingem ser você, mas não vou contar.
Leia-me e veja.
— Você vai machucá-lo e quer que eu conte para ele.
— Quem?
— O homem-capitão. O Skl... Skot... — A criança gaguejou
com a palavra, chorando mais alto. — Vá embora. Você é mau.
Maldade na sua mente e homens incandescentes e...
— Venha cá, Sigurd.
— Não. BABÁ! BA-BÀÀÀ!
— Cale a boca, seu canalhinha!
Foyle agarrou a Criança de setenta anos e a sacudiu.
— Sigurd, esta será uma experiência muito nova para você.
A primeira vez que fará à força alguma coisa. Compreende?
A criança anciã compreendeu-o e gritou.
— Cale a boca! Vamos fazer uma viagem até a Colônia
Sklotsky. Se se comportar direito e fizer o que eu mandar, trago
você de volta são e salvo e lhe dou um pirulito ou qualquer outra
porcaria com que costumam suborná-lo. Se não se comportar, eu
o privarei dos dias de vida.
— Não, não vai... Não vai. Sou Sigurd Magsman. Sigurd, o
telepata. Não se atrevería.
— Filhote, sou Gully Foyle, Inimigo Número Um do
Sistema Solar. Falta-me dar apenas o último passo para pôr fim a
uma caçada que já dura um ano... Estou arriscando meu pescoço
porque preciso de você para acertar contas com um filho da puta
que... Filhote, sou Gully Foyle. Eu me atreveria a qualquer coisa.
O telepata começou a transmitir pânico com tal intensidade
que todos os alarmes de St. Michele de Marte soaram. Foyle
agarrou com firmeza a criança anciã, acelerou e levou-a consigo
para fora da fortaleza. Em seguida jauntou.

***
URGENTE. ULTRA-SECRETO. SIGURD MAGSMAN
SEQUESTRADO POR UM HOMEM SUPOSTAMENTE
IDENTIFICADO COMO GULLIVER FOYLE, VULGO FOUR-
MYLE DE CERES, INIMIGO NÚMERO UM DO SISTEMA SOLAR.
DESTINO SUPOSTAMENTE DETERMINADO.
200 ALFRED BESTER

ALERTEM BRIGADA DE COMANDO. INFORMAR CENTRAL


DE INFORMAÇÕES. URGENTE! URGENTE! URGENTE!

* *• *

A antiga seita Sklotsky da Bielorrússia, acreditando que o


sexo era a raiz de todos os males, praticou uma atroz
autocastração para extirpar a raiz. Os Sklotskys modernos,
acreditando que a sensação era a raiz de todos os males, adotou
uma praxe ainda mais bárbara. Pagando uma fortuna pelo
privilégio de entrar na Colônia Sklotsky, alegremente os
iniciados se submetiam a uma cirurgia que interrompia o
funcionamento do sistema nervoso sensitivo, vivendo seus dias
sem visão, audição, fala, olfato, paladar ou tato.
Ao entrarem pela primeira vez no monastério, os jovens
eram levados a graciosas celas de marfim, onde estavam
intimados a entregar-se, para o resto de suas vidas, a enlevadas
contemplações, carinhosamente atendidos. Na realidade, as
criaturas insensibilizadas atulhavam-se em catacumbas onde se
sentavam em lajes de pedra bruta e se alimentavam e se
exercitavam uma vez por dia. Durante 23 de 24 horas, ficavam
sentados sozinhos na escuridão, abandonados, desprotegidos,
desamados.
— Os mortos vivos — murmurou Foyle. Desacelerou, pôs
Sigurd Magsman no chão e ligou a luz retinal, tentando
perscrutar as trevas uterinas. Era meia-noite na superfície. Era
permanente meia-noite ali embaixo, nas catacumbas. Sigurd
Magsman estava transmitindo pânico e angústia com tal zurro
telepático que Foyle viu-se forçado a sacudi- lo de novo. —
Cale essa boca! — sussurrou. — Não pode despertar estes
mortos. Agora encontre-me Lindsey Joyce.
— Estão todos doentes... todos doentes... como vermes na
cabeça... vermes e doenças e...
— Cristo, então não sei? Venha, vamos acabar com isso. O
pior está por vir.
Desceram o sinuoso labirinto das catacumbas. As lajes de
pedra formavam estantes do chão ao teto. Os Sklotskys, brancos
como lesmas, surdos-mudos como cadáveres, petri
TIGER! TIGER! 201

ficados como budas, impregnavam as cavernas com o cheiro da


morte viva. A criança telepática chorava e guinchava. Foyle em
nenhum momento afrouxou o aperto implacável com que o
prendia junto de si; em nenhum momento afrouxou a caçada.
— Johnson, Wright, Keely, Graff, Nastro, Under- wood...
Deus, há milhares aqui. — Foyle leu as placas de identificação
feitas de bronze e fixadas nas lajes. — Atinja mais longe,
Sigurd. Encontre Lindsey Joyce para mim. Não podemos ficar
olhando de nome em nome. Regai, Cone, Brady, Vincent... Mas
que foi isso!?
Foyle recuou. Uma das figuras branco-ósseas batera em sua
testa. Ela se balançava e se contorcia, o rosto se contraindo.
Todos os vermes brancos se torciam e se contorciam em suas
estantes. A constante transmissão telepática de angústia e pânico
os atingia e torturava.
— Cale-se! — fuzilou Foyle. — Pare com isso. Encontre
Lindsey Joyce e então sairemos daqui. Atinja mais longe e o
encontre.
— Lá — choramingou Sigurd. — Bem lá adiante. Sete,
oito, nove estantes para baixo. Quero ir para casa. Estou
doente. Eu...
Foyle caminhou impetuosamente com Sigurd pelas ca-
tacumbas, lendo as placas de identificação até afinal loca- lizá-
la: LINDSEY JOYCE. BOUGAINVILLE, VÊNUS.
Era o seu inimigo, o instigador de sua morte e da morte de
seiscentas pessoas de Calisto. Era o inimigo para quem fizera
planos e a quem caçava durante meses. Era o inimigo para quem
havia preparado a agonia do camarote de bombordo a bordo de
seu escaler. Era Vorga. Era uma mulher.
Foyle ficou estupefato. Naqueles dias de domínio do
homem sobre a mulher, em que mulheres eram protegidas por
cortinados, sabia-se de casos em que mulheres se disfarçavam de
homens para penetrar nos mundos fechados para elas, mas Foyle
jamais ouvira falar de uma mulher na marinha mercante...
disfarçando sua ascensão até o posto máximo de oficial.
— Esta?! — exclamou tomado de fúria. — Esta é Lindsey
Joyce? Lindsey Joyce da Vorga? Pergunte a ela.
— Não sei o que é Vorga.
— Pergunte a ela.
202 ALFRED BESTER

— Mas não sei... Ela estava... Dava ordens.


— Capitão?
— Não gosto do interior dela. É todo doença e trevas.
Machuca. Quero ir para casa.
— Pergunte a ela. Era capitão da Vorga?
— Sim. Por favor, por favor, por favor, não me faça mais
entrar nela. É tortuosa e machuca. Não gosto dela.
— Diga a ela que sou o homem que ela não resgatou no dia
16 de setembro de 2336. Diga que isso já faz muito tempo, mas
que finalmente aqui estou para acertar contas. Diga a ela que
vou dar o troco.
— Não entendo. N-não entendo.
— Diga que vou matá-la, devagarinho e penosamente.
Diga que tenho um camarote a bordo do meu escaler, arrumado
justamente como o cofre a bordo da Nomad onde fiquei
apodrecendo durante seis meses... onde ela instruiu a Vorga para
me deixar morrer. Diga a ela! — Foyle sacudiu a criança
enrugada, com toda a fúria. — Faça-a sentir. Não a deixe fugir
tornando-se Sklotsky. Diga que vou matá-la to- dinha. Leia-me
e diga a ela!
— Ela... E-ela não deu a ordem.
— Quê!?
— Não consigo entendê-la.
— Ela não deu a ordem para eu morrer?
— Tenho medo de entrar nela.
— Pois entre, seu pequeno filho da puta, ou acabo com
você. O que ela está dizendo?
A criança choramingou; a mulher se contorceu; Foyle se
enfureceu.
— Entre! Entre! Arranque a coisa dela. Jesus Cristo, por
que o único telepata em Marte tem de ser uma criança? Sigurd!
Sigurd, escute-me. Pergunte a ela: foi ordem dela despejar os
refugiados?
— Não. Não!
_ Não não foi ou não você não vai entrar?
— Não foi ela.
— Ela deu ordens para passar direto pela Nomad?
— Não.
— Não deu?
— Não. Leve-me para casa.
— Pergunte de quem foi a ordem.
TIGER! TIGER! 203

— Quero minha babá.


— Pergunte quem lhe deu a ordem. Ela era capitão a bordo
de sua própria nave. Quem poderia comandá-la? Pergunte!
— Quero minha babá.
_ Pergunte!
— Não. Não. Não. Estou com medo. Ela é doentia. Ela é
escura e negra e tortuosa. Ela é má. Não a entendo. Quero
minha babá. Quero ir para casa.
A criança tremia e guinchava; Foyle gritava. Os ecos
ribombaram. Quando Foyle aproximou-se raivosamente da
criança, uma luz brilhante cegou-lhe os olhos. Toda a catacumba
iluminou-se com a presença do Homem Incandescente. A
imagem de Foyle surgiu diante dele, o rosto hediondo, as roupas
em chamas, os olhos abrasados fixos sobre a convulsiva Sklotsky
que antes fora Lindsey Joyce.
O Homem Incandescente abriu sua boca de tigre. Ecoou um
som áspero. Era como uma gargalhada flamejante.
— Ela fere — disse ele.
O Homem Incandescente recuou.
— Luz demais — disse. — Menos luz.
Foyle avançou um passo. O Homem Incandescente levou as
mãos aos ouvidos e tampou-os em agonia.
— Alto demais — gritou. — Não ande tão ruidosamente.
— Você é meu anjo da guarda?
— Você está me cegando. Chhh! — Repentinamente, ele
gargalhou de novo. — Escute-a. Ela está gritando. Implorando.
Não quer morrer. Não quer ser ferida. Escute-a.
Foyle estremeceu.
— Ela está nos dizendo quem deu a ordem. Não pode
ouvir? Escute com os olhos. — O Homem Incandescente
apontou um dedo-garra para a Sklotsky que se contorcia. — Diz
Olivia.
— Quê!?
— Diz Olivia. Olivia Presteign. Olivia Presteign. Olivia
Presteign.
O Homem Incandescente desapareceu.
As catacumbas voltaram à escuridão.
204 ALFRED BESTER

Luzes coloridas e cacofonias turbilhonavam em torno de


Foyle. Ele engoliu em seco e vacilou.
— Jaunte cego — resmungou. — Olivia. Não. Não. Nunca.
Olivia. Eu...
Sentiu uma mão tocando a sua.
— Jiz? — grasnou.
Percebeu então que Sigurd Magsman segurava-lhe a mão e
chorava. Pegou-o no colo.
— Dói — lamuriou Sigurd.
— Me dói também, filho.
— Quero ir para casa.
Ainda segurando o menino no colo, caminhou às cegas
pelas catacumbas.
— Os mortos vivos — murmurou. E então: — Juntei- me a
eles.
Encontrou a escada de pedra que levava das profundezas
ao claustro do monastério na superfície. Subiu arrastando-se
pelos degraus, sentindo o sabor da morte e da desolação. Do alto
manava uma luz radiante, e por um momento ele imaginou que
havia amanhecido. Compreendeu então que o claustro estava
esplendidamente iluminado com luz artificial. Havia o pisar de
pés calçados e os resmungos fracos de ordens. No meio da
escada, Foyle deteve-se e concentrou energias.
— Sigurd — sussurrou. — Quem está lá em cima?
Descubra.
— Soldados — respondeu a criança.
— Soldados? Que Soldados?
— Soldados do Comando. — O rosto enrugado de Sigurd
animou-se. — Vieram me buscar. Para me levar para casa e
minha babá. ESTOU AQUI! ESTOU AQUI!
Ao brado telepático respondeu um grito que veio do alto.
Foyle acelerou e turvou pelo resto dos degraus até o claustro,
um quadrado de arcos românicos em cujo centro havia um
gramado. No centro do gramado erguia-se um gigantesco cedro-
do-líbano. As galerias lajeadas fervilhavam com grupos de
resgate do Comando, e Foyle viu-se frente a frente com seu
adversário; por um instante, depois que o viram turvando-se de
dentro das catacumbas, também aceleraram, e todos ficaram em
condições iguais.
TIGER! TIGER! 205

Mas Foyle tinha o menino. Era impossível que atirassem.


