Livro Linguagem 03

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo–SP)

F815l França, Glória; Oliveira, Fábio de (org.).


Linguagem, Discurso e Cultura - Volume 3 /
Organizadores: Glória França e Fábio de Oliveira; Prefácio de Tyara
Veriato Chaves.
1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2022; figs.; tabs.; quadros.
E-book: 5 Mb; PDF.
DOI: https://doi.org/10.29327/5140999

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-644-8.

1. Análise do Discurso. 2. Crítica Literária. 3. Linguística. I. Título. II.


Assunto. III. Organizadores.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846


Índices para catálogo sistemático:
1. Análise do discurso. 401.41
2. Linguística. 410
3. Literatura: Análise e crítica. 801.95
Copyright © 2022 – Dos organizadores representantes dos autores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Revisão: Antonio Henrique Coutelo de Moraes
Editoração: Vinnie Graciano
Capa: Acessa Design

CONSELHO EDITORIAL:
Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp – Campinas)
Glaís Sales Cordeiro
(Université de Genève – Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UNB – Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UNB – Brasília)
Rogério Tilio
(UFRJ – Rio de Janeiro)
Suzete Silva
(UEL – Londrina)
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
(UFMG – Belo Horizonte)

PONTES EDITORES
Rua Dr. Miguel Penteado, 1038 – Jd. Chapadão
Campinas – SP – 13070-118
Fone 19 3252.6011
ponteseditores@ponteseditores.com.br
www.ponteseditores.com.br
SUMÁRIO

PREFÁCIO E APRESENTAÇÃO 8
Tyara Veriato Chaves

LINGUÍSTICA

ENUNCIAÇÃO EM LÍNGUA INGLESA: UMA ANÁLISE DA APROPRIAÇÃO


DE ÍNDICES DE PESSOA E USOS VERBAIS NA ESCRITA DE APRENDIZES
DE INGLÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA 19
André Felipe Ribeiro
Monica Fontenelle Carneiro
Mariana Lima da Silva

LINGUÍSTICA TEXTUAL: UM ESTUDO SOBRE A CONSTRUÇÃO DO TEXTO


E OS FATORES DE TEXTUALIDADE 35
Antônia Luziane Silva de Castro
José Ribamar Moura
Paulo da Silva Lima

POLIFONIA COMO RECURSO DE ARGUMENTAÇÃO NAS PRODUÇÕES


TEXTUAIS DO ENSINO MÉDIO 59
Eline Eduarda Samuel Barros
Mariana Aparecida de Oliveira Ribeiro
ASSÉDIO SEXUAL NO AMBIENTE DIGITAL: LUGARES DISCURSIVOS E
CONTRADIÇÕES 73
Edilene Rodrigues Afonso
Glória da Ressurreição Abreu França
Mariana Jafet Cestari

O APAGAMENTO EM TOPÔNIMOS DE PRAÇAS DE PINHEIRO-MA 99


Cleria Lourdes Moreira Pereira
Heloísa Reis Curvelo

DISCURSO POLÍTICO MARANHENSE: OS EFEITOS DE SENTIDO DO


DISCURSO JURÍDICO EM POSTAGENS NO TWITTER 116
José Antônio Vieira
Anaildo Pereira da Silva

OS ESTUDOS DOS GÊNEROS TEXTUAIS E A TERMINOLOGIA: A


REALIDADE DA COMUNICAÇÃO EM UMA COMUNIDADE DISCURSIVA 139
Luís Henrique Serra
Francisco Alves Filho

POSIÇÃO DE ADVÉRBIOS TERMINADOS EM -MENTE EM TEXTOS


MARANHENSES ESCRITOS NO SÉCULO XIX 169
Wendel Santos
João Vitor Cunha Lopes
Helen Pessoa de Sousa Miranda

LITERATURA

MEMÓRIA, TEMPO E IMAGINAÇÃO: UMA ANÁLISE DA OBRA ESTÂNCIAS,


DE GIORGIO AGAMBEN, EM TORNO DA CISÃO DA PALAVRA, DO
PENSAMENTO E DA POESIA 186
Cacio José Ferreira
Norival Bottos Júnior
REVISITANDO SÃO BERNARDO: DA NARRAÇÃO À QUESTÃO AGRÁRIA 207
Daniella F. Pilatti
Franco B. Sandanello

O MONOMITO EM CARAMURU, DE FREI JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO230


Dílson César Devides

BREVE HISTÓRICO SOBRE OBRAS, MÁXIMAS E DEBATES


CONCERNENTES À RELAÇÃO ENTRE LITERATURA E VISUALIDADE 251
Fábio José Santos de Oliveira

VOZ DA INSUBMISSÃO E DA RESISTÊNCIA: A REPRESENTAÇÃO DA


MULHER NEGRA NO CONTO NKALA DE CRISTIANE SOBRAL 269
Francisca Katrine de Carvalho Souza
Welida Maria Gouveia Silva
Wheriston Silva Neris

A TECNOLOGIA EM O CONTO DA AIA (1985), DE MARGARET ATWOOD: A


VISÃO FUTURÍSTICA DO HOJE E DO AMANHÃ 287
Jaynne Silva de Sousa Borges
Naiara Sales Araújo

O ESPAÇO DEMARCADO E A EXISTÊNCIA DESVALIDA EM LITANIA DA


VELHA, DE ARLETE NOGUEIRA DA CRUZ 305
Mairylande Nascimento Cavalcante
Cristiane Navarrete Tolomei

JOGUEI FORA AS CHAVES DO ARMÁRIO: MEMÓRIA E IDENTIDADES


HOMOAFETIVAS NA LITERATURA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA 321
Rubenil da Silva Oliveira (UFMA)

SOBRE OS AUTORES 339


LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

PREFÁCIO E APRESENTAÇÃO

Tyara Veriato Chaves1

Bom é corromper o silêncio das palavras2

Estar atento à linguagem, demorar o olhar sobre o seu corpo,


interrogar-se pelos seus mistérios, submeter-se aos seus poderes e sa-
beres, deixar-se seduzir pelos seus possíveis, espreitar seus silêncios,
odiá-la, apaixonar-se, render-se, devorar, sonhar, respirar, enfim, viver
na e pela linguagem, essas sem dúvida são relações que enlaçam pes-
quisadores envolvidos com os campos da Linguística e da Literatura.
Não se trata de dizer por dizer, mas de desejar dizer, fazer dizer, pro-
duzir efeitos com o dizer. Entre a linguística e literatura se entranha
a língua, esse objeto de desejo, essa espécie de dispositivo que pro-
duz sujeitos, essa máquina de escrever. Embora a divisão entre essas
disciplinas se coloque como uma forma institucionalizada de alcançar
os meandros da linguagem, podemos, por outro lado, conceber que an-
tes da partição, o que temos é um objeto cuja natureza é, conforme
já disse Saussure (1916), tão diversa quanto o ponto de vista que o
observa. Esse objeto, a língua, fez nascer o terceiro volume da coletâ-
nea de artigos publicada pelo Programa de Pós-graduação em Letras

1 Pesquisadora visitante (PGLB-UFMA/FAPEMA), doutora em Linguística (IEL-UNICAMP), in-


tegrante dos grupos de Pesquisa GEPEDIS (UFMA/CNPq) e Mulheres em Discurso (UNICAMP/
CNPq).
2 MANOEL DE BARROS, 1998 [2013], p. 9.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

(PGLB), sediado em Bacabal (MA). Um acervo que reúne as mais di-


versas perspectivas dentro do campo da Linguística e da Literatura,
e que nos proporciona um mergulho pela multiplicidade dos saberes
em jogo no funcionamento da linguagem.
Além das questões específicas postas em jogo nos artigos que com-
põem este livro, temos, em um contexto amplo, o desejo de continu-
ar, de produzir e de imaginar, como nos versos de Drummond (1945)
em Nosso Tempo: “e o ar da noite é o estritamente necessário / para
continuar, e continuamos / E continuamos. É tempo de muletas”. Tempo
de um longo e doloroso luto, não só (e tanto) dos que perderam seus
amores em meio ao segundo ano da Pandemia de Covid, mas também
tempo de solidão, de confinamento e, sobretudo, dos inúmeros proble-
mas sociais, psíquicos e econômicos que deixaram no presente a tarefa
tão difícil (e necessária!) de continuar. Para a universidade, ficou o de-
safio de continuar se reinventando, experiência que aliás diz muito so-
bre essa instituição cuja essência é o movimento, cujo funcionamento
participa e desafia o poder. Continuar mantendo os laços não só através
da partilha do saber, mas também dos afetos e escrever-junto, ou me-
lhor, criar-junto, talvez seja uma das formas mais afetuosas de fazer
laço. Temos aqui, pela escrita, não só um desejo de fazer por parte
dos docentes desta universidade, mas um desejo que arrasta, que con-
grega professores, pesquisadores e alunos dessa e de outras institui-
ções, fazendo o saber se deslocar, produzir efeitos que provavelmente
circularão em outras leituras e autorias; como é próprio do conheci-
mento, afetar, produzir a falta, fazer-se mais. E continuamos...
Os artigos aqui reunidos partem das duas linhas de pesqui-
sa que compõem o programa de pós-graduação, Texto e Discurso
e Literatura, Cultura e Fronteiras do Saber. Na produção Linguística,
temos sete artigos que atravessam perspectivas teóricas heterogêne-
as em torno da compressão do texto e do discurso, trazendo a partir
de objetos diversos, um olhar teórico e analítico através de autores
fundamentais que atravessam esse campo: Émile Benveniste, Oswald
Ducrot, Michel Pêcheux, Michel Foucault, Jacqueline Authier-Revuz,

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

Dominique Maingueneau, Mikhail Bakhtin, Eni Orlandi, William


Labov, dentre tantos outros que se fazem presentes de maneira insti-
gante, na medida em que trazê-los à tona para pensar a especificidade
de certos objetos é, também, interrogar a teoria, testar seus limites, fa-
zer ranger as suas engrenagens. A seguir, uma pequena amostra do que
encontraremos em cada capítulo.
No artigo Enunciação em língua inglesa: uma análise da apropria-
ção de índices de pessoa e usos verbais na escrita de aprendizes de inglês
como língua estrangeira, André Ribeiro, Monica Carneiro e Mariana
da Silva, traçam uma reflexão desafiadora sobre como se dá o pro-
cesso de enunciação escrita através das contribuições fundamentais
de Benveniste (1902-1976). As análises do corpus, que compreen-
de respostas de estudantes de inglês do projeto de extensão Núcleo
de Cultura Linguística (NCL) localizado em São Luís–MA, em uma
atividade integrante do material didático, mostram o funcionamen-
to de um processo enunciativo, na medida em que os sujeitos mobi-
lizam os conhecimentos de língua estrangeira para dar voz aos seus
discursos por meio da enunciação. Assim, é através da apropriação
de uma língua-outra, estrangeira, que o acontecimento de enunciação
faz emergir uma relação “eu-tu” não pela via alienante da aculturação,
mas pela possibilidade de se dizer na e pela linguagem.
Em Linguística textual: um estudo sobre a construção do texto e os
fatores de textualidade, Antônia de Castro, José Moura e Paulo Lima
traçam um panorama detalhado a respeito da Linguística Textual, des-
de sua formação enquanto disciplina até os elementos que constituem
os fatores de textualidade definidos por Beaugrande e Dressler (1983):
a coesão, a coerência, a intencionalidade, a aceitabilidade, a situaciona-
lidade, a informatividade e a intertextualidade. Trabalhando com ideia
de texto enquanto processo e não apenas como um produto ou mesmo
um amontoado de frases, o trabalho aborda os processos e regularida-
des gerais e específicos que constituem, compreendem e descrevem
o fenômeno do texto. Trata-se, portanto, de um olhar apurado para

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

o processo de construção textual, tendo em vista que ele é uma unida-


de dotada de sentido.
O capítulo Polifonia como recurso de argumentação nas produções
textuais do ensino médio parte da seguinte pergunta: como certas mar-
cas linguísticas indicam uma polifonia de vozes em produções textu-
ais dos alunos do 1º ano do Ensino Médio? Para tanto, Eline Ramos
e Mariana Ribeiro traçam um percurso teórico e analítico pela Teoria
Polifônica da Enunciação desenvolvida por Oswald Ducrot (1987),
que contesta a unicidade do sujeito falante indo ao encontro das vozes
que sustentam os enunciados. Em uma análise minuciosa sobre as re-
dações cujo tema era o Ensino à Distância (EaD) na pandemia de 2020,
as autoras puderam identificar a polifonia de vozes por meio das mar-
cas linguísticas e constatar que o aluno é atravessado por uma série
de saberes que aparecem na sua produção de texto.
Assédio sexual no ambiente digital: lugares discursivos e contra-
dições nos traz uma escrita política e teórica ao analisar os discursos
em circulação nas práticas de assédio sexual envolvendo posições
de poder. Para tanto, Edilene Afonso, Glória França e Mariana Cestari
caminham pela Análise do Discurso materialista em diálogo com uma
perspectiva interseccional, desenvolvendo uma potente reflexão so-
bre o funcionamento da memória (PÊCHEUX, 1983), além das cate-
gorias lugar discursivo (GREGOLETTO, 2005), denúncia (PAYER, 2006)
e ambiente digital (FRANÇA, 2016). As autoras analisam enunciados
que circulam online, os sentidos que sustentam o que está sendo dito,
significa e constitui os lugares discursivos de assediadores, de víti-
mas e de denunciantes como sujeitos no/do discurso. Em suas análi-
ses é possível apreender regularidades e rupturas no funcionamento
de discursos machistas e (falso)moralistas em jogo nas práticas de as-
sédio, bem como nos sentidos de ser homem e mulher.
O artigo O apagamento em topônimos de praças de Pinheiro-
MA busca compreender os mecanismos de apagamento implicados
no processo de designação onomástica dos nomes das principais pra-

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

ças e logradouros da cidade de Pinheiro–MA. Para tanto, Cleria Pereira


e Heloísa Curvelo partem do referencial teórico da Análise do Discurso
(AUTHIER-REVUZ, 1998; MAINGUENEAU, 1997; ORLANDI, 2007) e da
teoria da Toponímia (DICK, 1990; CARVALHINHOS, 2021; NUNES;
ANDRADE, 2012), dois campos que entrelaçam no olhar teórico e ana-
lítico da escrita. Na análise, é possível perceber como o fenômeno
do apagamento enunciativo dá a ver o modo como as determinações
culturais, históricas e políticas agem na motivação dos topônimos
das praças e logradouros de Pinheiros, e como a nomeação de tais es-
paços sofreram transformações linguísticas, seja no apagamento ofi-
cial ou silenciamento informal, que impactaram na identidade local
dos nomes dessas praças.
Em Discurso político maranhense: os efeitos de sentido do discurso
jurídico em postagens no Twitter, José Vieira e Anaildo da Silva se ques-
tionam como o campo discursivo jurídico produz efeitos de sentidos
em publicações realizadas por um parlamentar maranhense na rede
social Twitter. Para tanto, um diálogo entre Foucault (1969), Pêcheux
(1975), Charaudeau (2013) e Koch (2014) se estabelece tanto do ponto
de vista da reflexão teórica como nas análises minuciosas dos enun-
ciados, em que é possível observar o jogo intrincado e contraditório
entre as formações discursivas na materialidade linguística. Em sua
escrita, os autores demonstram o modo como a presença do discur-
so jurídico atravessa os dizeres publicados, criando efeitos de sentido
capazes de mostrar o sujeito parlamentar numa posição de defensor
do bem comum, expondo as desigualdades sociais e lutando por direi-
tos que visam o coletivo.
Os estudos dos gêneros textuais e a terminologia: a realidade
da comunicação em uma comunidade discursiva, de autoria de Luís Serra
e Francisco Filho, traz um panorama detalhado acerca dos estudos
dos gêneros textuais, especialmente na linha Sociorretórica dos estu-
dos dos gêneros textuais (BAKHTIN, 2016; MILLER, 2009; BAZERMAN,
2009; SWALES, 1990) e dos estudos descritivistas da Terminologia
(WÜSTER, 1998). A partir do rico diálogo entre os dois campos, os au-

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

tores apresentam os resultados e discussões de uma pesquisa sobre


a variação terminológica em gêneros textuais que circulam na comu-
nidade discursiva da cana-de-açúcar do Brasil, um dos principais pro-
dutos da balança comercial do Brasil, com uma produção discursiva
midiática e cientifica extensa. Do ponto de vista analítico, os autores
mostram que os diferentes contextos de interação que se cristalizam
nos gêneros textuais analisados no estudo confirmam mais uma vez
a unidade dessa comunidade discursiva. No que tange a questão teó-
rica, o trabalho entre a Terminologia e o estudo dos Gêneros textuais
é um caminho promissor.
No artigo Posição de advérbios terminados em -mente em textos
maranhenses escritos no século XIX, Wendel Santos, João Lopes e Helen
Miranda, analisam a posição de advérbios terminados em -men-
te em um corpus que se constitui de documentos escritos no século
XIX, disponibilizados no site da Biblioteca Pública Benedito Leite
e do Arquivo Público de São Luís. Ancorando-se na Sociolinguística
Histórica, um campo que se interessa pelos processos linguísticos
de variação levando em conta as dimensões social e histórica da lín-
gua, os pesquisadores verificam que há uma tendência por advérbios
terminados em -mente em posição pós-verbal, independentemente
da característica semântica dos advérbios, modalizadores ou qualitati-
vos. A pesquisa ainda em andamento revela também que os dados ana-
lisados no contexto maranhense se alinham ao padrão que se desenha
para o português brasileiro.
Passamos agora a uma breve apresentação dos artigos que com-
põem a produção referente à linha de pesquisa Literatura, Cultura
e Fronteiras do Saber. São nove capítulos que nos proporcionam
uma leitura estrutural, política, social e histórica de objetos literários
ou mesmo de questões de ordem epistemológica tão caras ao campo.
Convocar ao mesmo tempo essas três dimensões, da estrutura, da te-
oria e da história é reconhecer a complexidade em torno da especifi-
cidade do objeto literário. Nesse labirinto de leituras temos um olhar
para contos, poemas, romances, obras teóricas, relações entre campos

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

estéticos, enfim, um recorte amplo das possibilidades e desafios que a


literatura coloca e impõe à pesquisa.
Memória, tempo e imaginação: uma análise da obra Estâncias,
de Giorgio Agamben, em torno da cisão da palavra, do pensamento e da
poesia, de autoria de Cacio Ferreira e Norival Júnior, traz uma possi-
bilidade de leitura para a obra Estâncias (2007). Nela, a arte, a litera-
tura e a filosofia se tramam–por uma via oposta à da complementa-
riedade–na construção do objeto na cultura ocidental, objeto, diga-se
de passagem, sempre já perdido e inacessível. Trata-se de um percur-
so que envolve um campo vasto de leitura, Freud, Marx, Baudelaire,
Walter Benjamin, Saussure, dentre outros, em que é possível vislum-
brar de maneira complexa o nó entre desejo, fantasma e palavra. Entre
os temas que compõem essa escrita, encontramos um olhar atento
para as quatro partes que estruturam a obra de Agamben: Os fantas-
mas de Eros–com uma atenção especial ao estatuto da melancolia;
A obra de arte frente à mercadoria; A teoria do fantasma na poesia
de amor do século XIII; A imagem perversa, a semiologia do ponto
de vista da esfinge.
O capítulo Revisitando São Bernardo: da narração à questão agrá-
ria, apresenta uma leitura de São Bernardo, romance de Graciliano
Ramos (1934), reexaminado seu processo narrativo a partir da narra-
ção prospectiva e da ligação com uma herança impressionista na lite-
ratura. Para Daniella Pillati e Franco Sandanello, São Bernardo oferece
uma resposta estética e social ao Brasil de 1930, marcado por feridas
sociais profundas, o analfabetismo, desigualdade econômica e as assi-
metrias nas relações coloniais. Conforme os autores, Graciliano Ramos
oferece uma espécie de retrato das relações sociais típicas da organi-
zação do trabalho no campo brasileiro, e tomar conhecimento de tais
relações é trazer para o primeiro plano da narrativa, aquilo que poderia
se depositar como uma questão secundária: o modo como um ciclo
de violência física e simbólica se entranha na mal resolvida questão
agrária brasileira.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

O artigo O monomito em Caramuru, de Frei José de Santa Rita


Durão toma como base a teoria acerca dos mitos de Joseph Campbell
na obra O herói de mil faces (1949), em que a estrutura mitológica se co-
loca como chave para compressão da condição existencial e psicológica
humana. Nele, Dílson César Devides realiza uma leitura da trajetória
de Diogo Álvares, herói do poema épico de Durão a partir de três eta-
pas: “A partida”, “A iniciação” e “O retorno”, preceitos básicos do mo-
nomito teorizado por Campbell. Apesar de pequenas variações com re-
lação à teoria do monomito, o autor observa na riqueza da poesia épica
e no herói de Caramuru os elementos centrais para compreender a im-
portância do mito na construção humana.
Em Breve histórico sobre obras, máximas e debates concernentes
à relação entre literatura e visualidade, Fábio Oliveira nos proporciona
o modo como as relações entre a literatura e o campo das visualidades
vem se configurando no Ocidente, desde à Antiguidade com Plutarco,
Aristóteles, Horácio, passando também pelas Iluminuras da Idade
Média e pelo cenário artístico do Renascimento e do Classicismo
até o século XIX, em que a relação entre as artes vão saindo do lugar
da representação para se tornar um fim em si mesmas. O autor finaliza
seu percurso no início do século XX reunindo um vasto leque de lei-
turas sobre um histórico das relações entre as artes. Sua leitura sai do
campo da complementariedade, mostrando a complexidade do tema
e as especificidades de cada linguagem.
Em Voz da insubmissão e da resistência: A representação da mu-
lher negra no conto Nkala de Cristiane Sobral, Francisca Sousa, Welida
Silva e Wheriston Silva Neris propõem um olhar para a literatura
afro-brasileira de autoria feminina como um espaço possível para
a reconstrução de imaginário feminino negro a partir do seu prota-
gonismo no espaço social e simbólico. Participam da reflexão tanto
autores da Sociologia da Literatura (CANDIDO, 2006; LAHIRE, 2011),
como autoras do campo Interseccional e Decolonial (HOOKS,1995;
GONZALEZ, 2020; SANTIAGO, 2012; DALCASTAGNÉ, 2014). Trata-se,
portanto, de um arranjo teórico e político que interroga através da lite-

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

ratura de autoria feminina e negra os imaginários coloniais escravistas


pelas lentes do gênero, buscando em Nkala de Francisca Sousa um ou-
tro retrato possível para a figura do sujeito mulher negra na história.
No capítulo A tecnologia em O Conto da Aia (1985), de Margaret
Atwood: a visão futurística do hoje e do amanhã, o campo da ficção cien-
tífica é explorado através de uma análise do Conto da Aia, romance
distópico cuja crítica se volta à alienação religiosa e ao conservadoris-
mo extremista. Para tanto, Jaynne Borges e Naiara Araújo caminham
por uma reflexão em torno do gênero Ficção Distópica, com ênfase
na construção de sentidos sobre a tecnologia e seu funcionamento
nas narrativas. Por outro lado, também discorrem sobre as Teorias
da Recepção (ISER, 2011), em que o leitor tem um papel ativo na cons-
tituição do sentido, na reflexão e na difusão de uma obra. As autoras
centram sua leitura no imaginário em torno da tecnologia, seus pode-
res e perigos, bem como os limites da privacidade e do controle.
O espaço demarcado e a existência desvalida em Litania da Velha,
de Arlete Nogueira da Cruz, artigo de autoria de Mairylande Cavalcante
e Cristiane Tolomei, proporciona um olhar sobre as feridas históricas
profundas em torno da leitura e escrita de um poema. Assim, as rela-
ções entre literatura e resistência são colocadas em jogo na interpre-
tação de Litania da Velha, poema de Cruz, através do paralelo entre
dois epicentros poéticos: a velha pedinte e a velha cidade. Nesse gesto,
a autoras realizam uma espécie de mergulho entre a dimensão do espa-
ço-corpo-cidade e do espaço-corpo-sujeito, tendo em vista a dimensão
poética e potente de uma escrita que a vem a explicitar mecanismos
coloniais que atravessam tais espaços, instaurando não só um movi-
mento de denúncia, mas também de re(existência).
Joguei fora as chaves do armário: memória e identidades homo-
afetivas na literatura portuguesa contemporânea traz uma análise
da representação da memória e identidades homoafetivas na litera-
tura portuguesa contemporânea a partir da perspectiva da escrita de si
(FOUCAULT, 2104). No artigo, Rubenil Oliveira se volta mais especifi-

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

camente para A sombra dos dias (1981), romance de Guilherme de Melo,


articulando-o em sua leitura com as reflexões de Eve Sedgwick em A
epistemologia do armário (1990). Trata-se de um olhar não-panfletá-
rio, mas de alcance político para a temática homoafetiva na literatura,
na medida em que questiona as noções e imposições do cânone e, so-
bretudo, nas análises que evidenciam como o funcionamento da escri-
ta de memórias familiares dizem de uma experiência histórica de afe-
tividade atravessada pela dimensão coletiva.
Para finalizar, gostaria de marcar que esse percurso introdutó-
rio a respeito dessa obra não tem a pretensão de dar conta de sua to-
talidade, heterogeneidade e complexidade. Ele busca, antes, oferecer
uma pequena amostra, ou, melhor, uma fresta por onde seja possí-
vel vislumbrar algo parecido com um vulto, uma nuance, e sinalizar,
ao mesmo tempo, uma espécie de convite para que o leitor adentre
pela porta de cada capítulo, ou melhor, pela vastidão do universo
que cada escrita proporciona.

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LINGUÍSTICA
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

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ENUNCIAÇÃO EM LÍNGUA INGLESA:


UMA ANÁLISE DA APROPRIAÇÃO DE
ÍNDICES DE PESSOA E USOS VERBAIS
NA ESCRITA DE APRENDIZES DE INGLÊS
COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA

André Felipe Ribeiro1


Monica Fontenelle Carneiro2
Mariana Lima da Silva3

Introdução

Émile Benveniste (1902-1976) desenvolveu, ao longo de mais


de três décadas, uma obra extensa que contribuiu não somente para
a área da Linguística, com suas reflexões e considerações, especial-
mente aquelas sobre a obra de Saussure, mas também sobre cultura
e literatura, entre outros.
Apesar de não ter resultado de uma atitude deliberada do autor
em formulá-la, já que teve origem na leitura e reunião dos seus artigos

1 Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-Graduação em Letras de Bacabal –


PPGLB, Bacabal, MA, Brasil. Endereço eletrônico: felipe.andre@discente.ufma.br
2 Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-Graduação em Letras de Bacabal –
PPGLB, Bacabal, MA, Brasil. Endereço eletrônico: monicafcarneiro@gmail.com
3 Universidade Estadual do Maranhão, Pedreiras, MA, Brasil. Endereço eletrônico: mariannali-
ma2195@gmail.com

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

organizados em duas publicações – Problemas de Linguística Geral –,


a teoria da enunciação foi de grande impacto para a Linguística do sé-
culo XX e, até hoje, fomenta pesquisas e reflexões sobre enunciação
na língua.
O ato de enunciar, compreendido como um acontecimento lin-
guístico individual do locutor, ocorre em todos os níveis da língua (fo-
nético, sintático, lexical etc.) e, inclusive, na modalidade escrita e em
língua estrangeira como apresentaremos nas análises sobre as enun-
ciações escritas que compõem o corpus deste trabalho.
Com base nos estudos e reflexões de Benveniste e seus leitores
sobre a teoria enunciativa, este capítulo pretende analisar a apro-
priação de índices de pessoa e usos verbais nas enunciações escritas
em língua inglesa como língua estrangeira, instrumentos que, segun-
do o pensamento de Benveniste, compõem a estrutura do aparelho
formal da língua que são dominados pelo locutor pra construir a sua
enunciação.
Para tanto, iniciaremos tecendo com breves considerações sobre
Benveniste e sua ideia de aparelho formal, além de alguns dos conceitos
de enunciação propostos em Problemas de Linguística Geral. Em segui-
da, discutiremos o esquema de análise enunciativa, descrevendo os ín-
dices de pessoa da enunciação e abordando a questão da enunciação
escrita e em língua estrangeira para, enfim, descrevermos os procedi-
mentos metodológicos e analisarmos as enunciações escritas em lín-
gua inglesa e encaminharmo-nos para as últimas considerações.

1 Benveniste sobre a ideia de aparelho formal

A enunciação foi tomada como unidade teórica por Benveniste


(2006), que refletiu sobre sua definição no quadro formal de sua reali-
zação. O conceito de enunciação na obra de Benveniste aparece em vá-
rios pontos dos Problemas de Linguística Geral II, que reúne uma série

20
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

de vinte4 estudos feitos entre a segunda metade da década de 60 e o


início da década de 70, organizado nas mesmas partes que o primeiro
volume, segundo observação do prefaciador (BENVENISTE, 2006).
O primeiro conceito toma a enunciação como um “colocar
em funcionamento da língua por ato individual” (BENVENISTE, 2006,
p. 82), o que nos leva a entender a enunciação como um processo
e não como uma sequência linguística acabada. É uma ação contínua
que está para o processo de dizer e não para o acabamento do dito.
Em seguida, a enunciação é entendida como o processo que
“supõe a conversão individual da língua em discurso” (BENVENISTE,
2006, p. 83), mas adverte anteriormente que esse discurso é produ-
zido toda a vez que se fala, mas não se restringe a ela (à fala), já que
cada enunciação possui uma condição específica; é o ato de produzir
o enunciado, é um fato do locutor (p. 82).
Portanto, na medida em que o locutor da enunciação coloca
a língua em funcionamento, ou seja, que se relaciona com a língua
para enunciar, essa relação deixa caracteres linguísticos que a mar-
cam como enunciação, enquanto “homem na língua”. Esses caracteres
são basilares para uma análise enunciativa.
Mas, o que seria a noção de aparelho formal em Benveniste?
A concepção de aparelho, que passa a ideia de 5“um conjunto de ins-
trumentos necessários à execução de um trabalho” parece fazer senti-
do para uma série de procedimentos sobre a qual o autor reflete em re-
lação à enunciação. Este artigo, “O aparelho formal da enunciação”,
da década de 70, apresenta uma série de procedimentos que nos apre-
sentam a concepção de “aparelho formal” como o conjunto da análise
do ato, situação e instrumentos da enunciação, que veremos a seguir.

4 Referentes apenas ao segundo livro dos Problemas de Linguística Geral. Como já foi dito, a
obra de Benveniste é vasta, composta por quase 300 artigos, 18 livros, mais de 300 resenhas
entre outros. (FLORES, 2019, p. 150).
5 Disponível em: https://www.dicio.com.br/aparelho/

21
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Antes, cabe destacar que os estudos de Benveniste nos apresen-


tam dois tipos de aparelhos formais: o da enunciação e o da língua.
Enquanto Benveniste pouco fala sobre o da enunciação, no da língua,
produz uma descrição detalhada desses caracteres da enunciação.
Desse modo, o locutor da enunciação apropria-se do aparelho formal
da língua para construir o aparelho formal da enunciação por meio
dos instrumentos da sua realização.

2 Esquema de análise enunciativa: sobre o ato, a situação e os


instrumentos

Até aqui, entendemos que a noção de enunciação está para o di-


zer e não para o dito (FLORES, 2019). Uma análise enunciativa, portan-
to, está focalizada no processo do dizer. Sobre esse ponto, entendemos
que a análise dos caracteres da enunciação – o ato, a situação e os
instrumentos – leva em conta essa mobilização que o locutor faz, ini-
cialmente, do aparelho formal da língua para enunciar, a saber:

a) O ato é a utilização individual da língua na qual o “eu”, locu-


tor da enunciação, instaura-se, bem como é implantado o “tu”, o
alocutário da enunciação, pelo locutor;
b) A situação é a relação com o mundo a qual o locutor sente a ne-
cessidade de expressar. Essa referência é construída dentro da
enunciação, na relação entre locutor e alocutário (FLORES, 2019,
p. 157);
c) Os instrumentos são os meios linguísticos pelos quais o locu-
tor se apropria do aparelho da língua. Ele anuncia por índices
de pessoa, de tempo e espaço (instrumentos específicos) e por
procedimentos acessórios (instrumento acessório).

Focaremos nos instrumentos específicos que determinam ín-


dices de pessoa na enunciação, foco da nossa análise neste trabalho.
A seguir, descreveremos um pouco mais os índices de pessoa e os usos
verbais na enunciação.

22
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

1. Instrumentos específicos da enunciação: índices de pessoa e sua


apropriação para a realização da enunciação.

Podemos dizer que a apropriação dos índices de pessoa para


enunciação é o âmago de um ato enunciativo, já que é, na tomada
de um “eu” que implanta um “tu” na sua frente, que o ato de enunciar
acontece, de modo que não tem como existir enunciação sem esses dois
índices de pessoa – eu e tu – relacionados na enunciação. Benveniste
(2006, p.84) ressalta que o ato individual de apropriação da língua in-
troduz um “eu” na enunciação, um locutor, que implanta um tu, alocu-
tário. Por conseguinte, toda enunciação acaba sendo, de alguma ma-
neira, uma alocução, segundo o que reflete o autor.
Os instrumentos específicos são, então, os índices de pessoa,
tempo e espaço e os procedimentos acessórios. Os índices de pessoa
acusam, portanto, a relação eu-tu da enunciação. São o locutor e a alo-
cutário da enunciação. Os procedimentos acessórios, sobre os quais
Benveniste pouco desenvolveu, referem-se à novidade que é de cada
enunciação, ou seja, os mecanismos utilizados para construir a refe-
rência de seu discurso (FLORES, 2019, p. 159).
Vejamos agora aspectos da enunciação escrita em língua
estrangeira.

2. A enunciação na escrita em língua estrangeira

Benveniste concentrou seus estudos especialmente na modalida-


de oral da língua (por isso, as nomeações de locutor, alocutário e fala)
na análise da forma da enunciação. Além disso, foi pelo idioma fran-
cês, sua língua materna, que seus estudos foram realizados. Esses dois
fatos são importantes na medida em que, para realização de pesquisas
e estudos em outra modalidade da língua, como no caso da escrita, al-
gumas transposições da ideia de Benveniste sejam consideradas.
Flores (2018) dirá que essa transposição não é tão simples por um
grande motivo, a saber: devido ao que chama de flutuação terminoló-
gica na obra benvenistiana, com termos de uso homonímico, sinoní-

23
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

mico e polissêmico nos artigos do autor. Cita como exemplo as pa-


lavras: sentido, que pode ser entendida, em um primeiro momento,
como “o que decorre da capacidade de integração de um elemento”
e, em outro, como “que decorre de “situações concretas e específicas”
(BENVENISTE, 1988, p. 137), frase, que é entendida como um predica-
do num primeiro momento; depois como “a própria vida da linguagem
em ação” ou mesmo uma unidade enquanto “segmento do discurso”
(BENVENISTE, 1988, p. 139).
Em relação aos usos do termo escrita, Flores (2018) percebe a mes-
ma flutuação já que, em comparação às últimas aulas de Benveniste
nas quais ele aborda a escrita, o termo não pode ser interpretado como
“enunciação escrita”, pois é usado, na verdade, “em função de suas
características semiológicas” (FLORES, 2018, p. 410) constatando-se,
portanto, um uso homonímico do termo.
Mas, então, como entender a escrita para Benveniste? Bom,
Benveniste fala sobre escrita na sua obra, mas atenta para o movi-
mento importante de fazer a diferenciação entre uma enunciação oral
de uma enunciação escrita. Segundo Flores (2018),

Vale lembrar que o quadro formal de realização


da enunciação escrita, quando se toma por base o que
está formulado em “O aparelho formal da enunciação”,
deveria ser construído pelo próprio ato, pela situação
em que o ato se realiza e pelos instrumentos de reali-
zação.
Em termos de prospecção de uma pesquisa que vise
o desenvolvimento de uma concepção de escrita no qua-
dro da teoria enunciativa, cabe, então, recolocar cada
um desses elementos e as questões de pesquisa que im-
plicam. (FLORES, 2018, p. 411).

Portanto, entendemos que uma análise da enunciação escrita


pode ser feita no sentido do que é formulado na obra de Benveniste.
Outro fato destacado no início desse subtópico é a questão de Benveniste

24
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

ter utilizado sua língua materna, o Francês, nas suas análises. O que
queremos propor é a possibilidade de utilizarmos os mesmos ins-
trumentos na análise de enunciação em língua estrangeira, já que
a faculdade simbólica da linguagem também faz parte do processo
de aprendizagem de uma língua estrangeira. Portanto, é inegável que a
enunciação ocorra na língua, seja ela materna ou estrangeira, em to-
dos os níveis linguísticos e, inclusive, na modalidade escrita.
Em seguida, vamos discorrer sobre a metodologia desta pesquisa
e as análises feitas das enunciações escritas em língua inglesa como
língua estrangeira:

3. Quadro metodológico

A pesquisa foi realizada com a colaboração de alunos (as), estu-


dantes de Inglês do projeto de extensão Núcleo de Cultura Linguística
(NCL) localizado em São Luís – MA. O projeto, vinculado à Universidade
Federal do Maranhão, oferta cursos completos de língua estrangeira,
entre os quais, o de língua inglesa, para a comunidade em geral. O cur-
so de língua inglesa possui duração de 9 (nove) módulos de 6 meses.
Os colaboradores têm entre 20 e 30 anos, estudantes do nível
avançado 1 do curso de língua inglesa, ou seja, estudam a língua por 4
(quatro) anos na referida instituição. A coleta do corpus contou com o
total de três colaboradores, que autorizaram o uso de seus materiais,
de acordo com os parâmetros que regem a ética e desenvolvimento
em pesquisa e com o termo de consentimento livre e esclarecido.
O corpus da pesquisa é composto por respostas dadas a uma ati-
vidade retirada do 6material didático na qual eles devem completar
sentenças com os seguintes inícios: 7“Many people believe that...”, “My
friend argues that...”, “Experts recommend that...”, “Some people claim
6 O material mencionado é o livro Summit 1, terceira edição, da editora Pearson;
7 Respectivamente, em português: “Muitas pessoas acreditam que...”, “meu amigo argumenta
que...”, “especialistas recomendam que...”, “algumas pessoas afirmam que...”, “Os jornais no-
ticiam que...”; (tradução nossa);

25
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

that...”, “The newspapers report that...”. Em seguida, são pedidos para


completar os seguintes inícios de sentenças, utilizando o conhecimen-
to gramatical de 8Noun Clause da língua inglesa: 9“The belief...”, “The
argument...”, “The recommendation...”, “The claim...”, “The report”. A fi-
gura 1 abaixo demostra a atividade respondida pelos estudantes parti-
cipantes da pesquisa:

Figura 1–Atividade respondida pelos participantes

Fonte: Summit (2017).

Por fim, é importante destacar que a coleção do livro utilizado


é do ano de 2017, portanto, antes da pandemia do novo coronavírus,
e que os estudantes estavam à vontade para fazer a tarefa em suas
casas, já que a modalidade de ensino trabalhada era à distância e os
estudantes respondiam enviando documento via plataforma Google
Classroom.
Passemos agora para a análise das respostas dadas à atividade,
nomeando os estudantes como enunciador, cuja identificação será fei-
ta pelas siglas de E1, E2 e E3, de modo a identificar os participantes
e preservar suas reais identidades.

8 Noun Clause é a estrutura gramatical equivalente à Oração Subordinada Substantiva em


português;
9 Respectivamente, em português: “A crença...”, “O argumento”, “A recomendação”, “A afirma-
ção”, “A notícia” (tradução nossa);

26
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

4. Análise de corpus: enunciação em língua inglesa como LE

A escrita em língua estrangeira requer o emprego de estratégias


linguístico-cognitivas para sua realização, como a utilização da me-
mória lexical e linguística, de modo que se mantenham os princípios
comunicativos (atividade), pragmáticos (intenção) e estruturais (re-
gras do nível textual) (BÉRNARDES, 1982).
Iniciaremos a análise da escrita de E1, destacando, em retângu-
lo azul, o corpus dentro do material coletado, que chamam atenção
em relação aos índices de pessoa e aos usos verbais das enunciações
escritas no ambiente virtual. Vejamos as figuras 2 e 3, referentes às res-
postas de E1 e E2. As marcações que possam parecer são de correções
do professor:

Figura 2 – respostas de E1

Fonte: corpus da pesquisa.

27
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

No corpus, destacados no par em 3, relativo aos instrumentos


específicos, temos um “eu” (entendido em “for me”) que projeta um
“tu” (you) apropriando-se da modalidade linguística para aconselhar.
Esse “tu”, entendido na enunciação pelo “eu”, já que toda enunciação
é uma alocução e postula um alocutário que só percebido pela presen-
ça do 10locutor, parece referir-se não somente a um único alocutário,
mas, de modo genérico, a uma totalidade, não somente pelo pronome
“you” em inglês referir-se também ao plural, mas também pela refe-
rência da recomendação aconselhada parecer ter um caráter geral (nós
todos – portanto “eu” e “tu” – devemos, obviamente, nos mantermos
saudáveis).
No sentido da reflexão acima, Benveniste (2006, p. 83), ao ini-
ciar a definição da enunciação no quadro formal de sua realização, re-
flete que é preciso levar em conta os caracteres do próprio idioma:
“Tentaremos esboçar, no interior da língua, os caracteres formais
da enunciação a partir da sua manifestação individual que ela atualiza.
Esses caracteres são [...] ligados à particularidade do idioma escolhido”
(BENVENISTE, 2006, p. 83).
Usando should enquanto modalizador para aconselhar, temos
uma relação, bem como por ser um conselho, com um presente que,
caso não esteja acontecendo, deve(ria) (ou não) acontecer (em: “You
should go to the dentist”, você provavelmente ainda não foi ao dentis-
ta, mas a situação-presente percebida pelo “eu” ao proferir tal conse-
lho aponta para uma atitude do “tu” que pode(ria) acontecer ou não,
no sentido de um ato perlocucionário). O ato de enunciar, desse modo,
instaura sempre seu espaço-tempo equivalente a um aqui-agora
da enunciação (FLORES, 2019, p. 165).
Entretanto, ainda sobre o uso do modal should, ao dizer “You
should stay healthy”, pode não dar ideia da possibilidade de uma atitu-
de diferente do “tu” relativa à sua situação-presente (em “You should

10 Locutor aqui é tomado como o “eu” percebido na escrita das enunciações analisadas. As pos-
tulações teóricas de Benveniste, segundo o que discute Flores (2018), podem ser pensadas na
modalidade escrita, apesar de Benveniste ter citado que se precisa diferenciar a enunciação
escrita de uma enunciação oral, como já discutido.

28
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

stay health”, você deve(ria) manter-se como está, saudável, já que


o verbo ‘stay’ é comumente usado no sentido de 11“to not move away
from or leave a place or situation”). Apesar desse significado do ver-
bo “stay”, poderia-se, sim, entendê-lo, nessa modalização, no sentido
de produzir um ato perlocucionário (PARRET, 1988), se, por exemplo,
fosse dito em uma situação em que a pessoa não está saudável.
Outra possibilidade coloca-se: talvez pareça ser mesmo uma di-
ferença entre o verbo stay, mobilizado na enunciação analisada, e o ver-
bo go, dado como exemplo, já que ambos podem expressar significados
opostos (o primeiro, na ideia de inércia e o segundo, de movimento).
No entanto, a enunciação analisada aqui guarda, como declara
Benveniste (ano), suas singularidades e características do momento
em que são enunciadas. Desse modo, na 12relação específica com o
mundo, ao escolher dizer “You should stay health” nos dias atuais,
recuperamos quase que instantaneamente, e talvez até inconsciente-
mente, a pandemia e os milhões de casos fatais desse período, o que
faz esse dizer ter um peso diferente e maior neste momento, no senti-
do de que é importante manter-se bem de saúde para sobreviver a esse
tempo (que é o tempo-presente dessa enunciação).
A referência à pandemia, ainda que não exista, constrói-se den-
tro da interlocução, já que a situação, segundo Benveniste, está rela-
cionada à necessidade dessa referência pelo locutor, bem como a cor-
referência do alocutário (FLORES, 2006, p. 157).
Passemos agora para a análise das próximas enunciações de E2
para descrevermos e analisarmos os índices de pessoa e usos verbais
identificados:

11 Em português: “não se afastar ou sair de um lugar ou situação”. Conceito retirado do


Cambridge Dictionary em: dictionary.cambridge.org, no qual também possui o conceito de
“to continue to be in a particular state or position, or to continue doing something”, em por-
tuguês: “continuar em um estado particular ou posição ou continuar fazendo alguma coisa”.
12 Partindo da reflexão de Flores (2019, p. 157), Benveniste não trata de uma relação língua e
mundo, mas sim uma “certa relação” que está na dependência da enunciação.

29
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Figura 3–repostas e E2

Fonte: corpus da pesquisa.

Nas enunciações em 3, temos índices de primeira pessoa (we –


nós) que, em verdade, também é tomado num sentido de totalidade,
já que “todos devemos usar máscaras fora de casa” incluindo, portan-
to, o “eu” que enuncia. A mobilização de “we” em “we have more poor
people” também parece fazer referência à sociedade na qual o próprio
“eu” que enuncia está incluído, ou seja, também relacionada a uma
totalidade.
O uso de must, diferentemente do uso de should em E1, acu-
sa quase como uma obrigação o uso de máscara, ou seja, para além
de um conselho, é um dever o uso de máscara fora de casa, por exem-
plo. É a diferença, em língua inglesa, nas situações de uso desses dois
modalizadores.
Parret (1998, p. 10), em sua análise de frases dominadas e mo-
dificadas por operadores de crença, indica, no que tange à modaliza-
ção, que:

30
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

O sentido destas frases só pode ser compreendido


se levarmos em conta o contexto da ação, em outras
palavras, se de fato levarmos em conta que estas fra-
ses realmente são verdadeiros atos de linguagem.
(PARRET, 1998, p. 10).

Ou seja, na perspectiva de Parret (1998), a modalidade deve


ser estudada como “verdadeiro ato de linguagem”, não somente como
uma sequência lexical, já que o locutor organiza o texto em função
de um “querer-dizer” e, para isso, utiliza-se de estratégias que possam
favorecer seu projeto de dizer (KOCH, 2003).
Pode-se perceber, ainda sobre esse processo de mobilização
da língua pelo locutor, que há uma estrita relação com a língua mater-
na no uso do verbo to use no lugar de to wear, mais adequado para essa
formulação em língua inglesa.
Passemos agora para a análise das enunciações escritas de E3:

Figura 4–repostas de E3

Fonte: corpus da pesquisa

Podemos perceber que, assim como em E1 e E2, o índice de pri-


meira pessoa, observado na presença de “we”, refere-se a uma ge-

31
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

neralização. Como já discutido, Benveniste analisa como pessoas


do discurso apenas a relação eu-tu, enquanto que “ele” é considerada
como não-pessoa. Desse modo, “we”, em verdade, é entendido como
o próprio “eu” e revela na cena enunciativa sua relação com um “tu”,
que não se fundiu, já que a enunciação implanta um “tu” ao qual se re-
fere (ou seja, o “eu” não se funde ao “tu”), mas se multiplicou (If I’m
safe and you’re safe, then we’re safe) por uma predicação em comum.
Sobre o uso do verbo need, percebemos que, ao locutor mobi-
lizá-lo, tem-se uma intensificação focada no que parece ser um “ab-
surdo” que seria conceber como justificativa para o descumprimento
do protocolo sanitário de isolamento social a fé ou crença, o que o “eu”
enunciativo julga como “egoísta”.

Considerações finais

Aqui estudadas quanto a seus índices de pessoa, as enuncia-


ções indicam que os colaboradores desta pesquisa conseguem mobi-
lizar os conhecimentos de língua estrangeira para dar voz aos seus
discursos por meio da enunciação, inclusive utilizando a língua como
instrumento para enunciar um dizer que, atualizado pela situação
na enunciação, possibilita a relação eu-tu em língua estrangeira base-
ada, não numa aculturação quanto à realidade deles, mas na expressão
da própria realidade enunciativa.
Sobre os usos de verbos e modalizações discutidos nas enuncia-
ções escritas analisadas, percebe-se a adequada mobilização no senti-
do de promover uma interlocução que leve a um “comportamento” di-
ferente por parte do “tu” que é implantado na cena enunciativa. O uso
de should, must e need to dentro das enunciações escritas analisadas
revela uma tendência de direcionar atitudes do “tu” em forma de con-
selho, dever ou necessidade de tais atitudes. Além disso, a “escolha
linguística” de um entre esses modalizadores desvela a característica
acessória das enunciações escritas, referente aos procedimentos aces-
sórios, ou seja, mecanismo (nesse caso, de modalidade), empregados
para dizer.

32
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Referências

APARELHO. In: Dicio. Dicionário de Língua Portuguesa. Disponível em:


https://www.dicio.com.br/aparelho/. Acesso em 10 jan. 2022.
BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral II. Tradução de
Eduardo Guimarães et al. 2. ed. Campinas, SP: Editora Pontes, 2006.
BERNÁRDEZ, E. Introducción a la Lingüística del Texto. Madrid: Espasa-
Calpe S. A, 1982.
FLORES, Valdir do Nascimento. A enunciação escrita em Benveniste:
notas para uma precisão conceitual. DELTA: Documentação e Estudos em
Linguística Teórica e Aplicada, v. 34, n. 1, 2018.
FLORES, Valdir do Nascimento; GOLDNADEL, Marcos; RIBEIRO, Nunes
Pablo; ROMERO, Márcia. Manual de Linguística: Semântica, Pragmática e
Enunciação. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2019.
KOCH, I. G. V. Desvendando os segredos do texto. 2. ed. São Paulo: Cortez,
2003.
PARRET, H. Enunciação e pragmática. Tradução de Eni Pulcinelli Orlandi et
al. Campinas: UNICAMP, 1988.
STAY. In: CAMBRIDGE dictionary. Cambridge University Press. Disponível
em: https://dictionary.cambridge.org/pt/. Acesso em: 10/01/2022.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Apêndice A: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

O(A) Sr(a) está sendo convidado a participar do projeto de pesquisa MARCAS DE SUBJETIVIDADE
NA ESCRITA EM LÍNGUA INGLESA COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA: OS DISCURSOS
QUE CIRCULAM SOCIALMENTE NO BRASIL DURANTE A PANDEMIA, cujo pesquisador res-
ponsável é _ANDRÉ FELIPE RIBEIRO_(Lattes: http://lattes.cnpq.br/4836834610629390))
Os objetivos do projeto são IDENTIFICAR E DISCUTIR AS MARCAS DE SUBJETIVIDADE E AS
ESCOLHAS LINGUÍSTICAS MOBILIZADAS NA ESCRITA DE LÍNGUA INGLESA. O(A) Sr(a)
está sendo convidado por SER ESTUDANTE DE LÍNGUA INGLESA VÍNCULADO AO PROJETO
DENOMINADO NÚCLEO DE CULTURA LINGUÍSTICA DESSA MESMA INSTITUIÇÃO.
O(A) Sr(a). tem de plena liberdade de recusar-se a participar ou retirar seu consentimento,
em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma para o tratamento que recebe neste
serviço.
Caso aceite participar sua participação consiste em _CEDER O MANUSEIO E ANÁLISE
DOS ESCRITOS PRODUZIDOS NA PLATAFORMA GOOGLE CLASSROOM PARA O RESPONSÁVEL
PELA PESQUISA, MANTENDO ASSEGURADAS A CONFIDENCIALIDADE, A PRIVACIDADE
DE SUA IMAGEM, A SUA NÃO ESTIGMATIZAÇÃO E A NÃO UTILIZAÇÃO DE INFORMAÇÕES
EM PREJUÍZO DAS PESSOAS E/OU DAS COMUNIDADES, INCLUSIVE EM TERMOS
DE AUTOESTIMA, DE PRESTÍGIO E/OU ASPECTOS ECONÔMICO-FINANCEIROS (item II.2.i,
Res 466/2012/CNS e Constituição Federal Brasileira de 1988, artigo 5°, incisos V, X e XXVIII).
Garantimos ao(à) Sr(a) a manutenção do sigilo e da privacidade de sua participação e de seus
dados durante todas as fases da pesquisa e posteriormente na divulgação científica.
O(A) Sr(a). pode entrar com contato com o pesquisador responsável ANDRÉ FELIPE RIBEIRO
a qualquer tempo para informação adicional no endereço RUA SÃO JOSÉ 134 – TURU (E-MAIL:
FELIPE.ANDRE@DISCENTE.UFMA.BR)
CONSENTIMENTO PÓS-INFORMAÇÃO
Li e concordo em participar da pesquisa.
SÃO LUÍS, ____/_____/_____
___________________________________________
Assinatura do Participante
Assinatura do Pesquisador Responsável

34
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-2

LINGUÍSTICA TEXTUAL: UM ESTUDO


SOBRE A CONSTRUÇÃO DO TEXTO E
OS FATORES DE TEXTUALIDADE

Antônia Luziane Silva de Castro 1


José Ribamar Moura 2
Paulo da Silva Lima 3

Introdução

A Linguística Textual (LT), tal como é conhecida hoje, teve início


na década de 1960, na Europa, mais precisamente na Alemanha. Nesse
período, iniciavam-se os avanços Linguísticos através de estudiosos
como Halliday, Ducrot, Benveniste, dentre outros.
Sua formulação enquanto ciência passa a ganhar espaço nos ca-
minhos linguísticos, quando os precursores desse campo buscaram
por entender as regularidades que transcendem a frase, no entanto,
sem a pretensão de abandonar os estudos frasais e nem criar um novo
objeto de estudo (INDURSKY, 2006).

