A Loteria e Outros Contos - Shirley Jackson
A Loteria e Outros Contos - Shirley Jackson
A Loteria e Outros Contos - Shirley Jackson
Capa
Folha de rosto
Sumário
I
O embriagado
O amante diabo
Como mamãe fazia
Julgamento por combate
A moça do Village
Minha vida com R. H. Macy
II
A bruxa
A renegada
Primeiro você, meu caro Alphonse
Charles
Tarde entre linhos
Jardim florido
Dorothy e minha avó e os marinheiros
III
Colóquio
Elizabeth
Uma firma boa e tradicional
O boneco
Sete tipos de ambiguidade
Vem dançar comigo na Irlanda
IV
É claro
Estátua de sal
Homens e seus sapatos grandes
O dente
Recebi uma carta do Jimmy
A loteria
V
Sobre a autora
Créditos
I
O embriagado
Ele estava tão bêbado e tão familiarizado com a casa que conseguiu ir à
cozinha sozinho, com o pretexto de buscar gelo, mas na verdade para
recobrar um pouco da sobriedade; não era amigo da família a ponto de
desmaiar no sofá da sala. Deixara a festa para trás sem nenhuma relutância, o
grupo ao piano cantando “Stardust”, a anfitriã conversando sério com um
rapaz de óculos limpos com lentes finas e boca taciturna; fora cauteloso ao
cruzar a sala de estar, onde um grupinho de quatro ou cinco pessoas estava
em cadeiras duras debatendo algo com atenção; as portas da cozinha
balançaram de repente com seu toque, e ele sentou ao lado de uma mesa
laqueada branca, lisa e fria sob sua mão. Pôs o copo em um lugar bom da
padronagem verde e ao levantar a cabeça se deparou com uma menina que o
olhava curiosa do outro lado da mesa.
“Oi”, ele disse. “Você é a filha?”
“Eu sou a Eileen”, ela respondeu. “Sim.”
Ela lhe parecia larga e deformada; são as roupas que elas usam hoje em
dia, as meninas, pensou em meio à bruma; o cabelo caía em tranças dos dois
lados do rosto e ela parecia nova, viçosa e desarrumada; o suéter era meio
roxo e o cabelo era escuro. “Você parece legal e sóbria”, ele disse, dando-se
conta de que era uma coisa errada de se falar para meninas.
“Estava só tomando café”, ela disse. “Posso te servir um?”
Ele quase riu, pensando que ela imaginava estar lidando com astúcia e
competência com um bêbado grosseiro. “Obrigado”, respondeu, “acho que
vou aceitar.” Ele se esforçou para fixar o olhar; o café estava quente, e
quando ela pôs a xícara na frente dele, dizendo, “Imagino que você goste de
café forte”, ele aproximou o rosto do vapor e o deixou entrar em seus olhos,
na esperança de que desanuviasse a cabeça.
“Parece que a festa está ótima”, ela comentou sem ansiedade, “todo mundo
deve estar se divertindo.”
“A festa está ótima.” Ele começou a tomar o café, escaldante de tão quente,
querendo que ela soubesse que o havia ajudado. Sua cabeça se firmou, e ele
lhe sorriu. “Estou me sentindo melhor”, ele falou, “graças a você.”
“Deve estar fazendo muito calor na sala”, ela disse numa voz
tranquilizadora.
Então ele soltou uma risada e ela franziu a testa, mas viu que ela o
desculpava quando prosseguiu, “Eu estava tão encalorada lá em cima que
pensei em descer um pouco para me sentar aqui”.
“Você estava dormindo?”, ele perguntou. “Acordamos você?”
“Estava fazendo o dever de casa”, ela respondeu.
Ele olhou para ela de novo, vendo-a contra um segundo plano de caligrafia
cuidadosa e exercícios escolares, livros gastos e risadas entre carteiras. “Você
está no colegial?”
“Estou no último ano.” Ela parecia esperar que ele dissesse alguma coisa, e
então completou, “Fiquei um ano sem ir quando tive pneumonia”.
Ele achava difícil pensar no que dizer (perguntar sobre meninos? Sobre
basquete?), e por isso fingiu estar escutando os barulhos distantes da frente da
casa. “A festa está ótima”, ele repetiu, distraído.
“Imagino que você goste de festas”, ela disse.
Desconcertado, ele fitava a xícara de café vazia. Acreditava gostar mesmo
de festas; o tom dela era meio surpreso, como se em seguida ele fosse
declarar seu gosto por arenas com gladiadores lutando com feras selvagens
ou a solitária valsa circular de um louco no jardim. Tenho quase o dobro de
sua idade, minha menina, ele pensou, mas não faz tanto tempo assim que eu
também fazia o dever de casa. “Joga basquete?”, ele perguntou.
“Não”, ela respondeu.
Ele percebeu com irritação que ela estava na cozinha primeiro, que ela
morava na casa, que precisava continuar conversando com ela. “Seu dever de
casa é sobre o quê?”, ele perguntou.
“Estou escrevendo um artigo sobre o futuro do mundo”, ela disse antes de
sorrir. “Parece bobagem, né? Eu acho bobagem.”
“O pessoal lá na frente está falando disso. Esse foi um dos motivos para eu
ter vindo para cá.” Ele a via pensando que esse não era de jeito nenhum o
motivo para ele ter ido até ali, e acrescentou às pressas, “O que é que você diz
sobre o futuro do mundo?”.
“Eu não acho que ele vai ter muito futuro”, ela respondeu, “pelo menos do
jeito que está hoje em dia.”
“É um momento interessante para se estar vivo”, ele comentou, como se
ainda estivesse na festa.
“Bom, afinal”, ela disse, “também não dá para dizer que a gente não sabia
com antecedência.”
Ele a olhou por um instante; ela fitava distraída a biqueira do próprio
sapato, mexendo o pé com movimentos suaves para a frente e para trás,
seguindo-o com os olhos. “É uma época assustadora se uma menina de
dezesseis anos precisa pensar nesse tipo de coisa.” Na minha época, ele
pensou com deboche, as meninas só pensavam em coquetéis e chamegos.
“Tenho dezessete.” Ela ergueu os olhos e sorriu para ele outra vez. “Faz
uma diferença incrível”, ela disse.
“Na minha época”, ele falou com ênfase exagerada, “as meninas só
pensavam em coquetéis e chamegos.”
“Em certa medida, é esse o problema”, ela respondeu, séria. “Se as pessoas
tivessem tido um medo sincero, verdadeiro, quando você era jovem, não
estaríamos tão mal hoje em dia.”
A voz dele saiu mais incisiva do que pretendia (“Quando eu era jovem!”),
e ele desviou um pouco o rosto como que para indicar o parco interesse de
uma pessoa mais velha sendo afável com uma criança: “Acho que
imaginávamos ter medo. Imagino que todos os meninos de dezesseis —
dezessete — acreditem ter medo. Todo mundo passa por essa fase, que nem a
de ficar louca atrás dos meninos”.
“Não paro de imaginar como é que vai ser.” Ela falava numa voz muito
suave, muito clara, olhando para um ponto atrás dele, na parede. “Não sei por
quê, mas acho que as igrejas vão primeiro, antes até do Empire State. E
depois todos os apartamentos grandes à beira do rio, se derramando na água
devagarinho com as pessoas dentro. E as escolas, quem sabe no meio da aula
de latim, enquanto a gente estiver lendo César.” Ela levantou os olhos para o
rosto dele, encarando-o com um deleite entorpecido. “Sempre que a gente
começa um capítulo novo do César, me pergunto se vai ser esse que a gente
não vai terminar. Talvez nós da classe de latim sejamos as últimas pessoas a
ler César.”
“Seria uma boa notícia”, ele disse sem pensar. “Eu detestava César.”
“Acho que todo mundo detestava César quando era jovem”, ela respondeu
indiferente.
Ele esperou um minuto antes de dizer, “Acho meio bobo da sua parte
encher sua cabeça com esse lixo mórbido. Compra uma revista de cinema e
relaxa”.
“Vou poder comprar todas as revistas de cinema que eu quiser”, ela
insistiu. “Os trens do metrô vão colidir, sabia, e as banquinhas de revistas vão
ser esmagadas. Você vai poder pegar todas as barrinhas de chocolate que
quiser, as revistas, os batons e as flores artificiais das lojinhas de bugigangas,
os vestidos de todas as lojas grandes que vão estar caídos pela rua. E os
casacos de pele.”
“Espero que as lojas de bebidas fiquem todas abertas”, ele disse,
começando a perder a paciência com ela, “eu entraria e pegaria uma caixa de
conhaque e nunca mais esquentaria a cabeça com nada.”
“Os prédios comerciais não vão passar de amontoados de pedras
quebradas”, ela declarou, os impetuosos olhos arregalados ainda o encarando.
“Se ao menos fosse possível saber o minuto exato em que vai acontecer.”
“Entendi”, ele disse. “Eu vou junto com o resto. Entendi.”
“As coisas vão ficar diferentes depois”, ela afirmou. “Tudo que faz o
mundo ser como é agora vai desaparecer. Vamos ter novas regras e novos
estilos de vida. Talvez exista uma lei proibindo as pessoas de viver em casas,
assim ninguém vai poder se esconder de ninguém, entende?”
“Talvez exista uma lei que obrigue todas as meninas de dezessete anos que
estão na escola a aprenderem a ser sensatas”, ele retrucou, se levantando.
“Não vai existir escola nenhuma”, ela declarou categoricamente.
“Ninguém vai aprender nada. Para impedir que a gente volte para onde está
agora.”
“Bem”, ele disse com uma risadinha. “Você faz a ideia parecer muito
interessante. Uma pena que eu não vá estar lá para ver.” Ele parou, o ombro
encostado na porta de vaivém que dava para a sala de jantar. Queria muito
dizer algo adulto e mordaz, no entanto tinha medo de mostrar que a escutara,
que quando ele era jovem as pessoas não falavam daquele jeito. “Se tiver
dificuldade com o latim”, ele acabou falando, “vai ser um prazer te dar uma
força.”
Ela deu uma risadinha, o que o surpreendeu. “Continuo fazendo meu dever
de casa toda noite”, ela disse.
De volta à sala de estar, com as pessoas se movimentando alegremente ao
seu redor, o grupo junto ao piano cantava agora “Home on the Range”, a
anfitriã absorta em uma conversa séria com um homem alto, elegante, de
terno azul, ele achou o pai da menina e declarou, “Acabei de ter uma
conversa muito interessante com a sua filha”.
O olhar do anfitrião percorreu o ambiente às pressas. “A Eileen? Onde ela
está?”
“Na cozinha. Estudando latim.”
“‘Gallia est omnia divisa in partes tres’”, o anfitrião recitou, inexpressivo.
“Eu sei.”
“Uma menina realmente extraordinária.”
O anfitrião balançou a cabeça com pesar. “As crianças de hoje em dia”,
disse ele.
O amante diabo
Ela não tinha dormido bem: de uma e meia, quando Jamie foi embora e ela se
deitou sem pressa nenhuma, até as sete, quando por fim se permitiu levantar e
preparar o café, ela tivera um sono entrecortado, sobressaltando-se e abrindo
os olhos para ver a semiescuridão, lembrando e relembrando, caindo de novo
em um sonho febril. Passou quase uma hora tomando o café — fariam um
desjejum de verdade no caminho — e então, a não ser que quisesse se vestir
cedo, não tinha o que fazer. Lavou a xícara de café e arrumou a cama,
olhando com cuidado para as roupas que planejava usar, preocupando-se
desnecessariamente, à janela, se faria um dia bonito. Sentou-se para ler,
pensou que poderia escrever uma carta para a irmã, e começou, na sua melhor
caligrafia, “Caríssima Anne, quando você receber isto já vou estar casada.
Não é engraçado? Eu mesma mal acredito, mas quando eu lhe contar como
foi que aconteceu, você verá que é ainda mais estranho do que…”.
Sentada, caneta na mão, ela hesitou quanto ao que dizer em seguida, leu as
linhas já escritas e rasgou a carta. Foi até a janela e viu que o dia estava
inegavelmente bonito. Passou-lhe pela cabeça que talvez não devesse usar o
vestido de seda azul: era simples demais, quase sério, e queria parecer
delicada, feminina. Ansiosa, tirou os vestidos do armário e titubeou ao ver
uma estampa que havia usado no verão anterior: era juvenil demais para ela, e
tinha uma gola de babados, e o ano ainda estava muito no início para vestidos
estampados, mas ainda assim…
Ela pendurou dois vestidos lado a lado na porta do guarda-roupa e abriu as
portas de vidro que havia fechado meticulosamente sobre o pequeno armário
que era sua cozinha. Acendeu a boca debaixo da cafeteira e foi à janela: o dia
estava ensolarado. Quando a cafeteira começou a estalar, ela voltou e serviu o
café em uma xícara limpa. Vou ter dor de cabeça se não comer logo alguma
coisa sólida, ela pensou, esse café todo, fumando demais, sem desjejum de
verdade. Uma dor de cabeça no dia do seu casamento; ela foi atrás da latinha
de aspirina no armário do banheiro e a enfiou na bolsa azul. Teria que trocá-
la por uma bolsa marrom se usasse o vestido estampado, e a única bolsa
marrom que tinha estava surrada. Desanimada, ficou olhando da bolsa azul
para o vestido estampado, e em seguida largou a bolsa, foi pegar o café e
sentou perto da janela, tomando o café e olhando atentamente para o
apartamento de um só cômodo. Eles planejavam voltar para lá naquela noite e
tudo tinha que estar em ordem. Com um súbito horror, percebeu que havia se
esquecido de pôr lençóis limpos na cama: as roupas de cama tinham acabado
de ser lavadas e ela pegou os lençóis e fronhas limpos da prateleira mais alta
do armário e tirou tudo, trabalhando às pressas para evitar pensar
conscientemente no motivo para trocar a roupa de cama. A cama era pequena,
com uma colcha para que parecesse um sofá, e quando ela terminasse
ninguém diria que tinha acabado de trocar a roupa de cama. Levou os lençóis
velhos e as fronhas para o banheiro e os enfiou no cesto de roupa suja, e pôs
também as toalhas do banheiro no cesto, e toalhas limpas nos toalheiros do
banheiro. O café estava frio quando voltou, mas o tomou assim mesmo.
Quando olhou para o relógio e viu que já passava das nove, ela enfim
começou a se apressar. Tomou um banho e usou uma das toalhas limpas, que
enfiou no cesto e trocou por outra limpa. Vestiu-se com esmero, as roupas de
baixo limpas e a maioria nova; pôs tudo o que havia usado na véspera,
inclusive a camisola, no cesto. Quando estava pronta para o vestido, hesitou
diante da porta do armário. O vestido azul sem dúvida era razoável, e estava
limpo, e era um bocado vistoso, só que já o havia usado diversas vezes com
Jamie, e não havia nada que o tornasse especial para um casamento. O
vestido estampado era bonito demais, e desconhecido de Jamie, mas usar uma
estampa daquelas no começo do ano era sem dúvida se adiantar à estação.
Por fim pensou, É o dia do meu casamento, posso me vestir como eu bem
entender, e tirou o vestido estampado do cabide. Quando o passou pela
cabeça, ela o sentiu fresco e leve, mas ao se olhar no espelho ela se lembrou
de que os babados na gola não favoreciam seu pescoço, e a saia larga e
rodada parecia irresistivelmente feita para uma menina, para alguém que
correria livremente, dançaria, que a balançaria com os quadris ao caminhar.
Ao se olhar no espelho, pensou com repulsa, É como se eu estivesse tentando
parecer mais bonita do que sou, só para ele; ele vai achar que quero parecer
mais nova porque ele está se casando comigo; e tirou o vestido estampado tão
depressa que uma costura debaixo do braço arrebentou. No velho vestido azul
se sentia à vontade e acostumada, mas sem graça. O que interessa não é o que
você está vestindo, disse a si mesma com firmeza, e se virou consternada para
o armário para ver se não haveria outra opção. Não havia nada nem de longe
adequado para se casar com Jamie, e por um instante cogitou ir rapidinho a
alguma loja das redondezas e comprar um vestido. Então viu que eram quase
dez e não dava tempo de mais nada além do cabelo e da maquiagem. O
cabelo era fácil, arrumado em um coque na nuca, mas a maquiagem era outro
equilíbrio delicado entre a melhor aparência possível e o mínimo de
enganação. Não teria como tentar disfarçar a palidez da pele, nem as rugas
em torno dos olhos, hoje, quando poderia parecer que só fazia isso por causa
do casamento, no entanto não suportava a ideia de Jamie contrair matrimônio
com uma pessoa abatida e enrugada. Você tem trinta e quatro anos, afinal,
disse a si mesma com crueldade diante do espelho do banheiro. Trinta, dizia a
licença.
Eram dez horas e dois; não estava satisfeita com as roupas, o rosto, o
apartamento. Requentou o café e sentou na cadeira perto da janela. Não tenho
mais o que fazer agora, pensou, não faz sentido tentar melhorar nada no
último instante.
Resignada, acomodada, tentou pensar em Jamie e não conseguiu ver seu
rosto com nitidez nem ouvir sua voz. É sempre assim com quem se ama, ela
ponderou, e deixou a mente passar ao hoje e ao amanhã, adentrar o futuro
mais distante, quando Jamie estivesse consagrado na sua carreira literária e
ela tivesse aberto mão do emprego, o futuro dourado da casa no interior para
o qual vinham se preparando na última semana. “Eu era uma ótima
cozinheira”, ela havia jurado a Jamie, “é só me dar um tempinho e com um
pouco de prática vou me lembrar de como se faz um bolo nuvem. E frango
frito”, ela disse, ciente de que essas palavras não sairiam da cabeça de Jamie.
“E molho holandês.”
Dez e meia. Ela se levantou e foi até o telefone, resoluta. Discou, esperou,
e a voz metálica da moça disse, “… são exatamente dez e vinte e nove”.
Semiconsciente, ela voltou um minuto no relógio; estava se lembrando da
própria voz dizendo na noite anterior, na porta: “Dez horas, então. Vou estar
pronta. É verdade mesmo?”.
E Jamie atravessando o corredor aos risos.
Às onze já tinha arrumado a costura desfeita do vestido estampado e
guardado a caixa de costura com todo o cuidado no armário. De vestido
estampado, estava sentada à janela tomando outra xícara de café. Eu poderia
ter demorado mais na penteadeira, no final das contas, ela pensou; mas a esta
altura estava tão tarde que ele poderia chegar a qualquer minuto, e não ousava
tentar consertar o que quer que fosse sem recomeçar tudo. Não havia nada
para comer no apartamento além da comida que tivera o cuidado de estocar
para a vida que começariam juntos: o embrulho fechado de bacon, a dúzia de
ovos na caixa, o pão fechado e a manteiga intocada: eram para o desjejum do
dia seguinte. Pensou em ir correndo até o mercado para comprar alguma
coisa para comer, deixando um bilhete na porta. Então resolveu esperar mais
um pouco.
Às onze e meia ela estava tão tonta e fraca que teve que descer. Se Jamie
tivesse telefone, teria ligado para ele nesse momento. Abriu a escrivaninha e
escreveu um recado: “Jamie, desci até o mercadinho. Volto em cinco
minutos”. A caneta vazou nos dedos e ela foi ao banheiro e lavou, usando a
toalha limpa que havia pendurado. Grudou o recado na porta, examinou o
apartamento mais uma vez para verificar se estava tudo perfeito e fechou a
porta sem trancá-la, para o caso de ele aparecer.
No mercadinho, percebeu que não havia nada que quisesse, a não ser mais
café, e o deixou pela metade porque de repente se deu conta de que Jamie
provavelmente estava lá em cima esperando, impaciente, aflito para começar
logo.
Mas lá em cima estava tudo pronto e calmo, assim como deixara, o recado
não lido na porta, o ar do apartamento um pouco rançoso por causa do
excesso de cigarros. Abriu a janela e sentou ao lado dela até perceber que
tinha adormecido e faltavam vinte minutos para uma.
Agora, de repente, estava com medo. Despertando desavisada no ambiente
de espera e prontidão, tudo limpo e intocado desde as dez horas, ela estava
com medo, e sentia uma necessidade incontrolável de se apressar. Levantou-
se da cadeira e foi quase correndo até o banheiro, jogou água fria no rosto e
usou a toalha limpa; dessa vez ela pôs a toalha no lugar de qualquer jeito,
sem trocá-la; teria tempo de sobra para isso depois. Sem chapéu, ainda de
vestido estampado com um casaco jogado por cima, na mão a bolsa azul
errada com a aspirina dentro, ela trancou a porta do apartamento, sem deixar
bilhete dessa vez, e desceu correndo. Pegou um táxi na esquina e deu o
endereço de Jamie ao motorista.
A distância era mínima; poderia ter caminhado se não estivesse tão fraca,
mas no táxi ela de repente se deu conta da imprudência que seria ir
descaradamente até a porta de Jamie para interpelá-lo. Portanto, pediu ao
motorista que a deixasse em uma esquina próxima e, depois de pagar,
esperou que ele fosse embora para começar a andar pelo quarteirão. Nunca
tinha estado ali; o prédio era simpático e antigo, e o nome de Jamie não
estava em nenhuma das caixas de correio da entrada, tampouco no interfone.
Verificou o endereço: estava correto, e por fim tocou o botão com o nome
“Zelador”. Um ou dois minutos depois, a campainha soou e ela abriu a porta
e entrou no corredor escuro onde hesitou até uma porta nos fundos se abrir e
alguém dizer, “Pois não?”.
No mesmo instante percebeu que não fazia ideia do que perguntar,
portanto deu um passo à frente, em direção à figura que esperava contra a luz
da porta aberta. Quando estava bem perto, a figura disse, “Pois não?” outra
vez e ela percebeu que era um homem em mangas de camisa, incapaz de vê-
la com mais clareza do que ela o via.
Com uma súbita coragem, ela disse, “Estou tentando falar com uma pessoa
que mora neste prédio e não achei o nome lá fora”.
“Que nome a senhora estava procurando?”, o homem perguntou, e ela se
deu conta de que teria que responder.
“James Harris”, ela declarou. “Harris.”
O homem se calou por um instante e então repetiu, “Harris”. Virou-se para
o ambiente dentro do vão iluminado da porta e disse, “Margie, vem cá um
instante”.
“O que foi agora?”, uma voz disse lá dentro, e após uma espera longa o
suficiente para que alguém se levantasse de uma poltrona aconchegante, uma
mulher se aproximou dele na porta e fitou o corredor escuro. “Uma senhora
aqui”, informou o homem. “A senhora está procurando um cara chamado
Harris, que mora aqui. É alguém do prédio?”
“Não”, falou a mulher. A voz dela tinha o tom de quem acha graça. “Não
tem nenhum Harris aqui.”
“Perdão”, disse o homem. Ele começava a fechar a porta. “A senhora está
procurando a casa errada”, ele decretou, e acrescentou em tom mais grave,
“ou o cara errado”, e ele e a mulher riram.
Quando a porta estava quase fechada e ela ficou sozinha no corredor
escuro, declarou à fresta levemente iluminada ainda aberta, “Mas ele mora
aqui, sim; eu sei que mora”.
“Escuta”, disse a mulher, reabrindo uma nesga da porta, “acontece o tempo
todo.”
“Por favor não duvide”, ela protestou, e sua voz era muito altiva, com
trinta e quatro anos de orgulho acumulado. “Desculpe, mas a senhora não
está entendendo.”
“Como ele era?”, a mulher perguntou, cansada, a porta ainda entreaberta.
“Ele é bem alto e tem cabelo claro. Está quase sempre de terno azul. É
escritor.”
“Não”, disse a mulher, e em seguida, “É possível que ele morasse no
terceiro andar?”
“Não sei direito.”
“Havia um sujeito”, a mulher insinuou em tom reflexivo. “Ele vivia de
terno azul, morou no terceiro andar por um tempo. Os Royster emprestaram o
apartamento enquanto visitavam os pais dela no norte do estado.”
“Talvez tenha sido isso; mas eu pensava…”
“Geralmente usava terno azul, mas não sei que altura tinha”, a mulher
complementou. “Ficou aqui mais ou menos um mês.”
“Um mês atrás foi quando…”
“Pergunte aos Royster”, sugeriu a mulher. “Eles voltaram hoje de manhã.
Apartamento 3B.”
A porta se fechou definitivamente. O corredor ficou um breu e a escada
parecia ainda mais escura.
No segundo andar um pouco de luz entrava de uma claraboia bem alta. As
portas dos apartamentos eram enfileiradas, quatro por andar, reservadas e
silenciosas. Havia uma garrafa de leite em frente ao 2C.
No terceiro andar, ela aguardou um instante. Havia barulho de música
detrás da porta do 3B, e ela escutava vozes. Por fim, bateu à porta, e bateu
outra vez. A porta se abriu e a música a alcançou, a transmissão de uma
sinfonia no começo da tarde. “Como vai?”, ela disse educadamente à mulher
no vão da porta. “Sra. Royster?”
“Isso mesmo.” A mulher usava um robe e a maquiagem da noite anterior.
“Será que eu poderia falar com a senhora um instantinho?”
“Claro”, disse a sra. Royster, sem se mexer.
“É sobre o sr. Harris.”
“Que sr. Harris?”, a sra. Royster questionou sem alterar o tom de voz.
“O sr. James Harris. O cavalheiro que pegou seu apartamento emprestado.”
“Ai, meu Deus”, exclamou a sra. Royster. Ela pareceu abrir os olhos pela
primeira vez. “O que foi que ele fez?”
“Nada. Só estou tentando entrar em contato com ele.”
“Ai, meu Deus”, a sra. Royster repetiu. Então abriu mais a porta e disse,
“Entre”, e em seguida, “Ralph!”.
O interior do apartamento continuava cheio de música, e havia malas meio
desfeitas no sofá, nas cadeiras, no chão. Uma mesa no canto estava ocupada
pelos resquícios de uma refeição, e o rapaz sentado ali, por um instante
parecido com Jamie, levantou-se e atravessou a sala.
“O que houve?”, ele perguntou.
“Sr. Royster”, ela disse. Era difícil falar com a música tocando. “O zelador
lá embaixo me disse que era aqui que o sr. James Harris estava morando.”
“Sim”, ele falou. “Se é que era esse o nome dele.”
“Achei que o senhor tivesse emprestado o apartamento a ele”, ela replicou,
surpresa.
“Eu não sei nada sobre ele”, explicou o sr. Royster. “Ele é um dos amigos
da Dottie.”
“Não dos meus amigos”, a sra. Royster retrucou. “Não é amigo meu.” Ela
havia se aproximado da mesa e passava creme de amendoim em uma fatia de
pão. Deu uma mordida e disse com voz gutural, sacudindo o pão e o creme de
amendoim diante do marido. “Não é meu amigo.”
“Você o escolheu em uma daquelas porcarias de reuniões”, disse o sr.
Royster. Ele empurrou uma mala para fora da cadeira ao lado do rádio e se
sentou, pegando uma revista do chão. “Eu nunca troquei mais que dez
palavras com ele.”
“Você disse que não tinha problema emprestar a casa para ele”, a sra.
Royster disse antes de dar outra mordida. “Você nunca disse uma só palavra
contra ele, afinal.”
“Eu não falo nada sobre os seus amigos”, o sr. Royster rebateu.
“Se ele fosse meu amigo, você teria falado à beça, acredite”, a sra. Royster
disse em tom sombrio. Deu outra mordida e assegurou, “Acredite, ele teria
falado à beça”.
“Isso era tudo o que eu queria ouvir”, disse o sr. Royster, olhando por cima
da revista. “Agora chega.”
“Está vendo?”, a sra. Royster apontou o pão e o creme de amendoim para o
marido. “É sempre assim, dia e noite.”
Fez-se silêncio, a não ser pela música berrada pelo rádio ao lado do sr.
Royster, e então ela disse, em uma voz que mal acreditava que seria ouvida
apesar do barulho, “Então ele foi embora?”.
“Quem?”, a sra. Royster indagou, tirando os olhos do pote de creme de
amendoim.
“O sr. James Harris.”
“Ele? Ele deve ter ido embora hoje de manhã, antes de a gente voltar. Não
tem o menor sinal dele em canto nenhum.”
“Foi embora?”
“Mas estava tudo bem, muito bem. Eu te falei”, ela disse ao sr. Royster,
“eu te falei que ele cuidaria bem de tudo. Eu sempre sei.”
“Você deu sorte”, retrucou o sr. Royster.
“Não tinha nada fora do lugar”, afirmou a sra. Royster. Ela brandiu o pão e
o creme de amendoim ao redor. “Estava tudo como a gente tinha deixado”,
ela declarou.
“A senhora sabe onde ele está agora?”
“Não faço a menor ideia”, a sra. Royster disse com alegria. “Mas, como eu
falei, ele deixou tudo direitinho. Por quê?”, perguntou de repente. “Você está
procurando ele?”
“É muito importante.”
“Infelizmente ele não está aqui”, declarou a sra. Royster. Teve a cortesia
de dar um passo à frente ao ver a visitante se voltar para a porta.