Carregando Sigurd nos braços, serpeou pelo claustro como um
jogador que ludibria adversários e se arremesssa em direção a
um gol. Ninguém se atreveu a bloqueá-lo, pois a uma aceleração
de fator cinco uma colisão frontal entre dois corpos resultaria em
morte imediata. Objetivamente, essa escaramuça quebra-pescoço
parecia um ziguezague de cinco segundos de um relâmpago.
Foyle irrompeu fora do claustro, atravessou o salão
principal do monastério, passou pelo labirinto e alcançou o ponto
de jauntação público em frente ao portão principal. Ali parou,
desacelerou e jauntou para o aeródromo do monastério, a 800
metros de distância. Também o aeródromo ardia com luzes e
fervilhava com Comandos. Todos os poços antigrav estavam
ocupados por naves da Brigada. Seu próprio escaler estava sob
guarda.
Um quinto de segundo depois da chegada de Foyle ao
Aeródromo, os perseguidores jauntaram, vindos do monastério.
Ele olhou desesperado à volta. Achava-se cercado pela metade
do regimento dos Comandos, todos sob aceleração, todos
reequipados para a ação letal, todos iguais a ele, ou melhores. As
condições eram desvantajosas.
E então os Satélites Exteriores alteraram as condições.
Exatamente após uma semana do inesperado bombardeio de
saturação na Terra, atacavam Marte.
Mais uma vez os mísseis caíram no quadrante da meia-
noite ao amanhecer. Mais uma vez o firmamento coruscou com
interceptações e detonações, e no horizonte explodiam enormes
nuvens de luz, enquanto a terra tremia. Desta vez, porém, havia
uma horrível variação, pois uma brilhante nova explodiu no alto,
inundando o lado noturno do planeta com luzes de cores
berrantes. Um enxame de bombas nucleares atingira o pequeno
satélite de Marte, Fobos, vapo- rizando-o instantaneamente num
pequeno sol.
A demora de reconhecimento dos Comandos em relação ao
apavorante ataque deu a Foyle uma oportunidade. Ele acelerou
de novo e disparou por entre eles em direção ao escaler. Parou
diante da escotilha principal e viu os desorientados grupos de
guardas hesitarem entre prosseguirem com a velha tática ou
reagirem à nova. Foyle arremessou no ar o paralisado corpo de
Sigurd Magsman, como se fosse
206 ALFRED BESTER

um escocês arremessando o mastro. Enquanto os guardas


corriam para pegar o menino, Foyle introduziu-se entre eles,
entrou no escaler, fechou a escotilha e a trancou.
Ainda sob aceleração, em nenhum momento parando para
ver se havia alguém dentro do escaler, acionou controles,
disparou a alavanca de desengate e, quando o escaler começou a
flutuar sobre o raio antigrav, injetou a propulsão ao máximo de
10-G. Ele não prendera os cintos da cadeira de piloto. O efeito
do impulso 10-G sobre seu corpo acelerado e desprotegido foi
monstruoso.
Uma força crescente o dominou, atirando-o para fora da
cadeira. Avançou contra a parede do fundo da cabina de
controle como um sonâmbulo. Para seus sentidos acelerados, era
como se a parede avançasse sobre ele. Ele estendeu os dois
braços, preparando-se com as mãos espalmadas contra a parede.
A lenta força que o jogava para trás apartou seus braços,
empurrando-o contra a parede, no começo com moderação,
depois cada vez com mais violência, até a face, as mandíbulas, o
peito e o corpo inteiro comprimirem- se contra o metal.
A pressão crescente tornou-se torturante. Ele tentou
disparar com a língua o painel de controle dentro da boca, mas a
impulsão que o esmagava contra a parede o impossibilitou de
mover a boca distorcida. O ruído de explosões, tão reduzidas no
espectro sonoro que soavam como o deslizar de pedras
encharcadas, indicou-lhe que a Brigada do Comando o
bombardeava com disparos que partiam de debaixo da nave.
Quando o escaler rasgou o azul-negro do espaço cósmico, ele
começou a guinchar como um morcego, até que
misericordiosamente perdeu a consciência.
14
F oyle acordou no escuro. Embora desacelerado, o corpo
exausto indicava que durante o tempo de inconsciência estivera
acelerado. Ou sua unidade de alimentação se esgotara ou...
Estendeu a mão até a peça nas costas. A unidade não estava lá.
Fora removida.
Seus dedos trêmulos exploraram o espaço. Estava na cama.
Ouviu o murmúrio de ventiladores e refrigeradores, o clique e o
zumbido de servomecanismos. Encontrava-se a bordo de uma
nave. Amarrado com correias à cama. A nave estava em queda
livre.
Foyle desprendeu-se, pressionou os cotovelos contra o
colchão e flutuou. Derivou na escuridão procurando um in-
terruptor de luz ou um botão de chamada. Suas mãos esbarraram
numa garrafa de água com letras em relevo no vidro. Leu-as
com as pontas dos dedos. Sentiu S. S. V, o, r,g, a. Vorga.
Gritou.
A porta do camarote abriu-se. Um vulto insinuou-se por
ela, uma silhueta contra a luz de uma luxuosa saleta particular
atrás dela.
— Desta vez o resgatamos — disse Olivia Presteign.
— Olivia?
— Sim.
— Então é verdade?
— Sim, Gully.
Foyle começou a chorar.
208 ALFRED BESTER

— Você ainda está fraco — disse ela docilmente. —


Venha e deite-se.
Levou-o até a saleta e o prendeu a uma espreguiçadeira,
que ainda conservava o calor do corpo dela.
— Você está assim há seis dias. Nunca imaginamos que
viveria. Estava exaurido quando o cirurgião encontrou a bateria
nas suas costas.
— Onde está ela? — resmungou.
— Você a terá de volta quando quiser. Não se irrite, meu
caro.
Ele a fitou por um bom tempo, sua Donzela de Neve, sua
adorável Princesa de Gelo... a pele branca de cetim, os olhos
cegos de coral e uma delicada boca de coral. Ela lhe tocou as
pálpebras com um lenço perfumado.
— Eu a amo — disse ele.
— Chhh. Eu sei, Gully.
— Você sabia tudo sobre mim. Há quanto tempo?
— Desde o começo eu sabia que Gully Foyle era meu
inimigo. Nunca soube que era Fourmyle até o dia em que nos
conhecemos. Ah, se eu tivesse sabido antes. Quantas coisas
teriam sido evitadas.
— Você sabia e ria de mim.
— Não.
— Assistindo e morrendo de rir.
— Assistindo e te amando. Não, não interrompa. Estou
tentando ser sensata, e isso não é fácil. — Um rubor inundou o
rosto de mármore. — Não estou brincando com você agora.
Eu... Eu traí você com meu pai. Traí. Autodefesa, pensei. Agora
que afinal conheci papai, percebo o quanto ele é perigoso. Uma
hora depois entendi que fora um erro, porque compreendí que
estava apaixonada por você. Pago por isso agora. Você nem
precisava saber.
— Espera que eu acredite nisso?
— Então por que estou aqui? — Ela tremia levemente. —
Por que o segui? Aquele bombardeio foi terrível. Um minuto
mais e você estaria morto quando o resgatamos. Seu escaler
estava destruído...
— Onde estamos agora?
— Que diferença faz?
— Procuro ganhar tempo.
— Tempo para quê?
TIGER! TIGER! 209

— Não tempo... Procuro ganhar coragem.


— Estamos orbitando a Terra.
— Como me seguiu?
— Sabia que você iria atrás de Lindsey Joyce. Peguei uma
das naves de papai. Por acaso a Vorga de novo.
— Ele sabe?
— Nunca sabe. Vivo minha vida privada.
Ele não conseguia afastar dela os olhos, e no entanto doía
olhá-la. Sentia desejo e odiava... desejo de que a realidade se
desfizesse, enquanto odiava a verdade pelo que ela era. Ele
descobriu que estava alisando o lenço com dedos trêmulos.
— Eu te amo, Olivia.
— Eu te amo, Gully, meu inimigo.
— Pelo amor de Deus! — explodiu ele. — Por que fez
aquilo?
— O quê? — vociferou ela. — Está exigindo desculpas?
— Estou exigindo uma explicação!
— Não te darei nenhuma!
— Sangue e dinheiro, disse o teu pai. Ele estava certo. Oh...
Cadela! Cadela! Cadela!
— Sangue e dinheiro, sim; e nenhuma vergonha.
— Estou me afogando, Olivia. Jogue-me uma corda salva-
vidas.
— Pois então se afogue. Ninguém nunca me salvou. Não,
não... Está errado, tudo errado. Espere, meu querido. Espere. —
Ela se recompôs e começou a falar com ternura. — Eu podia
mentir, Gully querido, e fazê-lo acreditar na mentira, mas serei
sincera. Há uma explicação simples. Vivo minha vida privada.
Todos nós vivemos. Você vive.
— Qual é a sua?
— Nada diferente da sua... da do resto do mundo.
Trapaceio, minto, destruo... como todos nós. Sou criminosa...
como todos nós.
— Por quê? Por dinheiro? Você não precisa de dinheiro.
— Não.
— Para dominar... o poder?
— Não pelo poder.
— Então por quê?
210 ALFRED BESTER

Ela suspirou fundo, como se aquela verdade fosse a


primeira e a atormentasse.
— Por ódio... Para me vingar, de todos vocês.
— Por quê?
— Porque sou cega — disse com a voz contida. — Por ter
sido iludida. Por ser indefesa... Podiam ter me matado quando
nasci. Sabe você o que é ser cega... receber a vida de segunda-
mão? Ser dependente, ser rejeitada, ser mutilada? “Traga-os até
o teu nível’’, eu disse para a minha vida secreta. “Se é cega,
torne-os cegos. Se é indefesa, mutile-os. Vingue-se... de todos
eles.”
— Olivia, você é louca.
— E você?
— Estou apaixonado por uma mulher monstruosa.
— Somos um par de monstros.
— Não!
— Não? Você não? — retrucou ela. — O que tem feito
além de se vingar do mundo, como eu? O que é a tua vingança
senão acertar tuas contas com o azar? Quem não te chamaria de
monstro aloprado? Ê como te digo, Gully, somos um par. Como
evitaríamos esta paixão mútua?
Ele chocou-se com a verdade do que ela dizia. Expe-
rimentou a carapuça da revelação e ela lhe serviu; mais justa do
que a máscara do tigre tatuada no rosto.
— “Sem piedade” — disse ele. — “Vilão devasso,
traiçoeiro e desumano!” É verdade. Não sou melhor que você.
Pior. Mas, aos olhos de Deus, nunca assassinei seis- centas
pessoas.
— Você está assassinando seis milhões.
— O quê?
— Talvez mais. Você possui algo de que eles precisam
para terminar a guerra, e você o retém.
— Refere-se ao PyrE?
— Sim.
— O que é isso, este trazedor de paz, estes nove quilos de
milagre pelo qual eles lutam?
— Não sei, mas sei que precisam dele, e isso pouco me
importa. Sim, estou sendo sincera agora. Pouco me importa. Que
milhões de pessoas sejam assassinadas. Não faz diferença para
nós. Não para nós, Gully, porque ficamos à
TIGER! TIGER! 211

parte. Ficamos à parte e criamos nosso próprio mundo. Nós


somos os fortes.
— Nós somos os malditos.
— Nós somos os benditos. Nós nos encontramos. — De
repente ela riu e estendeu os braços. — Estou argumentando
quando nào há necessidade de palavras. Venha, meu amor...
Esteja onde estiver, venha...
Ele a tocou e então a abraçou. Encontrou sua boca e a
devorou. Mas viu-se forçado a soltá-la.
— O que foi, querido Gully?
— Não sou mais uma criança — disse ele deprimido. —
Aprendi a compreender que nada é simples. Não existe uma
resposta simples. Você é capaz de amar alguém e ao mesmpo
odiar todos.
— Você não é, Gully?
— E você está me fazendo odiar a mim mesmo.
— Não, meu querido.
— Fui um tigre a vida inteira. Treinei... me instruí... me
esforcei em tudo para fazer de mim um tigre forte com garras
mais longas e presas mais afiadas... rápido e fatal...
— E você é. Você é. O mais fatal.
— Não. Não sou. Fui longe demais. Fui além da sim-
plicidade. Me transformei numa criatura racional. Olho através
de seus olhos cegos, meu amor a quem odeio, e vejo a mim
mesmo. O tigre se foi.
— Não há lugar para onde o tigre possa ir. Você está num
beco sem saída, Gully; cercado por Dagenham, pelo serviço
secreto, por meu pai, pelo mundo.
— Eu sei.
— Mas comigo está seguro. Juntos estamos seguros, nós
dois. Nunca pensarão em procurá-lo junto de mim. Podemos
fazer planos juntos, lutar juntos, destruí-los juntos...
— Não, juntos não.
— Por quê? — vociferou de novo. — Ainda está me
caçando? Ê isso que está errado? Ainda quer vingança? Pois
então vingue-se. Estou aqui. Vamos... destrua-me.
— Não. Não quero mais saber de destruição.
— Ah, sei o que é. — Num instante tornou-se dócil de
novo. — Ê o teu rosto, pobre querido. Tem vergonha do seu
rosto de tigre; mas gosto dele. Você arde tão brilhantemente
para mim. Você arde na cegueira. Acredite-me...
212 ALFRED BESTER

— Meu Deus! Que par de monstros asquerosos nós somos!


— O que aconteceu com você?— instigou. Separou-se
dele, os olhos corais cintilando. — Onde está o homem que
assistiu ao bombardeio ao meu lado? Onde está o selvagem
descarado que...
— Foi-se, Olivia. Você o perdeu. Nós dois o perdemos.
— Gully!
— Ele se perdeu.
— Mas por quê? O que fiz eu?
— Você não entende, Olivia.
— Onde está você? — Ela esticou os braços, tocou-o e
então se agarrou a ele. — Escute-me, querido. Você está
exausto. Você está exaurido. Só isso. Nada se perdeu. — As
palavras tropeçavam em sua boca. — Você está certo. Claro que
está certo. Temos sido maus, nós dois. Asquerosos. Mas agora
tudo já passou. Nada se perdeu. Éramos cruéis porque éramos
solitários e infelizes. Mas nos encontramos; podemos salvar um
ao outro. Seja meu amor, querido. Sempre. Para a eternidade.
Há muito tempo te procuro; esperei, desejei, pedi...
— Não. Você está mentindo, Olivia, e sabe disso.
— Em nome de Deus, Gully!
— Desça com a Vorga, Olivia.
— Pousar?
— Sim.
— Na Terra?
— Sim.
— O que quer fazer? Está louco. Estão te caçando...
esperando você... vigiando. O que quer fazer?
— Acha que isso é fácil para mim? — disse. — Vou fazer
o que devo fazer. Ainda estou acionado. Nenhum homem
escapa disso. Mas há uma compulsão diferente no suporte, e os
estímulos doem, droga. Doem como o diabo.
Refreou a raiva e controlou-se. Tomou-lhe as mãos e
beijou a palma.
— Está tudo acabado, Olivia — disse brandamente. —
Mas te amo. Sempre. Para a eternidade.