1 Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Maranhão –


Campus III / Bacabal. E-mail: Luzianecastro.ma@gmail.com
2 Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Maranhão –
Campus III / Bacabal. E-mail: jr.moura@discente.ufma
3 Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Maranhão –
Campus III / Bacabal. E-mail: paulo.sl@ufma.br

35
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

No Brasil, a Linguística Textual teve início em 1980, sendo o pri-


meiro trabalho noticiado nessa área de autoria do Prof. Dr. Ignácio
Antônio Neis da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS), intitulado Por uma Gramática Textual.4 O trabalho, ob-
jetivava dar uma nova visão a gramática, elencando seu surgimento
e objetos de estudo. De acordo com Fávero (2012, p. 04), uma das hipó-
teses desenvolvida no trabalho de Neis (1981) era a de que “a comuni-
cação linguística se efetua, não com frases sucessivas, mas com textos,
e em qualquer texto, encontram-se elementos essenciais, ausentes
ou inexplicáveis dentro das frases tomadas isoladamente”. A partir
de então, a Linguística Textual passou a ganhar novas ampliações
no âmbito da Linguística.
É importante destacar que um dos principais motivos que in-
fluenciaram no desenvolvimento da Linguística Textual, enquanto ci-
ência, foi o fato das teorias linguísticas tradicionais não conseguirem
suprir alguns fenômenos linguísticos que apareciam nos textos
(MARCUSCHI, 2008). Dessa forma, constatava-se a exigência de uma
teoria que fosse além da linguística da frase, sendo que até então,
as explicações de algumas propriedades linguísticas de uma frase eram
realizadas apenas na sua relação com outra frase.
Vale ressaltar que para Marcuschi (2012, p.13), “a Linguística
Textual parte da premissa de que a língua não funciona nem se dá em
unidades isoladas, tais como fonemas, morfemas, palavras ou frases
soltas”. Ou seja, podemos dizer que ela se concretiza em unidades
de sentido chamadas texto, podendo tanto ser orais como escrita.
Cabe ainda destacar as influências dos estudos de Saussure (2012)
para a formulação do que conhecemos por frase. Para ele, a frase não é
considerada uma unidade da langue e sim da parole (do uso/da fala).
Dessa forma, ancorados na teoria saussuriana, os estudos desenvolvi-
dos no âmbito da Linguística Textual, passaram a tratar dos processos

4 O trabalho intitulado Por uma gramática textual, foi publicado na revista Letras de Hoje do cur-
so de Pós- Graduação em Linguística e Letras e do Centro de Estudos Portugueses da PUCRS,
em junho de 1981.

36
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

e regularidades gerais e específicos segundo os quais se produz, cons-


titui, compreende e descreve o fenômeno texto (MARCUSCHI, 2012).
A partir dessa formulação no âmbito da Linguística Textual, pas-
sou-se a não se falar mais em Gramática de texto, como antes era abor-
dado. Para Indursky (2006), essa expansão ocorreu pelo fato dos gra-
máticos textuais terem compreendido que não seria possível dar conta
de uma estrutura profunda do texto que estivesse na base da realiza-
ção de todo e qualquer texto.
Além disso, conforme aborda Marcuschi (2008), a noção de gra-
mática de texto, supunha que seria possível identificar um conjun-
to de regras de boa formação textual, o que se sabe ser impossível.
Tal afirmação se justifica, à medida que, o texto não é uma unidade
formal que pode ser definida e determinada. Além disso, não é possível
ter um conjunto formal de regras que possam formar textos adequa-
dos. Diante disso, se a produção de todos os gêneros textuais fossem
padronizados por regras, teríamos dificuldade em, por exemplo, obter
sentidos específicos, ou sequenciar conteúdos. Dessa forma, seria im-
possível e inviável trabalhar com o texto.
É importante destacar que estudar o texto, com base na LT, é com-
preender que nele há uma estrutura dotada de sentido, com objetivos
e intenções definidas. De acordo com Florêncio (2009, p.22), “não há,
pois, discurso neutro ou inocente, uma vez que ao produzi-lo, o sujeito
o faz, a partir de um lugar social, de uma perspectiva dialógica e, assim,
veicula valores e visões de mundo que representa os lugares sociais
que ocupa”. O que acontece da mesma maneira com o texto.
Nessa perspectiva, Weirich (1973, p.174), conforme citado
por Indursky (2006), situa que “texto é uma rede de determinações,
sendo manifestamente uma totalidade onde cada elemento mantém
com os outros, relações de interdependências”.
Partindo dessa perspectiva, buscaremos ao longo desse estu-
do, investigar como o texto é construído, e ainda, como os fatores
de textualidade (coerência, coesão, intencionalidade, aceitabilida-
de, situacionalidade, informatividade e intertextualidade), elencados

37
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

por Beaugrande e Dressler (1983), possibilitam conhecê-lo e entendê-


-lo como um processo e não como um produto.

1 A teoria do texto

Ao discutirmos sobre a teoria do texto, inicialmente cabe desta-


car que, na comunicação, o texto é a materialização máxima da língua,
podendo ele ser verbal ou não verbal. Conforme situa Orlandi (2007,
p.52), “o texto é uma peça de linguagem, uma peça que representa
uma unidade significativa”. Orlandi (2005) ainda considera o texto
como a primeira unidade, e considera que, para que ele seja visto como
texto, faz-se necessário possuir textualidade.
A textualidade, por sua vez, de acordo com o que aborda Orlandi
(2005), é a função da relação do texto consigo mesmo e com a exterio-
ridade. “Quando uma palavra significa é porque ela tem textualidade,
ou seja, porque a sua interpretação deriva de um discurso que a sus-
tenta, que a provêm de realidade significativa” (ORLANDI, 2007, p.52).
É nessa compreensão do que é texto que podemos entender sua rela-
ção com o interdiscurso, ou seja, a relação com outros sentidos.
De acordo com Orlandi (2005, p. 69), dessa maneira podemos en-
tender que:

O texto não é definido pela sua extensão, ele pode


ter desde uma só letra até enunciados, páginas, etc.
Uma letra “O” escrita em uma porta ao lado de outra
com a letra “A”, indicando nos banheiros o masculino
e o feminino é um texto, pois é uma unidade de sen-
tido daquela situação. [....] do mesmo modo que “Vote
sem medo” tem seus sentidos, dos quais apontamos al-
guns. Mais um texto pode ser, também, todo um livro,
que faz sentido em uma situação literária, apresen-
tando-se como um romance, por exemplo. Portanto,
não é a extensão que delimita um texto. Como disse-
mos, é o fato de, ao ser referido a discursividade, cons-
titui uma unidade em relação à situação.

38
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Além disso, conforma ainda destaca Orlandi (2007), “ o texto vis-


to na perspectiva do discurso, não é uma unidade fechada, pois ele tem
a relação com outros textos (existentes e imaginários), com suas con-
dições de produção (sujeito e a situação), e com o que chamamos de in-
terioridade discursiva (interdiscurso, memórias do dizer)”. Podemos
confirmar esse pensamento ao dizer que:

Pode-se pensar o texto como espaço discursivo, não fe-


chado em si mesmo, pois ele estabelece relações não só
com o contexto, mas também com outros textos e com
outros discursos, o que nos permite afirmar que o fe-
chamento de um texto, considerado nessa perspecti-
va teórica, é só um tempo simbólico e indispensável.
Nessa concepção o texto não se fecha em si mesmo,
pois faz parte de sua constituição uma série de fato-
res, tais como relações contextuais, relações textu-
ais, relações intertextuais, e relações interdiscursivas
(INDURSKY, p. 69, .

Ademais, conforme aborda Koch (2014), no âmbito da LT, o texto


é tido como um ato de comunicação unificado num complexo universo
de ações humanas. Dessa forma, podemos considerar que o texto está
relacionado a diversos fatores linguísticos, como o semântico, o lexi-
cal, o pragmático, o gramatical, por exemplo.
Ao buscarmos entender os aspectos que definem ou conceituam
o texto, cabe destacar também a definição mobilizada por Koch (2014,
p.22)

Poder-se-ia, assim, conceituar o texto, como uma ma-


nifestação verbal constituída de elementos linguísti-
cos selecionados e ordenados pelos falantes durante
a atividade verbal, de modo a permitir aos parceiros,
na interação, não apenas a depreensão de conteúdos
semânticos, em decorrência da ativação de processos
e estratégias de ordem cognitiva, como também a inte-

39
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

ração (ou atuação) de acordo com práticas sociocultu-


rais (KOCH, 2004, p.22).

Além disso, Koch (2014, p.22), ainda propõe que “se veja
a Linguística do Texto, mesmo que provisória e genericamente, como
o estudo das operações linguísticas e cognitivas reguladoras e contro-
ladoras da produção, construção, funcionamento e recepção de textos
escritos ou orais”.
Cabe ainda destacar as definições de texto realizadas
por Marcuschi (2008). Em suas definições, ancorado nos pressupostos
teóricos de Beaugrande (1977), expressa que “é essencial tomar o texto
como um evento comunicativo no qual convergem ações linguísticas,
cognitivas e sociais”. A partir dessa definição, Marcuschi (2008), sugere
que o texto não é um conjunto sequenciado de palavras escritas ou fa-
ladas, mas um evento. Para isso, ele destaca as seguintes implicações
diretas que confirmam tal definição:

O texto é visto como um sistema de conexões entre


vários elementos, tais como: sons, palavras, enun-
ciados, significações, etc. O texto é construído numa
orientação de multissistemas, ou seja, envolve tan-
to aspectos linguísticos como não linguísticos no seu
processamento (imagem, música) e o texto se torna
multimodal. O texto é um evento interativo e não se dá
como um artefato monológico e solitário, sendo sem-
pre um processo e um coprodução. O texto compõe-se
de elementos que são multifuncionais sob vários as-
pectos, tais como: uma palavra, um som, uma signi-
ficação, uma instrução... e deve ser processado nessa
multifuncionalidade. (MARCUSCHI, 2008, p.80).

Dessa forma, notamos que são vários os aspectos que configu-


ram um texto, e ao utilizá-lo, a falante demanda que uma rede de fa-
tores sejam acionadas, independente que sua reprodução seja falada
ou escrita. Diante disso, Marcuschi (2012) define que a Linguística

40
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Textual permite a correlação entre a produção, constituição e a recep-


ção de textos. Ou seja, a LT “presta um serviço fundamental na forma-
ção da hermenêutica do leitor, ao lhe dar o instrumento que o capacita
para a compreensão de textos” (MARCUSCHI, 2012, p.33).
Ademais, como já mencionado, a partir do desenvolvimento
da Linguística textual como ciência, o texto passou a ser desvinculado
de sua concepção estritamente gramatical, tendo em vista que a gra-
mática não deu conta de analisar toda a materialidade textual, sendo
necessário uma teoria que fosse além da linguística da frase. Diante
disso, conforme aborda Orlandi (2005), o texto passou a ser visto
como unidade de análise, só podendo assim ser visto por representar
uma contrapartida à unidade teórica, ou seja, ao discurso.
Cabe ainda destacar que, conforme aborda Marcuschi (2008,
p.93), um texto, enquanto unidade comunicativa, deve obedecer a um
conjunto de critérios de textualização, já que ele não é um conjunto
aleatório de frases, nem é uma sequência em qualquer ordem.
Por fim, faz-se necessário frisar que, ainda na perspectiva
da Linguística Textual, conforme destaca Indursky (2006), o texto pode
ainda ser concebido como uma unidade pragmático-discursivo, ou seja,
possuir intenções comunicativas efetivadas sob a forma de instruções
(referências e relações) marcadas no corpo do texto. Vale ainda dizer
que o texto é entendido como uma unidade pragmática porque procu-
ra estabelecer comunicação com o seu receptor, o leitor (INDURSKY,
2006). Dessa forma, sua comunicação é definida pelo autor do texto,
que dá as instruções que devem ser seguidas corretamente pelo leitor.
É diante dessa perspectiva que Beaugrande & Dressler (1981),
dão continuidade a essa reflexão, situando que para que o texto seja
uma ‘ocorrência comunicacional’, ele deve satisfazer a um conjunto
de critérios interdependentes.
São esses critérios interdependentes, que vão dar conta da textu-
alidade. Eles se dividem-se em: semânticos-formais, ou seja, a coesão
e a coerência, responsáveis por fazer com que um texto seja entendido
como texto; e pragmáticos (intencionalidade, aceitabilidade, situacio-

41
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

nalidade, informatividade e intertextualidade), responsáveis pela qua-


lidade pragmática do texto.
No entanto, antes de abordarmos sobre os fatores de textualida-
de, trataremos mais detalhadamente, da importância da leitura e da
escrita, sendo que estas são tidas como recursos facilitadores para
a construção do texto.

2 Leitura e escrita na construção do texto

Ao falarmos sobre leitura, cabe destacar que esse processo


pode ser definido de várias maneiras, dependendo não só do enfoque
dado (linguístico, psicológico, social...), mas do grau de generalidade
com que se pretende definir o termo (LEFFA, 1996).
É nesse contexto que Leffa (1996) apresenta duas definições
para leitura, uma situada como definição geral e outra como restrita.
De acordo com o autor, na primeira definição temos a leitura basica-
mente como um processo de representação; enquanto, na definição
restrita, o processo de leitura é considerado a partir das seguintes pre-
missas: (a) ler é extrair significados do texto, ou seja, a direção parte
do texto é para o leitor, e (b) ler é atribuir significados ao texto, em ou-
tras palavras, o direcionamento parte do leitor para o texto.
Além disso, cabe ainda destacar o conceito de leitura atribuído
por Koch e Elias (2008, p. 10), que a define como “atividade de captação
das ideias do autor, sem se levar em conta as experiências e os conheci-
mentos do leitor, a interação autor-texto-leitor com propósitos cons-
tituídos sócio-cognitivo-interacionalmente”. Além disso, Koch e Elias
(2008, p.11), ainda destacam que “a leitura é uma atividade altamen-
te complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente
com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual
e na sua forma de organização ”.
A partir dessas premissas, podemos considerar a leitura como
apoio para o êxito do processo de escrita. Além disso, é importante

42
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

enfatizar que a escrita é o fator responsável pela permanência da in-


formação, perdurando-a no tempo.
Partindo do princípio de escrita como atividade, cabe destacar
o que situa Antunes (2003, p.45), ao dizer que:

A escrita é uma atividade interativa de expressão,


de manifestação das ideias, informações, intenções,
crenças ou dos sentimentos que queremos partilhar
com alguém, para, de algum modo, interagir com ele.
Ter o que dizer é, portanto, uma condição prévia para
o êxito da atividade de escrever. Não há conhecimento
linguístico (lexical ou gramatical) que supra a deficiên-
cia do não ter o que dizer.

Diante disso, na produção de textos, nota-se a existência


de uma conexão de sentidos, tendo em vista que as frases e as pala-
vras não funcionam de forma isolada. Dessa forma, o texto funciona
como uma ponte que liga os interlocutores ao processo de comuni-
cação. Esses interlocutores são os sujeitos do processo de interação
verbal, ou seja, são para eles que os textos se destinam. Em razão disso,
Bakhtin (1995, p.113), defende que:

Na realidade toda palavra comporta duas faces. Ela é


determinada tanto pelo fato de que procede de alguém,
como pelo fato de que se dirige para alguém. A palavra
é uma espécie de ponte lançada entre mim e o outro.
Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra
se apoia sobre o meu interlocutor.

Já para Antunes (2003, p.46), “as palavras são apenas a media-


ção, ou o material com que se faz a ponte entre quem fala e quem escu-
ta, entre que escreve e quem lê”. Dessa forma, com essa mediação elas
se limitam a possibilitar a expressão do que é sabido, do que é pensado,
do que é sentido. Se faltam ideias, se faltam informações, vão faltar
as palavras (ANTUNES, 2003).

43
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

3 Fatores de textualização

Para falarmos sobre os fatores de textualização, cabe inicialmen-


te destacar que a textualidade é entendida como um conjunto de ca-
racterísticas que nos possibilita conhecer um texto. E que, conforme
destaca Koch e Travaglia (2015), sem ela não poderia existir qualquer
coerência da produção linguística. Além disso, ao levarmos em consi-
deração as práticas de ensino de produção escrita, pautadas nas con-
cepções de textualidade, cabe levar em conta que o texto não é um pro-
duto e sim um processo.
Diante disso, os fatores de textualidade, tal como foram pri-
meiramente definidos e explicados por Beaugrande e Dressler (1983),
são sete: a coesão, a coerência, a intencionalidade, a aceitabilidade,
a situacionalidade, a informatividade e a intertextualidade.

1. Coesão

No que diz respeito a coesão é pertinente destacar que ela é a


ligação entre as partes de um texto, onde há a escolha correta dos ope-
radores textuais. E é por meio do mecanismo da coesão que se desen-
volve a tessitura do texto.
Para Koch (2020), a coesão é responsável por estabelecer as rela-
ções de sentido, ou seja, diz respeito ao conjunto de recursos semân-
ticos por meio dos quais uma sentença, se liga com a que veio antes
e aos recursos semânticos mobilizados com o propósito de criar textos.
Para Halliday & Hasan (1976), de acordo com o que destaca Koch
(2020), o sentido da coesão textual, como conceito semântico, se re-
fere às relações de sentido existentes. Diante disso, Koch (2020, p.16)
situa que “a coesão ocorre quando a interpretação de algum elemento
no discurso é dependente de outro”. Um pressupõe o outro, no sentido
de que não pode ser efetivamente decodificado a não ser por recurso
ao outro.

44
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Para Halliday & Hasan (1976), a coesão é, pois, uma re-


lação semântica entre um elemento do texto e algum
outro elemento crucial para a sua interpretação. A co-
esão, por estabelecer relações de sentido, diz respeito
ao conjunto de recursos semânticos por meio dos quais
uma sentença se liga com a que veio antes, aos recursos
semânticos mobilizados com o propósito de criar tex-
tos. A cada ocorrência de um recurso coesivo no texto,
denominam “laço”, “elo coesivo”. (KOCH, 2020, p. 16).

Halliday & Hasan (1976) destacam a existência de elementos im-


prescindíveis para a constituição da coesão em um texto, sendo eles:
a referência, a substituição, a elipse, a conjunção, e a coesão lexical.
O mecanismo de coesão referência, pode ser entendido como
“os itens da língua que não podem ser interpretados semanticamente
por si mesmos, mas remetem a outros itens do discurso necessários
à sua interpretação” (KOCH, 2020, p.19). Além disso, a referência pode
ser classificada em situacional (exofórica) e textual (endofórica).
Segundo Koch (2020, p.19), “a referência é exofórica quando a re-
missão é feita a alguns elementos da situação comunicativa, isto é,
quando o referente está fora do texto; e é endofórica, quando o refe-
rente está no próprio texto”. Ou seja, quando o referente ocorre antes
do elemento coesivo, temos anáfora; quando vem depois do elemento
coesivo, temos catáfora. Marcuschi (2008, p.111), confirma esse enun-
ciado ao dizer que: “a anáfora refere-se a entidades já introduzidas
e vem depois das expressões correferidas; e a catáfora, refere-se a en-
tidades projetivamente, de modo que sua ocorrência se dá antes da ex-
pressão correferida.
O mecanismo de coesão referência apresenta ainda subáreas,
sendo elas divididas em: referência pessoal, demonstrativa e compara-
tiva. Segundo Koch (2020), a referência pessoal é feita por meio de pro-
nomes pessoais e possessivos; a demonstrativa por meio de pronomes
demonstrativos e advérbios indicativos de lugar; e a comparativa, efe-

45
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

tuada por via direta, por meio de identidades e similaridades”. Vejamos


alguns exemplos, citado por Koch (2020) e Koch e Travaglia (2020):
1. A baleia azul é um animal em vias de extinção. Elas ainda são en-
contradas em algumas regiões do globo. (Elas–referência pessoal
anafórica)
2. Realizara todos os seus sonhos, menos este: o de entrar para a
Academia. (Este – referência demonstrativa catafórica)
3. É um exercício semelhante ao de ontem. (semelhante ao – refe-
rência comparativa)
Já o mecanismo de coesão substituição (nominal, verbal, frasal),
para Halliday & Hasan (1976), conforme citado por Koch (2020, p. 20),
consiste “na colocação de um item no lugar de outro (s) elemento (s)
do texto, ou até mesmo, de uma oração inteira”. Ou seja, podemos di-
zer que a substituição é a troca de determinados termos por expres-
sões ou conectivos que retomam o que já foi dito. Vejamos o exemplo:
4. Pedro comprou um carro novo e José também.
No exemplo acima, o item lexical também substitui a necessi-
dade de repetição dos termos, ou seja, de dizer que José, assim como
Pedro, comprou um carro novo.
O mecanismo de coesão elipse, ocorre quando se omite um item
lexical, um sintagma, uma oração ou todo um enunciado, sem preju-
dicar o entendimento e nem comprometer o entendimento das ideias
da oração. Vejamos o exemplo citado por Koch (2020, p.21):
5. Pedro vai conosco ao leilão?
Ø Vai Ø
O mecanismo de coesão conjunção (aditiva, adversativa, causal,
temporal, continuativa), permite estabelecer relações significativas es-
pecíficas entre os elementos ou orações do texto. Tais relações são as-
sinaladas explicitamente por marcadores formais que correlacionam
o que está para ser dito aquilo que já foi dito (KOCH, 2020). Ou seja,
ao no referimos a esses marcadores formais estamos tratando dos di-

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

versos tipos de conectores e partículas de ligação como e, mas, depois,


assim... Observemos o exemplo citado por Koch (2020):
6. a. Uma grande paz seguiu-se ao violento tumulto.
b. Houve uma grande paz, depois de haver terminado o violento
tumulto.
No exemplo b, a oração manteve sua estrutura semântica equiva-
lente ao exemplo a, em virtude do uso da conjunção depois. O uso des-
sa conjunção favoreceu que, mesmo após a reorganização da segunda
sentença, pudesse ser mantido o sentido expresso na sentença a.
E por último, cabe mencionar, o mecanismo de coesão lexi-
cal, que segundo Koch (2020, p.22), “se faz por repetição do mesmo
item lexical ou através de sinônimos, hiperônimos, nomes genéricos”.
Observemos em seguinte exemplos, citados por Koch (2020):
7. Uma menininha correu ao meu encontro. A garota parecia
assustada.
(Garota–sinônimo utilizado para evitar repetição do item lexical
menininha.)
Assim, podemos considerar que a coesão dá ao texto maior legi-
bilidade, pois explicita os tipos de relações estabelecidas entre os ele-
mentos linguísticos que o compõem. Além disso, a coesão “asseguram
(ou tornam recuperável) uma ligação linguística significativa entre
os elementos que ocorrem na superfície textual” (KOCH, 2020, p.18).

2. Coerência

A coerência está diretamente ligada à possibilidade de se esta-


belecer um sentido para o texto. Ou seja, “diz-se que um texto é coe-
rente quando há unidade de sentido entre as partes que o constituem”
(SANTOS, 2013, p.93). Além disso, é ela que faz com o que o texto faça
sentido para os usuários.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Diante disso, se observarmos os exemplos destacados por Koch


e Travaglia (2020, p.9), podemos compreender o que seria dizer que
“falta coerência em um texto”. Observe:
8. Depois do tango, chegou a vez do fado. Na Arábia.
No exemplo acima, o fator de incoerência é gerado à medida
que não é possível depreender o sentido expresso na sentença, ten-
do em vista a falta de elementos que possam estabelecer relações
sintáticas e semânticas entre os componentes que constituem a ora-
ção. Dessa sentença, podemos apenas compreender, de forma isolada
que: o termo tango é um estilo musical associado a contexto cultural
da Argentina; que fado é um estilo musical Português; e, que Arábia
é um país. No entanto, todas essas informações não estabelecem
na sentença relações entre suas unidades.
Observemos outro exemplo:
9. Roberto tem um belo veículo. É um cavalo árabe puro sangue.
O exemplo mencionado, pode ser considerado incoerente,
ao passo que, a segunda oração, não estabelece sentido com a primei-
ra. De forma que, o item lexical cavalo, presente na segunda oração,
não é hipônimo de veículo, ou seja, a oração não possui relação entres
seus termos e significados.
Dessa forma, podemos considerar que, para que haja coerên-
cia, sobretudo, é necessário a existência de relação de sentido entre
os enunciados. A respeito disso, Beaugrande e Dressler (1981), confor-
me citado por Marcuschi (2008, p.121), observam que a coerência “diz
respeito ao modo como os componentes do universo textual, ou seja,
os conceitos e relações subjacentes ao texto de superfície são mutu-
amente acessíveis e relevantes entre si, entrando numa configuração
veiculadora de sentidos”.
Outro teórico que aborda o conceito de coerência é Antunes
(2003, p.93), para ela coerência diz respeito a:

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Construir um texto, capaz de funcionar sociocomuni-


cativamente num contexto específico, uma operação
da natureza também lexical e gramatical. Quer di-
zer, não se pode escolher aleatoriamente as palavras
nem arrumá-las de qualquer jeito; nem tampouco op-
tar por sequência de frases.

Portanto, podemos dizer que é necessário a existência de conhe-


cimentos linguísticos por parte do escritor e também do leitor, para
que assim o texto não seja visto como um emaranhado de palavras
sem sentido algum, tornando-se assim incoerente.

3.3 Intencionalidade

O critério da intencionalidade nos passam a ideia sobre o que


autor e texto pretendem abordar. Para Koch e Travaglia (2015, p.97), “o
produtor de um texto tem, necessariamente, determinados objetivos
ou propósitos, que vão desde a simples intenção de manter contato
com o receptor ou até levá-lo a partilhar de suas opiniões”. Dessa for-
ma, podemos considerar que a intencionalidade:

Refere-se ao modo como os emissores usam textos para


perseguir e realizar suas intenções, produzindo, para
tanto, textos adequados à obtenção de efeitos deseja-
dos. É por essa razão que o emissor procura, de modo
geral, construir seu texto de modo coerente e dar pistas
ao receptor que lhe permitam construir o sentido dese-
jado (KOCH; TRAVAGLIA, 2015, p. 97).

Cabe ainda destacar que, a intencionalidade é considerada como


um fator de textualização difícil de ser identificada, tendo em vista
que não se sabe ao certo o que ser observado. Para Marcuschi (2008,
p.127), “também não se sabe se a intencionalidade se deve ao autor
ou ao leitor, pois ambos têm intenções”. Dessa forma, “seria mais con-
veniente vê-la integrada no plano global do texto e nos processos pro-
dutores de coerência” (MARCUSCHI, 2008, p.127).

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Em uma análise desse princípio, Marcuschi (2008) faz referência


a Fávero (1986) que lembra que a intencionalidade serve para mani-
festar a ação discursiva pretendida pelo autor do texto. Dessa forma,
a intencionalidade pode ser tida como a intenção do locutor em pro-
duzir manifestações linguísticas coesas e coerentes, mesmo que essa
intenção nem sempre se realize totalmente.

3.4 Aceitabilidade

A aceitabilidade está ligada à intencionalidade e refere-se à ati-


tude do receptor do texto. De acordo com Marcuschi (2008, p.127), “a
aceitabilidade enquanto critério da textualidade, parece-se liga-se
a noções pragmáticas e ter uma estreita interação com a intencionali-
dade […]”.
Para Marcuschi (2008), conforme citado por Beaugrande
(1997,p.14), “a aceitabilidade se dá na medida direta das preten-
sões do próprio autor, que sugere ao seu leitor alternativas estilísti-
cas ou gramaticais que buscam efeitos especiais”. A exemplo disso,
Beaugrande (1997), cita as obras de Guimarães Rosa, em que muitos
textos possuem enunciados que do ponto de vista gramatical oferecem
resistência, contudo, são aceitáveis na obra.
É importante ressaltar que a agramaticalidade não acontece so-
mente na escrita, pois na fala temos produções agramaticais, mas que
nem por isso deixam de ser aceitas por seus ouvintes.
Cabe ainda destacar que, de acordo com Marcuschi (2008), há di-
ficuldades em estabelecer os limites da aceitabilidade, por ela remeter
a expectativa do receptor do texto. Ou seja, o alocutário pode receber
o texto como uma configuração aceitável, tendo-o como coerente e co-
eso, interpretável e significativo, mesmo o texto não sendo inteligível
(MARCUSCHI, 2008). Diante disso,

A aceitabilidade constitui a contraparte da intenciona-


lidade. Já se disse que, segundo o Princípio Cooperativo
de Grice, o postulado básico que rege a comunicação

50
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

humana é o da cooperação, isto é, quando duas pesso-


as interagem por meio da linguagem, elas se esforçam
por fazer-se compreender e procuram calcular o senti-
do do texto do (s) interlocutor (es), partindo das pistas
que ele contém e ativando seu conhecimento de mun-
do, da situação, etc. (KOCH; TRAVAGLIA, 2015, p.98).

Dessa forma, mesmo que um texto não se apresente perfeita-


mente coerente, e os elementos de coesão não estejam explícitos, o re-
ceptor poderá estabelecer sua coerência através de possíveis interpre-
tações, dando-lhe o sentido que mais se evidencie como cabível.

3.5 Situacionalidade

O fator da situacionalidade é o critério que se refere à rela-


ção entre o evento textual e à situação em que ela ocorre. De acordo
com Marcuschi (2008, p.128), “a intencionalidade não só serve para
interpretar e relacionar o texto ao seu contexto interpretativo, como
também para orientar a própria produção”.
Diante disso, Marcuschi (2008), cita como exemplo de situacio-
nalidade o caso de alguém que quer falar ao telefone, tendo em vista
que essa situação exigirá uma série de ações que poderão ou não es-
tar consolidadas, constituindo assim o gênero telefonema. Ele destaca
que, no gênero telefonema ...

haverá a chamada, as identificações e os cumpri-


mentos mútuos, a abordagem de um tema, ou vários,
e a despedidas. Assim será com qualquer outro texto,
por exemplo, a ata de um condomínio ou até mesmo
uma redação escolar, que exigirão determinados requi-
sitos situacionalmente definidos. (MARCUSCHI, 2008,
p. 129).

Dessa forma, todo texto conservará em si traços da situação a que


se refere ou na qual deve operar. Dessa forma, a situacionalidade pode
ser vista como um critério de adequação textual (MARCUSCHI, 2008).

51
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Cabe ainda destacar, que considerada como um critério estraté-


gico, a situacionalidade adequa o texto a situação em que há comuni-
cação. Diante disso, Koch e Travaglia (2015, p.85), acrescentam que:

É preciso, ao construir um texto, verificar o que é ade-


quado aquela situação específica: grau de formalida-
de, variedade dialetal, tratamento a ser dado ao tema,
etc. O lugar e o momento da comunicação, bem como
as imagens reciprocas que os interlocutores fazem
uns dos outros, são papéis que desempenham, seus
pontos de vistas, o objetivo da comunicação, enfim, to-
dos os dados situacionais vão influir tanto na produção
do texto, como na sua compreensão.

Dessa forma, podemos considerar que a situacionalidade parte


do texto para a situação e da situação para o texto. E que além dis-
so, ainda exerce papel de relevância na construção da coerência, sen-
do que “um texto que é coerente em uma dada situação pode não ser
em outra: daí a importância da adequação do texto à situação comuni-
cativa” (KOCH e TRAVAGLIA, 2015, p. 86).

3.6 Informatividade

O critério da informatividade diz respeito a intenção que o texto


possui em ser lido e compreendido por seu receptor. Para Marcuschi
(2008, p.132), o essencial desse princípio “é postular que num tex-
to deve ser possível distinguir entre o que ele quer transmitir, o que
é possível extrair dele, e o que não é pretendido”.
De acordo com Koch e Travaglia (2015, p. 86) é a informatividade,
portanto:

que vai determinar a seleção e o arranjo das alternati-


vas de distribuição das informações no texto, de modo
que o receptor possa calcular-lhe o sentido com maior
ou menor facilidade, dependendo da intenção do pro-
dutor de construir um texto mais ou menos hermético,

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

mais ou menos polissêmico, o que está, evidentemen-


te, na dependência da situação comunicativa e do tipo
de texto a ser produzido.

Cabe ainda destacar que de acordo com Koch e Travaglia (2015),


um texto será tanto menos informativo, quanto mais previsível for a
informação por ele trazida. Dessa forma, Koch e Travaglia (2015), si-
tuam os seguintes exemplos que fazem referência a informatividade.
10. O oceano é água.
11. O oceano é água. Mas ele se compõe, na verdade, de uma solução
de gases e sais.
12. O oceano não é água. Na verdade, ele é composto de uma solução
de gases e sais.
Diante dos exemplos, podemos afirmar que no exemplo (10), te-
mos uma informação previsível com baixo grau de informatividade.
Isso se confirma, à medida que, a informação presente na sentença
é óbvia para todo e qualquer leitor. “Na sentença não fica claro ne-
nhum propósito comunicativo do produtor do texto: o oceano não se-
ria oceano se não fosse constituído de água. Tal informação é tão pre-
visível que o texto chega a parecer desviante” (KOCH, TRAVAGLIA,
2015, p.86). Já o exemplo (11), apresenta-se um grau de informativade
maior, tendo em vista que a informação contida nela não é tão previ-
sível. Para Koch e Travaglia (2015, p.87), ao declarar que “na verdade,
o aceano é constituído de uma solução de gases e sais, revaloriza-se
o evento comunicativo, fazendo-o passar de um grau baixíssimo a um
grau mais alto de informatividade”. E por último, no exemplo (12), te-
mos um grau de informatividade ainda maior que os demais exemplos.
Em vista disso, à primeira vista, a sentença pode parecer incoe-
rente por exigir que o receptor acione um grande esforço de decodifi-
cação. No entanto, Koch e Travaglia (2015, p. 87), destacam que

Inicialmente o texto causaria estranheza a qualquer


leitor, por conter o grau máximo de informatividade,

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

grau que vai ser “rebaixado” quando se prossegue a lei-


tura. Tanto o início “o oceano é água”, como o início “o
oceano não é água” são informacionalmente desesta-
bilizadores, um por ser excessivamente óbvio e o ou-
tro, por ser excessivamente informativo. A estabiliza-
ção vai ocorrer na sequência do texto, ou por valoração
ou por “rebaixamento” do grau de informação.

É importante ainda ressaltar que o grau máximo de informati-


vidade é muito comum na literatura e na linguagem metafórica, con-
forme situa Koch e Travaglia (2015). Além disso, se faz muito presente
em textos poéticos, textos publicitários, e ainda, manchetes jornalísti-
cas, por exemplo. Portanto, podemos afirmar que é a informatividade
é que “vai determinar a seleção e o arranjo das alternativas de distri-
buição de informação no texto, de modo que o receptor possa calcu-
lar-lhe o sentido com maior ou menor facilidade” (KOCH, TRAVAGLIA,
2015, p.88).
Por fim, é importante mencionar que, a informação em um texto
não deve se apresentar excessivamente, de forma que possa desmo-
tivar o leitor, ou permitir que ele não a compreenda, tendo em vista
que ela é essencialmente necessária e responsável por mostrar o que
o texto pretende transmitir.

3.7 Intertextualidade

A intertextualidade permite a ligação de um texto a outro, exis-


tindo assim comunicação entre eles. Dessa forma, podemos confirmar
a ideia de que não há um texto puro, de sentido original, ou seja, todo
texto traz consigo vestígios de outros discursos já existentes em outros
textos antes dele.
Para Koch e Travaglia (2015), a intertextualidade pode ser tanto
de forma quanto de conteúdo. A intertextualidade de forma, segundo
Koch (2020), ocorre quando o autor de um texto imita ou parodia, tendo
em vista efeitos específicos, estilos, registros ou variedades de língua.
A exemplo disso, temos “o caso de textos que reproduzem a linguagem

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

bíblica, a de determinado escritor ou de um dado segmento da socie-


dade” (KOCH, 2020, p.62). Já a intertextualidade de conteúdo, ocorre
quando textos de uma mesma época, de uma mesma área do conheci-
mento, de uma mesma cultura, dialogam, necessariamente, uns com
os outros, podendo ela ocorrer de forma explícita ou implícita.
A intertextualidade explicita acontece quando o texto possui in-
dicações do texto primeiro, conforme destaca Marcuschi (2008). Temos
esse tipo de intertextualidade em citações, discursos diretos, referên-
cias documentadas com a fonte, resumos, resenhas.... Podemos confir-
mar tal afirmativa, através dos exemplos citados por Koch e Travaglia
(2015, p.94)
13. Segundo Beaugrande & Dressler (1981), “ a coerência diz respei-
to ao modo como os elementos subjacentes à superfície textual
são entre si mutuamente acessíveis e relevantes, entrando numa
configuração veiculadora de sentidos”.
14. Concordamos com Charolles (1983), quando afirma ser a coerên-
cia um princípio de interpretabilidade do discurso.
Já, no caso da intertextualidade implícita, conforme destaca
Koch e Travaglia (2015, p.94), “não se tem indicações da fonte, de modo
que o receptor deverá ter os conhecimentos necessários para recuperá-
-la; do contrário não será capaz de captar a significação implícita que o
produtor pretende passar”.

Não havendo indicação da fonte do texto original,


caberá ao receptor, através de seus conhecimentos
de mundo, não só descobri-la como detectar a intenção
do produtor do texto ao retomar o que foi dito por ou-
trem. São comuns, por exemplo, textos que imitam
a linguagem da Bíblia. O leitor desses textos que não
conheça a Bíblia não chegará, evidentemente, a captar
todas as significações pretendidas pelo autor (KOCH;
TRAVAGLIA, 2015, p. 95).

55
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Diante disso, observemos o exemplo citado por Koch e Travaglia


(2015) em que encontramos um caso de intertextualidade implícita.
15. É verdade que o presidenciável X tem um discurso interessante,
como afirmam muitos analistas políticos. No entanto, se exami-
narmos mais a fundo seus pronunciamentos, verificaremos que
ele não tem um projeto consistente de governo.
Nota-se que nesse enunciado, não é possível compreender
a quem ele se refere, pois não há uma citação expressa. Dessa for-
ma, caberá ao interlocutor construir o sentido do texto e reconhecer
a sua fonte.
Por fim, é importante ainda destacar que Marcuschi (2008), an-
corado na perspectiva de Koch (2020), considera a intertextualidade
uma “condição de existência do próprio discurso, podendo ser equi-
valente a noção de interdiscursividade”. Ou seja, “um discurso remete
a outro discurso e tudo se dá como se o que se tem a dizer trouxesse
pelo menos em parte um já dito” (MARCUSCHI, 2008, p.131).

Considerações finais

As reflexões abordadas neste artigo permitiram verificar que com


a evolução da Linguística Textual foi possível começar a tratar dos pro-
cessos e regularidades gerais e específicos (as) que constitui, compre-
ende e descreve o fenômeno texto. Ainda, ficou evidente a necessida-
de do estudo dos mecanismos textuais, para que dessa forma, possam
ser produzidos cada vez mais textos coesos e coerentes.
Além disso, foi possível compreender que um texto é dotado
de fatores de textualização, e que para que ela ocorra de forma coesa
e coerente, faz-se necessário, primeiramente, ser observada de forma
significativa.
Por fim, percebemos que a textualidade possibilita que a natu-
reza textual do texto seja repensada e distinguida de um amontoado
de frases soltas e sem sentido em suas unidades. E que além disso,

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

ela ainda permite, através de seus aspectos textuais, que uma produção
textual apresente forma e sua função comunicativa seja determinada.

Referências

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ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: Outra escola possível. São Paulo:
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BEAUGRANDE, Robert de; DRESSLER, Wolfgang. Introduction to text
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textualidade. In: FÁVERO, Leonor Lopes; PASCHOAL, M. S. Z. Linguística
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FLORENCIO, Ana Maria Gama. Análise do discurso: Fundamentos e
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In: ORLANDI, Eni P.; LAGAZZI-RODRIGUES, Suzy. Introdução às ciências
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textual. 18. ed.; 5ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2015.
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São Paulo: Contexto, 2020.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São
Paulo: Contexto, 2014

57
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender


os sentidos do texto. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2008.
LEFFA, Vilson J. Aspectos de leitura. Porto Alegre: Sagra, DC Luzzato, 1996.
MARCUSCHI, Luís Antônio. Linguística do texto: o que é e como se faz?
1.ed. São Paulo: Parábola, 2012.
MARCUSCHI, Luís Antônio. Produção textual, análise de gêneros e
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ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: Princípios e Procedimentos. Campinas,
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ORLANDI, Eni P. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico.
Campinas, Pontes editores, 2007.
SANTOS, Maria Francisca Oliveira. Os saberes construídos no processo de
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WEINRICH, Harold. Le temps. Paris, Le Seuil, 1973.

58
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-3

POLIFONIA COMO RECURSO DE ARGUMENTAÇÃO


NAS PRODUÇÕES TEXTUAIS DO ENSINO MÉDIO

Eline Eduarda Samuel Barros1


Mariana Aparecida de Oliveira Ribeiro2

Introdução

O presente capítulo parte da ideia de mostrar a polifonia de vo-


zes existentes em uma produção do Ensino Médio, especificamente
da necessidade de reconhecer a figura do aluno como um sujeito que é
perpassado por outras vozes. Ducrot (1987) afirma que um enunciado
faz ouvir mais de uma voz, por isso destaca que o uso da linguagem
é feito para convencer o interlocutor.
A teoria da polifonia de vozes de Ducrot (1987) parte da não acei-
tação da unicidade do sujeito falante, por isso aborda sobre as marcas
linguísticas presentes em enunciados que demostram mais de uma
voz argumentativa, na qual as vozes formam discursos que trazem
de forma explícita o papel de cada enunciador, sem que uma voz so-
breponha à outra.

1 Discente do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGLB) – Universidade Federal do


Maranhão (UFMA). E-mail: eline.barros@discente.ufma.br
2 Docente do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGLB) – Universidade Federal do
Maranhão (UFMA). E-mail: ribeiro.mariana@ufma.br

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

O interesse por esta temática surgiu a partir da disciplina de mes-


trado chamada Discurso e Subjetividade, na qual a docente da disci-
plina reservou uma aula para discutir sobre o texto de Ducrot (1987)
O dizer o dito. A partir dessa discussão e dos textos complementares,
surgiu o interesse de estudar e analisar mais essa temática. Além dis-
so, surgiu da ligação que a temática tem como o projeto de pesquisa
de Pós-graduação iniciado em 2021 no Programa de Pós-Graduação
em Letras de Bacabal–PPGLB. O projeto tem como objetivo analisar
a reescrita dos alunos do Ensino Médio, tendo como objeto de análise
as produções textuais desses alunos. Tem como foco o processo da es-
crita baseado nas etapas que Calkins (1992) propõe: ensaio, esboço,
revisão e edição, dando enfoque à importância da reescrita durante
o processo de escrita. As etapas funcionam como um caminho que deve
ser percorrido para se obter um texto final. Portanto, o importante
do processo da escrita é verificar como uma produção textual reescrita
pode fazer com que o texto final apresente melhorias qualitativas.
Pretende-se fazer uma comparação longitudinal, no que diz res-
peito ao processo de escrita das produções do mesmo aluno, toman-
do como processo de escrita as mudanças que foram sendo realizadas
de uma série para outra, ou seja, do 1º para o 2º ano do ensino médio,
levando em consideração também que de uma série para outra o aluno
pode apresentar mudanças qualitativas no modo de produzir seu texto.
O texto será analisado para além da sua materialidade, vendo o autor/
aluno como sujeito que se coloca dentro do texto a partir do momento
em que de uma reescrita para outra, na produção do seu texto, ele é
capaz de refletir sobre o que precisa ser melhorado.
Apesar de a temática abordada neste trabalho não ter a aná-
lise da reescrita, têm-se as produções textuais dos alunos e a forma
como eles se colocam dentro do texto, com o enfoque sempre voltado
para um aluno que tem voz e que aparece como responsável por aqui-
lo que diz. Dessa forma, pode-se concluir que os estudos de Ducrot
são importantes referências, dando possibilidade para uma análise
que mostre como o aluno coloca diversas vozes no seu texto.

60
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Como metodologia para esta pesquisa, tem-se a pesquisa


de campo qualitativa e descritiva, em que serão utilizadas as produ-
ções textuais de alunos do 1º ano do Ensino Médio de uma Escola
Estadual do Município de Bacabal. A coleta foi realizada através da ob-
servação de aulas on-line na plataforma do Google Meet da disciplina
de Produção Textual.
Partindo da discussão realizada em sala de aula e de análises
preliminares das produções textuais dos alunos, surgiu a seguinte per-
gunta norteadora: Como algumas marcas linguísticas indicam uma po-
lifonia de vozes em produções textuais do 1º ano do Ensino Médio?
Para responder tal questão, pretende-se: 1) analisar quais mar-
cas linguísticas aparecem nas produções do 1º ano do Ensino Médio; 2)
identificar como o aluno mostra na sua produção textual a voz do ou-
tro; e 3) verificar os enunciadores que estão presentes nas produções
textuais.
Esta pesquisa se justifica pela importância de uma análise
mais sucinta nas produções do Ensino Médio, de observar a presen-
ça do enunciador no texto argumentativo. Segundo Oliveira (2004),
nos estudos da Semântica Argumentativa, a presença de um enunciado
auxilia a continuidade de um discurso. Com isso, as sentenças que são
colocadas pelo enunciador dizem respeito às características da comu-
nicação, possibilitando a compreensão do texto por causa da constru-
ção argumentativa, que auxilia na compreensão do interlocutor. Dessa
maneira, segundo a autora, é a organização dos argumentos, por meio
dos enunciadores, que resulta na coerência do texto e alcança o obje-
tivo de convencer o leitor da opinião do Locutor.

1 Polifonia em Oswald Ducrot

A Teoria Polifônica da Enunciação foi desenvolvida pelo fran-


cês Oswald Ducrot (1987). Essa teoria fala sobre as marcas linguísticas
presentes em enunciados que demonstram mais de uma voz argumen-
tativa, na qual as vozes formam discursos que trazem de forma explíci-
ta o papel de cada fala, sem que uma voz sobreponha à outra.

61
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Em seu livro Dizer e o Dito, Ducrot (1987) retoma o conceito


de Bakhtin e o opera através do nível linguístico para mostrar, segundo
a semântica da enunciação, como em um enunciado isolado é possível
encontrar mais de uma voz. Por isso, seu objetivo é contestar a tese
da unicidade do sujeito falante. Contra essa tese, ele apresenta a teoria
polifônica.
No que diz respeito ao conceito de enunciação, Ducrot (1987)
considera enunciado a materialização linguística do resultado
do enunciador, ou seja, a linguagem final usada pelo enunciador para
expor sua opinião em uma frase levando em consideração o contexto
linguístico.
Para comprovar a presença de várias vozes em um único enuncia-
do, Ducrot (1987) faz a distinção entre sujeito falante, locutor e enun-
ciador. O sujeito falante é aquele que fala através das suas experiências
no mundo real, é um sujeito empírico. O locutor é apresentado como
responsável pelo enunciado em uma discussão fictícia. O enunciador
é um ser que se expressa por meio da enunciação, sem que lhe seja
atribuído palavras precisas. Em um texto discursivo, o enunciador cor-
responde ao posicionamento de uma opinião, não é como o locutor
que é responsável pelo que diz, mas surge como uma opinião.
Ducrot (1987) fala também sobre os atos ilocucionários, eles
são produzidos dentro de uma perspectiva interativa, ou seja, criam
direcionamentos entre locutor e alocutário (a quem é o locutor se di-
rige) no enunciado. Esses atos ilocutórios são compreendidos como
atos jurídicos, pois cria uma espécie de obrigação social, uma regra
de produção. Por exemplo, ao se fazer uma pergunta existe uma obri-
gação devolutiva por meio da resposta, por isso que a teoria polifô-
nica da enunciação possui uma característica interativa. É relevante
compreender que os enunciadores não são autores de atos ilocutórios,
ou seja, são somente vozes e pontos de vista organizados por um locu-
tor a fim de se opor ou identificar-se com eles.
Os enunciados e a relação de sentido das vozes inseridas neles
é o ponto central da teoria polifônica. O sentido que os enunciados

62
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

carregam é capaz de produzir e manter relação direta com as possi-


bilidades de continuidade e encadeamento dentro de um discurso.
Ao tentar compreender o que um enunciado diz é preciso olhar as vo-
zes dos discursos-outrem inseridos e para onde apontam.

[...] uma entidade lingüística (um enunciado, por exem-


plo) não poderá se definir independentemente de seu
emprego num diálogo. Dar sua significação será indi-
car qual ato está sendo realizado quando o utilizamos
para nos dirigirmos a um interlocutor. E o ato lingüís-
tico fundamental será o de impor ao interlocutor tal ou
tal tipo de resposta, impedindo simultaneamente tal ou
tal outro. O enunciado se definirá então pelas possibi-
lidades de resposta que abre e por aquelas que fecha.
É dizer que sua realidade não se localiza nele, mas fora
dele – nos outros enunciados cujo uso ele oferece
ou proíbe a um eventual interlocutor. (DUCROT, 1987,
p.13).

Pela perspectiva de Brandão (2012), Ducrot analisa a autenti-


cidade dos enunciadores por meio de dois pressupostos, da negação
e da ironia, explicando como, em um enunciado, pode aparecer mais
de uma voz. Por exemplo: a) Pedro parou de estudar. Nessa sentença,
o posto é uma frase que afirma que Pedro parou de estudar, no entanto,
uma voz pressuposta apresenta a ideia de que Pedro estudava antes.
Em relação à autenticidade do enunciador no caso da negação, tem-
-se como exemplo: b) Não seja mal-educado. A frase destacada como
exemplo alerta alguém por um ato negativo, ou seja, o código social
de boa convivência.
Nesse enunciado há uma voz implícita falando da expectativa
do código seja bem-educado. Ao aconselhar o interlocutor por algo
negativo, a enunciação traz uma voz implícita que ordena que sua ati-
tude corresponda ao código social de boa convivência. No que diz res-
peito à ironia: c) Bonito isso que você fez. Nessa enunciação, nota-se
que a fala em que o locutor se apoia, não coincide com a do enunciador

63
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

que está inserida no enunciado. Sendo assim, o que parece ser um elo-
gio do locutor é uma ironia para com a atitude do interlocutor. Neste
caso, o locutor usa a ironia para fazer uma crítica a algo que, em sua
opinião, está incoerente.
No que diz respeito a Semântica Argumentativa, pode-se afir-
mar que ela tem laço com o estudo da linguagem feito no Curso
de Linguística Geral de Saussure, mas nesse estudo Saussure trabalha
com a língua e Ducrot (1987) utiliza a língua para mostrar seus níveis
de emprego e valores que ela possui como, por exemplo: a relação en-
tre as entidades lexicais, enunciados, discursos, locutor e alocutário.
A Semântica Argumentativa prevê que as palavras apresentam,
na língua, significações que podem permitir o desenvolvimento de ou-
tros enunciados ou barrar o surgimento destes. Com a continuação
de novos enunciados ocorrendo, a existência de sentido passa a existir,
isso acontece a partir das relações entre as palavras que são utilizadas.
Conforme o pensamento de Fiorin e Savioli (2006), argumentar
não é construir uma prova de veracidade, mas fazer uso de um recurso
de natureza linguística com o propósito de levar o leitor ou interlo-
cutor a aceitar a opinião de quem faz uso dela, ou seja, saber fazer
uso dos argumentos é imprescindível para que os fundamentos se sus-
tentem para alcançar o objetivo final do discurso, que é o convenci-
mento do leitor ou interlocutor.