“Talvez o zelador o tenha visto”, o sr. Royster disse sem tirar os olhos da
revista.
Quando a porta se fechou às suas costas, o corredor ficou escuro outra vez,
mas o barulho do rádio foi atenuado. Estava no meio do primeiro lance de
escadas quando a porta se abriu e a sra. Royster gritou para baixo, “Se eu o
encontrar, digo que você estava procurando por ele”.
O que eu posso fazer?, ela pensou ao ganhar a rua. Era impossível ir para
casa, não com Jamie em algum lugar entre lá e cá. Ficou tanto tempo parada
na calçada que uma mulher, debruçando-se de uma janela do outro lado da
rua, virou-se e chamou alguém dentro de casa para ir ver aquilo. Por fim,
num ímpeto, entrou na pequena delicatessen vizinha ao prédio, no lado que
dava para seu próprio apartamento. Um homenzinho lia o jornal encostado no
balcão; quando entrou, ele ergueu o rosto e se postou atrás do balcão para
atendê-la.
Por cima da vitrine de frios e queijos, ela disse, tímida, “Estou tentando
encontrar um homem que morou no prédio aqui do lado e queria saber se o
senhor o conhece”.
“Por que a senhora não pergunta ao pessoal que mora lá?”, o homem
questionou, os olhos apertados, examinando-a.
É porque não estou comprando nada, ela ponderou, e disse, “Perdão. Eu
perguntei, mas eles não sabem nada sobre ele. Acham que foi embora hoje de
manhã”.
“Não sei o que a senhora quer que eu faça”, ele exclamou, recuando um
pouco em direção ao jornal. “Não estou aqui para ficar de olho nos caras que
entram e saem do prédio ao lado.”
Ela disse às pressas, “Achei que o senhor poderia ter reparado, só isso. Ele
teria passado por aqui pouco antes das dez horas. Era bem alto e estava quase
sempre de terno azul”.
“E quantos homens de terno azul passam por aqui todo dia, minha
senhora?”, o homem respondeu. “A senhora acha que eu não tenho mais o
que fazer…”
“Perdão”, ela disse. Ela o ouviu dizer “Pelo amor de Deus” quando estava
de saída.
Enquanto ia até a esquina, pensou que ele devia ter seguido aquele
caminho, é o caminho que seguiria para chegar à minha casa, era a única
direção que ele poderia tomar. Tentou pensar em Jamie: onde teria
atravessado a rua? Que tipo de pessoa ele era de fato — atravessaria na frente
do próprio prédio, ao acaso no meio do quarteirão, na esquina?
Na esquina havia uma banca de jornal: talvez o tivessem visto ali. Apertou
o passo e esperou um homem comprar o jornal e uma mulher pedir ajuda com
um endereço. Quando o jornaleiro olhou para ela, falou, “Será que o senhor
saberia me dizer se um rapaz bem alto de terno azul passou por aqui hoje de
manhã, por volta das dez horas?”. Como o homem apenas a fitava, os olhos
arregalados e a boca entreaberta, ela pensou, Ele acha que estou brincando,
ou que é uma trapaça, e disse logo, “É muito importante, por favor, acredite
em mim. Não estou brincando”.
“Escuta, minha senhora”, o homem começou, e ela disse com avidez, “Ele
é escritor. Pode ser que tenha comprado revistas aqui”.
“Para que a senhora quer ele?”, o homem questionou. Olhou para ela,
sorridente, e ela reparou que havia outro homem aguardando atrás e que o
sorriso do jornaleiro o incluía. “Esquece”, ela disse, mas o jornaleiro falou,
“Escuta, pode ser que ele tenha vindo aqui”. O sorriso dele era astuto e seu
olhar se voltou para o sujeito atrás dela. De repente ela tomou uma
consciência horrível do vestido estampado exageradamente juvenil e o
escondeu às pressas com o casaco. O jornaleiro disse, com imensa
consideração, “Eu não sei ao certo, veja bem, mas pode ser que alguém
parecido com o cavalheiro seu amigo tenha passado por aqui de manhã”.
“Por volta das dez?”
“Por volta das dez”, o jornaleiro corroborou. “Um sujeito alto, terno azul.
Não me surpreenderia nem um pouco.”
“Para que lado ele foi?”, ela perguntou com entusiasmo. “Ele subiu?”
“Ele subiu”, o jornaleiro disse, assentindo. “Ele subiu. Foi exatamente isso.
Como posso ajudar, meu senhor?”
Ela deu um passo para trás segurando o casaco em volta do corpo. O
homem que estava atrás dela olhou-a com desdém e em seguida ele e o
jornaleiro se entreolharam. Ela ficou um instante pensando se deveria dar
uma gorjeta ao jornaleiro, mas quando os dois homens caíram na risada ela
atravessou a rua depressa.
Subiu, ela ponderou, isso mesmo, e começou a subir a avenida, pensando:
Ele não precisaria atravessar a avenida, bastaria subir seis quarteirões e virar
na minha rua, contanto que fosse em direção ao bairro alto. Cerca de um
quarteirão depois, passou por uma floricultura; havia um arranjo de
casamento na vitrine e ela pensou, Hoje é o dia do meu casamento, afinal,
pode ser que ele tenha comprado flores para me presentear, e entrou na loja.
O florista saiu pelos fundos, sorridente e elegante, e ela disse, antes que ele
falasse, para que não tivesse a chance de pensar que ela iria comprar alguma
coisa: “É muitíssimo importante que eu entre em contato com um cavalheiro
que talvez tenha vindo aqui hoje de manhã para comprar flores. Muitíssimo
importante”.
Ela parou para tomar fôlego, e o florista disse, “Sim, que tipo de flores
eram?”.
“Não sei”, ela respondeu, surpresa. “Ele nunca…” Ela parou e disse, “Era
um rapaz bem alto, de terno azul. Foi por volta das dez”.
“Entendi”, assentiu o florista. “Bom, na verdade, infelizmente…”
“Mas é muito importante”, ela respondeu. “Pode ser que ele estivesse com
pressa”, acrescentou, prestativa.
“Bom”, o florista disse. Deu um sorriso cordial exibindo todos os seus
dentes pequenos. “Para uma senhora”, ele sugeriu. Foi ao balcão e abriu um
caderno grande. “Para onde teriam sido enviadas?”, ele perguntou.
“Bem”, ela disse, “eu não acho que ele teria enviado. É que ele estava
vindo — ou melhor, ele levaria as flores.”
“Madame”, retrucou o florista; estava ofendido. O sorriso se tornou
depreciativo, e ele prosseguiu, “De verdade, a senhora precisa entender que a
não ser que eu tenha alguma coisa em que me basear…”
“Por favor tente se lembrar”, ela suplicou. “Ele era alto, estava de terno
azul e foi por volta das dez da manhã.”
O florista fechou os olhos, um dedo encostado na boca, e se entregou à
reflexão. Em seguida, fez que não. “Eu simplesmente não consigo”, declarou.
“Obrigada”, ela disse, desanimada, e foi em direção à porta, quando o
florista falou, com uma voz estridente, nervosa, “Espera! Espera só um
minutinho, madame.” Ela se virou e o florista, pensando outra vez, enfim
perguntou, “Crisântemos?”. Ele a fitou com olhar inquiridor.
“Ah, não”, ela respondeu; a voz tremeu um pouco e ela aguardou um
instante para continuar. “Não para uma ocasião como essa, sem sombra de
dúvida.”
O florista contraiu os lábios e virou a cara com frieza. “Bom, claro que não
sei qual é a ocasião”, ele declarou, “mas tenho quase certeza de que o
cavalheiro que a senhora está procurando veio aqui hoje de manhã e comprou
uma dúzia de crisântemos. Não foi entrega.”
“Tem certeza?”, ela questionou.
“Absoluta”, o florista enfatizou. “Sem dúvida foi esse homem.” Ele deu
um sorriso esplêndido e ela retribuiu o sorriso e disse, “Bem, eu agradeço
muito”.
Ele a acompanhou até a porta. “Um belo buquê?”, ele sugeriu à medida
que atravessavam a loja. “Rosas vermelhas? Gardênias?”
“Foi muita gentileza da sua parte me ajudar”, ela disse na porta.
“As damas sempre ficam mais bonitas com flores”, ele insistiu, abaixando
a cabeça na direção dela. “Quem sabe uma orquídea?”
“Não, obrigada”, ela disse, e ele respondeu, “Espero que a senhora
encontre seu rapaz”, e deu à frase um tom maldoso.
Ao subir a rua ela pensou, Todo mundo acha muita graça; e apertou o
casaco em volta do corpo, deixando apenas os franzidos da bainha do vestido
estampado à mostra.
Havia um policial na esquina, e ela ponderou, Por que não procuro a
polícia? A gente recorre à polícia quando alguém some. E em seguida
pensou, Que boba eu ia parecer. Teve um rápido vislumbre de si mesma em
uma delegacia, dizendo, “Sim, íamos nos casar hoje, mas ele não apareceu”, e
os policiais, três ou quatro ao seu redor, escutando, olhando para ela, para o
vestido estampado, para a maquiagem luminosa demais, sorrindo uns para os
outros. Não poderia lhes contar mais nada além disso, não poderia dizer,
“Sim, parece uma bobagem, não parece, eu toda arrumada tentando achar o
rapaz que prometeu se casar comigo, mas e tudo o que vocês não sabem? Eu
tenho mais que isso, mais do que vocês enxergam: talento, talvez, e certo tipo
de humor, e sou uma dama e tenho orgulho e afeto e delicadeza e uma visão
clara da vida que poderia deixar um homem satisfeito e produtivo e feliz;
existe mais do que vocês pensam ao olhar para mim”.
A polícia era obviamente uma impossibilidade, para não falar de Jamie e
do que poderia pensar ao saber que ela pusera a polícia atrás dele. “Não,
não”, ela disse em voz alta, apertando o passo, e alguém que passava parou e
olhou para as costas dela.
Na próxima esquina — estava a três quarteirões de sua rua — havia uma
engraxataria e um senhor quase dormindo sentado em uma das cadeiras.
Parou na frente dele e esperou, e após um instante ele abriu os olhos e sorriu
para ela.
“Escuta”, ela disse, as palavras saindo antes que pensasse nelas, “desculpe
o incômodo, mas estou procurando um rapaz que passou por aqui por volta
das dez horas da manhã, o senhor viu ele?” E deu início à descrição, “Alto,
terno azul, segurando um buquê de flores?”.
O velho começou a assentir antes de ela terminar. “Eu vi ele”, declarou. “É
amigo seu?”
“Sim”, ela respondeu, e retribuiu o sorriso sem querer.
O velho piscou os olhos e disse, “Lembro de ter pensado, Você está indo
ver sua namorada, rapaz. Estão todos indo ver as namoradas”, ele continuou,
e balançou a cabeça com tolerância.
“Que caminho ele tomou? Subiu reto até a avenida?”
“Isso mesmo”, respondeu o velho. “Deu uma engraxada, estava com flores,
todo arrumado, numa pressa horrível. Você tem namorada, eu pensei.”
“Obrigada”, ela disse, tateando o bolso à procura de trocados.
“Ela deve ter ficado contente de ver ele, do jeito que estava”, o velho
comentou.
“Obrigada”, ela repetiu, e tirou a mão vazia do bolso.
Pela primeira vez teve plena certeza de que ele a esperava, e subiu
correndo os três quarteirões, a saia do vestido estampado balançando debaixo
do casaco, e dobrou a esquina de sua rua. Da esquina, não via as janelas do
próprio apartamento, não via Jamie olhando para fora, aguardando, e ao
descer o quarteirão ela estava praticamente correndo para encontrá-lo. A
chave tremeu entre os dedos no portão, e quando deu uma olhada no
mercadinho ela pensou em seu pânico, ao tomar café ali naquela manhã, e
quase riu. Já na porta de casa, ela não conseguia mais esperar, e começou a
dizer, “Jamie, estou aqui, eu estava muito preocupada”, antes mesmo que a
porta se abrisse.
O apartamento a aguardava, silencioso, árido, as sombras vespertinas se
esticando a partir da janela. Por um instante viu apenas a xícara de café vazia,
pensou, Ele estava aqui esperando, antes de reconhecê-la como sua, largada
ali de manhã. Olhou o cômodo inteiro, dentro do armário, no banheiro.
“Nunca vi”, o atendente do mercadinho disse. “Eu sei porque teria
reparado nas flores. Não entrou ninguém assim.”
O velho da engraxataria despertou outra vez e se deparou com ela à sua
frente. “Oi de novo”, ele cumprimentou, e sorriu.
“Tem certeza?”, ela interpelou. “Ele subiu em direção à avenida?”
“Eu fiquei olhando para ele”, o velho afirmou, altivo apesar do tom de voz
dela. “Eu pensei, Aquele rapaz lá tem namorada, e fiquei olhando ele entrar
no prédio.”
“Qual prédio?”, ela perguntou à distância.
“Aquele ali”, disse o velho. Ele se inclinou para a frente para apontar. “No
próximo quarteirão. Com as flores e o sapato engraxado indo ver a namorada.
Entrou no prédio dela.”
“Qual deles?”, ela questionou.
“Mais ou menos no meio do quarteirão”, disse o velho. Ele a olhou
desconfiado e completou, “O que é que a senhora está querendo dizer, em
todo caso?”.
Ela quase correu, sem parar para dizer “Obrigada”. Percorreu o quarteirão
seguinte andando rápido, examinando as casas para ver se Jamie não olhava
por alguma janela, prestando atenção à risada dele em algum lugar.
Uma mulher estava sentada na frente de uma das casas, empurrando
monotonamente um carrinho de bebê para a frente e para trás, até onde o
braço alcançava. O bebê dormia ali dentro, indo para a frente e para trás.
A pergunta já estava fluente a esta altura. “Perdão, mas você viu um rapaz
entrar em um desses prédios por volta das dez horas da manhã? Ele é alto,
usava terno azul, segurava um buquê de flores.”
Um menino de cerca de doze anos parou para escutar, virando-se
atentamente de uma para a outra, olhando de quando em quando para o bebê.
“Escuta”, a mulher disse, cansada, “estava dando banho no menino às dez.
Acha que eu teria notado algum homem desconhecido andando por aí? Eu te
pergunto.”
“Um buquê grande de flores?”, o menino perguntou, puxando o casaco
dela. “Um buquê grande de flores? Eu vi ele, moça.”
Ela olhou para baixo e o menino lhe abriu um sorriso provocador. “Em
qual casa ele entrou?”, perguntou exausta.
“Vai se divorciar dele?”, o menino perguntou, insistente.
“Não é de bom-tom perguntar isso à senhora”, a mulher que balançava o
carrinho disse.
“Escuta”, o menino falou, “eu vi ele. Entrou ali.” Apontou para a casa ao
lado. “Eu fui atrás dele”, disse o menino. “Ele me deu uma moedinha.” O
menino baixou a voz até um tom rosnado e continuou, “‘Este é um grande dia
para mim, menino’, ele falou. Me deu uma moedinha”.
Ela lhe deu uma nota de um dólar. “Onde?’, ela disse.
“O último andar”, afirmou o menino. “Fui atrás até ele me dar a moedinha.
Lá em cima.” Ele recuou na calçada, longe de seu alcance, segurando a nota
de um dólar. “Vai se divorciar dele?”, perguntou outra vez.
“Ele estava levando flores?”
“Estava”, respondeu o menino. Começou a gritar. “Vai se divorciar dele,
moça? Você tem alguma coisa contra ele?” Ele continuou a descer pela rua,
vociferando, “Ela tem alguma coisa contra o coitado”, e a mulher que
embalava o bebê riu.
O portão do prédio estava destrancado; não havia campainhas na entrada,
nem listas de nomes. A escada era estreita e suja; havia duas portas no último
andar. A da frente era a certa: viu um papel amassado da floricultura no chão,
em frente à porta, e uma fita de papel com um nó, como uma pista, a última
pista da investigação.
Ela bateu e pensou ter ouvido vozes lá dentro, e pensou, de repente, com
terror, O que vou falar se o Jamie estiver aqui, se vier à porta? De súbito as
vozes sossegaram. Bateu outra vez e fez-se silêncio, a não ser por algo que
poderia ser uma risada distante. Ele pode ter me visto da janela, ponderou, é o
apartamento da frente e o menino fez uma algazarra terrível. Aguardou e
bateu outra vez, mas o silêncio continuou.
Por fim, foi à outra porta do andar e bateu. A porta se abriu sob sua mão e
ela viu o sótão vazio, ripas à mostra nas paredes, tábuas do assoalho sem
pintura. Deu um passo e entrou, olhando ao redor: o ambiente estava cheio de
sacos de argamassa, pilhas de jornais velhos, um baú quebrado. Ouviu um
barulho que de repente percebeu ser de um rato, e então o viu, parado bem
perto dela, junto à parede, o rosto maligno em alerta, os olhos claros
observando-a. Ela tropeçou na pressa de sair e fechar a porta, e a saia do
vestido estampado ficou presa e se rasgou.
Sabia que havia alguém no outro apartamento, pois tinha certeza de que
ouvia vozes baixinhas e às vezes risadas. Voltou inúmeras vezes, todos os
dias na primeira semana. Voltou a caminho do trabalho, de manhã; no fim da
tarde, indo jantar sozinha, mas não importava com que frequência ou com
que firmeza batesse, ninguém jamais abriu a porta.
Como mamãe fazia
David Turner, que fazia tudo com movimentos curtos e ligeiros, correu do
ponto de ônibus na avenida até a rua onde morava. Chegou ao mercado da
esquina e hesitou; tinha alguma coisa. Manteiga, ele recordou, aliviado;
naquela manhã, percorrendo a avenida rumo ao ponto de ônibus, ele dizia a si
mesmo, Manteiga, não esquece a manteiga quando você voltar para casa de
noite, quando passar pelo mercado lembra da manteiga. Ele entrou no
mercado e aguardou sua vez, analisando as latas nas prateleiras. A linguiça
suína enlatada estava de volta, assim como o picadinho de carne. Uma
bandeja cheia de pãezinhos chamou sua atenção, e então a mulher que estava
na sua frente e o atendente se viraram para ele.
“Quanto está a manteiga?”, David perguntou, cauteloso.
“Oitenta e nove”, o atendente disse com tranquilidade.
“Oitenta e nove?” David franziu a testa.
“É quanto custa”, respondeu o atendente. Ele olhou para o cliente atrás de
David.
“Cem gramas, por favor”, David pediu. “E meia dúzia de pãezinhos.”
Levando a sacola para casa, ele pensou, Eu realmente não devia mais
comprar lá; era de se esperar que já me conhecessem bem o suficiente para
serem mais delicados.
Havia uma carta da mãe na caixa de correio. Enfiou-a em cima do pacote
de pãezinhos e subiu até o terceiro andar. Não tinha luz no apartamento de
Marcia, o único outro do andar. David se virou para a própria porta e a
destrancou, acendendo a luz assim que entrou. Esta noite, assim como todas
as noites, quando chegava em casa, o apartamento parecia aconchegante,
simpático e bom: a entradinha, com a mesinha jeitosa e quatro cadeiras
caprichadas, e a tigela de cravos-de-defunto contra as paredes verde-claras
que David havia pintado com as próprias mãos; depois, a copa, e em seguida
o ambiente amplo em que David lia e dormia e o teto que era um problema
eterno para ele; o gesso caía em um dos cantos e não havia nada no mundo
que pudesse tornar aquilo menos perceptível. David sempre se consolava
pensando que se não tivesse se instalado em um apartamento em uma casa
antiga talvez o gesso não estivesse caindo, mas também, pelo dinheiro que
pagava, não poderia ter uma entrada, um cômodo espaçoso e uma copa em
nenhum outro lugar.
Deixou a sacola na mesa e guardou a manteiga na geladeira e os pãezinhos
na cestinha de pães. Dobrou a sacola vazia e a guardou em uma gaveta da
copa. Em seguida, pendurou o casaco no armário do corredor e entrou no
cômodo espaçoso, que ele chamava de sala de estar, e acendeu a luminária da
escrivaninha. Sua palavra para o ambiente, na própria cabeça, era
“charmoso”. Sempre tivera uma queda por amarelos e marrons, e ele mesmo
havia pintado a escrivaninha, as estantes de livros e as mesinhas de canto,
pintara até as paredes, e tinha revirado a cidade em busca das cortinas
caramelo de um tecido parecido com tweed que tanto queria. O cômodo o
satisfazia: o tapete era de um marrom escuro intenso que combinava com os
fios mais escuros das cortinas, a mobília era quase amarela, a capa do sofá-
cama e os abajures eram laranja. As fileiras de plantas no peitoril da janela
davam o toque verde de que o ambiente precisava; no momento, David
procurava um enfeite para a mesinha de canto, mas estava louco por um vaso
baixinho verde translúcido onde colocar mais cravos-de-defunto, e esses
objetos custavam mais do que podia pagar, depois dos talheres.
Não conseguia entrar naquele cômodo sem sentir que era o lar mais
aconchegante que já tivera; esta noite, como sempre, percorreu os olhos
devagar pelo ambiente, do sofá para a estante passando pelas cortinas,
imaginou o vasinho verde na mesa de canto e suspirou ao se virar para a
escrivaninha. Pegou uma caneta do porta-lápis e uma folha do elegante papel
de carta que ficava em um dos compartimentos da escrivaninha e escreveu
com esmero: “Cara Marcia, não se esqueça de que esta noite você vem jantar.
Te espero por volta das seis”. Assinou o bilhete com um “D” e pegou a chave
do apartamento de Marcia que ficava na bandeja plana em cima da
escrivaninha. Tinha a chave do apartamento de Marcia porque ela nunca
estava em casa quando o rapaz da lavanderia aparecia, ou quando o homem ia
consertar a geladeira, o telefone ou as janelas, e alguém precisava abrir a
porta para eles porque o proprietário relutava em subir três lances de escada
com a chave mestra. Marcia nunca havia sugerido ter a chave do apartamento
de David, e ele nunca lhe oferecera uma cópia; ficava contente de ter apenas
uma chave de casa, e que ficasse segura dentro de seu próprio bolso; era uma
sensação agradável, concreta e pequena, o único modo de entrar em sua bela
casa aconchegante.
Deixou a porta aberta e cruzou o corredor escuro até o apartamento
vizinho. Abriu a porta com sua chave e acendeu a luz. Naquele apartamento
não lhe era agradável entrar; era exatamente como o dele: entrada, copa, sala
de estar, e o lembrava constantemente de seu primeiro dia no próprio
apartamento, quando pensou nas criteriosas arrumações a serem feitas que o
deixaram às raias do desespero. A casa de Marcia era vazia e desconjuntada:
um piano vertical que um amigo lhe dera fazia pouco tempo estava torto,
metade dele na entrada, pois o ambiente era muito apertado e o cômodo mais
amplo estava apinhado demais para que ficasse bem acomodado onde quer
que fosse; a cama de Marcia estava desarrumada e havia um amontoado de
roupas sujas no chão. A janela passara o dia inteiro aberta e os papéis tinham
voado livremente para o chão. David fechou a janela, hesitou diante dos
papéis e se afastou às pressas. Deixou o bilhete em cima das teclas do piano,
saiu e trancou a porta.
Em seu apartamento, ele se pôs a preparar o jantar alegremente. Tinha feito
um pouco de carne assada para o jantar do dia anterior; ainda havia boa parte
dela na geladeira e ele a cortou em fatias finas e as arrumou com salsa em um
prato. Seus pratos eram laranja, quase da mesma cor da capa do sofá-cama, e
achava agradável arrumar a salada, com a alface no prato laranja e as fatias
fininhas de pepino. Pusera água no fogo para o café, e picara batatas para
fritar, e então, com o jantar cozinhando agradavelmente e a janela aberta para
tirar o odor da fritura das batatas, ele se pôs a arrumar a mesa com carinho.
Primeiro, a toalha, verde-clara, óbvio. E os dois guardanapos verdes limpos.
Os pratos laranja e a xícara e o pires exatos em cada lugar. A caixa de
pãezinhos no centro e o saleiro e o pimenteiro singulares, como dois sapos
verdes. Duas taças — vinham da lojinha de bugigangas, e tinham finas faixas
verdes — e por fim, com enorme cuidado, os talheres de prata. Aos poucos,
com ternura, David foi comprando um aparelho completo de utensílios de
prata; depois de começar modestamente, com serviço para dois, ele havia
acrescentado mais itens, e agora tinha mais que um aparelho para quatro,
embora ainda não tivesse um para seis, pois lhe faltavam garfos de sobremesa
e colheres de sopa. Havia escolhido uma padronagem sóbria, bonita, que
cairia bem com qualquer tipo de arrumação da mesa, e todas as manhãs se
vangloriava do desjejum que começava com uma colher de prata reluzente
para a toranja, e tinha uma faquinha de manteiga compacta para a torrada e
uma faca pesada, robusta, para quebrar a casca do ovo, uma colher de prata
limpa para o café, que ele adoçava com uma colher específica que usava só
para o açúcar. Os talheres ficavam em um estojo à prova de deslustre em uma
prateleira alta só para ele, e David o abaixou com atenção para pegar talheres
para dois. Formava um serviço luxuoso disposto na mesa — facas, garfos,
garfinhos de sobremesa, mais garfos para a torta, uma colher para cada
pessoa, e as peças especiais para servir, a colher de açúcar, as colheres
grandes para as batatas e a salada, o garfo para a carne e o garfo para a torta.
Quando já estavam sobre a mesa todos os talheres que duas pessoas poderiam
usar, ele pôs o estojo de volta na prateleira e deu um passo atrás para
averiguar tudo e admirar a mesa, reluzente e limpa. Em seguida, foi até a sala
de estar para ler a carta da mãe e esperar Marcia.
As batatas ficaram prontas antes de Marcia chegar, e de repente a porta se
abriu e Marcia entrou com um berro, ar fresco e desordem. Era uma jovem
alta e bonita com a voz ruidosa, usava um casaco impermeável sujo e disse,
“Eu não me esqueci, não, Davie, só estou atrasada como sempre. O que é que
nós vamos jantar? Você não está chateado, né?”.
David se levantou e aproximou-se para pegar o casaco dela. “Deixei um
bilhete para você”, ele falou.
“Não vi”, disse Marcia. “Não passei em casa. Tem alguma coisa cheirando
bem.”
“Batata frita”, David respondeu. “Está tudo pronto.”
“Nossa.” Marcia desmoronou em uma poltrona, sentou de pernas esticadas
para a frente e os braços pendentes. “Estou cansada”, declarou. “Está frio lá
fora.”
“Estava esfriando quando cheguei em casa”, disse David. Ele estava pondo
o jantar na mesa, a baixela de carne, a salada, a tigela de batata frita. Sem
fazer barulho, ia e vinha da copa à mesa, evitando os pés de Marcia. “Acho
que você ainda não esteve aqui depois que comprei meus talheres”, ele falou.
Marcia se mexeu em torno da mesa e pegou uma colher. “É linda”, ela
admirou, passando o dedo pelo desenho. “Um prazer comer com ela.”
“O jantar está pronto”, David anunciou. Puxou uma cadeira para ela e
esperou que se sentasse.
Marcia sempre estava com fome; pôs carne, batata e salada no prato sem
admirar os talheres de servir e começou a comer com entusiasmo. “Está tudo
lindo”, ela disse. “A comida está maravilhosa, Davie.”
“Que bom que você gostou”, respondeu David. Ele adorava sentir o garfo
na mão e até a imagem do garfo indo em direção à boca de Marcia.
Marcia fez um gesto grandioso. “Estou falando de tudo”, disse, “dos
móveis, do espaço agradável que você tem, do jantar, de tudo.”
“Eu gosto das coisas assim”, David declarou.
“Eu sei que gosta.” A voz de Marcia estava pesarosa. “Acho que alguém
devia me ensinar.”
“Você precisa manter sua casa mais arrumada”, David afirmou. “Devia
pelo menos arrumar umas cortinas e fechar as janelas.”
“Nunca me lembro”, ela disse. “Davie, você é um cozinheiro
maravilhoso.” Ela empurrou o prato e suspirou.
David corou, feliz. “Que bom que você gostou”, repetiu, e então riu. “Fiz
uma torta ontem à noite.”
“Torta?” Marcia o olhou por um instante e depois perguntou, “De maçã?”.
David fez que não, e ela arriscou, “Abacaxi?”, e ele fez que não outra vez,
e, como não conseguia esperar para lhe contar, ele disse, “Cereja”.
“Meu Deus!” Marcia se levantou, seguiu-o até a cozinha e olhou ansiosa
quando ele pegou a torta da caixa de pães com bastante cuidado. “É a
primeira torta que você faz na vida?”
“Já tinha feito duas”, David admitiu, “mas essa aqui ficou melhor que as
outras.”
Ela ficou observando com alegria enquanto ele partia grandes fatias de
torta e as colocava em outros pratos laranja, e então ela levou o próprio prato
à mesa, provou a torta e fez gestos emudecidos de apreço. David provou a
torta e criticou, “Acho que está um pouco azeda. O açúcar acabou”.