***
TIGER! TIGER! 213

— Vou resumir — falou Dagenham rispidamente. —


Fomos bombardeados na noite em que encontramos Foyle. Nós
o perdemos na Lua e o encontramos uma semana depois em
Marte. Mais uma vez fomos bombardeados. Mais uma vez o
perdemos. Está desaparecido há uma semana. Espera-se outro
bombardeio. Vênus? Lua? Terra de novo? Ninguém sabe. Mas
todos sabemos de uma coisa... mais um ataque sem retaliação e
estaremos perdidos.
Passou os olhos pela mesa. Contra o fundo de marfim e
ouro da Câmara Estrelada do Castelo Presteing, seu rosto e os
outros três pareciam cansados. Y’ang-Yeovil estreitou os olhos
numa carranca. Presteign comprimiu os lábios finos.
— E sabemos disso também — continuou Dagenham. —
Não podemos retaliar sem o PyrE, e sem Foyle não loca-
lizaremos o PyrE.
— Dei instruções — interveio Presteign — para não
mencionar PyrE em público.
— Em primeiro lugar, isto aqui não é público — retrucou
Dagenham. — É uma reunião privada para troca de
informações. Em segundo lugar, superamos os direitos de
propriedade. Discutimos sobrevivência, e nisso todos nós temos
direitos iguais. Sim, Jiz?
Jisbella McQueen jauntara para a Câmara Estrelada,
parecendo preocupada e furiosa.
— Nenhum sinal de Foyle até agora.
— A velha São Patrício está sendo vigiada?
— Sim.
— O relatório da Brigada do Comando ainda não chegou
de Marte?
— Não.
— Isso é assunto meu e ultra-secreto — objetou mode-
radamente Y’ang-Yeovil.
— Você tem poucos segredos para mim como eu para você
— sorriu Dagenham tristemente. — Jiz, tente trazer a Central de
Informações aqui com aquele relatório. Vá.
Ela desapareceu.
— Quanto aos direitos de propriedade — murmurou
Y’ang-Yeovil —, permitam-me sugerir a Presteign que a Central
de Informações lhe garantirá o pagamento integral por seus
direitos, por título e interesse no PyrE?
— Não o mime, Yeovil.
214 ALFRED BESTER

— Esta reunião está sendo gravada — disse Presteign


friamente. — A oferta do capitão será arquivada. — Virou o
rosto de basilisco para Dagenham. — Você está a meus
serviços, sr. Dagenham. Por favor, controle suas referências a
mim.
— E à sua propriedade também? — perguntou Dagenham
com um sorriso venenoso. — Você e a sua maldita propriedade.
Todos vocês e todas as suas malditas propriedades nos puseram
nesta-sinuca. O sistema está à beira da extinção completa por
causa de suas propriedades. Não estou exagerando. Haverá uma
guerra terminal que acabará com todas as guerras, se não
conseguirmos interrompê-la.
— Sempre há a possibilidade de nos rendermos — res-
pondeu Presteign.
— Não — disse Y’ang-Yeovil. — Isso já foi discutido
antes e descartado pelo Q. G. Conhecemos os planos de pós-
vitória dos Satélites Exteriores. Implicam exploração total dos
Planetas Interiores. Irão nos sugar e nos obrigar a trabalhar até
que nada reste. A rendição seria tão desastrosa quanto a derrota.
— Mas não para Presteign — acrescentou Dagenham.
— Digamos, excluída a presente companhia? — replicou
Y’ang-Yeovil sagazmente.
— Muito bem, Presteign — disse Dagenham, girando na
cadeira. — Fale.
— Desculpe, não entendi.
— Fale-nos tudo sobre o PyrE. Tenho uma idéia de como
fazer Foyle abrir o jogo e localizar o material, mas antes preciso
saber tudo a respeito. Faça a sua contribuição.
— Não — respondeu Presteign.
— Não.o quê?
— Decidi retirar-me desta central de informações. Não
revelarei nada sobre PyrE.
— Em nome de Deus, Presteign! Enlouqueceu? O que deu
em você? Está disputando de novo com o partido liberal de
Regis Sheffield?
— Ê muito simples, Dagenham — interveio Y’ang-
Yeovil. — Minha informação sobre a situação rendição- derrota
deu a Presteign uma dica de como melhorar a posi
TIGER! TIGER! 215

ção dele. Sem dúvida ele pretende negociar uma venda ao


inimigo em troca de... vantagens patrimoniais.
— Nada consegue perturbá-lo? — perguntou Dagen- ham a
Presteign, com-escárnio. — Nada consegue tocá-lo? Você é todo
patrimônio e nada mais? Vá embora, Jiz! Tudo desmoronou.
Jisbella jauntara de novo para a Câmara Estrelada.
— Relatório da Brigada do Comando — disse. — Sabemos
o que aconteceu a Foyle.
— O quê?
— Presteign o apanhou.
— Quê!? — Dagenham e Y’ang-Yeovil levantaram-se
abruptamente.
— Ele deixou Marte num escaler particular, foi bom-
bardeado. Viram-no sendo resgatado pela S. S. Vorga de
Presteign.
— Maldito seja, Presteign — faiscou Dagenham. — Então
é por isso que você...
— Esperem — pediu Y’ang-Yeovil. — Dagenham, isso é
novidade para ele. Olhe para ele.
A expressão simpática de Presteign adquirira uma cor
acinzentada. Ele tentou pôr-se de pé mas caiu rígido na cadeira.
— Olivia... — sussurrou. — Com ele... Aquele lixo...
— Presteign?
— Minha filha, senhores, por algum tempo... esteve
envolvida em... certas atividades. O defeito da família. Sangue
e... Eu... procurei fechar meus olhos a isso... Quase me convenci
de que era um engano. Eu... Mas Foyle! Vil! Sujo! Ele deve ser
destruído! — A voz de Presteign elevou-se assustadoramente.
Sua cabeça tombou para trás, como a de um enforcado, e seu
corpo começou a estremecer.
— Mas que diabo está...?
— Epilepsia — disse Y’ang-Yeovil. Tirou Presteign da
cadeira e deitou-o no chão. — Uma colher, srta. McQueen.
Depressa! — Ele manteve aberta a boca de Presteign e colocou a
colher entre os dentes, para proteger a língua. Tão
repentinamente como começara, o ataque cessou. O estre-
mecimento parou. Presteign abriu os olhos.
— Petit mal — murmurou Y’ang-Yeovil, tirando a colher.
— Mas sentirá tontura por algum tempo.
216 ALFRED BESTER

De súbito Presteign começou a falar num tom de voz baixo


e monótono.
— PyrE é uma liga pirofórica. Piróforo é um metal que
emite centelhas quando esfregado ou riscado. PyrE emite
eneriga, daí o E, símbolo da energia, ter sido acrescentado ao
prefixo Pyr. PyrE é uma solução sólida de isó- topos
transplutonianos, liberando energia termonuclear da ordem da
ação estelar Fênix. Seu descobridor acreditava que havia
produzido o equivalente da protomatéria primordial que
explodiu no Universo.
— Meu Deus! — exclamou Jisbella.
Com um gesto Dagenham pediu-lhe para calar-se e curvou-
se sobre Presteign.
— Como levá-lo ao estado de massa crítica, Presteign?
Como a energia é liberada?
— Da mesma forma que a energia original foi gerada no
começo dos tempos — falou Presteign monotonamente.
— Através da Vontade e da Idéia.
— Estou certo de que ele é um cristão subterrâneo —
sussurrou Dagenham para Y’ang-Yeovil. Ergueu a voz.
— Explique. Presteign.
— Através da Vontade e da Idéia — repetiu Presteign.
— PyrE só pode ser explodido pela psicocinesia. Sua energia
só será liberada pelo pensamento. Ê preciso desejar que exploda
e concentrar o pensamento nisso. Ê a única forma.
— Não há chave? Nenhuma fórmula?
— Não. Apenas Vontade e Idéia são necessários. — Os
olhos vidrados fecharam-se.
— Deus do céu! — Dagenham ergueu as sobrancelhas
numa careta. — Yeovil, isso fará os Satélites Exteriores he-
sitarem?
— Isso fará todos hesitarem.
— É o caminho para o inferno — disse Jisbella.
— Pois então vamos encontrá-lo e sair do caminho.
Yeovil, minha idéia é a seguinte. Foyle esteve mexendo com
esse processo infernal no laboratório da velha São Patrício,
tentando analisá-lo.
— Eu lhe contei isso como estrita confidência — retrucou
Jisbella furiosamente.
— Desculpe, querida. Ultrapassamos a honra e a decência.
Agora escute, Yeovil, deve haver fragmentos do ma
TIGER! TIGER! 217

terial espalhado por lá... como pó, como solução, pois ele se
precipita... Temos de detonar esses fragmentos e explodir o
circo de Foyle.
— Por quê?
— Para trazê-lo de volta correndo. Ele deve ter o resto do
PyrE escondido em algum lugar por lá. Virá para sal- vá-lo.
— E se o resto explodir também?
— Não é possível; não no interior de um cofre de Isó- topo
de Chumbo Inerte.
— Talvez não esteja todo lá.
— Jiz diz que sim... pelo menos foi o que Foyle disse.
— Deixe-me fora disso — disse Jisbella.
— De qualquer modo, teremos de arriscar.
— Arriscar? — exclamou Y’ang-Yeovil. — Com uma
Ação Fênix? Você vai é transformar o sistema solar numa nova
novinha em folha.
— Que mais podemos fazer? Escolha outro caminho... e
será também o caminho da destruição. Temos alguma outra
chance?
— Podemos esperar — disse Jisbella.
— O quê? Esperar Foyle se destruir e a todos nós com seu
experimento?
— E se o alertássemos?
— Não sabemos onde ele está.
— Poderemos encontrá-lo.
— Em quanto tempo? Isso também não seria um risco? E o
material espalhado por lá esperando que alguém pense em
explodir a energia? Imagine um chacal jauntando lá,
arrombando o cofre e procurando bens? E, depois, não se trata
apenas de poeira esperando um pensamento acidental, mas de
nove quilos.
Jisbella empalideceu. Dagenham dirigiu-se ao homem do
serviço secreto.
— Você decide, Yeovil. Experimentamos a minha idéia ou
esperamos?
Y’ang-Yeovil suspirou.
— Eu temia isso — disse. — Malditos cientistas! Terei de
tomar uma decisão por um motivo que você desconhece,
Dagenham. Os Satélites Exteriores também estão atrás desse
negócio. Temos razões para acreditar que eles
218 ALFRED BESTER

mandaram agentes atrás de Foyle da pior maneira possível. Se


esperarmos, eles o pegarão antes de nós. De fato, já devem tê-lo
encontrado a esta altura.
— Então a sua decisão é... ?
— A explosão. Se conseguirmos, que Foyle venha cor-
rendo até nós.
— Não! — gritou Jisbella.
— Como? — perguntou Dagenham, ignorando-a.
— Oh, sei de uma pessoa ideal para este trabalho. Uma
telepata de mão única chamada Robin Wednesbury.
— Quando?
— Já. Vamos limpar toda a área. Faremos uma completa
cobertura na imprensa e uma completa transmissão radiofônica.
Se Foyle estiver em alguma parte dos Planetas Interiores, ele
ouvirá a respeito da explosão.
— Não a respeito — disse Jisbella desesperada. — Ele a
ouvirá. Será a última coisa que qualquer um de nós ouvirá.
***

Como sempre, ao voltar de uma tumultuada sessão de


tribunal em Leningrado, Regis Sheffield mostrava-se agradável
e complacente, mais parecido com um arrogante pugilista que
venceu uma luta difícil. Parou no Blekmann, de Berlim, para
tomar um drinque e papear sobre a guerra; tomou um segundo e
papeou mais sobre a guerra num ponto freqüentado por
advogados no Quai Dorsay; e tomou um terceiro no Skin and
Bones, em frente ao Temple Bar. Quando chegou ao escritório
de Nova Iorque estava agradavelmente alegre.
Ao caminhar pelos corredores e salas ruidosos, foi saudado
pela secretária com um punhado de cabeça-memo.
— Derrotei Djargo-Dantchenko no primeiro assalto —
relatou Sheffield triunfante. — Sentença e indenização total. O
velho D. D. ficou fulo de raiva. Isso marca onze a cinco, a meu
favor. — Ele pegou as cabeças-memo, fez malabarismos com
elas e então começou a jogá-las dentro de supostos receptáculos
em todo o escritório, inclusive a boca aberta de um funcionário
embasbacado.
— Ora, sr. Sheffield! Andou bebendo?
TIGER! TIGER! 219

— Por hoje, chega de trabalho. As notícias sobre a guerra


são terrivelmente deprimentes. Preciso fazer alguma coisa para
ficar alegre. Que tal discutirmos nas ruas?
— Sr. Sheffield!
— Alguma coisa me espera hoje que não pode esperar
outro dia?
— Há um cavalheiro na sua sala.
— Ele a obrigou a ir tão longe assim? — Sheffield pareceu
impressionado. — Quem é? Deus ou algum outro?
— Não quis dizer o nome. Deu-me isto.
A secretária entregou a Sheffield um envelope lacrado.
Nele, lia-se: URGENTE. Sheffield abriu-o, a expressão rude
careteando de curiosidade. Então seus olhos se arregalaram.
Dentro do envelope havia duas notas de 50.000 créditos.
Sheffield fez meia-volta sem dizer palavra e irrompeu dentrou de
sua sala. Foyle levantou-se da cadeira.
— São autênticas — falou Sheffield com espontaneidade.
— Até onde eu saiba, sim.
— Exatamente vinte destas notas foram estampadas no ano
passado. Estão todas depositadas no tesouro público da Terra.
Como conseguiu estas duas?
— Sr. Sheffield?
— Quem mais? Como conseguiu estas notas?
— Suborno.
— Por quê?
— Na época pensei que talvez fosse conveniente tê-las
disponíveis.
— Para quê? Mais suborno?
— Se honorários de um advogado são suborno...
— Eu determino meus honorários — disse Sheffield.
Devolveu as notas para Foyle. — Pode apresentá-las de novo se
eu decidir aceitar a sua causa e se eu decidir que as mereço. Qual
é o seu problema?
— Penal.
— Não seja ainda tão específico. E...?
— Quero entregar-me.
— Ã polícia?
— Sim.
— Por que crimes?
— Crimes?
220 ALFRED BESTER