2 Metodologia

Como metodologia, há uma pesquisa de campo de cunho quali-


tativo e descritivo, uma vez que a coleta dos dados se realizou em uma
Escola Estadual do Município de Bacabal–MA, onde foi feito o registro
das aulas de produção textual do 1º ano do Ensino Médio nos diários
de campo, no período de março até junho de 2021. Essas análises serão
feitas por meio das produções textuais dos alunos de forma descritiva.
Em relação ao corpus da pesquisa, foram analisadas dez redações
de alunos do 1º ano do Ensino Médio, cuja temática proposta é que

64
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

os alunos falem sobre o Ensino a Distância. As redações foram envia-


das para a professora por meio do Classrom em formato Pdf e Word.
Sobre a coleta de dados, primeiramente foram enumeradas
as redações, em seguida foram identificadas as temáticas desenvolvi-
das por cada aluno e as marcas linguísticas que indicassem a presen-
ça de vozes nos textos. Feita essa análise, foi investigada a presença
de enunciadores diversos como recurso argumentativo.

3 Análise dos dados

Feitas as análises das produções textuais, notou-se que algumas


opiniões coincidiram no momento da construção das argumentações
sobre o tema. Como é algo relevante para a pesquisa, essas opiniões
serão mostradas a seguir (a abreviação P indica produções):

Quadro 01 – opinião dos alunos sobre a temática

Isolamento social como fator de mudança no formato das aulas (P1, 4, 5 e 9)

Escola com dificuldade de adaptação ao novo modelo de ensino (P2 e P3)

Os alunos com dificuldade para se adaptarem ao ensino a distância (P6 e P8)

Ensino a distância como sendo ineficaz (P9 e P10)

Ensino a distância como sendo eficaz (P7)


Fonte: o autor.

As redações que apresentaram como temática o “Isolamento


social como fator de mudança no formato das aulas” mostraram isso
logo na introdução, tomando como ponto de partida o posicionamen-
to que iriam adotar. O foco era mostrar logo no início o que fez com
que o novo formato de ensino surgisse nas escolas. Alguns fragmentos
comprovam isso: “O isolamento social imposto pelo combate ao novo
coronavírus nos colocaram contra a parede, fazendo passarmos pela
mudança de aulas presenciais para aulas à distância ou aulas remotas”.
(P1); “Durante a pandemia de COVID-19 que assolou não só o Brasil

65
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

como o mundo inteiro, as escolas precisaram fechar, para evitar que os


alunos se contaminarem e levassem esse vírus para dentro de suas ca-
sas, por isso a importância do isolamento social.” (P9) “Atualmente es-
tamos enfrentando por todo o mundo uma época difícil em meio a pan-
demia do covid-19 por esse motivo todas as redes públicas e privadas
tiveram que priorizar a saúde, preferindo o distanciamento e o isola-
mento domiciliar, tivemos então que suspender as aulas presenciais
para continuar com o ensino remoto [...]” (P4); “O novo Coronavírus,
pandemia vivenciada pelo mundo inteiro em 2020, têm mudado o pa-
norama mundial, assim como as estruturas educacionais já existentes.
Nesse sentido, sabe-se que no Brasil, a maioria das instituições de edu-
cação presencial tiveram que migrar para o EAD”. (P5).
Nessas redações o que se observa é que os alunos optaram
por iniciá-las falando sobre a origem daquilo que fez o ensino a distân-
cia surgir com maior força, que foi justamente por causa da Covid-19,
um vírus que se espalhou mundialmente e que fez a rotina de muitos
países se alterar.
As redações sobre a “Escola com dificuldade de adaptação para
o novo modelo de ensino” tiveram como foco citar algumas dificul-
dades que impedem que o ensino a distância tenha eficácia com os
alunos, pois a escola não estava preparada para se adaptar a esse novo
ensino. Fragmentos que demonstram isso: “No começo, muitos pro-
fessores optaram por usar o Zoom, já que poucos tinham conhecimen-
to de aplicativos mais eficientes e mais intuitivos. O problema maior
do Zoom era o tempo de reunião (uma reunião durava cerca de 45 mi-
nutos) e sua timeline que era muito limitada (apenas cinco pessoas
apareciam na tela)”. (P2); “Quando as escolas se fecharam, os profes-
sores, a secretaria de educação precisou procurar meios para que os
alunos não ficassem tão prejudicados com isso, e foi aí que surgiram
as aulas remotas, que no começo foram bem difíceis, pois nem os pro-
fessores sabiam mexer nos aplicativos onlines” (P3).
Sobre a temática “Os alunos com dificuldade de se adapta-
rem ao ensino a distância”, há os seguintes fragmentos: “No ensino

66
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

EAD muitos estudantes não possuem acesso à internet, computado-


res ou celulares. No Brasil estima-se que seis milhões de estudantes
não têm acesso a internet banda larga ou 36/4 G em casa, e consequen-
temente não conseguem participar do ensino remoto. Cerca de 1,8
milhões de alunos da rede pública não têm acesso a computadores,
celulares ou tablets, e precisam contar com a distribuição de celula-
res ou tablets para se conectar”. (P6); “O EAD é bastante difícil, can-
sativo, apesar de aparentar ser simples, requer muito mais do aluno,
mas atenção, concentração e dedicação, muitos de nós estamos passa-
mos por muitas dificuldades e o EAD não ajuda nisso [...]” (P8).
Em relação ao posicionamento do aluno sobre o ensino a dis-
tância, das 10 redações somente uma fez toda sua redação pautada
na ideia de que o EAD é uma ótima opção e funciona bem, tal fragmen-
to comprova: “O ensino à distância é sem, dúvidas, uma forma eficaz
de ensinar em meio às dificuldades que temos de enfrentar nos dias
de hoje, assim como foi no ano de 1904, quando os cursos de datilogra-
fia eram ministrado por cartas e não presencialmente, pois não havia
as facilidades de locomoção que há hoje”. (P7).
Nas produções textuais 9 e 10, notou-se um maior posiciona-
mento em relação à temática “Ensino a distância como sendo eficaz”,
pois os alunos deixam em evidência que não concordam com o novo
formato de ensino e que ele não ajuda na aprendizagem do aluno.
Tais fragmentos exemplificam isso: “Dessa forma, é possível ver que,
embora estejamos sem opções neste momento de crise, é importante
desconsiderar estender o período de ensino a distância além do neces-
sário, pois este traz mais malefícios do que benefícios, considerando
o aprendizado e o bem psicológico dos alunos” (P9); “ O ensino remoto
não funciona, pois passar horas na frente de um computador ou de
um celular e se concentrar assim como se concentrava na escola é qua-
se que impossível quando se está em casa. Além de que, após o início
das aulas remotas, o volume de atividades e trabalhos aumentou mais

67
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

do que nas aulas presenciais.” (P10). No quadro 2, será mostrada a voz


dos enunciadores em relação as dez produções analisadas.

Quadro 02

E1 Voz que apresenta mudanças

E2 Voz do conhecimento compartilhado

E3 Voz da intertextualidade

E4 Voz da compreensão sobre o momento atual

E5 Voz que ratifica o papel do ensino a distância


Fonte: o autor.

Em relação a essas vozes destacas no quadro, notou-se que a


voz que apareceu com maior frequência nas produções foram a E2 e E3.
Esses enunciadores apareceram com maior frequência nas temáticas:
“Os alunos com dificuldade de se adaptarem ao ensino a distância” e
“Isolamento social como fator de mudança no formato das aulas”.
O enunciador 2, que corresponde a temática “Os alunos com di-
ficuldade de se adaptarem ao ensino a distância”, teve uma maior re-
corrência do uso do conhecimento compartilhado por se tratar de um
assunto vivenciado pelos alunos, nas produções foram poucos os que
buscaram algum embasamento para confirmar aquilo que eles acha-
vam sobre as dificuldades, sempre era enfatizado a falta de concentra-
ção, a dificuldade de ter um espaço adequado para assistir as aulas, isso
pode ser verificado no seguinte trecho: “A dificuldade de estabelecer
uma rotina própria para o estudo também se adiciona a lista de dificul-
dades, já que sem uma organização adequada, os estudantes não irão
conseguir conciliar o estudo e atividades escolares com o lazer, que é
essencial para manter um estado mental equilibrado” (P9).
Com esse trecho, é possível ver que o aluno generaliza o que
está discutindo quando diz que estudantes não irão conseguir conci-
liar o estudo e atividades escolar com o lazer sem uma organização

68
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

adequada. Ele traz um compartilhamento que é compartilhado pela


maioria dos alunos que estão estudando EAD. A dificuldade de concen-
tração, de separar um horário apropriado só para os estudos.
O segundo enunciador que mais apareceu nas redações foi o E3,
que está relacionado a temática “Isolamento social como fator de mu-
dança no formato das aulas”. Ao falarem sobre esse assunto, os alu-
nos conseguiram trazer citações para embasarem suas argumentações.
Verifica-se isso nestes trechos: “No ano de 2005, o ensino a distân-
cia foi regulamentado na Lei de Diretrizes da Educação Nacional pelo
Ministério da Educação. Desde então houve um grande crescimento
de pessoas que optam por esse módulo, podemos assim citar que um
dos motivos desse crescimento é o avanço das tecnologias e maior
acesso à internet” (P5) “Segundo o G1, dados do governo do Maranhão
apontam que 21% dos alunos de escolas estaduais, não vêm acompa-
nhando as aulas por dificuldades em seus aparelhos tecnológicos e até
mesmo nas suas redes de internet, aumentando o número de desisten-
tes dentro das escolas” (P4).
Nos dois trechos destacados, observa-se que os alunos fizeram
uma intertextualidade com um assunto que viram que se aproxima
do que eles estão falando. O primeiro resolveu trazer para sua produ-
ção a questão da Lei de Diretrizes da Educação Nacional, na tentativa
de provar para o seu interlocutor que o ensino a distância é legalizado.
O segundo utilizou um dado do G1 para explicitar que a partir desse
isolamento algumas mudanças ocorreram, dentre elas a necessidade
de um ensino remoto.
Sobre a produção textual na tipologia dissertativo-argumentati-
vo, vemos comumente os professores ensinando aos alunos a melhor
forma de estruturar o seu texto, até mesmo para garantir uma boa nota
no Enem, o mais indicado é a separação de um parágrafo para intro-
dução, no qual o aluno desenvolverá seu tema apresentando um posi-
cionamento, dois ou três para o desenvolvimento, momento em que
ele irá argumentar, fazer uma discussão sobre o tema, e um parágrafo
para conclusão do seu texto, em que nele o aluno irá finalizar o seu
texto propondo uma solução para o problema. Levando em considera-

69
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

ção isso, foi feita uma análise também sobre a estruturação do texto,
destacando em quais partes os enunciadores apareceram com maior
frequência.

Quadro 03 – Recorrência dos enunciadores nas partes do texto

INTRODUÇÃO DESENVOLVIMENTO CONCLUSÃO TOTAL

E1 0 2 2 4

E2 9 3 1 13

E3 3 7 0 10

E4 0 3 1 4

E5 4 8 0 12
Fonte: o autor.

Através do quadro, percebe-se que o enunciador com maior re-


corrência apareceu no E2 e durante a introdução. Como na introdução
o aluno precisa explicar ao locutor sobre o que ele irá discutir, ele aca-
ba utilizando o conhecimento compartilhado, tirando do seu conhe-
cimento empírico o embasamento para a introdução, visto que não
foi apresentado a ele nenhum tipo de proposta antes, a professora
apenas disse o tema que eles deveriam desenvolver.
No desenvolvimento, o enunciador que mais se destacou foi o
E5 e o E3, no qual os alunos utilizaram o conceito do assunto (EAD)
mais a intertextualidade, o que é comum durante a produção da ti-
pologia dissertativo-argumentativo, pois eles veem uma necessidade
de trazer para o texto algumas citações que comprovem o que está sen-
do discutido.
Por fim, na conclusão o que predomina é o enunciador E1, aquele
que apresenta mudanças em relação ao que foi discutido no desen-
volvimento. Apesar de essa frequência ser baixa, um total de apenas
2 enunciadores, verifica-se uma presença de modificação da situação
atual. Algo relevante nesta pesquisa é que poucas redações de fato

70
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

apresentaram uma proposta de intervenção no final, alguns acabaram


não concluindo e ficaram apenas entre uma coisa e outra.
Nesta análise o que foi possível perceber, foi a presença de vários
enunciadores dentro das produções textuais dos alunos do 1º ano do
Ensino Médio, apareceram diversas vozes que deram sentido e estru-
tura ao texto, sendo possível ter a introdução, o desenvolvimento e a
conclusão. Aqui não foi levado em consideração se os alunos obedece-
ram às normas gramáticas ou até que ponto conseguiram fazer o que
foi proposto pela professora. O foco principal foi observar a polifonia
de vozes e constatar que o aluno é perpassado por vários conhecimen-
tos que aparecem na sua produção de texto.

Considerações finais

No início do trabalho foi proposto a seguinte pergunta de pesqui-


sa: Como algumas marcas linguísticas indicam uma polifonia de vozes
em produções textuais do 1º ano do Ensino Médio? Por meio das aná-
lises feitas no corpus do trabalho, pode-se afirmar que algumas mar-
cas linguísticas indicam uma polifonia de vozes por meio dos diversos
enunciadores que aparecem na redação.
Notou-se que nas dez produções textuais os alunos consegui-
ram desenvolver várias temáticas, isso foi possível perceber através
da identificação das vozes, por meio das marcas linguísticas. Mesmo
o tema sendo igual, algumas opiniões estando no mesmo nível, cada
aluno conseguiu apresentar uma forma diferente do EAD, como visto
no quadro 1.
Nas análises, o jogo polifônico foi utilizado de modo a organizar
a melhor estratégia argumentativa. Para Bezerra, Dionizio e Machado
(2010), o texto com a presença da polifonia é como um coro de vozes,
do qual o autor é regente e dirige essas vozes que ele cria e recria, po-
rém elas se manifestam com certa autonomia. É válido afirmar que tais
vozes, apresentadas no interior das redações, não retiraram a autoria
de quem as escreveu.

71
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Para a identificação das vozes que surgiram por meio das marcas
linguísticas, os estudos de Ducrot (1987) encaminham a identificá-las
por meio da materialização dos enunciados, ou seja, o sentido surgido
pela enunciação auxiliou na diferenciação de tais vozes conforme visto
no Quadro 2. A presença dessas vozes se encontra em todas as partes
constituintes dos textos, sendo que a E2 (enunciado 2) e a E5 (enuncia-
do 5) apareceram com maior frequência nas redações.

Referências

BEZERRA, M. A.; DIONIZIO, A. P.; MACHADO,A. R. (orgs). Gêneros Textuais


& ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
BRANDÃO, H. N. Introdução à análise do discurso. Campinas: Unicamp,
2012.
CALKINS, Lucy McCormick. A Arte de Ensinar a Escrever–O desenvolvimento
do discurso escrito. Trad. Deise Batista. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.
FIORIN, J. L.; SAVIOLI, F. P. Lições de texto: leitura e redação. 5. ed. São
Paulo: Ática, 2006.
OLIVEIRA, E. G. de. Argumentação: da Idade Média ao Século XX. Signum:
Estudos da Linguagem, v. 7, n. 2, p. 109-131, 2004. Disponível em: http://www.
uel.br/revistas/uel/index.php/signum/article/view/3916. Acesso em: 28 out.
2016.

72
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-4

ASSÉDIO SEXUAL NO AMBIENTE DIGITAL:


LUGARES DISCURSIVOS E CONTRADIÇÕES

Edilene Rodrigues Afonso (UFMA)1


Glória da Ressurreição Abreu França (UFMA)2
Mariana Jafet Cestari (CEFET-MG)3

Introdução

No presente trabalho, apresentaremos uma análise de dis-


cursos de indivíduos homens cis heterossexuais, professores de es-
colas do Rio de Janeiro e da Bahia, denunciados como assediadores
por mulheres jovens, especificamente alunas, em situações conside-
radas como assédio sexual, em ambiente digital. Analisamos de que
modo e quais sentidos de/sobre mulheres e de/sobre homens circulam
a partir desses discursos, coletados em diferentes espaços do ambiente

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras Bacabal na Universidade Federal


do Maranhão–UFMA; integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Discurso,
Interseccionalidade e Subjetivações (GEPEDIS/CNPq). E-mail: edilene.rodrigues@discente.
ufma.br
2 Professora adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão;
professora do programa de pós-graduação em Letras Bacabal na Universidade Federal do
Maranhão; coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Discurso, Interseccionalidade e
Subjetivações (GEPEDIS/CNPq). E-mail: gloria.franca@ufma.br
3 Professora do Departamento de Linguagem e Tecnologia do Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais. Integrante do GEPEDIS (UFMA/CNPq), do Mulheres em
Discurso (Unicamp/CNPq) e do GP Discurso, Tecnologia e Divulgação do Conhecimento
(CEFET/CNPq). E-mail: marianajcestaricefet@gmail.com

73
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

digital. Juridicamente, essas situações se configuram em assédio sexu-


al, de acordo com o Art. 216-A da Lei 10.224, de 15 de maio de 2001,
que o define como ato de “constranger alguém com o intuito de obter
vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua
condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exer-
cício de emprego, cargo ou função” (AGÊNCIA SENADO, 2021, s/p)4.
Esses sujeitos significados como homens heterossexuais por um efeito
da memória discursiva, ocupam, dentre outros, um lugar social e dis-
cursivo específico: o de professores. Assim, as relações de poder ins-
titucional de que participam os colocam em uma posição hierárquica
superior à das mulheres estudantes para quem direcionam seus dize-
res. Ainda considerando o lugar social de professor, justifica-se a per-
tinência e interesse do corpus, pois ele expressa que a violência contra
as mulheres do ponto de vista das práticas sócio-históricas perturba
o imaginário dominante em torno do que seria a postura apropria-
da para esse profissional. Desse modo, demonstra o entranhamento
da violência e suas contradições nas relações sociais, além do modo
como apoia-se nas relações de poder institucionais.
A perspectiva teórico-metodológica da Análise de Discurso
materialista desloca-nos de uma posição que tome como objeto in-
divíduos ou sujeitos empíricos, para analisar o sujeito do discurso,
determinado ideologicamente. Veremos como se dá no nosso corpus
a passagem entre o lugar social do sujeito (no espaço empírico) e o
lugar discursivo (no espaço discursivo) nos movimentos que inscre-
vem este último no imbricamento de diferentes posições-sujeito
(GRIGOLETTO, 2005)5. Nas práticas discursivas, a denúncia, categoria
trabalhada a partir de Payer (2006), participa dos processos de consti-

4 Não nos deteremos nos debates sobre as distinções entre assédio sexual e importunação sexual
do ponto de vista de legislação. Apesar disso, nossas análises apontam a relevância no caso
dos comentários de cunho sexual feitos por professores para suas alunas da relação hierár-
quica entre eles, característica do assédio sexual segundo o Código Penal.
5 Ressaltamos que, de acordo com Grigoletto (2005), não há anterioridade do lugar social em
relação ao lugar discursivo: “tanto o lugar discursivo é efeito do lugar social, quanto o lugar
social não é construído senão pela prática discursiva, ou seja, pelo efeito do lugar discur-
sivo. Isso significa dizer que ambos, lugar social e lugar discursivo, se constituem mutua-
mente, de forma complementar, e estão relacionados à ordem de constituição do discurso”
(GRIGOLETTO, 2005, p.6).

74
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

tuição do sujeito do discurso tanto do ponto de vista das jovens mu-


lheres que denunciam e que são vítimas do assédio quanto dos ho-
mens assediadores significados como perpetuadores do assédio sexual
(objeto discursivo da denúncia).
Nosso principal objetivo é analisar os discursos em circulação
nessas práticas de assédio sexual e como as memórias sustentam o que
está sendo dito, significam e constituem os lugares discursivos de as-
sediadores, de vítimas e de denunciantes, como sujeitos no/do discur-
so, efeito da evidência ideológica do sujeito como fonte do dizer. Como
compreendemos que a memória está na base de todo dizer na repetição
e no deslocamento dos sentidos, além de se relacionar com a enuncia-
ção na perspectiva de legitimar e/ou autorizar quem diz e o que diz,
recorremos à discussão desse conceito, usando como aporte teórico
as proposições de Pêcheux (1999 [1983]; 2014 [1975]), Orlandi (2008)
e Indursky (2011). Ao mobilizar a categoria de memória, pretendemos
entender o processo de movimentação e cristalização dos sentidos
que circulam nos discursos em questão: sentidos sobre mulher e fe-
minilidade, sobre homem e masculinidade, sobre relações de gênero,
violência e assédio.
Para o desenvolvimento deste trabalho, constituímos a par-
tir do ambiente digital, um corpus com três capturas de tela publi-
cadas na página Fm Exposed6 da rede social Twitter e no portal R77,
da Record TV, que trazem relatos de mulheres vítimas de assédio se-
xual por parte de professores. A partir daí, selecionamos 4 sequências
discursivas para serem analisadas. A escolha do Twitter deve-se ao fato
desta ser uma rede social de grande importância e visibilidade mun-
dial, sendo que o que é publicado ganha alcance mundial em uma ve-
locidade muito grande, inclusive o que é postado em algumas páginas
torna-se notícia em jornais online e da TV. O portal R7 também possui
uma grande visibilidade, pois pertence ao Grupo Record, que tem al-
cance por todo o país, por isso sua pertinência neste trabalho.
6 https://mobile.twitter.com/fmexposed2/status/1275935698105896969 Acesso em: 07 out.
2022.
7 https://noticias.r7.com/educacao/voce-e-uma-tentacao-adolescentes-acusam-professor-
-de-assedio-05012017 Acesso em: 07 out. 2022.

75
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

1 A memória discursiva do machismo no ambiente digital

Partimos da noção de que o sujeito que enuncia o faz a par-


tir de uma posição-sujeito, que está filiada a formações discursivas
que não sendo homogêneas, são atravessadas por dizeres produzi-
dos em outro lugar, e seus sentidos se deslocam, sendo reelaborados
e parafraseados. Segundo Pêcheux (1999 [1983]), é através da repeti-
ção de enunciados que se dá o funcionamento da memória discursiva,
e essa repetição forma uma regularidade, invocando os significados
por meio dos pré-construídos que se estabelecem nos enunciados.
Ainda de acordo com Pêcheux (1999 [1983], p. 52), a memória
representa a estabilização do discurso e a possibilidade da repetição.
Ele diz que “a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto
que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implíci-
tos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos
citados e relatados, discursos-transversos etc.) de que sua leitura ne-
cessita”. Então, pensando nas conversas privadas tornadas públicas
pelo Twitter e pelo portal R7, com enunciados com conotação sexu-
al, materializando uma situação de assédio sexual, vemos funcionar
uma memória machista, pelo funcionamento alusivo de implícitos
(pré-construídos) nos dizeres dos sujeitos homens ao se referirem
às mulheres e nos modos de dizer.
No entanto, Pêcheux afirma que esses implícitos, no caso,
os pré-construídos, não estão em um lugar sob formato de discur-
so estável, o que há é um efeito de série, produzido pela repetição,
criando a regularização, que é onde os implícitos residem. Assim,
os enunciados e discursos analisados neste artigo são já-ditos
em outro lugar, e determinados no processo de mobilização da me-
mória discursiva, responsável por (re)produzir os efeitos de sentidos
dos discursos aqui analisados.
Portanto, para Pêcheux (1999 [1983]), a função da memória é es-
tabilizar o discurso, porém, trata-se de uma estabilização bem frágil

76
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

em uma relação de forças sempre móvel, podendo ser rompida pelo


acontecimento discursivo. Veremos que, de algum modo, pela de-
núncia tornada possível pelo ambiente digital, há uma quebra nesse
ritual machista do assédio. Aproximando a reflexão teórica de nosso
corpus, pode-se afirmar que a memória discursiva sobre a mulher e as
relações de gênero está na base da significação e torna possível dizer
o que se diz sobre a mulher nos enunciados das sequências discursi-
vas. De modo análogo, a memória discursiva sobre homem o autoriza
a dizer o que diz às mulheres.
Quando pensamos em memória, logo vem à mente a história,
o que já aconteceu, e que está se repetindo agora, ou seja, pensa-
-se em sentidos repetidos. Indursky (2011) propõe que o processo
de movimentação ou cristalização dos sentidos ocorre pela repeti-
ção, ou seja, esses sentidos são cristalizados ou se movem dependen-
do da posição-sujeito ou da matriz de sentido a que ele se inscreve,
e para a compreensão desses sentidos, precisa-se mobilizar a memó-
ria. A autora justifica que “o sujeito, ao produzir seu discurso, o rea-
liza sob o regime da repetibilidade, mas o faz afetado pelo esqueci-
mento, na crença de ser a origem daquele saber” (INDURSKY, 2011,
p. 70). No nosso corpus, é pela repetição dos sentidos que os adjetivos
e expressões ditos pelos sujeitos nas conversas das capturas de tela
são atualizados em condições de produção determinadas, fazendo
funcionar uma rede de memórias desses enunciados.
Pêcheux (1999 [1983] p.56) afirma que a memória “é necessaria-
mente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos
e de retomadas, de conflitos de regularização. Um espaço de desdo-
bramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos”. É exatamente
nesse espaço que o discurso será construído, e nesse discurso, o “novo
dizer” já-dito pode ser enunciado e produzir sentidos outros, atrela-
dos sempre à memória, e isso pode-se perceber a partir das sequên-
cias discursivas em que o sujeito se refere à mulher usando adjetivos
como gostosa e delicia (deliciosa). Em síntese, encontramos nos dis-

77
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

cursos materializados nas conversas privadas que constituem o cor-


pus deste trabalho, já-ditos que funcionam a partir de uma memória
sócio-histórica, que produz sentidos de/sobre mulheres, de/sobre
homens, inclusive incidindo sobre o que se espera de sua enunciação
(o que e quando podem dizer e com qual efeito de legitimidade).

2 Lugares discursivos: assédio, denúncia e o papel do digital

Partindo da breve reflexão teórica sobre pré-construído e me-


mória discursiva em torno do machismo, convocamos para nossa dis-
cussão conceitos advindos de estudos de gênero-raça, trabalhados
por Gonzalez (1984), que faz uma abordagem relacionando o gêne-
ro à sua inscrição nas dinâmicas de hierarquização que se baseiam
na raça, isto é, trabalha na imbricação entre racismo e o sexismo.
Somamos à nossa reflexão a dimensão da interseccionalidade estuda-
da por França (2017) e os eixos de dominação de gênero e raça, estu-
dados por Cestari (2015), levando-nos a pensar os aspectos de gênero
e de raça de forma conjunta, na perspectiva discursiva. Trabalhamos
ainda as noções de objetificação e hipersexualização dos corpos femi-
ninos (CHAVES, 2013; 2015, CESTARI, 2015; 2017). Destacamos que há
alguns avanços sobre a dimensão da interseccionalidade no âmbito
da análise do discurso, trabalhados por exemplo pelo grupo Mulheres
em Discurso8 e pelo GEPEDIS9, através das produções de autoras como
França (2017), Cestari (2015; 2017) e Chaves (2013; 2015). Portanto,
esclarecemos que estamos nos filiando a um percurso já existente,
e que tem sido apoio para este texto.
Tomamos, então, como corpus para análise três capturas de tela
de conversas no inbox do Instagram e do Messenger de duas jovens,
que foram publicadas no Twitter e no portal R7, respectivamente.
O material foi produzido após uma situação em que dois professores
de duas escolas em 2017 e 2020 foram acusados de assediar alunas
8 http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/38437 Acesso em: 31 mar. 2022.
9 http://www.dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/5413046244954193 Acesso em: 31 mar. 2022.

78
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

em conversas, no inbox do Instagram e do Messenger, cujas telas fo-


ram capturadas e publicadas na internet através do Twitter e de portais
de notícias, onde estão circulando. Dessas capturas de tela, seleciona-
mos os textos que compõem o corpus, de onde tiramos as sequências
discursivas (doravante SD). Nossas escolhas foram motivadas pela re-
gularidade entre os enunciados, tomando o aspecto da memória como
repetição e regularização dos sentidos em torno dos sujeitos que enun-
ciam e o que enunciam. A seguir, temos as materialidades coletadas:

Figura 01–Captura de tela do Twitter

Fonte: Twitter10 Acesso em: 15 set. 2021.

10 https://mobile.twitter.com/fmexposed2/status/1275935698105896969 Acesso em: 15 set.


2021.

79
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Figura 02–Primeira captura de tela do portal R7.com

Fonte: R7.com11 Acesso em: 15 set. 2021.


Figura 03–Segunda captura de tela do portal R7

Fonte: R7.com12 Acesso em: 15 set. 2021.

A partir das formulações de Grigoletto (2005), que propõe que a


noção de lugar social faria parte do lugar empírico, em sua relação
com as formações ideológicas e as relações de poder institucionais, ini-
cialmente consideramos que os lugares sociais das pessoas envolvidas
são professores e alunas em situações consideradas de assédio sexual.

11 https://noticias.r7.com/educacao/voce-e-uma-tentacao-adolescentes-acusam-professor-
-de-assedio-05012017 Acesso em: 15 set. 2021
12 https://noticias.r7.com/educacao/voce-e-uma-tentacao-adolescentes-acusam-professor-
-de-assedio-05012017 Acesso em: 15 set. 2021

80
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

A determinação do lugar social impõe ao lugar discursivo sua inscri-


ção em determinados discursos, pelas relações que o sujeito estabele-
ce com a língua e com a história. Considera-se que o lugar discursivo
não é sinônimo de posição-sujeito, estando no entremeio do lugar so-
cial, da forma-sujeito e da posição-sujeito, o que permite que um lugar
discursivo possa abrigar, em seu interior, diferentes posições sujeito.
São as condições de produção dos enunciados em análise, portanto,
que estão na base do lugar discursivo, que só pode se constituir por-
que discursivamente a posição social do professor é hierarquicamente
superior à da aluna. Dito de outra forma, tomar o professor do lugar
discursivo do assediador, na dimensão das relações de poder institu-
cionais que a categoria proporciona pensar, permite-nos compreender
a prática discursiva em análise como assédio.
Do que precede, passamos à descrição mais detalhada das condi-
ções de produção das materialidades digitais aqui analisadas. Pêcheux
(1997 [1969], p. 74) afirma que um discurso é sempre pronunciado
a partir de condições de produção dadas, e chama o processo de produ-
ção do discurso de “o conjunto de mecanismos formais que produzem
um discurso de tipo dado em ‘circunstâncias’ dadas”, e essas circuns-
tâncias do discurso é que são as suas condições de produção. É por
meio das CPs que podemos compreender os sujeitos e a situação rela-
cionados à memória. Orlandi (2012), afirma que podemos considerar
as CPs no sentido estrito, ou seja, quando nos referimos ao contexto
imediato, e também no sentido amplo, isto é, quando nos referimos
ao contexto sócio-histórico e ideológico.
Esses discursos estão circulando nos mesmos espaços, ou seja,
tanto nas redes sociais quanto nos sites de notícias, embora não te-
nham acontecido no mesmo período. Se formulam em textos digitais
e circulam em espaços privados e também públicos de comunicação,
pois apesar de serem produzidos no inbox, de forma privada, a pu-
blicação das capturas de tela torna-os públicos, ao alcance de todos,
o que nos leva a discutir as tensões entre privado e público, pesso-
al e político, atualizadas no ambiente digital e que guardam relação
com a materialidade do discurso digital, conforme procuramos anali-

81
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

sar. França (2016) afirma que o digital tem um papel na discursiviza-


ção das enunciações e na circulação dos sentidos nesse espaço, e vê
o digital para além de um mero suporte para a formulação dos dizeres.
Ainda segundo esta autora, em parceria com Cestari e Modesto (2022),

as produções discursivas produzidas nesse ambiente


devem ser pensadas de um modo não-dualista em re-
lação ao ambiente impresso e ao mundo off-line; as-
sim, entendemos o digital não como um mero suporte
nem como um fora do mundo “real”, mas em uma re-
lação imbricada e intrínseca com as trocas do mun-
do off-line, além de considerarmos os diferentes ele-
mentos nativos da web (os IDs das contas, as imagens,
os botões de compartilhamento, as reações, o número
de curtidas e comentários, dentre outros) como produ-
tores dos sentidos que neles se projetam e partícipes
dos gestos de análise. (FRANÇA, CESTARI, MODESTO,
2022, no prelo).

Vemos o ambiente digital tendo um duplo e central papel na for-


mulação e na circulação desses discursos, por ser o ambiente em que
a situação de assédio se (re)produz e também por ser o espaço de circu-
lação massiva da denúncia desse assédio. Os relatos foram divulgados
anonimamente na internet, na página do Twitter @Fmexposed, como
denúncia de assédio sexual de professores contra alunas da escola par-
ticular Força Máxima, no Rio de Janeiro. Após a publicação no Twitter,
o Ministério Público tomou conhecimento do caso e passou a inves-
tigar os envolvidos, e foi publicado também no portal R7. A outra de-
núncia foi feita por jovens de Salvador (BA), que foram vítimas de um
professor de geografia por assédio sexual. O homem conversava com as
alunas através de uma caixa de mensagens privada, e após pouca con-
versa, começavam os assédios, segundo relatos das jovens.
O Twitter, uma das principais redes sociais utilizadas no Brasil
e no mundo, é uma rede social e um serviço de microblog, que permite
aos seus usuários, tanto enviar quanto receber atualizações pessoais

82
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

de outros usuários, por meio do website, SMS e softwares específicos


de gerenciamento. O portal R7 foi criado em 2009 e pertence ao Grupo
Record, e em 2017 tornou-se o quinto maior da América Latina. O por-
tal recebe apoio das estruturas da Record TV, da Record News e de suas
filiadas e afiliadas. O Twitter é usado por vários usuários também para
denunciar casos de violência e assédio sexual. Alguns, de forma anô-
nima, criam perfis para divulgar as conversas que acontecem no inbox
de outras redes sociais, como é o caso da captura de coletada do Twitter.
E assim como o Twitter é usado para denúncias, temos também o por-
tal R7, que já é um portal de notícias, principalmente de denúncias.
Na primeira captura de tela (figura 01) coletada do Twitter, é pos-
sível ver que a conversa surge após a postagem de uma foto no story
do Instagram da jovem, e os prints das conversas foram postados em ju-
nho de 2020 no Twitter da página @Fmexposed, com a legenda “Mais
um relato!! E esse eu tô muito assustado!! Precisamos encorajar as ví-
timas a irem na delegacia e a colocarem o que elas passaram na ouvi-
doria que o colégio criou para nos ajudar!”, acompanhado da hashtag
#FMSEMASSEDIO (Força Máxima Sem Assédio), com 659 curtidas,
152 comentários e 154 compartilhamentos/retweets. Na segunda e na
terceira captura de tela (figuras 02 e 03), coletadas do portal R7, a con-
versa tem início após a postagem do que parece ser uma foto no perfil
do Facebook da jovem, que não aparece nas conversas privadas, po-
rém é possível ver que ele pergunta se pode “curtir”, uma das opções
permitidas pelo aplicativo, conhecida também como “like”. Este caso
se tornou público em janeiro de 2017 após denúncias de alunas e pos-
tagens no Twitter, que foram deletadas da rede social por questões
de diretrizes do próprio Twitter, e publicada como notícia em vários
jornais online, incluindo a fonte que aqui utilizamos.
Nos parece pertinente retomar aqui a categoria de denúncia
trabalhada por Payer (2006), que a considera um gesto de linguagem
composto pelos seguintes elementos:

(a) um sujeito que enuncia , e que é detentor de um


saber desconhecido por outros; (b) um objeto de refe-

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

rência discursivo, que não era conhecido e passa a sê-


-lo após a denúncia; (c) um interlocutor representa-
do em uma posição de autoridade capaz de executar
uma ação subsequente à denúncia, em relação ao obje-
to discursivo em questão. (PAYER, 2006, p. 64).

A partir da autora, compreendemos que o sujeito que denuncia


é inicialmente constituído pelas jovens assediadas, em seguida, pela
página mantida por jovens estudantes no Twitter bem como pelo por-
tal de notícias, e, por fim, pelos próprios usuários das páginas que nos
comentários e compartilhamentos podem vir a se constituir como su-
jeitos que denunciam. O objeto de referência discursivo é o assédio
expresso na materialidade significante das capturas de conversas pri-
vadas, que passam a ser conhecidas pelo gesto da denúncia. O assédio
como objeto discursivo atribui aos sujeitos participantes da conver-
sa os sentidos de vítima e agressor (assediador). Por sua vez, a publi-
cização dos prints instaura, em posição de autoridade e com condi-
ções de tomar providências, um interlocutor difuso, significado como
“opinião pública” ou “sociedade civil” e ainda o Ministério Público,
com condições de agir no campo jurídico.
Essa descrição-interpretação que propomos destaca uma ampli-
ficação, por meio do digital, do gesto da denúncia e uma duplicação
do sujeito que denuncia quando se considera o gesto de reportar o dizer
do outro (das jovens) pelo portal e pelo perfil do Twitter, em uma posi-
ção intermediária que se vale dos mecanismos do digital (o print pelas
jovens, o envio que elas realizaram para essas mídias, a publicização
dessas capturas de tela, a utilização de hashtags13 de denúncias, tanto

13 Segundo Paveau (2017) hashtag pode ser definida como “segmento de linguagem precedido
do símbolo #, utilizado originalmente na rede Twitter, mas adaptado a outras plataformas,
como o Facebook. Essa associação faz com que se torne uma tag clicável, inserida manu-
almente no Twitter, que permite acessar um fio que reúne o conjunto dos enunciados que
contém a hashtag [...]. (PAVEAU, 2017, p. 196). Ainda de acordo com Paveau (2017), a hash-
tag enquanto tecnopalavra, faz parte da argumentação ciberativista como um ponto de an-
coragem do debate público sobre determinado tema. Nesse caso, consideramos o papel da
hashtag de sintetizadora de questões político-ideológicas, como em campanhas na internet
que denunciam o assédio e outras violências, como exemplo das hashtags #metoo, #timesup,
#MeuPrimeiroAssedio, #MeuAmigoSecreto, #Exposed, #FMSEMASSEDIO, dentre outras.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

anônimas, quanto das campanhas que denunciam o assédio na inter-


net). Parece-nos que estamos diante de um funcionamento do político
no ambiente digital que é característico dos modos de manifestação
de posições contrárias à violência de gênero na contemporaneidade.
Tendo sido feita uma descrição das condições de produção ma-
teriais dos discursos postos em circulação no ambiente digital, ques-
tionamos: que memórias sustentam as formulações presentes nas cap-
turas de tela que compõem o corpus discursivo? Quais os sentidos
de mulher e de homem são postos em circulação nesses discursos?
E quais os sentidos das relações de gênero, entre homens e mulheres?
Passemos a seguir à descrição e análise das 4 SDs selecionadas, para
pensar um recorte por nós delimitado em torno da objetificação e da
hipersexualização de mulheres nas redes.

3 Objetificação e hipersexualização de mulheres nas redes

Vejamos as 4 sequências discursivas selecionadas14:

SD1: “Gostosaaaaaa eu quero sem o short”


SD2: “Vc é uma delícia / Pena que não poderei te mostrar como
o mundo pode ser delicioso”
SD3: “Posso curtir? E chamar de delícia?"
SD4: “Quem tem conhecimento não posta foto feito puta no face”.

Levando em conta as condições de produção dos discursos, te-


mos aqui formulações produzidas como reações à postagem de fotos
de duas jovens, uma vestida de biquíni e a outra de shorts, podendo-se
aí perceber a circulação de uma memória de mulher que se encaixa
no padrão de “gostosa”, aquela que se veste com roupas curtas ou que
valorizam/dão a ver sua forma física, que tem um corpo encaixado
em um dos padrões de beleza impostos pela sociedade atual. Não o
padrão de beleza das modelos de passarela, que devem ser altas e ma-
14 A SD1 faz parte da primeira captura de tela, a SD2 faz parte da segunda, e as SDs 3 e 4 fazem
parte da terceira.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

gras, mas o padrão da mulher sarada que pratica atividade física e tem
curvas bonitas, bumbum empinado, coxas grossas, e que não pode
ser muito musculosa para não parecer masculina, jovem.
Nas SDs selecionadas, observamos regularidades linguísticas,
enunciativas e discursivas. Primeiramente, destacamos que o “não po-
derei” (SD2) e a pergunta “posso curtir?” (SD3), que o professor faz para
a aluna, pode ser entendido como uma pista dos limites do que pode
ou não pode ser dito do lugar social e discursivo de professor; limites
que são desrespeitados quando o lugar do macho/assediador se so-
brepõe ao imaginário que se tem do lugar do professor. Além disso,
a pergunta “posso curtir” parece apontar para sentidos alusivos a algo
a mais do que a simples curtida. Que autorização é solicitada, já que
se sabe que o botão de curtida é acessível a todos? Poderíamos parafra-
sear os enunciados: “como professor, ‘não poderia’ fazer isso, ‘não po-
deria’ dizer isso, ‘não poderia’ te assediar’, mas como macho eu ‘posso
curtir’, ‘posso chamar de delícia’”. Isso porque o machista pode dizer
e fazer o que quer como se o corpo da mulher estivesse ao seu dispôr
enquanto o professor de seu lugar social e discursivo, como educador,
não pode. Em uma aproximação entre dizer e fazer, o ato de dizer e de
curtir pelo funcionamento do digital têm a força performativa de pro-
duzir o ato do assédio, ao mesmo tempo em que expõe o funciona-
mento contraditório entre os diferentes lugares sociais e discursivos
que aí estão em jogo. Conforme desenvolve Grigoletto (2005), o lugar
social nem sempre coincide com o lugar discursivo. Em nosso corpus,
é nesse ponto em que o lugar social entra em contradição com o lugar
discursivo, este, o lugar do assediador (inscrito em uma posição sujeito
machista), toma a frente já que a simples pergunta e os sentidos alusi-
vos já se consumam como assédio, de modo que afirmar o “não poder”
ou o falso pedido de permissão apenas reforça um certo cinismo geral-
mente presente em discursos dessa ordem.
Em segundo lugar, apontamos a regularidade no emprego de ad-
jetivos que remetem ao paladar para se referirem à mulher, e nos ate-
mos aqui à projeção de sentidos sobre mulheres enquanto corpos as-
sediáveis porque, nesse imaginário, sempre disponíveis aos desejos

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

masculinos. Percebemos que há regularidades nas SDs 1, 2 e 3, nos sen-


tidos de delícia e gostosa que aparecem nos enunciados das SDs:
Pêcheux (2014 [1975]) diz que

De modo correlato, se se admite que as mesmas pa-


lavras, expressões e proposições mudam de sentido
ao passar de uma formação discursiva a uma outra,
é necessário também admitir que palavras, expressões
e proposições literalmente diferentes podem, no inte-
rior de uma formação discursiva dada, “ter o mesmo
sentido”, o que–se estamos bem compreendidos- re-
presenta, na verdade, a condição para que cada ele-
mento (palavra, expressão ou proposição) seja dotado
de sentido. (Pêcheux, 2014 [1975], p. 148).

Trazemos a contribuição de Pêcheux como uma ressalva para


que não limitemos nossas interpretações sobre o imaginário em tor-
no do ser homem e do ser mulher, buscando tomá-lo em sua plurali-
dade e em seus sentidos divididos nas práticas sociais e discursivas;
em condições de produção determinadas e levando em consideração
as relações hierárquicas entre os lugares discursivos. Logo, quando
analisamos os sentidos em torno de adjetivações como gostosa ou de-
lícia (deliciosa), conforme nos ensina a AD, não compreendemos que a
objetificação da mulher e o discurso machista são intrínsecos a essas
palavras.
França (2013) afirma que falar discursivamente sobre a mulher
implica tomá-la enquanto corpo/categoria com espessura material
e a existência de uma memória de sentidos já circulando sobre ela.
Percebemos uma retomada de sentidos nas 3 SDs em análise, inseridas
na mesma formação discursiva, em uma situação considerada de as-
sédio sexual, em que os sentidos de gostosa e de delícia estão relacio-
nados ao corpo seminu de mulheres esbeltas. E o que significa o uso
dessas expressões como assédio é o lugar social e discursivo, além
do modo como ocorre a prática discursiva: em inbox de redes sociais,
com comentários masculinos indo em direção à intimidade das jovens

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

quando seus posts eram públicos. O próprio gesto digital de comen-


tar no privado uma imagem que circulava como pública, textualiza-se
como um elogio que deriva para o assédio, nessa configuração de lu-
gares e posições tal qual se apresenta. Ou seja, ditos desde outros lu-
gares discursivos e de outros modos, os adjetivos gostosa e deliciosa
significam diferentemente, podendo, entre diversas possibilidades,
ser considerados como elogios pelas próprias mulheres. Recorrendo
a outro exemplo, temos em vista que mulheres podem reivindicar es-
sas palavras para falarem de si produzindo outros efeitos de sentido,
como aquele de mulher que vive sua sexualidade de forma livre apesar
dos discursos machistas (o que não apaga, neste caso, a memória dis-
cursiva machista na determinação do contradiscurso).
Dadas as configurações nas quais os discursos foram produzidos,
ao analisarmos as SDs 1, 2 e 3, passamos a perceber que os sentidos
de gostosa e delícia deslizam do lugar de adjetivos usados para se refe-
rir a alimentos e ao paladar para significar as mulheres como bonitas
e atraentes a partir da imagem do seu corpo. Essa alteração se dá pela
repetição dos dizeres que circulam socialmente, como propõe Indursky
(2011), de acordo com a posição-sujeito de quem enuncia e com a ma-
triz de sentido. Esses enunciados assentam-se na retomada de senti-
dos, ou seja, na repetição desses sentidos, a partir da memória social
desses dizeres. Indursky (2011, p. 71) diz que “se há repetição é porque
há retomada/regularização de sentidos que vão constituir uma memó-
ria que é social”. Põe-se aí o sentido de mulher como uma refeição
do homem, e esse discurso se sustenta na memória de como a mulher
é objetificada socialmente no imaginário machista, sendo vista como
objeto de satisfação sexual, que pode ser comida (sexualmente). Desse
modo, o sentido de homem que se projeta nas SDs 1, 2 e 3 é do que
come, o que se farta, o que goza, que se realiza etc., enquanto a mu-
lher é apenas a refeição, a que é comida, que não tem direito de ter
prazer autônomo, mas apenas de proporcioná-lo ao homem ou de sen-
ti-lo pela ação do homem. A partir desses dizeres do sujeito homem,
que se sustentam na memória do homem “comedor”, como é chamado
por outros homens aquele que transa com muitas mulheres, pergunta-

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

mos pelos modos como se discursiviza a figura masculina que precisa


dominar o corpo da mulher, tocá-lo e violá-lo com palavras e atos.
Faz-se ainda necessário mencionar que, em relação à sexuali-
zação, e em nossas condições de produção, as mulheres que são mais
assediadas são as mulheres negras15, consideradas exóticas, no imagi-
nário colonial estruturante da formação social brasileira, tendo seus
corpos hipersexualizados16. Análises discursivas revelam a significa-
ção da mulher negra como corpo disponível a servir o outro, seja pelo
sexo ou pelo trabalho, a exemplo do que propõe Cestari (2015), sobre
os efeitos de um discurso fundador de raça que determina essa signifi-
cação e silencia a história de escravização e de violência sexual contra
mulheres negras17.
Já em relação à SD4, percebemos que o que ali se formula se sus-
tenta em uma determinada memória discursiva que vai se desdobran-
do em torno dos sentidos da mulher, imbricados aos sentidos de espa-
ço privado (do lar) e público (da rua). Temos o sentido que corresponde
ao da mulher que tem conhecimento (e no Brasil temos, pela história
do acesso tardio das mulheres à educação, o funcionamento de uma
memória que associa a instrução feminina à educação para uma vida
doméstica). Essa mulher preza pela moral e os bons costumes, se
“veste bem”, segundo a sociedade, sem deixar o corpo muito à mos-
tra, sem decotes, e é sempre submissa ao homem: trata-se da mulher
santa, a mulher do lar. Se as roupas de mulheres atraem a atenção
masculina para seu corpo, então elas passam a ser significadas como
culpadas de toda violência sexual que vierem a sofrer, culpadas pelos
comentários machistas disfarçados de elogios. Cestari (2017, p. 172)

15 Pesquisas “A voz das Redes”, do Instituto Avon, e ”Violência contra a mulher: o jovem está
ligado?”, do Data Popular, mostram que as mulheres negras são 80% das vítimas. Disponível
em https://istoe.com.br/perseguicao-on-line/ Acesso em: 31 mar. 2022
16 Franca (2018) em sua tese de doutorado aponta a existência da circulação do imaginário da
mulata de modo muito contundente também na formação social francesa em discursos sobre
o Brasil, no ambiente digital.
17 Para Cestari (2015, p. 100), “a figura da mulata [a partir] de posições sujeito feministas de
mulheres negras é denunciada em seu papel de expressão da ideologia da mestiçagem e da
democracia racial, que hipersexualiza e mercantiliza os corpos e subjetividades de mulheres
negras”.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

afirma que o discurso moralista “inscreveu a santa e a puta na mesma


mulher, cada uma autorizada e chamada a aparecer em momentos dis-
tintos e de maneiras determinadas pela exterioridade machista”.
Em torno dos sentidos de mulher que não se veste bem, que não
tem conhecimento, mulher fácil, da puta, pode-se perceber uma divi-
são de classes (que é gendrada e racializada, conforme o pensamento
interseccional já citado anteriormente). A imagem da mulher de clas-
se baixa é relacionada desde o período colonial à promiscuidade,
à devassidão. Segundo Del Priore (1997), a imagem da mulher de elite
era o oposto dessa imagem de promiscuidade imposta à mulher pobre,
e isso acaba sendo reproduzido nos discursos contemporâneos pelo
efeito da memória discursiva e pela manutenção das desigualdades
de classe-raça-gênero18. Assim, se por um lado temos um imaginário
de mulher de elite, que é considerada como educada/instruída, criado
no regime patriarcal para ser um modelo de virtude e submissão e isso
inclui até a forma como se veste, parece circular uma imagem de mu-
lher de classe baixa que vive na periferia e que, por se vestir de forma
vulgar segundo os discursos dominantes, é considerada uma mulher
fácil, uma prostituta, que atrai a atenção dos homens com suas roupas
curtas e coladas ao corpo.
Mas o que é ser puta? A puta, também chamada de vadia, segun-
do Chaves (2013), pode ser tomada como uma evidência produzida,
em determinadas condições sócio-histórico-ideológicas, em discursos
que significam o sujeito-mulher pelo uso de seu corpo, ou seja, ves-
tuário, maquiagem, facilidade na permissiva sexual, e até na escolha
do número de parceiros. Ainda segundo esta autora, “a mulher é defi-
nida enquanto vadia a partir de um conjunto de evidências logicamen-
18 Ainda hoje a realidade das mulheres de classe baixa é bem distante do imaginário da mu-
lher do lar e com conhecimento. É, por exemplo, bastante comum encontrarmos mães sol-
teiras, principalmente negras, que trabalham como domésticas para prover o sustento dos
filhos, como mostra o relatório Por Trás do Silêncio – Experiências de Mulheres com a Violência
Urbana no Brasil, lançado pela Anistia Internacional (2009). O relatório mostra que as mu-
lheres moradoras de comunidades mais pobres batalham diariamente para sobreviver, educar
os filhos e ainda lutar por justiça na comunidade, ao mesmo tempo em que correm risco de
morrer, estando sujeitas à ditadura do crime organizado. Por sua realidade, a mulher pobre
precisa lutar o dobro para sobreviver à pobreza e à violência a qual é submetida todos os dias,
e é julgada e objetificada pela forma como se veste.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

te estabilizadas ligadas, sobretudo, ao corpo: o que o cobre, o quanto


se descobre, por onde ele anda, quem o toca, quantos já o tocaram”
(CHAVES, 2013, p. 07).
Desse modo, pela repetição dos sentidos, a expressão “vadia”,
assim como a expressão puta é atualizada nas condições de produção
dos enunciados e faz funcionar uma rede de memórias de forma simi-
lar ao que ocorre com os adjetivos gostosa e delícia. Percebemos os sen-
tidos que estão cristalizados para se referir à mulher, o sentido de mu-
lher “vadia”, mulher vulgar, que está à procura de sexo e por isso posta
fotos de biquíni, o oposto da mulher recatada e de princípios conser-
vadores. Mas não nos limitemos apenas ao que foi dito, pois é possível
também ver os não-ditos, naquilo que poderia ser formulado. Diante
disso questionamos: Mulher que posta foto de biquíni é puta? Quando
ela não posta, ela é o que? Puta não tem conhecimento? Puta não es-
tuda? Enfim, o que é ser mulher nesses discursos? Mulheres que usam
roupas que mostram o corpo, sendo putas ou não, merecem ser as-
sediadas/violentadas? Segundo Chaves (2015), há uma rede de enun-
ciados permitindo interpretações sobre o que é dito em outro lugar,
independentemente, como um processo de interpelação que envolve
o corpo e o feminino em sua circulação pelo espaço público, e que le-
gitima determinadas práticas de violência.
Temos, pois, uma movimentação em torno da objetificação
da mulher, como objeto de desejo e como objeto de assédio e de violên-
cia. Esta movimentação desdobra-se, ainda, percebe-se que a mulher,
ao contestar o assédio, torna-se objeto de insultos e violência verbal,
para em seguida constituir-se como denunciante em uma reação con-
tra o assédio. Do mesmo modo, percebe-se que, do lugar discursivo
do assediador, projeta-se uma posição-sujeito que se altera diante
de um discurso que significa a mulher desde uma posição que contesta
o assédio: uma vez repreendido por seu comportamento, seu discurso
muda, e o sujeito passa a ocupar o lugar de assediador-agressor, bus-
cando violentar a mulher verbalmente, chamando-a de puta. A esse
respeito, Fukuda(2021) afirma que quando os agressores são confron-
tados com uma postura afirmativa por parte da vítima, ou quando seus

91
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

comportamentos são julgados como inapropriados, mostram-se agres-


sivos na maioria das vezes. Além de mostrar uma certa agressividade
quando há contestação do assédio, o sujeito na posição de assediador
distorce o comportamento da mulher, tentando justificar seu com-
portamento ou culpabilizá-la, ao mesmo tempo em que a desqualifica
com uma exemplificação distorcida em relação à postura da mulher.
Poderíamos ainda questionar, parafraseando a SD4: “quem
tem conhecimento do quê?” Quem tem conhecimento a da realidade
de violência a que mulheres estamos expostas? Sendo assim, “a mu-
lher deve evitar se vestir como puta para não ser vítima/assediada”
torna-se uma paráfrase possível. A explicitação, pela análise, do não-
-dito que produz sentidos leva-nos à dupla moral sexual (conforme
denominação atribuída por feministas a este fenômeno): ao mesmo
tempo em que o sujeito enuncia esse discurso como efeito do machis-
mo, acaba sendo exposta uma contradição, pois, se a mulher não deve
postar foto de biquíni porque isso a torna puta, o homem dito moralis-
ta ou conservador (pelo que se espera de sua “boa conduta”) também
não deveria comentar ou “curtir” essas fotos.
Logo, é possível identificar nessas formulações, além do discur-
so machista (patriarcal), um discurso (falso) moralista, que susten-
ta a ideia de que quem tem conhecimento não posta foto de biquí-
ni na internet, logo, quem faz isso é porque não tem conhecimento,
não tem instrução, e o que resta para essas mulheres é ocupar o lugar
de puta e/ou o lugar de objeto de violência. Essa seria uma das inter-
pretações, uma das posições no sentido, e conhecimento nesse caso,
não seria necessariamente de estudo, de educação formal, mas poderia
ser conhecimento das regras impostas às mulheres acerca da maneira
de como se comportar, e conhecimento das punições aplicadas quando
se quebra essas regras.
A esse respeito, Chaves (2015), em suas análises sobre a Marcha
das Vadias, relembra que, para Nelson Rodrigues, a mulher deve
se comportar como uma dama na mesa e uma puta na cama, ou deve
ser dama na rua e puta na cama para o marido, diferenciando o que
se espera do comportamento público e privado da mulher. Segundo

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

a autora, nesse enunciado de Nelson Rodrigues, há um elemento


que se torna presente pela sua ausência, que é o espaço público. Há a
distinção público/privado, que se coloca seja sob a forma do par mesa/
cama, puta/dama, seja pela paráfrase possível, desde uma posição-su-
jeito machista, de que a mulher deve evitar se vestir e sair como vadia
quando não deseja as investidas masculinas.