“Está perfeita”, retrucou Marcia. “Eu sempre gostei de torta de cereja bem
azeda. Não está nem azeda o suficiente.”
David tirou a mesa e serviu o café, e quando estava pondo a cafeteira de
volta no fogão Marcia notou, “Minha campainha está tocando”. Abriu a porta
do apartamento e prestou atenção, e ambos ouviram a campainha do outro
apartamento. Ela apertou o botão do interfone de David que abria o portão e à
distância ouviram passos firmes subindo a escada. Marcia deixou a porta do
apartamento aberta e voltou ao café. “O mais provável é que seja o
proprietário”, ela disse. “Não paguei o aluguel outra vez.” Quando os passos
chegaram ao patamar do último lance Marcia berrou, “Olá?”, inclinando-se
na cadeira para olhar o corredor. Então disse, “Ora, sr. Harris”. Ela se
levantou, foi até a porta e lhe estendeu a mão. “Entra”, ela convidou.
“Pensei em dar uma passadinha”, expressou o sr. Harris. Era um homem
parrudo e seus olhos repousaram, curiosos, nas xícaras de café e nos pratos
vazios à mesa. “Não queria interromper o jantar.”
“Não tem problema nenhum”, Marcia disse, puxando-o até o cômodo. “É
só o Davie. Davie, este é o sr. Harris, ele trabalha no meu escritório. Este é o
sr. Turner.”
“Como vai”, David perguntou, educado, e o homem o olhou com atenção e
respondeu, “Como vai?”.
“Sente-se, sente-se”, Marcia dizia, empurrando uma cadeira para a frente.
“Davie, que tal uma xícara para o sr. Harris?”
“Por favor, não se incomode”, o sr. Harris disse, “pensei em só dar uma
passadinha.”
Enquanto David pegava outra xícara com pires e tirava uma colher do
estojo à prova de deslustre, Marcia perguntou, “Você gosta de torta caseira?”.
“Puxa”, o sr. Harris disse em tom admirado, “já me esqueci da cara que
tem uma torta caseira.”
“Davie”, Marcia chamou com voz alegre, “que tal cortar uma fatia dessa
torta para o sr. Harris?”
Sem responder, David pegou um garfo do estojo e um prato laranja e pôs
nele uma fatia de torta. Seus planos para a noite eram vagos; envolviam
talvez um filme se não estivesse muito frio lá fora, e pelo menos uma
conversa breve com Marcia sobre a situação de sua casa; o sr. Harris estava
se acomodando na cadeira e, quando David pôs a torta diante dele em
silêncio, ele a fitou admirado por um instante antes de prová-la.
“Olha”, disse por fim, “essa é uma torta e tanto.” Ele olhou para Marcia.
“É uma torta muito boa”, declarou.
“Você gostou?”, Marcia perguntou modestamente. Ergueu os olhos para
David e sorriu para ele por cima da cabeça do sr. Harris. “Eu só tinha feito
umas duas, três tortas até hoje”, ela disse.
David levantou a mão para protestar, mas o sr. Harris se voltou para ele e
quis saber, “Você já comeu alguma torta melhor que essa na vida?”.
“Acho que o David não gostou muito”, Marcia comentou com malícia,
“ficou azeda demais para ele.”
“Eu gosto de torta azeda”, declarou o sr. Harris. Ele olhou para David com
desconfiança. “Torta de cereja tem que ser azeda.”
“Bom, fico feliz que você tenha gostado”, falou Marcia. O sr. Harris
comeu a última garfada, terminou o café e se recostou. “Estou mesmo
contente de ter dado uma passadinha aqui”, ele disse para Marcia.
O desejo que David sentia de se livrar do sr. Harris havia resvalado
imperceptivelmente em uma premência de se livrar dos dois; sua casa limpa,
seus talheres finos não deveriam ser veículos para o estilo de gracejo
presunçoso que Marcia e o sr. Harris faziam juntos; com um gesto quase
brusco, ele tirou a xícara de café do braço que Marcia tinha esticado até o
outro lado da mesa, levou-a para a copa, voltou e pôs a mão na xícara de sr.
Harris.
“Não se incomode, Davie, de verdade”, disse Marcia. Ela levantou a
cabeça, sorridente, como se ela e David conspirassem contra o sr. Harris. “Eu
lavo tudo amanhã, querido”, ela falou.
“Claro”, disse o sr. Harris. Ele se levantou. “Elas que esperem. Vamos
entrar e nos sentar num lugar onde possamos ficar confortáveis.”
Marcia se levantou e o conduziu à sala de estar e os dois se sentaram no
sofá-cama. “Venha, Davie”, Marcia chamou.
A imagem da bela mesa coberta de pratos sujos e cinzas de cigarro deteve
David. Ele levou os pratos, xícaras e talheres para a copa e os empilhou na
pia, e em seguida, como não suportava a ideia de que ficassem mais tempo
ali, com a sujeira endurecendo aos poucos, vestiu o avental e começou a lavá-
los meticulosamente. De quando em quando, enquanto os lavava, secava e
guardava, Marcia o chamava, às vezes, “Davie, o que é que você está
fazendo?”, ou “Davie, por que você não para com isso e vem se sentar?”.
Teve uma hora que protestou, “Davie, eu não quero que você lave a louça
toda”, e o sr. Harris replicou, “Deixa ele trabalhar, ele está feliz”.
David guardou os pires e xícaras amarelos limpos nas prateleiras — a esta
altura, a xícara do sr. Harris estava irreconhecível: seria impossível saber, da
fileira de xícaras limpas, qual ele tinha usado e qual fora marcada pelo batom
de Marcia e qual contivera o café que David havia terminado na copa — e
por fim, pegando o estojo à prova de deslustre, ele guardou os talheres.
Primeiro os garfos iam juntos nas pequenas reentrâncias onde cabiam dois
garfos — mais tarde, quando o conjunto estivesse completo, cada reentrância
acondicionaria quatro garfos — e depois as colheres, bem empilhadas umas
em cima das outras em suas próprias reentrâncias, e as facas em ordem
uniforme, todas voltadas para o mesmo lado, nas fitas especiais da tampa do
estojo. As facas de manteiga, colheres de servir e a faca de torta tinham seus
próprios lugares, e então David baixou a tampa sobre o adorável conjunto
reluzente e devolveu o estojo à prateleira. Depois de torcer o pano de prato,
pendurar a toalhinha de secar louça e tirar o avental, ele terminou e foi
devagar até a sala de estar. Marcia e o sr. Harris estavam bem próximos no
sofá-cama, conversando sério.
“O nome do meu pai era James”, Marcia dizia quando David chegou,
como se estivesse comprovando um argumento. Ela se virou quando David
entrou e disse, “Davie, foi muita gentileza você lavar aquela louça toda
sozinho”.
“Não tem problema nenhum”, David respondeu, sem jeito. O sr. Harris
ainda o olhava com impaciência.
“Eu devia ter ajudado”, Marcia declarou. Fez-se silêncio, e em seguida
Marcia disse, “Não quer se sentar, Davie, por favor?”.
David reconheceu aquele tom: era o que as anfitriãs usavam quando não
sabiam mais o que dizer, ou quando a pessoa chegava cedo demais ou ficava
até muito tarde. Era o tom que ele esperava usar com o sr. Harris.
“Eu estava conversando com o James sobre…” Marcia começou e então
parou e riu. “Do que a gente estava falando?”, inquiriu, virando-se para o sr.
Harris.
“Nada de mais”, declarou o sr. Harris. Continuava observando David.
“Bom”, disse Marcia, deixando a voz enfraquecer. Voltou-se para David,
deu um sorriso radiante e repetiu, “Bom”.
O sr. Harris pegou o cinzeiro da mesa de canto e o colocou no sofá, entre
ele e Marcia. Pegou um charuto do bolso e perguntou a Marcia, “Charuto te
incomoda?”, e quando Marcia fez que não ele desembrulhou o charuto com
delicadeza e mordeu a ponta. “Fumaça de charuto faz bem para as plantas”,
disse com a voz grossa, a boca em torno do charuto enquanto o acendia, e
Marcia riu.
David se levantou. Por um instante pensou que iria dizer algo que
começasse com “Sr. Harris, eu agradeceria se…”, mas o que disse de fato,
por fim, sob os olhares tanto de Marcia como do sr. Harris, foi, “Acho que é
melhor eu ir me despedindo, Marcia”.
O sr. Harris se levantou e declarou com entusiasmo, “Sem dúvida foi um
prazer conhecê-lo”. Esticou o braço e David lhe deu um aperto de mão fraco.
“Acho que é melhor eu ir me despedindo”, ele repetiu para Marcia, e ela se
levantou e disse, “Que pena você ter que ir embora tão cedo”.
“Muito trabalho para fazer”, justificou David, bem mais cordial do que
pretendia, e Marcia lhe sorriu de novo como se fossem conspiradores e foi até
a escrivaninha e disse, “Não esquece a sua chave”.
Surpreso, David pegou a chave do apartamento dela de suas mãos, deu
boa-noite ao sr. Harris e foi até a porta da frente.
“Boa noite, Davie querido”, Marcia bradou, e David disse, “Obrigado pelo
jantar simplesmente maravilhoso, Marcia”, saiu e fechou a porta.
Atravessou o corredor e entrou no apartamento de Marcia: o piano
continuava torto, os papéis ainda estavam no chão, as roupas sujas
espalhadas, a cama desarrumada. David sentou na cama e olhou em volta.
Estava frio, estava sujo, e enquanto pensava com tristeza em sua casa
aconchegante, ele ouviu um leve som de risada e o arrastar de uma cadeira
sendo movida. Em seguida, também fraco, o barulho de seu rádio. Cansado,
David se inclinou e pegou um papel do chão, e então começou a recolhê-los
um a um.
Julgamento por combate
Quando Emily Johnson voltou para seu quarto mobiliado uma noite e
percebeu que três de seus melhores lenços haviam sumido da gaveta da
cômoda, não teve dúvida sobre quem os tinha pegado e do que fazer. Estava
morando no quarto mobiliado fazia cerca de seis semanas, e nas últimas duas
semanas às vezes notava que algum objeto pequeno havia desaparecido.
Vários lenços tinham sumido, e também o broche com suas iniciais que
Emily raramente usava e que tinha vindo da loja de bugigangas. E uma vez
dera falta de um vidrinho de perfume e de um dos cachorros do conjuntinho
de porcelana. Emily já sabia havia algum tempo quem estava pegando as
coisas, mas só naquela noite tinha resolvido o que fazer. Hesitara em
reclamar com a proprietária porque as perdas eram insignificantes e porque
tinha certeza de que mais cedo ou mais tarde saberia como lidar pessoalmente
com a situação. Achara lógico desde o início que a única pessoa da pensão
que ficava em casa o dia inteiro fosse a suspeita mais provável, e então, em
uma manhã de domingo, descendo do telhado, aonde fora tomar sol, Emily
vira alguém saindo de seu quarto e descendo a escada, e reconhecera a visita.
Esta noite, ela sentiu, sabia exatamente o que fazer. Tirou o casaco e o
chapéu, largou suas sacolas e, enquanto esquentava uma lata de tamales na
panela elétrica, ela repassou o que pretendia dizer.
Após o jantar, ela fechou e trancou a porta e desceu. Bateu de leve na porta
do quarto que ficava bem abaixo do seu, e quando imaginou ouvir alguém
dizer, “Entra”, ela respondeu, “Sra. Allen?”, abriu a porta com delicadeza e
entrou.
O quarto, Emily logo reparou, era quase igual ao seu — a mesma cama
estreita com a colcha caramelo, a mesma cômoda de madeira e a poltrona; o
armário ficava do outro lado do cômodo, mas a janela era relativamente na
mesma altura. A sra. Allen estava sentada na poltrona. Tinha por volta de
sessenta anos. Mais que o dobro do que eu, Emily ponderou, parada na porta,
e ainda uma dama. Hesitou por alguns segundos, olhando para o cabelo
grisalho limpo da sra. Allen e seu bem cuidado robe azul-marinho antes de
falar. “Sra. Allen”, ela disse, “meu nome é Emily Johnson.”
A sra. Allen largou a Woman’s Home Companion que estava lendo e se
levantou devagar. “Fico muito feliz em conhecê-la”, comentou, amável. “Já
vi você, é claro, algumas vezes, e pensei que simpática você parecia. É tão
raro conhecer alguém realmente” — a sra. Allen vacilou — “realmente
agradável”, ela prosseguiu, “em um lugar como esse.”
“Também queria conhecer a senhora”, declarou Emily.
A sra. Allen apontou para a poltrona onde estivera sentada. “Não quer se
sentar?”
“Obrigada”, disse Emily. “A senhora fique aí. Eu me sento na cama.” Ela
sorriu. “Tenho a impressão de que conheço esses móveis como a palma da
minha mão. Os meus são iguaizinhos.”
“Que pena”, lamentou a sra. Allen, voltando a se sentar na poltrona. “Já
disse à proprietária inúmeras vezes que é impossível fazer as pessoas se
sentirem em casa se ela põe móveis iguais em todos os quartos. Mas ela
insiste que esses móveis de madeira são simples e baratos.”
“São melhores do que a maioria”, Emily observou. “A senhora deixou os
seus com um jeito bem melhor do que os meus.”
“Faz três anos que estou aqui”, a sra. Allen contou. “Você chegou faz só
um mês, mais ou menos, não é?”
“Seis semanas”, Emily respondeu.
“A proprietária me falou a seu respeito. Seu marido está no Exército.”
“Isso. Eu tenho um emprego aqui em Nova York.”
“Meu marido era do Exército”, a sra. Allen disse. Gesticulou para uma
série de retratos em cima da cômoda. “Foi há muito tempo, é claro. Ele
morreu faz quase cinco anos.” Emily se levantou e foi até os retratos. Um
deles era de um homem alto, com ar altivo, numa farda do Exército. Várias
eram de crianças.
“Ele parece ter sido um homem muito distinto”, Emily comentou. “São
seus filhos?”
“Não tive filhos, para minha tristeza”, informou a velha senhora. “Esses
são os sobrinhos e sobrinhas do meu marido.”
Emily parou diante da cômoda e percorreu o quarto com os olhos. “Estou
vendo que a senhora também tem flores”, disse. Foi à janela e olhou a fileira
de plantas nos vasos. “Adoro flores”, ela falou. “Hoje eu comprei um buquê
enorme de ásteres para alegrar meu quarto. Mas eles murcham muito rápido.”
“É justamente por isso que prefiro plantas”, explicou a sra. Allen. “Mas
por que você não põe uma aspirina na água das flores? Assim elas vão durar
muito mais.”
“Infelizmente não sei muito sobre flores”, Emily reconheceu. “Não sabia
que devia pôr uma aspirina na água, por exemplo.”
“Eu sempre ponho, com as flores de corte”, disse a sra. Allen. “Acho que
flores deixam o quarto muito simpático.”
Emily ficou junto à janela por um instante, olhando para a vista diária da
sra. Allen: a saída de emergência do outro lado da rua, uma fatia oblíqua da
calçada lá embaixo. Então respirou fundo e se virou. “Na verdade, sra.
Allen”, ela admitiu, “eu tenho meus motivos para essa visita.”
“Além de me conhecer?”, a sra. Allen perguntou, sorridente.
“Não sei direito o que fazer”, Emily disse. “Não quero falar nada para a
proprietária.”
“A proprietária não é de grande serventia em caso de emergência”, a sra.
Allen afirmou.
Emily voltou e se sentou na cama, olhando séria para a sra. Allen, vendo
uma senhora simpática. “É uma bobagem”, ela declarou, “mas tem alguém
entrando no meu quarto.”
A sra. Allen ergueu os olhos.
“Tenho dado falta de algumas coisas”, Emily continuou, “como lenços e
bijuterias baratas. Nada importante. Mas tem alguém entrando no meu quarto
para pegar.”
“Sinto muito ouvir isso”, a sra. Allen disse.
“Veja só, eu não quero causar problema”, Emily continuou. “É só que tem
alguém entrando no meu quarto. Não dei falta de nada de valor.”
“Entendo”, disse a sra. Allen.
“Eu reparei nisso alguns dias atrás. E então, no domingo passado, eu estava
descendo do telhado e vi uma pessoa saindo do meu quarto.”
“Você tem alguma ideia de quem era?”, perguntou a sra. Allen.
“Creio que sim”, respondeu Emily.
A sra. Allen se calou por um instante. “Entendo que você não queira falar
com a proprietária”, disse por fim.
“Claro que não quero”, Emily garantiu. “Só quero que isso pare.”
“Não tiro sua razão”, disse a sra. Allen.
“Isso quer dizer que alguém tem a chave da minha porta, entende?”, Emily
explicou em tom suplicante.
“Todas as chaves da casa abrem todas as portas”, afirmou a sra. Allen.
“São fechaduras à moda antiga.”
“Isso precisa parar”, Emily enfatizou. “Se não parar, eu vou ter que tomar
uma atitude.”
“Entendo”, disse a sra. Allen. “A situação toda é lastimável.” Ela se
levantou. “Você vai ter que me desculpar”, prosseguiu. “Me canso com muita
facilidade e preciso me deitar cedo. Fico feliz que você tenha descido para me
ver.”
“Estou muito contente de enfim ter conhecido a senhora”, disse Emily. Foi
até a porta. “Espero não ser mais incomodada”, ela disse. “Boa noite.”
“Boa noite”, respondeu a sra. Allen.
Na noite seguinte, quando Emily voltou do trabalho, um par de brincos
baratos havia sumido, além dos dois maços de cigarros que estavam na
gaveta da cômoda. Naquela noite ela ficou um bom tempo sentada no quarto,
refletindo. Então escreveu uma carta para o marido e foi dormir. Na manhã
seguinte, levantou-se, vestiu-se e foi ao mercadinho da esquina, de cuja
cabine telefônica ligou para o escritório para avisar que estava doente e não
iria ao trabalho naquele dia. Depois voltou para o quarto. Ficou quase uma
hora sentada com a porta entreaberta até ouvir a porta da sra. Allen se abrir, a
sra. Allen sair e descer a escada devagarinho. Depois de esperar tempo
suficiente para que a sra. Allen chegasse à rua, Emily trancou a porta e,
levando a chave na mão, desceu até o quarto da sra. Allen.
Estava pensando, Só quero fingir que é meu próprio quarto, assim se
alguém chegar eu posso dizer que me enganei de andar. Por um instante, após
abrir a porta, teve a impressão de estar no próprio quarto. A cama estava
bem-arrumada e a veneziana fechada sobre a janela. Emily deixou a porta
destrancada, foi até lá e puxou a veneziana para cima. Agora que o ambiente
estava iluminado, olhou ao redor. Teve uma súbita sensação de intimidade
insuportável com a sra. Allen e pensou, Deve ser assim que ela se sente no
meu quarto. Era tudo organizado e singelo. Primeiro procurou dentro do
armário, mas não havia nada ali afora o robe azul e um ou dois vestidos
simples da sra. Allen. Emily foi até a cômoda. Por um instante olhou o retrato
do marido da sra. Allen, depois abriu a primeira gaveta e a examinou. Seus
lenços estavam ali, em uma pilha alinhada, pequena, e ao lado deles estavam
os cigarros e os brincos. Em um dos cantos viu o cachorrinho de porcelana.
Está tudo aqui, Emily pensou, tudo guardado e bem arrumadinho. Fechou a
gaveta e abriu as outras duas. Ambas estavam vazias. Reabriu a de cima.
Além das suas coisas, a gaveta continha um par de luvas pretas de algodão, e
sob a pilha de seus lenços havia dois lisos e brancos. Uma caixa de Kleenex e
uma latinha de aspirina. Para as plantas, Emily ponderou.
Emily estava contando os lenços quando um barulho às suas costas a fez se
virar. A sra. Allen estava parada no vão da porta, observando-a em silêncio.
Emily largou os lenços que estava segurando e deu um passo para trás.
Sentiu-se corar e percebeu que as mãos tremiam. Agora, ela pensava, agora
você se vira e fala pra ela. “Escuta, sra. Allen”, ela começou, e se calou.
“Pois não?”, a sra. Allen disse com delicadeza.
Emily percebeu que estava fitando um retrato do marido da sra. Allen; que
homem mais pensativo ele parece ser, refletia. Devem ter tido uma vida tão
boa juntos, e agora ela tem um quarto igual ao meu, com apenas dois lenços
dela mesma na gaveta.
“Pois não?”, a sra. Allen repetiu.
O que ela quer que eu diga?, Emily pensou. O que ela pode estar esperando
com esses modos tão refinados? “Eu desci”, Emily disse, e titubeou. Minha
voz é quase refinada também, ela ponderou. “Estava com uma dor de cabeça
horrível e desci para pegar uma aspirina emprestada”, explicou apressada.
“Estava com uma dor de cabeça tenebrosa e quando vi que a senhora tinha
saído pensei que sem sombra de dúvida a senhora não se importaria se eu
pegasse uma aspirina emprestada.”
“Lamento muito”, disse a sra. Allen. “Mas fico contente que você tenha
sentido que me conhece a esse ponto.”
“Eu jamais sonharia em entrar aqui”, Emily declarou, “se não fosse essa
dor de cabeça tão forte.”
“É claro”, disse a sra. Allen. “Não vamos mais falar nisso.” Ela foi até a
cômoda e abriu a gaveta. Emily, parada ao lado, viu sua mão passar por cima
dos lenços e pegar a aspirina. “Você toma dois desses e fica uma hora
deitada”, recomendou a sra. Allen.
“Obrigada.” Emily se dirigiu à porta. “A senhora foi muito gentil.”
“Me avise se eu puder ajudar de alguma outra forma.”
“Obrigada”, Emily repetiu, abrindo a porta. Esperou um instante e se
voltou para a escada rumo a seu quarto.
“Dou uma subidinha mais tarde”, a sra. Allen disse, “só para ver como
você está.”
A moça do Village
A srta. Clarence parou na esquina da Sexta Avenida com a rua Oito e olhou
para o relógio. Duas e quinze: estava mais adiantada do que imaginava.
Entrou no Whelan’s e se sentou no balcão, deixando o exemplar do Villager
no balcão, ao lado da bolsa, e A cartuxa de Parma, que lera com entusiasmo
até a página cinquenta e agora só carregava para impressionar. Pediu uma
rosquinha com cobertura de chocolate e, enquanto o atendente a preparava,
ela foi ao guichê de cigarros e comprou um maço de Kools. De novo sentada
no balcão da lanchonete, ela abriu o maço e acendeu um cigarro.
A srta. Clarence tinha cerca de trinta e cinco anos, e fazia doze anos que
morava no Greenwich Village. Quando tinha vinte e três, saíra de uma
cidadezinha no norte do estado rumo a Nova York porque queria ser
bailarina, e porque todo mundo que queria estudar dança ou escultura ou
encadernação de livros tinha ido para o Greenwich Village naquela época, via
de regra com mesadas das famílias para se sustentarem e planos de trabalhar
na Macy’s ou em livrarias até ganharem dinheiro o bastante para poder
exercer sua arte. A srta. Clarence, que teve a sorte de fazer cursos de
taquigrafia e datilografia, fora trabalhar como estenógrafa em uma empresa
de carvão e coque. Agora, doze anos depois, era secretária particular na
mesma empresa, e ganhava dinheiro suficiente para viver em um bom
apartamento do Village perto do parque e comprar roupas elegantes. Ainda ia
a um ou outro recital de dança com alguma colega do escritório, e às vezes,
quando escrevia para as amigas da terra natal, referia-se a si mesma como
uma “fanática pelo Village”. Quando a srta. Clarence refletia um pouco sobre
o assunto, sua tendência era se congratular pelo bom senso de lidar com um
bom emprego com competência e se sustentar melhor do que se sustentaria
na cidadezinha natal.
Segura de estar muito bem em seu terninho de tweed cinza e com o enfeite
de lapela de cobre batido de uma joalheria do Village, a srta. Clarence
terminou a rosquinha e olhou para o relógio outra vez. Pagou ao caixa e saiu
na Sexta Avenida, andando a passos rápidos rumo a Uptown. Suas
estimativas estavam corretas: a casa que procurava ficava a oeste da Sexta
Avenida, e ela parou na frente dela por um instante, satisfeita consigo mesma,
comparando o prédio com seu próprio edifício apresentável. A srta. Clarence
morava em um prédio moderno e pitoresco de tijolos e estuque; esse edifício
era de madeira e antigo, com uma porta novinha em folha que enganava até
que se olhasse para cima e visse a arquitetura da virada do século. A srta.
Clarence comparou o endereço ao do anúncio no Villager e em seguida abriu
a porta e entrou no corredor lúgubre. Localizou o nome Roberts e o número
do apartamento, 4B. A srta. Clarence suspirou e começou a subir a escada.
Ela parou para descansar no terceiro patamar e acendeu mais um de seus
cigarros para entrar no apartamento de fato. De frente para a escada do quarto
andar, ela encontrou o 4B, com um bilhete datilografado preso à porta. A srta.
Clarence arrancou o recado da tachinha que a segurava e o levou até a luz.
“Srta. Clarence”, ela leu, “precisei sair uns minutinhos, mas volto mais ou
menos às três e meia. Por favor entre e olhe até eu retornar… todos os móveis
estão com os preços. Mil desculpas. Nancy Roberts.”
A srta. Clarence testou e a porta estava destrancada. Ainda segurando o
bilhete, entrou e fechou a porta. O ambiente estava uma bagunça: havia
caixas no chão, cheias até a metade de papéis e livros, as cortinas não
estavam penduradas e os móveis tinham pilhas de malas meio feitas e peças
de roupa. A primeira coisa que a srta. Clarence fez foi ir até a janela: do
quarto andar, ela pensou, talvez houvesse uma vista. Mas só via telhados
sujos e, bem à esquerda, um prédio alto coroado por jardins floridos. Um dia
eu vou viver ali, pensou, e se virou para o cômodo.
Entrou na cozinha, uma peça minúscula com um fogão de duas bocas e
uma geladeira instalada embaixo, com uma pia diminuta de um dos lados.
Não cozinham muito, a srta. Clarence ponderou, o fogão nunca passou por
uma limpeza. Na geladeira havia uma garrafa de leite, três garrafas de Coca-
Cola e um pote pela metade de creme de amendoim. Fazem todas as refeições
fora de casa, a srta. Clarence pensou. Abriu o armário: um copo e um abridor
de garrafas. O outro copo deve estar no banheiro, imaginou a srta. Clarence;
não tinha xícaras: ela não preparava nem mesmo o café pela manhã. Havia
uma barata dentro do armário; a srta. Clarence o fechou depressa e voltou à
sala ampla. Abriu a porta do banheiro e deu uma olhada: uma banheira à
moda antiga, com pés, sem chuveiro. O banheiro estava sujo e a srta.
Clarence teve certeza de que também havia baratas ali.
Por fim, a srta. Clarence se voltou para o cômodo entulhado. Retirou uma
mala e uma máquina de escrever de uma das cadeiras, tirou o chapéu e o
casaco e se sentou, acendendo outro de seus cigarros. Já havia resolvido que
não teria como usar nenhum dos móveis — as duas cadeiras e o sofá-cama
eram de madeira de bordo: o que a srta. Clarence considerava Village
Moderno. A pequena estante de canto era um belo móvel, mas havia um
longo risco na parte de cima inteira e várias manchas de copo. Estava
indicado que custava dez dólares, e a srta. Clarence disse a si mesma que
poderia comprar uma dúzia de estantes novas se quisesse pagar aquele preço.
A srta. Clarence, em uma ligeira raiva da empresa de carvão e coque, tinha
arrumado seu apartamento sossegado em tons de bege e gelo, e a ideia de
incluir um pouco daquela madeira reluzente a assustava. Teve um breve
vislumbre de jovens personagens do Village, frequentadores de livrarias,
usando os móveis de madeira e tomando rum e Coca-Cola, largando seus
óculos em um canto qualquer.
Por um instante a srta. Clarence pensou em se oferecer para comprar
alguns livros, mas a maioria dos que estavam no alto das pilhas dentro das
caixas eram livros de arte e catálogos. Dentro de alguns estava escrito
“Arthur Roberts”; Arthur e Nancy Roberts, a srta. Clarence pensou, um belo
casal de jovens. Arthur era o artista, então, e Nancy… A srta. Clarence
revirou alguns dos livros e se deparou com um de fotografias de dança
moderna; será que Nancy, ela se perguntou com carinho, era bailarina?
O telefone tocou e a srta. Clarence, do outro lado da sala, titubeou por um
instante antes de ir até lá para atendê-lo. Quando ela disse alô uma voz
masculina falou, “Nancy?”.
“Não, lamento, ela não está em casa”, respondeu a srta. Clarence.
“Quem é?”, a voz questionou.
“Estou esperando para falar com a sra. Roberts”, a srta. Clarence explicou.
“Bom”, prosseguiu a voz, “aqui é Artie Roberts, o marido dela. Quando ela
voltar, pede para ela me ligar, por favor?”