— Nomeie dois.
— Roubo e estupro.
— Mais dois.
— Chantagem e assassinato.
— Algum outro?
— Traição e genocídio.
— Isso esgota seu catálogo?
— Acho que sim. Descobriremos alguns outros quando
entrarmos em questões mais específicas.
— Andou bastante ocupado, não? Ou você é o Príncipe dos
Vilões ou é louco.
— Os dois, sr. Sheffield.
— Por que quer se entregar?
— Caí em mim — respondeu Foyle com amargura.
— Não me refiro a isso. Um criminoso nunca se entrega
quando está numa situação vantajosa. Você evidentemente está
numa situação vantajosa. Qual é o motivo?
— A coisa mais execrável que pode acontecer a um
homem. Peguei uma doença rara chamada consciência.
Sheffield riu alto.
— Quase sempre isso se torna fatal.
— Ê fatal. Compreendí que eu me comportava como um
animal.
— E agora quer se purificar?
— Não, não é tão simples assim — disse Foyle sinis-
tramente. — Por isso o procurei... para uma cirurgia mais
importante. O homem que perturba a estrutura da sociedade é
um câncer. O homem que dá prioridade às decisões pessoais e
não às da sociedade é um criminoso. Mas existem reações em
cadeia. Purificar-se com a punição não é suficiente. Tudo deve
ser colocado em seu lugar. Peço a Deus que tudo seja curado
simplesmente me mandando de volta a Goufre Martel ou me
matando...
— De volta? — interrompeu Sheffield sutilmente.
— Devo ser específico?
— Não ainda. Continue. Você fala como se sofresse
crescentes dores éticas.
— Ê exatamente isso. — Foyle andou de um lado para
outro, inquieto, amarrotando as notas com os dedos nervosos. —
É uma confusão infernal, Sheffield. Há uma garota que tem de
pagar por um crime corrupto e hediondo.
TIGER! TIGER! 221

O fato de que eu a ame... Não, esqueça isso. Ela é um câncer que


deve ser extirpado... como eu. Isso significa que terei de
acrescentar informações ao meu catálogo. O fato de que eu
também esteja me entregando não faz nenhuma diferença.
— O que é essa embrulhada toda, hein?
Foyle virou-se para Sheffield.
— Uma das bombas do Ano-Novo acabou de entrar no seu
escritório e está dizendo: “Acerte tudo. Dê um jeito em mim e
me mande para casa. Dê um jeito na cidade que arrasei e nas
pessoas que arruinei”. Por isso quero contratá-lo. Não sei o que é
que a maioria dos criminosos sentem, mas...
— Sensatez, aliás; como bons homens de negócio que têm
má sorte — respondeu prontamente Sheffield. — Esta é a atitude
comum do criminoso profissional. É óbvio que você é um
amador, se é que é um criminoso de fato. Meu caro senhor, seja
sensato. O senhor veio aqui, extravagantemente acusando-se de
roubo, estupro, assassinato, genocídio, traição e sabe Deus o que
mais. Espera que eu o leve a sério?
Bunny, assistente de Sheffield, jauntou na sala.
— Chefe! — gritou, tomado de excitação. — Uma
novidade fresquinha. Uma câmara-jaunte. Dois escroques
subornaram um caixa para fotografar o interior do Terra Trust &
Exchange e... Opa. Desculpe. Não percebi que... — Bunny
interrompeu-se e olhou. — Fourmyle! — exclamou.
— Quê? Quem? — perguntou Sheffield.
— Não o conhece, chefe? — balbuciou Bunny. — Este é
Fourmyle de Ceres. Gully Foyle.
Havia mais de um ano Regis Sheffield estava ansioso e
preparado para aquele momento. Seu corpo fora treinado para
reagir sem pensar, numa reação relâmpago. Sheffield atacou
Foyle em meio segundo; têmpora, pescoço e virilha.
Programaram-no para não depender de arma alguma, já que
nenhuma estaria à mão.
Foyle caiu. Sheffield virou-se contra Bunny e o agrediu.
Depois cuspiu na palma da mão. Programaram-no para não
depender de droga alguma, já que nenhuma estaria à mão. As
glândulas salivares de Sheffield foram pre
222 ALFRED BESTER

paradas para reagir ao estímulo com uma secreção de ana-


filaxia. Ele rasgou a manga da camisa de Foyle, enterrou uma
unha bem fundo na cavidade do cotovelo de Foyle e fez um
talhe. Introduziu a saliva no corte e uniu a pele.
Um estranho grito irrompeu da boca de Foyle; a tatuagem
surgindo lívida no rosto. Antes que o atordoado assistente
fizesse um movimento, Sheffield jogou Foyle sobre o ombro e
jauntou.
Chegou ao centro do Circo Four Miles, na velha São
Patrício. Uma jogada audaciosa, mas calculada. Era aquele o
último lugar em que esperariam que fosse, e o primeiro onde ele
esperava encontrar o PyrE. Preparara-se para enfrentar qualquer
um que penetrasse na catedral, mas o interior do circo estava
deserto.
As barracas vazias, infladas em direção à nave, estavam
rasgadas; já haviam sido saqueadas. Sheffield imergiu na
primeira que viu. Era a biblioteca ambulante de Four- myle,
repleta de centenas de livros e de milhares de reluzentes
cabeças-romances. Os chacais jauntadores não se interessavam
por literatura. Sheffield largou Foyle no chão. Só então tirou um
revólver do bolso.
As pálpebras de Foyle tremularam; seus olhos se abriram.
— Você está sob efeito de droga — disse Sheffield ra-
pidamente. — Não tente jauntar. E não se mexa. Estou te
avisando. Estou preparado para qualquer coisa.
Estonteado, Foyle tentou levantar-se. Imediatamente
Sheffield disparou, queimando o ombro dele. Foyle tombou
contra o chão de pedras. Estava entorpecido e aturdido. Ruídos
ecoavam em seus ouvidos e um veneno corria pelo seu sangue.
— Estou te avisando — repetiu Sheffield. — Estou
preparado para qualquer coisa.
— O que quer? — sussurrou Foyle.
— Duas coisas. Dez quilos de PyrE, e você. Você,
sobretudo.
— Seu maluco! Seu maldito maníaco! Fui ao seu escritório
para me entregar... para entregar o material...
— Para os S. E.?
— Para... o quê?
— Os Satélites Exteriores? Preciso soletrar?
TIGER! TIGER! 223

— Não... — murmurou Foyle. — Eu devia ter desconfiado.


O patriota Sheffield, um agente dos S. E. Era para eu desconfiar.
Sou um idiota.
— É o idiota mais valioso do mundo, Foyle. Nós o
queremos muito mais que o PyrE. Desconhecemos a natureza
dessa coisa, mas sabemos quem você é.
— Do que está falando?
— Meu Deus! Não sabe, não é? Ainda não sabe. Nem
suspeita.
— De quê?
— Escute — disse Sheffield com uma voz pesada. — Estou
te transportando para dois anos atrás, na Nomad. Compreende?
De volta à morte da Nomad. Um dos nossos caças a destruiu e te
encontraram a bordo dos escombros. O último homem vivo.
— Então uma nave dos S. E. explodiu a Nomad?
— Sim. Não se lembra?
— Não me lembro de nada sobre aquilo. Nunca consegui.
— Pois te conto por quê. Os homens no comando daquele
caça tiveram uma idéia brilhante. Transformaram você numa
isca... numa presa fácil, entende? Você estava quase morto, mas
te levaram a bordo e te consertaram. Te puseram dentro de um
traje espacial e te soltaram à deriva com uma microonda. Você
transmitia sinais de socorro e emitia pedidos de ajuda em todas
as faixas de ondas. A idéia era a seguinte: emboscados nas
proximidades, nossos homens pegariam de surpresa todas as
naves dos P. I. que aparecessem para te resgatar.
Foyle começou a rir.
— Vou me levantar — disse ele sem se preocupar. — Atire
de novo, seu filho da puta, mas vou me levantar. — Com
esforço pôs-se de pé, segurando o ombro. — Então a Vorga não
tinha mesmo de me resgatar — riu Foyle. — Eu era uma isca.
Ninguém devia se aproximar de mim. Eu era uma armadilha, um
chamariz, um engodo mortal... Não é a primeira ironia. Nomad,
em primeiro lugar, não tinha nenhum direito de ser resgatada.
Eu não tinha nenhum direito de me vingar.
— Você ainda não entendeu — insistiu Sheffield. — Eles
estavam em alguma parte próximos da Nomad quando
224 ALFRED BESTER

te deixaram à deriva. Estavam a novecentos mil quilômetros da


Nomad.
— Novecentos m... ?
— A Nomad achava-se longe demais das rotas de
navegação. Queriam que você flutuasse por onde as naves
passariam. Te levaram novecentos mil quilômetros em direção
ao Sol e te soltaram. Te despejaram pela câmara compressora e
partiram. Observando você derivar. As luzes do seu traje
piscavam e você pedia socorro nas microondas. Mas então você
desapareceu.
— Desaparecí?
— Sumiu. Nada de luzes, nada de transmissão. Eles
voltaram para averiguar. Você sumiu sem deixar vestígios. E
outra coisa que soubemos... você voltou a bordo da Nomad.
— Impossível.
— Cara, você jauntou no espaço — disse Sheffield sel-
vagemente. — Estava estropiado e delirando, mas jauntou.
Jauntou novecentos mil quilômetros no vácuo até os escombros
da Nomad. Fez uma coisa que nunca se tinha feito antes. Só
Deus sabe como. Você nem se conhece; mas nós vamos
descobrir. Vou te levar comigo para os Satélites e vamos extrair
aquele segredo de você, nem que precisemos rasgá-lo.
Agarrou o pescoço de Foyle com a mão poderosa e ergueu
a arma na outra.
— Mas primeiro quero o PyrE. Vai me mostrar onde está,
Foyle. Não pense que não. — Golpeou a testa de Foyle com a
arma. — Vou fazer qualquer coisa pra conseguir. Não pense que
não. — Golpeou Foyle de novo, friamente, eficazmente. — Se
está buscando a purificação, cara, aqui está ela!
***

Bunny saltou do ponto de jauntação público em Five-


Points e, feito coelho assustado, disparou como um raio pela
entrada principal do escritório da Central de Informações em
Nova Iorque. Depois de desabalar pelo primeiro cordão de
guardas, atravessou o labirinto de proteção e penetrou os
escritórios internos. Detonou uma fileira de ex
TIGER! TIGER! 225

citados perseguidores e viu-se frente a frente com os mais


tarimbados guardas que haviam jauntado calmamente até
posições avançadas e o aguardavam.
Bunny começou a gritar: “Yeovil! Yeovil! Yeovil!’’.
Ainda correndo, esquivou-se de escrivaninhas, tropeçou
sobre cadeiras e criou um inacreditável tumulto. Continuou a
gritar: “Yeovil! Yeovil!’’. Justamente quando estavam a ponto
de aliviá-lo do desespero, surgiu Y’ang-Yeovil.
— O que está acontecendo? — falou ele bruscamente.
— Dei ordens para que fizessem absoluto silêncio para não
incomodar a srta. Wednesbury.
— Yeovil! — gritou Bunny.
— Quem é este?
— Assistente de Sheffield.
— O quê... Bunny?
— Foyle! — berrou Bunny. — Gully Foyle.
Y’ang-Yeovil cobriu os quinze metros que os distanciavam
em exatamente um sexto de segundo.
— Que é que tem Foyle?
— Sheffield o pegou — arfou Bunny.
— Sheffield? Quando?
— Há meia hora.
— Por que ele não o trouxe aqui?
— Não sei... Tenho uma idéia... Talvez seja um agente dos
S. E....
— E por que você não me procurou imediatamente?
— Sheffield jauntou com Foyle... Imobilizou-o num
instante e desapareceu. Procurei. Por toda parte. Tentei até.
Deve ter feito uns cinqüenta jauntes em vinte minutos...
— Amador! — exclamou Y’ang-Yeovil, exasperado.
— Por que não deixou a busca para os profissionais?
— Mas eu os encontrei.
— Encontrou? Onde?
— Na velha São Patrício. Sheffield está atrás de...
Mas Y’ang-Yeovil girara em seus calcanhares e corria pelo
corredor, gritando:
— Robin! Robin! Pare! Pare!
Nisso, um estrondo lhe feriu os ouvidos.
15
C^omo círculos de água que se ampliam num lago, a
Vontade e a Idéia expandiram-se, procurando, tocando e
disparando o delicado detonador subatômico do PyrE. O
pensamento encontrou partículas, grãos de poeira, fumaças,
vapores, ciscos, moléculas. A Vontade e a Idéia transformavam
todos eles.
Na Sicília, onde o dr. Franco Torre trabalhara exausti-
vamente durante um mês tentando descobrir o segredo de um
fragmento de PyrE, os resíduos e os precipitados foram
despejados num escoadouro, chegando ao mar. Durante muitos
meses, as correntezas do Mediterrâneo conduziram esses
resíduos ao fundo do mar. Em pouco tempo, montanhas de água
de cerca de quinze metros de altura acompanharam os cursos, a
nordeste, rumo à Sardenha, a sudeste, rumo aTrípoli. Num
microssegundo, a superfície do Mediterrâneo transformou-se
numa contorcida e gigantesca minhoca que se enrolava em torno
das ilhas de Pantelleria, Lampedusa, Linosa e Malta.
Alguns dos resíduos extinguiram-se; subiram por chaminés
como fumaça e vapor e foram carregados pelo vento por
centenas de quilômetros até se assentarem. Essas minúsculas
partículas manifestaram-se nos locais onde finalmente se
depositaram, como Marrocos, Argélia, Líbia e Grécia, na forma
de ofuscantes e insignificantes explosões de pequenez e
intensidade inacreditáveis. Alguns grãos,
TIGER! TIGER! 227