Considerações finais

Neste breve trabalho, analisamos os efeitos de sentidos projeta-


dos em formulações que circulam no digital, percebendo o funciona-
mento da memória discursiva pela retomada de discursos machistas
e (falso)moralistas nas práticas de assédio sexual contra mulheres,
e nos contradiscursos em denúncias de assédio postas em circulação
por meio de páginas de uma rede social e de um portal de notícia. Nosso
gesto de leitura apontou regularidades e rupturas nas sequências dis-
cursivas analisadas, como os sentidos de ser mulher e de ser homem.
Fazendo uma reflexão interseccional, identificamos, a partir
das análises, um sentido de mulher em sua dupla versão (santa/puta;
esposa do lar/prostituta da rua) e trouxemos à baila os sentidos de mu-
lher da periferia que é considerada prostituta por usar roupas curtas
e decotadas. Esses sentidos são determinados pelo discurso machista,
que objetifica e sexualiza a figura feminina ao mesmo tempo em que
constitui o lugar discursivo do homem cis heterossexual, processo
que está na base de uma série de violências simbólicas, como a natu-
ralização da cultura do assédio sexual e das demais violências contra
a mulher. O homem que se identifica com essa posição-sujeito é, desse
modo, um dos responsáveis por essa violência, pois ele toma e é toma-
do pela evidência ideológica de que é o dono do corpo da mulher tanto
no espaço público quanto no espaço privado.
Além do discurso machista, também identificamos o discurso
(falso)moralista e elitista, que reforça a ideia de que mulheres que es-
tudam e que tem classe não se comportam de determinada forma, (re)
produzindo-se uma determinada memória da mulher que a posiciona

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

em dois lugares, a mulher instruída para o lar e para o casamento e a


mulher para o sexo, sendo a última a mais suscetível de ser assedia-
da, como uma forma do machismo selecionar quem pode/vai ser as-
sediada, e como um modo de punição pelo comportamento da mulher
que foge ao padrão do lar. Desde esse imaginário machista, a mulher
é posta em lugares (sociais e discursivos) distintos, ora é significada
enquanto objeto de assédio mascarado de elogio, ora como objeto
de assédio abertamente ofensivo, quando esta recusa o assédio e/ou
ocupa um lugar de sujeito denunciante. A violência se formula tan-
to no elogio não-consensual quanto nos discursos que culpabilizam
as mulheres vítimas de violências pelas roupas que vestem ou pelas fo-
tos que postam. Identificamos também os sentidos de ser homem, pro-
jetados nas formulações analisadas: o do “comedor”, o de “garanhão”,
que precisa assediar mulheres para se sentir no controle, como se isso
aumentasse sua masculinidade e virilidade, e ainda o de “agressor”,
o de quem se posiciona em lugar que julga aquela que pode ou não
pode ser assediada.
Consideramos que os sentidos de/sobre homem e de/sobre mu-
lher se produzem a partir do que se fala, mas também do como se fala
e de que lugar de autoridade e legitimidade enuncia-se. A mulher
considerada como objeto a ser comido pelo homem é objeto de sua
atribuição de valor também. E quando ela recusa esse lugar de objeto
e toma a palavra, fazendo-se sujeito, há uma escalada da violência.
Isso ocorre porque também funciona no discurso uma memória so-
bre quais são as circunstâncias em que as mulheres e homens podem
e devem dizer, além do modo como devem e podem dizer. Uma mulher
diante do dizer que uma posição machista significa como elogio deve
calar, agradecer ou realizar outro gesto em direção à submissão ao as-
sédio sexual. No entanto, vimos que, pelo digital, um gesto diferente
destes torna-se possível.
Conforme pontuamos em nossas análises, o mecanismo da de-
núncia politiza o privado ao tornar conhecido aquilo que não era por
parte de um determinado interlocutor em determinadas condições
de produção, fazendo da intimidade um assunto público. Em diálo-

94
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

go com Chaves (2015), propomos que a “mulher falada”, ao romper


o silêncio da violência, ao falar por ela mesma e ao contestar sentidos
a ela atribuídos por uma rede de memória, movimenta-se da posição
de objeto discursivo à de sujeito, sendo o lugar discursivo de denun-
ciante parte desse processo de subjetivação.
A noção de ambiente digital possibilitou que na análise désse-
mos conta da circulação de formulações no espaço privado de redes
sociais que foram publicizadas por meio de sites de notícias e de pá-
ginas da rede social Twitter. O ambiente digital parece ter um papel
primordial nesses gestos de denúncias anônimas. Mesmo que consi-
deremos ser ainda importante apostar em outras análises para veri-
ficar esse funcionamento, podemos desde já constatar, a partir desta
análise, que ele parece ser esse espaço contraditório em que mulhe-
res são expostas ao assédio e em que, ao mesmo tempo, assediado-
res são expostos e denunciados, permitindo ao sujeito mulher ocupar
um lugar outro que não o de objeto, mas o de sujeitos que recusam
e denunciam o assédio.
Por fim, a contradição, no digital, dá-se desde a tensão públi-
co/privado aumentada nesse ambiente: o lugar de dizer do ambiente
privado torna-se facilmente visível, facilmente publicizável, passível
de ser printado e, por consequência, de ser denunciado. O assédio pode
ocorrer, e ocorre, sabe-se, também em espaços físicos e públicos, o di-
gital talvez não seja o ambiente privilegiado mais do que outros espa-
ços para tais situações, mas o papel político do digital, em que se r(e)
produz o assédio, torna-se central na dimensão de denúncia coletiva.
A denúncia materializa-se na captura de tela e no envio desta para
páginas anônimas ou campanhas nas redes sociais; essa tomada de pa-
lavra e essa denúncia textualizam-se, ainda, em curtidas, comentários
e compartilhamentos. Por meio do digital, a mulher recusa o lugar
de objeto de um desejo não-consensual que a constrange, de objeto
de violência e, ao assumir o lugar de sujeito de uma recusa do assédio
impingido pelo homem e ainda um lugar de sujeito de uma denúncia
contra ele, toma a palavra na coletividade do digital.

95
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

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VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-5

O APAGAMENTO EM TOPÔNIMOS
DE PRAÇAS DE PINHEIRO-MA

Cleria Lourdes Moreira Pereira1


Heloísa Reis Curvelo2

Introdução

Os discursos são carregados de uma carga de heterogeneidade


que nos impede de criarmos algo exclusivamente novo, estamos sem-
pre produzindo discursos a partir de outros já ditos. E os usos que faze-
mos da língua nos enunciados podem dar sentidos diferentes àqueles
discursos que perpassam o nosso cotidiano; uma vez que ele acontece
quando há sentido no que é comunicado, quando enunciador e enun-
ciatário se entendem plenamente.
Esse entendimento ocorre a partir da inserção dos componentes
do discurso em um contexto de reciprocidade que incluem a coexistên-
cia histórica, social, política e ideológica dos mesmos. Nesse sentido,

1 Graduada em Letras pela Faculdade Santa Fé e Mestranda do Programa de Pós-Graduação


em Letras – Bacabal (PGLB), da Universidade Federal do Maranhão. Bacabal – MA. E-mail:
clerlmpereira@gmail.com.
2 Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Professora do
Departamento de Letras (DELER) e do Programa de Pós-Graduação em Letras – Bacabal
(PGLB), da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). São Luís – MA. E-mail: helocurvelo@
gmail.com.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

o discurso é a soma de fatores consubstanciados em um mesmo conjun-


to de enunciados que irão fazer sentido para um grupo de indivíduos.
Os topônimos, por sua vez, carregam em sua constituição
as marcas discursivas do momento em que foram criados, tornando-se
verdadeiros documentos dos fatores sociais que levaram à designação
toponímica dos lugares; seja pelo aspecto lexical e a motivação do de-
nominador na denominação toponímica.
Assim, entender a constituição dos topônimos locais a partir
das características discursivas, sobretudo dos movimentos de silen-
ciamento e apagamento discursivos, torna-se relevantes para que se
compreender os desdobramentos históricos que levaram à denomina-
ção dos nomes dos locais na contemporaneidade. Por isso, nos pro-
pomos – timidamente – a adentrar neste vasto campo da análise dis-
cursiva e compreender como o fenômeno do apagamento interferiu
na nomeação das praças pinheirenses.

1 O apagamento da relação entre o significante e o significante


na configuração do signo linguístico

O discurso é dialógico porque tem sentido no momento em que


entra em contato com o discurso do receptor, ou seja, depende da re-
ceptividade que tem, pois “[...] todo discurso é compreendido nos ter-
mos do diálogo interno que se instaura entre esse discurso e aque-
le próprio ao receptor; o interlocutor compreende o discurso através
de seu próprio discurso [...]” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 42).
Entretanto, o sentido e entendimento atribuído ao signo na rela-
ção de significação nos discursos dependem, do conjunto de oposições
entre linguagem natural e linguagem lógica, metalinguagem comum
e metalinguagem científica, metaenunciação e discurso, modalidade
reflexiva particular e teorias pragmáticas da enunciação, da oposição
entre transparência e opacidade enunciativa, nos deteremos neste úl-
timo par para a construção do conceito de apagamento – princípios
estes que regem o que Authier-Revuz (1998) denominou de heteroge-
neidade enunciativa. Nunes e Flores (2019, p. 554) afirmam que “[...]

100
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

enunciados e signos são transparentes porque representam, signifi-


cam outras coisas que não são eles próprios”, ou seja, um signo se tor-
na polifônico à medida que adquire novas configurações semióticas.
Destarte, no momento em que tomamos o signo como objeto
de contemplação e nos detemos sobre ele a fim de o compreender-
mos metaenunciativamente, o tomamos de forma opacificante, pois
“[...] se se leva em conta o que o signo é como coisa, ele se torna opa-
co e perde sua virtude representativa; disso, resulta que um signo
não pode se autorrepresentar reflexivamente” (RÉCANATI, 1979, p.
8 apud NUNES; FLORES, 2019, p. 554).
Tomando como premissa esta dualidade do signo em um movi-
mento de reflexividade metaenunciativa – a modalização autoními-
ca – em que um signo se torna transparente, tomamos o significado
como resultado das relações discursivas estabelecidas entre os usuá-
rios e uma ideia contida por um significante em determinado contex-
to sócio-histórico, cultural e linguístico. Fonseca e Cavalcante (2012)
afirmam que o signo só volta a ter sentido opacificante quando anali-
sado como objeto de estudo científico e nesta posição os enunciados
produzidos voltam-se para si mesmo, pois

[...] estes enunciados apresentam um traço comum:


em um ponto de seu desenrolar, o dizer representa-
-se como não falando por si, o signo, em vez de pre-
enchê-lo, transparente, no apagamento de si, de sua
função mediadora, interpõe-se como real, presença,
corpo–objeto encontrado no trajeto do dizer e que
se impõe a ele como objeto -; a enunciação desse signo,
em vez de se realizar ‘simplesmente’, no esquecimento
que companha as evidências inquestionáveis, desdo-
bra-se como um comentário de si mesma (AUTHIER-
REVUZ, 1998, p. 14).

Esses processos enunciativos em que o signo assume uma repre-


sentação opacificante de si mesmo caracterizam as “não coincidências
do dizer”, em que há a heterogeneidade discursiva e o não um acaba

101
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

alterando o UM da enunciação comum, quais sejam através da não-


-coincidência entre os interlocutores, não-coincidência entre as pa-
lavras e as coisas, não-coincidência das palavras com elas mesmas
e não-coincidência do discurso com ele mesmo (AUTHIER-REVUZ,
2021; 2004).
É através dessa não transparência que vamos percebendo a pre-
sença do discurso do outro no nosso próprio discurso, uma vez que não
produzimos enunciados completamente inéditos e que os mesmos ga-
nharão significação através do interdiscurso, à medida que ocorrem
as redefinições e redirecionamentos que provocam, eventualmente,
“[...] o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de deter-
minados elementos” (MAINGUENEAU, 1997, p. 113).
Orlandi (2017) afirma que o interdiscurso é que determinará a for-
mação discursiva e é esta que vai dissimular a transparência do sentido
dos signos e dos enunciados, na forma de assujeitamento em relação
ao discurso do outro e dando-lhe autonomia discursiva; bem como é a
partir da objetividade material contraditória do interdiscurso que de-
fine as bases para a constituição dessa formação discursiva.
Por outro lado, o apagamento discursivo também apresenta in-
formações importantes que são fundamentais para condição do signi-
ficar, ligando o não-dito à história e aos aspectos ideológicos no dis-
curso. Orlandi (2007, p. 73) afirma que

A relação dito/não-dito pode ser contextualizada só-


cio-historicamente, em particular em relação ao que
chamamos o “poder-dizer”. Pensando essa contextu-
alização em relação ao silêncio fundador, podemos
compreender a historicidade discursiva da construção
do poder-dizer, atestado pelo discurso. Com efeito,
a política do silêncio se define pelo fato de que ao dizer
algo apagamos necessariamente outros sentidos pos-
síveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva
dada. A diferença entre o silêncio fundador e a política
do silêncio é que a política do silêncio produz um re-

102
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

corte entre o que se diz e o que não se diz, enquanto


o silêncio fundador não estabelece nenhuma divisão:
ele significa em (por) si mesmo.

Assim, compreender como o mecanismo de silenciamento/apa-


gamento influencia na construção do sentido dos signos é condição
extremamente importante para compreendermos a designação de no-
mes de lugares, uma vez que os topônimos são reflexo das memórias
e identidade cultural de um povo e as relações que estes estabeleciam
discursivamente entre si. Nosso objetivo com este trabalho não é es-
miuçar a teoria da Análise Discursiva, nem os mecanismos de não-
-coincidência desenvolvidos por Authier-Revuz (2021; 2004; 1998;
1990); e sim o que nos propomos, com esta investigação, é compreen-
der como o mecanismo de apagamento contribuiu para a designação
onomástica dos nomes das principais praças e logradouros da cidade
de Pinheiro/MA.

2 A toponímia e o ato de nomear

O ato de nomear os lugares sempre é motivado por um significa-


do relacionado à vida dos nomeadores, fato ou acontecimento marcan-
te para ele; sendo o ato de nomear carregado de simbologia, interesses
e ideologias daqueles que nomearam. Os topônimos são, além de refe-
rência de localização para os indivíduos, testemunhas das transforma-
ções históricas e culturais da humanidade.
Nesse sentido, as designações onomásticas podem levar em con-
sideração características predominantes dos lugares que o nomeiam;
entretanto não é incomum que essa relação, entre significante e signi-
ficado, ocorra apenas no sentido da linguagem. Dessa forma, os nomes
dos lugares e os espaços se tornam uma “unidade inseparável” linguis-
ticamente, que pode parecer monossêmica, sobretudo para o nomea-
dor, mas detém grande teor polissêmico quando analisado sob o viés
diacrônico da língua (DICK, 1995).

103
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Para além de dar nomes às formações geográficas e fenômenos


naturais, o ato de nomear os lugares remonta a aspectos culturais
e identitários dos seres humanos, resgata a história social de civili-
zações e comunidades anteriores às contemporâneas. Os topônimos
representam instrumentos de resgate da memória de comunidades,
tendo em vista que a “memória e preservação são os identificadores
que comumente lhe são atribuídos [...]” (DICK, 1995, p. 347).
Por agregar elementos da Geografia, História, Antropologia
e Linguística os estudos dos topônimos, permitem a interdisciplina-
ridade entre as disciplinas que contemplam essas áreas do conheci-
mento. Além de fazer com que tenha contato com informações novas
de uma comunidade; auxilia na construção de seu perfil de sujeito
crítico e reflexivo nas diferentes partes de sua vida (SILVA; ARAÚJO,
2016).
Neste sentido, a interdisciplinaridade agrega os conhecimentos
que são trabalhados em uma abordagem fragmentada, primando, as-
sim, pelo todo. Os topônimos, por sua vez, são compostos por elemen-
tos geográficos, sociais, antropológicos e culturais; então precisam
ser estudados com o intuito de contemplar essas áreas de forma uni-
versalizada e isso auxiliará na compreensão da dinâmica local em que
se vive e, assim, constrói-se uma “memória identitária dos lugares”
(NUNES; ANDRADE, 2015).
Dessa forma, a análise dos topônimos leva em consideração a re-
levância social e estrutural dos nomes, tendo em vista que se organiza
a partir dos indicativos: espacial geográfico e temporal, com caracte-
rísticas que podem abranger aspectos físicos dos lugares ou antropo-
cultural. Dick (1990) afirma que é uma das atividades humanas de re-
levante importância, pois ao nomear um local o denominador se insere
no contexto coletivo em que vive, isto ocorre porque ele

[...] em sua qualidade de membro de um agrupamento,


representa, por força da introjeção de costumes e de
hábitos generalizados, senão integralmente, pelo me-
nos uma parcela significativa do pensamento coletivo.

104
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

É a resultante de uma modelagem constantemente


burilada pelo próprio dinamismo das paralelas lín-
guo-sociológicas em que se movimenta. Suas ideias
e manifestações de espírito, suas atitudes e condutas –
conscientizadas, ou não, diante de situações concretas
reguladas pela necessidade humana de sobrevivência
– e seu próprio existir, enfim, tornam-no a “personali-
dade histórica” atemporal e a espacial, por excelência
(DICK, 1990, p. 30).

Andrade (2021) ressalta que a Toponímia, enquanto disciplina,


é atravessada pelos conhecimentos da geografia, história, antropolo-
gia, arqueologia, zoologia, botânica, psicologia, linguística e cartogra-
fia. Essas áreas de conhecimento não se estratificam na denominação
dos onomas, elas se complementam e se sobrepõem semântica e le-
xicalmente. Andrade (2021, p. 205) defende que a Toponímia precisa
“[...] ser pensada como um complexo línguo-cultural: um fato do sis-
tema das línguas humanas”, isso porque estuda onomas que agregam
muitas informações em seu léxico. Além disso, os topônimos contêm
as especificidades do ambiente, as convicções, os sentimentos, ideo-
logias do denominador e estas nos dão pistas de como era o contex-
to social, histórico e político em que o denominador estava inserido
(NUNES; ANDRADE, 2015).
Os estudos toponímicos ajudam a nos percebermos como mem-
bros de nossas comunidades. O resgate da história do nome do lugar
onde vivemos ou exercemos nossas atividades nos traz a sensação
de pertencimento, nos conecta com nossos antepassados, nos aproxi-
mando de nossas raízes culturais e etimológicas. Mostra como nossos
antecessores enxergavam o espaço geográfico e quais relações estabe-
leciam com ele e entre si, os situa histórica e geograficamente.
Tendo em vista a importância da toponímia como resgate da me-
mória e história de uma comunidade como meio não só de identifi-
cação dos nomes desses lugares, mas em uma perspectiva mais am-
pla, mais profunda, buscaremos analisar os topônimos tomando como
base o apagamento enunciativo nos nomes constitutivos a fim de ob-

105
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

ter subsídios para responder o seguinte questionamento: Qual a rela-


ção entre os topônimos e o resgate da memória dos nomes de praças
de Pinheiro?

3 Procedimentos metodológicos

O corpus desta pesquisa foi constituído a partir de levantamento


bibliográfico abrangendo a história da cidade de Pinheiro, em que pu-
deram ser observados a descrição de praças, ruas e demais logradouros
da cidade por Viveiros (2014; 2007), Soares (2006), Abreu (2006), Alvim
(2006), Leite (2020), bem como consulta a mapas e documentos oficiais,
que foram analisados à luz da Análise Discursiva, com fundamenta-
ção teórica em Authier-Revuz (2021; 2004; 1998; 1990), Maingueneau
(2010; 1997), apoiados em Orlandi (2020; 2017; 2007; 2004); para a te-
oria em Toponímia nos apoiaremos em Dick (2021; 2007; 1995; 1994;
1993; 1990), Andrade (2021; 2010), Carvalhinhos (2021a; 2021b),
Nunes e Andrade (2015; 2012) a fim de identificar como o apagamento
influenciou na designação toponímica de nomes das principais praças
e logradouros da cidade de Pinheiro/MA.
Este trabalho se insere nas linhas de pesquisa da Análise
Discursiva e Toponímia, sem, contudo, adentrar aos conceitos mais
complexos inerentes aos fenômenos constituintes da heterogeneidade
discursiva não-mostrada e das formas de silêncio, uma vez que não
nos atemos aos demais fatores que contribuem para a verificação
de tais propósitos.

4 O apagamento na toponímia das praças pinheirenses

Ao contrário da ideia de signo arbitrário preconizada


por Ferdinand de Saussure, o signo toponímico é motivado, uma vez
que que a nomeação dos lugares atende a motivações específicas
que inserem o denominador na dinâmica da comunidade nomeada;
circunscrevendo fatores ideológicos, culturais, políticos e históricos
da época em que o nome é cunhado.

106
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Curvelo-Matos (2014, p. 51) ao definir a importância dos topôni-


mos como categoria lexical assegura que

Como é um fato da língua, o topônimo é suscetível


às mesmas regras que regem seu léxico. Dessa for-
ma, os nomes de lugares estão sujeitos a fenômenos
linguísticos que atingem todas as palavras da língua,
como exemplo disso, temos (i) a cristalização ou fos-
silização; (ii) o esvaziamento semântico ou mudança
de significado; (iii) a ressemantização toponímica e
(iv) a transformação de substantivos comuns e de adje-
tivos em arquétipos toponímicos.

Assim, a cristalização ou fossilização linguística do léxico topo-


nímico está relacionado ao recorte dos aspectos culturais e linguísti-
cos do momento histórico em que o onoma foi definido, conservando
os aspectos linguísticos do tempo em que foi cunhado na denominação
local. Por sua vez, o esvaziamento semântico ou mudança de significa-
do, de modo que perde seu sentido original e deixa de ser transparen-
te, tornando-se opacificante à medida que adquire nova característica
semântica.
Ao contrário do esvaziamento semântico, a ressemantização
toponímica ocorre quando topônimos, empregados anteriormente,
são configurados com novo significado. Já a transformação de subs-
tantivos comuns e de adjetivos em arquétipos toponímicos está dire-
tamente relacionada à atribuição de novo significado a léxico comum
e de uso geral à designação de lugares.
Tais designações, embora representem um recorte de um mo-
mento histórico e cultural em que o denominador ou denominadores
estavam inseridos podem sofrer mudanças ao longo da história para
se adequar às novas necessidades designativas daqueles que ocupam
tais lugares. De modo que alguns signos toponímicos sofrem perdas e/
ou acréscimos de acordo com as adequações aos significantes, em um
movimento de atualização dos nomes dos lugares.

107
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Destacaremos aqui as perdas ou supressões que configuram


o apagamento de termos aos onomas designativos de topônimos
do conjunto onomástico pinheirense que estão diretamente relacio-
nados aos movimentos de colonização e desdobramentos políticos
e históricos que repercutiram na nomeação de algumas praças do mu-
nícipio desde a sua fundação até a contemporaneidade.
Fundada por volta de 19183, a partir da criação da fazenda de gado
pelo Capitão-Mor de Alcântara Inácio José Pinheiro, a cidade rece-
beu algumas denominações ao longo da história – Lugar de Pinheiro,
Vila Nova de Pinheiro, Freguesia de Santo Inácio até se firmar como
Pinheiro, nome que permanece até os dias atuais; a região começou
a ser povoada por fazendeiros e seus funcionários que vinham em bus-
ca de novas terras para o seu rebanho e plantações.
Uma das primeiras solicitações junto ao Conselho Geral
da Província foi a construção de uma capela que atendesse às neces-
sidades religiosas dos novos moradores da fazenda do Capitão-Mor
Inácio José Pinheiro. A construção desta aconteceu nas redondezas
do porto em que desembarcavam pessoas e mercadorias, sendo esta
portanto a capela da Igreja da Matriz, cuja praça recebeu a denomi-
nação de praça da Matriz. Após a adesão a República, a igreja da cape-
la passou por um longo período de reconstrução da capela. Segundo
Viveiros (2007) esta reforma foi feita em quatro etapas, sendo a mais
abrangente realizada pelo padre Newton Pereira.
Por conseguinte, a praça da capela da Matriz foi renomeada
de praça Padre Newton Pereira; entretanto o nome de praça da Matriz
permanece até os dias atuais, sendo reconhecido pelos moradores
do bairro Matriz e da cidade. Aqui o que temos é claramente um topô-
nimo que surgiu espontaneamente para indicar a praça que circundava
a capela matriz da povoação; seguido do seu apagamento em detri-
mento do nome de uma pessoa de destaque na comunidade religiosa
local, assim, a adoção da lexia matriz, que era da primeira capela, se es-
tendeu à praça em uma clara aceitação popular da designação do local
3 A data precisa da chegada do Capitão-Mor Inácio José Pinheiro às terras que dariam origem
a cidade ainda estão em discussão. Datando, oficialmente, de 1818.

108
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

de surgimento e expansão da cidade,; isso fez com que a praça manti-


vesse a nomeação primária, popular e mais significativa para a comu-
nidade local, apagando, assim, o nome oficial desta praça, já que o seu
nome oficial praça Pe. Newton Pereira é desconhecido por muitos.
A segunda praça de maior importância local foi oficialmente
nomeada como praça da República – antes era conhecida popular-
mente como praça do Remedinho por conta da Festa do Remedinho
que era celebrada ali até o ano de 1914–em referência à Proclamação
da República de 15 de novembro de 1889. É importante salientar
que Pinheiro só aderiu de maneira oficial à mesma no final do mês, con-
forme Viveiros (2014, p. 146) este ato “[...] em Pinheiro deve ter sido,
portanto, num dos últimos dias do mês de novembro [não se podendo
precisar a data], pois perdeu-se a ata que se fez lavrar da solenidade”.
Outro evento de grande importância para os pinheirenses cul-
minou na mudança do nome dessa praça: com a morte de Tancredo
Neves, José Sarney assumiu a presidência da República, tornando-se,
assim, o filho mais ilustre da cidade; em sua homenagem ao presiden-
ciável, a praça foi rebatizada como praça José Sarney, nome que per-
dura até os dias atuais. Aqui, percebemos o apagamento de um fato
histórico em detrimento de personalidade política, que se mantém
devido ao orgulho dos conterrâneos em terem um dos seus como fi-
gura de destaque no cenário político nacional. A adesão a este últi-
mo topônimo apaga o movimento político social que representou
a Proclamação da República em detrimento da ocupação da presidên-
cia do país por um maranhense de Pinheiro.
Outra praça que sofreu alterações no nome ao longo da histó-
ria foi a praça da Liberdade – inaugurada em 7 de setembro de 1922
como parte das comemorações dos festejos do primeiro centenário
da Independência política do país (SOARES, 2016; GOMES, 2004).
Popularmente, essa praça era conhecida como praça do Babaçu, pois
ali existia uma única palmeira desta oleaginosa. Com a comemoração
do primeiro centenário da cidade, foi oficialmente nomeada de praça
do Centenário, para representar o marco histórico de fundação do mu-
nicípio iniciada com a chegada do Capitão-Mor Inácio José Pinheiro.

109
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Atualmente, essa praça foi reformada e foi, oficialmente, rebatizada


como Praça da Família.
A mudança das denominações desses topônimos ao longo da his-
tória ocorreu para marcar fatos históricos relevantes para a comunida-
de local, em que acontecimentos mais recentes foram utilizados como
motivação para a denominação atual em um movimento de apaga-
mento onomástico de nomes que já não tinham tanta relevância para
a toponímia contemporânea. Entretanto, o topônimo contemporâ-
neo promove o apagamento de todos os aspectos históricos inerentes
à constituição política local, optando-se pela denominação de caráter
genérico “família”.
Com a construção do cemitério atual, a praça localizada à sua
frente passou a ser chamada popularmente de praça do Cemitério, re-
cebendo, posteriormente, as denominações de praça da Saudade e pra-
ça Gonçalves Dias. Atualmente, o seu nome oficial é uma homenagem
ao ex-prefeito Pedro Lobato e foi oficializado com a construção do gru-
po escolar Pedro Lobato.
Neste caso, temos a coexistência de três topônimos que são
usados pelos moradores da localidade para se referir ao mesmo lugar.
Os onomas têm caráter de significação e motivação diferentes, uma vez
que a denominação “Pedro Lobato” remete à figura de importância po-
lítica da cidade, “praça do Cemitério”, por sua vez, remete à localização
geográfica do cemitério municipal; enquanto “Gonçalves Dias” é uma
homenagem ao maior poeta da literatura brasileira e que, também,
é maranhense assim como a Princesa da Baixada. Não se percebe aqui
um apagamento, mas um silenciamento proposital, conforme o caráter
ideológico do enunciador.
A atual praça São José recebeu quatro denominações ao longo
dos anos. A primeira foi praça Martinha quando ainda tinham pou-
cas casas na área, sendo abastecidas pelo comércio do morador Edgar
Barbosa Cordeiro; este por sua vez deu origem à denominação posterior
– praça Edgar, após a construção do Posto Agropecuário de Pinheiro
(PAP). A Lei Orgânica no 177, de 20 de novembro de 1958 instituiu,

110
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

oficialmente, o nome Pio II à praça; contudo a atual denominação


praça São José foi atribuída a partir da devoção do Sr. Edgar Barbosa
Cordeiro, que construiu uma capela em homenagem a São José e a co-
nectou com a praça.
Os apagamentos observados ao longo da história nas denomi-
nações desta praça revelam a tendência à adequação a dinâmica social
vigente. Quando a região era composta por poucos moradores a deno-
minação atendia a uma demanda popular, sendo posteriormente apa-
gada em detrimento da influência econômica do maior comerciante
local. Embora, o poder Executivo, fazendo valer a sua autoridade legí-
tima, tenha instituído outro nome para a praça – nome este que Gomes
(2004) afirma que não chegou ao conhecimento dos populares – foi a
influência do maior provedor econômico do local que prevaleceu; evi-
denciando, também, a influência que a igreja católica teve para a cons-
tituição dos nomes dos lugares no município, em reflexo ao movimento
que se observa no restante do território brasileiro (CURVELO-MATOS,
2014; BATISTA, 2011).
Assim, percebemos que através do fenômeno de apagamento,
os nomes de algumas praças de Pinheiro adquiriram motivações di-
versas daquelas que originalmente foram atribuídas pelos denomi-
nadores locais; atualizando as designações toponímicas para atender
às necessidades enunciativas daqueles que aqui se estabeleceram após
o processo de colonização e que deram suas contribuições à história
e memória local maranhense.

Considerações finais

Os topônimos constituem signos linguísticos que contam a his-


tória e resgatam a memória de uma comunidade, uma vez que o ato de
nomear os lugares sempre é motivado por um significado relacionado
à vida do nomeador, fato ou acontecimento marcante para ele; sendo
este carregado de simbologia, interesses e ideologias daqueles que no-
mearam. Contudo, os topônimos sofrem alterações ao longo do pro-

111
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

cesso histórico e cultural das comunidades que nomeia, a fim de aten-


der às necessidades dos denominadores.
Nesse sentido, a Análise Discursiva nos fornece subsídios para
compreender os processos transformacionais e de composição que es-
ses lexemas sofrem. Foi fazendo interpretações como essa que decidi-
mos tentar compreender como o fenômeno de apagamento nos auxilia
na formação dos nomes das praças pinheirenses na sua configuração
contemporânea.
Na análise breve que realizamos, percebemos que o fenômeno
do apagamento enunciativo pode explicar a influência cultural, his-
tórica e política na motivação dos topônimos dessas praças e como
eles sofreram transformações linguísticas, seja no apagamento ofi-
cial ou silenciamento informal, que impactaram na identidade local
dos nomes dessas praças.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-6

DISCURSO POLÍTICO MARANHENSE:


OS EFEITOS DE SENTIDO DO DISCURSO
JURÍDICO EM POSTAGENS NO TWITTER

José Antônio Vieira1


Anaildo Pereira da Silva2

Introdução

Atualmente, redes sociais como Facebook, Instagram, Twitter etc.


têm sido utilizadas por parlamentares com muita frequência. As publi-
cações por eles produzidas nesses espaços virtuais são uma nova for-
ma de contato com a população, e acabam tanto por promover, inicial-
mente, a propagação das mensagens com as suas opiniões e posições
quanto por alcançar um público distinto daquele já atingido durante
a campanha eleitoral.
A classe política já fazia uso das mídias sociais sob a prerrogativa
de informar o público sobre suas agendas, projetos, votos etc., mas,
para a Análise do Discurso (AD), uma publicação de uma mensagem
no Twitter não é apenas uma mera mensagem, pois a publicação pos-
sui não somente uma ordem comunicativa, mas também um propó-
sito discursivo que demonstra posições enunciativas desenvolvidas
1 Doutor em Estudos da Linguagem, Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), Pedreiras,
Maranhão, Brasil.
2 Mestre em Letras, Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Bacabal, Maranhão, Brasil.

116
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

por toda uma formação sócio-histórica e discursiva do sujeito que pu-


blica a mensagem, ou que, no caso, realiza a postagem.
Neste sentido, neste trabalho, analisamos twittes de parlamen-
tares maranhenses no Twitter, formulando o seguinte questionamen-
to norteador: como o campo discursivo jurídico desenvolve efeitos
de sentido que constituem as publicações de políticos maranhenses
no Twitter?
Para responder a esta indagação, traçamos o objetivo geral
de analisar os efeitos de sentido do discurso jurídico em publicações
no Twitter. Especificamente, objetivamos: 1) identificar as estratégias
linguístico-discursivas nas publicações; 2) verificar elementos do cam-
po discursivo jurídico que caracterizam as publicações de parlamen-
tares maranhenses; e 3) analisar os efeitos de sentido desenvolvidos
pelo discurso jurídico nestas publicações.
Como procedimento metodológico, fizemos uso da pesquisa bi-
bliográfica, pois consideramos que a pesquisa necessita de uma base
teórica que sustente a temática estudada. Fizemos, ainda, uso do mé-
todo qualitativo para analisar os dados coletados. Ambos, em conjunto
com método discursivo, nos permitiram analisar os diferentes sentidos
constituídos nestas práticas discursivas. O corpus analisado aqui é par-
te de uma pesquisa em andamento, da qual selecionamos 02 (duas)
publicações produzidas no Twitter por um parlamentar maranhense.
Para fundamentar nossa investigação, ancoramo-nos em estu-
dos de Foucault ([1969]2008) e de Pêcheux ([1975]2014a; [1983]2014c),
a partir dos quais mobilizamos os conceitos de Formação Discursiva,
em ambos, e Formação Ideológica, no último, e que nos permitem
analisar os interdiscursos que compõem a experiência sócio-históri-
ca representada nas posições enunciativas determinadas pelas publi-
cações analisadas; de Pêcheux ([1969]2014b), que nos auxilia com o
conceito de Condições de Produção, na análise das condições sócio-
-históricas presentes nos dados, isto é, nos dizeres dos interlocutores;
e de Charaudeau (2013; 2018), que nos permite circunstanciar o dis-
curso político nas mídias sociais, objeto de análise de nosso trabalho.

117
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Em tempo, para tratarmos de elementos linguísticos na materialidade


discursiva, recorremos a Koch (2014).

1 Discurso político nas mídias sociais

No presente tópico, propomo-nos fazer uma reflexão sobre dis-


curso político no âmbito das mídias sociais, uma vez que consideramos
a rede social Twitter como ambiente de produção discursiva de parla-
mentares que as utilizam na comunicação com eleitores (e possíveis
futuros eleitores) por meio de postagens e publicações.
É preciso, aqui, conceituar “discurso”, mas esta tarefa de formular
uma definição para discurso tem sido árdua para os estudiosos da AD.
Em Arqueologia do Saber, Michel Foucault ([1969]2008) traz conceitos
determinantes do que vem ser a “discurso”. Dentre os conceitos abor-
dados pelo autor, o que mais tem conformidade com o nosso estudo
é o de discurso como um espaço no qual saber e poder se articulam,
ou seja, quem fala, fala de algum lugar, baseado em um direito reco-
nhecido institucionalmente. Assim, baseados nesse conceito, procura-
mos desenvolver o presente estudo, considerando o discurso no campo
político e das mídias sociais.
Uma vez que as mídias sociais são suportes para a produção
de discurso, isto é, são espaços nos quais a linguagem é utilizada como
meio de comunicação entre sujeitos historicamente determinados,
consideramos, pois, a noção de discurso de Foucault ([1969]2018), aci-
ma citada, para falar de discurso político, já que o político fala de um
lugar, amparado pela prerrogativa institucional conferida pelo car-
go que assume. Nesse contexto, falar deste discurso “é tentar definir
uma forma de organização da linguagem em seu uso e em seus efeitos
psicológicos e sociais, no interior de determinado campo de práticas”
(CHARAUDEAU, 2018, p. 32), uma vez que as palavras tomadas em um
discurso apontam para sentidos conforme o posicionamento do sujei-
to no momento da fala. Assim, considerando o conceito de discurso
foucaultiano apresentado, aplicando-o ao contexto das mídias sociais,

118
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

a tarefa de falar sobre discurso político se torna ainda mais árdua,


uma vez que este discurso está intimamente ligado à questão do poder.
No contexto político, as mídias sociais como Twitter, por exem-
plo, ganham importância na produção do discurso. Mesmo não sendo
consideradas como instâncias de poder (CHARAUDEAU, 2013), as mí-
dias sociais têm um papel de destaque no cenário político, pois elas
possuem um grande potencial de propagar os discursos em rede e em
questão de segundos. Para Charaudeau (2013), mesmo as mídias so-
ciais não sendo a fonte de poder, elas podem ser geridas por quem
tem esse poder, nesse caso, o político que está em uma determinada
instância, sendo, essa instância política, capaz “ de gerir e influen-
ciar os comportamentos dos indivíduos que vivem em sociedade”
(CHARAUDEAU, 2013, p. 18). Assim, os políticos podem se valer desses
recursos (as mídias sociais) para transmitir seus discursos numa tenta-
tiva de influenciar e/ou convencer seus interlocutores/eleitores sobre
acontecimentos e/ações que circulam no meio político.
Fazer uso das mídias sociais na atualidade é tratar o discurso
como linguagem em ação sob o pressuposto de que se está informando
o povo sobre a atuação parlamentar. E a linguagem se consolida nesse
processo comunicativo, pois ela não é tratada meramente como signos
linguísticos internos a uma língua, mas como dotada de significados
em conformidade com as circunstâncias comunicativas em que está
sendo utilizada.
O discurso produzido em uma rede social é manifestado a par-
tir de um determinado lugar, de determinadas condições de produção,
materializando uma determinada ideologia. Nessa direção, no tópico
a seguir, passaremos a tratar destes conceitos.

2 Elementos constituintes da AD: formação ideológica, formação


discursiva e condições de produção

Propomo-nos, neste tópico, refletir sobre os conceitos


de Formação Ideológica (FI), Formação Discursiva (FD) e condi-
ções de produção do discurso, dialogando, para isso, principalmente

119
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

com Pêcheux ([1975]2014a; [1969]2014b; [1983]2014c), mas também


com Foucault ([1969]2008) acerca da noção de FD. Estes conceitos
são essenciais na análise do discurso aqui pretendida.
Foucault ([1969]2008) formula que uma FD é determinada
por meio de um conjunto de regras capaz de descrever uma disper-
são (que ele considera que seja o discurso) de forma que se estabeleça
uma regularidade entre os objetos, tipos enunciativos, conceitos e es-
tratégias; assim, a regularidade que é atingida pela análise dos enun-
ciados é chamada de FD. No entanto, ao tomar esse caminho, Foucault
([1969]2008) contorna os conceitos de “ciência” e “ideologia” por con-
siderá-los demasiados.
Sentindo a necessidade de trabalhar o ideológico, Pêcheux
([1975]2014a) reformula o conceito de FD de Foucault ([1969]2008)
para abarcar a condição de assujeitamento do sujeito. Então, a noção
de FD passa a englobar as questões ligadas à ideologia, à teoria e à ci-
ência, que eram contornadas por Foucault ([1969]2008).
Haroche, Henry e Pêcheux (1971) definem FI como “um conjunto
complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘individu-
ais’ nem ‘universais’, mas se relacionam mais ou menos diretamente
a posições de classe em conflito umas às outras” (HAROCHE; HENRY;
PÊCHEUX, 1971, p. 102). Assim, podemos dizer que a FI é o lugar
em que o indivíduo é interpelado em sujeito de seu discurso enquanto
é dominado por uma das FD que compõem a FI do sujeito.
A FD passou a ser designada como “[...] aquilo que, numa forma-
ção ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjun-
tura dada, determinada pelo estado de luta de classes, determina o que
pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, [1975]2014a, p. 147). Dessa forma,
o conceito de FD é essencial na análise do discurso, em especial aqui,
do discurso político produzido nas mídias sociais, permitindo-nos de-
terminar posicionamentos a partir de dizeres do dia a dia.
O conceito pecheutiano de FD permite ao analista do discurso
tomar as palavras, expressões, proposições, etc. e analisá-las a partir

120
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

de uma conjuntura, possibilitando, pois, observar os sentidos criados


naquelas condições de produção, bem como observar de que manei-
ra “os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos-falantes (em sujei-
tos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na
linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes”
(PÊCHEUX, [1975]2014a, p. 147).
A característica da interdiscursividade observada por Pêcheux
([1983]2014c) no estudo da FD possibilitou que, de uma estrutura fe-
chada, a FD passasse a ser vista como um ambiente aberto, invadido
constantemente por elementos de outros lugares, ou seja, de outras
FD que se repetem uma na outra, fornecendo-lhe suas evidências dis-
cursivas fundamentais. Nesse sentido, justifica-se o fato de uma FI ser
constituída por uma ou mais FD que, interligadas, fazem com que
o discurso seja governado pelas FI, considerando, nesse quadro teórico,
que o discurso é a manifestação material da ideologia ali dominante.
Falar então de FI e de FD como aspectos condicionantes
do discurso é considerar que os elementos que constituem um embate
de classes são susceptíveis de intervenção como força motriz no con-
fronto em embates antagônicos de posições políticas e ideológicas,
por exemplo. E, no caso das mídias sociais, esse embate pode se dar
por meio dos posicionamentos adotados pelo político numa determi-
nada circunstância, podendo se constituir e se dar a ver como sujeito
pela linguagem utilizada na materialidade discursiva.
O analista de discurso considera, ainda, na análise da produção
discursiva de um determinado sujeito, as condições em que o discurso
é produzido; em nosso caso, por exemplo, o contexto sócio-histórico
de uma publicação no Twitter. Para tanto, assume-se que o discurso
não é apenas uma transmissão de informação, mas um efeito de sen-
tido produzido entre dois pontos (A e B), conforme esquematizado
por Pêcheux ([1969]2014b, p. 81):

121
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

(ℒ)
D
A B
R
A: o “destinador”; B: o “destinatário”.

Fonte: AAD-69 (PÊCHEUX, [1969]2014b, p. 81)

Assim, considerando que os pontos A e B sejam lugares e não in-


divíduos, estes designam “lugares determinados na estrutura de uma
formação social” (idem) como, por exemplo, o lugar de parlamentar
(representante) e de povo (representado), permitindo que A cons-
trua uma série de formações imaginárias sobre B e vice-versa, apesar
de, alerta-nos Pêcheux ([1969]2014b, p. 82), tais projeções, posições
e imagens não serem biunívocas, sendo possível que haja, em certas
condições de produção, representações diversificadas.
Pode-se dizer ainda que as condições de produção do discurso
são essenciais para que os parlamentares possam refletir sobre suas
produções discursivas para que, de fato, alcancem seus objetivos dis-
cursivos, de modo que, por meio das formações imaginárias, o sujeito
se coloque como protagonista e como expectador do discurso. O pro-
cesso discursivo, por parte do sujeito, nada mais é que uma antecipa-
ção das representações do receptor, fundando uma estratégia discursiva
(PÊCHEUX, [1969]2014b).
Nesse contexto, ocorre também a construção do sujeito realizada
através da linguagem utilizada para expressar o discurso. Assim, o su-
jeito vai se construindo através das diversas impressões, como ideo-
logia e marcas de pessoalidade que vão sendo deixadas durante o ato
discursivo. Para Pêcheux ([1975]2014a, p. 213), “toda prática discur-
siva está inscrita no complexo contraditório-desigual-sobre determi-
nado das formações discursivas que caracteriza a instância ideológica
em condições históricas dadas”. E acrescenta ainda que, para que de
fato um ato discursivo se concretize, é necessário que haja um sujeito

122
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

identificado a uma FD determinada que, por sua vez, o constitui como


sujeito.
Na produção discursiva, deve-se levar em conta as condições
de produção em que o discurso se dá, visto que há sempre uma rela-
ção de sentido, pois a ideologia trabalha na produção de evidências
de forma a colocar o homem na relação imaginária com suas condições
materiais de existência. Grosso modo, podemos afirmar que, quan-
do um político faz uma postagem numa rede social como o Twitter,
por exemplo, este está veiculado a uma FD dominante que compõe
a formação ideológica do sujeito, fazendo com que o discurso ali pro-
duzido sirva para aquele contexto discursivo.
Dessa forma, é essencial observar as FI, as FD, os sujeitos dis-
cursivos e as condições de produção para identificar os discursos usa-
dos por políticos em seus twittes. Nesse contexto em que se inscreve
o discurso político, buscamos observar a sua produção mediante o uso
das redes sociais bem como o uso dos diversos “artifícios” linguísticos
de modo a compreender como o político maranhense trabalha suas
FD e FI, e como ele faz uso do contexto social para produzir um discur-
so que seja aceito pelo povo/eleitor.
Em vista do exposto, faremos, adiante, alguns apontamentos so-
bre elementos linguísticos como recurso na/da produção discursiva.

3 Elementos linguísticos: alguns apontamentos

Neste tópico, propomos realizar uma breve reflexão sobre ele-


mentos linguísticos enquanto possíveis recursos na produção discur-
siva nas mídias sociais. Além dos conceitos abordados anteriormente,
vemos que se faz necessário apresentarmos os elementos linguísticos
presentes na materialidade discursiva, considerando que, para nossa
proposta de análise, estes são importantes para a análise do discur-
so de parlamentares no âmbito das mídias sociais, já que é frequente
o uso de recursos linguísticos tanto como marcas formais da língua
quanto para os sentidos e significados produzidos.