“Sr. Roberts”, disse a srta. Clarence. “Talvez então o senhor possa me
ajudar. Eu vim olhar os móveis.”
“Quem é você?”
“Meu nome é Clarence, Hilda Clarence. Estava interessada em comprar os
móveis.”
“Bom, Hilda”, disse Artie Roberts, “o que você achou? Está tudo em boas
condições.”
“Não consigo me decidir”, respondeu a srta. Clarence.
“O sofá-cama está praticamente novo”, Artie Roberts prosseguiu, “surgiu a
oportunidade de me mudar para Paris, entende? É por isso que estamos
vendendo as coisas.”
“Que maravilha”, exclamou a srta. Clarence.
“A Nancy vai voltar para a casa da família dela em Chicago. Nós temos
que vender as coisas e arrumar tudo em pouquíssimo tempo.”
“Entendo”, a srta. Clarence falou. “É uma pena.”
“Bom, Hilda”, disse Artie Roberts, “você fala com a Nancy quando ela
voltar que ela vai ficar feliz de te contar tudo. Não tem como nada dar errado.
Garanto que é confortável.”
“Tenho certeza de que é”, a srta. Clarence concordou.
“Pede para ela me ligar, está bem?”
“Pode deixar”, disse a srta. Clarence.
Ela se despediu e desligou.
Ela retornou à cadeira e olhou para o relógio. Três e dez. Só vou esperar
até as três e meia, pensou a srta. Clarence, depois vou embora. Ela pegou o
livro de fotografias de dança, deixando as folhas escorregarem por entre os
dedos até um retrato chamar sua atenção e ela voltar para ele. Fazia anos que
não via esta, a srta. Clarence pensou — Martha Graham. Uma súbita imagem
de si mesma aos vinte anos veio à mente da srta. Clarence, antes de ter ido
para Nova York, praticando sua postura de bailarina. A srta. Clarence pôs o
livro no chão e se levantou, erguendo os braços. Não tão fácil quanto
antigamente, ela ponderou, os ombros ficam travados. Estava olhando para o
livro curiosa, tentando endireitar os braços, quando ouviu uma batida e a
porta se abriu. Um rapaz — mais ou menos da idade de Arthur, pensou a srta.
Clarence — entrou e parou junto à porta, como quem pede desculpas.
“Estava meio aberta”, ele justificou, “então eu entrei.”
“Pois não?”, a srta. Clarence disse, baixando os braços.
“Você é a sra. Roberts?”, o rapaz perguntou.
A srta. Clarence, tentando andar com naturalidade até sua cadeira, se calou.
“Vim por causa dos móveis”, explicou o homem. “Pensei em dar uma
olhada nas cadeiras.”
“Sem problema”, disse a srta. Clarence. “Está tudo com o preço.”
“Meu nome é Harris. Acabei de me mudar para a cidade e estou tentando
mobiliar meu apartamento.”
“É muito difícil achar as coisas hoje em dia.”
“Este deve ser o décimo lugar onde estive. Queria um arquivo e uma
poltrona grande de couro.”
“Infelizmente…”, disse a srta. Clarence, gesticulando para o ambiente.
“Entendo”, assentiu Harris. “Quem tem esse tipo de coisa hoje em dia não
quer abrir mão. Eu escrevo”, acrescentou.
“É mesmo?”
“Ou melhor, eu espero escrever”, explicou Harris. Tinha um rosto
simpático e redondo e, ao falar isso, ele deu um sorriso afável. “Vou arranjar
um emprego e escrever à noite”, concluiu.
“Tenho certeza de que não vai ter muita dificuldade”, declarou a srta.
Clarence.
“Alguém aqui é artista?”
“O sr. Roberts”, disse a srta. Clarence.
“Que sortudo”, comentou Harris. Ele foi até a janela. “É mais fácil
desenhar retratos do que escrever a qualquer instante. Este apartamento sem
dúvida é melhor do que o meu”, completou de repente, olhando pela janela.
“O meu é minúsculo.”
A srta. Clarence não conseguiu pensar em nada para falar, e ele se virou
outra vez para olhá-la com curiosidade. “Você também é artista?”
“Não”, disse a srta. Clarence. Ela respirou fundo. “Bailarina”, declarou.
Ele deu outro sorriso afável. “Deveria ter imaginado”, ele reconheceu.
“Quando entrei.”
A srta. Clarence riu modestamente.
“Deve ser maravilhoso”, ele disse.
“É dureza”, falou a srta. Clarence.
“Deve ser. Você deu sorte até agora?”
“Não muita”, respondeu a srta. Clarence.
“Acho que as coisas são sempre assim”, ele comentou. Ele se afastou e
abriu a porta do banheiro; quando deu uma olhada lá dentro, a srta. Clarence
estremeceu. Ele fechou a porta sem dizer nada e abriu a porta da cozinha.
A srta. Clarence se levantou e foi para seu lado olhar a cozinha junto com
ele. “Eu não cozinho muito”, ela explicou.
“Não tiro sua razão, tem tantos restaurantes.” Ele fechou a porta e a srta.
Clarence voltou para a cadeira. “Mas não consigo tomar o café da manhã
fora. É a única coisa que não dá”, ele disse.
“É você mesmo quem prepara?”
“Eu tento”, ele respondeu. “Sou o pior cozinheiro do mundo. Mas é melhor
do que sair. Eu preciso é de uma esposa.” Ele sorriu de novo e se dirigiu à
porta. “Lamento pelos móveis”, ele disse. “Queria ter encontrado alguma
coisa.”
“Não se preocupe.”
“Vocês estão desistindo da casa?”
“Temos que nos livrar de tudo”, a srta. Clarence explicou. Ela hesitou. “O
Artie vai para Paris.”
“Quem dera fosse eu.” Ele suspirou. “Bom, boa sorte para vocês dois.”
“Para você também”, disse a srta. Clarence antes de fechar a porta devagar.
Ficou prestando atenção aos passos dele descendo a escada e olhou para o
relógio. Três e vinte e nove.
Subitamente apressada, ela achou o bilhete que Nancy Roberts lhe deixara
e escreveu no verso com um lápis que pegou de uma das caixas: “Minha cara
sra. Roberts — esperei até as três e meia. Infelizmente a mobília está fora de
cogitação para mim. Hilda Clarence”. Lápis à mão, pensou por um instante.
Então acrescentou: “P.S. Seu marido telefonou. Pediu para ligar para ele”.
Ela pegou a bolsa, A cartuxa de Parma e o Villager e fechou a porta. A
tachinha continuava ali, e a arrancou e prendeu o bilhete com ela. Então virou
e desceu a escada, rumo ao próprio apartamento. Os ombros doíam.
Minha vida com R. H. Macy
O vagão estava quase tão vazio que o menininho tinha o assento todo para si
e a mãe estava sentada do outro lado do corredor, ao lado da irmã dele, uma
bebê com uma torrada numa mão e um chocalho na outra. Ela estava segura,
bem atada ao assento para poder se empertigar e olhar ao redor, e sempre que
começava a escorregar devagarinho para os lados, o cinto a detinha e a
segurava na metade do caminho até a mãe se virar e endireitá-la outra vez. O
menininho olhava pela janela e comia biscoito e a mãe lia em silêncio,
respondendo às perguntas do menino sem levantar a cabeça.
“A gente está no rio”, disse o menino. “Isso aqui é um rio e a gente está
nele.”
“Tudo bem”, a mãe assentiu.
“A gente está em uma ponte em cima do rio”, o menino disse para si
mesmo.
As outras poucas pessoas no vagão estavam sentadas na outra extremidade
do carro; quando alguém precisava atravessar o corredor, o menino olhava ao
redor e dizia “Oi”, e o estranho geralmente dizia “Oi” e perguntava ao
menino se ele estava gostando da viagem de trem, ou até lhe dizia que ele era
um belo rapaz. Esses comentários irritavam o menino e ele se virava para a
janela, aborrecido.
“Tem uma vaca”, ele dizia, ou, suspirando, “Quanto tempo falta?”
“Agora já não falta muito”, a mãe sempre respondia.
Uma vez a bebê, que estava muito sossegada e ocupada com o chocalho e a
torrada, que a mãe lhe devolvia constantemente, foi longe demais ao cair de
lado e bateu a cabeça. Caiu no choro, e por um instante houve barulho e
movimentação em torno do banco da mãe. O menino escorregara do próprio
banco e correra até o outro lado do corredor para acariciar os pés da irmã e
suplicar que ela não chorasse, e por fim a bebê riu e voltou à torrada e o
menino recebeu um pirulito da mãe e voltou à janela.
“Eu vi uma bruxa”, ele disse para a mãe um minuto depois. “Tinha uma
bruxa enorme, velha, feia, malvada, do lado de fora.”
“Tudo bem”, a mãe concordou.
“Uma bruxa enorme, velha e feia e eu mandei ela embora e ela foi”, o
menino prosseguiu, em uma narrativa tranquila que contava para si mesmo,
“ela veio e falou, ‘Eu vou te comer’, e eu falei, ‘Não vai, não’ e botei ela pra
correr, a bruxa malvada, velha e cruel.”
Ele se calou e olhou para cima quando a porta externa do vagão se abriu e
um homem entrou. Era um homem idoso de rosto simpático sob o cabelo
grisalho; o terno azul estava apenas ligeiramente maculado pela desordem
provocada por uma longa viagem de trem. Segurava um charuto, e quando o
menino disse “Oi”, o homem gesticulou para ele com o charuto e respondeu,
“Olá, filho”. Parou bem ao lado do assento do menino, e se apoiou no
encosto, olhando para baixo, para o menino, que esticava o pescoço para
olhar para cima. “O que é que você está procurando do outro lado da
janela?”, o homem perguntou.
“Bruxas”, o menino respondeu prontamente. “Bruxas malvadas, velhas e
cruéis.”
“Entendi”, disse o homem. “Já encontrou muitas?”
“Meu pai fuma charuto”, o menino comentou.
“Todo homem fuma charuto”, disse ele. “Um dia você também vai fumar
charuto.”
“Eu já sou um homem”, declarou o menino.
“Quantos anos você tem?”, o homem perguntou.
O menino, diante da eterna pergunta, por um instante lançou um olhar
desconfiado para o homem e depois disse, “Vinte e seis. Oito cem e quarenta
e oito”.
A mãe tirou os olhos do livro e levantou a cabeça. “Quatro”, declarou, com
um sorriso carinhoso para o menino.
“Verdade?”, o homem perguntou ao menino em tom gentil. “Vinte e seis.”
Ele fez que sim para a mãe do outro lado do corredor. “Ela é sua mãe?”
O menino se curvou para a frente para olhar e então respondeu, “É ela,
sim”.
“Como você se chama?”, o homem indagou.
O menino ficou com o olhar desconfiado outra vez. “Sr. Jesus”, ele falou.
“Johnny”, a mãe do menino disse. Seu olhar cruzou com o do menino e ela
franziu bastante a testa.
“Aquela ali é a minha irmã”, o menino informou ao homem. “Ela tem doze
e meio.”
“Você ama a sua irmã?”, o homem perguntou. O menino olhou fixo e o
homem deu a volta no banco e sentou ao lado do menino. “Escuta”, disse o
homem, “posso te contar da minha irmã mais nova?”
A mãe, que tinha erguido os olhos com apreensão quando o homem sentou
ao lado do filho, voltou pacatamente ao livro.
“Me conta da sua irmã”, o menino pediu. “Ela era bruxa?”
“Talvez fosse”, disse o homem.
O menino soltou uma risada entusiasmada e o homem se recostou e deu
um trago no charuto. “Houve uma época”, ele começou, “em que eu tinha
uma irmãzinha que nem a sua.” O menino olhou para o homem, assentindo a
cada palavra. “Minha irmãzinha”, o homem prosseguiu, “era tão linda e tão
simpática que eu a amava mais do que tudo no mundo. Então posso te contar
o que eu fiz?”
O menino foi mais veemente ao fazer que sim, e a mãe tirou os olhos do
livro e sorriu, atenta.
“Eu comprei para ela um cavalo de balanço, uma boneca e um milhão de
pirulitos”, disse o homem, “e então eu a peguei e pus as mãos em torno do
pescoço dela e apertei e apertei até ela morrer.”
O menino arfou e a mãe se virou, o sorriso desaparecendo. Ela abriu a boca
e tornou a fechá-la quando o homem prosseguiu, “E então eu a peguei e
cortei a cabeça fora e peguei a cabeça…”.
“Você cortou ela em pedacinhos?”, o menino perguntou, sem fôlego.
“Eu cortei a cabeça e as mãos e os pés e o cabelo e o nariz”, disse o
homem, “e bati nela com um pau e a matei.”
“Espera um instante”, a mãe pediu, mas a bebê caiu de lado naquele exato
momento e quando a mãe a havia endireitado o homem já estava
continuando.
“E peguei a cabeça e arranquei o cabelo todo e…”
“Da sua irmã pequena?”, o menino instigou com avidez.
“Da minha irmã pequena”, o homem respondeu com firmeza. “E botei a
cabeça dela dentro de uma jaula com um urso e o urso comeu tudo.”
“Comeu a cabeça toda?”, o menino perguntou.
A mãe largou o livro e atravessou o corredor. Parou ao lado do homem e
disse, “O que é que o senhor pensa que está fazendo?”. O homem ergueu os
olhos educadamente e ela mandou, “Cai fora daqui”.
“Eu te assustei?”, o homem perguntou. Ele olhou para o menino e o
cutucou com o cotovelo e ele e o menino riram.
“Esse homem cortou a irmãzinha dele”, o menino disse à mãe.
“Eu poderia muito bem chamar o condutor”, a mãe ameaçou o homem.
“O condutor vai comer minha mamãe”, o menino disse. “A gente vai
arrancar a cabeça dela.”
“E a cabeça da irmãzinha também”, o homem completou. Ele se levantou e
a mãe deu um passo para trás para que se levantasse do banco. “Nunca mais
entre neste vagão”, ela ordenou.
“Minha mamãe vai comer você”, o menino disse para o homem.
O homem riu, o menino riu, e então o homem disse “Com licença” à mãe e
passou ao lado dela ao sair do carro. Quando a porta já tinha se fechado, o
menino perguntou, “Quanto tempo a gente ainda tem que ficar nesse trem
velho?”.
“Não muito”, a mãe respondeu. Ela ficou olhando para o menino, com
vontade de falar alguma coisa, e por fim disse, “Você fica aí sentadinho feito
um bom menino. Pode pegar outro pirulito”.
O menino desceu com entusiasmo e seguiu a mãe até o banco dela. Ela
pegou um pirulito de um saquinho dentro da bolsa e entregou a ele. “Como é
que se diz?”, ela perguntou.
“Obrigado”, o menino respondeu. “Aquele homem cortou mesmo a
irmãzinha dele em pedacinhos?”
“Ele estava só brincando”, a mãe explicou, e acrescentou às pressas, “Só
brincando”.
“Talvez”, o menino disse. Com o pirulito, voltou ao próprio assento e se
acomodou para olhar pela janela outra vez. “Talvez ele fosse uma bruxa.”
A renegada
* Os meninos deste conto imitam os personagens de Alphonse and Gaston, uma tirinha de
Frederick Burr Opper (1857-1937) publicada no New York Journal no início do século XX.
(N.T.)
Charles
Depois de morar juntas na velha mansão de Vermont havia quase onze anos,
as duas sras. Winning, a sogra e a nora, tinham se tornado bastante parecidas,
como acontece com mulheres que compartilham a intimidade do lar,
trabalham na mesma cozinha e arrumam as coisas da casa do mesmo jeito.
Embora a jovem sra. Winning tivesse sido Talbot, e tivesse um cabelo preto
que usava curto, agora era oficialmente Winning, uma parte da família mais
antiga da cidade, e seu cabelo começava a ficar branco pela parte em que o
cabelo da sogra havia ficado grisalho primeiro, nas têmporas: ambas tinham o
rosto fino com feições marcadas e mãos eloquentes, e às vezes, quando
estavam lavando a louça, descascando ervilha ou lustrando a prataria juntas,
suas mãos, com movimentos ágeis e similares, se comunicavam com mais
facilidade e empatia do que suas mentes jamais seriam capazes. A jovem sra.
Winning às vezes pensava, ao se sentar à mesa do café da manhã ao lado da
sogra, com sua bebê em um cadeirão ali perto, que elas deviam lembrar uma
estampa de papel de parede retratando a Nova Inglaterra: mãe, filha e neta,
talvez com Plymouth Rock ou Concord Bridge em segundo plano.
Nesta, assim como em outras manhãs de frio, demoravam a tomar o café,
relutando em sair da cozinha ampla com fogão a lenha e atmosfera agradável
de comida e limpeza, e às vezes continuavam sentadas, em silêncio, quando a
bebê já tinha terminado a refeição há tempos e brincava quietinha no canto
dedicado a ela, onde incontáveis crianças da família Winning tinham
brincado com brinquedos quase idênticos guardados no mesmo caixote de
madeira.
“Parece que a primavera não vai chegar nunca”, comentou a jovem sra.
Winning. “Fico muito cansada do frio.”
“Tem que fazer frio de vez em quando”, a sogra disse. Começou a se
mexer de repente e com pressa, empilhando pratos, indicando que o momento
de ficarem ali sentadas estava encerrado e a hora de trabalharem havia
chegado. A jovem sra. Winning, se levantando para ajudar no mesmo
instante, pensou pela milésima vez que a sogra só abdicaria da posição de
autoridade na própria casa quando estivesse velha demais para se mexer antes
de qualquer outra pessoa.
“E eu queria que alguém se mudasse para o velho chalé”, a jovem sra.
Winning acrescentou. Parou no meio do caminho até a despensa com os
guardanapos de pano e disse, ávida, “Quem dera alguém se mudasse antes da
primavera”. A jovem sra. Winning almejara, muito tempo atrás, comprar o
chalé, pois o marido o transformaria com as próprias mãos em um lar onde
pudessem viver com os filhos, mas agora, acostumada que estava com a casa
antiga no alto da colina onde a família vivia há gerações, lhe restava apenas
um grande apreço pelo chalezinho e o interesse melancólico de ver jovens
felizes morando lá. Quando soube que fora vendido, já que todas as casas
antigas estavam sendo compradas naquela época em que ninguém parecia
conseguir achar um lugar mais novo para morar, ela se permitiu buscar
diariamente um sinal de que alguém estivesse chegando; todas as manhãs
olhava da varanda dos fundos para ver se saía fumaça da chaminé do chalé, e
todos os dias, ao descer a colina a caminho da mercearia, ela hesitava ao
passar pelo chalé, atenta à possibilidade de qualquer movimentação lá dentro.
O chalé tinha sido vendido em janeiro e agora, quase dois meses depois,
embora estivesse mais bonito e menos destruído com a neve cobrindo um
pouco do jardim malcuidado e as pontas de gelo em frente às janelas vazias,
continuava abandonado e desabitado, esquecido desde o dia, muito tempo
antes, em que a sra. Winning perdera toda a esperança de um dia morar nele.
A sra. Winning guardou os guardanapos na despensa e se virou para
arrancar a folhinha do calendário da cozinha antes de escolher um pano de
prato e se juntar à sogra na pia. “Já é março”, disse, desanimada.
“Ontem na mercearia me contaram”, a sogra disse, “que vão começar a
pintar o chalé esta semana.”
“Isso deve ser um sinal de que alguém está vindo!”
“Não deve levar mais que umas semanas para pintar aquela casinha por
dentro”, a velha sra. Winning concluiu.
No dia seguinte, depois que a louça do almoço foi lavada, enquanto a sra.
Winning e a sogra a guardavam, a sra. Winning mais velha disse, em tom
casual, “A sra. Blake me contou que a sua amiga, a sra. MacLane, estava
perguntando aos vizinhos como entrar em contato com o menino da família
Jones”.
“Ela quer alguém para ajudar com o jardim, acho”, a sra. Winning explicou
sem dar muita importância. “Precisa de ajuda com aquele jardinzão.”
“Não esse tipo de ajuda”, a sra. Winning mais velha retrucou. “Você falou
da família dele?”
“Ela pareceu sentir pena deles”, a sra. Winning respondeu, das profundezas
da despensa. Demorou bastante tempo para organizar os pratos em pilhas
regulares a fim de organizar as próprias ideias. Ela não devia ter feito isso,
ela pensava, mas sua cabeça se recusava a lhe explicar o porquê. Ela devia ter
perguntado primeiro para mim, concluiu por fim.
No dia seguinte, a sra. Winning parou no chalé com a sra. MacLane depois
de subirem a colina na volta da mercearia. Sentaram-se na cozinha amarela e
tomaram café enquanto os meninos brincavam no quintal. Quando estavam
discutindo a possibilidade de pôr uma rede entre as macieiras, ouviram uma
batida na porta dos fundos, e quando a sra. MacLane a abriu, deparou com
um homem, por isso disse, “Pois não?”, educadamente, e aguardou.
“Bom dia”, o homem cumprimentou. Tirou o chapéu e assentiu para a sra.
MacLane. “O Billy me contou que a senhora está procurando alguém pra
cuidar do jardim”, ele disse.
“Por que…”, a sra. MacLane começou, olhando de soslaio, com
inquietação, para a sra. Winning.
“Sou o pai do Billy”, explicou o homem. Ele indicou o quintal com a
cabeça e a sra. MacLane viu Billy Jones sentado debaixo de uma das
macieiras, os braços cruzados diante do peito, os olhos no gramado sob os
pés.
“Como vai?”, a sra. MacLane disse, sem jeito.
“O Billy me contou que a senhora falou para ele vir trabalhar no seu
jardim”, o homem continuou. “Pois bem, eu acho que talvez um trabalho
temporário seja demais para um menino da idade dele, ele tem que aproveitar
o clima bom para brincar. E esse é o tipo de trabalho que eu faço, em todo
caso, então pensei em vir aqui e ver se a senhora já achou alguém.”
Era um homem parrudo, bastante parecido com Billy, mas se o cabelo de
Billy era só um pouco cacheado, o do pai era crespo, com uma linha em torno
da cabeça no lugar onde sempre ficava o chapéu, e se a pele de Billy era de
um castanho dourado, a do pai era mais escura, quase bronze. Quando se
movimentava, era com elegância, assim como Billy, e seus olhos tinham
aquele mesmo castanho insondável. “Eu gostaria de cuidar desse jardim”, o
sr. Jones declarou, olhando ao redor. “Pode ficar bem bonito.”
“Foi muita gentileza sua vir aqui”, a sra. MacLane agradeceu. “Eu preciso
de ajuda, sem sombra de dúvida.”
A sra. Winning permaneceu sentada, calada, sem querer falar na frente do
sr. Jones. Ela pensava, Queria que ela pedisse minha opinião antes, que coisa
inacreditável… e o sr. Jones ficou em silêncio, ouvindo educadamente, com
os olhos castanhos na sra. MacLane enquanto ela falava. “Acho que boa parte
do trabalho seria demais para um garoto feito o Billy”, ela concordou. “Tem
um monte de coisas que nem eu mesma consigo fazer, e eu estava mesmo
querendo alguém para me dar uma ajuda.”
“Então está ótimo”, o sr. Jones disse. “Acho que eu aguento a maior parte”,
ele completou e sorriu.
“Bom”, a sra. MacLane falou, “acho que então está combinado. Quando
você quer começar?”
“Que tal agora?”, ele sugeriu.
“Maravilha”, a sra. MacLane disse, entusiasmada, e então pediu “Me dê
licença um minutinho” à sra. Winning, virando-se para trás. Ela pegou as
luvas de jardinagem e o chapéu de palha de abas largas da prateleira ao lado
da porta. “O dia não está lindo?”, ela perguntou ao sr. Jones quando saiu para
o jardim, enquanto ele dava um passo para trás para deixá-la passar.
“Você agora pode ir para casa, Bill”, o sr. Jones disse quando chegaram à
lateral da casa.
“Ah, mas por que não deixar ele ficar?”, a sra. MacLane perguntou. A sra.
Winning ouvia sua voz à medida que sumiam de vista. “Ele pode brincar no
jardim, e é provável que ele goste…”
Por um instante, a sra. Winning ficou olhando para o jardim, para o canto
aonde o sr. Jones seguira a sra. MacLane, e então o rosto de Howard apareceu
na porta e ele perguntou, “Oi, já está na hora de comer?”.
“Howard”, a sra. Winning chamou baixinho, e ele entrou e se aproximou
dela. “Está na hora de você ir correndo pra casa”, a sra. Winning disse. “Eu já
vou em um instantinho.”
Howard começou a protestar, mas ela acrescentou, “Eu quero que você vá
agora. Leve a sacola de compras se você achar que consegue carregar”.
Howard ficou impressionado com a noção que a mãe tinha de sua força e
pegou a sacola; os ombros, já desproporcionais de tão largos, assim como os
do pai e do avô, estremeceram sob o peso, e então ele se equilibrou sobre as
pernas. “Não sou forte?”, ele perguntou, exultante.
“Muito forte”, a sra. Winning concordou. “Diga à vovó que eu já estou
chegando. Vou só me despedir da sra. MacLane.”
Howard desapareceu dentro da casa; a sra. Winning o escutava se
arrastando sob o peso das compras, saindo pela porta da frente e descendo os
degraus. A sra. Winning se levantou e estava junto à entrada dos fundos
quando a sra. MacLane voltou.
“Você já vai?”, a sra. MacLane exclamou quando viu a sra. Winning de
casaco. “Sem terminar o seu café?”
“É melhor eu ir atrás do Howard”, a sra. Winning disse. “Ele saiu correndo
na minha frente.”
“Desculpe ter largado você desse jeito”, a sra. MacLane se desculpou.
Estava no vão da porta, ao lado da sra. Winning, olhando para o jardim. “Que
maravilha é isso tudo”, ela disse, e deu uma risada feliz.
Elas percorreram a casa juntas: as cortinas azuis já estavam instaladas e o
tapete com um toque de azul na estampa já estava no chão.
“Tchau”, a sra. Winning se despediu na entrada da casa.
A sra. MacLane sorria, e seguindo seu olhar a sra. Winning se virou e viu o
sr. Jones sem camisa e com as costas fortes brilhando ao sol, curvado com
uma foice sobre o longo gramado na lateral da casa. Billy estava deitado ali
perto, à sombra dos arbustos; brincava com um gatinho cinzento. “Vou ter o
jardim mais bonito da cidade”, a sra. MacLane afirmou, orgulhosa.
“Você não vai pedir que ele volte outro dia para trabalhar aqui, não é?”, a
sra. Winning perguntou. “Imagino que você só queira que ele venha hoje.”
“Mas é claro…”, a sra. MacLane começou, com um sorriso tolerante, e a
sra. Winning, depois de encará-la durante um minuto de incredulidade, se
virou e partiu, indignada e constrangida, colina acima.
Howard tinha chegado são e salvo com as compras e a sogra já estava
arrumando a mesa.
“O Howard falou que você mandou ele voltar dos MacLane para cá”, a
sogra disse, e a sra. Winning respondeu, sucinta, “Achei que estava ficando
tarde”.
Ela trabalhava para Robert Shax fazia quase onze anos. Quando chegou a
Nova York, no Natal em que estava com vinte anos, uma garota de pele
escura e magra com roupas e cabelo elegantes e ambição moderada que
segurava a bolsa com ambas as mãos, com medo do metrô, ela respondeu a
um anúncio e conheceu Robert Shax antes mesmo de encontrar um canto
para morar. Tinha sido um daqueles golpes de sorte, uma vaga de assistente
em uma agência literária, e não havia ninguém por perto para dizer a
Elizabeth Style, que perguntava timidamente às pessoas como achar o
endereço, que se ela conseguisse o emprego ele não valeria a pena. A agência
literária era Robert Shax e um astuto homem magro que detestava tanto
Elizabeth que dois anos depois de ela conseguir a vaga ele saiu para abrir a
própria agência. Robert Shax estava na porta e em todos os cheques, e
Elizabeth Style se escondia na própria sala, escrevia as cartas, organizava os
documentos e de vez em quando saía para consultar os arquivos que permitia
que Robert Shax deixasse à mostra.