ainda à deriva na estratosfera, revelaram sua presença por meio


de brilhos magníficos, como estrelas em pleno dia.
No Texas, onde o prof. John Mantley chegou aos mesmos
experimentos desconcertantes com o PyrE, muitos dos resíduos
alcançaram os veios de um poço de petróleo exaurido, também
usado como depósito de resíduos radioativos. Um profundo
lençol freático absorvera enome quantidade do material,
espalhando-o lentamente por uma área de cerca de cinco
quilômetros quadrados. Ao finalmente encontrar vazão, um
vasto e não explorado manancial de gás natural rompeu
estridulando na superfície, onde centelhas produzidas por pedras
em atrito fizeram-no arder como ruidosa tocha, subindo cerca de
sessenta metros de altura.
Um miligrama de PyrE depositado num papel de filtro
havia muito descartado, esquecido, reciclado numa trans-
formadora de refugo, finalmente transformado em polpa e
colocado num molde de metal-tipo, destruiu toda a edição
noturna do Glasgow Observer. Um fragmento de PyrE que
respingou no guarda-pó de um cientista, depois usado na
fabricação de papel, destruiu um bilhete de agradecimento de
Lady Shrapnel, além de mais uma tonelada de correspondência
de primeira classe.
O punho de uma camisa, que por acaso mergulhou em
solução ácida de PyrE, e que depois de muito tempo foi usada
debaixo de um casaco de pele por um chacal jaunta- dor, numa
explosão amputou-lhe violentamente o pulso e a mão. Um
decimiligrama de PyrE, ainda fixado num antigo cristal de
evaporação e agora usado como cinzeiro, inflamou-se e arruinou
o escritório de um certo Baker, traficante de drogas e fornecedor
de monstros.
De um lado a outro do planeta ocorriam explosões isoladas,
explosões encadeadas, rendilhados de fogo, cabeças de alfinete
de fogo, chamas de meteoros no firmamento, grandes crateras e
estreitos canais, abertos na terra, explodidos na terra, vomitados
do interior da terra. Era como se um Deus Furioso tivesse vindo
fazer outra visita ao Seu povo com fogo e enxofre.
Na velha São Patrício, quase um décimo de um grama de
PyrE estava exposto no laboratório de Fourmyle. O resto
achava-se lacrado em seu cofre de Isômero de Chumbo Inerte,
protegido da detonação psicocinética acidental ou
228 ALFRED BESTER

intencional. A explosão ofuscante da energia gerada por aquele


um décimo de grama estourou as paredes e fendeu o chão, como
se um terremoto interno tivesse abalado o edifício. Os
arcobotantes sustentaram os pilares por uma fração de segundo e
então cederam num estrondo. Caíram torres, espirais, pilares,
arcobotantes e teto numa avalanche ensurdecedora, detendo-se,
hesitantes, sobre a cratera aberta no chão, num equilíbrio
emaranhado e precário. Um sopro de vento, uma vibração
distante e o desmoronamento continuaram até a cratera encher-
se compactamente de entulho pulverizado.
O calor quase estelar da explosão deflagrou centenas de
incêndios e derreteu o antigo e espesso cobre do teto desabado.
Se um miligrama mais tivesse sido detonado, o calor teria sido
intenso o suficiente para vaporizar imediatamente o metal. Em
vez disso, incandesceu e começou a escorrer. Brotou dos
escombros do teto esfacelado e começou a abrir seu caminho em
direção à mistura de pedra, ferro, madeira e vidro, como um
monstruoso molde derretido deslizando entre uma teia
emaranhada.
Dagenham e Y’ang-Yeovil chegaram quase ao mesmo
tempo. Um momento depois, Robin Wednesbury apareceu e, em
seguida, Jisbella McQueen. Uma dúzia de operários do serviço
secreto e seis mensageiros de Dagenham chegaram junto com a
Guarda-Jaunte de Presteign e a polícia. Formaram um cordão de
isolamento em torno do quarteirão incendiado, mas havia
pouquíssimos espectadores. Depois do impacto do ataque da
véspera do Ano-Novo, aquela única explosão assustara metade
dos habitantes de Nova Iorque, a ponto de jauntarem
desesperados em busca de segurança.
Eram assustadores os chiados produzidos pelas chamas,
sinistro o rangido denso de toneladas de escombros em instável
equilíbrio. Todos comunicavam-se aos gritos, mas temerosos
das vibrações. Y’ang-Yeovil berrou no ouvido de Dagenham a
notícia sobre Foyle e Sheffield. Dagenham acenou com a cabeça
e exibiu seu sorriso implacável.
— Temos de entrar — gritou Dagenham.
— Só com roupas especiais — gritou Y’ang-Yeovil.
Ele desapareceu e reapareceu trazendo dois trajes brancos à
prova de fogo, da Equipe de Desastres. Ao vê-los,
TIGER! TIGER! 229

Robin e Jisbella começaram a protestar histericamente. Os dois


homens as ignoraram, entraram na couraça de Isô- mero Inerte e
mergulharam no inferno.
Dentro da velha São Patrício, era como se uma mão
colossal tivesse remexido entulhos de madeiras, pedras e metais.
Através de cada fissura, rastejavam línguas de cobre derretido,
lentamente descendo, inflamando madeiras, esfacelando pedras,
estilhaçando vidros. Por onde fluía, o cobre simplesmente
reluzia; de onde brotava, porém, res- pingava fascinantes
gotículas de metal abrasado e branco.
Sob os entulhos escancarava-se uma cratera negra que
antes fora o chão da catedral. A explosão havia rachado o
pavimento de pedras, revelando os dois porões subterrâneos e as
galerias sob a construção. Também estes espaços achavam-se
entulhados de um emaranhado de pedras, vigas, canos, fios,
restos das barracas do Circo Four Mile; e todos eles dispararam
pequenas chamas espasmodicamente. Então o cobre liquefeito
pingou dentro da cratera, iluminando-a com uma pancada
derretida e brilhante.
Dagenham apertou o ombro de Y’ang-Yeovil para lhe
chamar a atenção e apontou. Na metade da cratera, em meio ao
emaranhado, encontrava-se o corpo de Regis Shef- field,
esquartejado e para ali carregado pelo impacto da explosão.
Y’ang-Yeovil apertou o ombro de Dagenham e apontou. Quase
no fundo da cratera encontrava-se Gully Foyle, e, quando os
respingos flamejantes de cobre derretido o iluminaram, eles o
viram se mexendo. Imediatamente os dois homens deram meia-
volta e saíram da catedral para conferenciar.
— Está vivo.
— Como é possível?
— Acho que sei. Viu os pedaços de material das barracas
perto dele? A inesperada explosão deve ter ocorrido na outra
extremidade da catedral e as barracas do meio protegeram Foyle.
Daí ele desceu pela cratera antes que alguma outra coisa o
atingisse.
— Faz sentido. Temos de tirá-lo de lá. Ê o único homem
que sabe onde está o PyrE.
— Será que ainda está aqui... sem ter explodido?
— Se guardado no cofre de I. C. I., sim. Ê um mate
230 ALFRED BESTER

rial resistente a tudo. Mas esqueça isso agora. Como vamos tirá-
lo de lá?
— Bom, não poderemos fazê-lo de cima da cratera.
— Por que não?
— Não te parece óbvio? Um passo em falso e todo aquele
entulho irá abaixo.
— Viu o cobre escorrendo para baixo?
— Deus, sim!
— Bom, se a gente não o tirar em dez minutos, ele estará
no fundo de uma poça de cobre derretido.
— O que podemos fazer?
— Tenho uma idéia arriscada.
— Qual?
— Os porões da velha R. C. A. do outro lado da rua são
tão profundos quanto os da São Patrício.
— E...?
— Descemos por lá e tentamos fazer uma perfuração.
Talvez consigamos tirar Foyle do fundo.
Uma equipe de operações irrompeu pelas instalações da
velha R. C. A., abandonadas e lacradas havia duas gerações.
Desceram às galerias do porão, derrubando antigos objetos das
lojas de varejo de séculos passados. Localizando os velhos
poços de elevador, através deles chegaram aos subporões,
repletos de instalações elétricas, geradores térmicos e sistemas
de refrigeração. Dali desceram aos poços coletores,
mergulhados até a cintura nas águas das torrentes da pré-
histórica Ilha de Manhattan, torrentes que ainda fluíam sob as
ruas que as ocultavam.
Quando avançavam com dificuldade pelas águas dos poços
coletores, mantendo a direção es-nordeste para chegar em frente
às galerias subterrâneas da catedral de São Patrício, de repente
descobriram que a escuridão densa à frente iluminava-se por
uma luz bruxuleante. Dagenham gritou e avançou
impetuosamente. A explosão que arrebentara os subporões da
São Patrício havia fendido o septo entre as galerias subterrâneas
e os poços coletores dos edifícios da R. C. A. Através de uma
abertura irregular entre as pedras e a terra, podiam observar o
fundo do inferno.
A quinze metros de profundidade estava Foyle, preso a um
labirinto entrelaçado de vigas, pedras, canos, metais e fios. Ele
estava iluminado por um fulgor intenso que vinha
TIGER! TIGER! 231

do alto e por termitentes labaredas à sua volta. Suas roupas


estavam em chamas, a tatuagem lívida estampada no rosto. Ele
se movia com dificuldade, como um animal desnorteado num
labirinto.
— Meu Deus! — exclamou Y’ang-Yeovil. — O homem
incandescente!
— Quê?
— O homem incandescente que vi na Escadaria da
Espanha. Isso não importa agora. O que vamos fazer?
— Entrar, é claro.
Um brilhante e branco jato de cobre de repente passou
perto de Foyle, mergulhando a cerca de quatro metros abaixo
dele. A este seguiu-se um segundo jorro, lento e uniforme, e
depois um terceiro. Começava a formar-se uma poça. Dagenham
e Y’ang-Yeovil fecharam as placas planas das couraças e
subiram pela abertura no septo. Depois de três minutos de
agonizante esforço, perceberam que não poderiam alcançar o
labirinto e Foyle. Estava bloqueada para o exterior, mas não pelo
interior. Dagenham e Y’ang- Yeovil recuaram para conferir.
— Não podemos chegar até ele — gritou Dagenham —,
mas ele pode sair.
— E como? Sem dúvida ele não pode jauntar, senão não
estaria lá.
— Não. Ele pode escalar. Veja. Vai para a esquerda, sobe,
vira na direção oposta, contorna aquela viga, escorrega por ela e
tenta ultrapassar o emaranhado de fios. A fiação não pode ser
empurrada para dentro, e por isso não há como chegar até ele,
mas pode ser empurrada para fora, e por isso ele pode sair. É
uma porta unívoca.
A poça de cobre derretido começou a subir em direção a
Foyle.
— Se ele não se mandar logo, será assado vivo.
— Temos de avisá-lo para sair... Dizer-lhe o que fazer.
Os homens começaram a gritar:
— Foyle! Foyle! Foyle!
O homem incandescente no labirinto continuou a mover-se
debilmente, o aguaceiro de cobre crepitante aumentou.
232 ALFRED BESTER

— Foyle! Vá pra esquerda. Pode me ouvir? Foyle! Vire pra


esquerda e suba. Depois... Foyle!
— Não tá ouvindo. Foyle! Gully Foyle! Está ouvindo?
— Mande chamar Jiz. Talvez ele a ouça.
— Não, Robin. Ela é telemissora. Ele vai ter que escutar.
— Mas ela fará isso? Salvá-lo de toda gente?
— Terá que fazer. Isso.é maior que o ódio. Ê maior do que
aquela coisa maldita que o mundo já viu. Vou chamá-la.
Y’ang-Yeovil começou a gritar. Dagenham o interrompeu.
— Espera, Yeo. Olha pra ele. Ele está bruxuleando.
— Bruxuleando?
— Veja! Ele está... piscando como um vagalume. Observe!
Ora você o vê, ora não.
O corpo de Foyle aparecia, desaparecia, tornava a aparecer
em rápidas sucessões, como um pirilampo pego numa armadilha
de fogo.
— O que é que tá fazendo agora? Que tá tentando fazer? O
que tá acontecendo?

***

Tentava escapar. Como um pirilampo aprisionado ou uma


ave marítima apanhada no braseiro flamejante do fogo de uma
bóia-farol, ele se debatia freneticamente... uma criatura
enegrecida e inflamada, arremessando-se contra o desconhecido.
Para ele, o som chegava como visão, como luzes em
estranhas formas. Ele via o som de seu nome gritado em vivida
cadência:

F OYL E F OYL E F OYL E


F OYL E F OYL E F OYL E
F OYL E F OYL E F OYL E
F OYL E F OYL E F OYL E
F OYL E F OYL E F OYL E
F OYL E F OYL E F OYL E
TIGER! TIGER! 233

Para ele, o movimento chegava como som. Ouviu as


contorções das chamas, ouvia as espirais de fumaça, ouvia as
sombras trêmulas e escarninhas... todas falando ensur-
decedoramente em línguas estranhas:
“BURUU GYARR RWAWW FAZERJERR?”, perguntava
o vapor.
“Asha. Asha, rit-kit-dit-zit m’gid”, respondiam as rápidas
sombras.
“Ohhh. Ahhh. Heee. Teee. Oooo. Ahhh”, clamavam as
ondas de calor. “Ahhh. Maaa. Paaa. Laaaaaaaaaaaa!”
Até mesmo as chamas que queimavam lentamente suas
roupas vociferavam algaravias em seus ouvidos.
“MANTERGEISTMANN!”, urravam elas, “UNVERTRA-
CKINSTEIGN GANZELSSFURSTINLASTENBRUGG!”.
Para ele era, cor era dor... calor, frio, pressão; sensações de
alturas insuportáveis e abismos sugadores, de espantosas
acelerações e esmagadoras compressões:

VERMELHO RETIROU-SE DELE.

LUZ VERDE ATACOU.

ÍNDIGO ONDULOU COM NAUSEANTE VELOCIDADE,


COMO SERPENTE SOBRESSALTADA.

