Tiger Tiger - Alfred Bester
Tiger Tiger - Alfred Bester
Tiger Tiger - Alfred Bester
ALFRED BESTER
TIGER! TIGER!
ALFRED BESTER
Alfred Bester
TIGER! TIGER!
Tradução
Geraldo Galvão Ferraz
e
José Antonio Arantes
editora brasiliense
1988
Copyright ©Alfred Bester, 1955 Título original: Tiger! Tiger!
Copyright © da tradução: Editora Brasiliense S. A.
Arte de capa:
Equipamento cedido pela Computer Graphics.
Foto:
Paulo Jantalia
z
Revisão:
Lúcio F. Mesquita Filho
ISBN: 85-11-23087-4
editora brasiliense s a
rua da consolação, 2697
01416 ■ são paulo - sp.
fone (011) 280-1222
brasiliense telex: 11 33271 DBLMBR
Prólogo
***
A nave espacial Nomad flutuava a meio caminho de Marte
e Júpiter. Alguma catástrofe de guerra a destruira, pegara um
foguete brilhante de aço, com mais de noventa metros de
comprimento e trinta de diâmetro e o mastigara deixando um
esqueleto ao qual se agarravam os restos de cabinas, depósitos
de carga, conveses e tabiques. Grandes fendas na fuselagem
eram fulgores de luz do lado do Sol e gélidas manchas de
estrelas do lado escuro. O S. S. Nomad era um vazio
imponderável de sol cegante e sombra negra, gelada e
silenciosa.
O destroço estava cheio de um amontoado flutuante de
restos gelados que pendiam dentro da nave destruída como
numa fotografia instantânea de uma explosão. A mínima
TIGER! TIGER! 17
***
— Quem é você?
— Gully Foyle é meu nome.
— De onde vem?
— Terra é minha nação.
— Onde está agora?
— Espaço profundo é minha morada.
— Para onde vai?
— Morte é a minha destinação.
No 170? dia de luta pela sobrevivência, Foyle respondeu
essas perguntas e despertou. Seu coração batia forte e a garganta
queimava. Tateou no escuro em busca do tanque de ar que
partilhava com ele o caixão e o examinou. Estava vazio. Outro
tinha de ser acionado imediatamente. Então aquele dia
começaria com uma escaramuça extra com a morte, o que Foyle
aceitou com silenciosa resignação.
Ele procurou pelas gavetas do armário e localizou um traje
espacial rasgado. Era o único a bordo da Nomad e Foyle não se
lembrava mais onde e como o havia achado. Ele fechara o
rasgão com o spray de emergência, mas não tinha como encher
ou substituir os depósitos vazios de oxigênio nas costas. Foyle
entrou no traje. Ele conservava ar suficiente do armário para lhe
permitir cinco minutos no vácuo... só isso.
18 ALFRED BESTER
***
— Quem é você?
— Gully Foyle.
— De onde vem?
— Terra.
— Onde está agora?
— Espaço.
— Para onde vai?
Acordou. Estava vivo. Não perdeu tempo rezando nem
agradecendo, continuou a tarefa de sobreviver. Na escuridão,
explorou as gavetas do armário onde guardava as rações. Só
havia mais alguns pacotes. Como ele já estava usando o traje
espacial remendado, poderia, se quisesse, passar pelos perigos
do vácuo e refazer suas reservas.
Encheu o traje espacial de ar do tanque, fechou outra vez o
capacete e partiu de novo para o gelo e a luz. Enfiou-se pelo
corredor do convés principal e subiu pelos restos de uma escada
até a ponte de controle, que não era mais que um corredor com
teto para o espaço, já que a maioria das paredes fora destruída.
Com o Sol à direita e as estrelas à esquerda, Foyle rumou
para trás, rumo à despensa da cozinha. A meio caminho no
corredor, passou por uma porta ainda de pé entre a ponte e o
teto. A folha da porta ainda estava presa em seus gonzos, meio
aberta, uma porta para o nada. Atrás dela, o espaço e as estrelas
impassíveis.
Quando Foyle passou pela porta, teve uma rápida visão de
si mesmo refletido no cromo polido da folha: Gully Foyle, uma
criatura negra gigante, barbuda, coberta de sangue seco e sujeira,
magra, com olhos doentes e pacientes... e seguiu sem parar por
uma corrente de detritos à deriva, com o entulho perturbado pelo
movimento, seguindo- o pelo espaço como a cauda de um
cometa inflamado.
Foyle virou para a despensa da cozinha e começou a se
carregar com a velocidade metódica de um hábito de cinco
meses. A maioria das provisões engarrafadas havia se congelado
e explodido. Muitos dos enlatados perderam suas embalagens,
pois a lata se transforma em pó no zero absoluto do espaço.
Foyle recolheu pacotes de ração, concentrados e um pedaço de
gelo do tanque de água rachado.
20 ALFRED BESTER
Pensou.
Na ponte de controle aprendeu o uso dos poucos ins-
trumentos de navegação que ainda estavam intactos, estudando
os manuais-padrão que enchiam a arruinada sala de navegação.
Nos seus dez anos de serviço no espaço nunca sonhara tentar
coisa semelhante, apesar das recompensas da promoção e soldo;
mas agora ele tinha a Vorga-T: 1339 para recompensá-lo.
Fez observações. A Nomad estava à deriva no espaço em
órbita eclíptica, a quatrocentos e oitenta milhões de quilômetros
do Sol. Ã sua frente espalhavam-se as constelações de Perseu,
Andrômeda e Peixes. Pendurado lá, quase em primeiro plano,
havia um ponto laranja borrado que era Júpiter, um disco
planetário visível a olho nu. Com alguma sorte poderia fazer
uma rota para Júpiter e o salvamento.
Júpiter não era, nunca seria habitável. Como todos os
planetas exteriores além das órbitas de asteróides, era uma massa
gelada de metano e amônia: mas seus quatro maiores satélites
formigavam de cidades e população, agora em guerra com os
Planetas Interiores. Ele seria um prisioneiro de guerra, mas tinha
de ficar vivo para ajustar as contas com a Vorga-T: 1339.
Foyle verificou a sala de motores da Nomad. Ainda havia
combustível nos tanques e um dos quatro jatos traseiros ainda
estava em condições de funcionar. Foyle achou os manuais de
motores e os estudou. Consertou a ligação entre os tanques de
combustível e a câmara do jato restante. Os tanques estavam no
lado iluminado do destroço e aquecidos acima do ponto de
congelamento. O combustível ainda estava líquido, mas não
correría. Em imponderabilidade não havia gravidade para fazer o
combustível correr nos canos.