Tinham passado muito tempo daqueles oito anos tentando fazer com que
aquele escritório parecesse o ambiente sério de um negócio próspero: um
lugar lamentável cujos donos estavam atarefados demais para embelezar além
do suficiente para cumprir os objetivos dos clientes. A porta se abria para
uma recepção apertada, pintada de bege no ano anterior, com duas cadeiras
baratas cromadas e marrons, um assoalho de linóleo marrom e um retrato
emoldurado de um vaso de flores acima da mesinha que cinco tardes por
semana era ocupada pela srta. Wilson, uma moça pálida que atendia o
telefone fungando. Atrás da mesa da srta. Wilson havia duas portas, que não
davam a impressão de salas intermináveis, que se estendiam prédio adiante,
como Robert Shax esperava que dessem; a da esquerda tinha, na porta,
ROBERT SHAX, e a da direita tinha, na porta, ELIZABETH STYLE, e pelas portas de
Elizabeth retomou a carta ao sr. Burton, que ficou toda enrolada por ter
passado tanto tempo na máquina de escrever, e escutou Robbie e Daphne Hill
conversando por um tempo, sobre nomes de clientes e a extensão telefônica
de dois botões da mesa da recepção, e então ouviu os dois saindo da sala,
indo até a mesa da recepção para testar a extensão, duas crianças, ela pensou,
brincando de escritório. Às vezes ouvia a gargalhada sonora de Robbie, e
então, passado um instante, Daphne rindo também, lenta e surpresa. Apesar
de todas as tentativas de se concentrar nos valores para o sr. Burton, ela se
pegou prestando atenção, seguindo os barulhos de Robbie e Daphne ao se
movimentarem pelo escritório. Uma hora, mais alto do que o murmúrio
baixinho que trocavam, ela ouviu a voz de homem-muito-experiente de
Robbie dizer, “Um restaurante pequeno e sossegado”, e então, quando a voz
readquiriu o tom cauteloso, ela completou consigo mesma, Onde eles possam
conversar. Ela aguardou, para não parecer uma intrusa, até Daphne se
acomodar pesadamente à mesa da recepção e Robbie se dirigir à própria sala.
Então chamou, “Robbie?”.
Houve um momento de silêncio e em seguida ele deu a volta e abriu a
porta da sala dela. “Você sabe que eu não gosto que você berre no escritório”,
ele disse.
Ela se calou por um instante porque queria ser cordial. “Nós vamos sair
para jantar esta noite?”, ela perguntou. Jantavam juntos quatro ou cinco vezes
por semana, em geral no restaurante onde haviam almoçado ou em algum
lugarzinho perto do apartamento de Robbie ou de Elizabeth. Quando viu os
cantos da boca de Robbie se voltarem para baixo e o leve giro de sua cabeça
em direção à outra sala, levantou um pouco a voz. “Consegui escapar de um
encontro com uns idiotas hoje”, ela disse. “Tenho muito o que conversar com
você.”
“Sabe, Liz”, Robbie começou, falando bem rápido e em voz baixa, “Eu
acho que não vou ter como sair pra jantar.” Sem perceber que ele repetia o
que a ouvira dizer ao telefone alguns minutos antes, ele prosseguiu, fazendo
cara de aborrecido, “Tenho um jantar que não posso faltar, com um cliente”.
Quando Elizabeth demonstrou surpresa, ele disse, “O clérigo, prometi a ele
hoje de manhã que nos reuniríamos de novo esta noite. Eu ainda não tinha
conseguido te avisar”.
“Claro que você não pode faltar”, Elizabeth falou, tranquila. Ficou
aguardando, observando Robbie. Ele estava sentado, inquieto, no canto da
mesa dela, distraído, brincando com um lápis, querendo sair mas com medo
de ser muito abrupto. O que é que eu estou fazendo, Elizabeth pensou,
brincando de esconde-esconde? “Por que você não vai ao cinema, sei lá?”, ela
sugeriu.
Robbie deu uma risada pesarosa. “Eu bem que queria”, ele falou.
Elizabeth esticou o braço e arrancou o lápis da mão dele. “Pobre Robbie”,
ela disse. “Você parece bem chateado. Precisa ir a algum lugar e relaxar.”
Robbie franziu a testa, angustiado. “Por que eu faria isso?”, ele perguntou.
“O escritório não é meu?”
Elizabeth adotou um tom terno. “Você precisa ficar algumas horas afastado
daqui, Robbie, estou falando sério. Não vai poder trabalhar esta tarde.” Ela
resolveu se permitir uma leve alfinetada vingativa. “Sobretudo se tiver que
encontrar aquele horroroso esta noite”, ela disse.
A boca de Robbie se abriu e se fechou, e então ele disse, “Eu não consigo
pensar direito nesse clima horrível. A chuva me tira do sério”.
“Eu sei”, Elizabeth falou. Ela se levantou. “Ponha o chapéu e o paletó e
deixe a pasta e tudo aqui”, ela ordenou, empurrando-o porta afora, “e volte
depois de ter passado umas horinhas no cinema que aí você vai se sentir outra
pessoa para sair e convencer o clérigo.”
“Não quero sair de novo nesse tempo”, Robbie retrucou.
“Pare para fazer a barba”, Elizabeth aconselhou. Ela abriu a porta da sala e
viu Daphne Hill encarando-a. “Corte o cabelo”, ela acrescentou, tocando na
parte de trás da cabeça dele. “A srta. Hill e eu vamos ficar muito bem sem
você. Não é, srta. Hill?”
“Claro”, Daphne respondeu.
Robbie entrou na própria sala a contragosto e saiu logo depois segurando o
paletó úmido e o chapéu. “Não sei por que você quer que eu saia”, ele disse.
“Não sei por que você quer ficar”, Elizabeth rebateu, escoltando-o até a
porta do escritório. “Você não serve pra nada quando está desse jeito.” Abriu
a porta da frente e ele saiu. “Até mais tarde.”
“Até mais tarde”, disse Robbie, atravessando o corredor.
Elizabeth ficou observando até ele entrar no elevador, fechou a porta e se
virou para Daphne Hill. “A carta para a srta. Wilson já está pronta?”,
indagou.
“Eu estava escrevendo”, Daphne respondeu.
“Traz para mim quando você terminar.” Elizabeth foi até a própria sala,
fechou a porta e se sentou à mesa. Frank, ela pensava, não poderia ser Frank.
Ele teria dado um oi ou algo assim. Eu não mudei tanto assim. Se era Frank,
o que ele estava fazendo por ali? Não adianta, ela pensou, não tenho como
achá-lo mesmo.
Ela pegou a lista telefônica do canto da mesa e procurou o nome de Frank;
não constava ali, e ela virou mais folhas até chegar ao H, correndo o dedo
pela página até encontrar Harris, James. Puxando o telefone, discou o número
e aguardou. Quando um homem atendeu, ela perguntou, “É Jim Harris quem
fala?”.
“Ele mesmo”, respondeu.
“Aqui é a Elizabeth Style.”
“Olá”, ele disse. “Como vai?”
“Estava esperando você entrar em contato comigo”, ela falou. “Faz tanto
tempo.”
“Eu sei que faz”, ele disse. “De uma forma ou de outra, parece que eu
nunca consigo…”
“Vou te contar por que estou telefonando”, ela disse. “Você se lembra do
Frank Davis?”
“Claro”, ele respondeu. “O que ele anda fazendo?”
“Era isso o que eu queria te perguntar”, ela disse.
“Ah. Bom…”
Ela esperou um instante e depois prosseguiu, “Um dia desses eu vou
aceitar aquele seu convite para jantar”.
“Espero que você aceite”, ele falou. “Eu te ligo.”
Ai, não, ela pensou. “Já faz muito tempo que a gente se viu. Escuta.” Ela
falou como se tivesse tido uma ideia repentina, uma ideia genial e inesperada,
“Por que a gente não sai esta noite?” Ele começou a dizer alguma coisa e ela
continuou, “Estou morrendo de vontade de te ver”.
“É que a minha irmã caçula está na cidade”, ele disse.
“Ela não pode vir junto?”, Elizabeth perguntou.
“Bom”, ele disse, “acho que pode.”
“Ótimo”, Elizabeth falou. “Primeiro você passa na minha casa para tomar
um drinque, e traz a caçula, e nós podemos ter uma bela conversa sobre os
velhos tempos.”
“Posso te ligar mais tarde?”, ele perguntou.
“Estou saindo do escritório agora”, Elizabeth disse sem mudar de tom.
“Vou passar a tarde inteira na rua. Então vamos combinar por volta das sete?”
“Está bem”, ele disse.
“Estou muito contente por termos conseguido marcar esta noite”, Elizabeth
concluiu. “Até mais tarde.”
Depois que desligou ela passou um instante com a mão no telefone,
pensando, Harris velho de guerra, ele não tem chance nenhuma se você fala
rápido; ele deve acabar metido em todos os rolos desta cidade. Ela riu,
satisfeita, e parou de repente ao ouvir Daphne bater à porta; quando Elizabeth
disse, “Entra”, Daphne abriu com cuidado e enfiou a cabeça.
“Terminei a carta, srta. Style”, anunciou.
“Traz aqui”, Elizabeth pediu, e acrescentou, “por favor.”
Daphne entrou e esticou bem o braço para entregar a carta. “Não está
muito boa”, ela disse. “Mas é a primeira carta que escrevo por conta própria.”
Elizabeth deu uma olhada na carta. “Não importa”, ela disse. “Sente-se,
Daphne.”
Daphne se sentou cautelosamente na beirada da cadeira. “Apoia as costas”,
Elizabeth mandou. “Essa é a única cadeira que eu tenho e não quero que você
a quebre.”
Daphne se recostou e arregalou os olhos.
Elizabeth abriu a bolsa com delicadeza, pegou um maço de cigarros e
procurou um fósforo. “Só um instante”, Daphne disse, ávida, “eu tenho.” Ela
correu até a recepção e voltou com uma caixa de fósforos. “Pode ficar”, ela
falou, “eu tenho mais.”
Elizabeth acendeu o cigarro e deixou os fósforos no cantinho da mesa.
“Pois bem”, ela disse, e Daphne se inclinou para a frente. “Onde você
trabalhou antes daqui?”
“Este é o meu primeiro emprego”, ela respondeu. “Acabei de chegar a
Nova York.”
“De onde você veio?”
“De Buffalo”, Daphne falou.
“Então você veio para Nova York para fazer fortuna?”, Elizabeth indagou.
É aí que eu ganho da Daphne, ela pensava, eu já fiz a minha fortuna.
“Sei lá”, Daphne respondeu. “Meu pai nos trouxe pra cá porque o irmão
precisava dele nos negócios. Nos mudamos há poucos meses.”
Se eu tivesse uma família para cuidar de mim, Elizabeth pensou, não
trabalharia para Robert Shax. “Que tipo de formação você teve?”
“Fiz o colegial em Buffalo”, Daphne contou. “Fiquei um tempo na
faculdade de administração.”
“Você quer ser escritora?”
“Não”, respondeu Daphne, “quero ser agente, como o sr. Shax. E como
você”, acrescentou.
“É um ramo muito bom”, Elizabeth declarou. “E dá pra ganhar muito
dinheiro.”
“Foi o que o sr. Shax falou. Ele foi muito bacana.”
Daphne parecia mais corajosa. Estava de olho no cigarro de Elizabeth e
havia se acomodado na cadeira.
De repente, Elizabeth se sentiu exausta; não estava mais se divertindo com
Daphne. “O sr. Shax e eu estávamos conversando sobre você no almoço”,
disse deliberadamente.
Daphne sorriu. Quando sorria, e quando estava sentada, sem a imagem
daquele corpo volumoso se apoiando precariamente sobre os pezinhos,
Daphne era uma garota atraente. Apesar dos olhinhos castanhos, com aquela
massa inacreditável de cabelo, Daphne era muito atraente. Sou tão magricela,
Elizabeth pensou, e disse com deleite, “Acho melhor você reescrever a carta
para a srta. Wilson, Daphne”.
“Sem problemas”, assentiu Daphne.
“Dizendo a ela”, Elizabeth prosseguiu, “que volte ao trabalho assim que
possível.”
“Volte para cá?”, Daphne indagou, com um comecinho de preocupação.
“Volte para cá”, confirmou Elizabeth. Ela sorriu. “Acho que o sr. Shax não
teve coragem de dizer”, ela declarou. “O sr. Shax e eu, além de sócios”, ela
continuou, “somos grandes amigos. É normal o sr. Shax se aproveitar da
nossa amizade para deixar as tarefas desagradáveis na minha mão.”
“O sr. Shax não me falou nada”, Daphne respondeu.
“Imaginei que não”, Elizabeth disse, “quando vi você seguindo em frente
como se fosse continuar aqui.”
Daphne ficou assustada. Ela é burra demais para chorar, Elizabeth pensou,
mas vai precisar que tudo seja explicado tim-tim por tim-tim.
“Naturalmente”, Elizabeth continuou, “eu não gosto de fazer isso. Talvez eu
possa facilitar as coisas pra você tentando ajudá-la a arrumar outro emprego.”
Daphne fez que sim.
“Talvez isso te ajude”, Elizabeth disse, “porque o sr. Shax comentou mais
cedo, e é o tipo de coisa a que os homens dão muita atenção. Sua aparência.”
Daphne olhou para a ampla parte da frente do vestido.
“Provavelmente”, Elizabeth continuou, “você já sabe, e é uma enorme
grosseria eu comentar, mas acho que você causaria uma impressão melhor e,
conseguindo um emprego, ficaria mais à vontade para trabalhar se usasse
uma roupa mais adequada a um escritório em vez de um vestido de seda. Faz
parecer, de certa forma, que você acabou de chegar de Buffalo.”
“Você quer que eu use um terninho, algo assim?”, Daphne indagou. Falava
devagar e sem malícia.
“Uma roupa mais discreta, em todo caso”, Elizabeth respondeu.
Daphne olhou Elizabeth da cabeça aos pés. “Um terninho que nem o seu?”,
perguntou.
“Um terninho seria ótimo”, Elizabeth concordou. “E tente pentear o cabelo
para baixo.”
Daphne tocou no alto da cabeça delicadamente.
“Tente ser mais organizada, de modo geral”, Elizabeth prosseguiu. “Você
tem um cabelo lindo, Daphne, mas ficaria mais condizente com um escritório
se você o usasse mais preso.”
“Feito o seu?”, perguntou Daphne, olhando para os fios grisalhos do cabelo
de Elizabeth.
“Como você quiser”, disse Elizabeth, “contanto que não pareça uma
vassoura.” Ela se voltou enfaticamente para a própria mesa e um minuto
depois Daphne se levantou. “Leve isso de volta”, Elizabeth ordenou,
entregando a carta destinada à srta. Wilson, “e reescreva como eu mandei.”
“Sim, srta. Style”, Daphne disse.
“Pode ir para casa assim que terminar a carta”, Elizabeth concluiu. “Deixe
em cima da sua mesa, junto com o seu nome e endereço, que o sr. Shax te
manda o pagamento da diária.”
“Não importa se ele vai mandar ou não”, Daphne respondeu bruscamente.
Elizabeth ergueu a cabeça por um instante e olhou fixo para Daphne.
“Você acha que tem algum direito de criticar as decisões do sr. Shax?”,
perguntou.
Elizabeth ficou alguns minutos sentada à mesa, esperando para ver o que
Daphne faria; depois que ela fechou a porta da sala com delicadeza e voltou à
mesa da recepção, fez-se um silêncio carregado; ela está sentada na mesa lá
fora, Elizabeth pensou, reflexiva. Então, por fim, ouviu o barulhinho da bolsa
de Daphne, o estalo do fecho se abrindo, o movimento da mão tateante contra
chaves, papéis; ela está pegando o pó compacto, Elizabeth pensou, está
tentando ver se o que eu falei sobre sua aparência é verdade; está ponderando
se Robbie disse alguma coisa, de que forma disse, se eu piorei a situação ou a
amenizei a favor dela. Eu devia ter falado que ele a chamou de baleia, ou da
coisa mais feia que já viu na vida; talvez ela nem percebesse que era mentira.
O que ela estará fazendo agora?
Daphne exclamou “Droga” de forma bem clara; Elizabeth se inclinou na
cadeira, sem querer que qualquer ato ínfimo lhe escapasse. Em seguida ouviu
o som abafado da máquina de escrever: Daphne estava datilografando a carta
para a srta. Wilson. Elizabeth balançou a cabeça devagar e riu. Acendeu um
cigarro com um dos fósforos de Daphne, ainda no cantinho da mesa, e olhou
desinteressadamente para a carta ao sr. Burton, que continuava na máquina de
escrever. Sentada com o braço jogado no espaldar da cadeira e o cigarro na
boca, datilografou devagar, com um dedo, “Que o diabo te carregue, Burton”,
e então arrancou a folha da máquina, rasgou e jogou na lixeira. Esse foi o
único trabalho que eu fiz hoje, ela disse para si mesma, e não importa nem
um pouco depois de eu ver a cara da Daphne quando falei com ela. Olhou
para a mesa, as cartas aguardando resposta, as críticas de um editor
profissional esperando para serem escritas, as reclamações a serem sanadas, e
pensou, vou para casa. Posso tomar um banho e fazer uma faxina e comprar
coisas para Jim e a irmã caçula; vou só esperar Daphne ir embora.
“Daphne?”, ela chamou.
Após certa hesitação: “Sim, srta. Style?”.
“Você ainda não terminou?”, Elizabeth questionou; agora podia se permitir
ser delicada. “A carta para a srta. Wilson devia ser coisa rápida.”
“Estava me aprontando para ir embora”, Daphne declarou.
“Não se esqueça de deixar seu nome e endereço.”
Fez-se silêncio na outra sala, e Elizabeth falou para a porta fechada,
levantando a voz outra vez, “Escutou o que eu disse?”.
“O sr. Shax sabe meu nome e endereço”, Daphne respondeu. A porta do
escritório se abriu e Daphne disse, “Tchau”.
“Tchau”, respondeu Elizabeth.
A sra. Concord e sua filha mais velha, Helen, estavam sentadas na sala de
casa, costurando, conversando e tentando se manter aquecidas. Helen tinha
acabado de largar as meias que vinha remendando e fora até as portas de
vidro que se abriam para o jardim. “Quem dera a primavera se apressasse
para chegar logo”, dizia quando a campainha tocou.
“Deus do céu”, disse a sra. Concord, “se for visita! O tapete está coberto de
fios soltos.” Curvou-se na poltrona e começou a catar os retalhos de tecido à
sua volta enquanto Helen ia atender à porta. Ela a abriu e ficou sorrindo
enquanto a mulher à sua frente lhe estendia a mão e começava a falar rápido.
“Você é a Helen? Eu sou a sra. Friedman”, ela disse. “Espero que você não
me ache uma intrometida, mas eu estava louca para conhecer você e sua
mãe.”
“Como vai?”, Helen cumprimentou. “Não quer entrar?” Ela abriu mais a
porta e a sra. Friedman entrou. Era miúda e de pele escura e usava um
elegantíssimo casaco de leopardo. “Sua mãe está em casa?”, ela perguntou a
Helen no instante em que a sra. Concord vinha da sala de estar.
“Eu sou a sra. Concord”, falou a mãe de Helen.
“Eu sou a sra. Friedman”, disse a sra. Friedman. “Mãe do Bob Friedman.”
“Bob Friedman”, a sra. Concord repetiu.
A sra. Friedman se desculpou com um sorriso. “Eu tinha certeza de que o
seu filho teria mencionado o Bobby”, ela disse.
“Claro que mencionou”, Helen falou de repente. “É sobre ele que o Charlie
vive escrevendo, mãe. É muito difícil fazer essa correlação”, ela explicou à
sra. Friedman, “porque a gente tem a sensação de que o Charlie está muito
longe.”
A sra. Concord assentia. “Claro”, ela disse. “Entre e venha se sentar.”
A sra. Friedman seguiu as duas sala adentro e se sentou em uma das
poltronas não ocupadas por materiais de costura. A sra. Concord gesticulou
para o ambiente. “Faz uma bagunça danada”, ela disse, “mas de vez em
quando eu e a Helen pomos mãos à obra e fazemos as coisas. São cortinas
para a cozinha”, acrescentou, pegando o tecido que andara costurando.
“São muito bonitas”, a sra. Friedman disse, educada.
“Bom, nos conte do seu filho”, a sra. Concord prosseguiu. “Estou
impressionada de não ter reconhecido o nome logo de cara, mas de certo
modo eu ligo Bob Friedman com o Charles e com o Exército, e me pareceu
estranho que a mãe dele estivesse aqui na cidade.”
A sra. Friedman riu. “Foi exatamente assim que me senti”, declarou. “O
Bobby escreveu que a mãe do amigo dele morava aqui, a alguns quarteirões
da gente, e fiquei me perguntando por que eu não vinha dar um oi.”
“Que bom que veio”, a sra. Concord disse.
“Acho que a esta altura a gente já sabe tanto sobre o Bob quanto a
senhora”, Helen falou. “O Charlie vive falando dele nas cartas.”
A sra. Friedman abriu a bolsa. “Eu até recebi uma carta do Charlie”, disse.
“Achei que vocês gostariam de dar uma olhadinha.”
“O Charles escreveu para você?”, a sra. Concord perguntou.
“Foi só um bilhete. Ele gostou tanto do tabaco para cachimbo que eu
mandei para o Bobby”, a sra. Friedman explicou, “que pus uma latinha para
ele da última vez que mandei um pacote para o Bobby.” Ela entregou a carta
à sra. Concord e disse a Helen, “Acho que já sei tudo sobre vocês, de tanto
que o Bobby falou da família”.
“Bom”, Helen falou, “eu sei que o Bob comprou uma catana para dar de
Natal à senhora. Deve ter ficado linda debaixo da árvore. O Charlie o ajudou
a comprar do rapaz que tinha a espada — a senhora soube disso, e que eles
quase se meteram numa briga com o rapaz?”
“O Bobby quase se meteu numa briga”, a sra. Friedman corrigiu. “O
Charlie foi esperto e ficou de fora.”
“Não, nós ouvimos falar que foi o Charlie quem arrumou encrenca”, Helen
falou. Ela e a sra. Friedman riram.
“Talvez seja melhor a gente não comparar as histórias”, a sra. Friedman
disse. “Eles não parecem coincidir nelas.” Ela se voltou para a sra. Concord,
que tinha terminado de ler a carta e passado o papel para Helen. “Eu estava
justamente falando para a sua filha quantas coisas positivas ouvi a seu
respeito.”
“Também ouvimos muito sobre você”, a sra. Concord disse.
“O Charlie mostrou ao Bob uma foto sua com suas duas filhas. A caçula se
chama Nancy, não é isso?”
“É Nancy, sim”, a sra. Concord respondeu.
“Bom, o Charlie sem dúvida pensa muito na família”, a sra. Friedman
disse. “Não foi uma simpatia ele me escrever?”, ela perguntou a Helen.
“O tabaco deve ser ótimo”, Helen disse. Titubeou por um instante e
devolveu a carta à sra. Friedman, que a guardou na bolsa.
“Eu adoraria conhecer o Charlie uma hora dessas”, a sra. Friedman
comentou. “Parece até que já o conheço bem.”
“Tenho certeza de que ele vai querer te conhecer quando voltar”, a sra.
Concord falou.
“Tomara que não demore muito”, a sra. Friedman disse. As três se calaram
por um tempo, e então a sra. Friedman continuou, animada, “É tão esquisito
que a gente more na mesma cidade e só com os nossos filhos indo tão longe
tenhamos nos conhecido”.
“É uma cidade onde é muito difícil conhecermos outras pessoas”, a sra.
Concord comentou.
“Faz muito tempo que vocês moram aqui?” A sra. Concord sorriu como se
pedisse desculpas. “É claro que sei do seu marido”, acrescentou. “Os filhos
da minha irmã estão no colégio do seu marido e falam muitíssimo bem dele.”
“Sério?”, a sra. Concord perguntou. “Meu marido vive aqui desde sempre.
Eu vim do Oeste quando me casei.”
“Então não foi difícil para você se instalar e fazer amizades”, a sra.
Friedman disse.
“Não, não tive muita dificuldade”, a sra. Concord falou. “Claro que nossos
amigos, em geral, são as pessoas que estudaram com o meu marido no
colégio.”
“Que pena que o Bobby não teve a oportunidade de ter aulas com o sr.
Concord”, a sra. Friedman lamentou. “Bom…” Ela se levantou. “Adorei
finalmente conhecer vocês.”
“Fico contente que você tenha vindo”, a sra. Concord disse. “Foi que nem
receber uma carta do Charles.”
“E eu sei como uma carta é recebida de bom grado, pois eu fico ansiosa
pelas cartas do Bobby”, a sra. Friedman acrescentou. Ela e a sra. Concord se
dirigiram à porta e Helen se levantou e foi atrás delas. “Meu marido está
muito interessado no Charlie, sabia? Desde que descobriu que o Charlie
estava estudando direito quando entrou para o Exército.”
“Seu marido é advogado?”, a sra. Concord perguntou.
“Ele é o Friedman da Grunewald, Friedman & White”, disse a sra.
Friedman. “Quando o Charlie estiver pronto para começar, quem sabe meu
marido não consegue uma vaga para ele?”
“Quanta gentileza a sua”, a sra. Concord agradeceu. “O Charles vai ficar
com muita pena quando eu falar isso para ele. É que sempre ficou meio que
combinado que ele viraria sócio do Charles Satterthwaite, o amigo mais
antigo do meu marido. Da Satterthwaite & Harris.”
“Acredito que o sr. Friedman conheça a firma”, a sra. Friedman disse.
“Uma firma boa e tradicional”, a sra. Concord falou. “O avô do sr.
Concord era sócio.”
“Mande nossas carinhosas lembranças ao Bob quando a senhora escrever
para ele”, Helen pediu.
“Mando, sim”, a sra. Friedman disse. “Vou contar do meu encontro com
vocês nos mínimos detalhes. Foi ótimo”, ela falou, estendendo a mão para a
sra. Concord.
“Eu gostei muito”, a sra. Concord afirmou.
“Diga ao Charlie que vou enviar mais tabaco para ele”, a sra. Friedman
pediu a Helen.
“Digo, sim”, Helen disse.
“Bom, então tchau”, a sra. Friedman falou.
“Tchau”, a sra. Concord se despediu.
O boneco
A jovem sra. Archer estava sentada na cama com Kathy Valentine e a sra.
Corn, brincando com o bebê e fofocando, quando o interfone tocou. A sra.
Archer, exclamando “Nossa!”, foi apertar o botão que abria o portão do
prédio. “A gente precisava morar no térreo”, disse a Kathy e à sra. Corn. “As
pessoas ligam aqui para tudo.”
Quando a campainha interna tocou, ela abriu a porta do apartamento e viu
um senhor no corredor do prédio. Usava um sobretudo preto comprido,
surrado, e tinha uma barba grisalha quadrada. Mostrava um punhado de
cadarços.
“Ah”, a sra. Archer disse. “Ah, mil perdões, mas…”
“Madame”, o velho falou, “a senhora me faria a gentileza. São cinco
centavos cada.”
A sra. Archer fez que não e recuou. “Lamento, mas não”, declarou.
“Obrigado mesmo assim, madame”, ele disse, “por falar com gentileza. Foi
a primeira pessoa do quarteirão que teve a decência de tratar com educação
um velho pobre.”
A sra. Archer girava a maçaneta devido ao nervosismo. “Sinto muito”, ela
disse. Então, quando ele se virou para ir embora, ela falou, “Espere um
minutinho”, e correu até o quarto. “Um velho vendendo cadarços”, sussurrou.
Ela abriu a primeira gaveta, pegou a bolsa e revirou o moedeiro. “Vinte e
cinco centavos”, ela disse. “Vocês acham que está bom?”
“Claro”, Kathy falou. “Deve ser mais do que ele ganhou o dia inteiro.”
Kathy tinha a idade da sra. Archer e era solteira. A sra. Corn era uma mulher
corpulenta de cinquenta e poucos anos. Ambas moravam no prédio e
passavam bastante tempo na casa da sra. Archer por causa do bebê.
A sra. Archer voltou à porta. “Aqui”, anunciou, entregando a moeda.
“Acho uma vergonha que todo mundo tenha sido grosseiro.”
O velho começou a lhe oferecer alguns cadarços, mas sua mão tremia e os
cadarços caíram no chão. Ele se apoiou com dificuldade contra a parede. A
sra. Archer ficou olhando, horrorizada. “Deus do céu”, exclamou, e esticou a
mão. Quando seus dedos encostaram no imundo e velho sobretudo, ela
titubeou e então, contraindo os lábios, enganchou seu braço no dele com
firmeza e tentou ajudá-lo a cruzar o vão da porta. “Meninas”, ela chamou,
“me ajudem aqui, rápido!”
Kathy veio correndo do quarto, dizendo, “Você chamou, Jean?”, e então
parou de repente, o olhar fixo.
“O que eu faço?”, a sra. Archer perguntou, de pé com o braço enganchado
no do velho. Os olhos dele estavam fechados e parecia mal conseguir, com a
ajuda dela, se manter de pé. “Pelo amor de Deus, segura ele do outro lado.”
“Puxa uma cadeira para ele”, Kathy disse. Já que o corredor era apertado
demais para os três o atravessarem lado a lado, Kathy pegou o velho pelo
outro braço e meio que conduziu a sra. Archer e ele até a sala de estar. “Não
na poltrona boa”, a sra. Archer exclamou. “Na velha de couro.” Instalaram o
velho na poltrona de couro e deram um passo para trás. “O que é que a gente
faz agora?”, a sra. Archer disse.
“Você tem uísque?”, Kathy perguntou.
A sra. Archer fez que não. “Tenho um pouco de vinho”, falou sem
convicção.