Para ele, tato era paladar... a sensação de madeira era acre e


cretácea em sua boca, o metal era sal, a pedra sabia a agridoce à
ponta de seus dedos, e a sensação de vidro empanturrava seu
paladar como massas de exagerado condimento.
Odor era tato... Pedra quente cheirava a veludo acari-
ciando-lhe as faces. Fumaça e cinza eram ásperos tecidos de
algodão irritando-lhe a pele, quase a sensação de tela úmida.
Metal derretido cheirava a golpes martelando-lhe o coração, e a
ionização conseqüente da explosão do PyrE impregnava o ar de
ozônio que cheirava a água escorrendo entre os dedos.
Não estava cego, surdo, insensível. Para ele, existia a
sensação, mas filtrada por um sistema nervoso torcido e em
curto-circuito, em decorrência do choque da explosão do PyrE.
Sofria de sinestesia, o raro estado em que a percep
234 ALFRED BESTER

ção recebe mensagens do mundo objetivo e as transmite ao


cérebro, mas lá, no cérebro, as percepções sensoriais se
confundem. Assim, no interior de Foyle, som expressava-se
como visão, movimento como som, cores como sensações de
dor, tato como paladar e olfato como tato. Ele não caíra apenas
na armadilha do labirinto infernal nos subterrâneos da velha São
Patrício; estava preso também ao caleidoscópio de seus próprios
sentidos cruzados.
De novo desesperado, na medonha iminência da extinção,
ele abandonou todos os rigores e hábitos de vida; ou, talvez,
foram arrancados dele. De um produto condicionado do meio e
da experiência, retornou à antiga condição de criatura primitiva,
ansiando pela fuga e pela sobrevivência e exercendo toda a
força que possuía. E de novo teve lugar o milagre acontecido
dois anos antes. A energia inteira de um organismo humano
completo, de todas as células, fibras, nervos e músculos,
permitiu a realização desse anseio, e de novo Foyle jauntou pelo
espaço.
Ele zuniu pelas linhas espaciais geodésicas do universo
curvo à velocidade do pensamento, que ultrapassa de longe à da
luz. Era tão assustadora sua velocidade espacial que seu eixo
temporal desviou-se da linha vertical do Passado para a do
Agora e do Futuro. Ele continuou vibrando ao longo desse novo
eixo quase horizontal, esta nova linha geo- désica espaço-
temporal, impulsionado pelo milagre da mente humana não mais
inibida por conceitos do impossível.
Mais uma vez ele realizava o que não conseguiram Hel-
mut Grant e Enzio Dandridge, além de outros experimen-
tadores, porque seu pânico cego o forçava a abandonar as
inibições espaço-temporais que haviam desafiado tentativas
anteriores. Não jauntou para Algures, mas para Quandu- res.
Mas, o mais importante, a consciência quadridimen- sional, a
representação perfeita da Seta do Tempo e de sua posição em
relação a ela, inerente a todos os homens mas profundamente
soterrada pelas trivialidades da vida, acha- va-se em Foyle
próxima da superfície. Ele jauntou pelas geodésicas espaço-
temporais para Algures e Quandures, traduzindo “i”, a raiz
quadrada do um negativo, de um número imaginário para a
realidade através de um magnífico feito de imaginação.
TIGER! TIGER! 235

Jauntou.
Estava a bordo do Nomad, à deriva na indiferença vazia do
espaço.
Estava à porta de nenhures.
O frio sabia a limào e o vácuo eram garras rasgando sua
pele. O Sol e as estrelas eram um calafrio vibrante que abalavam
seus ossos.
“GLOMMHA FREDNIS O CLOMOHAMAGEN- SIN!”,
rugia o movimento em seus ouvidos.
Era um corpo de costas para ele esvaecendo pelo corredor;
um corpo com um caldeirão de cobre sobre o ombro; um corpo
correndo, flutuando, contorcendo-se em queda livre. Era Gully
Foyle.
“MEEHAT JESSROT PARA CRONAGAN MAS
FLIMMCORK”, berrava a visão de seu movimento.
“Aha! Oh-ho! M’git não kak”, o bruxuleio de luz e de
sombra respondeu.
“Oooooooh? Simmmmmm? Nããããããooo. Ahhhhhhl”,
murmurou o redemoinho de escombros na sua esteira.
O sabor-limão na boca tornou-se insuportável. O rasgo de
garras na pele era torturante.
Jauntou.
Reapareceu na fornalha sob a velha São Patrício em menos
de um segundo depois de ter desaparecido de lá. Estava sendo
sugado, assim como a ave marítima é atraída muitas vezes para
dentro das chamas, das quais ela luta para escapar. Suportou a
fornalha troante por apenas mais um segundo.
Jauntou.
Estava nas profundezas de Gouffre Martel.
As trevas negro-aveludadas eram ventura, paraíso, euforia.
— Ah! — gritou ele, aliviado.
“Ah!”, veio o eco de sua voz, e o som foi traduzido como
um desenho ofuscante de luz:
AHAHAHAHAHAHAHAHAH
HAHAHAHAHAHAHAHAHA
AHAHAHAHAHAHAHAHAH
HAHAHAHAHAHAHAHAHA
AHAHAHAHAHAHAHAHAH
HAHAHAHAHAHAHAHAHA
236 ALFRED BESTER

O homem incandescente estremeceu.


— Pare! — gritou, cegado pelo ruído. Mais uma vez veio o
atordoante desenho do eco:
PaRePaRePaRe
RePaRePaRePaRe
PaRePaRePaRePaRe
RePaRePaRePaRePaRe
RePa RePaRePaRePa
RePaRcPaRePaRePa
RePaRePaRePaRe
Um distante tropel de passos surgiu diante de seus olhos
em suaves desenhos de enfeites boreais verticais:

t t t t t t
r rrrrr
o o o o o
o
PPPPP
Pe e e e e e
1 11111

E
C
O
O
uu MG
R Z
I I
T G
O COMO UM U
E
Z
A
G
U
E DE R
E

AG
UM RAIO DE LUZ ATACOU °
TIGER! TIGER! 237

Era a equipe de busca do hospital de Gouffre Martel, à


procura de Foyle e de Jisbella McQueen através do geo- fone. O
homem incandescente desapareceu, mas não antes de ter
despistado os grupos de busca das pegadas dos fugitivos
desaparecidos.
Estava de volta, sob a catedral de São Patrício, reapa-
recendo apenas um instante após a última desaparição. Suas
tempestuosas pulsações para dentro do desconhecido o enviaram
às linhas geodésicas espaço-temporais que, inevitavelmente. o
trouxeram de volta ao Agora, de que ele tentava fugir; na
arqueada curva invertida do espaço-tem- po. seu Agora era a
mais profunda depressão da curva.
Ele conseguia impulsionar-se para cima, cada vez mais
para cima, nas linhas geodésicas, para dentro do passado ou do
futuro, mas inevitavelmente tinha de retornar ao seu Agora,
como uma esfera atirada pelas íngremes paredes de um poço
infinito, que caía, pairava apenas por um momento e então
rolava de volta para dentro dos abismos.
Em seu desespero, porém, ele ainda pulsava dentro do
desconhecido.
De novo jauntou.
Estava na praia de Jervis, na costa australiana.
O vaivém da rebentação das ondas vociferava: “LOG-
GERMIST CROTEHAVEN JALL. LOOGERMISK MO-
TESLAVEN DOOL”.
As espumas das ondas cegaram-no com as luzes de baterias
de canhões:
Gully Foyle e Robin Wednesbury estavam diante dele. O
corpo de um homem jazia na areia, sabendo a vinagre na boca do
homem incandescente. O vento que lhe roçava o rosto era como
papel pardo.
Foyle abriu a boca e exclamou. O som se transmitiu em
ardentes bolhas-estrelas:
Foyle deu um passo. “GRASH!”, clangorou o movimento.
O homem incandescente jauntou.
Estava no escritório do dr. Sergei Orei, em Xangai.
Foyle encontrava-se de novo diante dele, falando em
desenhos de luz:
238 ALFRED BESTER

WAY WAY WAY


HROHRO HRO
OEUOEU OEU

Lampejou de volta à agonia da velha São Patrício e


jauntou outra vez:
ESTAVA NA RUIDOSA ESCADARIA DA ESPANHA.
ESTAVA NA RUIDOSA ESCADARIA DA ESPANHA.
ESTAVA NA RUIDOSA ESCADARIA DA ESPANHA.
ESTAVA NA RUIDOSA ESCADARIA DA ESPANHA.
ESTAVA NA RUIDOSA ESCADARIA DA ESPANHA.
ESTAVA NA RUIDOSA ESCADARIA DA ESPANHA.
ESTAVA NA RUIDOSA ESCADARIA DA ESPANHA.
ESTAVA NA RUIDOSA ESCADARIA DA ESPANHA.

O homem incandescente jauntou.


Frio de novo, com o gosto de limão, e o vácuo rasgava sua
pele com garras indizíveis. Ele espiava pela vigia de um escaler
prateado. As montanhas recortadas da Lua elevavam-se no
fundo. Através da vigia, pôde ver os ruídos desagradáveis de
bombas de sangue e balões de oxigênio e ouvir os estrépitos dos
movimentos que Gully Foyle fazia em sua direção. As presas do
vácuo agarraram sua garganta num aperto agonizante.
As linhas geodésicas do espaço-tempo recuaram ao Agora
sob a catedral de São Patrício, onde menos de dois segundos se
passaram desde que ele começara a luta alucinada. Mais uma
vez, como uma lança flamejante, arremessou-se para dentro do
desconhecido.
Estava na Catacumba de Sklotsky, em Marte. A lesma
branca que era Lindsey Joyce se contorcia diante dele.
“NÃO! NÃO! NÃO!”, gritavam os movimentos dela. —
NÃO ME FIRA. NÃO ME MATE. NÃO, POR FAVOR... POR
FAVOR... POR FAVOR...”
O homem incandescente abriu a boca de tigre e riu.
— Ela fere — disse. O som de sua voz queimou seus olhos.
TIGER! TIGER! 239

E E E
L L L
AAA
FFF
EE E
RRR
E
LLL
AA A
FFF
EEE
R R R
E E E

— Quem é você? — sussurrou Foyle.

QQQQQQQQQQQQQQQQQQQQ
uuuuuuuuuuuuuuuuuuuu EEEEEEEEEEEEEEEEEEEE
MMMMMMMMMMMMMMMMMMMM
ÉÊÉÉÉÉÉÊÉÉÉÉÊÉÉÉÊÊÉÉ
VVVVVVVVVVVVVVVVVVVV
oooooooooooooooooooo cccccccccccccccccccc
ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ

O homem incandescente estremeceu.


— Brilhante demais — disse ele. — Menos luz.
Foyle avançou um passo.
“BLAA-GAA-DAA-MAWW-FRAA-MISHINGLIS-
TONVISTA!”, rugiu o movimento.
O homem incandescente tapou os ouvidos, em agonia.
— Alto demais — gritou. — Não ande tão alto.
O movimento contorcido da Sklotsky ainda gritava,
suplicando:
“NÃO ME FIRA. NÃO ME FIRA.”
O homem incandescente riu de novo.
— Ouça-a. Está gritando. Implorando. Não quer morrer.
Não quer ser ferida. Ouça-a.
“OLIVIA PRESTEIGN DEU A ORDEM. OLIVIA
PRESTEIGN. NÃO EU. NÃO ME FIRA. OLIVIA PRES-
TEIGN.“
240 ALERED BESTER

— Está dizendo quem deu a ordem. Pode ouvir? Ouça com


os olhos. Ela diz Olivia.
QUÊ? QUE? QUÊ?
QUÊ? QUÊ? QUÊ?
QUÊ? QUÊ? QUÊ?
QUÊ? QUÊ? QUÊ?

Foyle não suportou o fulgor do tabuleiro de perguntas.


— Diz Olivia. Olivia Presteign. Olivia Presteign. Olivia
Presteign.
Ele jauntou.
Voltou ao poço sob a catedral de São Patrício e, repen-
tinamente, a confusão e o desespero lhe disseram que ele estava
morto. Aquele era o fim de Gully Foyle. Aquilo era eternidade,
e o inferno era verdadeiro. O que ele vira era o passado
passando diante dos sentidos esfacelados no derradeiro
momento de morte. O que suportava era o que deveria suportar
para sempre. Estava morto. Ele sabia que estava morto.
Recusou-se a se render à eternidade.
: Mergulhou de novo no desconhecido.
O homem incandescente jauntou.
Ele era uma névoa cintilante... um grupo de estrelas flocos-
de-neve... uma chuva de diamantes líquidos. Havia o toque de
asas de borboletas em sua pele... Havia o gosto de um colar de
pérolas frias na boca oooo00o°ooooo000oooooo. Seus sentidos
caleidoscópicos entrecruzados eram incapazes de lhe dizer onde
estava, mas ele sabia que queria permanecer para sempre em seu
Nenhures.
— Oi, Gully.
— Quem é?
— Robin.
— Robin?
— A que foi Robin Wednesbury.
— Que foi?
— A que é Robin Yeovil.
— Não entendo. Estou morto?
— Não, Gully.
— Onde estou?
— Muito, muito longe da velha São Patrício.
TIGER! TIGER! 241

— Mas onde?
— Não posso desperdiçar o tempo explicando, Gully. Você
tem pouquíssimos momentos aqui.
— Por quê?
— Porque ainda não aprendeu a jauntar no espaço- tempo.
Tem de voltar e aprender.
— Mas eu sei. Devo saber. Sheffield disse que jauntei no
espaço até a Notnad... novecentos mil quilômetros.
— Aquilo lá foi um acidente, Gully, e você o fará de novo...
depois de ensinar-se... Mas agora não está jaun- tando. Ainda
não sabe controlar... como transformar qualquer Agora em
realidade. Daqui a pouco cairá de novo na velha São Patrício.
— Robin, acabei de me lembrar. Más notícias para você.
— Já sei, Gully.
— Sua mãe e suas irmãs estão mortas.
— Sei disso há muito tempo, Gully.
— Desde quando?
— Há trinta anos.
— Impossível.
— Não é, não. E longo, longo o caminho de volta à São
Patrício. Estou querendo explicar como você vai se salvar do
fogo, Gully. Irá me ouvir?
— Não estou morto?
— Não.
— Vou ouvir.
— Seus sentidos se confundiram. Isso passará logo, mas
não darei direções, como esquerda, direita, ou para cima, para
baixo. Vou dizer o que você pode entender agora.
— Por que está me ajudando... depois do que te fiz?
— Aquilo está perdoado e esquecido, Gully. Agora me
escute. Quando voltar à velha São Patrício, vire-se até ficar de
frente para as sombras mais audíveis. Entendeu?
— Sim.
— Caminhe na direção do barulho até sentir na pele uma
picada forte. Então pare.
— Então paro.
— Faça uma meia volta para dentro da compressão e de
uma sensação de queda. Siga em frente.
242 • ALFRED BESTER