Foyle estudou um manual espacial e aprendeu algo sobre
gravidade teórica. Se conseguisse colocar a Nomad numa
espiral, a força centrífuga daria suficiente navegabilidade à nave
para puxar o combustível para a câmara de combustão do jato.
Se pudesse acender a câmara de combustão, o impulso desigual
do único jato iria colocar a Nomad em espiral.
24 ALFRED BESTER
***
***
— O quê?
— Sua esposa. Você me escolheu, Nômade. Somos
gametas.
— O quê?
— Cientificamente acasalados — disse Moira, com or-
gulho. Ela levantou a manga de sua camisola e mostrou- lhe o
braço. Estava desfigurado por quatro cortes feios. — Fui
inoculada com uma coisa velha, uma nova, uma emprestada e
uma azul.
Foyle esforçou-se para sair da cama.
— Onde estamos?
— Na sua casa.
— Que casa?
— A sua. Você é um dos nossos, Nômade. Precisa casar
todo mês e ter muitos filhos. Isso será científico. Mas sou a
primeira.
Foyle ignorou-a e explorou o lugar. Estava na cabina
principal de uma pequena nave do começo dos anos 2300...
outrora um iate particular. A cabina principal fora transformada
num quarto.
Foi até as vigias e espiou para fora. A nave estava presa na
massa do asteróide, ligada por passagens ao núcleo. Foi até a
popa. Duas cabinas menores estavam cheias de plantas para
oxigenação. A sala de máquinas fora transformada em cozinha.
Havia combustível nos tanques, mas alimentava os
queimadores de um pequeno fogào sobre as câmaras de
combustão. Foyle foi para a frente. A cabina de controle agora
era uma sala de visitas, mas os controles ainda estavam em
condições de funcionamento.
Pensou.
Foi até a popa, à cozinha, e desmontou o fogão. Re- ligou
os tanques de combustível às câmaras de combustão originais.
Moira seguiu-o, curiosa.
— O que está fazendo, Nômade?
— Vou dar o fora daqui, garota — resmungou Foyle. —
Tenho negócios a tratar com uma nave chamada Vorga.
Entendeu, garota? Vou acertar nela com esta nave, é isso.
Moira deu um passo para trás, assustada. Foyle viu seu
olhar e pulou na sua direção. Estava tão fraco que ela o evitou
facilmente. Abriu a boca e soltou um grito agudo. Nesse
momento, um poderoso ruído encheu a nave; eram Jo-
TIGER! TIGER! 31
(♦) Nome grego das mitológicas Fúrias, as terríveis irmãs que puniam os
autores de crimes não vingados, chamadas Alecto, Tisífone e Megera. (N. T.)
62 ALFRED BESTER
— Foyle!
Foyle despertou. Olhou para Dagenham.
— Não sei nada sobre a Nomad, nada.
— Mas que diabo você tem, agora? Por que está mentindo
outra vez?
— Não sei nada sobre a Nomad, nada.
— Estou lhe oferecendo uma recompensa justa. Um
homem do espaço pode ir longe com vinte mil créditos... Que
mais você quer?
— Não sei nada sobre a Nomad, nada.
— Nós ou a Central de Informações, Foyle.
— Você não deve estar tão ansioso pra que eles me
peguem, ou não teria armado tudo isto. Mas não faz mal, de
qualquer jeito. Não sei nada sobre a Nomad, nada.
— Seu filho da... — Dagenham tentou exprimir sua raiva.
Revelara um pouco demais para aquela astuta e primitiva
criatura. — Tem razão — disse. — Não estamos ansiosos para
que a Central pegue você. Mas fizemos nossos preparativos. —
Sua voz endureceu. — Você acha que pode nos enganar e
afastar. Você acha que pode nos deixar e ir atrás da Nomad.
Você até teve a idéia de que pode chegar primeiro e pegar o
resgate.
— Não — disse Foyle.
— Ouça, agora. Temos um advogado esperando em Nova
Iorque. Ele tem uma acusação criminal de pirataria contra você;
pirataria no espaço, assassinato e roubo. Vamos jogar tudo
contra você. Presteign conseguirá uma condenação em vinte e
quatro horas. Se você tiver ficha criminal de alguma espécie,
isso quer dizer uma lobotomia. Vão abrir a tampa da sua cabeça
e queimar metade do seu cérebro para impedir que você jaunte
novamente.
Dagenham parou e lançou um olhar duro para Foyle.
Quando Foyle sacudiu a cabeça, continuou:
— Se você não tiver ficha, vão lhe dar dez anos do que é
conhecido jocosamente como tratamento médico. Não punimos
criminosos em nossa idade esclarecida, nós os curamos. E a
cura é pior que o castigo. Enfiam você num buraco negro num
dos hospitais subterrâneos. Você será mantido em trevas
permanentes e confinamento solitário para não poder jauntar.
Fingirão que lhe darão injeções e terapia, mas na verdade você
estará apodrecendo no escuro.
TIGER! TIGER! 69
— Meu Deus.
— É. Não sei onde estão não. Não sei pra onde vão. Jaunte
cego no escuro... e vem o barulho nas montanhas. Bum! Jaunte
cego.
Estava espantado, mas podia entender. A escuridão, o
silêncio, a monotonia destruíam o bom senso e traziam o
desespero. A solidão era intolerável. Os pacientes enterrados no
hospital-prisão do Gouffre Martel esperavam ansiosamente pelo
período matinal da Sanitarização para terem chance de
cochichar uma palavra e ouvir uma palavra. Mas esses
fragmentos não eram o bastante e vinha o desespero. Então
haveria outra explosão distante.
Ãs vezes, os homens atormentados viravam-se um contra
o outro e acontecia uma luta selvagem na Sanitarização. Que
era imediatamente apartada pelos guardas de óculos; a palestra
matinal transformava-se de Fibra Moral em Virtude da
Paciência.
Foyle aprendeu as gravações de cor; cada palavra, cada
clique e craque das fitas. Aprendeu a odiar as vozes dos
palestrantes; o Barítono Compreensivo, o Tenor Jovial, o Baixo
Homem-a-Homem. Aprendeu a não ouvir a monotonia
terapêutica e a realizar sua terapia ocupacional mecanicamente,
mas não tinha recursos para agüentar as infinitas horas
solitárias. A fúria não era o bastante.
Perdeu conta dos dias, das refeições, dos sermões. Não
sussurrava mais na Sanitarização. Sua mente se perdeu e
começou a delirar. Imaginava que estava de volta à Nomad,
revivendo sua luta pela sobrevivência. Daí perdeu até mesmo
esse débil elo na ilusão e começou a mergulhar cada vez mais
fundo no poço da catatonia, do silêncio uterino, treva uterina e
sono uterino.