A sra. Corn apareceu na sala segurando o bebê. “Meu Deus!”, disse, “Ele
está bêbado!”
“Que bobagem”, retrucou Kathy. “Eu não deixaria a Jean trazer ele para
dentro se estivesse.”
“Toma conta do bebê, Blanche”, a sra. Archer pediu.
“É claro”, a sra. Corn assentiu. “Vamos voltar para o quarto, benzinho”,
ela disse ao bebê, “e aí a gente vai botar você naquele seu bercinho lindo e
você vai nanar.”
O velho se mexeu e abriu os olhos. Tentou se levantar.
“O senhor trate de não sair daí”, Kathy ordenou, “que a sra. Archer vai te
trazer um pouquinho de vinho. O senhor ia gostar, não ia?”
O velho ergueu o olhar para Kathy. “Obrigado”, ele agradeceu.
A sra. Archer foi à cozinha. Depois de pensar um instante, pegou o copo
em cima da bancada, passou uma água e serviu um pouco de xerez. Levou o
copo à sala e o entregou a Kathy.
“Eu seguro ou o senhor consegue beber sem ajuda?”, Kathy perguntou ao
velho.
“É muita bondade sua”, ele disse, e esticou o braço para pegar o copo.
Kathy firmou o copo enquanto ele bebia aos poucos, e então o afastou.
“Já está bom, obrigado”, ele disse. “Já deu para me ressuscitar.” Ele tentou
se levantar. “Obrigado”, ele agradeceu à sra. Archer, “e obrigado à senhora”,
dirigindo-se a Kathy. “Melhor eu ir embora.”
“Só quando o senhor estiver com as pernas firmes”, Kathy falou. “Não
podemos arriscar, sabe?”
O velho sorriu. “Eu posso arriscar”, ele afirmou.
A sra. Corn voltou à sala de estar. “O bebê está no berço”, ela disse, “e já
está quase dormindo. Ele está se sentindo melhor agora? Aposto que estava
só bêbado ou esfomeado ou coisa desse tipo.”
“Claro que estava”, Kathy respondeu, animada pela ideia. “Ele estava com
fome. Esse era o problema desde o princípio, Jean. Que bobagem a nossa.
Pobre cavalheiro!”, ela disse ao velho. “Tenho certeza de que a sra. Archer
não vai deixar o senhor ir embora sem uma refeição completa no estômago.”
A sra. Archer olhava, em dúvida. “Tenho alguns ovos”, ela afirmou.
“Ótimo!”, Kathy disse. “É disso mesmo que ele precisa. A digestão é
fácil”, ela disse ao velho, “e é bom principalmente se a pessoa não come faz”,
ela hesitou, “faz um tempo.”
“Café forte”, a sra. Corn sugeriu, “se quer a minha opinião. Olha como as
mãos dele tremem.”
“É esgotamento nervoso”, Kathy afirmou com convicção. “Uma xícara
quentinha de caldo de carne e ele vai ficar novo em folha, e ele tem que
tomar bem devagarinho para o estômago ir se acostumando com comida
outra vez. O estômago”, ela disse à sra. Archer e à sra. Corn, “encolhe
quando fica vazio por um período muito longo.”
“Prefiro não incomodar a senhora”, o velho disse à sra. Archer.
“Que bobagem”, falou Kathy. “A gente faz questão de que o senhor coma
um prato quentinho antes de ir.” Ela pegou o braço da sra. Archer e a
conduziu até a cozinha. “Só uns ovos”, disse, “frite uns quatro ou cinco. Mais
tarde eu trago uma dúzia para você. Imagino que você não tenha bacon. Vou
te falar uma coisa: frita também umas batatas. Ele não vai ligar se estiverem
meio cruas. Essa gente come coisas tipo montes de batata frita com ovo e…”
“Tem uns figos enlatados que sobraram do almoço”, a sra. Archer falou.
“Eu estava pensando no que fazer com eles.”
“Preciso correr lá para ficar de olho nele”, Kathy disse. “Ele pode desmaiar
de novo, sei lá. Você só tem que fritar o ovo e a batata. Vou mandar a
Blanche sair se ela vier.”
A sra. Archer mediu café suficiente para duas xícaras e pôs o bule no
fogão. Em seguida pegou a frigideira. “Kathy”, ela falou, “só fico meio
preocupada. Se ele estiver bêbado mesmo, entende, e se o Jim ficar sabendo,
com o bebê em casa e tal…”
“Ora, Jean!”, Kathy disse. “Acho que você devia passar um tempo
morando no interior. As mulheres vivem distribuindo refeições para homens
esfomeados. E você não precisa contar para o Jim. Eu e a Blanche não vamos
falar nada.”
“Bom”, falou a sra. Archer, “tem certeza de que ele não está bêbado?”
“Conheço um homem esfomeado só de olhar”, Kathy declarou. “Quando
um velho que nem esse não consegue parar em pé, as mãos tremem e ele fica
esquisito desse jeito, é porque está morrendo de fome. Literalmente
morrendo.”
“Nossa!”, sobressaltou-se a sra. Archer. Ela correu até o armário debaixo
da pia e pegou duas batatas. “Duas basta, concorda? Acho que estamos
mesmo fazendo uma boa ação.”
Kathy deu uma risadinha. “Apenas um bando de escoteiras”, disse. Ela já
ia saindo, mas parou e deu meia-volta. “Você tem torta? Eles sempre comem
torta.”
“Mas era para a janta”, a sra. Archer explicou.
“Ah, dá para ele”, Kathy disse. “A gente pode sair para comprar mais
quando ele for embora.”
Enquanto as batatas fritavam, a sra. Archer pôs um prato, xícara e pires,
além de garfo, faca e colher, na mesa da cozinha. Em seguida, como se
tivesse uma ideia, tirou a louça e pegou um saco de papel do armário, o
rasgou ao meio e forrou a mesa antes de pôr a louça de novo na mesa. Ela
pegou um copo e o encheu com a água da garrafa que ficava na geladeira,
cortou três fatias de pão e as pôs no prato, depois cortou um quadradinho de
manteiga e o deixou junto com o pão. Em seguida, tirou um guardanapo de
papel da caixa no armário e o colocou ao lado do prato, pegou de novo um
instante depois para dobrá-lo em um triângulo e o devolveu ao lugar. Por fim,
pôs o pimenteiro e o saleiro na mesa e pegou a caixa de ovos. Foi à porta e
chamou, “Kathy! Pergunta como ele gosta que frite os ovos.”
Houve um murmúrio de conversa na sala e Kathy berrou de volta,
“Estrelado!”.
A sra. Archer pegou quatro ovos e depois mais outro e os quebrou um a
um na frigideira. Quando acabou, chamou, “Pronto, meninas! Tragam ele
para cá!”.
A sra. Corn foi à cozinha, inspecionou o prato de batata com ovo e olhou
para a sra. Archer sem se pronunciar. Então Kathy apareceu, conduzindo o
velho pelo braço. Ela o acompanhou até a mesa e o acomodou na cadeira.
“Aqui”, ela disse. “A sra. Archer preparou uma comida deliciosa para o
senhor.”
O velho olhou para a sra. Archer. “Fico muito agradecido”, ele falou.
“Não é ótimo?”, Kathy perguntou. Ela assentia para a sra. Archer,
demonstrando aprovação. O velho olhou o prato de ovo e batata. “Agora
manda ver”, Kathy disse. “Sentem-se, meninas. Vou pegar uma cadeira no
quarto.”
O velho pegou o saleiro e o sacudiu delicadamente em cima dos ovos.
“Está com uma cara deliciosa”, comentou por fim.
“Vai em frente, come”, Kathy disse, voltando com a cadeira. “A gente quer
ver o senhor de barriga cheia. Põe um café para ele, Jean.”
A sra. Archer foi até o fogão e pegou o bule.
“Por favor, não se incomode”, ele pediu.
“Não é incômodo nenhum”, a sra. Archer disse, enchendo a xícara do
velho. Ela se sentou à mesa. O velho pegou o garfo e o pousou na mesa outra
vez para pegar o guardanapo de papel e abri-lo cuidadosamente sobre os
joelhos.
“Como o senhor se chama?”, Kathy perguntou.
“O’Flaherty, madame. John O’Flaherty.”
“Bom, John”, disse Kathy, “eu sou a srta. Valentine e essa aqui é a sra.
Archer e a aquela ali é a sra. Corn.”
“Como vão?”, o velho cumprimentou.
“Imagino que o senhor seja do Velho Mundo”, Kathy disse.
“Como assim?”
“O senhor é irlandês, não é?”, Kathy perguntou.
“Sou sim, madame.” O velho enfiou o garfo em um dos ovos e ficou
olhando a gema escorrer pelo prato. “Conheci o Yeats”, ele disse de repente.
“É sério?”, Kathy exclamou, inclinando-se para a frente. “Vejamos — ele
era escritor, não era?”
“‘Aproxime-se, por caridade, vem dançar comigo na Irlanda’”, o velho
recitou. Ele se levantou e, segurando-se no espaldar da cadeira, fez uma
reverência solene à sra. Archer. “Agradeço de novo, madame, por sua
generosidade.” Ele se virou e tomou o rumo da porta da frente. As três
mulheres se levantaram e foram atrás dele.
“Mas o senhor não acabou”, a sra. Corn disse.
“O estômago”, o velho declarou, “como esta senhora aqui ressaltou,
encolhe. Sim, de fato”, ele prosseguiu, nostálgico, “eu conheci o Yeats.”
Junto à porta, ele se virou e disse à sra. Archer, “Sua bondade não deve
passar despercebida”. Ele apontou para os cadarços que estavam no chão.
“Esses”, ele disse, “são para a senhora. Pela sua bondade. Divida com as
outras senhoras.”
“Mas nem em sonho eu…”, a sra. Archer começou.
“Eu insisto”, o velho disse, abrindo a porta. “É uma pequena retribuição,
mas é tudo o que eu tenho para oferecer. A senhora mesma pode pegar”,
acrescentou rispidamente. Em seguida, se virou para a sra. Corn. “Detesto
mulher velha”, ele desdenhou.
“Muito bem!”, a sra. Corn retrucou debilmente.
“Posso até ter me excedido um pouco na bebida”, o velho disse à sra.
Archer, “mas nunca servi xerez aos meus convidados. Somos de dois mundos
diferentes, madame.”
“Eu não te falei?”, a sra. Corn dizia. “Eu não falei esse tempo todo?”
A sra. Archer, os olhos em Kathy, fez o gesto titubeante de empurrar o
velho porta afora, mas ele a impediu.
“‘Vem dançar comigo na Irlanda’”, ele repetiu. Apoiando-se contra a
parede, ele chegou ao portão e o abriu. “E o tempo corre”, ele falou.
IV
Jamais ficamos tão sujeitos a traições e abusos quanto, por nossas
Disposições e Tendências vis, ao abrirmos mão do Cuidado Tutelar e da
Supervisão dos melhores Espíritos; embora geralmente sejam nossos Guardas
e Protetores contra a Malícia e a Violência dos Anjos perversos, é possível
pensar que em algum Momento possam Abandonar tais missões por terem
sido engolidos pela Malícia, Inveja e Desejo de Vingança, Qualidades muito
contrárias à sua Vida e Natureza, que os expõem a Invasões e Propostas
desses Espíritos iníquos, aos quais esses Atributos tão detestáveis são
bastante adequados.
A sra. Tylor, no meio de uma manhã atribulada, era educada demais para ir à
varanda da frente e ficar olhando, mas não via razão para evitar as janelas;
quando a tarefa de aspirar a poeira ou lavar a louça, ou até de arrumar as
camas no segundo andar, a deixava perto de uma janela do lado sul da casa,
ela levantava um pouquinho a cortina ou parava em um dos cantos e abria de
leve a veneziana. Só conseguia ver, de fato, a caminhonete de mudança em
frente à casa e atividades breves ocorrendo entre o pessoal encarregado; a
mobília, pelo que podia enxergar, parecia ser de boa qualidade.
A sra. Tylor terminou de fazer as camas e desceu para preparar o almoço, e
no curto intervalo que levou para ir da janela do quarto da frente à janela da
cozinha, um táxi havia parado em frente à casa vizinha e um menino dançava
pela calçada. A sra. Tylor o avaliou: devia ter uns quatro anos, a não ser que
fosse pequeno para a idade; regulava com sua filha caçula. Ela voltou a
atenção para a mulher que descia do táxi e se tranquilizou ainda mais. Um
belo terninho caramelo, meio gasto e talvez um tiquinho claro demais para
um dia de mudança, mas era bem cortado e a sra. Tylor assentiu,
demonstrando seu apreço enquanto descascava as cenouras. Pessoas finas,
sem dúvida.
Carol, a caçula da sra. Tylor, estava debruçada na cerca da frente,
observando o menino da casa ao lado. “Oi.” O menino levantou a cabeça, deu
um passo para trás e disse, “Oi”. A mãe dele olhou para Carol, para a casa
dos Tylor e para o filho. Em seguida, disse, “Olá” a Carol. A sra. Tylor sorriu
na cozinha. Então, agindo segundo um impulso repentino, secou as mãos em
um papel-toalha, tirou o avental e foi até a porta da casa. “Carol”, ela chamou
baixinho, “Carol, querida”. Carol se virou, ainda debruçada na cerca. “O que
foi?”, ela perguntou, pouco disposta a colaborar.
“Ah, olá”, a sra. Tylor disse à senhora que continuava na calçada ao lado
do menino. “Ouvi a Carol falando com alguém…”
“As crianças estavam fazendo amizade”, a senhora explicou, tímida.
A sra. Tylor desceu os degraus para se postar ao lado de Carol na cerca.
“Vocês são os novos vizinhos?”
“Se um dia conseguirmos nos instalar”, a senhora disse. Ela riu. “Dia de
mudança”, disse, agitada.
“Eu sei. Somos a família Tylor”, a sra. Tylor se apresentou. “Esta aqui é a
Carol.”
“Nós somos os Harris”, a senhora informou. “Este é o James Junior.”
“Diga oi ao James”, a sra. Tylor falou.
“E você diga oi à Carol”, a sra. Harris ordenou.
Carol fechou a boca, obstinada, e o menino se escondeu atrás da mãe. As
duas senhoras riram. “Crianças!”, uma delas falou, e a outra acrescentou,
“Não é mesmo?”
Em seguida, a sra. Tylor disse, apontando para o caminhão de mudança e
os dois homens que entravam e saíam com cadeiras e mesas e camas e
lustres, “Meu Deus, não é um horror?”.
A sra. Harris suspirou. “Eu acho que vou enlouquecer.”
“Tem alguma coisa que a gente possa fazer para ajudar?”, a sra. Tylor
perguntou. Ela sorriu para James. “Será que o James não gostaria de passar a
tarde com a gente?”
“Isso sim seria um alívio”, a sra. Harris concordou. Ela se virou para olhar
para James às suas costas. “Você não quer ir brincar com a Carol esta tarde,
meu bem?” James ficou calado e fez que não e a sra. Tylor anunciou,
radiante, “As duas irmãs da Carol talvez, só talvez, levem ela ao cinema,
James. Disso você iria gostar, não é?”.
“Infelizmente não”, a sra. Harris foi categórica ao falar. “O James não vai
ao cinema.”
“Ah, bom, é claro”, a sra. Tylor disse, “tem muitas mães que não vão, é
claro, mas quando a criança tem duas irmãs mais velhas…”
“Não é isso”, a sra. Harris respondeu. “Nós não vamos ao cinema, nenhum
de nós.”
A sra. Tylor assimilou logo o “nenhum” como um indício de que
provavelmente havia um sr. Harris por perto, em seguida seu pensamento
voltou num estalo e ela repetiu, sem emoção, “Não vão ao cinema?”.
“O sr. Harris”, a sra. Harris disse, medindo as palavras, “considera o
cinema intelectualmente danoso. Não vamos ao cinema.”
“É claro”, a sra. Tylor disse. “Bom, tenho certeza de que a Carol não vai
ver problema em ficar em casa esta tarde. Ela adoraria brincar com o James.
O sr. Harris”, acrescentou, cautelosa, “faz objeção a tanques de areia?”
“Eu quero ir ao cinema”, Carol retrucou.
A sra. Tylor foi logo falando. “Por que você e o James não vêm descansar
um pouco na nossa casa? Vocês devem ter passado a manhã toda correndo
pra lá e pra cá.”
A sra. Harris titubeou, observando os homens da mudança. “Obrigada”,
disse por fim. Com James em seu encalço, ela cruzou o portão da casa dos
Tylor, e a sra. Tylor disse, “Se nos sentarmos no quintal, podemos ficar de
olho no pessoal”. Ela deu um empurrãozinho em Carol. “Mostra o tanque de
areia ao James, querida”, falou com a voz firme.
Amuada, Carol pegou James pela mão e o levou ao tanque de areia. “Viu
só?”, ela disse, e voltou para chutar as estacas da cerca. A sra. Tylor
acomodou a sra. Harris em uma das cadeiras do jardim e foi procurar uma pá
para James cavar.
“É ótimo me sentar, sem sombra de dúvida”, a sra. Harris declarou. Ela
suspirou. “Às vezes eu acho que mudança é a pior coisa que eu preciso
fazer.”
“Você deu sorte de conseguir essa casa”, a sra. Tylor comentou, e a sra.
Harris assentiu. “Ficamos contentes de ter bons vizinhos”, a sra. Tylor
prosseguiu. “É muito bom ter gente simpática na casa ao lado. Vou aparecer
para pedir xícaras de açúcar”, encerrou, brincando.
“Espero mesmo que peça”, a sra. Harris disse. “Tínhamos pessoas muito
desagradáveis como vizinhas na casa antiga. Eram coisas pequenas, sabe,
mas que irritam bastante.” A sra. Tylor deu um suspiro solidário. “O rádio,
por exemplo”, a sra. Harris continuou, “o dia inteiro, e muito alto.”
A sra. Tylor perdeu o fôlego por um instante. “Você por favor não deixe de
avisar se o nosso estiver alto demais.”
“O sr. Harris não suporta rádio”, a sra. Harris falou. “É claro que não
temos nenhum.”
“É claro”, a sra. Tylor repetiu. “Não tem rádio.”
A sra. Harris olhou para ela e deu uma risada constrangida. “Você vai
achar que meu marido é maluco.”
“É claro que não”, a sra. Tylor disse. “Afinal, tem um monte de gente que
não gosta de rádio; já o meu sobrinho mais velho é o exato oposto…”
“Bom”, a sra. Harris continuou, “jornais também.”
A sra. Tylor enfim compreendeu o leve nervosismo que a assolava: era o
que sentia quando estava irrevogavelmente unida a algo arriscado que
escapava ao seu controle: o carro, por exemplo, ou uma rua coberta de gelo,
ou aquela vez em que usara os patins de Virginia… A sra. Harris fitava com
o olhar vazio os homens da mudança entrando e saindo e explicava, “Não que
a gente nunca tenha visto um jornal, não é como com o cinema; é que o sr.
Harris considera os jornais uma degradação em massa do bom gosto. A
verdade é que você nunca precisa ler o jornal, sabe”, ela disse, com um olhar
aflito para a sra. Tylor.
“O único que eu leio é…”
“E nós assinamos o New Republic durante alguns anos”, a sra. Harris
falou. “Assim que nos casamos, é claro. Antes de o James nascer.”
“Com o que o seu marido trabalha?”, a sra. Tylor perguntou, acanhada.
A sra. Harris levantou a cabeça com orgulho. “Ele é acadêmico”, declarou.
“Escreve monografias.”
A sra. Tylor abriu a boca para falar, mas a sra. Harris se inclinou, esticou a
mão e disse, “É muito difícil as pessoas entenderem o desejo por uma vida
genuinamente pacata”.
“O que”, a sra. Tylor perguntou, “o seu marido faz no tempo livre?”
“Ele lê peças de teatro”, a sra. Harris respondeu. Olhou para James sem
convicção. “Pré-elizabetanas, é claro.”
“É claro”, a sra. Tylor concordou, e olhou com nervosismo para James,
que jogava areia em um balde.
“As pessoas são muito cruéis”, a sra. Harris disse. “Essas pessoas das quais
eu estava falando, da casa ao lado. Não era só o rádio, sabe? Em três ocasiões
eles deixaram de propósito o New York Times deles na nossa porta. Teve uma
vez que o James quase chegou perto.”
“Meu Deus”, a sra. Tylor falou. Ela se levantou. “Carol”, ela chamou em
tom enfático, “não saia. Está quase na hora do almoço, querida.”
“Bom”, a sra. Harris disse. “Tenho que ir ver se os homens da mudança
fizeram alguma coisa direito.”
Com a sensação de que havia sido grosseira, a sra. Tylor perguntou, “Onde
o sr. Harris está?”.
“Na casa da mãe dele”, a sra. Harris respondeu. “Ele sempre fica lá quando
a gente se muda.”
“É claro”, a sra. Tylor falou, com a sensação de que não tinha dito mais
nada a manhã inteira.
“Não ligam o rádio quando ele está lá”, a sra. Harris explicou.
“É claro”, a sra. Tylor disse.
A sra. Harris estendeu a mão e a sra. Tylor a apertou. “Espero mesmo que
nos tornemos amigas”, a sra. Harris disse. “Como você falou, é muito bom ter
vizinhos que tenham consideração de verdade. E não demos sorte.”
“É claro”, a sra. Tylor concordou, e então de repente caiu em si. “Quem
sabe uma noite dessas não nos reunimos para uma partida de bridge?” Ela viu
a expressão da sra. Harris e disse, “Não. Bom, em todo caso, precisamos nos
encontrar uma noite dessas”. Ambas riram.
“Parece uma tolice mesmo, não é?”, a sra. Harris falou. “Muito obrigada
pela sua gentileza hoje.”
“Disponha”, a sra. Tylor declarou. “Se você quiser mandar o James para cá
esta tarde.”
“Quem sabe eu não mando”, a sra. Harris respondeu. “Se você não se
incomodar mesmo.”
“É claro que não”, a sra. Tylor assegurou. “Carol, querida.”
Com o braço em torno de Carol, ela foi até a entrada de casa e ficou
olhando a sra. Harris entrar com James na casa deles. Os dois pararam na
porta e acenaram, e a sra. Tylor e Carol acenaram de volta.
“Eu posso ir ao cinema?”, Carol pediu. “Por favor, mamãe?”
“Eu vou com você, querida”, a sra. Tylor falou.
Estátua de sal
Por alguma razão uma melodia não saía de sua cabeça quando ela e o marido
embarcaram no trem em New Hampshire rumo a Nova York; fazia quase um
ano que não iam a Nova York, mas a melodia era de muito tempo antes. Era
da época em que tinha quinze ou dezesseis anos, e só havia visto Nova York
em filmes, quando a cidade era formada, para ela, de coberturas cheias de
pessoas estilo Noel Coward; quando a altura e a velocidade e o luxo e a
alegria que compunham um lugar como Nova York se confundiam de forma
inextricável com a monotonia dos quinze anos e com a beleza inalcançável e
distante dos filmes.
“Que música é essa?”, ela perguntou ao marido, e a cantarolou de boca
fechada. “Acho que é de um filme antigo.”
“Eu conheço”, ele disse, e também murmurou a melodia. “Não me lembro
da letra.”
Ele se recostou, bem acomodado. Havia pendurado os casacos, guardado
as malas nos bagageiros e pegado sua revista. “Mais cedo ou mais tarde eu
vou me lembrar”, ele afirmou.
Ela primeiro olhou pela janela, saboreando quase às escondidas,
degustando o prazer gigantesco de estar em um trem em movimento sem
nada para fazer por seis horas além de ler e cochilar e ir ao vagão-restaurante,
a cada minuto que passava distanciando-se mais e mais dos filhos, do chão da
cozinha, com até mesmo os montes ficando incrivelmente para trás,
transformando-se em campos e árvores afastados demais de casa para serem
familiares. “Adoro trens”, ela disse, e o marido fez que sim, anuindo, olhando
para a revista.
Duas semanas pela frente, duas semanas inacreditáveis, com todas as
providências tomadas, sem mais nenhum plano a fazer, a não ser, talvez,
quanto a peças de teatro e restaurantes. Um amigo com apartamento na
cidade havia tirado férias bem oportunas, tinham dinheiro suficiente no banco
para que a viagem fosse compatível com as novas roupas de frio dos filhos;
havia a tranquilidade dos planos sem conflitos a partir do momento em que os
obstáculos iniciais foram superados, como se, depois de tomada a decisão,
nada ousasse impedi-los. A garganta inflamada do bebê tinha melhorado. O
encanador aparecera, terminara o trabalho em dois dias e fora embora. Os
vestidos tinham sido reformados a tempo; a loja de ferragens pôde ser
deixada sem riscos depois que encontraram a desculpa de conhecer produtos
novos na cidade. Nova York não fora incendiada, não tinha entrado em
quarentena, o amigo havia viajado de acordo com o programado, e Brad
estava com as chaves do apartamento no bolso. Todos sabiam como contatar
todos; havia uma lista de peças de teatro que não poderiam perder e uma lista
de produtos a procurar nas lojas — fraldas, tecidos para vestidos, enlatados
extravagantes, estojos para talheres à prova de deslustre. E, por fim, o trem
estava ali, executando sua função, avançando tarde adentro, levando-os
dentro da lei e com determinação a Nova York.
Margaret olhava curiosa para o marido, ali sem ação no meio da tarde
dentro de um trem, para as outras pessoas de sorte que viajavam, para o
campo ensolarado lá fora, olhou outra vez para ter certeza e então abriu o
livro. A melodia continuava na cabeça, ela a murmurou e ouviu o marido
acompanhá-la suavemente enquanto virava a página da revista.
No vagão-restaurante, ela pediu rosbife, assim como faria em um
restaurante de sua cidade, relutante em trocá-lo abruptamente por uma
comida nova, irresistível, digna das férias. De sobremesa, tomou sorvete, mas
se preocupou durante o café porque chegariam a Nova York em uma hora e
ela ainda precisava pôr o casaco e o chapéu, apreciando cada gesto, e Brad
tinha que descer as malas e guardar as revistas. Ficaram no canto do vagão
durante o interminável percurso subterrâneo, pegando as malas e pondo-as no
chão outra vez, avançando centímetro a centímetro, inquietos.
A estação era um abrigo temporário que levava os visitantes pouco a pouco
para um mundo de pessoas e sons e luzes a fim de prepará-los para a
realidade explosiva da rua lá fora. Ela a viu por um instante da calçada, antes
de entrar em um táxi que se movimentava no meio dela, e então foram
assombrosamente recolhidos e conduzidos a Uptown e deixados em outra
calçada e Brad pagou o taxista e levantou a cabeça para olhar o prédio. “É
isso mesmo”, ele disse, como se tivesse desconfiado da capacidade do
motorista de encontrar um endereço dito com tamanha simplicidade. Subiram
de elevador e a chave encaixou na porta. Nunca tinham estado no
apartamento do amigo, mas era um tanto familiar — um amigo que se muda
de New Hampshire para Nova York leva consigo imagens particulares de um
lar que não se apagam em poucos anos, e o apartamento tinha um quê de casa
o bastante para que Brad se acomodasse na mesma hora na poltrona certa e
ela se sentisse reconfortada pela confiança instintiva nas roupas de cama e
lençóis.
“Esta será a nossa casa durante duas semanas”, Brad anunciou, e se
alongou. Depois dos primeiros minutos, ambos foram automaticamente às
janelas: Nova York estava lá embaixo, conforme planejado, e as residências
do outro lado da rua eram prédios cheios de desconhecidos.
“É maravilhoso”, ela disse. Havia carros lá embaixo, e pessoas, e o barulho
estava em toda parte. “Estou muito feliz”, ela declarou, e beijou o marido.
No primeiro dia saíram para visitar pontos turísticos; tomaram café da
manhã no Automat e foram ao Empire State. “Agora já está tudo consertado”,
Brad disse, no alto do edifício. “Fico me perguntando onde foi que o avião
bateu.”
Tentaram dar uma olhada nas quatro laterais, mas ficaram com vergonha
de perguntar. “Afinal”, ela falou, muito sensata, dando risadinhas no canto,
“se uma coisa minha quebrasse, eu não iria querer que as pessoas ficassem se
intrometendo, pedindo para ver os destroços.”
“Se você fosse dona do Empire State, não daria a mínima”, Brad disse.
Só se deslocaram de táxi nos primeiros dias, e um deles tinha uma porta
presa com barbante; apontaram para ela e riram em silêncio, e por volta do
terceiro dia, o pneu do táxi onde estavam furou na Broadway e tiveram que
saltar e pegar outro.
“Só nos restam onze dias”, ela comentou um dia, e então, no que pareceu
ser minutos depois, “já faz seis dias que chegamos.”