123
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

A presença de elementos linguísticos na produção discursi-


va é, na perspectiva de Koch (2014), responsável pelo encadeamento
de segmentos textuais de qualquer extensão e, enquanto articulado-
res, os elementos linguísticos desenvolvem relações do tipo lógico-
-semântico. No campo da Semântica Argumentativa, esses elementos
são capazes de denotar um valor semântico conforme as necessidades
discursivas no contexto de produção do discurso.
Quando se toma textos [mensagens] publicados por parlamen-
tares no Twitter para pensá-los a partir da AD, consideramos a possi-
bilidade de que possam ser encontrados elementos linguísticos, como
operadores argumentativos, organizadores textuais e elementos me-
tadiscursivos, que se caracterizam como operadores da materialida-
de discursiva e que podem se constituir como elementos importantes
na construção de efeitos de sentido.
Assim, para analisarmos o discurso, observamos os elementos
linguísticos que se encontram na materialidade discursiva e que pos-
suem a funções que vão além daquela de conectar enunciados, de dar
linearidade ao texto, pois também podem criar ou reforçar os sentidos,
e, até mesmo, demarcar a presença de outros discursos.
Considerando o exposto, é válido lembrar que, no campo polí-
tico, aqui mais precisamente no âmbito das mídias sociais, cada pa-
lavra dita dever ser tomada com cautela, ou seja, as palavras não po-
dem ser tomadas como transparentes (CHARAUDEAU, 2018). Assim,
cada elemento linguístico deve ser analisado cuidadosamente para
que, de fato, se chegue ao(s) sentido(s) que a presença deles causa,
devendo ser analisado de modo mais especialmente cuidadoso em um
texto de um parlamentar postado no Twitter, por ser um espaço limi-
tado em termos de caracteres, e ainda pelos propósitos pelos quais
foi produzido.
Tendo refletido nessa base teórica sobre as questões relaciona-
das ao discurso e sua análise, passamos a discorrer, no tópico a seguir,
sobre os procedimentos metodológicos adotados neste trabalho.

124
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

4 Metodologia

No presente trabalho, adotamos a pesquisa bibliográfica como


tipo de pesquisa por consideramos que a temática trabalhada requer
um embasamento teórico amplo, sendo possível tê-lo a partir de uma
revisão da literatura já existente sobre os fenômenos passíveis de aná-
lise presentes no corpus escolhido.
Para constituir o corpus deste trabalho, operamos um recorte
em uma pesquisa mais ampla, ainda em andamento. O corpus da pes-
quisa ampliada é composto por 40 (quarenta) postagens produzi-
das no Twitter por 08 (oito) parlamentares que legislam pelo Estado
do Maranhão (deputados estaduais, federais e senadores). Para este
trabalho, no entanto, fizemos uso de 02 (duas) publicações (twittes)
de apenas 01 (um) parlamentar maranhense.
O parlamentar, autor das publicações aqui analisadas, é um de-
putado estadual. Para o tratamento dos dados, realizamos a transcri-
ção das publicações, uma vez que a transcrição nos permite enumerar
linhas, auxiliando a retomada do leitor ao texto e facilitando a análise
do dado. A transcrição permitiu ainda que pudéssemos manter descri-
ção em relação ao “perfil” do parlamentar (apesar de ser público).
Para a análise do corpus, fizemos uso do da abordagem qualitati-
va que nos dá oportunidade de sair da superfície discursiva e adentrar
nas especificidades linguísticas que nos levam a identificar as FD, as FI,
elementos linguísticos etc. presentes nos textos do parlamentar. Junto
à abordagem qualitativa, fizemos uso do método discursivo para reali-
zarmos análise dos fenômenos das construções de diferentes sentidos
produzidos na prática discursiva.

5 Análise do corpus

O twitte a seguir foi postado em 20 de maio de 2020 pelo parla-


mentar no contexto da pandemia da COVID-19, e trata do adiamento
da aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Na publica-
ção, a alegação do parlamentar gira em torno dos prejuízos educacio-

125
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

nais gerados pela pandemia, visto que uma parcela expressiva da po-
pulação não possui estrutura para acompanhar as aulas online; desse
modo, poderia obter resultados insatisfatórios no exame. Assim, reali-
zada a contextualização, passaremos à transcrição da publicação 01 do
parlamentar, que é composta por um texto e uma ilustração.

Publicação 01

1 Adiamento do ENEM é necessário, mas não vão adiar as necessidades e ma-


2 zelas sociais. Os prejuízos educacionais agravados pela COVID19 só de-
3 monstram como o nosso país pecou em não investir em uma política de in-
4 clusão digital. Precisamos aprender as lições dessa pandemia.

Fonte: Twitter, 20 de maio de 2020.

O texto da publicação 01 possui marcas linguísticas que podem


ser vistas como caminho para chegar no seu discurso. Na primeira ora-
ção, linha 1, nota-se a presença da expressão “é necessário” para tratar
do adiamento do Enem. O uso dessa expressão marca o posicionamen-
to do sujeito em relação ao adiamento do exame; ao fazer uso dessa
forma verbal, é criado um sentido de algo inevitável, ou seja, não existe
outra medida que não adiar o exame.

126
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Consideradas as condições de produção da publicação, é possível


observar um efeito de sentido que supõe uma defesa, de quem escre-
ve, para que as provas do exame sejam adiadas. No texto, constrói-
-se um sentido de que esta ação pode funcionar como uma medida
de proteção dos candidatos, e que esse adiamento consequentemente
garantirá direitos iguais no que tange à preparação dos candidatos.
Assim, a publicação do parlamentar constrói a imagem de que o sujei-
to político ali representado defende benefícios para alunos/candidatos
de todas as classes sociais.
Nesse sentido, a imagem construída pela publicação produz
um sentido de que há um posicionamento do sujeito parlamentar,
que busca o bem comum. Este efeito de sentido é vinculado a uma
FD jurídica, pois os interdiscursos retomados criam uma imagem
de defesa do direito coletivo à preparação igualitária dos candidatos.
Este sentido de igualdade não está nas marcas linguísticas di-
retamente, mas é retomado por discursos que compreendem o campo
discursivo da avaliação do Enem, que é um processo seletivo de grande
representatividade nacional, uma vez que é condição de entrada de mi-
lhares de alunos na educação superior. A questão do acesso ao ensino
superior foi ainda mais atingida com as medidas de proteção e de iso-
lamento que vivenciamos em razão da pandemia do Coronavírus; tais
medidas, embora necessárias por motivos de saúde pública, podem
afastar e impossibilitar a realização das provas por alunos de diferen-
tes origens.
Isso se configura, como afirma Pêcheux ([1975]2014a, p. 130),
numa luta de classe entre dois mundos distintos e preexistentes
(os que possuem poder aquisitivo e recursos para o estudo remoto,
e aqueles que são inverso) em que a ideologia do vencedor se impõe
sobre o vencido. Dessa forma, o sentido que desponta nesse contex-
to é o da defesa de que os menos favorecidos tenham direitos iguais
aos que têm boas condições educacionais, pois estes alunos, desprovi-
dos de condições socioeconômicas para atividades remotas, sofreram
uma defasagem de preparação para o Enem muito maior do que aque-
les que têm tais condições.

127
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Como mencionado acima, o uso expressão “é necessário” pro-


duz o sentido de que o adiamento do ENEM é uma medida que visa
à preservação do bem-estar/saúde dos participantes, mas que só isso
não basta. Mesmo inferindo tais sentidos relacionados ao uso da ex-
pressão “é necessário”, pode-se inferir ainda, no período, que a medida
não será suficiente para resolver o problema, visto que as necessidades
e as mazelas da população não serão adiadas.
Por outro lado, o uso do adversativo – “mas” – na segunda ora-
ção do primeiro período da publicação 01, linha 1, produz um sentido
oposto do anteriormente exposto, pois o uso deste elemento linguísti-
co traz o sentido de que o adiamento do Enem favorece também a se-
gregação social, uma vez que seu acontecimento tem um caráter de in-
clusão social, proporcionando a oportunidade de uma mudança social
por meio da educação, principalmente para as pessoas de menor poder
aquisitivo (neste caso, as mais prejudicadas pela falta de recursos para
estudo durante a pandemia, ou seja, os mais pobres).
Dessa forma, quando analisamos o período, nota-se que o adia-
mento do exame é uma discussão de instância política que, segundo
Charaudeau (2018), deve agir em função do possível para que a instân-
cia cidadã possa ter o desejável, que neste caso é o direito dos alunos
poderem se preparar de forma igualitária.
Por estar posicionado na FD de parlamentar, nota-se a presen-
ça formações imaginárias no processo discursivo, uma vez que os ele-
mentos linguísticos analisados criam sentidos opostos, demonstran-
do, pois, duas situações caso se concretize o adiamento do ENEM:
a primeira é que, mesmo com o adiamento do exame, as problemáticas
sociais continuarão a existir; a segunda está relacionada com o ima-
ginário de que o político é responsável pela resolução de problemas
sociais.
Pode-se considerar, por meio deste processo discursivo, que há
uma aparente sobreposição da FD de parlamentar em relação à FD do-
minante do sujeito, uma vez que o espaço discursivo do sujeito é forma-
do por dois posicionamentos – (i) a defesa do adiamento do Enem e (ii)

128
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

a admissibilidade de que as mazelas sociais não serão adiadas – , isso


advindo de dentro do campo discursivo político a partir do qual mar-
ca sua FI na defesa de direitos básicos dos cidadãos (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2016).
A presença de uma FD jurídica sobrepondo-se à FD parlamentar
é marcada por meio de elementos linguísticos característicos do cam-
po jurídico, representados, no caso, pelo termo “agravados”, linha 2.
A presença desse elemento linguístico pode configurar uma retomada
a outro discurso, os problemas educacionais pelos quais a educação
passa, e que, diante do contexto da pandemia, se intensificaram. Dessa
forma, essa marca linguística reafirma a presença do discurso jurídi-
co de defesa de direitos, representado, aqui, pela defesa do adiamento
do Enem e pela “preocupação” com as mazelas sociais.
Outra marca linguística encontrada é o uso do verbo “pecar”, li-
nha 3, conjugado em terceira pessoa do singular, do pretérito perfeito
do indicativo (“pecou”). O uso dessa marca linguística cria um senti-
do metafórico que, nestas condições, aponta para o descumprimento
das obrigações sociais dos governantes do país para com o povo, o que
pode ser visto ainda como uma reflexão sobre os direitos coletivos ad-
quiridos, que estão sendo descumpridos, caracterizados, nestas con-
dições de produção do discurso, pela falta de efetivação de políticas
públicas que levariam à popularização das Tecnologias de Informação
e Comunicação (TICs).
A presença da forma verbal “pecou”, num contexto que não o re-
ligioso, sugere uma busca de reconhecimento dos interlocutores da-
quele discurso, bem como marca uma FD religiosa do sujeito, pois, para
Pêcheux ([1975]2014a, p. 146), uma palavra, expressão, proposição,
etc., não possui sentido “em si mesma”, ou seja, não possui um senti-
do próprio; ela(s) são determinadas pelas posições ideológicas que se
fazem presentes no processo sócio-histórico em que são produzidas.
A FD religiosa é garantida por meio do pré-construído, ao qual
recorre o conhecimento do interlocutor, uma vez que, sendo um pré-
-construído, pressupõe-se que qualquer pessoa possa recuperá-lo “[...]

129
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

sob a forma das evidências do ‘contexto situacional’” (PÊCHEUX,


[1975]2014a, p. 159). Nesse caso em específico, as condições de produ-
ção são importantes para o processo de significação do termo “pecou”
por parte dos interlocutores, já que, naquelas condições, é esperado
que o sentido do uso do termo será de falha na prestação de serviços
à população, que gerou consequências graves tal como o pecado é gra-
ve para o religioso; dessa forma, o termo empregado é responsável
pela articulação entre o discurso religioso e o discurso de assistência
aos necessitados.
Outro elemento a ser analisado é a imagem que acompanha
o texto verbal, e que, juntos, compõem a publicação 01. A imagem
ilustra os “dois lados” da realidade socioeconômica brasileira. Do lado
esquerdo, tem-se ilustrado um garoto (estudante) que dispõe de todo
um aparato tecnológico e conforto para desenvolver suas tarefas es-
tudantis sem muitos percalços. Enquanto, à direita da imagem, está
ilustrado outro menino (estudante) em um ambiente que não oferece
nenhum conforto para desenvolver as tarefas escolares, bem como no-
ta-se ausência de tecnologias digitais que o auxiliem nos estudos.
Considerando as condições de produção que envolvem a publica-
ção do parlamentar, pode-se afirmar que há a presença de um discurso
assumido em um interdiscurso, que, para Charaudeau e Maingueneau
(2016, p. 17), se caracteriza pela relação com outros discursos. Aqui,
esta forma de discurso está representada pela imagem que acompanha
o texto da publicação, pois ela faz um contraste das realidades vividas
pelos brasileiros: poucos possuem recursos para sobreviver em meio
à pandemia, e muitos não têm quase nada, ficando desolados e desam-
parados socialmente num momento em que o isolamento social se faz
necessário para a contenção do Coronavírus.
O diálogo entre a ilustração e o texto verbal da publicação mostra
a presença do discurso de garantias de direitos. Nas linhas 2 e 3, vê-se
a relação com o discurso, já mencionado, dos problemas que a educa-
ção vem enfrentando ao longo das décadas, agravados com a pande-
mia. Pode-se dizer, ainda, que o sentido que advém do diálogo entre
o texto imagético e verbal é de que os direitos educacionais estão sen-

130
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

do violados, pois existe, nessa pandemia, uma discrepância no acesso


aos meios necessários para estudar.
A publicação estabelece, também, relação interdiscursiva/inter-
textual com a pesquisa “TIC Domicílios 2019”, realizada pelo Centro
Regional para o Desenvolvimento de Estudos sobre a Sociedade
da Informação (Cetic.br)3 vinculado ao Comitê Gestor da Internet
no Brasil divulgada no ano de 2020 e veiculada por meio de uma repor-
tagem no “G1.com” no dia 21 de maio de 2020. Essa pesquisa aponta
que, no Brasil, 17% das crianças e adolescentes na faixa de 09 a 17 anos
não têm acesso à internet em casa.
No que diz respeito aos dados apresentados sobre cada estado,
o Maranhão foi classificado, segundo o jornal “O Estado do Maranhão”4,
como o estado que apresenta o menor percentual de acesso às TICs den-
tre os estados da Federação, tendo empatado com o Piauí com o percen-
tual de 61,4%; ou seja, 38,6% dos maranhenses estão desconectados.
Nessas condições, a imagem da publicação 01 materializa os nú-
meros apresentados pela pesquisa, em especial a realidade maranhen-
se. Outrossim, a imagem confere um efeito de sentido no campo visual
que funciona pela dualidade socioeconômica brasileira, em especial
a maranhense, expressada pelo enunciado “Os prejuízos educacio-
nais agravados pela COVID19 só demonstram como o nosso país pe-
cou em não investir em uma política de inclusão digital”, linhas 2 e 3,
e corroborados pelos números da referida pesquisa.
Finalizada as análises da publicação 01, passaremos agora à des-
crição e análise da publicação 02, que foi realizada em 26 de maio
de 2020, três meses desde a confirmação do primeiro caso de COVID19
no Brasil. A publicação trata das ações aprovadas pelo poder legisla-
tivo estadual como medida de combate ao coronavírus; neste caso,

3 Núcleo da Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) (2020). Pesquisa sobre o uso


das tecnologias de informação e comunicação: pesquisa TIC Domicílios, ano 2019: Tabelas.
Disponível em: http://cetic.br/arquivos/domicilios/2019/individuos/#tabelas.
4 Disponível em: https://imirante.com/oestadoma/noticias/2020/04/29/interne-
t-chega-a-61-4-dos-domicilios-maranhenses/#:~:text=De%202017%20para%202018%2C%20
o,Piau%C3%AD%20(61%2C4%25).

131
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

aplicação de multas a instituições financeiras que descumprirem


as medidas sanitárias vigentes naquele período. Essa medida é regula-
mentada pela aprovação da Lei 11.263 de 25 de maio de 2020, aprovada
na Assembleia Legislativa do Maranhão (Alema).
Nesse contexto dos momentos iniciais da pandemia, quando
ainda não se sabia muito sobre como lidar com o vírus, a publicação
trata do funcionamento dos bancos (medidas de segurança a serem
tomadas, como seria feito isso etc.), visto que essas instituições es-
tavam na lista dos estabelecimentos denominados “serviço essencial”
do decreto federal nº 10.282 de 20 de março de 20205 art. 1º e aplicado
pelos artigos 2º e 3º, §1º, inciso XX (e, atualmente, com redação pelo
decreto 10.292 de 2020). Passemos à transcrição do texto.

Publicação 02

1 Aprovamos multas de mais de meio milhão aos bancos que não garan-
2 tirem a proteção do direito à saúde de consumidores e bancários. Desta
3 forma, será possível garantir mais rigor nas fiscalizações. As instituições
4 financeiras lucram bilhões e precisam tornar seus serviços eficientes.
Fonte: Twitter, 26 de maio de 2020.

Olhando atentamente o texto da publicação, encontramos mar-


cas linguísticas que apontam para a presença do discurso jurídico
de defesa dos direitos do consumidor. 8Porém, pode-se flagrar o su-
jeito na FD de parlamentar logo no primeiro período, linhas 1 e 2:
“Aprovamos multas de mais de meio milhão aos bancos que não ga-
rantirem a proteção do direito à saúde de consumidores e bancários”.
O uso do sintagma “aprovar multas”, neste caso, por meio da criação
de leis, é uma prerrogativa do cargo de deputado.
No período “Aprovamos multas de mais de meio milhão aos ban-
cos [...]”, na linha 1, a ação expressa, de aprovar multas, remete à apro-
vação da Lei 11.263 de 25 de maio de 2020. Além de sugerir uma FD
de parlamentar, já que a ação de aprovar leis é dos parlamentares, in-
5 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10282.
htm.

132
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

fere-se o sentido que, até então, os órgãos de fiscalização não pode-


riam aplicar multas superiores a meio milhão de reais a bancos. Assim,
quando busca intervir no espaço socioeconômico por meio de leis, no-
ta-se um sujeito assujeitado ideologicamente a uma FD jurídica. Dessa
forma, mostra-se que a FI do sujeito é interligada pelas FD parlamen-
tar e jurídica, sendo possível distingui-las.
A referência à aprovação de multas retoma a lei acima citada,
em cujo artigo 1º afirma que “Os bancos que inobservarem os protoco-
los de segurança fixados, nas normas estaduais, destinados à preven-
ção e contenção da COVID-19 e à proteção da saúde dos consumido-
res, sujeitam-se à sanção administrativa de multa cujos critérios para
aplicação são os constantes desta Lei”. Assim, o referido artigo aponta
para a defesa do direito à biossegurança dos usuários de serviços ban-
cários, bem como para a garantia de condições de trabalho para os co-
laboradores das instituições financeiras.
A referência à lei caracteriza uma identificação do sujeito com
“formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações
ideológicas que lhes são correspondentes (PÊCHEUX, [1975]2014a, p.
147), isto é, uma FI jurídica, porque, mesmo num campo que não o ju-
rídico, a FD predominante do sujeito é a jurídica, marcando, assim,
a defesa de direitos (neste caso, o direito à biossegurança no interior
de instituições financeiras).
Ao retomar a lei 11.263, pode-se confirmar, por meio do artigo
3º, a presença do discurso jurídico na publicação:

O valor da pena-base, considerando a fundamentali-


dade do direito à saúde, a gravidade da pandemia e o
porte dos bancos, será de R$ 504.612,18 (quinhentos
e quatro mil, seiscentos e doze reais e dezoito centa-
vos), que corresponde a 474.215 (quatrocentos e se-
tenta e quatro mil e duzentas e quinze) vezes o índice
de 1,0641, de acordo com o art. 57, parágrafo único,
do Código de Defesa do Consumidor (MARANHÃO,
2020, p. 66) (grifo nosso).

133
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Assim, a presença do discurso jurídico de garantia de direitos


marca não somente sua posição uma FD de parlamentar, mas uma
FI jurídica do sujeito, uma vez que o conhecimento das leis e o bom uso
delas pode garantir que o cidadão tenha seus direitos assegurados.
Nesse sentido, o uso do termo “garantir” no texto da publicação 02,
linha 1, marca o discurso jurídico de garantia de direito, materializado
na publicação.
Como considera Pêcheux ([1975]2014a), as palavras não pos-
suem o sentido em si mesmas; antes, estes sentidos são determinados
pelas posições ideológicas em jogo no processo sócio-histórico em que
são produzidas. Podemos relacionar essa discussão à palavra “garan-
tir”, nas linhas 1 e 3, que, em certa medida, tem seu sentido estabi-
lizado na relação com o discurso jurídico, relacionando-se, portanto,
à garantia e à manutenção de direitos como a saúde e a biosseguran-
ça no interior de bancos. Essa estabilidade, todavia, não quer dizer
que não conviva também com a diferença. Vejamos a seguir.
O elemento linguístico “garantir”, na sua primeira ocorrência, li-
nha 1 (“Aprovamos multas de mais de meio milhão aos bancos que não
garantirem a proteção do direito à saúde de consumidores e bancá-
rios”), produz o sentido de atribuição de responsabilidade aos bancos,
ou seja, os bancos são os responsáveis e, portanto, obrigados a garantir
a biossegurança dos seus usuários e colaboradores.
Na recorrência do referido elemento linguístico, na linha 3,
o sentido é modificado, porque, ao invés de atribuir reponsabilidade
aos bancos, o verbo se apresenta com o sentido de assegurar, pois a re-
ferência mudou; já não se refere aos bancos, mas à lei, significando di-
zer que a Lei 11.263 irá “garantir” que os bancos cumpram com as me-
didas sanitárias estabelecidas e, por conseguinte, garantirá que seus
usuários e colaboradores fiquem seguros.
As formas verbais de “garantir”, nas linhas 1 e 3 do texto da pu-
blicação 02, são dotadas de significados, em certa medida, diferentes,
pois “uma palavra, expressão ou uma proposição não tem um sen-
tido que lhe seria ‘próprio’, vinculado à sua literalidade” (PÊCHEUX

134
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

([1975]2014a, p. 147), ou seja, a forma verbal “garantir” muda de sen-


tido na medida que a referência muda, bem como quando há desloca-
mento da FD do sujeito.
Além das pistas linguísticas já discutidas, a presença do discurso
jurídico na publicação 02 é marcada na superfície linguística também
por meio do período “proteção do direito à saúde”, linha 2. Assim, em se
tratando de lei, de direito, podemos dizer que há uma retomada aos di-
reitos básicos do cidadão expresso na Constituição Federal de 1988,
haja vista que, no caput do art. 196, está descrito que “A saúde é di-
reito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais
e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação”(BRASIL, 2020, p. 104) (grifo
nosso). Assim, tomar as medidas que visam à garantia do direito à saú-
de dos clientes e colaboradores é dever das instituições financeiras
que se encontram em funcionamento no período da pandemia6.
Os indícios do discurso jurídico de defesa de direitos, neste caso
à saúde, são reforçados por meio de qualificadores como “consumido-
res e bancário”, o que denuncia o posicionamento do sujeito no ato
discursivo, mostrando, pois, que se encontra interpelado ideologica-
mente. Nesse sentido, a interpelação do sujeito se dá pela sua identi-
ficação com a FD que o domina (PÊCHEUX, [1975]2014a); neste caso,
a FD jurídica.
Considerando os aspectos que concernem à FD jurídica, pode-se
dizer que o indivíduo se constitui como sujeito pelo “esquecimento”
daquilo que o determina (PÊCHEUX, [1975]2014a), mas que, por meio
da memória discursiva, os interlocutores resgatam acontecimentos
que os definem.
Observou-se, no discurso do sujeito, na publicação 02, a presen-
ça de duas FD (parlamentar e jurídica) que marcam um posicionamen-
to ideológico. A existência das duas FD se deve ao fato de uma FI po-
6 Focamos no período da pandemia, pois o momento exige que sejam tomadas medidas mais
severas quando comparadas a períodos que não envolvem a pandemia. Contudo, a biossegu-
rança é uma ação necessária em todos os cenários.

135
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

der organizar várias FD interligadas; isso corresponde à perspectiva


de Pêcheux ([1983]2014c), segundo quem uma FD é constantemente
invadida por elementos que vêm de outro lugar (de outras FD).
Assim, no que concerne aos efeitos de sentido pela presença
do discurso jurídico na publicação do parlamentar, é válido retomar
Pêcheux ([1969]2014b) e sua discussão sobre as condições de produ-
ção do discurso. Conforme o autor, “é impossível analisar um discurso
como um texto, isto é, como uma sequência linguística fechada sobre
si mesma, mas é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis
a partir de um estado definido das condições de produção” (PÊCHEUX,
[1969]2014b, p. 78). Tendo isso em vista, podemos dizer que os dis-
cursos outros, ou mesmo que as referências discursivas apresentadas,
inclusive por meio do esquecimento (PÊCHEUX, [1975]2014a), são im-
portantes para tornar o discurso válido e aceito pelos interlocutores
(eleitores e possíveis futuros eleitores).

Considerações finais

Este estudo buscou responder como o campo discursivo jurídico


desenvolve efeitos de sentidos que constituem as publicações de polí-
ticos maranhenses no Twitter. Para isso, propomo-nos analisar os efei-
tos de sentido do discurso jurídico em dois twittes; buscamos, ainda,
identificar as estratégias linguístico-discursivas nas/das publicações.
No percurso das análises realizadas, verificamos a presença
de elementos linguísticos que demarcam a presença do discurso jurí-
dico. A presença desses elementos cria uma série de efeitos de senti-
do capaz de criar uma imagem de um sujeito parlamentar que se po-
siciona na busca do bem comum. Um desses efeitos (publicação 01)
consiste na defesa de direitos no campo educacional, já que a defesa
de um adiamento do Enem poderia possibilitar aos candidatos/alunos
com menos estrutura a possibilidade de buscarem alternativas para
uma formação melhor, tentando, assim, suprir, pelo menos em parte,
a defasagem da aprendizagem causada pela pandemia do coronavírus.
Nesse sentido, surge também o efeito de sentido correlato à igualdade,

136
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

segundo o qual todos têm a oportunidade de se aprimorar ou suprir


necessidades formativas.
Outro recurso utilizado, a imagem na publicação 01, produz efei-
to de sentido no campo visual que, de forma imagética, materializa
a dualidade de realidades existentes no Brasil e, mais especificamente,
no Maranhão, quando esta dialoga com a pesquisa “TICs domicílios”,
mencionada antes.
Os sentidos produzidos pela presença do discurso jurídico
nas publicações são denotados pelas FD embricadas com a FI do su-
jeito. Assim, mesmo numa FD de parlamentar, que lhe permite dizer
o que diz naquelas condições, mostra-se identificado com a FD jurí-
dica, que, por sua vez, é a FD que o domina, tomando-o sujeito do seu
discurso.
Na publicação 02, nota-se que a presença do discurso jurídi-
co cria sentido de emergência no que concerne à garantia de direi-
tos individuais e coletivos relacionados à saúde das pessoas, tanto
de consumidores de serviços bancários quanto de funcionários dessas
instituições. Assim, observa-se que a FD jurídica se torna, nesse con-
texto, predominante, marcando, pelos aspectos jurídicos, a garantia
de diretos.
Por fim, a presença do discurso jurídico nas publicações cria efei-
tos de sentido capazes de mostrar o sujeito parlamentar como um de-
fensor do bem comum, lutando por causas sociais e por direitos que vi-
sam ao bem-estar da sociedade.

Referências

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do


Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, compilado
até a Emenda Constitucional nº 105/2019. – Brasília: Senado Federal,
Coordenação de Edições Técnicas, 2020. 397p. Disponível em: https://www2.
senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/566968/CF88_EC105_livro.pdf .
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137
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

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MARANHÃO, (Estado). Lei 11.263 de 25 de maio de 2020. Estabelece os
critérios para aplicação de multa aos bancos que inobservarem as normas
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os direitos básicos do consumidor de proteção à vida, saúde e segurança.
Diário Oficial do Estado do Maranhão, Maranhão, 27 de maio de 2020. p.
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307-315.

138
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-7

OS ESTUDOS DOS GÊNEROS TEXTUAIS


E A TERMINOLOGIA: A REALIDADE
DA COMUNICAÇÃO EM UMA
COMUNIDADE DISCURSIVA1

Luís Henrique Serra2


Francisco Alves Filho3

Introdução

O diálogo entre as disciplinas que contribuem para a compreen-


são da comunicação nos universos especializados é muito importante,
sobretudo porque enriquecem as informações e os modos de entender
os fenômenos que ocorrem nesse âmbito da identidade humana. Nesse
sentido, os estudos terminológicos têm muito a dialogar com os estu-
dos dos gêneros textuais acadêmicos e científicos. Neste texto, apre-
sentamos os resultados e discussões de uma pesquisa sobre a variação
terminológica em gêneros textuais que circulam na comunidade dis-
cursiva da cana-de-açúcar do Brasil.

1 Este capítulo resulta de um estágio de pós-doutoramento do primeiro autor no Programa de


Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí – PPGL/UFPI.
2 Docente do Centro de Ciências, Educação e Linguagem, Coordenação de Letras, Universidade
Federal do Maranhão, Bacabal, Maranhão. luis.henrique@ufma.br
3 Professor Titular da Universidade Federal do Piauí – UFPI, Professor Permanente do Programa
de pós-graduação em Letras da UFPI.

139
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

No texto, traremos os principais aspectos e discussões acer-


ca dos estudos dos gêneros textuais – com ênfase especial na linha
sociorretórica dos estudos dos gêneros – e os estudos descritivistas
da Terminologia. A partir dessas considerações, apresentaremos al-
guns dados da variação denominativa na terminologia utilizada
por técnicos agrícolas, para, a partir disso, ler esses dados com o pris-
ma do funcionamento dos gêneros dessa comunidade, pensando so-
bretudo sua organização interna.

1 Os estudos sociorretóricos dos gêneros textuais: a prática comu-


nicativa na sociedade

Embora ainda seja recente o interesse dos estudos brasilei-


ros pelos gêneros, que foi impulsionado pelos documentos oficiais
que orientam o ensino (BORGES, 2012), os estudos sobre os gêneros
textuais têm crescido consideravelmente nos últimos anos, sobretu-
do porque, passado o primeiro momento de conhecimento da teoria
bakhtiniana (teoria seminal dos estudos sobre uma visão social e fun-
cional dos gêneros textuais), o interesse por pesquisadores brasilei-
ros da área da Linguística (e de outras áreas) pela temática tem feito
com que a área se expanda e busque novos horizontes e possibilidades.
Bezerra (2017, p. 85-86, grifos nossos), sobre os estudos dos gêneros
textuais no Brasil, comenta que diferentes abordagens têm recebido
atenção dos linguistas, o que tem ampliado o campo e possibilitado
diálogos e intersecções interessantes.

No Brasil, acrescentou-se a estas [Inglês para fins es-


pecíficos e análise sociorretórica] a tradição franco-su-
íça, associada ao interacionismo sociodiscursivo (ISD)
e a também chamada escola de Genebra. As pesquisas
de gênero stricto sensu têm sido produzidas no Brasil
a partir de contribuições dessas abordagens, isolada-
mente ou em combinações diversas entre si ou com ou-
tros aportes teóricos.

140
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Como aponta Bezerra (2017), uma das principais características


dos estudos dos gêneros no Brasil tem sido o diálogo entre as teorias
e abordagens sobre o gênero com outras áreas ou campos do saber.
Nesse sentido, é importante pensarmos como esse diálogo é rico e in-
teressante para as diferentes disciplinas do saber humano, sobretudo
as que se interessam pela comunicação em sua integridade, e pensar
nessa direção é colaborar para o desenvolvimento de novos caminhos
e abordagens.
O interesse pelos gêneros textuais por parte de diferentes áreas
se dá porque fica cada vez mais evidente a importância da compre-
ensão da linguagem como uma forma de ação e prática social nos di-
ferentes campos da linguística e de outras áreas do saber humano.
A questão da linguagem como uma prática social ou uma representa-
ção de um grupo social tem tido impacto considerável nas discussões
sobre o funcionamento e sobre a identidade dos diferentes grupos so-
ciais, que têm, na linguagem, uma parte de sua cultura e funcionamen-
to. Dessa forma, o interesse pelos gêneros tem aparecido em diferentes
abordagens nos diferentes estudos sobre a linguagem e seu uso.
Nesse sentido, é importante dar um exemplo pouco visto tanto
nos estudos dos gêneros quanto na sociolinguística, que é o trabalho
de Biazolli e Berlink (2021), que analisa a variação linguística a partir
dos estudos dos gêneros textuais. As autoras e o grupo que lideram
têm mostrado que a compreensão de que os gêneros textuais são práti-
cas sociais e que os usos linguísticos e as formas características de co-
municação em cada grupo são fatores/causas de variação linguística
e, por isso, entender a variação linguística a partir dos gêneros possi-
bilita uma visão mais ampla dos estudos sobre a variação linguística
como uma característica de um grupo social. As autoras comentam,
nesse sentido, que

(...) o estudo da variação e da mudança linguística pode


ser feito na busca de padrões gerais (...), mas também
na identificação de comportamentos singulares, moti-
vados pelas condições específicas de produção e recep-

141
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

ção do texto-discurso, o que inclui a menor ou maior


agentividade do enunciador na escolha de variantes.
A materialização dessas duas dimensões se dá no texto
que, por sua vez, corporifica o gênero. A percepção des-
sa dualidade leva a uma interpretação mais qualificada
do fenômeno variável. (BIAZOLLI; BERLINK, 2021, p.
34).

A intenção das pesquisas dessas autoras e do grupo do qual elas


fazem parte têm sido de buscar fenômenos sociolinguísticos, com ên-
fase em fenômenos morfossintáticos em textos de gêneros institucio-
nais, como poemas e pareceres religiosos, legendas de filme etc, para
mostrar o avançar de determinado fenômeno no português, principal-
mente em textos escritos.
Na esteira da ampliação e dos diálogos entre os estudos dos gêne-
ros com outros campos de estudos, a abordagem sociorretórica tem re-
cebido bastante atenção por parte dos pesquisadores de um modo ge-
ral. A compreensão do gênero como um artefato social que representa
a cultura, a organização, as práticas e os valores da sociedade e dos
diferentes grupos sociais que a compõem tem atraído diferentes es-
tudos e abordagens e tem prosperado dentro dos estudos brasileiros.
A abordagem americana, como também ficou conhecida a abor-
dagem sociorretórica dos gêneros, tem recebido atenção dos pes-
quisadores por extrapolar a compreensão materialista dos gêneros,
reverberando, de modo mais direto, a compreensão de gênero como
uma entidade social, conforme a proposta de Bakhtin (2016). Para
Miller (2009), os gêneros textuais são, na verdade, ações sociais defini-
das no espaço da cultura e da formação de uma sociedade e, por isso,
os fenômenos atinentes a eles precisam ser compreendidos dentro
dessa esfera ou de microesferas que define sua forma, produção e com-
preensão. Desse modo, preocupações como classificação ou forma
do gênero não podem ocupar lugar central na discussão sobre os gêne-
ros, mas sim seu papel enquanto performance ou ação social.

142
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Para além do papel social, Miller gostaria de entender o papel


do usuário, do falante na produção ou na atividade de um gênero,
entendendo o falante não como um ser inteiramente passivo diante
da prática de linguagem, mas como alguém que, a depender do propó-
sito comunicativo, escolhe as possibilidades de contextualização e de
melhor se comunicar que o gênero pode oferecer, dentro dos limites
e possibilidade da situação comunicativa. Carvalho (2005, p.133) ex-
plica que, para Miller,

(...) é preciso que se perceba, na situação retórica,


não só características do contexto ou das deman-
das situacionais identificadas pelos usuários e dentre
das quais operam, mas também a motivação dos par-
ticipantes do discurso, assim como os efeitos por ele
assim pretendidos e/ou percebidos. (...) os propósitos
dos usuários são componentes essenciais da situação.

Outro importante nome dessa linha é Charles Bazerman, que vê


o gênero social como um elemento da cultura que organiza as prá-
ticas sociais e serve como um modelo por meio do qual os usuários
se baseiam para as práticas cotidianas. Um outro ponto importante
nas considerações de Bazerman é o reconhecimento, por parte do usu-
ário, do papel e das funções de um gênero como um fator importante
para a definição de um gênero. Para Bazerman (2009), uma comunica-
ção bem-sucedida pode seguir um modelo estabelecido socialmente.
O autor explica que

Se começarmos a seguir padrões comunicativos com os


quais as outras pessoas são familiarizadas, elas podem
reconhecer mais facilmente o que estamos dizendo e o
que pretendemos realizar. Assim, podemos antecipar
melhor quais serão as reações das pessoas se seguir-
mos essas formas padronizadas e reconhecíveis. Tais
padrões se reforçam mutuamente. As formas de co-
municação reconhecíveis e auto-reforçadas emergem
como gêneros. (BAZERMAN, 2009, p. 29, grifo original).

143
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

A abordagem de Bazerman é psicossocial e busca perceber os gê-


neros textuais como um conjunto de aspectos pragmáticos, psíquicos
e sociais e, por isso, os gêneros são vistos como um artefato comuni-
cativo pelos quais as pessoas buscam fazer alguma coisa na sociedade.
Nas palavras de Bazerman (2009, p. 31),

Gêneros são tão-somente os tipos que as pessoas re-


conhecem como sendo usados por eles próprios e pe-
los outros também. Gêneros emergem nos processos
sociais em que as pessoas tentam compreender umas
às outras suficientemente bem para coordenar ativi-
dades e compartilhar significados com vistas aos seus
propósitos práticos.

A definição e o olhar sobre um gênero passam pela opinião, pen-


samento e reconhecimento do usuário, que, na ótica de Bazerman,
tem papel fundamental na constituição do gênero, como um fato
da sociedade.
Bazerman e Miller nos trazem uma reverberação interessante
do que Bakhtin já havia trazido em um outro momento da história
dos estudos dos gêneros textuais, aproximando-se muito mais de en-
tender os gêneros a partir dos usos reais e da interação, alinhando-se
muito mais com as ideias de uma teoria da argumentação moderna.
O grupo americano de estudos dos gêneros é completo com a pre-
sença de John Swales, outro importante estudioso dos gêneros que tem
recebido importante atenção por parte dos pesquisadores da área.
Swales é um importante interlocutor dos estudos dos gêneros textuais
e, no Brasil, seu trabalho tem tido um forte impacto em diferentes áre-
as dos estudos linguísticos. São exemplos das contribuições de Swales
em pesquisas produzidas no Brasil: (i)as pesquisas sobre a organização
retórica dos gêneros textuais; (ii)sobre a aplicação do modelo de aná-
lise dos passos retóricos ou o modelo CARS (Create a research space)
em diferentes textos acadêmicos; (iii) além das discussões no campo
da Linguagens para fins específicos e (iv) sobre a escrita acadêmica
de um modo geral.

144
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Os estudos de Swales resultaram em uma importante concep-


ção de gênero textual, bastante calcada na prática social, uma vez que,
para ele, um gênero textual é um conjunto de práticas sociais que se
concretizam em eventos de um grupo social que têm propósitos seme-
lhantes, muito próximos. Desse modo, são elementos que constituem
o gênero textual o propósito comunicativo, a prototipicidade, o reco-
nhecimento do gênero pela sociedade e a terminologia voltada para
grupos sociais específicos. Essas características, para Swales, são a
substância dos gêneros como práticas sociais, bastante delimitadas
e organizadas na sociedade. Hemais e Biasi-Rodrigues (2005, p.111)
comentam, nesse sentido, que, para Swales, “os gêneros teriam um va-
lor sociocultural na medida em que atendem às necessidades sociais
e espirituais dos grupos sociais; é importante para o pesquisador per-
ceber como a comunidade entende os gêneros.”.
Como se observa, o gênero textual, na perspectiva de Swales,
é, na verdade, a materialização de uma organização social, de modos
específicos de comunicação e de maneiras particulares do uso da lin-
guagem e, por isso, eles não podem ser vistos apenas por sua forma,
mas por sua importância e reconhecimento das comunidades nas quais
eles estão inseridos. Entender o gênero dentro de um conjunto de re-
gras que se firmam na cultura e no modo de se comunicar de um deter-
minado grupo, entender a cultura do uso da linguagem e das escolhas
linguísticas feitas por um grupo social e o reconhecimento dos indiví-
duos de uma comunidade de um modo de se comunicar são os verda-
deiros elementos de análise de um gênero. Biasi-Rodrigues, Hemais
e Araújo (2009, p. 31) comentam que a

(...) teoria dos gêneros, proposta e revista por Swales


(...) apresenta o gênero como uma classe de eventos
comunicativos, que se constitui em torno de propó-
sitos comunicativos partilhados entre os membros
de uma comunidade discursiva. Esta produz os gêne-
ros e reconhece a lógica subjacente a eles, desenvolve
e possui um repertório de gêneros, assim como um lé-
xico próprio para os gêneros.

145
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

É a partir desse conceito de gênero e de outros estudos dentro


da Linguística de um modo geral que Swales formula ou reformula
o conceito de comunidade discursiva, já amplamente utilizado nesses
domínios. Swales afirma que o conceito de “comunidade” é de difícil
definição e só elencando seus aspectos é que seria possível apresentar,
de modo objetivo, esse conceito. Desse modo, o autor elege as 6 princi-
pais características de uma comunidade discursiva, buscando selecio-
nar elementos que possam ser comuns a todos os tipos de comunidades.
As seis características elencadas por Swales (1990) são:

a. Objetivos comuns: toda comunidade discursiva se or-


ganiza a partir de objetivos comuns;
b. Mecanismos de comunicação comuns entre os mem-
bros da comunidade;
c. Troca corriqueira de informações entre os indivíduos;
d. Apresenta um conjunto de gêneros textuais próprios
e reconhecidos dentro da comunidade;
e. A comunidade tem um léxico específico, e, a depender
da comunidade, apresenta características específicas;
f. Os membros da comunidade exercem papéis dife-
rentes, tudo depende do nível de experiência e tempo
de participação do indivíduo.

Swales via nessas características um forte elemento de coesão


de uma comunidade de indivíduos. Muito embora essas característi-
cas sejam compartilhadas pela maioria dos grupos sociais, em análises
mais recentes, Swales tem repensado e proposto novas análises e in-
terpretações para o seu conceito, ampliando e restabelecendo e afi-
nando algumas de suas ideias.
De acordo com Biasi-Rodrigues (2009), a proposta de Swales
vem sofrendo algumas alterações, a fim de apresentar características
mais concretas das comunidades discursivas. São algumas das refor-
mulações propostas por Swales, de acordo com Biasi-Rodrigues (2009),
a compreensão de que um sujeito pode participar em mais de uma co-

146
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

munidade discursiva; que pode existir uma relação entre as diferen-


tes comunidades discursivas, e que elas se relacionam e se influen-
ciam. Outro importante adendo que Swales faz sobre as características
das comunidades discursivas é a possível desavença dentro do grupo,
não havendo um grupo inteiramente coeso. Os gêneros textuais po-
dem mudar tão logo mudem as práticas e as estratégias comunicati-
vas dos indivíduos desse grupo. Mais recentemente (SWALES, 2016),
foram acrescentados mais dois critérios de identificação de uma co-
munidade discursiva: a primeira é que as relações e os códigos/com-
portamentos de uma comunidade discursiva são velados. O outro cri-
tério é que os valores de uma comunidade podem se modificar, sendo
que aquilo que é mais valorizado em uma produção atualmente pode
não ter o mesmo valor depois, no futuro. Em outras palavras, o sistema
de valores é móvel e flutuante de acordo com critérios que não são exa-
tamente internos.
Como se vê, essas e outras formam um conjunto de reformula-
ções que Swales foi fazendo ao longo dos anos no seu modelo, para,
além de responder às críticas, elaborar um modelo teórico que des-
creva adequadamente os mecanismos de uma comunidade discursiva.
A Sociorretórica, como se observa, preocupa-se em estudar o uso
dos gêneros na sociedade, em seu lugar de ação e como as circunstân-
cias em que eles ocorrem exigem dos participantes certo conhecimento
e habilidades linguísticas e culturais. Desse modo, esses estudos rom-
pem com um modelo estático e formal dos gêneros nos estudos lin-
guísticos. Ver os gêneros para além de sua classificação e forma é uma
tônica que movimenta esses estudos e une as diferentes abordagens
dadas aos estudos sociais e retóricos dos gêneros.
Dentre os estudos de sociorretórica que foram citados anterior-
mente, o conceito de comunidade discursiva é muito importante para
a discussão sobre o léxico no universo especializado. A ideia de que
as causas da variação terminológica no universo discursivo têm a
ver com o conceito de comunidade discursiva, sobretudo porque é o
objetivo dos especialistas, o papel deles dentro da comunidade, além
de o conhecimento dos gêneros mais recorrentes dessa comunidade

147
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

que levam os indivíduos de um domínio do conhecimento humano,


ou, em outras palavras, de uma comunidade discursiva, a selecionarem
diferentes formas linguísticas nos seus texto (oral ou escrito), visando
a adaptação ao discurso.
Por conta dessa realidade, cumpre conhecer um pouco da dis-
cussão sobre os estudos linguísticos da Terminologia e como o diálo-
go entre Terminologia e os estudos dos gêneros textuais, sobretudo
o conceito de comunidade discursiva, apresenta importantes discus-
sões para ambas as áreas.

2 Terminologia: estudos linguísticos dos universos


técnico-profissionais

A terminologia como um campo de estudos sistemáticos ocorreu


muito recentemente. No final do século XX e início do XXI é que os es-
tudos sistemáticos de uma linguagem técnica utilizada em atividades
técnicas e científicas tiveram início, muito embora não seja nessa épo-
ca que o homem se interessa, pela primeira vez, pela linguagem de um
campo do conhecimento humano (BARROS, 2004).
A Terminologia é um campo de estudos da comunicação espe-
cializada, tendo como objeto de estudos todos os elementos que com-
põem a comunicação. Desse modo, da linguagem até o contexto co-
municativo podem ser estudados pela Terminologia. Por conta de sua
multiplicidade, a Terminologia tem sido do interesse de diferentes áre-
as do conhecimento, com destaque para as ciências da comunicação,
as ciências médicas, naturais e sociais. Na Linguística, a Terminologia
se situa entre as disciplinas da Linguística Aplicada. No Brasil, ela é
considerada como uma das disciplinas que estudam o léxico das lín-
guas naturais, como a Lexicologia e a Lexicografia. No entanto, de um
modo abrangente, a Terminologia é uma disciplina interdisciplinar
e apresenta diferentes abordagens no seu escopo teórico.
Embora seja um campo recente, a Terminologia se desenvol-
veu sobremaneira nos últimos tempos, tendo em vista que já se en-
contra no currículo de muitas universidades brasileiras e estrangei-

148
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

ras ao redor do mundo e contanto com instituições governamentais


e internacionais que cultivam o seu estudo e seus pressupostos, como
a UNESCO, por meio do INFOTERM, que é um instituto internacional
de Terminologia, que tem ramificações em todos os continentes. O tra-
balho do instituto se apresenta por meio de normas, como a norma
ISO 704:2009, que regulamenta e organiza o trabalho terminológico,
e a NBR 13.789/1997, que estabelece princípios e métodos da criação
de terminologias no Brasil.
Como mencionado anteriormente, a Terminologia apresenta vá-
rias abordagens que buscam ver a comunicação de diferentes manei-
ras, dando destaque à linguagem utilizada no universo das ciências
e das técnicas do conhecimento humano. Na Linguística, a história
da Terminologia é marcada por diferentes abordagens que se reú-
nem em dois grandes grupos de estudos: estudos normativos (como
os produzidos pelos institutos de Terminologia ao redor do mundo)
e os estudos descritivistas (estudos, geralmente linguísticos, que se
preocupam em descrever a linguagem e seu uso nas diferentes campos
do conhecimento humano).
Esses dois grandes grupos são representados por duas gran-
des abordagens teóricas denominadas Teoria Geral da Terminologia
e a Teoria Comunicativa da Terminologia que passamos a comentar
a seguir.
A Teoria Geral da Terminologia (WÜSTER, 1998) é, na verda-
de, um conjunto de princípios e observações que tem como objetivo
a normatização ou padronização do uso da linguagem em atividades
acadêmicas e científicas. A Teoria, que foi desenvolvida a partir da dé-
cada de 80 do século XX, ganhou notoriedade porque busca mecanis-
mos de comunicação internacional e serviu de subsídio para a criação
das normas ISO e ABNT. O engenheiro austríaco Eugen Wüster, con-
siderado um importante expoente dessa abordagem, via a diversidade
e o não controle da linguagem como uma ameaça para o desenvol-
vimento da técnica e da ciência de um modo geral. No mundo todo,
políticas de normatização e de valorização das línguas foram forjadas
tendo como base a teoria wüsteriana. São princípios gerais da teoria

149
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

normatizadora o controle da variação e a produção de ferramentas


normatizadoras, como dicionários, normas técnicas e glossários técni-
cos para que o profissional da comunicação possa orientar a padroni-
zação do uso da linguagem.
Wüster (1998), nesse sentido, propunha:

(i) a variação linguística é um atrapalho na linguagem,


ela deve ser controlada o máximo possível;
(ii) A análise e avaliação da comunicação deve
ser a mesma em todos os ambientes das diferentes áre-
as do saber;
(iii) A produção de glossários e dicionários técnicos
deve ser feita considerando aspectos universais de uma
área de conhecimento e deve ser aplicado a todas as si-
tuações dentro de uma área;
(v) O signo terminológico (ou, a palavra técnica) é cons-
tituído por conceito e denominação, mas só o conceito
é relevante para a Terminologia, não a denominação.
Este último deve ser atribuído considerando um comi-
tê técnico, que deve produzir políticas de uso linguís-
tico em uma área;
(vi) A pesquisa acadêmica na área da Terminologia
deve seguir os mesmos princípios que regem a política
de controle da linguagem, feito nos comitês termino-
lógicos.

Para Wüster e seus seguidores, seguindo esses e outros princí-


pios de organização, controle e padronização da linguagem, o trabalho
do terminólogo poderia alcançar a excelência e esse poderia colaborar
com o controle e o desenvolvimento das ciências e das técnicas no mun-
do inteiro. As ideias normatizadoras de Wüster, que ganhou notorieda-
de em órgãos internacionais, como a ONU, repercutiram no mundo in-
teiro e a padronização da linguagem virou uma tônica quando se pensa
e estuda o uso da linguagem em ambientes profissionais.

150
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Muito embora ainda seja muito considerada, a Teoria Geral


da Terminologia segue enfrentando forte resistência, sobretudo a par-
tir de pesquisadores das áreas das ciências humanas e sociais, prin-
cipalmente porque o jogo político que se constitui a partir das ideias
de Wüster é restritivo e desconsidera as particularidades do uso e da
cultura das diferentes áreas das ciências. No mesmo sentido, políti-
cas linguísticas de valorização das línguas no cenário mundial, de cer-
to modo, segue os princípios da Teoria Geral da Terminologia, o que
faz com que minorias e povos economicamente menos favorecidos se-
jam excluídos das discussões sobre as ciências e o conhecimento.
Uma das principais resistências que a Teoria Geral da Terminologia
tem recebido vem da Linguística, sobretudo dos países bilíngues,
em que o debate da língua majoritária é feito de modo enfático e ocor-
re nas esteiras políticas, passando pela discussão do nacionalismo.
É da Catalunha, na Espanha, que vem a reação mais forte. A lin-
guista Maria Teresa Cabré, da Universidade de Barcelona, na década
de 90 do século XX, propõe a Teoria Comunicativa da Terminologia.
Fortemente influenciada pelos estudos da Sociolinguística,
da Gramática Funcionalista e das teorias do discurso e do texto,
Cabré avalia a proposta teórica de Eugen Wüster bastante restritiva,
por se basear em um modelo universal do uso da linguagem nos am-
bientes técnicos e especializados, sem considerar as diferentes áreas
do conhecimento humano, a diversidade da produção científica e os
costumes e práticas comunicativas da ciência. Desse modo, a Teoria
Comunicativa da Terminologia faz um caminho inverso do que faz a
Teoria Geral da Terminologia e coloca no seu bojo princípios da pes-
quisa e do trabalho terminológico que ficaram conhecidos como prin-
cípios descritivistas da Terminologia.
Para Cabré (2003),

(I) A variação linguística é um mecanismo impor-


tantíssimo da linguagem e o controle da sinoní-
mia deve ser feito apenas em algumas áreas em que

151
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

a exatidão dos conceitos não comprometa a atividade


de modo sério;
(ii) as diferentes áreas do conhecimento humano
têm seus próprios modos e culturas comunicativas
e isso deve ser considerado no trabalho terminológico;
(iii) A linguagem na ciência tem as mesmas caracterís-
ticas da linguagem comum e a análise dessa linguagem
também deve ser feita considerando aspectos da socie-
dade como um todo;
(iv) O trabalho do terminólogo não deve ser a pres-
crição, no sentido de impor uma forma de falar na co-
munidade de cientistas, mas sim a descrição em que
a forma como a comunidade de especialistas escolhe
nomear e usar a linguagem deve ser a coisa mais im-
portante a ser registrada;
(v) Os dicionários e glossários são artefatos linguís-
ticos que devem também dar visibilidade à variação
linguística na ciência, descrevendo a linguagem e não
impondo um modelo de uso da linguagem;
(vi) o signo ou a palavra científica também é compos-
ta por dois elementos: conceito e denominação, mas o
tratamento para as duas partes do signo terminológico
deve ser o mesmo, considerando a diversidade concei-
tual e linguística que também incide sobre essa unida-
de de conhecimento.