Havia sonhos rápidos. Um anjo murmurou certa vez para
ele. Outra vez, ela cantou baixinho. Três vezes ele a ouviu
dizendo: “Oh, Deus...’’ e “Que diabo!’’ e “Oh!”, numa nota
iescendente que cortava o coração.
Mergulhou em seu abismo, escutando-a.
— Há um jeito de sair — o anjo murmurou no seu ouvido,
docemente, confortadoramente. Sua voz era suave e calorosa,
embora queimasse de raiva. Era a voz de um anjo furioso. —
Há um jeito de sair.
TIGER! TIGER! 73
***
74 ALFRED BESTER
— Temos de arriscar.
— Não consigo.
— Tem de fazer. Não há outro jeito. Encha os pulmões.
Segure-se em mim.
Ficaram enlaçados na água, segurando-se mutuamente,
respirando fundo, enchendo os pulmões. Foyle empurrou
Jisbella para o túnel subaquático. — Você vai primeiro. Estarei
bem atrás... Para ajudá-la se estiver em dificuldades.
— Dificuldades! — Jisbella gritou, com voz trêmula. Ela
mergulhou e deixou a corrente sugá-la para a boca do túnel.
Foyle seguiu-a. As águas poderosas puxaram os dois para baixo,
para baixo, para baixo, jogando-os de um lado para outro de um
túnel que parecia cavado em vidro. Foyle nadou bem perto, atrás
de Jisbella, sentindo suas pernas batendo, tocando em sua cabeça
e ombros.
Foram seguindo pelo túnel até seus pulmões quase ar-
rebentarem e os olhos saírem das órbitas. Daí houve um novo
rugido e apareceu a superfície. Puderam respirar. Os lados
vítreos do túnel foram substituídos por rochas dentadas. Foyle
pegou uma perna de Jisbella e agarrou uma saliência de pedra na
margem do rio.
— Vamos subir aqui — gritou. — Vamos subir. Está
ouvindo esse rugido aí na frente? São cataratas. Cascatas
enormes. Que nos farão em pedaços. Saia, Jiz.
Ela estava fraca demais para sair da água. Ele puxou seu
corpo para as rochas e caiu. Estavam sobre pedras molhadas,
cansados demais para falar. Afinal, Foyle levantou- se
cambaleando.
— Temos de continuar — disse. — Seguir o rio. Pronta?
Ela não podia responder; podia protestar. Ele a ergueu e
foram tropeçando nas trevas, tentando seguir a margem da
torrente. Os penhascos por que passavam eram gigantescos,
eretos como dólmens, amontoados, empilhados, espalhados
como num labirinto. Perderam-se entre eles e acabaram
perdendo o rio. Não podiam ir a parte alguma.
— Perdidos... — disse Foyle, zangado. — Estamos
perdidos de novo. Realmente perdidos desta vez. O que vamos
fazer?
88 ALFRED BESTER
fazer isso. Só que parece uma pena estragar esse rosto, se é tão
único quanto você descreve.
— Quer deixar seu hobby de lado? — exclamou Jis- bella,
furiosa. — Estamos quentes, entendeu? Os primeiros a escapar
do Gouffre Martel. Os tiras não vão descansar enquanto não nos
levarem de volta. Ê prioridade total para eles.
— Mas...
— Quanto tempo você acha que poderemos ficar fora do
Gouffre Martel com Foyle andando por aí com aquela cara
tatuada?
— Por que você está tão brava?
— Eu não estou brava. Estou explicando.
— Ele ficaria contente no zoológico — disse Baker, em
tom persuasivo. — E estaria seguro lá. Eu o colocaria no quarto
junto da garota ciclope...
— Chega de zoológico. Ê definitivo.
— Tudo bem, querida. Mas por que você está preocupada
com ó fato de Foyle ser recapturado? Não tem nada a ver com
você.
— Por que você quer saber as minhas razões? Estou lhe
pedindo para fazer um serviço. E estou pagando.
— Será caro, querida, e gosto de você. Estou tentando
economizar seu dinheiro.
— Não, não está.
— Então estou curioso.
— Então digamos que estou grata. Ele me ajudou e agora
eu o estou ajudando.
Baker sorriu cinicamente.
— Então vamos ajudá-lo dando-lhe um rosto novo em
folha.
— Não.
— Pensei que fosse isso. Você quer o rosto dele limpo
porque está interessada no rosto dele.
— Maldito seja, Baker, você vai fazer o serviço ou não?
— Custará cinco mil.
— Explique isso.
— Mil para sintetizar o ácido. Três mil para a cirurgia. E
mil para...
— Sua curiosidade?
TIGER! TIGER! 93
***
mad. Ele não foi empurrado, mas conseguiu uma nave. Está a
caminho, agora.
— Você o está seguindo?
— Naturalmente — hesitou Dagenham. — Mas o que ele
estava fazendo na fábrica de Baker?
— Cirurgia plástica? — Sheffield sugeriu. — Um rosto
novo?
— Não é possível. Baker é bom, mas não pode fazer uma
plástica tão depressa. Foi uma cirurgia pequena. Foyle estava
andando com a cabeça em ataduras.
— A tatuagem — disse Presteign.
Dagenham fez que sim e o sorriso deixou seus lábios.
— É isso que me preocupa. Percebe, Presteign, que se
Baker removeu a tatuagem, nunca reconheceremos Foyle?
— Meu caro Dagenham, o rosto dele não mudou.
— Nunca vimos seu rosto... só a máscara.
— Nunca encontrei o homem — disse Sheffield. — Como
era a máscara?
— Parecia um tigre. Estive com Foyle em dois longos
períodos. Deveria conhecer seu rosto de cor, mas não conheço.
Tudo que vi foi a tatuagem.
— Ridículo — disse Sheffield, bruscamente.
— Não. Foyle tem de ser visto para se acreditar nele.
Porém, não importa. Ele nos levará à Noniad. Nos levará à sua
platina e a PyrE, Presteign. Quase tenho pena de que tudo tenha
acabado. Como disse, eu me diverti, realmente, ele é único.
7
O Fim de Semana em Saturno fora construído como um
iate de lazer; era amplo para quatro, espaçoso para dois, mas
não bastante espaçoso para Foyle e Jiz McQueen. Foyle dormia
na cabine principal; Jiz ficava no salão maior.