Eles tinham entrado em contato com os amigos com os quais esperavam
entrar em contato, iam passar o fim de semana numa casa de veraneio em
Long Island. “Está horrível agora”, a anfitriã disse alegre pelo telefone, “e
nós vamos embora daqui a uma semana, mas eu jamais perdoaria se vocês
não viessem pelo menos uma vez estando aqui.” O tempo estava bom, mas
fresco, com um desassossego definitivamente outonal, e as roupas nas
vitrines das lojas eram escuras e já tinham toques de peles e veludos. Ela
usou casaco todos os dias, e terninhos na maior parte do tempo. Os vestidos
leves que tinha levado estavam pendurados no armário do apartamento, e
pensava em comprar um suéter em uma daquelas lojas grandes, uma peça que
não seria prática em New Hampshire, mas provavelmente cairia bem em
Long Island.
“Tenho que fazer compras, pelo menos um dia”, ela disse a Brad, que
resmungou.
“Não me peça para carregar sacolas”, ele reclamou.
“Você não vai querer passar o dia fazendo compras”, ela lhe disse, “não
depois de termos batido tanta perna por aí. Por que não vai ao cinema ou
alguma coisa assim?”
“Eu também preciso fazer umas compras”, ele disse, em tom enigmático.
Talvez estivesse falando do presente de Natal dela; ela havia mesmo pensado
em comprá-los em Nova York: as crianças ficariam contentes com as
novidades da cidade, brinquedos que não veriam nas lojas perto de casa. Ela
disse então, “Você vai poder ir aos seus atacadistas, afinal”.
Estavam indo visitar outro amigo, que por milagre tinha conseguido um
lugar para morar e avisara que não deviam se chocar com o aspecto do
prédio, as escadas ou a vizinhança. Os três eram péssimos, e eram três os
lances de escada, apertada e escura, mas havia um lugar para viver lá em
cima. Não fazia muito tempo que esse amigo estava em Nova York, mas ele
morava sozinho em um apartamento de dois cômodos, e não tivera
dificuldade de pegar a mania das mesas finas e estantes de livros baixas que
faziam os ambientes parecerem grandes demais para a mobília em alguns
lugares, abarrotados e desconfortáveis em outros.
“Que casa linda”, ela disse ao entrar, e então sentiu pena quando o anfitrião
respondeu, “Um dia essa porcaria de situação vai mudar e eu vou conseguir
me instalar em um canto que seja decente de verdade”.
Havia outras pessoas ali: eles se sentaram e entabularam conversas
amistosas sobre os assuntos que eram correntes em New Hampshire, mas
beberam mais do que beberiam em casa e ficaram estranhamente incólumes;
suas vozes se tornaram mais altas e as palavras mais extravagantes; os gestos,
por outro lado, ficaram menos amplos, e movimentavam um dedo quando em
New Hampshire teriam agitado o braço. Margaret dizia com certa frequência,
“Só estamos passando umas semanas aqui, estamos de férias”, e dizia, “É
maravilhoso, tão empolgante”, e dizia, “Demos uma sorte enorme: um amigo
nosso viajou justamente…”.
Em certo momento, o ambiente ficou muito cheio e barulhento, e ela foi
para um canto perto da janela para tomar ar. A noite inteira, a janela vinha
sendo aberta e fechada, dependendo se a pessoa próxima dela tinha as mãos
livres; e agora estava fechada, com o céu claro lá fora. Alguém se aproximou
e parou a seu lado, e ela falou, “Escuta o barulho lá de fora. Está tão ruim
quanto aqui dentro”.
Ele respondeu, “Nesse tipo de vizinhança alguém sempre acaba
assassinado”.
Ela franziu a testa. “Está diferente de antes. Digo, o barulho me parece
diferente.”
“Alcoólatras”, ele explicou. “Bêbados por aí. Brigas do outro lado da rua.”
Ele se afastou, levando seu drinque.
Ela abriu a janela e se debruçou, e havia pessoas berrando nas janelas do
outro lado da calçada, e pessoas na rua de cabeça levantada e berrando, e ela
ouviu alguém dizer claramente do outro lado, “Dona, dona”. Eles devem
estar se referindo a mim, ela pensou, estão todos olhando para cá. Ela se
debruçou ainda mais e as vozes soltavam gritos incoerentes, mas de algum
modo formavam um todo audível, “Dona, a sua casa está pegando fogo,
dona, dona”.
Ela fechou a janela com firmeza e se virou para as outras pessoas da sala,
erguendo um pouco a voz. “Escuta”, ela disse, “estão falando que a casa está
pegando fogo.” Tinha um medo enorme de que rissem dela, de parecer uma
idiota enquanto Brad, do outro canto da sala, coraria olhando para ela. Ela
repetiu, “A casa está pegando fogo”, e acrescentou, “Eles que disseram”, por
medo de parecer dramática demais. Quem estava mais perto dela se virou e
alguém disse, “Ela falou que a casa está pegando fogo”.
Ela queria ficar com Brad e não o encontrava; tampouco via o anfitrião, e
as pessoas ao redor eram estranhas. Eles não me dão ouvidos, ela pensou,
daria na mesma se eu não estivesse aqui, e foi até porta do apartamento e a
abriu. Não havia fumaça nem fogo, mas dizia a si mesma, Daria na mesma se
eu não estivesse aqui, portanto, tomada pelo pânico, abandonou Brad e saiu
correndo escada abaixo sem o chapéu e o casaco, segurando uma taça na mão
e uma caixa de fósforos na outra. A escada era insanamente longa, mas estava
desobstruída e segura, e ela abriu o portão e saiu correndo. Um homem
segurou seu braço e quis saber, “Todo mundo saiu?”, e ela respondeu, “Não,
o Brad ainda está lá”. Os carros de bombeiros viraram a esquina, com gente
se debruçando das janelas para olhá-los, e o homem que segurava seu braço
disse, “É aqui”, e a soltou. O incêndio era a dois prédios de distância: viam as
chamas atrás das janelas do último andar, e a fumaça contra o céu noturno,
mas dez minutos depois já tinha sido apagado e os bombeiros foram embora
parecendo atormentados por terem arrastado aquele equipamento todo para
apagar um incêndio de dez minutos.
Ela subiu a escada devagar e com vergonha, encontrou Brad e o levou para
casa.
“Fiquei com tanto medo”, ela lhe contou quando já estavam seguros na
cama. “Perdi completamente a cabeça.”
“Você devia ter tentado achar alguém”, ele disse.
“Ninguém me deu ouvidos”, ela insistiu. “Eu repetia e ninguém me ouvia e
então eu pensava que devia ter me enganado. Me veio a ideia de descer para
ver o que estava acontecendo.”
“Sorte que não foi nada pior”, Brad falou, sonolento.
“Me senti presa”, ela disse. “No alto daquele prédio com um incêndio: é
um pesadelo. Em uma cidade estranha.”
“Bom, agora acabou”, Brad decretou.
A mesma leve sensação de insegurança a acompanhou no dia seguinte: foi
fazer compras sozinha e Brad foi às lojas de ferragens, no final das contas.
Ela pegou um ônibus para ir a Downtown e o ônibus estava tão cheio que não
conseguia se mexer na hora de saltar. Encurralada no corredor, ela pediu,
“Vou descer, por favor”, e “Com licença”, e quando estava livre e perto da
porta, o ônibus andou outra vez e ela parou um ponto à frente. “Ninguém me
escuta”, disse a si mesma. “Vai ver que é por eu ser educada demais.” Nas
lojas, os preços eram muito altos e os suéteres eram desanimadores de tão
parecidos com os de New Hampshire. Os brinquedos para os filhos a
encheram de consternação: eram obviamente destinados a crianças nova-
iorquinas, pequenas paródias horrendas da vida adulta, caixas registradoras,
minúsculos carrinhos de supermercado com imitações de frutas, telefones que
funcionavam de verdade (como se não houvesse telefones realmente
funcionais que bastassem em Nova York), garrafinhas de leite em uma
caixinha de transporte. “Tiramos nosso leite das vacas”, Margaret explicou à
vendedora. “Meus filhos nem entenderiam o que é isso.” Estava exagerando,
e por um instante sentiu culpa, mas não havia ninguém ali para desmenti-la.
Teve um vislumbre de crianças pequenas da cidade vestidas feito os pais,
vivendo numa civilização mecânica em miniatura, caixas registradoras de
brinquedo de tamanhos cada vez maiores que os acostumavam ao objeto
verdadeiro, milhões de pequenas imitações estrepitosas que os preparavam
para se apoderarem dos enormes brinquedos inúteis que ditavam a vida dos
pais. Comprou um par de esquis para o filho, que sabia que seriam
inadequados para a neve de New Hampshire, e um carrinho de puxar para a
filha, inferior ao que Brad poderia fazer em casa em uma hora. Ignorando as
caixas de correspondência de brinquedo, os fonogramas em miniatura com
discos especiais, os cosméticos infantis, ela saiu da loja e seguiu para casa.
Tinha ficado com um medo genuíno de pegar ônibus; parou na esquina e
esperou um táxi. Olhando para os pés, viu uma moedinha de dez centavos na
calçada e tentou pegá-la, mas havia tanta gente que não conseguiria se
abaixar, e tinha receio de empurrar para abrir espaço por temer que ficassem
olhando. Pôs o pé em cima da moeda e então viu outra de vinte e cinco
centavos ao lado, além de uma moedinha de cinco. Alguém derrubou a
carteira, ela pensou, e pôs o outro pé em cima da moeda de vinte e cinco,
dando o passo rapidamente para que parecesse natural; em seguida viu outra
moedinha de dez e outra de cinco, e uma terceira moeda de cinco na sarjeta.
As pessoas passavam por ela, indo e voltando, o tempo inteiro, apressadas,
empurrando-a, sem olhar para ela, e estava com medo de se abaixar e pegar o
dinheiro. Outras pessoas viram e passaram reto, e ela se deu conta de que
ninguém iria recolhê-lo. Estavam todos constrangidos, ou com pressa demais,
ou espremidos demais. Um táxi parou para deixar alguém e ela o chamou.
Tirou os pés das moedas de cinco e de vinte e cinco centavos e as deixou lá
ao entrar no táxi. O táxi era lento e sacudia ao se movimentar; ela começara a
perceber que a deterioração gradual não era exclusividade dos táxis. Os
ônibus tinham partes meio soltas, os assentos de couro esfrangalhados e
manchados. Os prédios também estavam acabados — em uma das lojas mais
requintadas havia um enorme buraco no saguão ladrilhado, e era preciso
contorná-lo. As quinas dos edifícios pareciam estar virando um pó fino que
caía lá do alto, o granito erodia sem que ninguém percebesse. Todas as
janelas que viu a caminho de Uptown pareciam estar quebradas; talvez todas
as esquinas fossem salpicadas de trocados. As pessoas avançavam mais
rápido do que nunca: uma garota de chapéu vermelho apareceu na janela da
frente do táxi e sumiu na janela de trás antes que se pudesse olhar o chapéu;
as vitrines das lojas estavam terrivelmente claras porque só se podia vê-las
por uma fração de segundo. As pessoas pareciam se lançar em atos frenéticos
que faziam com que cada hora durasse quarenta e cinco minutos, cada dia
durasse nove horas, cada ano durasse catorze dias. A comida era de uma
rapidez tão ilusória, devorada com tamanha pressa, que as pessoas estavam
sempre famintas, sempre correndo para fazer uma nova refeição com novas
companhias. Tudo ficava imperceptivelmente mais rápido a cada minuto que
passava. Ela entrou no táxi por um lado e desceu pelo outro, em casa; apertou
o botão do quinto andar no elevador e estava descendo de novo, de banho
tomado, vestida e pronta para jantar com Brad. Eles saíram para jantar e
estavam chegando outra vez, famintos e correndo para a cama a fim de tomar
o café da manhã com o almoço em seguida. Fazia nove dias que estavam em
Nova York; o dia seguinte seria sábado e iriam a Long Island, voltando no
domingo, e então na quarta-feira iriam para casa, a casa de verdade. Quando
pensou nisso já estavam no trem para Long Island; o trem tinha rachaduras,
os bancos estavam rasgados e o chão, sujo; uma das portas não abria e as
janelas não fechavam. Atravessando os arredores da cidade, ela pensou, É
como se tudo estivesse viajando a tamanha velocidade que as coisas sólidas
não aguentassem e se despedaçassem sob a pressão, cornijas explodissem e
janelas cedessem. Ela sabia que tinha medo de falar a verdade, medo de
encarar a ideia de que era uma velocidade voluntária capaz de quebrar o
pescoço, um turbilhão proposital cada vez mais rápido que terminaria em
destruição.
Em Long Island, a anfitriã os guiou por uma nova parte de Nova York,
uma casa repleta de móveis nova-iorquinos como se puxados por um elástico
bem esticado, prontos para voltar num estalo à cidade, a um apartamento,
assim que a porta se abrisse e a locação, já paga, tivesse expirado. “Alugamos
essa casa todo ano faz muito tempo”, a anfitriã explicou. “Se não fosse assim,
seria impossível alugá-la este ano.”
“É uma casa lindíssima”, Brad comentou. “Estou surpreso de vocês não
morarem aqui o ano inteiro.”
“A gente precisa voltar para a cidade de vez em quando”, a anfitriã
respondeu e riu.
“Não tem nada a ver com New Hampshire”, Brad disse. Ele estava
começando a ficar com saudades de casa, Margaret pensou; ele quer
explanar, uma vez que seja. Desde o susto do incêndio ela ficava apreensiva
com muita gente reunida; quando amigos começaram a aparecer depois do
jantar, ela esperou um pouco, repetindo para si mesma que estavam no térreo,
ela poderia correr lá para fora, todas as janelas estavam abertas; em seguida,
desculpou-se e foi para a cama. Quando Brad foi se deitar, muito tempo
depois, ela despertou e ele contou, num tom irritado, “Estávamos brincando
de anagrama. Que gente doida”. Ela disse, sonolenta, “Você ganhou?”, mas
adormeceu antes que ele respondesse.
Na manhã seguinte, ela e Brad foram dar uma caminhada enquanto os
anfitriões liam os jornais de domingo. “Se vocês dobrarem à direita ao sair de
casa”, a anfitriã indicou, “e caminharem uns três quarteirões, vão dar na
nossa praia.”
“O que é que eles podem querer com a nossa praia?”, o anfitrião retrucou.
“Está frio demais para eles fazerem alguma coisa.”
“Eles podem olhar a água”, a anfitriã justificou.
Eles foram até a praia; naquela época do ano, estava vazia e ventava
bastante, mas ainda acenava de forma medonha sob os vestígios de sua
plumagem veranil, como se se considerasse muito convidativa. Havia casas
ocupadas no trajeto até lá, por exemplo, e um único quiosque estava aberto,
audaz a ponto de anunciar que servia cachorro-quente e soda limonada. O
homem do quiosque os observou passar com uma expressão fria e antipática.
Distanciaram-se bastante dele, sumindo do campo de visão das casas, rumo a
um trecho de areia cinza grossa que ficava entre a água cinza de um lado e as
dunas de areia cinza grossa do outro.
“Imagine só nadar aqui”, ela disse com um calafrio. A praia a agradava:
era curiosamente familiar e reconfortante e, no momento em que se deu conta
disso, a melodia lhe voltou à cabeça, provocando uma recordação dupla. A
praia era onde tinha vivido em sua imaginação, escrevendo para si mesma
histórias insípidas de amores rompidos em que a heroína caminhava junto às
ondas bravias; a melodia era o símbolo do mundo encantado para o qual fugia
para evitar a insipidez cotidiana que a levava a escrever histórias deprimentes
sobre a praia. Ela riu alto e Brad perguntou, “O que é que tem de engraçado
nessa paisagem esquecida por Deus?”.
“Eu estava só pensando no quanto isso aqui parece distante da cidade”, ela
mentiu.
O céu e a água e a areia eram cinza o bastante para que parecesse fim de
tarde e não o meio da manhã; ela estava cansada e queria voltar, mas de
repente Brad disse, “Olha aquilo”, e ela se virou e viu uma garota que descia
as dunas correndo, segurando o chapéu, com os cabelos esvoaçantes.
“É a única forma de se esquentar num dia feito esse”, Brad comentou, mas
Margaret disse, “Ela está com cara de assustada”.
A garota os viu e se aproximou deles, desacelerando à medida que se
aproximava. Parecia ansiosa para alcançá-los, mas quando já estava a uma
distância em que a ouviriam, o constrangimento habitual, a vontade de não
parecer uma idiota, a levaram a titubear e a olhar de um para o outro com
nervosismo.
“Vocês sabem onde achar um policial?”, ela enfim perguntou.
Brad olhou para um lado e o outro da praia rochosa vazia e falou, em tom
solene, “Parece que não tem nenhum por aqui. Podemos ajudar de alguma
forma?”.
“Acho que não”, respondeu a garota. “Eu precisava mesmo era de um
policial.”
Eles vão à polícia por qualquer coisa, Margaret pensou, essa gente, essa
gente de Nova York, é como se tivessem escolhido uma parte da população
para agir como solucionadores de problemas, e por isso, seja lá o que
quiserem, procuram um policial.
“Seria um prazer ajudar, se tivermos como”, Brad declarou.
A garota hesitou outra vez. “Bom, se vocês precisam mesmo saber o que
é”, ela disse, ríspida, “tem uma perna ali em cima.”
Tiveram a educação de aguardar que a garota explicasse, mas ela disse
apenas “Então venham” e gesticulou para que a seguissem. Ela os guiou pelas
dunas rumo a um lugar perto de uma pequena enseada, onde as dunas abriam
caminho abruptamente para uma língua de água. Uma perna jazia na areia, ao
lado da água, e a garota apontou para ela e disse “Ali”, como se fosse uma
coisa sua e eles tivessem insistido em ganhar uma parte.
Eles andaram até lá e Brad se agachou com cuidado. “É uma perna
mesmo”, ele constatou. Parecia ser parte de um manequim de cera, uma perna
de cera de uma palidez fantasmagórica impecavelmente cortada no alto da
coxa e bem acima do tornozelo, dobrada na altura do joelho, pousada na
areia. “É de verdade”, Brad declarou, a voz um pouco diferente. “Você tem
razão em chamar um policial.”
Caminharam juntos até o quiosque e o homem escutou sem entusiasmo
enquanto Brad chamava a polícia. Quando a polícia chegou, todos foram de
novo ao local onde jazia a perna e Brad deu seus nomes e endereços, e em
seguida disse, “Tudo bem se a gente for para casa?”.
“Por que diabos vocês ficariam aqui?”, o policial perguntou com um
humor ferino. “Estão esperando o resto do corpo?”
Voltaram para a casa dos anfitriões falando da perna, e o anfitrião se
desculpou, como se fosse culpado de uma violação do bom gosto ao permitir
que os convidados se deparassem com uma perna humana; a anfitriã disse,
interessada, “Teve um braço que foi parar em Bensonhurst, eu andei lendo
sobre isso”.
“Um desses assassinatos”, o anfitrião completou.
No segundo andar, Margaret falou de repente, “Imagino que comece a
acontecer primeiro no subúrbio”, e quando Brad quis saber, “O que é que
começa a acontecer?”, ela respondeu, histérica, “As pessoas começando a se
desintegrar”.
A fim de tranquilizar os anfitriões quanto à importância dada à perna,
ficaram até a hora do último trem vespertino rumo a Nova York. De volta ao
apartamento, Margaret teve a impressão de que o mármore do saguão do
prédio havia começado a envelhecer; mesmo depois de dois dias, já se viam
novas rachaduras. O elevador parecia estar um bocadinho enferrujado e havia
uma camada fina de poeira em cima de tudo o que havia no apartamento.
Foram para a cama com uma sensação incômoda, e na manhã seguinte
Margaret disse, “Hoje não vou sair de casa”.
“Você não ficou abalada por ontem, ficou?”
“Nem um pouco”, Margaret respondeu. “Só quero ficar em casa
descansando.”
Depois de alguma discussão, Brad resolveu sair sozinho de novo; ainda
havia pessoas que considerava importante ver e lugares aonde precisava ir
durante os poucos dias que ainda lhes restavam. Após o café da manhã no
Automat, Margaret voltou sozinha para o apartamento levando o romance
policial que tinha comprado no percurso. Pendurou o casaco e o chapéu e se
sentou junto à janela com o barulho e as pessoas lá embaixo, olhando para o
ponto onde o céu estava cinza, atrás dos prédios do outro lado da rua.
Não vou me preocupar com isso, ela disse para si mesma, não faz sentido
ficar o tempo inteiro pensando nesse tipo de coisa, estragar as suas férias e as
do Brad. Não faz sentido se preocupar, as pessoas têm ideias assim e depois
ficam preocupadas com elas.
A melodiazinha detestável rondava sua cabeça outra vez, com seu fardo de
suavidade e perfume caro. Os prédios do outro lado da rua estavam em
silêncio e talvez desocupados àquela hora do dia; deixou que seus olhos se
movimentassem seguindo o ritmo da canção, de janela em janela de um
andar. Deslizando rapidamente entre duas janelas, conseguia fazer com que
um verso da melodia se encaixasse em um andar, e depois respirava fundo e
descia para o andar seguinte; tinha o mesmo número de janelas e a melodia
tinha o mesmo número de compassos, e depois o andar seguinte e o outro.
Ela parou de repente, quando teve a impressão de que o parapeito pelo qual
havia acabado de passar havia amassado sem nenhum ruído e se
transformado em areia fina; quando seu olhar voltou atrás, ele continuava ali,
como antes, mas então teve a impressão de que fora o parapeito acima, à
direita, e por fim um canto do telhado.
Não faz sentido me preocupar, ela disse a si mesma, forçando os olhos a
mirar a rua, a parar de pensar nas coisas o tempo inteiro. Olhar para a rua por
muito tempo a deixava tonta e ela se levantou e foi até o quarto apertado do
apartamento. Tinha arrumado a cama antes de sair para o café da manhã,
como qualquer boa dona de casa, mas a desarrumou de propósito, tirando os
lençóis e cobertas um por um, e depois arrumou tudo outra vez, demorando-
se nos cantos e alisando todos os vincos. “Está pronto”, ela disse quando
acabou, e voltou à janela. Quando olhou para o outro lado da rua, a melodia
recomeçou, de janela em janela, parapeitos se dissolvendo e caindo. Ela se
debruçou e olhou para a própria janela, algo que nunca tinha pensado em
fazer, olhou para o parapeito. Estava parcialmente carcomido; quando
encostou na pedra, alguns pedacinhos rolaram e caíram.
Eram onze horas: Brad olhava maçaricos a essa altura e só voltaria depois
da uma hora, no mínimo. Pensou em escrever uma carta para casa, mas o
ímpeto a abandonou antes que encontrasse papel e caneta. Então lhe ocorreu
que poderia cochilar, algo que nunca na vida tinha feito de manhã, e foi para
a cama. Deitada, sentiu o prédio tremer.
Não faz sentido me preocupar, disse a si mesma outra vez, como se fosse
um feitiço contra bruxas, e se levantou, achou o casaco e o chapéu e os
vestiu. Vou só comprar cigarro e um papel de carta, ela pensou, vou só até a
esquina. Foi dominada pelo pânico no elevador: ele descia rápido demais, e
quando pisou no saguão, só as pessoas paradas a impediram de correr. Do
jeito que estava, ela saiu apressada do prédio e ganhou a rua. Por um instante,
hesitou, querendo voltar. Os carros passavam tão ligeiros, as pessoas
apressadas como sempre, mas o pânico do elevador por fim a impeliu
adiante. Foi até esquina e, seguindo os que passavam voando à sua frente,
desceu correndo da calçada e ouviu uma buzina quase em cima dela e um
grito de alguém às suas costas, além do barulho de freios. Seguiu em frente às
cegas e chegou ao outro lado, onde parou e olhou ao redor. O caminhão
seguiu o trajeto previsto, dobrando a rua, e as pessoas passavam a seu lado,
afastando-se para dar a volta nela, que estava plantada na calçada.
Ninguém sequer me notou, ela pensou em tom apaziguador, todo mundo
que me viu já foi embora há muito tempo. Ela entrou na loja de conveniência
à sua frente e pediu cigarros ao atendente; agora o apartamento lhe parecia
mais seguro do que a rua — poderia subir de escada. Ao sair da loja e
caminhar até a esquina, manteve-se o mais perto possível dos prédios,
recusando-se a dar passagem ao trânsito de pessoas que saía pelas portas. Na
esquina, foi cuidadosa ao olhar o sinal: estava verde, mas parecia que ia
mudar. É sempre mais seguro aguardar, ela pensou, não quero acabar na
frente de outro caminhão.
As pessoas a deixavam para trás e algumas estavam no meio da rua quando
o sinal fechou. Uma mulher, mais covarde que o resto, se virou e voltou
correndo para o meio-fio, mas as outras pararam no meio da rua, inclinando-
se para a frente e para trás de acordo com o trânsito que passava por elas de
ambos os lados. Uma pessoa chegou ao meio-fio do outro lado durante uma
breve interrupção na fila de carros, as outras se atrasaram por uma fração de
segundo e esperaram. Então o sinal abriu de novo e, enquanto os carros
desaceleravam, Margaret pisou na rua para atravessar, mas o susto de um táxi
que sacolejava loucamente na esquina fez com que recuasse e parasse no
meio-fio outra vez. Quando o táxi já tinha passado, o sinal estava prestes a
fechar novamente e ela pensou, eu posso esperar de novo, não faz sentido ser
pega no meio do caminho. Um homem a seu lado batia o pé, impaciente,
querendo que o sinal abrisse mais uma vez; duas garotas passaram por ela e
deram alguns passos pista adentro para esperar, recuando de leve quando os
carros passavam rentes demais, falando sem parar o tempo inteiro. Tenho que
ficar junto delas, Margaret pensou, mas então elas deram um passo para trás,
esbarrando nela, e o sinal abriu e o homem a seu lado disparou pela rua e as
duas garotas à sua frente esperaram um minuto e avançaram devagar, ainda
conversando, e Margaret começou a segui-las, mas resolveu esperar. Um
amontoado de gente de repente se formou em torno dela: tinham descido de
um ônibus e estavam atravessando ali, e de súbito teve a sensação de ficar
espremida no meio e ser empurrada para a rua, como um bloco, quando o
sinal abriu, e distribuiu cotoveladas desesperadas para sair da aglomeração e
foi se escorar em um prédio para aguardar. Teve a impressão de que as
pessoas que passavam começavam a olhar para ela. O que elas devem pensar
de mim, ela ficou se perguntando, e se empertigou como se estivesse à espera
de alguém. Olhou para o relógio e franziu a testa, e então pensou, Que idiota
eu devo estar parecendo, ninguém aqui nunca me viu, todo mundo passa
rápido demais. Ela retornou ao meio-fio, mas o sinal verde estava ficando
vermelho e ela pensou, Vou voltar à loja e tomar uma Coca, não faz sentido
eu ir para o apartamento.
O homem da loja a olhou sem surpresa e ela se sentou e pediu uma Coca,
só que de repente, quando estava bebendo, foi atingida de novo pelo pânico e
pensou nas pessoas que tinham estado com ela na primeira vez que começara
a atravessar a rua, a essa altura a quarteirões de distância, depois de tentarem
e conseguirem cruzar talvez dezenas de sinais enquanto ela hesitava no
primeiro; as pessoas agora estavam a cerca de um quilômetro e meio dali,
porque caminhavam com firmeza enquanto ela tentava tomar coragem. Ela
pagou ao homem depressa, conteve o ímpeto de dizer que não havia nada de
errado com a Coca, só precisava ir embora, só isso, e correu até a esquina
outra vez.
No instante em que o sinal ia abrir, ela disse para si mesma com firmeza:
não faz sentido. O sinal abriu antes que estivesse preparada e, segundos antes
de se recompor, o tráfego que dobrava a esquina a deixou aturdida e ela se
encolheu contra o meio-fio. Olhava com desejo para a tabacaria da esquina
em frente, pouco antes do seu prédio; ela se perguntava, Como é que as
pessoas conseguem chegar lá, e soube que, por se perguntar isso, por admitir
a dúvida, estava perdida. O sinal fechou e ela o fitou com ódio, coisa idiota,
indo e voltando, indo e voltando, sem propósito nem sentido. Olhando
furtivamente para os dois lados, para ver se alguém a observava, ela deu um
passo silencioso para trás, um passo, dois, até tomar bastante distância do
meio-fio. De volta à loja de conveniência, esperou algum gesto de
familiaridade da parte do vendedor e não viu nenhum; ele a encarava com a
mesma apatia da primeira vez. Ele apontou para o telefone sem interesse: ele
não se importa, ela pensou, para ele não importa para quem vou ligar.
Não teve tempo de se sentir uma boba, pois atenderam do outro lado na
mesma hora e com simpatia e ela o achou na primeira tentativa. Quando ele
chegou ao telefone, sua voz soando surpresa e pragmática, ela só conseguiu
dizer, aflita, “Estou na loja de conveniência da esquina. Vem me buscar”.
“O que foi que aconteceu?” Ele não parecia ansioso.
“Por favor vem me buscar”, ela pediu no bocal preto que poderia ou não
transmitir o recado a ele, “por favor vem me buscar, Brad. Por favor.”