— Sigo em frente.
— Você passará por uma sólida lâmina de luz e chegará
ao gosto de quinina. Na realidade é uma massa de fios.
Continue pela quinina até ver algo semelhante a martinete de
forja. Estará livre.
— Como sabe tudo isso, Robin?
— Aprendi com um expert, Gully. — Houve a sensação de
riso. — Daqui a qualquer momento você cairá de volta ao
passado. Peter e Saul estão aqui. Dizem au revoir e boa sorte. E
Jiz Dagenham também. Boa sorte, querido Gully...
— O passado? Isso aqui é o futuro?
— Sim, Gully.
— Estou aqui? É... Olivia?
E então viu-se caindo, caindo, caindo pelas linhas do
espaço-tempo, de volta ao apavorante poço do Agora.
16
INfa Câmara Estrelada de marfim e ouro no Castelo de
Presteign, os sentidos de Foyle descruzaram. A visão tornou-se
visão e ele viu os espelhos altos e as janelas de vitral; a
biblioteca de livros encadernados a ouro e bibliotecários
andróides em escadas. O som tornou-se som e ele ouviu a
secretária andróide registrando no gravador de cabeça- memo
manual à escrivaninha Luís XV. O paladar tornou-se paladar
quando bebeu um gole do conhaque que o garçom- robô lhe
serviu.
Sabia que estava acuado, defrontando-se com a decisão de
sua vida. Ignorou os inimigos e examinou o permanente aspecto
radiante talhado no rosto robótico do garçom, o clássico sorriso
irlandês.
— Obrigado — disse Foyle.
— O prazer é meu, senhor — respondeu o robô, e esperou
a deixa seguinte.
— Belo dia — observou Foyle.
— Sempre um lindo dia em alguma parte, senhor —
transmitiu o robô.
— Dia feio — disse Foyle.
— Sempre um lindo dia em alguma parte, senhor —
respondeu o robô.
— Dia — disse Foyle.
— Sempre um lindo dia em alguma parte, senhor — disse
o robô.
244 ALFRED BESTER

Foyle dirigiu-se aos outros.


— Este sou eu — disse, indicando o robô. — Este somos
todos nós. Tagarelamos sobre o livre-arbítrio, mas somos apenas
reação... reação mecânica com padrões estabelecidos. Assim...
aqui estou, aqui estou, esperando para responder. Apertem os
botões e eu salto. — Imitou a voz enlatada do robô. — Prazer
em servi-lo, senhor. — De repente, vociferou para eles. — O
que querem de mim?
Agitaram-se com ansiedade. Foyle estava queimado,
exausto, castigado... e no entanto mantinha todos sob seu
controle.
— Vamos estipular as punições — disse Foyle. — Serei
enforcado, arrastado e esquartejado, torturado no inferno se
não... O quê? O que querem?
— Quero minha propriedade — disse Presteign com um
sorriso frio.
— Extraordinários oito quilos e pouco de PyrE. Sim. O que
oferece?
— Não faço nenhuma oferta, senhor, exijo o que é meu.
Y’ang-Yeovil e Dagenham começaram a falar. Foyle
mandou-os calar.
— Um botão por vez, cavalheiros. No momento Presteign
está tentando me fazer dar cambalhotas. — Voltou-se para
Presteign. — Aperte com mais pressão, sangue e dinheiro, ou
então procure outro botão. Quem é você para fazer exigências
agora?
Presteign comprimiu os lábios.
— A lei... — começou.
— O quê? Ameaças? — Foyle gargalhou. — Está querendo
me obrigar a alguma coisa? Não seja tolo. Converse comigo do
jeito que conversou na véspera do Ano-Novo, Presteign... sem
piedade, sem perdão, sem hipocrisia.
Presteign curvou a cabeça, respirou fundo e fechou o
sorriso.
— Ofereço-lhe poder — disse. — Adoção como meu
herdeiro, sociedade na Presteign Enterprises, a chefia do clã e da
seita. Juntos seremos donos do mundo.
— Com PyrE?
— Sim.
T1GER! TIGER! 245

— Sua proposta foi registrada e recusada. Oferece sua


filha?
— Olivia? — Presteign engasgou-se e cerrou os punhos.
— Sim, Olivia. Onde está ela?
— Seu ordinário! — gritou Presteign. — Sujo... ladrão...
Atreve-se a...
— Ofereceria sua filha em troca do PyrE?
— Sim — respondeu Presteign, quase inaudível.
Foyle dirigiu-se a Dagenham.
— Aperte o seu botão, cabeça de morte — disse.
— Se a discussão for conduzida neste nível... — retrucou
Dagenham.
— Será. Sem piedade, sem perdão, sem hipocrisia. O que
oferece?
— Glória.
— Ah?
— Não podemos oferecer nem dinheiro nem poder.
Oferecemos honra. Gully Foyle, o homem que salvou os Planetas
Interiores da destruição. Oferecemos segurança. Limparemos
seus antecedentes criminais, daremos um nome honrado,
garantiremos um nicho no hall da fama.
— Não — interrompeu Jisbella McQueen com rispidez. —
Não aceite. Se quer ser um salvador, destrua o segredo. Não dê o
PyrE para ninguém.
— O que é PyrE?
— Quieta! — estalou Dagenham.
— Um explosivo termonuclear que é detonado apenas pelo
pensamento... pela psicocinese — disse Jisbella.
— Que pensamento?
— O desejo de detoná-lo, concentrado nele. Isso conduz o
material à massa crítica, se não estiver isolado pelo Isômero de
Chumbo Inerte.
— Disse-lhe para ficar quieta — rosnou Dagenham.
— Se todos tiveram sua vez com ele, quero a minha.
— Isso é maior que idealismo.
— Nada é maior que idealismo.
— O segredo de Foyle é — murmurou Y’ang-Yeovil. —
Sei que, neste momento, o PyrE é relativamente insignificante. —
Sorriu para Foyle. — O auxiliar de Sheffield
246 ALFRED BESTER

ouviu parte da discussão entre vocês dois na São Patrício.


Sabemos a respeito de sua jauntação pelo espaço.
Houve um silêncio repentino.
— Espaço-jauntação — exclamou Dagenham. — Im-
possível. Não está falando sério.
— Estou, sim. Foyle demonstrou que a espaço-jauntação
não é impossível. Ele jauntou novecentos mil quilômetros de
um caça dos S. E. para os escombros da Nomad. Como eu disse,
isso é bem maior do que o PyrE. Gostaria primeiro de discutir
essa questão.
— Todo mundo já disse o que quer — interveio Robin
Wednesbury calmamente. — E você, Gully Foyle, o que quer?
— Obrigado — respondeu Foyle. — Quero ser punido.
— O quê?
— Quero ser purificado — disse.coma voz sufocada. As
marcas começaram a aparecer em seu rosto enfaixado. — Quero
pagar pelo que fiz e acertar as contas. Quero me livrar desta
cruz abominável que estou carregando... esta dor que está
rebentando minha espinha. Quero voltar para Gouffre Martel.
Quero uma lobo, se a mereço... e sei que sim. Quero...
— Quer fugir? — interrompeu Dagenham. — Não há
escapatória.
— Quero alívio!
— Impossível — disse Y’ang-Yeovil. — Existem coisas
valiosíssimas contidas aí na tua cabeça que não podem se perder
com a lobotomia.
— Estamos além de coisas infantis como crime e castigo
— acrescentou Dagenham.
— Não — objetou Robin. — Sempre haverá pecado e
perdão. Nunca estaremos além deles.
— Lucros e perdas, pecado e perdão, idealismo e realismo
— sorriu Foyle. — Vocês são tão seguros, tão simples, tão
ingênuos. Sou o único que duvida. Vejamos até que ponto são
seguros. Renunciará a Olivia Presteign? A meu favor, sim?
Entregará sua filha nas mãos da lei? Ela é uma assassina.
Presteign tentou levantar-se, mas caiu em sua cadeira.
TIGER! TIGER! 247

— Deverá haver perdão, Robin? Perdoaria Olivia


Presteign? Ela matou sua mãe e suas irmãs.
Robin empalideceu. Y’ang-Yeovil tentou protestar.
— Os Satélites Exteriores não têm PyrE, Yeovil. Shef-
field me revelou isso. Você o usaria contra eles assim mesmo?
Transformará meu nome num anátema corriqueiro... como
Lynch e Boycott? — Voltou-se para Jisbella. — Seu idealismo a
levará de volta a Gouffre Martel para cumprir a sentença? E
você, Dagenham, desistirá dela? A deixará ir?
Ouviu os protestos e por um momento observou o tumulto,
triste e constrangido.
— A vida é tão simples — disse. — Esta decisão é tão
simples, não? Devo respeitar os direitos de propriedade de
Presteign? O bem-estar dos planetas? Os ideais de Jisbella? O
realismo de Dagenham? A consciência de Robin? Apertem o
botão e vejam o robô pular. Mas não sou um robô. Sou um
monstro do universo... um animal pensante... e estou tentando
ver um caminho claro em meio a esse emaranhado. Devo
entregar o PyrE ao mundo e deixá-lo se destruir? Devo ensinar
ao mundo como jauntar no espaço e deixar que nosso show de
fenômenos se difunda de galáxia a galáxia por todo o universo?
Qual é a resposta?
O robô-garçom arremessou a coqueteleira de vidro do
outro lado da sala e ecoou um ressoante ruído de quebra. No
silêncio atônito que se seguiu, Dagenham grunhiu:
— Droga! Minha radiação avariou outra vez seu boneco,
Presteign.
— A resposta é sim — respondeu o robô, com clareza.
— O quê? — perguntou Foyle, tomado de surpresa.
— A resposta à sua pergunta é sim.
— Obrigado — disse Foyle.
— O prazer é meu, senhor — respondeu o robô. — Um
homem é, em primeiro lugar, um membro da sociedade, e em
segundo, um indivíduo. Deve-se optar pela sociedade, escolha
ela ou não a destruição.
—Totalmente enguiçado — disse Dagenham com im-
paciência. — Desligue-o, Presteign.
— Espere — pediu Foyle. Olhou para o sorriso radiante
gravado no rosto de aço do robô. — Mas a sociedade pode ser
estúpida. Confusa. Você testemunhou esta reunião.
248 ALFRED BESTER

— Sim, senhor, mas o senhor deve ensinar, não ditar. Deve


ensinar a sociedade.
— A espaço-jauntar? Por quê? Por que atingir as estrelas e
as galáxias? Para quê?
— Porque está vivo, senhor. Poderia também perguntar:
por que a vida? Não faça esta pergunta. Viva a vida.
— Completamente doido — murmurou Dagenham.
— Mas fascinante — murmurou Y’ang-Yeovil.
— Deve haver mais alguma coisa na vida além de vivê- la
simplesmente — disse Foyle para o robô.
— Pois então descubra-a, senhor. Não peça ao mundo que
pare de girar porque o senhor tem dúvidas.
— E por que não podemos todos nós avançar juntos?
— Por que são diferentes. Não são roedores. Alguém tem
de liderar, e esperar que o resto o siga.
— Quem lidera?
— Os homens que devem liderar... homens dirigidos,
homens impelidos.
— Monstros.
— Os humanos são todos monstruosos, senhor. Mas
sempre foram monstruosos. A vida é monstruosa. Isto é
esperança e glória.
— Muitíssimo obrigado.
— O prazer é meu, senhor.
— Você me salvou o dia.
— Sempre um dia lindo em alguma parte, senhor —
transmitiu o robô. Em seguida chiou, grasnou e desabou.
Foyle voltou-se para os outros.
— Esta coisa está certa — disse —, e vocês estão errados.
Quem somos nós, qualquer um de nós, para decidir em nome do
mundo? Que o mundo decida por si mesmo. Quem somos nós
para guardar segredos do mundo? Que o mundo saiba e decida
por si mesmo. Vamos à São Patrício.
Jauntou; seguiram-no. O quarteirão continuava com
cordões de isolamento e agora uma enorme multidão se
amontoava ali. Tantos imprudentes e curiosos estavam
jauntando para dentro das ruínas fumegantes que a polícia
montara um campo de indução protetor para mantê-los à
distância. Mesmo assim, garotos, caçadores de curiosidades e
irresponsáveis tentaram jauntar para dentro dos es-
TIGER! TIGER! 249

combros, queimando-se no campo de indução e indo-se embora


aos gritos de dor.
A um sinal de Y’ang-Yeovil, desligaram o campo. Foyle
passou pelo entulho escaldante até a parede a leste da catedral,
que se estendia por cinco metros de altura. Sentiu as pedras
fumegantes, pressionou e usou a alavanca. Houve um rangido
estridente e uma parte de um metro por um metro e meio abriu-
se ruidosamente e então emperrou. Foyle agarrou-a e puxou. A
parte estremeceu; então os gonzos calcinados caíram e o painel
de pedra desmoronou.
Dois séculos antes, quando se aboliu a religião organizada e
os cultores ortodoxos de todas as fés foram obrigados a refugiar-
se em subterrâneos, algumas almas devotas construíram aquele
nicho secreto na velha São Patrício e o transformaram em altar.
O ouro do crucifixo ainda reluzia com o fulgor da fé eterna. Ao
pé da cruz jazia uma pequena caixa preta de Isômero de Chumbo
Inerte.
— Isto é um sinal? — arquejou Foyle. — Será a resposta
que procuro?
Agarrou o pesado cofre antes que algum outro o fizesse.
Jauntou cem metros até os restos da escada da catedral em frente
a Quinta Avenida. Ali abriu o cofre, diante da multidão pasma.
Um grito de consternação elevou-se dos grupos de homens do
serviço secreto que conheciam a verdade de seu conteúdo.
— Foyle! — exclamou Dagenham.
— Pelo amor de Deus, Foyle! — gritou Y’ang-Yeovil.
Foyle retirou um pedaço de PyrE, da cor dos cristais de
iodo, do tamanho de um cigarro... meio quilo do isótopo
transplutoniano em solução sólida.
— PyrE! — berrou para o populacho. — Tome! Fique com
ele! É o seu futuro. PyrE! — Atirou o pedaço para a multidão e
gritou sobre os ombros: — “SanFran. Colina Russa.”
Jauntou por St. Louis-Denver até São Francisco, chegando
ao ponto da Colina Russa, onde eram quatro horas da tarde e as
ruas fervilhavam com os últimos compradores jauntadores.
— PyrE! — urrou Foyle. Seu rosto de diabo brilhava
vermelho-sangue. Era umà visão estarrecedora. — PyrE. Todo
seu. Perguntem a eles o que é. Para Nome! — gritou
250 ALFRED BESTER

ele para os perseguidores que acabavam de chegar, e jaun- tou.