No sétimo dia de viagem, Jisbella falou com Foyle pela
segunda vez:
— Vamos tirar essas ataduras, Monstro.
Foyle deixou a cozinha onde estava esquentando café
melancolicamente e pulou de volta para o banheiro. Flutuou
atrás de Jisbella e se enfiou no cômodo diante do espelho da pia.
Jisbella se impeliu até a pia, abriu um recipiente de éter e
começou a umedecer e a retirar as ataduras com mãos pesadas e
iradas. As bandagens de gaze foram desenroladas aos poucos.
Foyle estava numa agonia de suspense.
— Acha que Baker conseguiu?
Nenhuma resposta.
— Será que ele falhou em alguma parte?
A retirada das ataduras prosseguiu.
— Parou de doer há dois dias.
Sem resposta.
— Pelo amor de Deus, Jiz! Ainda estamos em guerra?
As mãos de Jizbella pararam. Ela olhou o rosto ainda
coberto de Foyle com ódio.
— O que é que você acha?
— Eu fiz a pergunta.
TIGER! TIGER! 105
— A resposta é sim.
— Por quê?
— Você nunca entenderá.
' — Explique-me.
— Cale a boca.
— Se é guerra, por que veio comigo?
— Para pegar o que pertence a Sam e a mim.
— Dinheiro?
— Cale a boca.
— Não precisava disso. Bastava ter confiado em mim.
— Confiado? Em você? — Jisbella riu sem alegria e
recomeçou o trabalho. Foyle afastou as mãos dela.
— Eu faço isso sozinho.
Ela o esbofeteou através das ataduras.
— Você vai fazer o que eu lhe disser. Fique quieto,
Monstro!
Continuou a tirar as bandagens. Saiu uma faixa revelando
os olhos de Foyle. Eles fixaram Jisbella, negros e curiosos. As
pálpebras estavam limpas, a parte de cima do nariz estava limpa.
Uma faixa saiu do queixo de Foyle. Ele estava preto-azulado.
Foyle olhando fixo para o espelho, engoliu em seco.
— Ele deixou o queixo! — exclamou. — Baker não...
— Cale-se — disse Jiz, rápida. — Ê a barba.
As ataduras mais próximas do rosto foram tiradas logo,
revelando faces, boca e testa. A testa estava limpa. As faces sob
os olhos estavam limpas. O resto estava coberto por uma barba
preto-azulada de sete dias.
— Faça a barba — ordenou Jiz.
Foyle abriu a água, molhou o rosto, passou creme de
barbear e tirou a barba. Daí inclinou-se para perto do espelho e
se examinou, sem perceber que a cabeça de Jisbella estava junto
à sua, fixa no espelho. Nenhuma marca da tatuagem permanecia.
Os dois suspiraram.
— Está limpo. Limpo. Ele fez o trabalho — disse Foyle.
De repente ele se inclinou mais para a frente e se examinou mais
de perto. Seu rosto lhe parecia novo, tão novo quanto parecia
para Jisbella. — Eu mudei. Não me lembro de ter essa cara. Ele
fez cirurgia em mim, também?
— Não — disse Jisbella. — O que está dentro é que
106 ALFRED BESTER
***
— Não podia.
— Não confiava em mim?
— Não era isso. Eu não conseguia. Ê o que tenho dentro dè
mim... de que tenho de me livrar.
— Controle de novo, hein, Gully? Você é levado a agir.
— Sim, sou levado. Não posso aprender o controle, Jiz.
Quero, mas não posso.
— Você tenta?
— Sim. Sabe Deus. Eu tento. Mas aí acontece alguma coisa
e...
— E daí você pula. “Vilão sem remorso, luxurioso, traidor,
empedernido...’’
— O que é isso?
— Algo que um homem chamado Shakespeare escreveu.
Descreve você, Gully... quando está fora de controle.
— Se eu pudesse fazer você entrar na minha cabeça, Jiz...
para me avisar... enfiar um alfinete em mim...
— Ninguém pode fazer isso por você, Gully. Tem de
aprender sozinho.
Ele digeriu isso por um longo instante. Daí falou, hesitante:
— Jiz... sobre o dinheiro...
— Pro inferno com o dinheiro!
— Você está falando sério?
— Oh, Gully!
— Não que eu... eu esteja tentando passar a perna em você.
Não fosse a Vorga eu lhe daria tudo que quisesse. Tudo! Eu lhe
darei cada centavo que sobrar quando acabar. Mas tenho medo,
Jiz. A Vorga é um osso duro de roer... com Presteign, Dagenham
e aquele advogado Shef- field. Tenho de me agarrar a cada
centavo, Jiz. Tenho medo de que se deixar você me pegar um
crédito, isso poderá ser a diferença entre a Vorga e mim.
— Eu.
— Eu. — Ele esperou. — E então?
— Você está possuído — disse ela, sombriamente. — Não
apenas uma parte de você, mas você todo.
— Não.
— Sim, Gully. Você todo. Ê apenas sua pele que faz amor
comigo. O resto está se alimentando da Vorga.
108 ALFRED BESTER
TOM-A-BEDLAM
8
O ano velho azedava enquanto a peste destruía os
planetas. A guerra recrudesceu e de um remoto incidente de
românticos ataques de surpresa e escaramuças no espaço evoluiu
para um holocausto iminente. Ficou claro que a última das
guerras mundiais havia chegado ao fim e começava a primeira
Guerra Solar.
As potências envolvidas concentravam homens e armas
para a devastação. Os Satélites Exteriores recorreram ao
recrutamento universal e os Planetas Interiores viram-se
forçados a fazer o mesmo. Convocaram-se indústrias, com-
mércio, ciências, habilidades e profissões; criaram-se regu-
lamentos e opressões. Os exércitos e as marinhas requisitavam e
comandavam.
O comércio obedecia, pois essa guerra (como todas as
guerras) era a fase decisiva de uma luta comercial. Mas
populações se rebelaram, e os jauntamentos de contingente e de
mão-de-obra se tornaram um problema crítico. O temor à
espionagem e à invasão generalizou-se. Os histéricos se
transformaram em Informantes ou em Lynchers. Um mau
presságio paralisou todos os lares, da ilha de Baffin às
Falklands. O ano que agonizava foi revivido apenas pelo
advento do Circo Four Mile.
Era este o apelido popular da grotesca companhia de
Geoffrey Fourmyle de Ceres, um jovem e abastado bufão
122 ALFRED BESTER
— Ponha-me no chão.
Ele a obedeceu.
— Você me destruiu uma vez — disse ela com voz em-
bargada. — Está tentando me destruir de novo?
— Não. Quer escutar?