Esses e outros princípios tiveram grande aderência nos estudos


linguísticos da Terminologia porque ele trata de forma descritiva a lin-
guagem no mundo das ciências e das técnicas. A teoria comunicativa
foi amplamente estudada e reformulada por outros linguistas, que têm
criado verdadeiros rincões nos quais cada elemento dos princípios
descritivistas foram sendo aprofundados. Um dos caminhos que mais
prosperou e que tem impactado os estudos terminológicos no Brasil
é o que preconiza o estudo da variação terminológica.

152
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

O estudo da variação terminológica no Brasil, talvez por conta


do sucesso da Sociolinguística no país, recebeu bastante atenção e as
motivações da variação terminológica também prosperaram. Um dos
mais reconhecidos pela comunidade de terminólogos que se baseiam
nos estudos da Teoria Comunicativa da Terminologia é o estudo
das causas da variação terminológica elaborado pela linguista catalã
Judith Freixa, orientanda de Maria Teresa Cabré.
Para Freixa (2002; 2006, 2014), a variação terminológica ocorre
em dois grandes eixos: o da autovariação e da heterovariação. Os dois
eixos organizam as causas a partir do estilo comunicativo de um espe-
cialista e as relações com outros especialistas da comunidade da qual
ele faz parte ou com os leigos. Desse modo, para a autora, a variação
ocorre porque o especialista se comunica com outros indivíduos e por-
que ele adapta sua escrita/fala aos diferentes contextos e concepções
sobre os temas que existem na comunidade da qual ele faz parte.
Para Freixa (2002) existem 6 principais causas da variação termi-
nológica, que são as causas prévias, dialetais, funcionais, discursivas,
interlinguísticas e conceituais. Para Freixas, essas causas estão inter-
relacionadas nos dois eixos da variação hetero e autovariação e agem
conjuntamente no processo comunicativo. Em Freixa (2013), a autora
reflete sobre o modelo propondo a quebra da linearidade das causas,
dizendo que as motivações não ocorrem separadamente, como o mo-
delo que organiza as causas de variação nesses 6 grandes grupos pode
deixar supor. Para ela, as causas prévias e cognitivas (a natureza mu-
tável do sistema linguístico, a arbitrariedade do signo terminológico,
assim como o ponto de vista e as crenças dos especialistas de uma
comunidade) agem em todas as demais causas e são causas universais
que se articulam com as demais motivações da mudança e variação
terminológica. Nas palavras da autora, “(...) a variação conceitual não é
uma causa de variação, mas sim uma premissa de partida” (FREIXA,
2014, p. 326). As outras causas, para a autora, são circunstanciais, de-
pendendo sempre do contexto e da cena enunciativa.
Gostaríamos de dar destaque para as causas funcionais e discur-
sivas que são apresentadas por Freixa. A autora entende como cau-

153
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

sas funcionais e discursivas todo e qualquer fenômeno que decor-


re do momento e do contexto comunicativo, além da relação entre
os especialistas de uma área de conhecimento/estudos. Dessa forma,
quando o especialista adequar seu discurso ao público-alvo e ao nível
de conhecimento que ele entende que o outro especialista/leigo tenha
do tema. Outro ponto que se encontra nesse aspecto são as adaptações
textuais, discursivas que o especialista faz para atualizar seu currículo
ao contexto e à situação na qual ele se comunica. Desse modo, aspectos
como repetições, economia linguística e ênfases dadas a determinados
termos ou conceitos são alguns dos elementos que estão na esteira
das causas funcionais e discursivas da variação terminológica.
Em termos práticos, as causas discursivas e funcionais atuam
no discurso especializado no momento da criação do texto especializa-
do incidem sobre a decisão de qual variante o especialista deve utilizar.
Nesses termos, o canal comunicativo (oralidade/escrita/multimodali-
dade), o tema tratado no texto (altamente especializado, novo, am-
plamente conhecido pelos interlocutores etc), o teor (especializado,
didático, de divulgação) e os papéis que o especialista e o seu interlo-
cutor ocupam na estrutura social de uma área são fatores importantes
para a variação terminológica. Um outro ponto importante nesse sen-
tido é a cultura de relacionamento entre os indivíduos da comunidade
de especialistas. Cada área especializada utiliza-se um conjunto de ar-
tefatos linguísticos próprios, que são amplamente utilizados pelos es-
pecialistas do campo.
De acordo com Motta-Roth e Hendges (2010) e Motta-Roth
(2002), cada área do saber humano escolhe formas específicas de comu-
nicação, ou gêneros textuais específicos, o que nos faz entender que o
universo de campos de conhecimento humano também se identifica
a partir dos artefatos comunicativos (gêneros e tipologias textuais,
eventos acadêmicos ou técnicos) que são mais comuns entre os indi-
víduos de uma comunidade. As autoras, por exemplo, têm identificado
que, na área da Linguística, a leitura de livros, capítulos de livros e arti-
gos são muito mais utilizados para a comunicação entre especialistas,
enquanto em áreas como engenharia e física, gêneros como artigos

154
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

científicos, relatórios técnicos e notas técnicas são mais recorrentes


e utilizados.
Considerando as causas funcionais e discursivas da variação
terminológica, seja ela denominativa ou cognitiva, o aspecto de área
de especialidade ou de comunidade discursiva. A proposta de Freixa,
até onde pudemos constatar, não aborda a questão do grupo ou da co-
munidade de especialistas de forma direta. No nosso ponto de vista,
na proposta de Freixa, muito mais do que os aspectos gerais e cog-
nitivos da variação terminológica, o aspecto cultural-comunicativo
de cada área do conhecimento deve ser acrescentado. Nesse senti-
do, o diálogo entre a proposta das causas da variação terminológica
apontada por Freixa e o conceito de comunidade discursiva, elaborado
por Swales, seria muito frutífero e nos dá elementos para entendermos
as motivações da variação terminológica.
A pesquisa elaborada no estágio de pós-doutoramento foi feita
considerando, principalmente, essas duas propostas teóricas. A pes-
quisa elaborada enquanto o doutoramento se ampliou com a proposta
de Swales (1990, 2016) e os resultados que apresentamos na seção se-
guintes foram feitas considerando esses princípios.

3 Resultados e reflexões da pesquisa

Aspectos da metodologia

A pesquisa aqui apresentada é de caráter bibliográfico e descriti-


vista, com uma releitura de dados já apresentados, mas relidos a partir
de uma perspectiva diferente, agora analisando aspectos linguísticos
e sociais antes não abordados com profundidade.
Em Serra (2019), a variação terminológica na comunidade dis-
cursiva da cana-de-açúcar do Brasil foi analisada considerando ex-
clusivamente o modelo teórico das causas da variação terminológica
de Freixa (2002), com enfoque sobre as causas funcionais. Para a pes-
quisa, foi organizado um corpus composto por textos materializados
a partir da escrita e da oralidade.

155
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Foram estudados textos produzidos em contextos comuns da co-


munidade discursiva da cana-de-açúcar, gêneros que eram prototípi-
cos dessa comunidade e suas práticas. Um outro critério de seleção
dos textos foi a escolha de práticas comunicativas em que diferentes
participantes da comunidade estivessem em interação. Desse modo,
eventos em que indivíduos especialistas, aprendizes e leigos estives-
sem em interação foram selecionados.
Dessa forma, a amostra produzida selecionou os seguintes textos:

Quadro 01–organização do corpus

MATERIALIZAÇÃO GÊNEROS TEXTUAIS PARTICIPANTES

especialistas + aprendizes
PALESTRAS
+ leigos
ORALIDADE
AULAS especialistas + aprendizes

ENTREVISTAS especialista + leigos

especialistas + aprendizes
ARTIGOS CIENTÍFICOS
+ leigos

ESCRITA APOSTILA DE CURSO especialistas + aprendizes

ARTIGO
especialista + leigos
DE DIVULGAÇÃO
Fonte: SERRA (2019).

Cumpre mencionar que consideramos um contexto idealizado,


tendo em vista que seria difícil o controle dos participantes nesses
contextos, sobretudo porque todo o corpus foi coletado na internet e o
material disponível sobre essa comunidade ainda é bastante escasso,
sobretudo em língua portuguesa do Brasil. Nesse sentido, é importante
mencionar a dificuldade de encontrar alguns textos dessa comunidade,
tendo em vista que a prática de publicação em língua inglesa é bastan-
te recorrente, raras são as revistas acadêmicas ou vídeos produzidos
em eventos acadêmicos ou não que publicam textos em língua portu-

156
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

guesa ou que estejam disponíveis gratuitamente no Youtube, principal


fonte dos textos orais analisados no trabalho.
Quanto às fontes dos textos utilizados na pesquisa, foram sele-
cionadas de acordo com a disponibilidade aberta e gratuita na internet.
Dessa forma: os textos escritos foram coletados no google acadêmico
e sites de revistas acadêmicas, além de sites de cursos de graduação
em agronomia a distância. Todos os vídeos, como mencionado, foram
coletados no Youtube4.
Os corpora do texto estão assim definidos quantitativamente:
3 palestras; 8 artigos científicos / 3 aulas e 3 apostilas / 5 entrevistas
e 32 artigos de divulgação.

Tabela 01–O corpus da pesquisa em números

QUANTITATIVO DO CORPUS

Total de textos orais 11

Total de textos escritos 41

Total de palavras no texto oral 32.559

total de palavras no texto escrito 107. 310

Total de palavras no corpus todo 139. 921


Fonte: Serra (2019).

Cumpre explicar que o corpus que analisamos aqui apresentou


uma certa irregularidade por conta dos contextos e dos gêneros se-
lecionados. De qualquer modo, nos pares dos textos escritos e orais
o número é muito mais próximo entre os dois gêneros. Por exemplo:
O texto do gênero artigo de divulgação é muito pequeno, porque esse
gênero se caracteriza pelo número expressivo de ilustrações e pouco
texto, o que fez com que fossem selecionados 32 textos para equiparar

4 Tendo em vista os limites deste texto, não foi possível trazer todos os endereços nos quais
foram coletados os textos utilizados. De qualquer modo, esses endereços podem ser encon-
trados em Serra (2019a), em que é apresentada uma tabela com os títulos e os endereços em
que foram coletados cada um dos textos.

157
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

com o número de palavras da entrevista. Ao todo, no corpus, os três pa-


res de gêneros textuais se equiparam porque todos os pares têm em tor-
no de 40 mil palavras, passando um pouco de mil ou 2 mil no máximo.
Cumpre mencionar, no entanto, que foi feito um estudo preli-
minar, com o mesmo corpus, com o número de palavras muito mais
próximo e os resultados apresentados não se alteraram, em termos
de resultados gerais (SERRA, 2019a; SERRA, 2019b).
Para coleta, estudo e análise dos corpora aqui descritos, o pro-
grama computacional AntConc foi utilizado para coletar as palavras
e suas variantes, além de organizar, em termos quantitativos, a varia-
ção lexical. O AntConc é um software livre de processamento de tex-
tos, sendo uma importante ferramenta de muitos estudos no campo
da lexicologia, tanto por sua disponibilidade e possibilidades de trata-
mento e análise de textos digitais.
Para a caracterização das palavras que seriam analisadas nos cor-
pora, foram definidos 20 conceitos ou significados que fossem encon-
trados em todos os textos dos corpora. Por isso, a seleção dos textos
também foi feita por tema: todos os textos (orais e escritos) tratam
do mesmo tema: a plantação de cana-de-açúcar. A partir disso, se-
lecionamos 20 significados comuns em todos os textos e as palavras
que fossem sinônimas deles, o que nos ajudou a chegar a um quan-
titativo de variação que será apresentado a seguir para a ilustração
da variação terminológica nessa comunidade.

A variação terminológica no discurso dos técnicos em cana-de-


-açúcar: uma comunidade discursiva

Os resultados apresentados aqui foram publicados em textos


anteriores (SERRA, 2019a; SERRA, 2021 entre outros). O que é trazi-
do neste relatório é uma síntese dos resultados gerais e, neste rela-
tório, apresentamos ainda uma leitura feita considerando o conceito
de Swales de comunidade discursiva e de que modo a análise do léxico
dessa comunidade identifica essa comunidade discursiva.

158
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Na tabela 02, a seguir, são apresentados, de um modo geral,


os valores de variação denominativa encontrada nos textos dos gê-
neros textuais apresentados. A tabela está organizada considerando
a materialização, os gêneros, o número de conceitos, o número de de-
nominações encontradas e o índice de variação. Este último é a soma
entre a quantidade de conceito e a quantidade de denominações en-
contradas sobre esse conceito. Quanto mais próximo for de 2 o índi-
ce, maior é a quantidade de variação encontrada. Na última coluna,
é apresentada a média dos índices de variação encontrados.

Tabela 02–Índice geral de variação no corpus

CANAL GÊNEROS CONCEITOS DENOMINAÇÕES ´ÍNDICES M

PALESTRA 20 42 2,1
ORAL AULA 20 37 1,8 2.0
ENTREVISTA 20 41 2,0
ARTIGO 20 72 3,6
APOSTILA 20 73 3,6
ESCRITO 3,6
ART
20 73 3,7
DE DIVULGAÇÃO
Fonte: Serra (2019).

Os dados apresentados na tabela 02 mostram que a variação ter-


minológica é uma realidade nesse discurso. Em todos os gêneros textu-
ais, os conceitos apresentam sinônimos, em média de duas denomina-
ções por conceito. Nesse sentido, a hipótese de que a variação é natural
dos discursos científicos também se confirma nesses resultados.
Como se observa, os índices de variação são maiores no discurso
escrito porque, em tese, o número de palavras nesse grupo de corpus
é maior. De qualquer modo, cumpre relembrar que o resultado geral
aparece quando a mesma busca é feita em um corpus com o número
de palavras igual nos dois corpora (oral e escrito).

159
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Muito embora esses números confirmem um fenômeno lin-


guístico nesse universo discursivo, esses dados precisam ser analisa-
dos a partir do funcionamento dessa comunidade. Nessa perspectiva,
a variação terminológica é resultado das diferentes interações e regras
comunicativas que são aludidas na proposta de Swales. As relações en-
tre os especialistas, os papéis exercidos bem como os gêneros textuais
especializados nessa comunidade são vistos aqui como fatores de va-
riação terminológica. Nossa proposição é de que a leitura das causas
de variação terminológica se amplia quando se consideram as carac-
terísticas de uma comunidade discursiva, elemento que, no nosso ver,
está na esteira da proposta de Freixa, mas sem que isso fique exposto
ou problematizado pela autora e por aqueles que têm seguido a pers-
pectiva que ela propõe. Dessa forma, o conceito de comunidade dis-
cursiva amplia a possibilidade de explicações das causas da variação.
Por isso, o diálogo entre as duas propostas é considerado profícuo.
Assim como defendem os teóricos da Sociorretórica, o gêne-
ro é uma ação social dentro de um contexto específico e os gêneros
aqui analisados são vistos dentro de um universo específico, exercen-
do funções específicas e pontuais dentro dessa comunidade. Por isso,
os gêneros recobrem papéis e indivíduos dessa comunidade que expli-
cam, de algum modo, as causas e os números apresentados na análise
da variação. É preciso explicar por que um gênero tem maior variação
do que o outro, é preciso dizer por que os gêneros orais apresentam va-
riação menor do que o texto escrito, é preciso explicar por que os gêne-
ros produzidos para especialistas apresentam maior índice de variação
na oralidade. Entendemos, a partir desses e de outros questionamen-
tos, que a resposta a essas questões estão na própria prática e no con-
texto de produção desses textos. Por isso é que a leitura desses dados
a partir da ideia de práticas comuns é necessária.
Considerando os resultados dos índices de variação terminoló-
gica apresentados na tabela 02, apresentamos algumas explicações
para as causas da variação terminológica considerando a comunidade.
Antes, é necessário apresentar as características gerais da comunidade
discursiva alvo do estudo.

160
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

A cana-de-açúcar é um dos principais produtos da balança co-


mercial do Brasil. Desde sempre na economia brasileira, a cana-de-
-açúcar hoje é um poderoso setor e conta com um poderoso conglo-
merado de indústrias que produzem um variado conjunto de produtos
primários e secundários que alimentam e movimentam a economia
e a cultura do Brasil. Dessa forma, são exemplos de produtos oriundos
dessa indústria o etanol, o açúcar e seus vários tipos, a produção de pa-
pel, cosméticos e vários alimentos.
Em termos de práticas comunicativas, o setor da indústria da ca-
na-de-açúcar tem uma poderosa máquina de mídia, em que revistas,
sites, programas de TV aberta e fechada produzem textos próprios
para o público de especialistas, leigos e aprendizes. É também uma das
interfaces desse setor o diálogo com a universidade, em que pesquisas
com variedades de cana-de-açúcar e de técnicas que garantam maior
produtividade e alcance dos produtos da indústria são altamente fi-
nanciadas e é possível observar um forte diálogo entre a indústria e a
universidade. Nesse contexto, pesquisadores participam de eventos
comerciais explicando a descoberta feita pelos cientistas e grupos
de pesquisas da universidade. Os cursos de graduação e pós-graduação
em agronomia também são uma importante parte desse setor, porque
são os alunos e os professores desses cursos que produzem pesquisas
que alimentam o setor industrial.
Nesse contexto, a produção de artigos científicos, a maioria
em língua inglesa, é muito intensa, além de trabalhos de conclusão
de cursos e relatórios de pesquisa também circulam nesse contexto.
Eventos acadêmicos e industriais também são muito comuns, em que
se tem encontros para discutir aspectos técnicos da produção e da cul-
tura da cana-de-açúcar. Nesses eventos, é importante pontuar que a
participação do público é controlada, tendo em vista que apenas pes-
soas com um perfil definido pela organização, geralmente o indivíduo
precisa ser pesquisador, empresário ou ter formação na área da agro-
nomia, para participar.

161
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Considerando esse contexto e as práticas dessa comunidade,


passamos a comentar apresentando hipóteses para a variação nos con-
textos analisados na pesquisa.
Como se observa na tabela 02, o gênero palestra apresentou
um maior número de variação dentro dos gêneros orais. É importante
lembrar que, na maioria das vezes e sobretudo o contexto em que es-
ses textos foram coletados, o público-alvo ou o processo de interação
que norteia esses eventos interativos é de especialista falando para
especialistas ou aprendizes. No contexto dos eventos do setor, como
foi explicado, apenas especialistas ou conhecedores da terminologia
da área podem participar e, na época, não eram transmitidos onli-
ne. Dessa forma, o especialista que produz o texto oral especializado
no contexto de uma palestra é o especialista que está há algum tempo
na comunidade e galgou espaço de destaque nessa comunidade. O pa-
lestrante ou conferencistas, na maioria das vezes, é alguém que tem
reconhecimento na área e forma outros pesquisadores. Considerando
esse contexto, o indivíduo que ocupa esse papel nesse contexto é co-
nhecedor das terminologias dessa área e, considerando a diversidade
de possíveis interlocutores, talvez para alcançar a sua audiência, for-
mada por outros especialistas conhecedores de outras perspectivas so-
bre o tema e que também conhece a diversidade da terminologia dessa
área, leva em consideração a variação terminológica disponível na li-
teratura no seu argumento. A variação terminológica, nesse contexto,
talvez seja alguma estratégia retórica comum e que é esperada nesse
contexto. De qualquer modo, a materialização oral também nos dá pis-
tas importantes, porque, muito embora conte com o contexto e algum
material de apoio, o que leva a uma economia de explicações e descri-
ção das coisas, a diversidade denominativa foi detectada nos textos
dessas conferências. Muito embora o número e o índice de variação
terminológica não sejam tão distantes quanto dos demais gêneros,
é importante olhar para o contexto dessa produção e suas possíveis
regras para entendermos esse índice.
O contexto de entrevista, dentro os textos orais, também apre-
sentou importante variação. Nesse contexto, é esperado que seja

162
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

um especialista falando com leigos e a variação denominativa se mos-


trou saliente. Um dos fatores, em termos de interação, são os próprios
especialistas que, talvez, sejam de escolas ou formação diferente e a
tentativa de alcance da audiência, que é formada, em tese, por pesso-
as leigas interessadas no conhecimento da área. Uma outra hipótese
que pode ser interessante nesse contexto é o fato de que os programas
de onde foram retirados esses programas seja um canal aberto e que
tem alcance não apenas de leigos, mas também de outros especialistas.
Por conta também da diversidade da audiência, o especialista utiliza
a variação terminológica para alcançar seus diferentes interlocuto-
res, que têm nível de especialização ou de conhecimento da temáti-
ca bastante variável. Nesse sentido, é importante que o conhecimen-
to da terminologia da área, como aponta Swale, é um dos elementos
que identifica um indivíduo nessa comunidade. Como o especialista
tem uma possível audiência de outros especialistas do setor, mostrar
que conhece e utiliza essa terminologia para mostrar sua credencial
dentro da comunidade responsa a diversidade terminológica encon-
trada nesses textos orais.
Entre os gêneros escritos, o índice de variação é muito próximo
e as explicações quanto à variação nesses contextos não se modifi-
cam tanto, tendo em vista que o contexto de interação é praticamente
o mesmo, muito embora, em termos de materialidade, temos uma di-
versidade maior em comparação aos textos orais. Em alguns gêneros
escritos, como se sabe, em termos de produção, o texto tende a ser
produzido com maior tempo, reescrito, revisto e revisado, o que leva
a um cuidado maior, a um planejamento quanto às formas que serão
utilizadas. É importante destacar que o resultado apresentado na tabe-
la 02 mostra apenas resultados gerais dessa variação, conhecer a parti-
cularidade de cada gênero e como essa variação se apresenta dá cami-
nhos diferentes de análises.
De qualquer modo, é curioso apontar que a leve diferença
que ocorre no nível de variação no grupo de gêneros escrito se dá
por nos gêneros em que se pressupõe a presença de um leigo ou de
um aprendiz. Muito embora não seja substancial, a variação nos gê-

163
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

neros apostila e artigo de opinião aponta para uma possível adequa-


ção que o especialista faça para alcançar o leigo ou o aprendiz, ten-
do em vista que apresentar os sinônimos de um nome possa facilitar
a compreensão de um conteúdo, sobretudo quanto ele é várias vezes
repetido ou reorganizado para melhor compreensão do interlocutor.
Como se sabe, o contexto didático exige do especialista o cuidado
em explicar, muitas vezes, um conceito que um aprendiz ou um leigo
ainda não domina ou conhece.
Mais uma vez, é necessário recorrer ao contexto de produção
e às relações dentro da comunidade para entendermos mais sobre
a variação terminológica apresentada. No contexto didático da aula
e das apostilas, em que é possível ver um índice de variação menor,
se considerarmos que, entre os gêneros orais, é o texto que apresenta
menor variação, o didatismo e a tentativa de não confundir um indi-
víduo que tem um primeiro contato com o conteúdo explique as ra-
zões de esse ter sido o contexto de menor variação. Os fatores nível
de conhecimento e estratégias retóricas da comunidade, nesse caso,
são relevantes porque apontam para um controle da variação linguís-
tica nesses discursos. Muitas vezes, a variação terminológica pode
ser uma estratégia de alcance ou de seleção de um público e o contexto
interacional é uma importante pista para entendermos os mecanismos
dessa distinção.
Por meio da análise dos resultados aqui apresentados, é possível
observar alguns comportamentos dessa comunidade de especialistas
no que diz respeito ao uso da linguagem. A primeira constatação é de
que os gêneros textuais analisados refletem o comportamento e as
práticas comunicativas dessa comunidade. A Terminologia utiliza-
da nesses contextos é um outro ponto de coesão do grupo, sobretu-
do o conhecimento e a utilização dela, apontando para mais um dos
elementos da identidade desse grupo. Os diferentes contextos de in-
teração que se cristalizam nos gêneros textuais analisados no estudo
confirmam mais uma vez a unidade da comunidade discursiva da ca-
na-de-açúcar no Brasil.

164
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

É importante atentarmos que o estudo da variação terminológi-


ca aponta para olharmos mais de perto o comportamento e as práticas
comunicativas dessa comunidade e de outras. A análise da variação
terminológica encontrada nos gêneros textuais utilizados pelo grupo
pode ser feita considerando a cultura comunicativa desse grupo, levan-
do em consideração aspectos muito mais amplos do que o simples re-
gistro lexical em uma obra lexicográfica. A análise a partir dos gêneros
textuais, que cristalizam práticas e modelos próprios de cada cultura,
faz com que possamos ver a identidade e as motivações da variação.
A Terminologia, no nosso entender, tem muito a receber dos es-
tudos dos gêneros textuais, sobretudo a partir do conceito de comuni-
dade discursiva, elaborado e trabalhado por Swales e seus seguidores.
A ideia de explicar a variação terminológica a partir de causas e moti-
vações tem que levar em consideração o contexto, a cultura disciplinar
e as práticas comunicativas em que a variação terminológica. Sem es-
ses elementos, a análise pode se tornar artificial e calcada muito mais
no quantitativo do que no qualitativo, que, nesse contexto, se apre-
senta como fundamental. Quando Freixa aponta no seu modelo as di-
ferentes relações em diferentes níveis, a autora está apontando para
a organização de uma comunidade discursiva, o que dá caminhos para
um diálogo muito frutífero, tanto para a Terminologia quanto para
os estudos das comunidades discursivas.
A Terminologia, a partir de seus estudos linguísticos, também
tem a contribuir com os estudos dos gêneros, sobretudo os gêneros
utilizados na esfera acadêmica e científica. Entendermos o compor-
tamento do léxico e as formas mais recorrentes no texto, além de sa-
ber qual o papel do léxico para a organização retórica desses textos
são exemplos de contribuições que a Terminologia pode dar aos estu-
dos dos gêneros/textos especializados.
Por fim, cumpre mencionar, que os estudos da variação termino-
lógica têm muito a avançar e a dizer sobre as terminologias das dife-
rentes áreas. Um diálogo com outros campos de conhecimento e ou-
tros estudos mostra-se um caminho próspero e promissor.

165
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

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168
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-8

POSIÇÃO DE ADVÉRBIOS TERMINADOS


EM -MENTE EM TEXTOS MARANHENSES
ESCRITOS NO SÉCULO XIX

Wendel Santos1
João Vitor Cunha Lopes2
Helen Pessoa de Sousa Miranda3

Introdução

Este trabalho objetiva analisar dados de posição de advérbios fi-


nalizados em -mente, a exemplo de:

1 Professor da Coordenação do Curso de Licenciatura em Letras (CCLB) e do Programa de


Pós-Graduação em Letras de Bacabal (PGLB), do Centro de Ciências, Educação e Linguagens
(CCEL) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Email: wendel.silva@ufma.br.
2 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras de Bacabal (PPGLB/CCEL/UFMA). Email:
jvc.lopes@discente.ufma.br.
3 Aluna do Curso de Letras (CCEL/UFMA); Bolsista de Iniciação Científica (PIBIC-UFMA/
PVCEL2747-2021). Email: pessoa.helen@discente.ufma.br.

169
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Imagem 1

Fonte: Site do Arquivo Público de São Luís.


Imagem 2

Fonte: Site do Arquivo Público de São Luís.

Os dados apresentados nas figuras 1 e 2, acima, foram extraí-


dos de textos escritos no Maranhão, no século XIX4. Esses textos estão
disponíveis no site público do Arquivo Público de São Luís, bem como
do site da Biblioteca Pública Benedito Leite. Os dados foram analisa-
dos à luz dos pressupostos teórico-metodológicos da Sociolinguística

4 Este trabalho coaduna-se ao conjunto de pesquisas que vêm sendo realizadas pelo Grupo de
Estudos e Pesquisa em Sociolinguística do Maranhão (GEPeS/UFMA).

170
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Variacionista (Labov, 2008[1972]), e, de maneira mais específi-


ca, na chamada Sociolinguística Histórica (Romaine, 2009[1982]).
Estatisticamente, utilizou-se o programa R (R Core Team, 2021) para
análise dos seguintes grupos de fatores: posição do advérbio em relação
ao verbo, pré-verbal ou pós-verbal, e a característica semântica do ad-
vérbio, se qualitativo, ou se modalizador.
Os advérbios são tratados, pela gramática normativa, com certa
uniformidade. Bonfim (1988) explica que, no geral, essa classe de pa-
lavras é compreendida como invariável, modificadora de um verbo,
de um adjetivo, ou, ainda, de outro advérbio. A autora acrescenta que,
no entanto, essa aparente uniformidade não se mantém em pé quando
confrontada com dados de uso linguístico reais, como os exemplares
(1) e (2), acima.
Do ponto de vista da variação, estudos que buscam verificar se há
mudança na posição dos advérbios em -mente, que estaria deixando
de ser expresso em posição pré-verbal, de acordo com a tradição lati-
na (cf., para tanto, MARTELOTTA; PROCESSY, 2006), e passando a ser
expresso em posição pós-verbal, são bastante recorrentes. Assim, a fim
de verificar se essa mudança é um processo recente de variação lin-
guística, ou, ao contrário, se tal fenômeno se encontra em evidência
em estágios anteriores da língua, o trabalho que aqui se desenvolve
objetiva analisar a posição de advérbios terminados em -mente.
Os dados analisados foram extraídos de documentos escritos
no século XIX, e que estão disponibilizados no site da Biblioteca Pública
Benedito Leite e do Arquivo Público de São Luís, instituições localiza-
das na capital do estado do Maranhão. O recorte temporal aqui estabe-
lecido se justifica pelo fato de que o Projeto5 a que os dados de análise
de variação na posição adverbial se alinham está em sua fase de lei-
tura e coleta de dados desse período. Até o presente momento foram
extraídos dados dos seguintes documentos: a História da Revolução
5 O Projeto “Sociolinguística Histórica do Português Maranhense: análise de dados linguísti-
cos a partir textos publicados entre os séculos XIX e XX”, código PVCEL2747-2021, objetiva
extrair, transcrever e analisar dados linguísticos com base em textos dos séculos XIX e XX
publicados no estado do Maranhão, a fim de explicar processos de variação e mudança nessa
variedade linguística pouco estudada do ponto de vista histórico-linguístico.

171
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

do Brasil com peças officiaes e fac simile da própria mão de Dom Pedro,
datado do ano de 1831; o Regimento Interno da Câmara dos Deputados
da Assembleia Legislativa Provincial do Maranhão, de 1831; os periódi-
cos O Guajajara, de 1840; A Marmota Maranhense, de 1851; A Sentinela,
de 1855; O Ecclesiastico, de 1857; A Escola, de 1878, do dossiê cientí-
fico A Lepra entre nós, de 1897; e os Annaes do Congresso do Estado
do Maranhão – 1ª sessão ordinária da 3ª legislatura, de 1898.
O modo como os dados foram coletados, tratados e analisados
está explicado no tópico 3, dedicado à metodologia do trabalho. Antes
disso, porém, apresenta-se o arcabouço teórico-metodológico em que
se apoia este estudo, a saber A Sociolinguística, e, de modo mais espe-
cífico, a Sociolinguística Histórica. Em seguida, apresentam-se as prin-
cipais pesquisas que têm na expressão da posição de advérbios o seu
interesse central. Esta pesquisa se encerra com a apresentação dos re-
sultados alcançados, as considerações finais e a apresentação das refe-
rências utilizadas aqui.

Sociolinguística e Sociolinguística Histórica

O campo de estudos da sociolinguística variacionista, que tem


em Labov (2008[1972]) seu principal representante, é bastante profí-
cuo na linguística brasileira. Muitas são as pesquisas que se ocupam
em descrever variáveis linguísticas que caracterizam a diversidade
linguística própria do português brasileiro. De acordo com Mollica
e Braga (2004), a variação linguística corresponde a um fenômeno
universal e presume a existência de formas linguísticas que se alter-
nam conhecidas como variantes, ou, ainda, “diversas maneiras de se
dizer a mesma coisa” (LABOV, 2008[1972], p. 221) com o mesmo valor
referencial, as variantes, nesse caso, denominadas dependentes. Essa
nomenclatura não é empregada de maneira arbitrária, mas se correla-
ciona a grupo de fatores (ou variáveis independentes) sendo elas so-
ciais ou linguísticas (MOLLICA; BRAGA, 2004). Esses conceitos, além
de possibilitar analisar as mais diversas variedades linguísticas, evi-
denciam a complexidade e a dinamicidade dos sistemas linguísticos,

172
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

seja em sua estrutura atual, sincrônica, seja em estruturas históricas,


em uma perspectiva mais diacrônica.
A vertente histórica da Sociolinguística tem interesse em descre-
ver e analisar fenômenos linguísticos em variação, considerando seus
aspectos sociais, culturais e históricos, com base em textos antigos
escritos, de acordo com Hernández-Campoy e Conde-Silvestre (2012).
Dizendo de outro modo, trata-se de uma área em que os dados linguís-
ticos históricos evidenciam características da sociedade em que foram
escritos, seu modo de ver o mundo e expressá-lo por meio da língua.
Essa subárea dos estudos sociolinguísticos nasce com o traba-
lho de Romaine (2009[1982]), ao verificar a viabilidade da aplicação
do aparato teórico-metodológico da Sociolinguística Variacionista
na análise de dados históricos, especificamente no estudo da sintaxe
da variedade sociolinguística do escocês médio, ao estudar a variação
entre as formas -wh, como quhilk e which, -th, como em that e a não re-
alização (Ø) do pronome relativo, em casos como em I that hear that
this is loyal troop e I Ø hear that this is a loyal troop.
Em linhas gerais, essa autora observou que não apenas o mode-
lo variacionista instaurado por Labov (2008[1972]) poderia ser aplica-
do ao estudo de dados linguísticos históricos, como também verificou
que as formas linguísticas analisadas haviam sofrido mudança ao lon-
go do tempo, e que a variação estilística comprovava variação nos da-
dos, mas não indicava, necessariamente, mudança linguística.
Para essa autora, estava mais do que comprovado que a
Sociolinguística podia se ocupar em analisar dados linguísticos co-
letados em textos históricos, sobretudo porque, segundo ela, outras
áreas do conhecimento linguístico, como a Dialetologia e a própria
Linguística Histórica, já realizavam tal tarefa, ainda que não ampara-
das pelo interesse estatístico da variação, uma das contribuições trazi-
das pela Sociolinguística.
Faraco (2005) acrescenta que, embora os estudos sociolinguís-
ticos tenham trazido importantes contribuições para o delineamento
da investigação histórica de dados linguísticos, está-se longe de gene-

173
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

ralizações que elucidem os fatores de variação e mudança que atraves-


saram a história das línguas, e que mais pesquisas nessas áreas preci-
sam ser realizadas, como as que aqui se propõe.
Além disso, Romaine (2009[1982]) explica que os dados de lín-
gua escrita devem ser igualmente valorizados pelo escopo de atuação
da Sociolinguística Variacionista, uma vez que ambas possibilitam
que sejam observados fenômenos de variação linguística, além do fato
de que, a fim de buscar explicações acerca do passado das línguas,
não há amostras de fala que possibilitem tal análise, tendo-se “ape-
nas” o conjunto de textos escritos como fonte de dados. Para Halliday
(2006, p. 5), é também função da “[...] linguística descrever textos;
todos os textos, incluindo aqueles, prosa e versos, que se enquadram
em qualquer definição de “literatura”, são acessíveis para análise pelos
métodos existentes de linguística”6.
Embora os trabalhos de Romaine (2009[1982]) tenham sido pio-
neiros no que se tem compreendido como Sociolinguística Histórica,
somente na década de 90 que pesquisas mais sistemáticas foram rea-
lizadas nessa área. A partir daí, muitos pesquisadores (brasileiros, in-
clusive) vêm se interessando por mais estudos nesse perfil, a exemplo
de Duarte (1993), que estudou o preenchimento da posição de sujeito
no português brasileiro; Mattos e Silva (2004), que propõe bases para
o estudo de documentos antigos pela via da Sociolinguística Histórica;
Machado (2006), que analisa a implementação do pronome você
no português brasileiro, por meio da análise de textos do século XIX;
Naro e Scherre (2007), que analisam a concordância verbo-nominal
para explicar a formação do português brasileiro; Martelotta (2006)
e Martelotta e Vleck (2006), que analisam a ordenação de advérbios
qualitativos em -mente, a partir de textos do século XIX.
Esses últimos servem de apoio referencial para a pesquisa
que aqui se desenvolve, e sobre as quais vai- se tratar mais detalhada-
mente no tópico a seguir.

6 Tradução proposta para o trecho original “it is part of the task of linguistics to describe texts;
all the texts, including those, prose and verse, which fall within any definition of “literature”,
are accessible to analysis by the existing methods of linguistics” (HALLIDAY, 2006, p. 5).

174
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Pesquisas sobre a posição dos advérbios terminados em -mente

As gramáticas normativas tratam os advérbios como “palavras


modificadoras de verbo”, que servem “para expressar as várias circuns-
tâncias que cercam a significação verbal” (ROCHA LIMA, 2002, p. 173).
Essa abordagem meramente sintática dos advérbios parece ser seguida
por Cunha e Cintra (2007, p. 556), para quem “o advérbio é, fundamen-
talmente, um modificador do verbo’’. No entanto, essa classe de pala-
vras pode, perfeitamente, ser abordada a partir do aspecto sintático-
-semântico, como explica Perini (2010: 319), ao afirmar que “o escopo
de um adverbial é parte de seu significado”. Tal compreensão é seguida
por Castilho (2010), que propõe que o estatuto categorial do advér-
bio seja tomado a partir da definição de grandes classes funcionais:
como predicadores, verificadores e dêiticos. A essa abordagem, o au-
tor acrescenta, ainda, a possibilidade de os advérbios serem abordados
pela perspectiva discursiva, em que “os advérbios atuam como conec-
tivos textuais (CASTILHO, 2010, p. 543).
A abordagem que aqui se pretende fazer é da análise da posição
em que advérbios finalizados em -mente aparecem na em textos es-
critos, fenômeno que também tem recebido a atenção de várias pes-
quisas linguísticas (cf., por exemplo, MORAES PINTO, 2002; 2008;
MARTELOTTA; VLCEK, 2006; MATTOS E SILVA, 2010, entre outros).
Os trabalhos de Moraes Pinto (2002; 2008) buscaram analisar
a polissemia e ordenação dos advérbios qualitativos e modalizadores
com terminação -mente em textos do português arcaico até o século
XX. Para tanto, a autora analisou textos que ela organiza entre reli-
giosos, injuntivos, narrativos, além de cartas oficiais. Os dados foram
analisados qualitativa e quantitativamente e revelaram que os resul-
tados obtidos não são, de acordo com a autora, “categóricos” (MORAES
PINTO, 2008, p. 186), devido, sobretudo, à irregularidade na distribui-
ção dos dados entre os documentos analisados.
A despeito da certa irregularidade na distribuição dos dados,
Moraes Pinto (2002; 2008) mostra que, a partir da análise dos dados,
é possível verificar uma mudança na posição dos advérbios qualitati-

175
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

vos em -mente, centro do seu interesse, passando da posição canônica


pré-verbal para a posição inovadora pós-verbal, ao longo dos séculos
analisados. A autora explica que “há um maior quantitativo pré-ver-
bal nas sincronias mais anteriores do que nas mais posteriores (mais
recentes), e que, ao longo do tempo, as ocorrências pré-verbais vão se
restringindo às cláusulas mais gramaticalizadas” (MORAES PINTO,
2008, p. 186).
A mudança na posição do advérbio, passando da posição pré-
-verbal para posição pós-verbal, resultado alcançado por Moraes Pinto
(2002; 2008) é corroborado pelo trabalho de Martelotta e Vlcek (2006).
Esses autores analisaram dados escritos do século XIX, muito embora,
como afirmam, tivessem o interesse em projetar um processo de mu-
dança mais amplo, desde o latim até o português atual. Para o recorte
feito, os autores analisaram cartas de leitores e de redatores em jornais
do século XIX, publicados no Rio de Janeiro, entre os anos de 1808
a 19007. Foram analisadas as variáveis posição do advérbio na cláusula
e grau de gramaticalização da posição adverbial.
Os resultados apontam para o fato de que há uma tendência
em que os advérbios analisados apareçam preferencialmente em posi-
ção pré-verbal, especialmente os dados da primeira metade do século
analisado, o que, de acordo com os autores, é um indício importante
da mudança, já percebida desde o português arcaico, na posição de ad-
vérbios qualitativos em -mente. Outro ponto importante é o fato de que,
comparativamente às cartas dos leitores, que evidenciaram uma maior
tendência de uso de advérbios em posição pós-verbal, há uma inclina-
ção maior para que os dados extraídos de cartas oficiais e carta do re-
dator estivessem em posição pré-verbal, o que pode ser explicado pelo
caráter formal desse tipo de documento, comumente atravessado pe-
las regras normativas da língua.
Mattos e Silva (2010, p. 472) analisou o que ela denominou de
“elementos que qualificam o processo verbal”, enquanto a terminolo-
gia gramatical tradicional prefere denominá-los advérbios de modo”,

7 Esse material faz parte do Projeto para a História do Português Brasileiro (PHPB).

176
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

complementar. Para tanto, a autora analisou o documento medieval


Os diálogos de São Gregório, que, segundo a autora, incluem “textos li-
terários que visam a educação religiosa” e que “foram muito populares
na Idade Média da Europa Ocidental” (MATTOS E SILVA, 2010, p. 55).
No geral, Mattos e Silva (2010) mostra que advérbios do tipo
-mente são frequentes na amostra analisada (218 dados), expressos
antes ou depois do verbo que qualifica.

Imagem 3

Fonte: Mattos e Silva (2010, p. 478).

Os dados amostrados na tabela acima, extraída da pesquisa


de Mattos e Silva (2010, p. 478), revela uma aparente tendência de uso
dos advérbios modalizadores em posição pré-verbal. Para a autora,
essa posição é a “menos marcada”. Ela demonstra, ainda, a possibili-
dade desse tipo de advérbio aparecer entre o verbo modal e o infinitivo,
como em

(4)
que se non podem compridamente entender,

e em posição mais próxima do complemento do que do verbo, como em

177
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

(5)
trabalhou-se de conhocer todalas ofertas estremadamente hu)
as das outras8.

Observa-se, no geral, que, para a análise de advérbios com a ter-


minação em -mente, parecem importar a posição desse tipo de advérbio
em relação ao verbo, bem como o aspecto semântico a eles atribuído,
qualitativo ou modalizador. É com base nesses dois principais critérios
que se procurou desenhar a metodologia descrita no tópico a seguir.

Procedimentos Metodológicos

O objeto de estudo deste artigo é o de analisar, à luz da Teoria


da Variação e Mudança Linguística (WEINREICH; LABOV; HERZOG,
2006[1968]; LABOV, 2008[1972]), e da Sociolinguística Histórica
(ROMAINE, 2009[1982]; HERNÁNDEZ-CAMPOY; CONDE-SILVESTRE,
2012) a variação na posição de advérbios terminados em -mente. Para
tanto, foram coletadas sentenças em que esse tipo de advérbio foi ex-
presso, a exemplo de 1 e 2, acima, e 3 e 4, a seguir, em que, ou esse tipo
de advérbio aparece em posição pré-verbal, como ensinam as gramá-
ticas normativas, ou em posição pós-verbal, indicando variação nesse
tipo de expressão, mas sem prejuízo da compreensão da sentença.

Imagem 6

Fonte: Site do Arquivo Público de São Luís, Maranhão.

8 Esses exemplos foram extraídos de Mattos e Silva (2010, p. 479).

178
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Imagem 7

Fonte: Site do Arquivo Público de São Luís, Maranhão.

Esses casos foram extraídos de documentos históricos dis-


ponibilizados no site da Biblioteca Pública Benedito Leite9 e do site
do Arquivo Público de São Luís10. Para a análise que aqui se desenvolve
foram considerados a História da Revolução do Brasil com peças offi-
ciaes e fac simile da própria mão de Dom Pedro, datado do ano de 1831,
o Regimento Interno da Câmara dos Deputados da Assembleia Legislativa
Provincial do Maranhão, de 1831, além dos periódicos O Guajajara,
de 1840, A Marmota Maranhense, de 1851, A Sentinela, de 1855,
O Ecclesiastico, de 1857, A Escola, de 1878, do dossiê científico A Lepra
entre nós, de 1897 e dos Annaes do Congresso do Estado do Maranhão –
1ª sessão ordinária da 3ª legislatura, de 1898.
Os dados extraídos desses documentos foram transcritos,
de acordo com sua grafia original, em planilha do excel. Em seguida,
foram codificados de acordo com a posição do advérbio em relação
ao verbo, bem como a tipificação semântica do advérbio terminado em
-mente, qualitativo ou modalizador. De certo modo, as pesquisas so-
bre a variação na posição de advérbios já vêm apontando a relevância
desses fatores para explicar tal fenômeno de variação. Busca-se averi-
guar, então, se esses mesmos fatores se correlacionam a tal fenômeno,
ao considerar-se dados do século XIX.
As análises estatísticas foram realizadas no R (R CORE TEAM,
2021). Oushiro (2015) descreve tal programa como uma linguagem

9 O acesso ao site da Biblioteca Pública Benedito Leite foi feito por meio do seguinte link:
http://casas.cultura.ma.gov.br/portal/bpbl/acervodigital/.
10 O acesso ao site do Arquivo Público do Estado do Maranhão foi feito por meio do seguinte
link: http://apem.cultura.ma.gov.br/siapem/index.php#.

179
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

de programação que pode ser utilizada para a realização de análises


em computações gráficas e estatísticas, além da compilação e ano-
tação de corpora; produção de listas de frequências, entre diversas
outras tarefas (GRIES, 2009). Oushiro destaca ainda que o R é pouco
utilizado pelos sociolinguistas brasileiros, apesar de apresentar vá-
rias vantagens, já que o programa permite que o usuário customize
uma série de tarefas que deseja executar e, consequentemente, possa
ter um maior controle sobre os resultados obtidos. Acrescente-se a in-
formação de que a análise está sendo feita do ponto de vista da posi-
ção pós-verbal do advérbio, na direção de se verificar, no século XIX,
o quanto essa posição foi preferida pelos autores quando comparada
com os advérbios em posição pré-verbal do mesmo tipo de advérbios.
O tópico a seguir descreve melhor os resultados alcançados.

Resultados

As distribuições gerais, bem como as porcentagens explici-


tadas na tabela a seguir parecem evidenciar o fato de que, com base
na amostra analisada, há uma tendência por advérbios terminados em
-mente em posição pós-verbal, independentemente da característica
semântica dos advérbios, modalizadores ou qualitativos. As distribui-
ções e porcentagens amostradas na tabela 1, abaixo, foram alcançadas
a partir do R (R CORE TEAM, 2021).

Tabela 1: Tendências de usos de advérbios terminados em -mente no século XIX

Posição do Advérbio em relação ao verbo

Característica se- Pré-verbal Pós-verbal


N/%
mântica do advérbio N/% N/%

Modalizador 1 / 7,1% 13 / 92,9 14 / 0,12%


Qualitativo 10 / 10% 90 / 90% 100 / 0,88%
N/%: 11 / 9,65 N/Total: 103 / 90,4 114
Fonte: os autores.

180
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

Os dados numéricos destacados na tabela acima revelam que fo-


ram codificados 114 dados de advérbios finalizados em -mente. Desse
total, 9,65% dos períodos analisados estavam em posição pré-verbal,
enquanto a grande maioria dos dados, ou 90,4%, em posição pós-ver-
bal. De fato, esses resultados se afastam da tendência encontrada
em outras pesquisas que se ocupam do mesmo objeto de estudo.
Uma possível explicação para os resultados alcançados nesta
pesquisa está no fato de que, por se tratar de uma pesquisa em an-
damento, os dados por hora analisados são todos da segunda metade
do século XIX, o que pode estar revelando a mesma tendência do por-
tuguês brasileiro de preferir, já no período em tela, a posição pré-ver-
bal dos advérbios em -mente, em detrimento da forma considerada
padrão, a posição pós-verbal. De todo modo, é necessário que, com o
andamento da pesquisa, esses resultados sejam tratados estatistica-
mente, o que não é feito aqui, a fim de que se tenha um resultado mais
preciso dos dados analisados.
Além da variável posição do advérbio em relação ao verbo, tam-
bém se controlou a característica semântica do advérbio, se qualitativo
ou se modalizador. As pesquisas a que este trabalho se alinha mos-
tram que, para os advérbios qualitativos, a posição pós-verbal passa
a ser a posição preferida ao longo dos séculos, distanciando-se da for-
ma latina, que preferia a posição pré-verbal. Ao contrário do espera-
do, para os advérbios modalizadores, a posição pós-verbal também
é a forma mais recorrente. Moraes Pinto (2008, p. 185) afirmou que
“parece que os advérbios modalizadores elegeram a posição pré-ora-
cional, fixando-se nela. Em todas as sincronias estudadas, esses ele-
mentos ocuparam, de forma preferencial, essa posição”, explica a au-
tora. Nos dados analisados aqui, os advérbios modalizadores parecem
se correlacionar mais à posição pós-verbal, com 92,9% dos dados nessa
posição, enquanto apenas 1 dado (7,1% das ocorrências) se correlacio-
na à posição pré-verbal.
Ao considerar-se os advérbios qualitativos, essa categoria tam-
bém se correlaciona mais à posição pós-verbal, que refletiria um pro-
cesso de mudança, uma vez que a forma esperada para esses casos é a

181
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

posição pré-verbal. Aqui, 90% dos dados analisados se referem à posi-


ção pós-verbal, ao passo que os outros 10% dos dados estão, efetiva-
mente, em posição pré-verbal.
Como afirmado anteriormente, os dados aqui analisados refle-
tem a segunda metade do século XIX, o que pode estar direcionan-
do os resultados para a forma inovadora, que vem tomando o espaço
da forma canônica já nesse recorte temporal. Assim, carece-se de da-
dos de anos distintos dos aqui analisados para que se tenha um retrato
mais fiel do comportamento sintático dos advérbios em -mente.