Era hora de almoço em Nome, e os lenhadores que
deixavam de jaunte as serrarias para comer seu bife e tomar sua
cerveja sobressaltaram-se com o homem cara de tigre que lhes
jogava meio quilo de uma liga da cor do iodo e lhes gritava na
língua da sarjeta:
— Pyre! Ouviram,-caras? Me escutem aí, vocês. PyrE! Não
esquentem a cabeça, de vocês. Perguntem pra eles o que PyrE é,
só!
Para Dagenham, Y’ang-Yeovil e outros, que, como sempre,
jauntavam segundos depois dele, ele gritou:
— Tóquio. Ponto imperial! — Desapareceu uma fração de
segundo antes de os disparos serem feitos.
Eram nove horas de uma manhã limpa e fresca em Tóquio,
e a multidão da hora do pico que remoinhava em torno do ponto
imperial, ao lado do lago das carpas, viu-se paralisada por um
samurai com cara de tigre que surgiu e lhes arremessou um
pedaço de curioso metal e advertências inesquecíveis.
Foyle rumou para Bancoc, onde caía um aguaceiro, e para
Déli, onde devastava a monção... sempre perseguido em seu
roteiro alucinado. Eram três da madrugada em Bagdá, e os
freqüentadores de boates e bares que, como em todo o mundo,
excediam a hora de fechar saudaram-no alcoolicamente. Em
Paris e de novo em Londres era meia- noite, e as pessoas no
Champs Êlysées e no Piccadilly Circus ficaram galvanizadas
pela aparição e pela apaixonada exortação de Foyle.
Tendo conduzido os perseguidores a três quartos de uma-
volta ao mundo em cinqüenta minutos, Foyle permitiu ser
alcançado por eles em Londres. Permitiu também que o
vencessem, tomassem de seus braços o cofre de I. C. L,
contassem os pedaços restantes de PyrE e fechassem o cofre.
— Sobrou o suficiente para uma guerra. O bastante para a
destruição... o extermínio... se tiverem coragem. — Gargalhava
e chorava, histericamente triunfante. — Milhões para a defesa,
mas nenhum centavo para a sobrevivência.
TIGER! TIGER! 251

— Percebe o que fez, seu maldito assassino?— berrou


Dagenham.
— Sei o que fiz.
— Quatro quilos e meio de PyrE espalhados pelo mundo!
Um pensamento e nós... Como reavê-los sem lhes contar a
verdade? Pelo amor de Deus, Yeo, afaste essa multidão. Não os
deixe ouvir isso.
— Impossível.
— Então vamos jauntar.
— Não — vociferou Foyle. — Deixe-os ouvir. Deixe-os
ouvir tudo.
— Você é doido, cara. Deu uma arma carregada nas mão
de crianças.
— Pare de tratá-los como crianças e eles pararão de se
comportar como crianças. Quem pensa que é para se passar por
professor?
— Do que está falando?
— Pare de tratá-los como crianças. Explique para eles
como é a arma carregada. Ponha tudo às claras. — Foyle riu
selvagemente. — Terminei a última conferência da Câmara
Estrelada do mundo. Expus o último segredo. De agora em
diante, nenhum segredo mais... Nada de dizer para as crianças o
que é bom elas conhecerem... Deixe-as crescer. Já é hora.
— Cristo, ele é doido.
— Sou? Devolví vida e morte às pessoas que vivem e
morrem. O homem comum já foi fustigado e conduzido o
suficiente por homens dirigidos como nós... Homens com-
pulsivos... Homens-tigres que não se abstêm de açoitar o mundo
que têm à frente. Somos todos tigres, nós três, mas quem afinal
somos nós para decidir pelo mundo simplesmente porque somos
compulsivos? Que o mundo escolha por si mesmo entre vida e
morte. Por que deveriamos nós arcar com a responsabilidade?
— Não arcamos — disse calmamente Y’ang-Yeovil. —
Somos impelidos. Forçados a assumir a responsabilidade de que
o homem médio se esquiva.
— Pois então deixe-o parar de se esquivar. Que ele pare de
jogar seu dever e sua culpa em cima dos ombros do primeiro
monstro que se dispõe a agarrá-los. Por que temos de ser para
sempre o bode expiatório para o mundo?
252 ALFRED BESTER

— Maldito! — vociferou Dagenham. — Não entende que


não se pode confiar nas pessoas? Não sabem o suficiente nem
para si mesmas.
— Então que aprendam ou morram. Estamos todos nessa.
Vivamos juntos ou morramos juntos.
— Quer morrer com a ignorância delas? Trate de encontrar
uma maneira de reaver aqueles pedaços de PyrE sem que
precisemos abrir o jogo.
— Não. Acredito neles. Antes de me transformar num
tigre, fui um deles. E todos poderão se tornar incomuns quando
tomarem consciência, como eu tomei.
Foyle reanimou-se e jauntou abruptamente para a cabeça
da estátua de bronze de Eros, quinze metros acima do solo no
Piccadilly Circus. Pousou precariamente e gritou:
— Me escutem, vocês todos! Escutem, caras! Sermão, vou
pregar. Se liguem nessa, vocês todos!
Como resposta, ouviu gargalhadas.
— Porcos, vocês. Apodrecem como porcos, vocês. Têm o
máximo dentro de vocês, e usam o mínimo. Me escutam, vocês?
Milhões dentro de vocês, e gastam centavos. Um gênio dentro
de vocês, e se acham malucos. Um coração dentro de vocês, e se
sentem vazios. Vocês todos. Cada um de vocês...
Zombaram dele. Ele prosseguiu com a paixão histérica de
um possesso.
— Admitem uma guerra pra poder gastar. Admitem uma
encrenca pra poder pensar. Admitem um desafio pra se sentir
grandes. O resto do tempo vagabundeiam, vocês. Porcos, vocês!
Tudo bem, que se danem! Desafio vocês, eu! Morram ou vivam
e sejam grandes. Arrebentem-se com o Cristo que se mandou ou
venham comigo, que farei vocês grandes. Morram, malditos, ou
venham e me encontrem, eu, Gully Foyle, e farei vocês grandes.
Dou as estrelas, para vocês. Homens, faço de vocês!
***
Jauntou para as linhas geodésicas de espaço-tempo, para
um Algures e um Quandures. Alcançou o caos. Por um
momento pairou sobre um precário para-Agora e então caiu de
volta ao caos.
TIGER! TIGER! 253

“Tem que dar", pensou. “Tem que ser feito."


Jauntou de novo, uma lança flamejante lançada de
desconhecido para desconhecido, e de novo ele caiu de volta no
caos do para-espaço e do para-tempo. Perdeu-se em Ne- nhures.
“Acredito", pensou. “Tenhofé."
Jauntou de novo e de novo fracassou.
“Fé em quê?", perguntou-se, à deriva no limbo.
“Fé na fé", respondeu-se. “Não é- necessário que haja
algo em que acreditar. E necessário apenas acreditar que em
algum lugar existe algo em que vale a pena acreditar."
Jauntou pela última vez e o poder de sua disposição em
acreditar transformou o para-Agora de sua destinação a esmo
num verdadeiro...
AGORA: Rigel em Ôrion, ardendo brancazul, a quinhentos
e quarenta anos-luz da Terra, dez mil vezes mais luminosa que o
Sol, uma caldeira de energia circundada por trinta e sete planetas
imponentes... Congelando-se e sufocando no espaço, Foyle
encontrava-se frente a frente com o inacreditável destino em que
ele acreditava, mas que era ainda inconcebível. Pairou no espaço
por um momento cego, tão indefeso, tão deslumbrado e no
entanto tão inevitável quanto a primeira criatura de guelras que
emergiu do mar e hesitou arquejante na primeva praia na aurora
da história da vida sobre a Terra.
Espaço-jauntou, transformando o para-Agora em...
AGORA: Vega em Lira, uma estrela AO a vinte e seis
anos-luz da Terra, ardendo mais azul que Rigel, sem planetas,
mas circundada por enxames de cometas brilhantes cujas caudas
gasosas cintilavam no firmamento azul-es- curo...
E de novo transformou o agora em AGORA: Canopus,
amarela como o Sol, gigantesca, trovejante na imensidão vazia
do espaço, enfim invadida por uma criatura que antes tivera
guelras. A criatura hesitava, arquejando na praia do Universo,
mais próxima da morte do que da vida, mais próxima do futuro
do que do passado, dez léguas além do fim do vasto mundo.
Vagava nas massas de poeira, meteoros e grãos de poeira que
rodeavam Canopus num amplo e plano
254 ALFRED BESTER

anel, como os anéis de Saturno e da largura da órbita de


Saturno...

AGORA: Aldebarã em Taurus, uma monstruosa estrela


vermelha de um par de estrelas cujos dezesseis planetas
traçavam elipses de alta velocidade em torno dos parentes que
giravam. Ele arremessava-se pelo espaço-tempo com segurança
crescente...

AGORA: Antares, uma gigante vermelha MI, emparelhada


como Aldebarã, duzentos e cinqüenta anos-luz da Terra,
circundada por duzentos e cinqüenta planetóides da dimensão de
Mercúrio, da atmosfera de Eden...

E finalmente... AGORA:
Estava de volta a bordo da Nomad.

A moça, Moira, encontrou-o no depósito de ferramentas a


bordo da Nomad, encolhido como uma tensa bola fetal, o rosto
encovado, os olhos faiscando com revelações divinas. Embora o
asteróide havia muito tivesse sido restaurado e hermetizado,
Foyle ainda simulava a existência perigosa que o gerara anos
antes.
Agora, porém, ele dormia e meditava, digerindo e
abrangendo a grandeza que aprendera. Despertou do sonho para
o êxtase e derivou para fora do depósito, passando por Moira
com olhos cegos, afastando-se da moça espantada que recuou e
caiu de joelhos. Ele flutuou pelos corredores vazios e retornou
ao útero do depósito. Encolheu-se de novo e perdeu-se.
Ela o tocou uma vez; ele não se mexeu. Ela pronunciou o
nome que estivera gravado em seu rosto. Ele não respondeu. Ela
voltou-se e correu para o interior do asteróide, para o santuário
dos santuários em que reinava Joseph.
— Meu marido voltou para junto de nós — disse Moira.
— Seu marido?
— O homem-Deus que nos destruiu.
O rosto de Joseph manchou-se de raiva.
— Onde está ele? Mostre-me!
— Não irá feri-lo, não?
TIGER! TIGER! 255

— Todas as dívidas devem ser pagas. Leve-me até ele.


Joseph seguiu-a até o depósito a bordo da Nomad e
examinou Foyle atentamente. A raiva no rosto dele deu lugar ao
assombro. Tocou Foyle e falou com ele; ainda não houve
resposta.
— Não pode castigá-lo — disse Moira. — Está morrendo.
— Não — respondeu Joseph calmamente. — Está so-
nhando. Eu, um sacerdote, conheço estes sonhos. Logo des-
pertará e nos contará, seu povo, seus pensamentos.
— E então o castigará.
— Ele já encontrou o castigo dentro de si mesmo — disse
Joseph.
Esperou do lado de fora do depósito, preparado para
aguardar o despertar. A moça, Moira, correu pelos corredores
tortuosos e momentos depois retornou com uma bacia de prata
cheia de água quente e uma salva de prata com comida. Banhou
Foyle carinhosamente e então depositou a salva diante dele,
como uma oferenda. Em seguida sentou- se ao lado de Joseph...
ao lado do mundo... preparadapara aguardar o despertar.
Sobre o autor

Alfred Bester nasceu em 1913 e estudou na Universidade de


Pensilvânia. Tornou-se autor profissional em 1939. quando
venceu uma competição literária. Seu romance O Homem De-
molido {The Demolished Man), recebeu o prêmio Revelação do
Ano do 11? Congresso Mundial de Ficção Científica. Outros
livros publicados: Extro, em 1975, e A Luz Fantástica (The
Light Fantastic, uma coletânea de pequenas novelas publicada
em 1971).

Impresso na
03043 Rua Martim Burchard. 246
Brás • S5o Paulo - SP
Fono (011) 2704388 (PABX)
com filmes fornecidos pelo Editor
Sistema solar, século XXIV. Três planetas, oito
satélites e onze biltíões de seres humanos.
Automóveis, navios, trens e aviões são coisa do
passado. O .meio de locomoção é o pensamento,
e as pessoas “jauntam”: saltam no espaço
materializando-se em qualquer local desejado.
Mas existe um limite.- 1 600 km. Ninguém jamais
ultrapassou essa marca. Quem o fizer, poderá
colonizar as estrelas. Mais do que isso, terá o
poder de acabar com a guerra, uma guerra
interplanetária que ameaça destruir a Terra...

Tradução de Geraldo Galvão Ferraz e José


Antonio Arantes. Capa: arte por computador Wilton Azevedo

ISBN: 85'11-23087-4

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