Ela fez que sim.
— Perdi-me no espaço. Fiquei morto, apodrecendo durante
seis meses. Apareceu uma nave que poderia ter me salvado. Ela
passou direto. Me deixou morrendo. Uma nave chamada Vorga.
Vorga-T: 1339. Isso faz algum sentido para você?
— Não.
— Jiz McQueen... Uma amiga minha, que está morta, uma
vez me disse para descobrir por que me deixaram apodrecendo.
Assim eu saberia quem deu a ordem. Então comecei a comprar
qualquer informação sobre a Vorga. Qualquer uma.
— O que isso tem a ver com a minha mãe?
— Escute. Era difícil comprar informação. Os registros da
Vorga foram retirados dos arquivos de Bo’ness e Uig. Consegui
localizar três nomes... três de uma tripula- ção-padrão de quatro
oficiais e doze homens. Ninguém sabia de nada ou ninguém
queria falar. Então encontrei isto. — Foyle tirou do bolso um
medalhão de prata e entregou-o a Robin. — Algum astronauta da
Vorga o penhorou. Foi tudo o que descobri.
Robin emitiu um grito e abriu o medalhão com dedos
trêmulos. Dentro havia a fotografia dela e a das duas outras
garotas. Quando o medalhão se abriu, as fotos tridimensionais
sorriram e sussurraram: “Lembranças de Robin, mamãe...
Lembranças de Holly, mamãe... Lembranças de Wendy,
mamãe...”.
— É da mamãe — chorou Robin. — Ele... Ela... Por
piedade, onde está ela? Que aconteceu?
— Não sei — disse Foyle com firmeza. — Mas posso
imaginar. Acho que sua mãe saiu daquele campo de con-
centração. .. de um jeito ou de outro.
— E minhas irmãs também. Ela jamais as abandonaria.
— Talvez suas irmãs também. Acho que a Vorga estava
transportando refugiados de Calisto. Sua família pa
136 ALFRED BESTER
gou com dinheiro e com jóias para entrar a bordo e ser levada
para os Planetas Interiores. Isso explica que algum astronauta da
Vorga pôs em penhora este medalhão.
— Mas então onde estão elas?
— Não sei. Talvez tenham sido deixadas em Marte ou
Vênus. Mais provavelmente foram vendidas num campo de
trabalhos forçados na Lua, daí não terem podido entrar em
contato com você. Não sei onde estão, mas a Vorga irá nos
dizer.
— Você está mentindo? Me enganando?
— Este medalhão é mentira? Estou te dizendo a verdade...
toda a verdade que sei. Quero descobrir por que me deixaram
morrendo, e por ordem de quem. O homem que deu a ordem
saberá onde estão sua mãe e suas irmãs. Ele lhe dirá... antes que
eu o mate. Ele terá muito tempo. Ele terá muito tempo de
agonia.
Robin olhou-o horrorizada. A paixão que o dominava
estava fazendo as marcas vermelhas aparecerem em seu rosto.
Ele se assemelhava a um tigre pronto para matar.
— Tenho uma fortuna para gastar... não importa como a
consegui. Tenho três meses para terminar esse trabalho. Aprendi
matemática o bastante para calcular as probabilidades. Três
meses são o tempo máximo para que percebam que Fourmyle de
Ceres é Gully Foyle. Noventa dias. Do Ano-Novo ao Primeiro
de Abril. Vai ficar do meu lado?
— Você?! — bradou Robin enojada. — Ficar do seu lado?
— Esse Circo Four Mile é apenas um disfarce. Ninguém
desconfia de um palhaço. Mas estive aprendendo, estudando, me
preparando para o desfecho. Agora só preciso de você.
— Por quê?
— Não sei até onde essa caçada irá me levar... à alta
sociedade ou à escória. Devo me preparar para os dois. Com a
escória posso lidar sozinho. Não me esqueci da sarjeta; mas
preciso de você para a sociedade. Não quer vir comigo?
— Você está me machucando. — Robin livrou o braço das
garras de Foyle.
— Desculpe. Perco o controle quando penso na Vor-
TIGER! TIGER! 137
— Compreendo.
— Dispomos de duas horas para abrir a boca de For- rest.
Conhece as coordenadas da Enlatados Australianos? A cidade
empresarial?
— Não quero participar da sua vingança da Vorga. Estou
procurando minha família.
— Esta é uma operação combinada... abrangente — disse
ele, com uma ferocidade tão espontânea que ela estremeceu e
jauntou imediatamente.
Quando Foyle chegou à barraca do Circo Four Mile, em
Jervis Beach, ela já estava vestindo a roupa de viagem. Foyle a
olhou. Embora a tivesse obrigado a morar na sua barraca por
motivos de segurança, não tornou a tocá-la. Robin apreendeu o
olhar dele, parou de se vestir e aguardou.
— Está tudo acabado — falou ele, balançando a cabeça.
— Mas que interessante! Desistiu do estupro?
— Vista-se — ordenou, controlando-se. — Avise o pessoal
que eles têm duas horas para levar o acampamento para Xangai.
À meia-noite e meia Foyle e Robin chegaram no escritório
principal da Enlatados Australianos. Pediram crachás de
identificação e foram recebidos pelo próprio prefeito.
— Feliz Ano-Novo — cantou ele com alegria. — Feliz!
Feliz! Feliz! Visitando? É um prazer levá-los para passear.
Permitam-me. — Conduziu-os até o interior de um helicóptero e
decolou. — Muitos visitantes hoje. Nossa cidade é hospitaleira.
A cidade empresarial mais hospitaleira do mundo. — O
helicóptero circundou edifícios gigantescos. — Ali é o nosso
palácio de gelo... Banhos de piscina à esquerda... A enorme
cúpula ali é a nossa plataforma de esqui. Neva o ano inteiro...
Jardins tropicais dentro daquela estufa de vidro. Palmeiras,
papagaios, orquídeas, frutos. Ali é o nosso mercado... cinema...
temos a nossa própria rádio, também. 3D-5S. Olhem só o
estádio de futebol. Dois dos nossos rapazes jogaram em todas as
regiões dos Estados Unidos este ano. Turner no Right Rockne e
Kowalsky no Left Heffilfinger.
— Não me diga — murmurou Foyle.
TIGER! TIGER! 143
corro. Mas Vorga passou por ela. Deixou-a à deriva até a morte.
Por que Vorga não parou?
Forrest começou a gritar histericamente.
— Quem deu ordem para a Vorga prosseguir?
— Jesus! Não! Não! Não!
— Nos arquivos de Bo’ness e Uig não existem registros.