Considerações Finais

Retomando-se as perguntas que justificam a realização des-


te trabalho, entende-se que ambas as estruturas adverbiais (posição
pré e pós-verbal) funcionam como variantes na modificação dos verbos
que são acompanhados por tais advérbios. De todo modo, salienta-se
a possibilidade de se acessar, por meio de teste, as percepções sociolin-
guísticas associadas à posição dos advérbios em tela, no sentido de ve-
rificar se os falantes percebem as estruturas semanticamente iguais.
No que concerne especificamente ao trabalho aqui desenvolvi-
do, entende-se a necessidade de se ampliar a abordagem, sobretudo
na análise de dados da primeira metade do século XIX, bem como do sé-
culo XVIII. Por isso mesmo, no que diz respeito aos fatores aqui ana-
lisados, afirma-se que os resultados não refletem aqueles encontrados
em pesquisas constituídas sob o plano da sociolinguística histórica.
Embora inicialmente pareça impossível estabelecer um diálogo
entre esta pesquisa e aquelas que se ocupam do mesmo objeto, os re-
sultados apontados mostram que os dados analisados no contexto ma-
ranhense não se afastam do padrão que se desenha para o português
brasileiro, ainda que careça de um maior aprofundamento para que se
possa fazer tal afirmação, de fato.
Ainda que o trabalho aqui desenvolvido traga luz para a com-
preensão da expressão da posição de advérbio, a partir de textos

182
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

do século XIX, é importante e necessário retomá-lo, redirecioná-lo,


de modo a se detalhar melhor os achados apresentados aqui. Por fim,
mas não menos importante, parece imprescindível que, nas próximas
análises, sejam inseridos o documento em que o dado foi localizado,
bem como a década da publicação do documento em que foi coletado,
uma vez que essas duas informações podem ajudar a explicar o mo-
mento em que há um maior avanço da posição pós-verbal em detri-
mento da posição pré-verbal, fenômeno que já vem sendo amplamente
descrito no português brasileiro.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LINGUÍSTICA
VOLUME III

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184
LITERATURA
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-9

MEMÓRIA, TEMPO E IMAGINAÇÃO: UMA


ANÁLISE DA OBRA ESTÂNCIAS, DE GIORGIO
AGAMBEN, EM TORNO DA CISÃO DA
PALAVRA, DO PENSAMENTO E DA POESIA

Cacio José Ferreira (UFAM)1


Norival Bottos Júnior (UFAM)2

A cultura ocidental traz na sua gênese uma cisão inconciliá-


vel entre poesia e filosofia. Uma cisão da palavra, que pode ser posta
no sentido de que a poesia é possuidora de seu objeto sem, no entanto,
conhecê-lo. A filosofia, por sua vez, conhece seu objeto, porém não o
possui. Segundo Agamben, a crítica nasce no exato momento em que
essa cisão atinge seu ápice, o que a torna substancialmente problemá-
tica, já que, ao pretender investigar os limites do conhecimento, a crí-
tica deveria possuir o objeto desse conhecimento. No entanto, essa
posse não existe, dada a impossível união ontológica entre a palavra
poética e a palavra pensante, ou seja, entre a poesia e a filosofia.
A crítica restou encilhada em uma paradoxal fórmula de não re-
presentar, nem conhecer, senão de conhecer a representação. Nesse

1 Professor adjunto da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), docente do Programa


de Pós-Graduação em Letras (PPGL- UFAM), professor do Programa de Pós-Graduação em
Letras de Bacabal (PPGLB/UFMA) e coordenador do Grupo de Pesquisa Estudos de haicai
(CNPq/UFAM). Contato: caciosan@ufam.edu.br
2 Professor adjunto da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), docente do Programa de
Pós-Graduação em Letras (PPGL- UFAM). Contato: norivalbottos@ufam.edu.br

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

sentido, apropria-se de um objeto, mas é incapaz de dele ter consciên-


cia, ao mesmo tempo em que, consciente de outro, não pode dele ter a
posse.
Agamben pretende, em Estâncias, investigar o cisalhamento
da palavra ocidental, no sentido de colaborar para que essa palavra
volte a encontrar unidade. Aqui cabe remeter ao conceito de Estância
que, segundo ele, é o lugar fulcral, o núcleo essencial da poesia, para
os poetas ocidentais do século XIII. As estâncias da poesia eram os re-
ceptáculos onde se concentrava e se conservava a ‘alegria do amor’,
considerada, por aqueles poetas, como o “único objeto da poesia”
(AGAMBEN, 2007, p. 11).
Para o filósofo italiano, a dicotomia da palavra, na cultura oci-
dental, pode ser investigada por meio da melancolia, do desejo, do fe-
tiche que, ao mesmo tempo nega e afirma o objeto e, especialmen-
te, no veio central da obra, ou seja, a “teoria do fantasma”, latente
na poesia lírica trovadoresca e estilonovista, que legou para a cultu-
ra europeia um denso emaranhamento “textual de fantasma, desejo
e palavra” (AGAMBEN, 2007, p. 14), construiu uma autoridade própria
e converteu-se, “ela mesma, na estância” (AGAMBEN, 2007, p. 14)
ofertada à infinita alegria amorosa, expressa pelos trovadores e poetas
do Dolcestilo novo.
Os ensaios reunidos na obra são tentativas, segundo Agamben,
de trafegar pelos desvios da palavra, de “entrar em relação com a ir-
realidade e com o inapreensível” (AGAMBEN, 2007, p. 15) para ten-
tar apropriar-se da realidade e do positivo como o topos privilegiado
do não-lugar.
Agamben inicia sua investigação a tentar o resgate do conceito
medieval de Acídia que, segundo os Padres da Igreja, estava relacio-
nada com profunda tristeza e desespero, que se apossavam dos ho-
mens, especialmente dos religiosos e os afastavam do sumo bem, ou o
bem divino. A Acídia, figurada por Agamben como o “demônio meri-
diano”, em referência ao salmo 90, que alerta para o “mal que gras-
sa ao meio-dia”, tem uma amplitude muito maior do que quer fazer

187
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

crer a psicologia moderna, que tentou reduzi-la a uma mera subversão


à ética capitalista do trabalho, relacionando-a tão somente com a pre-
guiça e o desleixo.
No seu sentido original ela é um intenso sofrimento da alma que,
impedida de alcançar o que deseja (o gozo espiritual ou o conhecimen-
to), é abatida por uma série de males, tais como a malícia, o rancor,
a pusilanimidade, a distração mental, etc., que são os filhos da Acídia.
Agamben observa que, não obstante, a modernidade tentar mi-
nimizar a Acídia. Ela permanece latente na sociedade contemporânea,
em numerosas “caracterizações sociológicas das sociedades de massa”
(AGAMBEN, 2007, p. 26-27). Dessa forma, a distração mental, um dos
filhos da Acídia, pode ser reconhecida como a “fuga e o divertimento
em relação às possibilidades mais autênticas do ser-aí” (AGAMBEN,
2007, p. 27). A tagarelice, por sua vez, pode ser identificada com o “ba-
te-papo”, que “dissimula o que deveria desvelar” (AGAMBEN, 2007, p.
27).
A Acídia guarda, segundo Agamben, uma estreita relação com o
fantasma, pois ela evoca as fantasias das vítimas, que por elas vagam
perdidas e sem esperança. No entanto, ela não é só negatividade,
pois repousa sobre um fundamento dialético. Dessa forma, a tristeza
da alma e a aflição do coração, podem ser, a um só tempo “fuga de...”
e “fuga para...” (AGAMBEN, 2007, p. 32). Nesse sentido, a carência, re-
sultado do impedimento de alcançar aquilo que mais se deseja, pode
transformar-se na única possibilidade de realização do espírito. A na-
tureza do demônio meridiano é, pois, dialética. É uma doença que traz
em si a própria possibilidade de cura, a posse do conhecimento, o gozo
do espírito.
À guisa de discussão, parece-nos que Agamben pretende resga-
tar, à luz da originalidade medieval, e da conformação do pensamento
ocidental, um conceito que foi depauperado pela modernidade, ao re-
duzir o sofrimento diante de um desejo desesperado da alma humana,
frente à consciência da impossibilidade de alcançar uma meta, a um
mero “pecado” contra a exigência capitalista de produtivismo e mas-

188
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

sificação. Agamben identifica, na consubstanciação do pensamento


ocidental, entrelaçada com a Acídia, a Melancolia, já contida em re-
ferências de Aristóteles, que atribuía aos homens de espírito, aos po-
etas e aos filósofos, as enfermidades da bílis negra (também relatada
nos anais da medicina salernitana). A melancolia atravessa a forma-
ção do Ocidente desde a Antiguidade, passando pelos poetas do século
XIII, pela Inglaterra elisabetana até chegar ao século XIX. A fratura
nunca cessa de produzir o diálogo entre a epistemologia histórica e re-
produção memorialística da poesia. Nesse sentido, Agamben, repen-
sando o pensamento dialético de Walter Benjamin sobre a estrutura
e a superestrutura, destaca:

A relação entre o teor coisal e o teor de verdade aqui


delineada fornece o modelo daquela que poderia ser,
na perspectiva benjaminiana, a relação entre estrutura
e superestrutura. O histórico que vê separadas diante
de si a estrutura e a superestrutura e procura explicar
dialeticamente uma com base na outra (em um sentido
ou outro, conforme seja idealista ou materialista), (...)
o teor coisal e o teor de verdade são originalmente uni-
dos na práxis, mas permanecem separados pela obra.
(AGAMBEM, 2014, p. 146).

Acídia e Melancolia mesclam-se em algum ponto do decurso


medieval e no humanismo passam a marcar o caráter do “tipo hu-
mano contemplativo” que, ao mesmo tempo em que sofre as enfer-
midades da alma, movido por um inamovível desejo do inalcançável,
traz também as potencialidades de desvelar a verdade e a salvação.
É um homem dividido, estranhamente bipartido por um mal espiritual,
que lacera a alma, segundo Agamben o “Eros perverso do acidioso”,
e ao mesmo tempo indica o caminho epistêmico-soteriológico.
Nesse caminho, Eros também é melancólico e, frente à impos-
sibilidade de atingir o objeto de desejo da contemplação, transgride
a volição contemplativa em volúpia concupiscente. Dessa forma, o me-
lancólico sofre as perturbações irrefreáveis do desejo erótico, além

189
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

do afã contemplativo, pois está inexoravelmente submetido às injun-


ções de Eros e seus fantasmas, que se criam e se recriam na alma con-
templativa e desejante do melancólico, sem jamais serem apropriados,
posto que apenas refletem ou representam os objetos.
A melancolia funda-se, segundo a psicanálise, que estabelece
conclusões parecidas às teorias que a patrística medieval desenvolveu
com relação à Acídia, num duplo movimento de afirmação e negação
do objeto, que jamais foi efetivamente possuído, senão imaginado,
concebido, como construção fantasmática, produto do desejo deses-
perado, frente a uma posse e um gozo impossíveis. Dessa forma, o me-
lancólico enreda-se numa perene contradição e dualidade, que con-
templa real e irreal, posse e perda, afirmação e negação, que o leva
a manifestar o amor ao objeto perdido/não possuído, no seu próprio
eu, narcisisticamente, de maneira a garantir, em si mesmo, a relação
com o fantasma que se consubstancia no lugar do objeto.
O fantasma, para a psicanálise, tem seu nascedouro em um pre-
coce estágio psíquico, no qual são estabelecidas determinadas pro-
vas de realidades, destinadas a afastar falsos processos de satisfação
de desejos. O fantasma se consubstancia como uma subversão psíqui-
ca dessa prova de realidade, cujo resultado será a aceitação, por par-
te do eu, dele, fantasma, como uma realidade melhor em substituição
àquela que foi desejada/negada. A fantasmologia medieval, por sua
vez, é um amálgama, um emaranhamento, da teoria da imaginação,
de origem aristotélica, com a doutrina platônica do pneuma como veí-
culo da alma, a teoria mágica da fascinação e aquela médica, das influ-
ências entre corpo e espírito.
A fantasia passa então a ser concebida como uma sutileza
da alma, um receptáculo de imagens dos objetos exteriores, capaz
de visões sobrenaturais, influxos mágicos e de realizar a ligação en-
tre corpóreo e incorpóreo. Essas potencialidades, resultantes da pre-
sença do fantasma no espírito humano, seriam determinantes para
compreender, por exemplo, a lírica trovadoresca e a poesia estilono-
vista (Dante, Guido Cavalcante) do século XIII, que deixaram pro-
funda herança para a poesia ocidental moderna. O objeto do dolcestil

190
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

novo não seria um objeto externo real, senão um fantasma, “impresso,


através do olhar, nos espíritos fantásticos, e que é a origem e objeto
do enamoramento”.
A contemplação fantasmática seria, pois, a realização da po-
tência de Eros, isto é, uma “autêntica paixão amorosa”. O fantasma,
por sua vez, é o fulcro da melancolia, que expressa as impossibilida-
des do acesso do espírito ao real e retrai para o eu o fluxo do desejo,
para garantir a presença da imagem/objeto. Os espíritos melancólicos
situar-se-ão, pois, em um universo intermediário, entre o real e o irre-
al, entre a construção fantasmática e a percepção da realidade, entre
o dilema de narciso e relação com o objeto exterior. E será nesse uni-
verso intermédio onde se dará a produção da cultura humana, onde
haverá possibilidade de entrelaçamento entre “as formas simbólicas
e as práticas textuais” (AGAMBEN, 2007, p. 53). O mundo fantasmáti-
co/melancólico será o lugar do homem de gênio. O que não se furtará,
não obstante um profundo desespero, originado pelo inamovível de-
sejo do inalcançável, a tentar materializar seus fantasmas na forma
de arte, único veículo destinado a tentar apreender aquilo que é ina-
preensível, de tentar possuir o que está irremediavelmente perdido.
Sugere, Agamben, que a teoria do fetiche, considerado “como
presença do nada” e, ao mesmo tempo, “sinal de sua ausência”, pode-
ria ligar-se não somente a processos psíquicos, mas também à própria
produção de cultura, uma vez que se pode relacionar o fetiche à pos-
se e/ou ausência, assim como de desejo/negação, de qualquer produto
da cultura humana. Dessa forma, a produção cultural, sobremaneira
a arte, restaria como uma fábrica de objetos ausentes/negados, cuja
presença/renegação tentam ser consubstanciadas através da poesia.
Agamben sugere que a metonímia é uma construção fetichista,
dada na sua essência de tratar o todo pela parte. Parte presente e todo
ausente, ou vice-versa. Cita ainda Ortega e Gasset, para quem a me-
táfora “substitui uma coisa por outra, não tanto para chegar a esta,
quanto para fugir daquela” (AGAMBEN, 2007, p. 61).

191
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

A modernidade capitalista exponenciou o caráter fetichista


dos objetos ao transfigurar sua potencialidade primeva, destinada
à satisfação das necessidades humanas. Segundo Marx, a transfor-
mação dos objetos em mercadoria, conferiu-lhes um caráter imate-
rial e abstrato, e impossibilitou sua apreensão como realidade. Dessa
forma, o objeto/mercadoria tornou-se fetiche, signo de algo que não
se deixa apreender e que se nega, posto que sua realização já não se dá
como garantidor da satisfação de uma necessidade humana, ou seja,
como valor de uso, porém como valor de troca, atributo fantasmático,
inapreensível e descolado de qualquer possibilidade de posse. É a pró-
pria “transformação do mundo das coisas visíveis no invisível”.
Segundo Agamben, talvez Marx possa ter sido influenciado, para
conceber sua teoria da mercadoria/fetiche, pela Exposição Universal
de Londres de 1851, na qual foi erigido um imenso palácio de cristal,
cuja “monstruosa hipertrofia” o teria transformado em uma “criatura
fantasma”, um imenso fetiche. Baudelaire, movido pelo clima fantas-
mático e fetichista da exposição de Paris de 1855, compreende que o
momento impõe a mercadorização dos objetos à própria arte, que se-
ria transformada, ela própria, em fetiche e mercadoria. O desafio para
o artista seria, pois, evitar que a arte fosse subsumida pela “tirania
do econômico e pela ideologia do progresso” (AGAMBEN, 2007, p. 75).
Propõe, nesse sentido, a superação da dicotomia entre valor de uso
e valor de troca, na obra de arte, de modo tal que ela alcançasse o sta-
tus de “mercadoria absoluta” (AGAMBEN, 2007, p. 75).
A partir de então, a obra de arte, adquire um caráter de inapre-
ensível epifania estética, fulgor feérico impenetrável, a correspon-
der ao caráter fetichista que o valor de troca confere à mercadoria.
Segundo Agamben, Baudelaire propõe “a mercadorização absoluta
da obra de arte (que) é também a abolição mais radical da mercadoria”.
Nesse sentido, haveria uma contraposição radical entre valor de uso
e valor de troca na obra de arte, de forma tal a reduzi-la a uma comple-
ta inutilidade e uma total intocabilidade, o que significa atingir a for-
mulação da arte pela arte.

192
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Baudelaire expõe a arte a um choque ontológico ao requerer


seu rompimento com a tradição, que a separava do produto do artesão,
objeto de uso, e colocava-a em uma dimensão exclusiva de produção
do artista, elo de ligação entre passado e presente, entre velho e novo.
A experiência Baudelairiana frente ao objeto-fetiche, permite que o
poeta supere o dilema da mercadoria, da presença/ausência que ca-
racteriza sua natureza inapreensível, e estabeleça para a arte um novo
caminho que a manterá viva no pulsante universo da mercadoria, qual
seja, a “apropriação mesma da irrealidade”, no limite da questão, o di-
lema dos espíritos fantasmáticos e melancólicos.
A modernidade capitalista estabeleceu uma nova relação dos ho-
mens com os objetos, marcada por uma inexorável condição de estra-
nhamento. Os objetos já não são mais os mesmos, parecem querer
sublevar-se a todo momento. E é crescente a incompreensão humana
frente a essa perversa metamorfose das coisas comuns, cada dia mais
ameaçadoras de transformar-se em seres fora de controle e livres
de seus limites materiais.
A proposição Baudelairiana de arte pela arte, ou seja, da “des-
truição da arte por obra da arte”, assim como, o modo de vida do dan-
dy, marcado pelo culto à elegância e ao supérfluo, desvelam, segundo
Agamben, uma nova atitude frente ao mundo, que sugere superar o li-
mite, tanto do utilitarismo dos objetos, ou seja, do seu valor de uso,
quanto do valor de troca, princípio da acumulação capitalista, e esta-
belecer um novo projeto para a arte, a ser consubstanciado pela “apro-
priação da irrealidade”.
Nesse sentido, o artista deve, ele mesmo, subir no altar de sacri-
fícios e tornar-se um outro, um não, um inumano (não humanista), as-
sim como a arte, ao se destruir, se torna absoluta e livre, tanto do utili-
tarismo, quanto da fetichização. Nessa perspectiva, a poesia moderna,
segundo Agamben, “desmascara a ideologia humanitária” (AGAMBEN,
2007, p. 86), tão cara aos críticos reacionários, e tenta demonstrar
que artista e arte devem, ao se desconstruir a si próprios, transcen-
der o limite do humano, cada vez mais exposto, tanto ao utilitarismo,
quando à fetichização. Essa poesia traz na sua substância duas dimen-

193
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

sões inconciliáveis, uma, material, concernente a uma presença morta


e outra fantasmática, caráter essencial da inapreensibilidade do ser
vivo. O caráter fantasmático atua na condição de sintoma, que para
Georges Didi-Huberman significa dissimulação.
Agamben nos fala da permanente mutação do conceito de fe-
tiche, a partir da transgressão do uso dos objetos. Nessa perspectiva,
fetiche pode ser a transferência de um objeto material para a esfera
do divino; a conspurcação do seu valor de uso; ou o deslocamento
do desejo de seu objeto próprio.
O espaço de transmutação fetichista tem lugar mesmo em épo-
cas remotas, quando, em determinadas culturas, objetos em miniatura
e mais tarde em tamanho natural, eram enterrados com seus possui-
dores. O culto ao objeto-fetiche, por sua vez, desenvolve-se desde a in-
fância, com os brinquedos. Tais desdobramentos de fetiches de adul-
tos, cujos hábitos, na Europa até o século XVIII, contemplava a posse
a coleção de objetos miniaturizados. Tais bibelôs ainda permanecem,
em certo estilo e vida pequeno burguês, como residual da cultura
dos brinquedos para adultos.
E os brinquedos, como fetiche, revelam uma condição inexorável
da vida humana: o próprio mistério que envolve a relação do homem
com a coisa. Esse enigma comporta duas questões inseparáveis: “onde
está a coisa e onde está o homem”, no contexto de sua relação? Assim
como na relação das crianças com seus brinquedos, torna-se difícil
identificar o papel de cada um, pois que ambos se amalgamam em um
universo que não permite a distinção perfeita da coisa e do homem (do
sujeito e do objeto), dada a complexidade de sua interação, fetichista
e fantasmática, em que o brinquedo é plasmado como fantasia a subs-
tituir o real e o homem é reduzido às injunções do fantasma.
O Romance da Rosa (Roman de la rose), poema alegórico compos-
to no século XIII, em francês, por Guillaume de Lorris e Jean de Meung,
traz na sua essência, segundo Agamben, a alegoria de um amor louco
pela imagem (fantasma). Essa paixão desenfreada pela imagem é ex-
pressa pela introdução dos mitos de Narciso e Pigmaleão. O primei-

194
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

ro encontra a própria morte ao contemplar sua imagem em um lago


e dela se enamorar; o segundo sofre com o culto desesperado de um
amor por uma estátua, esculpida por ele próprio.
O Roman inaugura, para Agamben, “uma tradição que define
a típica concepção medieval do amor”, isto é, amor à representação
do objeto, impressa no espírito dos poetas trovadorescos e do Dolce
Stil Novo. Uma tradição que se inicia com o amor pela imagem reflexa
de Narciso, mas que não é o amor de si próprio e termina com a es-
cultura adorada por Pigmaleão, imagem concebida da mulher perfeita,
ideal, digna do mais pleno e apaixonado amor.
É possível, com efeito, identificar o tema do amor por uma ima-
gem em inúmeras obras da literatura romântica medieval, o que pode
parecer enigmático à mentalidade moderna, mas que é perfeitamen-
te compreensível para o público dos trovadores e poetas do medievo.
Tal encanto pela imagem pode ser justificado por uma teoria da sensa-
ção, concebida pela filosofia medieval, cujo fulcro é a assimilação pela
virtude imaginativa de imagens (ou fantasmas), que são impressas
nos sentidos pelos objetos sensíveis e que perduram na alma, mesmo
ausentes os objetos que as produziram.
Esse fantasma desempenha um papel fundamental na psicologia
medieval e, por conseguinte, no amor cortês e na poesia romântica.
Com o objetivo de investigar a consubstanciação da primazia da ima-
gem na poesia e no romance medieval, Agamben propõe uma ampla in-
vestigação, a começar da filosofia clássica, especificamente em Platão,
que no Filebo trata do prazer, a partir da memória e da fantasia. Para
Agamben, Platão tinha consciência de que desejo e prazer são impos-
síveis sem que na alma tenham sido impressas imagens (fantasmas)
do mundo sensível, das opiniões e dos discursos. Diante dessa inexo-
rabilidade do fantasma (imagem) para orientação do desejo e obtenção
do prazer, é necessário destacar essa íntima relação, isto é, entre fan-
tasma e desejo, referência que será notabilizada por Lacan, ao afirmar
que “o fantasma torna o prazer próprio do desejo”. Ainda em Platão
é possível identificar, no Teeteto, outra alegoria sobre a memória como
um plasma, elaborado sobre uma cera moldável que existe na alma,

195
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

e que é capaz de absorver as impressões do mundo exterior, fixando-as


em imagens (fantasmas), cuja duração garante a conservação da me-
mória e do conhecimento das coisas e concepções impressas na alma:

A história da psicologia clássica é, em boa parte, a his-


tóriadestas duas metáforas. Ambas estão presentes
em Aristóteles,mas são tomadas, de certa forma, ao pé
da letra e inseridas emuma teoria psicológica orgânica,
em que o fantasma cumpre umafunção muito impor-
tante, sobre a qual viria a exercer-se comespecial vigor
o esforço exegético medieval. AGAMBEN, 2007, p. 134).

Em Aristóteles encontramos as mesmas alegorias, que influen-


ciaram decisivamente a formulação medieval do fantasma. Para o es-
tagirita, as sensações, especialmente o olhar, produzem uma paixão
que é transmitida para a fantasia, isto é, um receptáculo na alma, onde
os fantasmas são produzidos e têm morada. Esse lócus, por sua vez,
é capaz de produzir fantasmas mesmo na ausência de sensações, o que
o torna, por conseguinte, autônomo em relação à atividade sensitiva.
Aristóteles também afirma que memória e fantasmas es-
tão intimamente relacionados, de forma que é impossível aquela
sem estes. E concebe tal importância aos fantasmas a ponto de afirmar
que a própria atividade cognoscitiva é deles dependente.Tão impor-
tante é o fantasma no pensamento aristotélico que, além de sua cone-
xão com as sensações, a memória e o intelecto, ele guarda determinan-
te relação com o onírico e com a linguagem.De difícil aceitação para
a modernidade, a teoria fantasmológica aristotélica é preponderante
na formação da psicologia medieval, juntamente com o estoicismo e o
neoplatonismo.
A Idade Média confere ao fantasma o status de um lugar de expe-
riência extrema da alma, que se torna capaz, tanto da transcendência
divina, quanto do mergulho no abismo do mal.Agamben inicia a inves-
tigação sobre a fantasmologia medieval por Avicena, dada sua influên-
cia na “revolução espiritual do século XIII” (AGAMBEN, 2007, p. 138).
Avicena, assim como Averróis, era médico, e o pensamento medieval

196
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

traz uma profunda imbricação entre a filosofia e a ciência médica, en-


trelaçamento que se estende à obra dos poetas, tornando-a um tanto
quanto enigmática sem um mínimo de conhecimento de determinados
conceitos anatômicos e fisiológicos, presentes nos tratados medievais
médico-filosóficos. Avicena desenvolve um esquema psicológico para
explicar o processo de apreensão sensitiva e formação dos fantasmas.
Averróis, por sua vez, ao debruçar-se sobre a obra de Aristóteles,
tornando-se seu grande comentador, formula preceitos de uma psi-
cologia medieval com base em processo cognoscitivo a partir da ação
do sentido e dos olhos, espelhos que refletem a forma dos objetos e os
oferece à fantasia especulativa, que armazena os fantasmas na me-
mória, tornando-os disponíveis à imaginação, mesmo na ausência
dos objetos.
Nessa perspectiva, pode-se também falar do amor como um pro-
cesso especulativo, posto que a psicologia medieval “concebe o amor
como um processo essencialmente fantasmático, que implica ima-
ginação e memória, em uma assídua raiva em torno de uma imagem
pintada ou refletida no íntimo do homem” (AGAMBEN, 2007, p. 145).
Essa, conforme Agamben, será uma das mais fecundas heranças que o
medievo legará à cultura ocidental. O amor medieval não é, senão,
uma irrealidade, um construto fantasmático, uma inexorável conexão
entre desejo e fantasma que, no limite da questão, resulta em nova
concepção de Eros e sua interdependência do fantasma.
Nesse sentido, há que se salientar a interpretação medieval
do mito de Narciso, presente no Roman de la Rose. Não se trata, para
a psicologia medieval, de um jovem enamorado de si mesmo, porém
de uma imagem, de uma sombra, tomada como uma realidade. A in-
tenção erótica medieval está, pois, irremediavelmente ligada à idola-
tria por uma imagem.
A Idade Média tardia une, pois, Eros à fantasmologia aristotélica
e concede à imagem (fantasma) o estatuto de fulcro do amor. O amor
presente na lírica dos poetas estilonovistas, como Dante, que postula-
rá o coração como potência criadora da imagem, baseado na concepção

197
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

médica medieval que atribui ao coração o local da virtude imaginativa,


lugar, portanto, onde conforma-se o fantasma, alimentando o amor
dos poetas e amantes. Resta compreender, segundo Agamben, o meca-
nismo relacional, que explicaria a união entre o lócus onde a imagem
é armazenada, isto é, a alma, localizada no cérebro, e o coração que,
vivificado por um calor interno, dá origem ao fantasma.
Agamben procura investigar, na sequência da sua concepção fan-
tasmológica medieval, a doutrina pneumática (pneumatologia), isto
é, a doutrina dos espíritos, cujas interpretações modernas são, a seu
ver incompletas e, portanto, incapazes de explicar sua relação com o
fantasma, em especial na construção da lírica amorosa do século XIII
(estilonovista) e a herança desta para a cultura ocidental. É impres-
cindível, para Agamben, resgatar a estrutura pneumática medieval,
que Dante cita, em uma passagem da obra Vita nova, baseada na ci-
ência médica predominante, e que é composta pelo espírito da vida,
localizado no coração, o espírito animal, que habita a alma (o cére-
bro) e o espírito natural, cujo lócus é o fígado. Tal estrutura ontológica
contempla um amplo entrelaçamento de aspectos da cultura medieval,
como a medicina, a psicologia, a soteriologia, a cosmologia, a retórica
que, juntas e harmonicamente imbricadas, construíram um arcabouço
intelectual de incalculável valor.
A origem da pneumatologia medieval remete particularmen-
te a Aristóteles, cuja fonte provavelmente foram os escritos médicos
antigos. O estagirita identifica como potência fecundadora dos esper-
mas, um pneuma de natureza astral, armazenado no próprio esperma.
Segundo as teorias médicas gregas antigas, há um pneuma que vivi-
fica o homem, sua alma individual, a partir de um princípio divino,
e que é congênito ao corpo de cada um. Há uma circulação pneumática
por todo organismo físico e psíquico, cujo centro é o coração, “sede
da parte hegemônica da alma, em cuja sutil matéria pneumática se im-
primem as imagens da fantasia.”
Nas teorias neoplatônicas e estoicas, consta que a alma, que ha-
bita originalmente o mundo astral, desce à Terra acompanhada por um
sutil pneuma. Quando da morte do corpo, a alma que conseguiu se li-

198
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

bertar da matéria poderá novamente habitar o mundo astral e será re-


conduzida pelo pneuma-ochema transportador. Se, ao contrário,
a alma não puder abster-se do contato com a matéria, o pneuma-o-
chema torna-se pesado, mantendo-a na terra e conduzindo-a ao lugar
do castigo. O pneuma é responsável, durante a permanência da alma
na terra, em vida, pelas faculdades da imaginação, dos sonhos, dos in-
fluxos astrais e das iluminações divinas.
A obra de Sinésio torna-se a base para a consubstanciação de uma
doutrina cultural que pode ser definida como uma pneuma-fantasmo-
logia e influenciará fortemente as formulações científicas, as questões
especulativas e a poesia do renascimento intelectual do século XI até
o século XIII. Unem-se, de forma indissociável, a fantasmologia aristo-
télica, a pneumatologia neoplatônica e a ciência médica, cuja fisiologia
pneumática influenciou de forma marcante a cultura do período. Essa
pneumo-fisiologia assentava-se na ideia de que havia um elo de liga-
ção, entre o corpo e a alma, que participava da natureza de ambos e,
portanto, não era nem totalmente corpóreo, nem inteiramente incor-
póreo, porém sutilíssimo. Esse meio era o espírito. Segundo Agamben,
para compreender a lírica estilonovista é fundamental o conhecimen-
to da ciência médica pneumática medieval, tendo em vista que nela
reside a explicação da origem do fantasma e da ligação entre coração,
sede da sensibilidade e da imaginação, e o cérebro, onde essas potên-
cias de fato atuam e onde são impressos os fantasmas.
A teoria do pneuma fantástico, ou seja, do espírito responsável
pela conexão entre corpo e alma, entre imaginação e razão, entre sen-
sação e imagem, de origem neoplatônica e assimilada pela cultura me-
dieval, confere à Idade Média Tardia, segundo Agamben, o status de
“civilização da imagem” (AGAMBEN, 2007, p.170). Outrossim, a dou-
trina medieval da fantasia exerceria uma profunda influência na teoria
do amor, cuja expressão maior seria a lírica estilonovista. A relação
da poesia dantesca, e estilonovista em geral, com a doutrina pneu-
mática, ou dos espíritos, não é apenas alegórica, senão parte de um
contexto cultural, que invoca, amplamente, concepções ontológico-

199
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

-epistêmicas de ordem fisiológica, cosmológica, psicológica e mesmo


soteriológica.
A obra de Dante reflete, pois, aspectos fundamentais da cultu-
ra medieval no tocante à concepção pneumática, presente nas tradi-
ções neoplatônica e médica. Agamben afirma: “Toda a lírica estilono-
vista deve ser situada sob o signo desta constelação pneumática e só
no seu âmbito se torna plenamente inteligível” (AGAMBEN, 2007, p.
176). A poesia de Dante e de seus contemporâneos encontra o lócus
apropriado, passando a expressar-lhe os fundamentos, no sistema
unitário de pensamento medieval, cujo fulcro é a doutrina do espí-
rito. E somente no interior desse sistema é que se pode compreender
a psicologia fantasmática do amor, presente nos estilonovistas. Nesse
sentido, o fantasma, isto e, o pneuma fantástico é a origem do enamo-
ramento e do amor. Embora seja apenas reflexo e simulacro do objeto,
apreendido a partir das sensações, especialmente da visão, o fantasma
é conduzido, de sua origem, o coração, até o receptáculo da alma, onde
é plasmado.
Agamben confere novo estatuto à explicação da lírica amorosa
estilonovista, ao subverter as análises que a consideraram meramen-
te a expressão de um fenômeno social e restringiram a fantasmolo-
gia e pneumatologia a expedientes marginais, incapazes de conduzir
um veio explicativo. Afirma, portanto, que a teoria do amor estilo-
novista é, inequivocamente, uma pneumo-fantasmologia, resultado
do entrelaçamento da teoria do fantasma, de origem aristotélica, com a
pneumatologia estoico-médico-neoplatônica. Somente a partir des-
se plano epistêmico é que se pode compreender a dimensão erótica
dos estilonovistas, cujo fulcro é um fantasma, que também é um es-
pírito, “inserido, como tal, em um círculo pneumático, no qual ficam
abolidas e confundidas as fronteiras entre o exterior e o interior, o cor-
póreo e o incorpóreo, o desejo e o seu objeto” (AGAMBEN, 2007, p.
182).
A indelével contribuição dos estilonovistas para a cultura oci-
dental é a fusão da teoria pneumática com a teoria do amor. Dante,
Cavalcanti, e seus contemporâneos, fundiram o Eros da tradição médi-

200
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

ca antiga, cuja natureza também era a do pneuma com a pneumatolo-


gia medieval e ordenaram todo o decurso posterior da cultura do amor
poético, com base no pneuma fantástico.A reconstituição da lírica po-
ética medieval deve considerar o mais amplo espectro cultural possí-
vel, haja vista a necessidade de redirecionar as lentes interpretativas
que até então a ela se dirigiram. Nesse sentido, cabe uma investigação
sobre o amor heroico que, não se trata, segundo Agamben, de um mun-
do claro e luminoso, porém de universo obscuro, situado na patologia
médica e na demonologia neoplatônica.
Para a ciência médica medieval, o amor heroico era uma defor-
mação da virtude estimativa do homem, situada no topo hierárquico
do espírito, que provocava uma confusão de juízo e uma exacerba-
ção do fantasma como objeto desejado, de tal modo a se converter-se
em grande mal para o espírito e o corpo. Para Agamben, caso esses
escritos médicos estiverem certos, é possível afirmar que:

(...) a primeira vez que algo semelhante ao amor, como


o entenderão e descreverão os poetas, aparece na cul-
tura ocidental, é, de forma patológica, na seção sobre
enfermidades do cérebro, nos tratados de medicina
a partir do século IX. (AGAMBEN, 2007, p. 192).

Dessa forma, o que ocorre na poesia a partir do século XII, é uma


inversão semântica, com relação ao amor heroico patológico, e não
uma simples valorização de um conceito sublime de Eros, o que de-
monstra a intrincada e complexa estrutura da poesia medieval. Tal in-
versão/polarização, efetuada pelos poetas do amor, sobre o amor he-
roico, talvez tenha possibilitado ao humanismo reavaliar o conceito
de melancolia, tão intimamente ligada ao pathos negativo do amor
heroico, e relacioná-la, de forma positiva, ao homem contemplativo.
Também a libido freudiana guarda íntima relação, ainda que tardia,
com a ideia medieval do amor, consubstanciada sobre a polarização
que subverteu o princípio do amor heroico, transformando-o também
em ideal sublime, em contrafação à sua gênese médico-patológica
e demonológica do neoplatonismo.

201
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

No limite dessa questão, Agamben afirma que as inovações pro-


movidas por uma determinada época em geral só são possíveis graças
à preexistência de uma tensão potencial, transmitida por uma tradi-
ção, que é reatulizada e polarizada em seu encontro com a nova época.
Assim, o amor dos poetas a partir do século XII é um encontro entre
Eros demônio-enfermidade e Eros-sublime, o que exponencia o seu
caráter fantasmático, já que, de acordo com a tradição médica o amor
heroico é uma deformação da imaginação e, portanto, do juízo; a tra-
dição neoplatônica, por sua vez, remete a Eros-herói-demônio-aéreo,
capaz de influenciar a fantasia dos homens, infundindo-lhes tanto
a saúde quanto a doença. Dessa forma, o amor heroico, o Eros pola-
rizado, é uma enfermidade mortal, que porém traz, no outro extremo,
a possibilidade de salvação, isto é, de posse e gozo do fantasma.
Narciso e Pigmaleão, tornam-se, nessa perspectiva, emblemas
extremos e um desafio a Eros. O primeiro remete à questão de como
possuir o fantasma sem sucumbir à morte; o segundo aponta para
uma sutil contradição fantasmática, que é a idolatria por uma ima-
gem sem vida. Eros busca, pois, um espaço-lugar entre Narciso-morte
e Pigmaleão-nadificação. A questão seguinte, Agamben a coloca na es-
teira da interpretação de uma estrofe do Purgatório, de Dante, qual
seja: “Aquele sou eu, tornei-lhe então, que, quando/Amor me inspi-
ra, atendo e, da maneira/que dentro o escuto, o vou manifestando”
(AGAMBEN, 2007, p. 204).
E ela é, precisamente, libertando-se da interpretação tradicio-
nal, que atribuiu aos citados versos um caráter eminentemente me-
tafórico, perguntar: “de que modo o inspirar de amor, a saber, o cará-
ter pneumo-fantasmático do processo amoroso, pode ser posto como
fundamento de uma teoria da linguagem poética?” (AGAMBEN, 2007,
p. 205). Para Agamben, Dante, assim como os demais poetas do novo,
insere uma teoria da linguagem no plano da doutrina pneumo-fantas-
mática, ou seja, a voz poética é um movimento espiritual, um exercício
pneumático, que conduz, a partir do coração, a voz à boca, de forma
a tornar compreensíveis os fantasmas impressos na alma, posto que,

202
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

para a pneumatologia medieval, o pneuma, ou o espírito, é um media-


dor entre alma e corpo, entre corpóreo e incorpóreo.
A linguagem poética, o espaço do poema é, pois, para os esti-
lonovistas, o espírito mediador entre o ser e o aparecer. O signo po-
ético, que nasce dos espíritos do coração vincula-se ao movimento
pneumático que contempla o amor e seu objeto, qual seja, o fantasma
plasmado nos espíritos fantásticos. A alegria do amor, a máxima su-
blime da poesia estilonovista, caracterizada pela experiência da alma
na relação com os fantasmas nela plasmados, que são os verdadeiros
objetos do desejo, pode ser inserida num círculo que se fecha na inter-
conexão entre fantasma-desejo-palavra.
Agamben afirma: “A inclusão do fantasma e do desejo na lin-
guagem é a condição essencial para que a poesia possa ser concebida
como alegria de amor. A poesia é, em sentido próprio, alegria de amor,
porque ela mesma é a estância na qual se celebra a beatitude do amor”
(AGAMBEN, 2007, p. 211). A palavra poética é a redenção de Narciso,
isto é, a possibilidade de posse e gozo do objeto desejado, sem morte.
O fantasma gera o desejo, este se traduz em palavras, que se circuns-
crevem em um espaço de apropriação possível.
Nesse sentido, a poesia amorosa do século XIII legou à cultura
europeia muito mais do que uma concepção de amor, senão, o nexo
entre Eros e linguagem poética, no contexto do próprio poema. Essa
união espiritual, entre a poesia e seu objeto, talvez seja, segundo
Agamben, a “única tentativa do pensamento ocidental para superar
a fratura metafísica da presença” (AGAMBEN, 2007, p. 214), a palavra
cindida, e quedou-se como projeto “lúcido e vital” (AGAMBEN, 2007,
p. 214), capaz de confrontar a modernidade com seus limites culturais
passados e futuros.
Agamben afirma que há um mal-estar na cultura hoje dominan-
te com relação ao simbólico, ao emblema. Mal-estar esse que restou
como herança metafísica para a semiologia moderna. Ele decorre, pre-
cisamente, de uma ambiguidade do signo que, a um só tempo, é único
na sua forma, mas também revela uma dualidade do manifestante e da

203
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

coisa manifestada. O simbólico é, pois, também diabólico, pois fratura,


em certa medida, o conhecimento que traz em si. É a própria consubs-
tanciação da experiência epistêmico-ontológica ocidental, estrutura-
da sobre o manifestar-se e ocultar-se da coisa, do ser. Essa é, contu-
do, segundo Agamben, uma condição inexorável do filosofar, a saber,
a dicotomia ontológica, a presença dividida do significar. No entanto,
há muito vigora uma dissimulação dessa “fratura da presença”, que tem
origem no mito de Édipo e da Esfinge, cujo desafio remete para além
da descoberta de um significado colado a um significante, senão indi-
ca a “fratura da presença”, uma presença que não se revela completa-
mente com a palavra, mas, simultaneamente, se encobre, se distancia.
Ao subverter o enigma da Esfinge, Édipo, segundo Agamben, “apare-
ce na nossa cultura como o ‘herói civilizador’ que, com sua respos-
ta, proporciona o modelo duradouro de interpretação do simbólico”
(AGAMBEN, 2007, p. 223). O que está em jogo, desde então, é o pró-
prio problema da significação, que ainda se encontra latente no espaço
da linguagem criado por Édipo que, em busca de salvação, artificiou
uma solução que ocultou a inexorável impossibilidade de pleno des-
velamento do ser pela união do significante com o significado. Um ser
que sempre será fraturado, inapreensível no seu todo, como condição
da própria necessidade do pensamento filosófico.

Pontuações finais

A fratura metafísica, como marca ontológica ocidental, produziu


uma dicotomia cultural marcada pela oposição do próprio e do impró-
prio, que se apresentam, em épocas alternadas, como modelos epis-
têmicos dominantes. Dessa forma, uma época do impróprio poderia
ser definida como aquela em que há a primazia do simbólico-emble-
mático; ao contrário de uma época do próprio, que afasta o símbo-
lo-emblema do seu centro cultural, para deixá-lo à margem, até uma
nova viragem.
Nesse sentido, a Renascença e o Barroco teriam sido épocas
do impróprio, uma vez que tomadas por uma profunda intenção ale-

204
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

górica, que colocou em xeque a essência do próprio, isto é, o nexo


da coisa com a sua própria forma. O século XIX, por sua vez, teria sido
dominado pela hegemonia do próprio e nele as figurações emblemáti-
cas foram reduzidas, segundo Agamben, a um armazém de escombros,
onde os emblemas se mantiveram imersos, porém latentes. O símbolo
torna-se o inquietante, a nova Esfinge e, para vencê-la, nasce um novo
Édipo, Freud, o libertador da razão, o aniquilador dos monstros simbó-
licos, das metáforas presentes entre consciente e inconsciente. No li-
mite da questão, o emblema aponta para uma barreira, ainda incontor-
nada, que resiste à significação, e atrás da qual deposita-se “o enigma
geral de todo o significar” (AGAMBEN, 2007, p. 239), ou dito de outro
modo, do momento em que a linguagem se torna uma zona cinzen-
ta indiscernível, ou um perigo iminente. Nessa mesma linha, Walter
Benjamin expõe o problema ontológico da representação e dos limites
da articulação histórica.
A grande barreira que se interpõe entre o significar e a signifi-
cação é expressa pela impossibilidade de concepção de uma ciência
da linguagem no interior da tradição metafísica ocidental. Tal im-
possibilidade se revela mesmo em uma das mais extremas tentativas
de formulação de uma teoria linguística e de um projeto semiológico
moderno, representada pela obra de Ferdinand de Saussure. O próprio
Saussure demonstrava consciência da incontornável dificuldade de es-
truturar um sistema de linguagem capaz de eliminar a diferença en-
tre significante e significado e unificar a presença, de tal forma que o
ser se unisse à forma.
Diante disso, o que se pode fazer, segundo Agamben “é reconhe-
cer a situação originária da linguagem, este ‘entrelaçamento de dife-
renças eternamente negativas’, na barreira resistente à significação,
cujo acesso nos foi fechado pela remoção edípica” (AGAMBEN, 2007, p.
248).Para “apenas pressentir”, diz Agamben, a possibilidade de alcan-
çar, no plano da linguagem, a unidade perdida do ser, uma articulação
harmoniosa e invisível que possivelmente o universo já possuiu, talvez
devêssemos reencontrar a “comunidade entre pensamento e poesia”

205
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

e, ao eliminar a cisão da palavra, suscitar a esperança de unificação


da presença.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental.


Trad. Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem
da história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2014.
ARISTÓTELES. De anima: tratado sobre o homem e o animal. Trad. Alexandre
Pereira Cunha. Lisboa: Editora da Universidade de Lisboa, 2005.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura
e história da cultura. V.1. obras escolhidas. Trad. Jeane Marie Gagnebin. São
Paulo: Brasiliense, 2012.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte
e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Trad. Vera Ribeiro. Rio de
janeiro: Contraponto, 2013.

206
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-10

REVISITANDO SÃO BERNARDO: DA


NARRAÇÃO À QUESTÃO AGRÁRIA

Daniella F. Pilatti (UFSCar)1


Franco B. Sandanello (AFA)2

1 A guinada subjetiva do romance

Nenhuma reflexão, nenhuma descrição, onde for possí-


vel o drama vivo – eis aí uma boa regra; não se permita
que o herói se interponha entre nós e sua mente ativa
[...] a não ser por um motivo muito bom. [...] O nar-
rador pode haver-se da melhor maneira possível, [...]
o que ele conta a respeito de si mesmo, por exemplo,
não pode ser integralmente válido, não por improbida-
de sua, mas apenas porque nenhum homem pode ob-
jetivar-se integralmente, e um relato crível de alguma
coisa precisa parecer destacá-la, libertá-la de todo para
que possa ser examinada. (LUBBOCK, 1976, p. 93-95).

Contando com nomes da grandeza de Henry James e Percy


Lubbock, a moderna teoria da narrativa nasce na virada do século
1 Mestranda em Agroecologia, Universidade Federal de São Carlos, PPGADR/UFSCar. E-mail:
daniellaafp@gmail.com
2 Professor adjunto, Academia da Força Aérea; professor permanente, PPGLIT/UFSCar &
PPGLB/UFMA; membro investigador, CLEPUL/Univ. Lisboa. E-mail: francofbs@fab.mil.br

207
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

XIX para o XX: pela primeira vez desde os primórdios do novel, a evo-
lução do romance, sob o olhar de romancistas e críticos, coloca como
problema central a representação da vida da consciência. Garante-
se, a partir de então, um lugar privilegiado para a instância narrativa
como eixo de construção romanesca3 – dado que muito contribuiu para
o sentido posterior de representação (e apreensão cognitiva) do real
nas mais diversas literaturas ocidentais.
No Brasil, o romance de 30 beneficiou-se largamente deste novo
projeto romanesco para interpretar as feridas sociais de um país fun-
damentalmente marcado pelo analfabetismo e pela desigualdade eco-
nômica. Tornou-se então mais e mais frequente a presença desses re-
flexos a partir do prisma de narradores marcados pela violência física,
econômica e psicológica:

No caso do romance de 30, a formação da consciên-


cia de que o país é atrasado canalizou todas as forças.
Produziram-se romances que se esgotavam ou na re-
produção documental de um aspecto injusto da reali-
dade brasileira ou no aprofundamento de uma men-
talidade equivocada que contribuiria para a figuração
desse atraso. O herói, ao invés de promover ações para
transformar essa realidade negativa, servia para in-
corporar algum aspecto do atraso. Em O Amanuense
Belmiro ou em Angústia, é o intelectual que faz esse
papel; em Os Corumbas é o operário; em Vidas Secas,
o camponês; em Mundos Mortos, a burguesia; em Mãos
Vazias ou em Amanhecer, a mulher. Ao contrário do re-
alismo do século XIX, que havia estigmatizado a narra-
tiva em primeira pessoa, muitas vezes o romance de 30
priorizou-a, com duplo efeito: primeiro, o de conferir
veracidade maior ao documento, já que assim ele apa-
rece construído como depoimento de quem viveu aque-
le fracasso; segundo, o de sublinhar o caráter definitivo
das derrotas narradas, já que para ninguém o impasse

3 A despeito das pretensões de Percy Lubbock (1976) entrevistas na citação prévia, e que preve-
em uma presença cada vez menor do narrador em prol de um tratamento cênico da narrativa.

208
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

pode ser tão profundo, ou mais sem saída a situação,


do que para aquele a quem não é dada uma perspectiva
mais ampla ou mais distanciada do problema. (BUENO,
2001, p. 90).

Graciliano Ramos, mencionado por Luís Bueno a propósito


de Angústia (1ª ed. 1936) e Vidas secas (1ª ed. 1938), contribuiu, so-
bretudo, em São Bernardo (1ª ed. 1934) para a apropriação estratégica
daquele projeto romanesco como forma de compreensão e expressão
da realidade brasileira – a qual, vista pelo olhar de um de seus mais en-
tranhados exploradores, consegue abarcar de maneira ímpar as rela-
ções de trabalho pressupostas pelos desvãos da questão agrária, ainda
hoje não resolvida em nosso país.
Assim, o presente ensaio propõe uma discussão de São Bernardo
a partir do necessário reexame de seu processo narrativo, fundamen-
tal para entender a resposta estética e social de Graciliano Ramos
ao Brasil de 1930.
Contudo, é preciso lembrar que o mencionado projeto romanes-
co remonta a um amplo movimento estético que revolucionou as artes
mais diversas no mundo todo, orientando os “ismos” vanguardistas
sob a baliza dos limites cognitivos da percepção: o impressionismo.
E ignorar tal origem, particularmente ao discutir uma obra das primei-
ras décadas do século XX, poderia contribuir para uma fácil confusão
entre períodos e nomenclaturas.4
Assim, como forma de situar a questão nos seus termos devidos,
faz-se necessário recuperar previamente a proposta original do movi-
mento mencionado e seu impacto decisivo na evolução da forma ro-

4 Esta ressalva é importante, sobretudo, na ocasião de publicação do presente ensaio – i.e.,


em 2022, centenário da Semana de Arte Moderna, convencionada por muitos como marco
inalienável da modernidade literária brasileira.

209
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

manesca – muito embora o termo em si, no caso particular da fortuna


crítica de Graciliano, seja mais ou menos episódico.5

2 Estética impressionista e reorientação cognitiva

In nuce, a revolução impressionista partiu da pintura, entre as dé-


cadas de 1870 e 1880, ao longo de oito exposições coletivas sediadas
em diversos pontos de Paris. Frente à larga incompreensão do público
acerca da proposta estética do grupo, que rendeu comentários ferinos
na imprensa quando das exposições de abril de 1874 e abril de 1876,
foram publicados cinco números de “L’Impressionniste, Journal d’Art»6
em abril de 1877. Tal ocasião marcou a primeira vez em que o grupo
aceitou a denominação “impressionista”, colocando-a em uma faixa
logo acima da entrada, num gesto de clara subversão a um rótulo am-
plamente jocoso.7 Em um dos artigos do periódico, Georges Rivière
(1939, p. 309) buscou esclarecer a atenção impressionista ao tempo
presente como reinterpretação do próprio métier da pintura:

M. Renoir et ses amis ont compris que la peinture histo-


rique n'était pas l’illustration plus ou moins drôlatique
des contes du passé: ils ont ouvert une voie que d’autres
suivront certainement. Que ceux qui veulent faire

5 Há bons estudos que correlacionam a obra de Graciliano Ramos com a pintura, para além
dos limites do impressionismo. É o que se vê, por exemplo, em estudos comparativos en-
tre Graciliano e Portinari como os de Fábio de Oliveira (2019) ou Larissa Arruda de Oliveira
(2013).
6 A respeito da importância deste periódico, diz Joel Isaacson (1980, p. 9): “The impressionists
had no organ to proclaim their program; indeed, they had no program. The most that we can point
to is the very-short lived journal l’Impressionniste, published by Georges Rivière during the run
of the third exhibition in 1877 (although a publication had been projected as part of the articles
of incorporation for the inaugural show). In its hortatory and enthusiatic tone, l’Impressionniste
did serve for a moment the role of propagandist for a movement, combining a condemnation of
tradition with a resounding endorsement of the painters and their art.”
7 À peinture d’impression corresponde a primeira demão de tinta sobre a tela, destinada a dei-
xar menos porosa a tinta que vai por cima. O rótulo “impressionista”, cunhado em 1874 por
Louis Leroy, teve, assim, uma clara intenção de rebaixar a categoria dos novos quadros para a
de uma pintura tão corriqueira quanto a pintura de um muro. Mais especificamente, o artigo
em questão foi publicado originalmente no jornal satírico Le charivari a 25 de abril de 1874,
e pode ser encontrado em coletâneas como as de Pascal Bonafoux (2008) ou de Dominique
Lobstein (2012).