Homens e seus sapatos grandes
Era o primeiro verão da sra. Hart morando no interior e seu primeiro ano de
casada e de dona da casa; teria o primeiro filho em breve, e era a primeira vez
que tinha alguém, ou pensava ter alguém, que poderia ser descrita em linhas
gerais como uma empregada. A jovem sra. Hart passava horas a fio todos os
dias, enquanto repousava conforme o médico mandara, se felicitando
placidamente. Quando estava sentada na cadeira de balanço do alpendre,
podia olhar a rua sossegada com as árvores e jardins e pessoas bondosas que
lhe sorriam ao passar; ou podia virar a cabeça e através das janelas amplas
olhar a própria casa, a bela sala de estar com cortinas de algodão grosso que
combinava com a capa de sofá e os móveis de bordo; podia levantar um
pouquinho os olhos e fitar as cortinas brancas com babados da janela do
quarto. Era uma casa de verdade: o leiteiro deixava leite ali todas as manhãs,
os vasos de cores vivas enfileirados junto ao parapeito do alpendre tinham
plantas de verdade que cresciam e precisavam ser regadas com frequência;
era possível cozinhar no fogão de verdade da cozinha, e a sra. Anderson vivia
se queixando das pegadas de sapato no chão limpo feito uma empregada de
verdade.
“São os homens que sujam o chão”, a sra. Anderson dizia, olhando a marca
do calcanhar de sapato. “A mulher, a senhora pode observar, ela sempre pisa
sem fazer barulho. Os homens e seus sapatos grandes.” E ela desfazia a
pegada com uma flanela sem prestar muita atenção.
Embora a sra. Hart tivesse um medo irracional da sra. Anderson, tinha
ouvido e lido tanto que todas as donas de casa da época ficavam intimidadas
pelas empregadas domésticas que a princípio não se surpreendeu com o
próprio incômodo acanhado; o poder beligerante da sra. Anderson, além do
mais, parecia se originar naturalmente do conhecimento sobre
acondicionamento de comidas e calda de açúcar queimado e fornadas de
pãezinhos de levedura. Quando a sra. Anderson, cheia de cotovelos e rosto
vermelho, o cabelo preso com uma rigidez desagradável, aparecera pela
primeira vez na porta dos fundos com a proposta de ajudar, a sra. Hart
aceitara cegamente, vendo-se entre janelas sujas em uma bagunça de caixas
de mudança e poeira; a sra. Anderson começara corretamente pela cozinha, e
a primeira coisa que fez foi uma xícara de chá quentinho para a sra. Hart: “A
senhora não pode se dar ao luxo de se cansar demais”, afirmou, olhando para
a barriga da sra. Hart, “a senhora tem que ser cuidadosa sempre”.
Quando a sra. Hart se deu conta de que a sra. Anderson nunca deixava
nada limpinho, nunca conseguia pôr nada no lugar de onde tinha tirado, já era
inconcebível pensar em tomar alguma atitude. As digitais da sra. Anderson
estavam em todas as janelas e a xícara de chá matinal da sra. Hart era uma
instituição permanente; a sra. Hart punha a água para ferver logo após o café
da manhã e a sra. Anderson preparava uma xícara para cada uma quando
chegava, às nove. “Tem que tomar uma xícara de chá quentinho para começar
o dia com o pé direito”, ela dizia todas as manhãs, em tom amistoso, “acalma
o estômago para o resto do dia.”
Sobre a sra. Anderson, a sra. Hart não se permitia pensar muito, só sentir
um orgulho cômodo porque todas as tarefas domésticas eram feitas por ela
(“um verdadeiro tesouro”, ela escrevia para as amigas de Nova York, “e ela
se preocupa comigo como se eu fosse filha dela!”); e foi só quando já fazia
mais de um mês que a sra. Anderson aparecia todas as manhãs que a sra. Hart
entendeu com uma convicção nauseante que aquele leve incômodo era
justificado.
Foi numa manhã ensolarada e quente, a primeira depois de uma semana de
chuva, e a sra. Hart vestiu uma roupa de ficar em casa especialmente bonita
— lavada e passada pela sra. Anderson — e fez um ovo quente de café da
manhã para o marido, e o acompanhou à entrada de casa para lhe acenar até
que chegasse à esquina e embarcasse no ônibus que o levava ao trabalho no
banco da cidade vizinha. Voltando pela calçada de casa, a sra. Hart admirou o
sol batendo nas persianas verdes e conversou afetuosamente com a vizinha de
porta, que já varria o alpendre da casa. Daqui a pouco meu bebê vai estar
nesse jardim, no cercadinho dele, a sra. Hart pensou, e deixou a porta aberta
ao passar para que o sol entrasse e impregnasse o chão. Quando entrou na
cozinha, a sra. Anderson estava sentada à mesa e o chá estava servido.
“Bom dia”, a sra. Hart cumprimentou. “Não está um dia lindo?”
“Bom dia”, a sra. Anderson respondeu. Ela apontou para o chá. “Eu sabia
que a senhora estava ali na frente, então deixei tudo pronto. Não dá para
começar o dia sem a sua xícara de chá.”
“Eu já estava começando a achar que o sol não ia aparecer nunca mais”, a
sra. Hart disse. Ela se sentou e puxou a xícara para perto. “É bom demais que
o clima volte a ficar seco e quente.”
“Acalma o estômago, o chá”, a sra. Anderson explicou. “Já botei açúcar. A
esta altura a senhora vai começar a ter problema de estômago.”
“Sabe”, a sra. Hart falou, animada, “no verão passado, por volta desta
mesma época, eu ainda estava trabalhando em Nova York e achava que o Bill
e eu não íamos nos casar nunca. E agora olha só pra mim”, ela acrescentou e
riu.
“Nunca se sabe o que vai acontecer com a gente”, a sra. Anderson disse.
“Quando as coisas estão piores do que nunca, ou a gente morre ou elas
melhoram. Eu tinha uma vizinha que vivia falando isso.” Ela suspirou e se
levantou, levando sua xícara de chá até a pia. “Claro que tem gente para
quem nunca chega coisa boa”, ela observou.
“E então tudo aconteceu em mais ou menos duas semanas”, a sra. Hart
contou. “O Bill arrumou o emprego aqui e as moças do escritório nos deram
uma fôrma de waffle.”
“Está na prateleira de cima”, a sra. Anderson disse. Ela recolheu a xícara
da sra. Hart. “A senhora fica quietinha aí”, mandou. “A senhora nunca mais
vai ter a chance de ficar tão despreocupada assim.”
“Eu me esqueço de ficar quieta o tempo todo”, a sra. Hart comentou. “É
tudo tão emocionante.”
“É pelo seu próprio bem”, a sra. Anderson disse. “Estou pensando só na
senhora.”
“Você já tem sido muito gentil”, a sra. Hart agradeceu, educada, “de vir
ajudar todo dia de manhã. E de cuidar tão bem de mim.”
“Não quero elogios”, a sra. Anderson disse. “Basta a senhora ficar bem até
o final, é só isso que interessa.”
“Mas eu não sei mesmo o que faria sem você”, a sra. Hart declarou. Deve
bastar por hoje, ela pensou de repente, e riu alto pela ideia de que distribuía
uma cota de gratidão todas as manhãs à sra. Anderson, como um bônus sobre
o ordenado por hora. É verdade, no entanto, ela pensou: tenho que dizer isso
todo dia, em algum momento.
“A senhora está rindo de alguma coisa?”, a sra. Anderson perguntou,
virando um pouco o corpo com os punhos calejados e vermelhos apoiados na
pia. “Falei alguma coisa engraçada?”
“Estava só pensando”, a sra. Hart respondeu rápido, “pensando nas
meninas com quem eu trabalhava no escritório. Ficariam morrendo de inveja
se me vissem agora.”
“Nunca se sabe o que vai acontecer na vida”, a sra. Anderson disse.
A sra. Hart esticou o braço e tocou na cortina amarela da janela ao lado,
pensando nos apartamentos de um quarto de Nova York e no escritório mal
iluminado. “Queria eu estar feliz hoje em dia”, a sra. Anderson continuou.
A sra. Hart largou a cortina no mesmo instante e se virou para dar um
sorriso simpático para a sra. Anderson. “Entendo”, ela murmurou.
“Nunca se sabe a que ponto a situação vai chegar”, a sra. Anderson disse.
Ela sacudiu a cabeça, apontando a porta dos fundos. “Ele ficou insistindo de
novo. A noite inteira.” A esta altura a sra. Hart já sabia como distinguir se
com “ele” ela falava do sr. Anderson ou do sr. Hart; a cabeça da sra.
Anderson em direção à porta dos fundos e ao caminho que percorria todos os
dias para ir para casa indicava o sr. Anderson; o mesmo gesto direcionado à
porta da frente onde todas as noites a sra. Hart recebia o marido indicava o sr.
Hart. “Eu não preguei os olhos”, a sra. Anderson relatava.
“Não é uma pena?”, a sra. Hart disse. Ela se levantou depressa e foi à porta
dos fundos. “Os panos de prato no varal”, explicou.
“Mais tarde eu tiro”, a sra. Anderson falou. “Xingando e berrando”, ela
prosseguiu, “eu achei que ia enlouquecer. ‘Por que você não vai embora de
uma vez?’, ele me disse. Foi lá e abriu a porta bem aberta e berrou para a
vizinhança toda ouvir. ‘Por que você não vai embora?’, ele repetia.”
“Terrível”, a sra. Hart respondeu, a mão na maçaneta da porta dos fundos.
“Trinta e sete anos”, a sra. Anderson disse. Ela balançou a cabeça. “E ele
quer que eu vá embora.” Ela observou a sra. Hart acender um cigarro e falou,
“A senhora não devia fumar. É bem provável que se arrependa se continuar
fumando desse jeito. Foi por isso que eu nunca tive filho”, ela continuou. “O
que é que eu ia fazer, com ele agindo desse jeito com as crianças perto,
ouvindo tudo?”
A sra. Hart foi até a o fogão e olhou dentro da chaleira. “Acho que vou
tomar mais uma xícara”, ela disse. “Quer outra, sra. Anderson?”
“Me dá azia”, a sra. Anderson respondeu. Ela pôs a xícara recém-lavada
em cima da mesa. “Acabei de lavar”, anunciou, “mas a xícara é da senhora. E
a casa é da senhora. Acho que a senhora pode fazer o que bem entender.”
A sra. Hart riu e levou a chaleira à mesa. A sra. Anderson ficou olhando-a
servir o chá e depois pegou a chaleira. “Vou lavar isso”, disse, “antes que a
senhora resolva tomar mais.” Ela baixou o tom de voz. “Líquido demais faz
mal aos rins.”
“Eu sempre tomo muito chá e café”, a sra. Hart falou.
A sra. Anderson olhou para os pratos secos em cima do ralo da pia e pegou
três copos em cada mãozona. “Hoje o que não faltava era copo sujo.”
“Ontem à noite eu estava cansada demais para arrumar tudo”, a sra. Hart
explicou. Além do mais, ela pensou, arrumar é o que eu pago para ela fazer; e
acrescentou, com a voz suave, “Então deixei tudo para você”.
“É meu papel arrumar a bagunça das pessoas”, a sra. Anderson declarou.
“Tem sempre alguém que precisa fazer o trabalho sujo pelo resto. Receberam
muita gente?”
“Algumas pessoas que meu marido conhece da cidade”, a sra. Hart
explicou. “Umas seis, no total.”
“Ele não devia trazer os amigos dele para casa com a senhora assim”, a sra.
Anderson disse.
A sra. Hart pensou na conversa agradável sobre o teatro de Nova York e a
taverna da cidade aonde todos iriam para dançar em breve, e nos belos
elogios à sua casa, e na exibição das coisas de bebê para as outras duas
jovens esposas, e suspirou. Perdeu a noção do que a sra. Anderson estava
falando.
“… Bem debaixo do nariz da própria esposa”, a sra. Anderson terminou, e
com um gesto grandioso apontou a cabeça na direção da porta da frente. “Ele
bebe muito?”
“Não, não muito”, a sra. Hart respondeu.
A sra. Anderson assentiu. “Entendo o que a senhora quer dizer”, ela disse.
“A gente vê eles tomando um copo atrás do outro e não consegue pensar num
jeito de mandar eles pararem. E aí alguma coisa faz eles perderem a cabeça e
quando você se dá conta eles estão falando para você ir embora de uma vez.”
Ela assentiu de novo. “A única coisa que a mulher pode fazer é garantir que
quando for embora ela tenha para onde ir.”
A sra. Hart foi cuidadosa ao dizer, “Puxa, sra. Anderson, eu não acho que
todos os maridos…”
“Faz só um ano que a senhora é casada”, a sra. Anderson retrucou, lúgubre,
“e não tem ninguém mais velho por perto para falar com a senhora.”
A sra. Hart acendeu o segundo cigarro no primeiro. “Na verdade, eu não
me preocupo com a quantidade de bebida que meu marido toma”, disse, seca.
A sra. Anderson parou, segurando uma pilha de pratos limpos. “Outras
mulheres?”, ela perguntou. “É esse o problema dele?”
“Por que cargas-d’água você está dizendo uma coisa dessas?”, a sra. Hart
inquiriu. “O Bill nem olharia…”
“É preciso que alguém cuide da senhora, nesse seu estado”, a sra.
Anderson disse. “Não vá pensando que eu não sei: a gente só quer contar
tudo para alguém. Imagino que todo homem trate a esposa do mesmo jeito,
mas alguns bebem, alguns esbanjam o dinheiro em jogatina e outros correm
atrás de qualquer moça jovem que aparece pela frente.” Ela deu sua risada
abrupta. “E algumas nem tão jovens assim, se a senhora perguntar para as
esposas”, ela declarou. “Se a maioria soubesse como o marido iria acabar,
teria muito menos casamento acontecendo.”
“Creio que o sucesso de um casamento é responsabilidade da mulher”,
disse a sra. Hart.
“Agora, a sra. Martin, lá da mercearia, estava me contando, um dia desses,
algumas das coisas que o marido dela fazia antes de morrer”, a sra. Anderson
continuou. “A senhora jamais desconfiaria do que certos homens fazem.” Ela
olhou atentamente para a porta dos fundos. “Mas tem uns que são piores que
os outros. Ela acha a senhora um amorzinho, a sra. Martin.”
“Que gentileza a dela”, a sra. Hart disse.
“Eu não falei nada sobre ele”, a sra. Anderson declarou, a cabeça
apontando para a porta da frente. “Não menciono nome nenhum que é para
ninguém achar que estou falando de alguém específico.”
A sra. Hart pensou na sra. Martin, espalhafatosa e de olhar clínico,
observando as compras alheias (“Dois pães integrais hoje, sra. Hart? Vai
receber visita esta noite, é?”). “Eu acho ela uma pessoa muito agradável”, a
sra. Hart disse, querendo acrescentar, Diga a ela que eu falei isso.
“Não estou dizendo que não é”, a sra. Anderson retrucou fechando a cara.
“Mas a senhora não vai querer que ela perceba que tem alguma coisa errada.”
“Tenho certeza…”, a sra. Hart começou.
“Eu falei para ela”, a sra. Anderson disse, “eu falei que tenho certeza de
que o sr. Hart nunca deu umas voltas por aí, pelo que eu sei. Nem fica
bebendo que nem certas pessoas. Eu falei que minha sensação às vezes é de
que a senhora poderia ser minha própria filha e que homem nenhum vai
maltratar a senhora enquanto eu estiver por perto.”
“Eu queria”, a sra. Hart recomeçou, um temor ligeiro a incomodando: os
vizinhos gentis observando-a sob a aura de simpatia, olhando de trás das
cortinas, vigiando Bill, talvez? “Acho que as pessoas não deviam falar dos
outros”, disse, nervosa, “digo, eu não acho justo falar coisas que não se sabe
com certeza.”
De novo a sra. Anderson deu uma risada súbita e foi abrir o armário onde
ficava o material de limpeza. “Não deixe que nada bote medo na senhora”,
ela falou, “não agora. Eu arrumo a sala já de manhã? Eu podia pôr os tapetes
para arejar no sol. É que ele…”, porta dos fundos, “… me deixou muito
abalada. A senhora entende.”
“Eu lamento”, a sra. Hart disse. “Não é uma lástima?”
“A sra. Martin perguntou por que eu não venho morar com os senhores”, a
sra. Anderson disse, revirando com violência o armário dos produtos de
limpeza, a voz abafada e empoeirada. “A sra. Martin estava falando que uma
moça feito a senhora, que está só começando, sempre precisa de uma amiga
por perto.”
A sra. Hart olhou para os dedos que se retorciam na asa da xícara: só tinha
tomado metade do chá. Agora é tarde demais para eu ir embora para outro
cômodo, ela pensou; sempre me resta a alternativa de dizer que o Bill jamais
permitiria. “Encontrei a sra. Martin na cidade uns dias atrás”, ela contou. “Ela
estava usando um casaco azul lindo de morrer.” Ela alisou o vestido com a
mão e acrescentou, em tom irritado, “Eu queria conseguir entrar num vestido
bonito de novo”.
“‘Por que é que você não vai embora?’, ele disse para mim.” A sra.
Anderson se afastou do armário com uma pá de lixo na mão e uma flanela na
outra. “Bêbado e xingando para a vizinhança inteira ouvir, ‘Por que é que
você não vai embora?’. Eu tinha certeza de que a senhora ouviria daqui de
cima.”
“Não tenho dúvida de que ele falou por falar”, a sra. Hart disse, tentando
fazer sua voz parecer definitiva.
“A senhora não toleraria uma coisa dessas”, a sra. Anderson afirmou.
Largou a pá e a flanela, se aproximou e se sentou à mesa, de frente para a sra.
Hart. “A sra. Martin estava pensando que, se a senhora quisesse, eu poderia
ocupar o quarto que está vazio. Preparar todas as refeições.”
“Poderia”, a sra. Hart disse, cordial, “mas eu vou pôr o bebê lá.”
“A gente põe o bebê no quarto da senhora”, a sra. Anderson falou. Ela riu e
deu uma apertada na mão da sra. Hart. “Não se preocupe”, ela disse, “eu não
atrapalharia a senhora em nada. Bom, e se a senhora quisesse colocar o bebê
comigo, eu poderia me levantar de noite para alimentar ele para a senhora.
Acho que eu daria conta de um bebê direitinho.”
A sra. Hart deu um sorriso alegre para a sra. Anderson. “Eu adoraria, é
claro”, ela falou. “Um dia. É claro que agora o Bill jamais deixaria.”
“Claro que não”, a sra. Anderson respondeu. “Os homens nunca deixam,
não é? Eu falei para a sra. Martin, lá na mercearia, ela é a pessoa mais gentil
do mundo, eu falei, mas o marido dela não deixaria a faxineira morar com
eles.”
“Puxa, sra. Anderson”, a sra. Hart retrucou, com uma expressão
horrorizada, “não fale assim de si mesma!”
“E uma outra mulher, uma que seja mais velha e saiba um pouco mais”, a
sra. Anderson continuou. “Ela pode enxergar um pouco mais também, quem
sabe.”
A sra. Hart, os dedos apertando a xícara de chá, teve um breve vislumbre
da sra. Martin, à vontade, debruçada no balcão (“Eu soube que a senhora
agora tem um hóspede sensacional, sra. Hart. A sra. Anderson vai te ajudar a
cuidar direitinho dele!”). E os vizinhos, seus rostos impassíveis observando-a
andar até o ponto para se encontrar com Bill; as meninas de Nova York,
lendo suas cartas e morrendo de inveja (“Ela é uma joia perfeita — vai morar
conosco e fazer as tarefas todas!”). Erguendo os olhos para o sorriso astuto
da sra. Anderson, sentada à sua frente, a sra. Hart se deu conta, com uma
súbita convicção irremediável, de que estava perdida.
O dente
Depois disso, houve uma longa pausa, uma pausa emocionante, até que o
sr. Summers, levantando seu pedaço de papel, declarou: “Pois bem, pessoal”.
Por um instante ninguém se mexeu, e então todos os papéis foram
desdobrados. De repente, todas as mulheres começaram a falar ao mesmo
tempo, indagando: “Quem é?”, “Quem foi que tirou?”, “Foram os Dunbar?”,
“Foram os Watson?”. Então as vozes começaram a dizer, “É Hutchinson. É o
Bill”, “Foi o Bill Hutchinson que tirou”.
“Vai falar com o seu pai”, a sra. Dunbar pediu ao filho mais velho.
As pessoas começaram a olhar ao redor para ver os Hutchinson. Bill
Hutchinson estava parado, quieto, fitando o papel em sua mão. De repente,
Tessie Hutchinson berrou para o sr. Summers: “Você não deu tempo de ele
tirar o papel que queria. Eu vi. Não foi justo!”.
“Leve na esportiva, Tessie”, a sra. Delacroix falou, e a sra. Graves disse:
“Todos nós tivemos as mesmas chances”.
“Cale a boca, Tessie”, disse Bill Hutchinson.
“Muito bem, pessoal”, falou o sr. Summers, “foi bem rápido, e agora temos
que nos apressar um pouco mais para acabar a tempo.” Ele consultou a
próxima lista. “Bill”, ele chamou, “você sorteia pela família Hutchinson. Tem
mais moradores nos Hutchinson?”
“Tem o Don e a Eva”, gritou a sra. Hutchinson. “Mande que eles tirem a
própria sorte!”
“Filhas sorteiam com a família do marido, Tessie”, o sr. Summers explicou
em tom suave. “Você sabe disso tão bem quanto todo mundo.”
“Não foi justo”, Tessie declarou.
“Acho que não, Joe”, Bill Hutchinson lamentou. “A minha filha tira com a
família do marido, é o justo. E eu não tenho mais ninguém na família além
dos filhos.”
“Então, no tocante ao sorteio por famílias, é você”, o sr. Summers disse a
título de esclarecimento, “e no tocante ao sorteio pela casa, é você também.
Certo?”
“Certo”, disse Bill Hutchinson.
“Quantos filhos, Bill?”, o sr. Summers perguntou formalmente.
“Três”, respondeu Bill Hutchinson. “Tem o Bill Jr., a Nancy e o pequeno
Dave. E Tessie e eu.”
“Então está certo”, disse o sr. Summers. “Harry, você pegou os papéis
deles de volta?”
O sr. Graves fez que sim e levantou os papéis. “Então põe dentro da
caixa”, comandou o sr. Summers. “Pegue o do Bill e ponha nela.”
“Acho que a gente precisa recomeçar do zero”, sugeriu a sra. Hutchinson,
na voz mais baixa que lhe era possível. “Estou falando que não foi justo.
Você não deu tempo suficiente para ele escolher. Todo mundo viu.”
O sr. Graves tinha escolhido os cinco papéis e colocado na caixa, e deixou
todos os papéis menos esses caírem no chão, onde a brisa os pegou e levantou
no ar.
“Escuta, pessoal”, a sra. Hutchinson insistia às pessoas ao seu redor.
“Pronto, Bill?”, perguntou o sr. Summers, e Bill Hutchinson, com uma
olhadela rápida para a esposa e os filhos, assentiu.
“Lembre-se”, disse o sr. Summers, “pegue os papéis e fique com eles
dobrados até todo mundo ter tirado um. Harry, você ajuda o pequeno Dave.”
O sr. Graves pegou a mão do menininho, que de bom grado o acompanhou
até a caixa. “Tire um papel da caixa, Davy”, instruiu o sr. Summers. Davy
enfiou a mão na caixa e riu. “Pegue um papel só”, disse o sr. Summers.
“Harry, segura para ele.” O sr. Graves pegou a mão do menino, tirou o papel
do punho cerrado e o segurou enquanto o pequeno Dave ficava ao lado dele e
erguia os olhos com admiração.
“Nancy é a próxima”, anunciou o sr. Summers. Nancy tinha doze anos, e
seus amigos de escola ficaram ofegantes quando ela se apresentou,
arrumando a saia, e com delicadeza tirou um papel da caixa. “Bill Jr.”,
chamou o sr. Summers, e Billy, de rosto vermelho e pés bem grandes, quase
derrubou a caixa ao tirar um papel. “Tessie”, disse o sr. Summers. Ela hesitou
por um instante, olhando ao redor com ar desafiador, e depois fechou os
lábios e foi até a caixa. Retirou um papel e o segurou às costas.
“Bill”, convocou o sr. Summers, e Bill Hutchinson enfiou a mão na caixa e
tateou, tirando por fim a mão com um pedaço de papel.
A multidão estava em silêncio. Uma garota sussurrou “Tomara que não
seja a Nancy”, e o som do sussurro chegou à extremidade da plateia.
“Já não é mais como antigamente”, o Velho Warner disse para que todos
ouvissem. “As pessoas já não são mais como antigamente.”
“Pois bem”, anunciou o sr. Summers. “Abram os papéis. Harry, você abre
o do pequeno Dave.”
O sr. Graves abriu o papelzinho e houve um suspiro geral entre a multidão
quando ele o ergueu e todo mundo viu que estava em branco. Nancy e Bill Jr.
abriram os deles ao mesmo tempo, e ambos ficaram radiantes e riram,
voltando-se para a plateia e exibindo o papel acima de suas cabeças.
“Tessie”, chamou o sr. Summers. Houve uma pausa, e então o sr. Summers
olhou para Bill Hutchinson, e Bill desdobrou o papel e o mostrou. Estava em
branco.
“É a Tessie”, disse o sr. Summers, e sua voz estava abafada. “Mostra o
papel dela, Bill.”
Bill Hutchinson foi até a esposa e arrancou o papel de sua mão. Tinha um
ponto preto nele, o ponto preto que o sr. Summers fizera na noite anterior
com o lápis grosso no escritório da carvoaria. Bill Hutchinson o levantou, e a
agitação tomou conta da multidão.
“Pois bem, pessoal”, falou o sr. Summers. “Vamos acabar logo com isso.”
Embora os aldeãos tivessem se esquecido do ritual e perdido a caixa preta
original, ainda se lembravam de usar pedras. A pilha de pedras que os
meninos tinham feito antes estava pronta; havia pedras no chão com os restos
de papel soprados que tinham saído da caixa. A sra. Delacroix escolheu uma
pedra tão grande que teve de segurá-la com as duas mãos e se virou para a
sra. Dunbar. “Vamos”, ela chamou. “Anda logo.”
A sra. Dunbar tinha pedras pequenas nas duas mãos, e disse, sem fôlego:
“Não consigo correr. Você vai ter que ir na frente e eu te alcanço depois”.
As crianças já estavam com as pedras preparadas, e alguém deu alguns
seixos ao pequeno Davy Hutchinson.
Tessie Hutchinson estava no centro de um espaço vazio àquela altura, e
esticava os braços em desespero à medida que os aldeãos se aproximavam.
“Não é justo”, ela dizia. Uma pedra a atingiu na lateral da cabeça.
O Velho Warner chamava, “Vamos, vamos, todo mundo”. Steve Adams
estava à frente da multidão de aldeãos, com o sr. Graves a seu lado.
“Não é justo, não é certo”, gritou a sra. Hutchinson, e em seguida estavam
todos em cima dela.
V
Epílogo
… No barco onde pisou ela,
Marinheiro não havia
De tafetá era a vela
Os mastros de ouro batido.
Título original
The Lottery and Other Stories
Capa
Elisa von Randow
Imagem de capa
Nightfall, de Will Barnet, 1979. Óleo sobre tela.
© Estate of Will Barnet/ AUTVIS, Brasil, 2022
Reprodução: © Will Barnet Foundation, cortesia de Alexandre Gallery, Nova York
Preparação
Leny Cordeiro
Revisão
Renata Lopes Del Nero
Márcia Moura
Versão digital
Rafael Alt
ISBN 978-65-5782-739-0
Algumas das onze histórias que compõem este livro começaram a ser
elaboradas por Ana Maria Machado há muitos anos. Independentes entre si
mas conectadas pelos fios das relações familiares, elas versam sobre as
nossas escolhas e memórias afetivas e sobre a passagem do tempo. Os
personagens são pessoas comuns em situações cotidianas — uma mãe que
nunca conseguiu expressar o amor que nutre pelo filho; duas irmãs que
disputam a atenção do pai; uma jovem recém-casada que vai morar num país
estrangeiro; uma avó convivendo com seus netos; uma mulher de meia-idade
diante de uma infidelidade; um jovem que não consegue confiar em ninguém.
Com lirismo e profundidade, estas narrativas nos fazem confrontar
naturalmente nossas próprias escolhas e suas consequências.
Em resumo, Vestígios é um livro que atesta a incomparável capacidade de
Ana Maria Machado em se comunicar com o leitor.
"Poucos escritores entre nós vêm realçando com tanto vigor e brilho o valor
da leitura na humanização da vida." — Tarcísio Padilha, em discurso de
recepção de Ana Maria na ABL
"Ninguém escreve como ele, ninguém escreve melhor do que ele, com total
domínio do fraseado, do ritmo, da cadência e da articulação das ideias." —
Sergio Augusto
"Na sua geração, não tem quem o iguale, mesmo em dimensão universal." —
Augusto de Campos