Alguém se apossou deles antes de mim. Quem foi? Quem estava
a bordo da Vorga? Quem navegava com você? Quero o nome de
oficiais e de tripulantes. Quem estava no comando?
— Não! — gritou Forrest. — Não!
Foyle estendeu um maço de cédulas e o segurou diante do
rosto do homem histérico.
— Pagarei pelas suas informações. Cinqüenta mil. Análogo
para o resto da sua vida. Quem deu ordem para me deixarem
morrer, Forrest? Quem?
Com um golpe o homem derrubou as cédulas da mão de
Foyle, levantou-se e correu pela praia. Foyle o agarrou junto à
rebentação das ondas. Forrest caiu de cabeça para baixo, a cara
mergulhada na água. Foyle o manteve ali.
— Quem comandava a Vorga, Forrest? Quem deu a
ordem?
— Você o está afogando! — gritou Robin.
— Deixe-o sofrer um pouco. Âgua é mais suportável que
vácuo. Sofri durante seis meses. Quem deu a ordem, Forrest?
O homem borbulhava, engasgado. Foyle tirou o rosto dele
da água.
— Que pensa que é? Leal? Louco? Apavorado? Gente da
tua laia se vendería por cinco mil. Estou oferecendo cinqüenta.
Cinqüenta mil por uma informação, seu filho da puta, ou
morrerá devagar e penosamente. — A tatuagem apareceu no
rosto de Fourmyle. Forçou a cabeça de Forrest contra a água e
assim manteve o homem que se debatia. Robin tentou libertá-lo.
— Está matando ele!
Foyle voltou o rosto aterrador para Robin.
— Tira as mãos de mim, sua cadela! Quem estava a bordo
com você, Forrest? Quem lhe deu a ordem? Por quê?
Forrest torceu o rosto, tirando-o da água.
148 ALFRED BESTER
— Digamos... sangüíneo.
— Mas que interessante. Percebo que tem um certo
fascínio por sangue, Fourmyle.
— Sem dúvida uma fraqueza de família, Presteign.
— Agrada-lhe ser cínico — disse Presteign, não sem uma
dose de cinismo —, mas você fala a verdade. Sempre tivemos
uma fraqueza fatal por sangue e dinheiro. Ê o nosso defeito.
Admito.
— E partilho dele.
— Uma paixão por sangue e dinheiro?
— De fato, sim. Apaixonadamente.
— Sem piedade, sem perdão, sem hipocrisia?
— Sem piedade, sem perdão, sem hipocrisia.
— Fourmyle, você é um jovem bem ao meu gosto. Se não
reivindicar uma relação de parentesco com o nosso clã, serei
obrigado a adotá-lo.
— Chegou tarde demais, Presteign. Eu já o adotei.
Presteign pegou Fourmyle pelo braço.
— Precisa conhecer minha filha, Lady Olivia. Permi- te-
me?
Atravessaram o salão de recepção. A vitória irrompeu
dentro de Foyle: Ele não Sabe. Nunca saberá. Mas então veio a
dúvida: Mas eu nunca saberei se ele sabe. E um crisol de aço.
Podería me ensinar algumas coisas sobre controle.
Pessoas conhecidas cumprimentaram Foyle.
— Foi um belo truque o que você preparou em Xangai.
— Maravilhoso o carnaval de Roma, não? Ouviu falar
sobre o homem incandescente que apareceu na Escadaria de
Espanha?
— Procuramos você em Londres.
— Foi divina a sua chegada — disse Harry Sherwin-
Williams. — Superou a nós todos, pelo amor de Deus! Reduziu-
nos a um bando de mesquinhos.
— Está esquecendo de si mesmo, Harry — disse Presteign
friamente. — Você sabe que não admito obscenidade na minha
casa.
— Desculpe, Presteign. Onde está o circo neste momento,
Fourmyle?
— Não sei — respondeu Foyle. — Espere um pouco.
Um grupo aproximou-se, rindo antecipadamente da mais
recente extravagância de Fourmyle. Ele pegou um re
TIGER! TIGER! 165
Rodg Kempsey
Barracão 3
Bactérias Inc. Mare Nubium Lua
***
***
homens cabeludos que fingem ser você, mas não vou contar.
Leia-me e veja.
— Você vai machucá-lo e quer que eu conte para ele.
— Quem?
— O homem-capitão. O Skl... Skot... — A criança gaguejou
com a palavra, chorando mais alto. — Vá embora. Você é mau.
Maldade na sua mente e homens incandescentes e...
— Venha cá, Sigurd.
— Não. BABÁ! BA-BÀÀÀ!
— Cale a boca, seu canalhinha!
Foyle agarrou a Criança de setenta anos e a sacudiu.
— Sigurd, esta será uma experiência muito nova para você.
A primeira vez que fará à força alguma coisa. Compreende?
A criança anciã compreendeu-o e gritou.
— Cale a boca! Vamos fazer uma viagem até a Colônia
Sklotsky. Se se comportar direito e fizer o que eu mandar, trago
você de volta são e salvo e lhe dou um pirulito ou qualquer outra
porcaria com que costumam suborná-lo. Se não se comportar, eu
o privarei dos dias de vida.
— Não, não vai... Não vai. Sou Sigurd Magsman. Sigurd, o
telepata. Não se atrevería.
— Filhote, sou Gully Foyle, Inimigo Número Um do
Sistema Solar. Falta-me dar apenas o último passo para pôr fim a
uma caçada que já dura um ano... Estou arriscando meu pescoço
porque preciso de você para acertar contas com um filho da puta
que... Filhote, sou Gully Foyle. Eu me atreveria a qualquer coisa.
O telepata começou a transmitir pânico com tal intensidade
que todos os alarmes de St. Michele de Marte soaram. Foyle
agarrou com firmeza a criança anciã, acelerou e levou-a consigo
para fora da fortaleza. Em seguida jauntou.
***
URGENTE. ULTRA-SECRETO. SIGURD MAGSMAN
SEQUESTRADO POR UM HOMEM SUPOSTAMENTE
IDENTIFICADO COMO GULLIVER FOYLE, VULGO FOUR-
MYLE DE CERES, INIMIGO NÚMERO UM DO SISTEMA SOLAR.
DESTINO SUPOSTAMENTE DETERMINADO.
200 ALFRED BESTER
* *• *
***
TIGER! TIGER! 213
terial espalhado por lá... como pó, como solução, pois ele se
precipita... Temos de detonar esses fragmentos e explodir o
circo de Foyle.
— Por quê?
— Para trazê-lo de volta correndo. Ele deve ter o resto do
PyrE escondido em algum lugar por lá. Virá para sal- vá-lo.
— E se o resto explodir também?
— Não é possível; não no interior de um cofre de Isó- topo
de Chumbo Inerte.
— Talvez não esteja todo lá.
— Jiz diz que sim... pelo menos foi o que Foyle disse.
— Deixe-me fora disso — disse Jisbella.
— De qualquer modo, teremos de arriscar.
— Arriscar? — exclamou Y’ang-Yeovil. — Com uma
Ação Fênix? Você vai é transformar o sistema solar numa nova
novinha em folha.
— Que mais podemos fazer? Escolha outro caminho... e
será também o caminho da destruição. Temos alguma outra
chance?
— Podemos esperar — disse Jisbella.
— O quê? Esperar Foyle se destruir e a todos nós com seu
experimento?
— E se o alertássemos?
— Não sabemos onde ele está.
— Poderemos encontrá-lo.
— Em quanto tempo? Isso também não seria um risco? E o
material espalhado por lá esperando que alguém pense em
explodir a energia? Imagine um chacal jauntando lá,
arrombando o cofre e procurando bens? E, depois, não se trata
apenas de poeira esperando um pensamento acidental, mas de
nove quilos.
Jisbella empalideceu. Dagenham dirigiu-se ao homem do
serviço secreto.
— Você decide, Yeovil. Experimentamos a minha idéia ou
esperamos?
Y’ang-Yeovil suspirou.
— Eu temia isso — disse. — Malditos cientistas! Terei de
tomar uma decisão por um motivo que você desconhece,
Dagenham. Os Satélites Exteriores também estão atrás desse
negócio. Temos razões para acreditar que eles
218 ALFRED BESTER
— Nomeie dois.
— Roubo e estupro.
— Mais dois.
— Chantagem e assassinato.
— Algum outro?
— Traição e genocídio.
— Isso esgota seu catálogo?
— Acho que sim. Descobriremos alguns outros quando
entrarmos em questões mais específicas.
— Andou bastante ocupado, não? Ou você é o Príncipe dos
Vilões ou é louco.
— Os dois, sr. Sheffield.
— Por que quer se entregar?
— Caí em mim — respondeu Foyle com amargura.
— Não me refiro a isso. Um criminoso nunca se entrega
quando está numa situação vantajosa. Você evidentemente está
numa situação vantajosa. Qual é o motivo?
— A coisa mais execrável que pode acontecer a um
homem. Peguei uma doença rara chamada consciência.
Sheffield riu alto.
— Quase sempre isso se torna fatal.
— Ê fatal. Compreendí que eu me comportava como um
animal.
— E agora quer se purificar?
— Não, não é tão simples assim — disse Foyle sinis-
tramente. — Por isso o procurei... para uma cirurgia mais
importante. O homem que perturba a estrutura da sociedade é
um câncer. O homem que dá prioridade às decisões pessoais e
não às da sociedade é um criminoso. Mas existem reações em
cadeia. Purificar-se com a punição não é suficiente. Tudo deve
ser colocado em seu lugar. Peço a Deus que tudo seja curado
simplesmente me mandando de volta a Goufre Martel ou me
matando...
— De volta? — interrompeu Sheffield sutilmente.
— Devo ser específico?
— Não ainda. Continue. Você fala como se sofresse
crescentes dores éticas.
— Ê exatamente isso. — Foyle andou de um lado para
outro, inquieto, amarrotando as notas com os dedos nervosos. —
É uma confusão infernal, Sheffield. Há uma garota que tem de
pagar por um crime corrupto e hediondo.
TIGER! TIGER! 221
rial resistente a tudo. Mas esqueça isso agora. Como vamos tirá-
lo de lá?
— Bom, não poderemos fazê-lo de cima da cratera.
— Por que não?
— Não te parece óbvio? Um passo em falso e todo aquele
entulho irá abaixo.
— Viu o cobre escorrendo para baixo?
— Deus, sim!
— Bom, se a gente não o tirar em dez minutos, ele estará
no fundo de uma poça de cobre derretido.
— O que podemos fazer?
— Tenho uma idéia arriscada.
— Qual?
— Os porões da velha R. C. A. do outro lado da rua são
tão profundos quanto os da São Patrício.
— E...?
— Descemos por lá e tentamos fazer uma perfuração.
Talvez consigamos tirar Foyle do fundo.
Uma equipe de operações irrompeu pelas instalações da
velha R. C. A., abandonadas e lacradas havia duas gerações.
Desceram às galerias do porão, derrubando antigos objetos das
lojas de varejo de séculos passados. Localizando os velhos
poços de elevador, através deles chegaram aos subporões,
repletos de instalações elétricas, geradores térmicos e sistemas
de refrigeração. Dali desceram aos poços coletores,
mergulhados até a cintura nas águas das torrentes da pré-
histórica Ilha de Manhattan, torrentes que ainda fluíam sob as
ruas que as ocultavam.
Quando avançavam com dificuldade pelas águas dos poços
coletores, mantendo a direção es-nordeste para chegar em frente
às galerias subterrâneas da catedral de São Patrício, de repente
descobriram que a escuridão densa à frente iluminava-se por
uma luz bruxuleante. Dagenham gritou e avançou
impetuosamente. A explosão que arrebentara os subporões da
São Patrício havia fendido o septo entre as galerias subterrâneas
e os poços coletores dos edifícios da R. C. A. Através de uma
abertura irregular entre as pedras e a terra, podiam observar o
fundo do inferno.
A quinze metros de profundidade estava Foyle, preso a um
labirinto entrelaçado de vigas, pedras, canos, metais e fios. Ele
estava iluminado por um fulgor intenso que vinha
TIGER! TIGER! 231
***
Jauntou.
Estava a bordo do Nomad, à deriva na indiferença vazia do
espaço.
Estava à porta de nenhures.
O frio sabia a limào e o vácuo eram garras rasgando sua
pele. O Sol e as estrelas eram um calafrio vibrante que abalavam
seus ossos.
“GLOMMHA FREDNIS O CLOMOHAMAGEN- SIN!”,
rugia o movimento em seus ouvidos.
Era um corpo de costas para ele esvaecendo pelo corredor;
um corpo com um caldeirão de cobre sobre o ombro; um corpo
correndo, flutuando, contorcendo-se em queda livre. Era Gully
Foyle.
“MEEHAT JESSROT PARA CRONAGAN MAS
FLIMMCORK”, berrava a visão de seu movimento.
“Aha! Oh-ho! M’git não kak”, o bruxuleio de luz e de
sombra respondeu.
“Oooooooh? Simmmmmm? Nããããããooo. Ahhhhhhl”,
murmurou o redemoinho de escombros na sua esteira.
O sabor-limão na boca tornou-se insuportável. O rasgo de
garras na pele era torturante.
Jauntou.
Reapareceu na fornalha sob a velha São Patrício em menos
de um segundo depois de ter desaparecido de lá. Estava sendo
sugado, assim como a ave marítima é atraída muitas vezes para
dentro das chamas, das quais ela luta para escapar. Suportou a
fornalha troante por apenas mais um segundo.
Jauntou.
Estava nas profundezas de Gouffre Martel.
As trevas negro-aveludadas eram ventura, paraíso, euforia.
— Ah! — gritou ele, aliviado.
“Ah!”, veio o eco de sua voz, e o som foi traduzido como
um desenho ofuscante de luz:
AHAHAHAHAHAHAHAHAH
HAHAHAHAHAHAHAHAHA
AHAHAHAHAHAHAHAHAH
HAHAHAHAHAHAHAHAHA
AHAHAHAHAHAHAHAHAH
HAHAHAHAHAHAHAHAHA
236 ALFRED BESTER
t t t t t t
r rrrrr
o o o o o
o
PPPPP
Pe e e e e e
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E
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O COMO UM U
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UM RAIO DE LUZ ATACOU °
TIGER! TIGER! 237
E E E
L L L
AAA
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EE E
RRR
E
LLL
AA A
FFF
EEE
R R R
E E E
QQQQQQQQQQQQQQQQQQQQ
uuuuuuuuuuuuuuuuuuuu EEEEEEEEEEEEEEEEEEEE
MMMMMMMMMMMMMMMMMMMM
ÉÊÉÉÉÉÉÊÉÉÉÉÊÉÉÉÊÊÉÉ
VVVVVVVVVVVVVVVVVVVV
oooooooooooooooooooo cccccccccccccccccccc
ÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊÊ
— Mas onde?
— Não posso desperdiçar o tempo explicando, Gully. Você
tem pouquíssimos momentos aqui.
— Por quê?
— Porque ainda não aprendeu a jauntar no espaço- tempo.
Tem de voltar e aprender.
— Mas eu sei. Devo saber. Sheffield disse que jauntei no
espaço até a Notnad... novecentos mil quilômetros.
— Aquilo lá foi um acidente, Gully, e você o fará de novo...
depois de ensinar-se... Mas agora não está jaun- tando. Ainda
não sabe controlar... como transformar qualquer Agora em
realidade. Daqui a pouco cairá de novo na velha São Patrício.
— Robin, acabei de me lembrar. Más notícias para você.
— Já sei, Gully.
— Sua mãe e suas irmãs estão mortas.
— Sei disso há muito tempo, Gully.
— Desde quando?
— Há trinta anos.
— Impossível.
— Não é, não. E longo, longo o caminho de volta à São
Patrício. Estou querendo explicar como você vai se salvar do
fogo, Gully. Irá me ouvir?
— Não estou morto?
— Não.
— Vou ouvir.
— Seus sentidos se confundiram. Isso passará logo, mas
não darei direções, como esquerda, direita, ou para cima, para
baixo. Vou dizer o que você pode entender agora.
— Por que está me ajudando... depois do que te fiz?
— Aquilo está perdoado e esquecido, Gully. Agora me
escute. Quando voltar à velha São Patrício, vire-se até ficar de
frente para as sombras mais audíveis. Entendeu?
— Sim.
— Caminhe na direção do barulho até sentir na pele uma
picada forte. Então pare.
— Então paro.
— Faça uma meia volta para dentro da compressão e de
uma sensação de queda. Siga em frente.
242 • ALFRED BESTER
— Sigo em frente.
— Você passará por uma sólida lâmina de luz e chegará
ao gosto de quinina. Na realidade é uma massa de fios.
Continue pela quinina até ver algo semelhante a martinete de
forja. Estará livre.
— Como sabe tudo isso, Robin?
— Aprendi com um expert, Gully. — Houve a sensação de
riso. — Daqui a qualquer momento você cairá de volta ao
passado. Peter e Saul estão aqui. Dizem au revoir e boa sorte. E
Jiz Dagenham também. Boa sorte, querido Gully...
— O passado? Isso aqui é o futuro?
— Sim, Gully.
— Estou aqui? É... Olivia?
E então viu-se caindo, caindo, caindo pelas linhas do
espaço-tempo, de volta ao apavorante poço do Agora.
16
INfa Câmara Estrelada de marfim e ouro no Castelo de
Presteign, os sentidos de Foyle descruzaram. A visão tornou-se
visão e ele viu os espelhos altos e as janelas de vitral; a
biblioteca de livros encadernados a ouro e bibliotecários
andróides em escadas. O som tornou-se som e ele ouviu a
secretária andróide registrando no gravador de cabeça- memo
manual à escrivaninha Luís XV. O paladar tornou-se paladar
quando bebeu um gole do conhaque que o garçom- robô lhe
serviu.
Sabia que estava acuado, defrontando-se com a decisão de
sua vida. Ignorou os inimigos e examinou o permanente aspecto
radiante talhado no rosto robótico do garçom, o clássico sorriso
irlandês.
— Obrigado — disse Foyle.
— O prazer é meu, senhor — respondeu o robô, e esperou
a deixa seguinte.
— Belo dia — observou Foyle.
— Sempre um lindo dia em alguma parte, senhor —
transmitiu o robô.
— Dia feio — disse Foyle.
— Sempre um lindo dia em alguma parte, senhor —
respondeu o robô.
— Dia — disse Foyle.
— Sempre um lindo dia em alguma parte, senhor — disse
o robô.
244 ALFRED BESTER
E finalmente... AGORA:
Estava de volta a bordo da Nomad.
Impresso na
03043 Rua Martim Burchard. 246
Brás • S5o Paulo - SP
Fono (011) 2704388 (PABX)
com filmes fornecidos pelo Editor
Sistema solar, século XXIV. Três planetas, oito
satélites e onze biltíões de seres humanos.
Automóveis, navios, trens e aviões são coisa do
passado. O .meio de locomoção é o pensamento,
e as pessoas “jauntam”: saltam no espaço
materializando-se em qualquer local desejado.
Mas existe um limite.- 1 600 km. Ninguém jamais
ultrapassou essa marca. Quem o fizer, poderá
colonizar as estrelas. Mais do que isso, terá o
poder de acabar com a guerra, uma guerra
interplanetária que ameaça destruir a Terra...
ISBN: 85'11-23087-4