210
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

de la peinture historique fassent l’histoire de leur époque,


au lieu de secouer la poussière des siècles passés. Traiter
un sujet pour les tons et non pour le sujet lui-même, voilà
ce qui distingue les impressionnistes des autres peintres.

A relação entre o impressionismo e a literatura começa a ser pen-


sada já em 1879 – ano não só da quarta exposição do grupo, mas tam-
bém da escrita de “L’impressionisme dans le roman”, de Ferdinand
Brunetière (1883, p. 82), texto que amplia o sentido da palavra para
outras artes a partir do romance Les rois en exil, de Alphonse Daudet:
“l’action continue des objets extérieurs sur l’oeil et de l’impression de l’oeil
sur le mouvement de la main, que de cet entre-croisement et de ce fou-
illis, une dernière ligne, un dernier mot, tout à coup, fait surgir l’ensemble
vivant”. Para Brunetière (1883, p. 82-87), a mão habitua-se “à rendre
pour l’oeil d’autrui ce premier aspect des choses”, sugerido pelas man-
chas de cor; a exprimir o inexprimível, registrando e analisando as im-
pressões elementares que compõem a impressão total; a utilizar pro-
fusamente verbos no imperfeito, a fim de, com “un procédé de peintre”,
“prolonger la durée de l’action exprimée par le verbe”; a suprimir as con-
junções aditivas e incentivar o uso excessivo de adjetivos demonstrati-
vos, que fragmentam o texto e lhe garantem dinamicidade; a valer-se
de comparações para expressar “le langage de la sensation” etc.
Posteriormente, o conceito de impressionismo literário amadu-
receu, conquistando uma independência maior de seu correlativo pic-
tórico. Embora se possa indicar uma série de críticos que optem por li-
mitar a significação do impressionismo à pintura,8 há outros que se
debruçam sobre os aspectos estilísticos da prosa e da poesia, encon-
trando aí uma rica convergência entre as artes.9
Enquanto expressão própria à literatura, contudo – e dentro
dos limites de seu métier textual, com vistas a uma inovação formal

8 Nesta linha, por razões diversas, é possível indicar nomes como os de Bert Bender (1976),
Alfredo Bosi (1969), Peter Bürger (2012), Michel Décaudin (1960), Meyer Schapiro (2002),
Bernard Vouilloux (2000, 2012); Nicolas Wanlin (2012) ou Charles Bally (1942).
9 Nesta linha, destacam-se Arnold Hauser (2000), Maria Elisabeth Kronegger (1973), Marianna
Torgovnick (1985), Ruth Moser (1954), Addison Hibbard e Horst Frenz (1954).

211
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

tão arraigada em seu próprio meio como aquela do impressionismo


pictórico, mas já sem quaisquer relações de precedência – há uma ter-
ceira tendência interpretativa, voltada para a instância narrativa.10
Tal recorte – ou, antes, reorientação crítica a partir da reformulação
do universo diegético operada pelo narrador – é particularmente im-
portante se se cogitar que

o narrador é um elemento imprescindível e só exis-


te na prosa de ficção [...]. O cinema e o teatro podem
utilizar-se do narrador eventualmente, mas ele nunca
deixará de existir no romance com o risco de o romance
transformar-se em outra coisa que não seja o roman-
ce tal como o conhecemos hoje em dia. Se um ele-
mento é tão intrínseco assim ao seu meio, deve exis-
tir uma correspondência de ordem conceitual maior.
Ele não é apenas mais um recurso, ele é a gênese, o ele-
mento inaugural. (FERNANDES, 1996, p. 20-1).

3 Guinada subjetiva e memorialismo: São Bernardo

Tal tendência interpretativa é válida sobretudo em narrativas


de cunho memorialístico – i.e., que se encontram sob a tutela de uma
narração autodiegética (GENETTE, 1972), conferindo a uma visão pon-
tual de mundo o critério de verdade. Neste caso, faz-se necessário ob-
servar, antes de tudo, como o narrador entende seu passado, bem como
discutir qual seu propósito ao retomar eventos já encerrados no tempo,
mas que, mediante sua evocação, passam novamente a existir. Trata-
se, pois, de um exame da reformulação do universo diegético operada
pelo narrador, que prevê, na forma textual, a reorientação da percepção
do real.
Ora, o narrador memorialístico pode ter três posturas básicas
perante os fatos passados: ele pode (1) revisitar o passado de maneira
10 Nesta linha, de vertente sobretudo anglófona – por influência direta da obra de autores como
Henry James, Madox Ford e Joseph Conrad –, encontram-se Nancy Armstrong (1977), Todd
Bender (1997), James Nagel (1978), H. Peter Stowell (1980) e Ian Watt (1979).

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

retrospectiva, i.e., a partir das lacunas de sua memória, sem grandes


planos nem pretensões; (2) buscar um sentido para sua escrita a par-
tir da ressignificação do passado no presente da rememoração; ou (3)
justificar-se de alguma forma, para si ou para outrem, de forma pros-
pectiva, erigindo em critério de verdade sua versão pessoal daquilo
que ocorreu.11
O caso de São Bernardo é, claramente, o terceiro, posto que Paulo
Honório visa expiar seu remorso por meio da escrita, na esperança
vã de mudar o passado, revivendo-o,12 como se o poder de sua pessoa
– que tanto impactou a vida de seus dependentes e de seus subor-
dinados – pudesse vencer, para além dos limites da miséria humana
por si perpetuada, a miséria de um homem avesso a qualquer sinônimo
de liberdade:

Bichos. As criaturas que me serviram durante anos


eram bichos. Havia bichos domésticos, como o Padilha,
bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos bi-
chos para o serviço do campo, bois mansos. Os currais
que se escoram uns aos outros, lá embaixo, tinham
lâmpadas elétricas. E os bezerrinhos mais taludos so-
letravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamen-
tos da lei de Deus. [...] Coloquei-me acima da minha
classe, creio que me elevei bastante. Como lhes disse,
fui guia de cego, vendedor de doce e trabalhador alu-
gado. Estou convencido de que nenhum desses ofícios
me daria os recursos intelectuais necessários para en-
gendrar esta narrativa. Magra, de acordo, mas em mo-
mentos de otimismo suponho que há nela pedaços me-
lhores que a literatura do Gondim. Sou, pois, superior

11 Há em O escorpião e o jaguar (SANDANELLO, 2015) uma discussão aprofundada das três vias
mencionadas de narração memorialística (então chamadas de (1) retrospectiva, (2) presentifi-
cativa e (3) prospectiva), bem como uma série de exemplos.
12 “É a partir de São Bernardo que a memória assume em definitivo o papel de operador da so-
brevivência do passado e elemento fundamental para a compreensão do presente e do futuro.
Quer na sua exacerbação quer na sua anulação, é sobre ela que deposita as raízes da obra.”
(BRAYNER, 1999, p. 401)

213
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

a mestre Caetano e a outros semelhantes. (RAMOS,


1999, p. 185-186).

Assenhorear-se do passado é ainda, para Paulo Honório, uma for-


ma de assumir o controle que lhe foi negado no plano amoroso – sendo
o amor a prova maior da vaidade (do vazio) do poder, posto que só
se realiza através da entrega total.13 Curiosamente, Paulo Honório
não se entrega sequer à escrita, meio através do qual pode expiar
a morte de Madalena – deprimida, oprimida:

Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe


de mencionar particularidades úteis, que me pareçam
acessórias e dispensáveis. Também pode ser que, ha-
bituado a tratar com matutos, não confie suficiente-
mente na compreensão dos leitores e repita passagens
insignificantes. De resto isso vai arranjado sem ne-
nhuma ordem, como se vê. Não importa. Na opinião
dos caboclos que me servem, todo caminho dá na ven-
da. (RAMOS, 1999, p. 8).

De pronto, percebe-se que a visão do narrador envenena o pas-


sado, transferindo sua dor e impotência ao leitor.14 Nenhuma expia-
ção ou revelação, porém, é possível – embora o seja, ainda uma vez,

13 A este respeito, conferir o parecer de Pedro Furtado (2022, p. 283), para quem a solidão doen-
tia de Paulo Honório antecede a perda de Madalena: “A despeito das ‘fissuras de sensibilida-
de’ ampliarem-se pari passu o agravamento do seu sofrimento – não obstante ele seja com-
preendido na ipseidade de Paulo –, o protagonista é um solitário antes mesmo da morte da
esposa, que o insula ainda mais. Ele é, sim, auxiliado por algumas pessoas durante a sua for-
mação, mas o seu projeto de conquistar as terras de S. Bernardo é ideado sozinho e operado
com a ajuda de Casimiro Lopes. De qualquer modo, são numerosas as cenas em que Honório
separa-se das outras personagens quando em companhia delas. Em conversas informais, so-
bretudo jantares, é comum perceber o extravio para dentro de si do protagonista e também o
seu ir à janela, que funciona como um lugar de meditação enquanto fuma um cachimbo. Na
janela ele busca, portanto, racionalizar os fatos; mas é nesse espaço do sujeito isolado que os
seus pensamentos começam a alimentar a paranoia – precedida pela ira generalizada na sua
fase maníaca – sobretudo do capítulo vinte e três ao trinta. É da janela, por exemplo, que ele
imagina ver Madalena ‘requebrando-se para o Nogueira, ao pé da janela, sorrindo’”.
14 Trata-se de um movimento próximo ao de Maria Mutema, em Grande sertão: veredas, ao
confessar-se para o padre, levando-o a uma crise existencial, ou ao de “The mousetrap” em
Hamlet, em que a peça dentro da peça faz transparecer a verdade sobre o regicídio.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

a transmissibilidade da dor (e o vislumbre da má, da terrível verdade


do erro):

Tive abatimentos, desejo de recuar; contornei dificul-


dades: muitas curvas. Acham que andei mal? A verda-
de é que nunca soube quais foram os meus atos bons
e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxe-
ram prejuízo; fiz coisas ruins que deram lucro. E como
sempre tive a intenção de possuir as terras de S.
Bernardo, considerei legítimas as ações que me leva-
ram a obtê-las. (RAMOS, 1999, p. 38-39).

4 São Bernardo, romance prospectivo

São Bernardo é uma obra que opera a partir da narração pros-


pectiva, estabelecendo claros contrapontos com as heranças impres-
sionistas na literatura. Não se trata de dizer, sumariamente, que São
Bernardo é um romance impressionista, embora seja possível fazer
tal afirmação de forma a chamar a atenção do leitor e fazer com que
ele se atente para os diálogos estéticos do impressionismo com o ro-
mance de 30 e se posicione a favor ou contra tal nomenclatura – numa
postura combativa e reativa em todo próxima àquela dos pintores
franceses que, em 1878, aceitaram o rótulo, e, assim, declararam-se
“mal-acabadistas” ou “fragmentaristas” (sentidos decorrentes do sen-
tido original da peinture d’impression).
Os fragmentos do passado de Paulo Honório resistem, pois, a seu
desejo, e o comprometem perante o leitor, que entende sua necessi-
dade doentia por poder, a tempo de decifrar, em sua postura narrativa
hierárquica e aproveitadora (prospectiva, em suma), um comportamen-
to semelhante àquele que, em sua fazenda, perpetuou a desigualdade.
E desvendam sua transferência desesperada de culpa para outrem –
ou até mesmo para a influência negativa do meio ou do trabalho:

215
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não


conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pou-
co, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi mi-
nha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me
deu uma alma agreste. (RAMOS, 1999, p. 100).
Para ser franco, declaro que esses infelizes não me ins-
piram simpatia. Lastimo a situação em que se acham,
reconheço ter contribuído para isso mas não vou além.
Estamos tão separados! A princípio estávamos jun-
tos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou.
Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos
e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos es-
barraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.
Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profis-
são é que me deu qualidades tão ruins. E a desconfian-
ça terrível que me aponta inimigos em toda a parte!
A desconfiança é também consequência da profissão.
(RAMOS, 1999, p. 190).

Assim, voltando às primeiras páginas da obra, é com gran-


de ressalva que se vê Paulo Honório expiar-se, sob o pio da coruja,
“sem indagar se isto [lhe] traz qualquer vantagem, direta ou indireta”
(RAMOS, 1999, p. 8) Paulo Honório tem a ganhar precisamente aquilo
que perdeu no caminho: a naturalidade com que entendia as violentas
relações de poder no campo, das quais foi, ciclicamente, vítima e algoz,
até começar a se questionar, à maneira do canário de Machado de Assis
(1994), se o mundo se resumia às grades da gaiola ou se tudo a seu re-
dor lhe devia obediência:

Em termos de técnica narrativa não poderia haver


solução mais coesa: totalmente imbricados surgem,
à nossa frente, personagem e ação. Paulo Honório nas-
ce de cada ato, mas cada ato nasce por sua vez de Paulo
Honório. Nós o vemos através das ações; mas, por outro
lado, é ele quem deflagra todas as ações. Este caráter
compacto e dinâmico, esta ligação íntima entre o ho-

216
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

mem e o ato (espelhada pela linguagem direta, brutal,


econômica, pelo ritmo rápido dos dois capítulos), esta
interação entre o ser e o fazer vão compor a construção
do romance, que parece correr fluentemente diante
de nós, em direção a um objetivo marcado. (LAFETÁ,
2004, p. 75-76).

Em tudo, a despeito de tudo, percebe-se em sua “ficção” (ter-


mo cuja etimologia prevê o movimento criativo, embora deformador,
da mão humana) o dedo de Paulo Honório como elemento de coesão,
numa rede tentacular que deriva de seu “objetivo marcado”: a con-
quista de São Bernardo – a conquista do passado.

5 O “objetivo marcado”: da posse simbólica do passado à posse


da terra

Ao revisitar a narração de Paulo Honório, o leitor depara-se


com uma São Bernardo de relações sociais típicas da organização
do trabalho no campo brasileiro. E conhecer o debate acerca da Questão
Agrária no Brasil permite trazer para o primeiro plano da narração aqui-
lo que poderia ser observado como pano de fundo: a violência das re-
lações no campo. Esta imersão faz saltar aos olhos a existência de uma
moralidade conivente com o comportamento de Paulo Honório, além
de quase onipresente na narrativa.
São Bernardo, embora não defina explicitamente qualquer locali-
zação temporal, revela situações características das primeiras décadas
da República, quando o fim da escravidão gradativamente cedia lugar
aos embriões dos processos de “modernização” e capitalização da so-
ciedade brasileira.
Nos centros urbanos do Brasil imperial já havia relações so-
ciais capitalistas, aceleradas pela abolição da escravatura e pela vinda
de imigrantes, o que acarretou o desenvolvimento dos setores indus-
trial, comercial e de serviços, atividades que tinham como premissa
relações assalariadas.

217
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Tal configuração foi mantida e incentivada pós-Império,


já que a República foi pensada e instaurada por camadas sociais
que almejavam liberdade econômica e “modernização” da vida polí-
tica. Sobretudo, tinha-se na República uma esperança de mudanças
sociais (PERISSIONOTTO,1994).
É o que se percebe marcadamente na história de vida de seu
Ribeiro – contraponto decadente de Paulo Honório, que se regozija
com a queda do antigo potentado:

Todos acreditavam na sabedoria do major. [...]. O major


decidia, ninguém apelava. A decisão do major era um
prego. [...] E a feira se desmanchava, o barulho finda-
va, todo mundo seguia o major porque todo mundo
era do major. [...] Ora, essas coisas se passaram anti-
gamente. Mudou tudo. [...] Efetivamente a cidade teve
um progresso rápido. Muitos homens adotaram gra-
vatas e profissões desconhecidas. Os carros de bois
deixaram de chiar nos caminhos estreitos. O automó-
vel, a gasolina, a eletricidade e o cinema. E impostos.
Seu Ribeiro enraizou-se na capital. [...] Ao cabo de dez
anos era gerente e guarda-livros da Gazeta, com cen-
to e cinquenta mil-réis de ordenado, e pedia dinheiro
aos amigos.

Paulo Honório representa a “modernidade que entra no sertão


brasileiro, [sendo] o emblema do complexo e contraditório capitalismo
nascente, empreendedor, cruel, que não vacila diante dos meios e se
apossa do que tem pela frente” (LAFETÁ, 2004, p. 200). No sétimo capí-
tulo do romance, em que Paulo narra o passado de Ribeiro, evidencia-
-se um importante contraponto entre seu modo de viver – causa maior
do enfraquecimento de sua influência financeira e social – e o do nar-
rador: “-Tenho a impressão de que o senhor deixou as pernas debaixo
de um automóvel, seu Ribeiro. Por que não andou mais depressa? É o
diabo” (RAMOS, 1999, p.37).

218
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

É preciso observar, porém, que no campo ainda perduravam re-


lações sociais pré-capitalistas, havendo uma forte influência do pro-
prietário da terra, detentor dos meios de produção, sobre o colono,
de maneira que a inserção do capitalismo no campo foi relativamente
mais lenta, não sendo o trabalho assalariado, na prática, a norma. A re-
lação de trabalho substancialmente consistia, segundo Perissionotto
(1994), em dois aspectos de sujeição pessoal: a dependência financeira
e a posse da terra.
Este cotidiano é bem assinalado em São Bernardo, permeando
as interações de Paulo Honório com Padilha, Marciano e Casimiro:

Uma tarde surpreendi no oitão da capela (a capela es-


tava concluída; faltava pintura) Luís Padilha discur-
sando para Marciano e Casimiro Lopes:
— Um roubo. É o que tem sido demonstrado categori-
camente pelos filósofos e vem nos livros. Vejam: mais
de uma légua de terra, casas, mata, açude, gado, tudo
de um homem. Não está certo.
Marciano, mulato esbodegado, regalou-se, entron-
chando-se todo e mostrando as gengivas banguelas:
— O senhor tem razão, seu Padilha. Eu não entendo,
sou bruto, mas perco o sono assuntando nisso. A gente
se mata por causa dos outros. É ou não é, Casimiro?
Casimiro Lopes franziu as ventas, declarou que as coi-
sas desde o começo do mundo tinham dono.
— Qual dono! gritou Padilha. O que há é que morremos
trabalhando para enriquecer os outros.
Saí da sacristia e estourei:
— Trabalhando em quê? Em que é que você trabalha,
parasita, preguiçoso, lambaio?
— Não é nada não, seu Paulo, defendeu-se Padilha, trê-
mulo. Estava aqui desenvolvendo umas teorias aos ra-
pazes.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Atirei uma porção de desaforos aos dois, mandei


que arrumassem a trouxa, fossem para a casa do diabo
(RAMOS, 1999, p. 58).15

Os colonos, como Marciano, dispunham apenas de duas formas


de tentar garantir sua subsistência: aceitar os ditames do dono da ter-
ra ou tentar a sorte em cafezais do Sudeste ou em centros urbanos.
Contudo, se a ida para cidade e a manutenção da vida já não eram
fáceis para os antigos chefes locais, a exemplo de seu Ribeiro, a reali-
dade era ainda pior para os colonos que decidiam cruzar as porteiras
das fazendas: muitos se tornavam retirantes e morriam em decorrência
da miséria. Feneciam assim, uma a uma, as esperanças da República:

Seu Ribeiro passou os dedos pela careca lustrosa:


-No tempo de d. Pedro, corria pouco dinheiro, e quem
possuía um conto de réis era rico. Mas havia fartura,
a abóbora apodrecia na roça. Mamona, caroço de algo-
dão não tinham valor. Com a proclamação da repúbli-
ca ficaram custando os olhos da cara. Por isso eu digo
que essas mudanças só servem para atrapalhar a vida.
A estrada de ferro... (RAMOS, 1999, p. 130).

Por mais que as relações entre colonos e fazendeiros envolves-


sem, em muitos casos, o pagamento de salário pelo trabalho na lavou-
ra, ele geralmente era de valor irrisório, e acabava sendo revertido para
o pagamento de dívidas cobradas pelos próprios latifundiários. Assim,
o que restava aos colonos como subsistência era cultivar as terras afas-
tadas da monocultura, onde tinham permissão para residir e plantar.
Paulo Honório descreve os terrenos e a paisagem de sua fazen-
da, evidenciando como se dava a ocupação territorial do latifúndio,

15 Para além da violência verbal, há uma cena de expressa violência física entre Marciano e
Paulo Honório: “[...] ninguém aguenta mais viver nesta terra. Não se descansa. Era verdade,
mas nenhum morador me havia ainda falado de semelhante modo. — Você está se fazendo
besta, seu corno? Mandei-lhe o braço ao pé do ouvido e derrubei-o. Levantou-se zonzo, bam-
beando, recebeu mais uns cinco trompaços e levou outras tantas quedas. A última deixou-o
esperneando na poeira. Enfim ergueu-se e saiu de cabeça baixa, trocando os passos e limpan-
do com a manga o nariz, que escorria sangue” (RAMOS, 1999, p. 107-108).

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

bem como a distância entre a casa grande e as moradias dos colonos,


numa clara disposição geográfica da dependência social:

Quinze metros acima do solo, experimentamos a vaga


sensação de ter crescido quinze metros. E quando, as-
sim agigantados, vemos rebanhos numerosos a nossos
pés, plantações estirando-se por terras largas, tudo
nosso, e avistamos a fumaça que se eleva de casas nos-
sas, onde vive gente que nos teme, respeita e talvez
até nos ame, porque depende de nós, uma grande se-
renidade nos envolve. Sentimo-nos bons, sentimo-nos
fortes. E se há ali perto inimigos morrendo, sejam em-
bora inimigos de pouca monta que um moleque devas-
ta a cacete, a convicção que temos da nossa fortaleza
torna-se estável e aumenta (RAMOS, 1999, p. 158).

Mesmo Margarida, por quem Paulo Honório tem gratidão e con-


sidera sua mãe, reside longe da sede da fazenda. De maneira revelado-
ra acerca das relações sociais nesse espaço-tempo, o narrador enfatiza
o custo de mantê-la, o que faz, aliás, com certa frequência:

A velha Margarida mora aqui em S. Bernardo, numa ca-


sinha limpa, e ninguém a incomoda. Custa-me dez mil-
-réis por semana, quantia suficiente para compen-
sar o bocado que me deu. Tem um século, e qualquer
dia destes compro-lhe mortalha e mando enterrá-la
perto do altar-mor da capela (RAMOS, 1999, p. 11).

Durante a primeira República, houve um deslocamento do poder


oficial das elites agroexportadoras para a elite urbana. No que se refere
à melhoria de vida do colono, pouco mudou, de maneira que o regime
republicano não significou uma ruptura efetiva com a realidade impe-
rial de outrora.
Vale ressaltar que há divergências teóricas sobre o sistema
em que se enquadra o processo produtivo agrícola em questão (co-
lonato). Autores como Sodré e Guimarães comparam-no ao período

221
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Feudal vivido na Europa, em que a relação trabalhista era servil; Caio


Prado Jr., por sua vez, considera que, por mais que o termo capitalista
não representasse verdadeiramente a realidade brasileira, ainda se fa-
zia mais adequado do que o termo feudalista (SANCHES, 2008).
Para além dessas relações de trabalho, capitaneadas por Paulo
Honório, nota-se certa consonância com posicionamentos das clas-
ses dominantes da época nas falas de João Nogueira, padre Silvestre
e Azevedo Gondim. A partir das confabulações entre essas personagens
e Paulo, pode-se observar que (1) não há um único projeto de República
e que (2) em nenhum momento essas personagens questionam a “au-
toridade” de Paulo.
De fato, para que a República fosse instaurada no Brasil, foi ne-
cessário um consenso entre produtores agrícolas, profissionais dos cen-
tros urbanos emergentes e militares. Contudo, pouco havia em comum
entres os três grupos, e, mesmo dentro de cada um, não havia harmo-
nia. Este desalinho marcou as décadas iniciais do regime:

Padre Silvestre é desorientado. [...] Danadamente libe-


ral.
— Isso que se vê. É a falência do regímen.
Desonestidades, patifarias. [...] A facção dominan-
te está caindo de podre. O país naufraga, seu doutor.
É o que lhe digo: o país naufraga. [...] São as finanças
do Estado que vão mal. As finanças e o resto. Mas não
se iludam. Há de haver uma revolução!
— Era o que faltava. Escangalhava-se esta gangorra. [...]
Porque o crédito se sumia, o câmbio baixava, a merca-
doria estrangeira ficava pela hora da morte. Sem falar
na atrapalhação política.
— Seria magnífico, interrompeu Madalena. [...]
— Esperem por isso, atalhou Azevedo Gondim. Os se-
nhores estão preparando uma fogueira e vão assar-se
nela. [...] Se rebentar a encrenca, há de sair boa coisa,
hem, Nogueira?

222
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

— O fascismo.
— Era o que vocês queriam. Teremos o comunismo.
D. Glória benzeu-se e seu Ribeiro opinou:
— Deus nos livre.
— Tem medo, seu Ribeiro? perguntou Madalena sor-
rindo.
— Já vi muitas transformações, excelentíssima, e to-
das ruins.
— Nada disso, asseverou padre Silvestre. Essas doutri-
nas exóticas não se adaptam entre nós. O comunismo
é a miséria, a desorganização da sociedade, a fome
(RAMOS, 1999, p.127-130).

A República apenas deu continuidade ao que se estabelece-


ra no Império com a manutenção da Lei de Terras de 1850, causando
revoltas populares que logo foram suprimidas, numa demonstração
da violência que permeava as relações no campo, a vida dos colonos
e a ausência real de mudanças sociais:

Um dia Azevedo Gondim trouxe boatos de revolução.


O sul revoltado, o centro revoltado, o nordeste revol-
tado. – É um fim de mundo. Padilha esfregou as mãos:
— Afinal a postema rebentou, com os diabos! À noite
o chefe político escreveu-me pedindo armas e cabro-
eira. De madrugada enviei-lhe um caminhão com rifles
e homens. (RAMOS, 1999, p. 175-176).

A malograda relação entre o poder público, a representatividade


política e a ação dos latifundiários resultou, por sua vez, em traços
chãos como o falseamento de votos ou a desorganização dos servi-

223
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

ços públicos locais:16 “Torcidas de verdade, sim: mandava os meus


eleitores às urnas e recebia em troca os agradecimentos do partido.
Tricazinhas locais, não” (RAMOS, 1999, p.50).
Em relação ao campo, pouco mudou até meados do século XX;
mesmo na década de 1960, quando surge um novo período de classi-
ficação nos estudos da questão agrária brasileira, não houve mudan-
ças significativamente positivas para colonos e camponeses. Em São
Bernardo, nota-se que a narrativa transcende o período da primeira
República, chegando no limiar da década de 1940, marcado pelo fim da
subvenção estatal de 150 mil réis. No que tange às relações sociais
na fazenda, de um período ao outro, elas se mantiveram as mesmas:

— O senhor acredita nisso? perguntou João Nogueira.


— Em quê? — Eleições, deputados, senadores. Retraí-
me, indeciso, porque não tenho ideias seguras a respei-
to dessas coisas. — A gente se acostuma com o que vê.
E eu, desde que me entendo, vejo eleitores e urnas.
Às vezes suprimem os eleitores e as urnas: bastam li-
vros. Mas é bom um cidadão pensar que tem influên-
cia no governo, embora não tenha nenhuma. Lá na fa-
zenda o trabalhador mais desgraçado está convencido
de que, se deixar a peroba, o serviço emperra. Eu culti-
vo a ilusão. E todos se interessam. João Nogueira refle-
tiu um instante: — O que eu acho é que os deputados

16 Sem falar no coronelismo, que, de há muito, configurava as relações de poder no campo, nos
limites de “um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamen-
te fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de
terra. Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrá-
ria, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis
no interior do Brasil.” (LEAL, 2012)

224
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

e os senadores são inúteis e comem demais (RAMOS,


1999, p.66).17

Ao longo de toda a obra, a única personagem que efetivamente


enfrenta os ditames de Paulo é Madalena, a qual, não por acaso, tem um
trágico fim. Ocupada com o futuro dos colonos – cuidando de sua saú-
de e de sua educação, sobretudo –, Madalena reage aos desmandos
do marido. Porém, ao contrário dos colonos, cuja rebeldia acidental
tem pouco ou nenhum impacto sobre o narrador, o não de Madalena
à vida com Paulo Honório é aquilo que motiva a escrita de suas memó-
rias, lançando-o num círculo nefasto de culpa e (falsa) expiação.
Alfim, a obra entrevê uma possível circunstância de subversão
de sua lógica infinita de violência – embora o faça de maneira ape-
nas indireta ou simbólica, dentro dos limites de construção da própria
narração.

17 Há na obra muitas outras passagens relativas aos desmandos no campo: “O que agora me im-
portunava eram as caixas com o material pedagógico inútil nestes cafundós. Para que aquilo?
O governador se contentaria se a escola produzisse alguns indivíduos capazes de tirar o tí-
tulo de eleitor” (RAMOS, 1999, p.108); “Que diabo diria ele contra mim na folha? Não sendo
funcionário público, as minhas relações com o partido limitavam-se a aliciar eleitores, en-
tregar-lhes a chapa oficial e contribuir para música e foguetes nas recepções do governador.
O veneno da Gazeta não me atingia. Salvo se ela bulisse com os meus negócios particulares.
Nesse caso só me restava pegar um pau e quebrar as costelas do Brito” (RAMOS, 1999, p. 62);
“Como a justiça era cara, não foram à justiça. E eu, o caminho aplainado, invadi a terra do
Fidélis, paralítico de um braço, e a dos Gama, que pandegavam no Recife, estudando direito.
Respeitei o engenho do dr. Magalhães, juiz” (RAMOS, 1999, p. 39-40); “- Desorientem essas
cavalgaduras. Olhem que estou fazendo obra pública e não cobro imposto. É uma vergonha.
O município deveria auxiliar-me. Fale com o prefeito, dr. Nogueira. Veja se ele me arranja
umas barricas de cimento para os mata-burros” (RAMOS, 1999, p.40); “Tive por esse tempo a
visita do governador do Estado. [...] S.excia. tornou a falar na escola. Tive vontade de dar uns
apartes, mas contive-me. Escola! Que me importava que os outros soubessem ler ou fossem
analfabetos? [...] De repente supus que a escola poderia trazer a benevolência do governador
para certos favores que eu tencionava solicitar” (RAMOS, 1999, p.42-43); “Nesse tempo eu
não pensava mais nela, pensava em ganhar dinheiro. Tirei o título de eleitor, e seu Pereira,
agiota e chefe político, emprestou-me cem mil-réis a juro de cinco por cento ao mês. Paguei
os cem mil-réis e obtive duzentos com o juro reduzido para três e meio por cento. Daí não
baixou mais, e estudei aritmética para não ser roubado além da conveniência” (RAMOS, 1999,
p.12); “No outro dia, sábado, matei o carneiro para os eleitores. Domingo à tarde, de volta
da eleição, Mendonça recebeu um tiro na costela mindinha e bateu as botas ali mesmo na
estrada, perto de Bom-Sucesso. No lugar há hoje uma cruz com um braço de menos” (RAMOS,
1999, p.33).

225
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Conclusão: o ciclo sem fim

São Bernardo é uma obra que sintetiza, no plano narrativo,


um ciclo sem fim de violência – psicológica, física, econômica – ligada
à jamais resolvida questão agrária no Brasil, que revive, em diversos
momentos de sua história, feridas sociais abertas desde os primórdios
do Império.
No entanto, como disse Roberto Schwarz alhures,18 o narrador
tem suas limitações: “violência com pés de barro, sua ferocidade não é
distância.” (SCHWARZ, 1981, p. 30) Falta a Paulo Honório a comple-
ta desumanidade do sistema que representa e perpetua: a destruição
de sua felicidade conjugal é o bastante para que suas certezas monolí-
ticas se desfaçam gradativamente.
A grande vítima da obra é, assim, o próprio narrador, o que cor-
robora a significação impressionista de São Bernardo, visto que se con-
centra no espelho – e não no reflexo (LUBBOCK, 1976) – o eixo de sua
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18 Roberto Schwarz faz referência a outro narrador prospectivo no estudo em questão (e.g.
Sérgio, narrador d’O Ateneu).

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https://doi.org/10.29327/5140999.1-11

O MONOMITO EM CARAMURU, DE FREI


JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO

Dílson César Devides1

1 O percurso do herói

No livro O herói de mil faces, de Joseph Campbell, publica-


do em 1949, o autor discorre sobre os estudos que realizou acerca
dos mitos. Campbell constatou que todos os mitos da humanidade
têm, em maior ou menor grau, a mesma essência, seus heróis seguem
basicamente o mesmo enredo, podendo haver, evidentemente, algu-
mas subtrações ou alguns acréscimos.
O objetivo maior da obra de Campbell é trazer à tona a impor-
tância dos mitos para a compreensão da história humana e de sua con-
dição existencial e psicológica: “não seria demais considerar o mito
a abertura secreta através da qual inexauríveis energias do cosmos pe-
netram nas manifestações culturais humanas” (CAMPBELL, 2007, p.
15). Em outras palavras, o autor defende que, ao ignorar os mitos ou ao
lê-los superficialmente, deixa-se de usufruir ensinamentos constituin-
tes da humanidade, perde-se a oportunidade de compreender aspectos

1 Universidade Federal de Mato Grosso – ICHS/Campus do Araguaia. Professor permanente do


PPGLB/UFMA BACABAL e professor colaborador do PPGECCO/UFMT. dilson.devides@ufmt.
br

230
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

psicológicos, que poderiam trazer ao cotidiano das pessoas um suporte


real para seguirem, elas mesmas, suas jornadas.
Para justificar sua teoria, Campbell se vale de histórias mito-
lógicas do Ocidente e do Oriente, fugindo à perspectiva reducionis-
ta que o eurocentrismo causaria. Recorre a mitos africanos e asiáticos
com a mesma perspicácia e profundidade que aos europeus ou indo-
-europeus. Buda, Jesus Cristo, santos católicos, deuses e heróis pagãos
das Américas e da Europa são figuras constantes em seus exemplos.
À base desses enredos chamou monomito, termo que tomou em-
prestado de James Joyce no livro Finnegans Wake.2 O monomito, por-
tanto, representa a trajetória de amadurecimento do homem ao lon-
go da vida, passando pela separação da mãe e pelo reconhecimento,
por parte do pai, de que o filho já pode seguir sozinho. Alicerçado
nas teorias arquetípicas de Jung e do inconsciente de Freud, Campbell
(2007, p. 15-32) conseguiu detectar estruturas narrativas comuns que,
à maneira dos rituais de passagem, formam um ciclo de três etapas:
partida, iniciação e retorno.
Campbell (2007, p. 36-55) busca evidenciar que o monomito,
essa jornada do herói lendário, independentemente da origem e da
época, sejam histórias mitológicas pagãs ou cristãs, caracterizam-se
pela busca de uma consciência coletiva mais abrangente e renovada.
O herói é um sujeito comum que tem uma vida comum até o momento
em que é chamado para a aventura. Ele está o tempo todo envolvido
em algum tipo de ação, se está na inércia é destruído definitivamente
para renascer com outro sujeito, morre como homem individual para
nascer como homem coletivo, ou seja, para representar uma coletivi-
dade, um povo, uma pátria. O herói ultrapassa os limites que ninguém
havia conseguido passar e traz de lá algo que seja um benefício geral.
É o responsável por trazer um novo conjunto de possibilidades para
todos experimentarem, ampliando assim o horizonte da consciência
coletiva, revelando todo um novo contexto de possibilidade de se pen-

2 O próprio Campbell (2007) confirma a origem do termo na nota 35 de seu prólogo: “O termo
‘monomito’ é de James Joyce, Finnegans Wake, Nova York, Viking Press, Inc., 1939, p. 581.” (p.
53).

231
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

sar e se experimentar a realidade, assim como encarnando os dramas


típicos de sua cultura, que estão na centralidade do ser. Ele deve tentar
ressignificar suas tendências mais íntimas para promover a transcen-
dência de sua consciência e, por conseguinte, de seu povo.
Campbell dividiu a jornada do herói em três etapas, a saber
“A partida”, “A iniciação” e “O retorno”; as quais foram subdividi-
das em outras que são tratadas adiante, cotejando-as com a trajetó-
ria de Diogo Álvares, herói do poema épico Caramuru, de Frei José
de Santa Rita Durão.

A partida
A primeira etapa da jornada do herói refere-se a problemas
de inércia. Estando o herói a passar seus dias despercebido de seus
problemas e dos de seu povo, de seu mundo, encontra-se estagnado,
num quadro estacionário que impede que toda sua potencialidade raie.
Faz-se necessário que ele se afaste, separe-se desse cenário para po-
der explorar suas habilidades que serão afrontadas por forças internas
e externas na tentativa de impedi-lo a alcançar o autorreconhecimen-
to, a integração consigo, exigidas para a jornada. A Partida é, portanto,
a etapa em que o herói deve perceber que há um problema e que será
ele o responsável pela resolução. Caso não aceite o desafio permane-
cerá como um homem comum; aceitando-o, partirá em uma campanha
que começa por crer-se capaz, por reconhecer-se portador de qualida-
des e disposto a mudar.

O chamado da aventura

O herói está em seu mundo conhecido, levando sua vida habi-


tual, até o momento em que algo lhe chama a atenção, convidando-o
ou provocando-o a ingressar em uma aventura. Esse chamado pode
ser feito por alguma entidade fantástica (anjo, fantasma etc.), real
(uma pessoa qualquer que instigue o herói a mover-se), ou pode se dar
por um sonho, delírio, premonição, que desperte sua atenção: “esse
primeiro estágio da jornada mitológica [...] significa que o destino con-

232
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

vocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da socie-


dade para uma região desconhecida” (CAMPBELL, 2007, p. 66).
Em Caramuru, o chamado da aventura se dá antes do início
da narrativa, quando Diogo Álvares já está perto da costa baiana e se
inicia, de fato, a narrativa. Assim, o chamado se dá pelo contexto his-
tórico e pelas relações e características pessoais de Diogo Álvares.
Sendo um fidalgo português envolvido com questões de Estado lusita-
nas, tem que, como por dever patriótico, buscar novas terras e ajudar
em seu desenvolvimento social, político e espiritual.

A recusa do chamado

A recusa do chamado é uma tendência regressiva, uma tentativa


por parte do herói em permanecer na inércia. Nas palavras de Campbell,
seria como estarmos “aprisionados pelos muros da infância; o pai e a
mãe são guardiões das vias de acesso, e a atemorizada alma, temendo
alguma punição, não consegue passar pela porta e alcançar o nasci-
mento no mundo exterior” (CAMPBELL, 2007, p. 69). Seja por medo
dos desafios ou perigos, seja por sentir-se fraco demais ante as dificul-
dades que vislumbra passar para atingir o objetivo ou mesmo por não
querer tomar atitude nenhuma, o herói pode declinar da convocação
por algum tempo, mas chegará o momento em que não conseguirá
protelar sua missão e será posto em marcha.
Diogo Álvares tem duas recusas ao chamado. A primeira ocorre
no canto I: tendo naufragado, é aprisionado com seus companheiros
pelos indígenas e presenciam a antropofagia dos nativos, que devoram
aqueles que já se encontravam mortos e vislumbram seu fim. A segun-
da, no mesmo canto, dá-se por parte dos indígenas, que não veem nele
a figura do herói. Assim, a recusa do chamado se dá de modo involun-
tário, pois o fato de se tornarem refeição dos indígenas acabaria com a
missão nas novas terras e não ser reconhecido como herói torna-o sim-
ples refeição. Em outras palavras, não cabe aqui ao herói escolher ini-
ciar a jornada ou não, uma vez que já se encontra nela, seria, pois, obra
das circunstâncias o fato de não cumprirem a jornada. Dito de outro

233
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

modo, a regressividade da ação, a atitude de enjeitar o chamado ocorre,


nos dois momentos, por fatores externos à vontade de Diogo Álvares.
São as circunstâncias que lhe impõem a recusa. Em momento algum
é relatado que o nobre lusitano temeu pelo seu fim. Ainda que julgasse
óbvio ser devorado, sempre teve fé em Deus. Assim, poder-se-ia supor
que, para ele, o fato de não cumprir a jornada seria a vontade de Deus,
a qual aceitaria de bom grado.

O auxílio sobrenatural

Campbell descreve o auxílio sobrenatural como o encontro


com uma entidade que protegeria o herói, normalmente um idoso
com experiências a compartilhar, uma entidade fantástica, que tra-
rá algum recurso mágico, um anjo, um santo ou, ainda, outra espécie
de criatura, que evidencie ao herói que as forças do Bem estão ao seu
lado e que ele faz parte de um plano maior que sua mera existência.
Ao aceitar o chamado,

o primeiro encontro da jornada do herói se dá com uma


figura protetora (que, com frequência, é uma anciã
ou um ancião), que fornece ao aventureiro amule-
tos que o projetam contra as forças titânicas com que
ele está prestes a deparar-se. (CAMPBELL, 2007, p. 74).

Como se trata de uma obra escrita por um padre e com fortes


tendências catequizantes, não se admira que a entidade protetora
seja o próprio Deus a intervir em benefício daqueles que tentam levar
sua palavra aos infiéis ou ignorantes. A situação periclitante em que
se encontravam no primeiro canto não abala a fé de Diogo Álvares.
Seu estado frágil, magro e debilitado faz com que os nativos adiem
a refeição para tê-lo mais forte e apto para uma boa ceia. Os prisionei-
ros rogam a Deus por um milagre e são atendidos. Ocorre um ataque
de Sergipe, inimigo de Gupeva, que leva os companheiros de Diogo
Álvares e acaba por adiar o sacrifício.

234
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

A chegada de Sergipe equivaleria à aparição de um anjo pro-


tetor, que opera um milagre. Para Campbell, seria esse o momento
em que o herói receberia alguma espécie de amuleto ou arma mágica
que o auxiliaria na jornada. Como Sergipe não é o protetor de Diogo
Álvares, tendo servido apenas de instrumento do Altíssimo para assis-
ti-lo, não será portador de nenhum recurso mágico para Diogo Álvares.
No entanto, em meio ao ataque, que culminou no sequestro dos com-
panheiros de Diogo Álvares pelo inimigo de Gupeva, o herói lusitano
conseguiu recuperar armaduras, munição e armas na evidente expec-
tativa de usá-las quando necessário.

A passagem pelo primeiro limiar

Embora pareça óbvio assinalar a chegada ao Novo Mundo como


a passagem pelo primeiro limiar, pois o herói se depararia com o des-
conhecido, projeção de seus temores, lugar onde não saberia o real
alcance de suas armas e artimanhas, transferindo ao fato de sobrevive-
rem ao naufrágio o apoio sobrenatural, parece mais pertinente assina-
lá-lo, já no segundo canto, como o momento em que, trajado de arma-
dura e munido de espingarda, Diogo Álvares amedronta os indígenas
e os subjuga. É assim que,

tendo as personificações do seu destino a ajudá-lo


e a guiá-lo, o herói segue em sua aventura até che-
gar ao “guardião do limiar”, na porta que leva à área
da força ampliada. Esses defensores guardam o mundo
nas quatro direções [...], marcando os limites da esfera
ou horizonte de vida presente do herói. Além desses
limites, estão as trevas, o desconhecido e o perigo [...].
(CAMPBELL, 2007, p. 82).

Reconhecendo sua inferioridade física, Diogo Álvares usa da


inteligência para enfrentar o guardião do limiar, aqui personificado
pela tribo que o aprisiona. Pode-se perceber o caráter ambíguo típico
dos guardiões, pois representam duas realidades, o mundo conhecido

235
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

e o mundo desconhecido. Obtendo êxito em sua empreitada, o herói


está apto para prosseguir em sua jornada, agora mais forte e modifi-
cado, tendo deixado para trás seu mundo habitual e adentrando de-
finitivamente num ambiente até então ignorado. É a partir desse en-
frentamento que Diogo Álvares passará e viver o cotidiano dos nativos
brasileiros, a compreender sua cultura e costumes e a se preparar para
renascer como herói também para os indígenas.

O ventre da baleia

A modificação no herói se dá pela sua morte como indivíduo co-


mum e seu nascimento com herói. É a mesma ideia de que

a passagem do limiar mágico é uma passagem para


uma esfera de renascimento [...] simbolizada na ima-
gem mundial do útero, ou ventre da baleia. O herói,
em lugar de conquistar ou aplacar a força do limiar,
é jogado no desconhecido, dando a impressão de que
morreu. (CAMPBELL, 2007, p. 91).

Ao passar pelo primeiro limiar e abandonar sua individuali-


dade, o herói passa a representar toda uma nação ou povo, torna-se
um símbolo ou ícone. O ventre da baleia representa a região da ani-
quilação da personalidade individual, momento em que abandona
tudo que trazia até então, tudo o que lhe constituía como indivíduo,
de onde sairá um ser renovado, um herói. “Portanto, alegoricamente,
a entrada num templo e o mergulho do herói pelas mandíbulas da ba-
leia são aventuras idênticas; as duas denotam, em linguagem figurada,
o ato de concentração e de renovação da vida” (CAMPBELL, 2007, p.
93).
Estando à beira da morte, pois seria devorado pela tribo, Diogo
Álvares usa de sua inteligência e se transveste em guerreiro, conse-
guindo amedrontar os indígenas, passando pelo primeiro limiar. Mas é
no segundo canto, quando estão em caçada, que Diogo Álvares atinge
um pássaro com sua arma, amedrontando a todos, inclusive Gupeva,

236
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

o líder, e recebe o nome de Caramuru, filho do Trovão. Assim, morre


o náufrago, que seria apenas uma refeição, para renascer como um se-
mideus, que passa a liderar a tribo nas batalhas que se darão.

3 A iniciação

Após a primeira etapa (a partida), a segunda fase da jornada


(a iniciação) é aquela que marca o desprendimento da vida anterior.
O herói se deparará com as mais aterrorizantes e desafiadoras aventu-
ras para atingir o estágio de uma divindade. Será testado em seus mais
recônditos sentimentos, encontrará deuses, sentir-se-á desamparado
e necessitará de humildade para receber ajuda e, logrando êxito, tor-
nar-se-á praticamente uma deidade. Desse estágio não é permitido re-
tornar, a menos que o herói morra. Desistir e conseguir retornar vivo
são indicativos de que aquele personagem não era definitivamente
um herói.

O caminho de provas

Essa etapa é caracterizada pela frequente necessidade de ação


do herói, que terá que enfrentar um sem-número de aventuras para
atingir seus objetivos. Derrotas e vitórias são comuns, pois o herói
tem longo caminho a percorrer e ainda não conhece toda a sua po-
tencialidade. As adversidades vivenciadas até aqui representam “[...]
tão-somente, o início da trilha, longa e verdadeiramente perigosa,
das conquistas da iniciação e dos momentos de iluminação. Cumpre
agora matar dragões e ultrapassar surpreendentes barreiras — repeti-
das vezes” (CAMPBELL, 2007, p. 110).
Embora o herói tenha de passar por provas durante toda a sua
jornada, ou seja, não há estágio sem desafios e tampouco há momen-
tos precisos para ocorrerem, as provas dessa etapa diferenciam-se
por serem as primeiras após o renascimento do sujeito como herói,
implicando em complicações típicas da falta de experiências com os
poderes que recém adquiriu.

237
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

O caminho das provas de Diogo Álvares tem início a partir


do terceiro Canto, no qual o herói, agora líder dos tupinambás, trava
as mais sangrentas batalhas. Verdadeiras carnificinas, os embates ser-
vem ao poeta para dar vazão à imaginação e para descrever toda sorte
de armas, indumentárias ou apetrechos de que se valiam os nativos
brasileiros para guerrearem. As batalhas são o que há de mais vibrante
no poema e são entrecortadas por detalhamentos de comportamen-
tos, hábitos e costumes dos nativos ou para que Diogo Álvares cumpra
seu dever de catequizador. Destaque-se que, como herói, Diogo Álvares
não perde nenhuma batalha.

O encontro com a deusa

O encontro com a deusa se dá antes de O caminho de provas,


no final do segundo canto, quando Diogo Álvares conhece Paraguaçu.
Campbell descreve esse acontecimento como se fosse um casamento
transcendente que ocorre depois de vencidas as batalhas (ou grande
parte delas), ou seja, a junção do humano com o sagrado, represen-
tando tudo o que há de melhor na natureza. Seria, pois, o casamento
sobrenatural com a rainha-deusa do mundo constituindo

o domínio total da vida por parte do herói; pois a mulher


é vida e o herói, seu conhecedor e mestre. E os testes
por que passou o herói, preliminares de sua experiência
e façanha últimas, simbolizaram as crises de percep-
ção por meio das quais sua consciência foi amplificada
e capacitada a enfrentar a plena posse da mãe-destrui-
dora, de sua noiva inevitável (CAMPBELL, 2007, p. 121).

A deusa Pode ser mãe, irmã, amante etc. No caso de Caramuru,


trata-se da noiva, Paraguaçu, que personifica a mulher do Novo Mundo.
No entanto, o casamento só se dará muito depois, quando o casal es-
tiver na França em missão diplomática. Somente após o casamento
religioso concretizado é que os noivos consumarão as núpcias, pois

238
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Diogo Álvares mantem-se fiel aos ideais cristãos respeitando a suposta


pureza da noiva.

A mulher como tentação

Após sua ascensão como líder dos indígenas, principalmen-


te após ter derrotado Jararaca, e durante toda a sua estada entre
os nativos, vários líderes indígenas de tribos menores, que se aliaram
aos tupinambás sob a tutela de Diogo Álvares, ofereciam-lhe suas fi-
lhas em casamento. Seguindo os preceitos cristãos de lealdade, Diogo
Álvares sempre se manteve fiel a Paraguaçu. A mulher como símbolo
da tentação representa todos os pruridos decorrentes das fraquezas
morais humanas, que são as forças naturais tentando atrapalhar a jor-
nada do herói. Caso renda-se à tentação, sua campanha pode ser retar-
dada ou até mesmo findada. Nas palavras de Campbell,

nem mesmo os muros monásticos ou as remotas para-


gens do deserto podem proteger [o herói] contra a pre-
sença da mulher; pois enquanto a carne do eremita
se mantiver unida aos seus ossos e enquanto sua pul-
sação for intensa, as imagens da vida estarão alertas,
prontas a explodir como tempestade, em sua mente.
(CAMPBELL, 2007, p. 125).

Um episódio emblemático das tentações carnais pelas quais


o herói lusitano passou se dá quando, no final do sexto canto, em sua
partida para França a bordo do navio de Duplessis. Várias indígenas
precipitam-se ao mar e nadam atrás do navio numa tentativa deses-
perada de alcançá-lo e mostrar o quanto o queriam. Cansadas, vão fi-
cando pelo caminho e, apenas Moema, obstinada, consegue alcançar
a nau, mas sucumbe.

239
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

A sintonia com o pai

A verdadeira sintonia com o pai, a divindade protetora maior,


dá-se no momento de maior necessidade do herói. Quando ele se
vê em apuros, dos quais apenas um deus pode livrá-lo, e sua con-
fiança e fé são postas a prova. Significa também um ato de humilda-
de. Reconhecendo-se incapaz de vencer, clama por ajuda. É também
um ato de autoafirmação, pois o pai só ajuda aquele que tem mere-
cimento e que entendeu que ainda não é um ser supremo. Por isso
o paredro

(pai ou pai substituto) deve entregar os símbolos


do ofício tão-somente ao filho que tiver sido efetiva-
mente purgado de todas as catexes infantis impróprias
— a um filho que não se veja impossibilitado para o jus-
to e impessoal exercício dos poderes pelos motivos
inconscientes [...] do autoengrandecimento, da prefe-
rência pessoal ou do ressentimento. Em termos ideais,
o filho investido do ofício afasta-se de sua mera condi-
ção humana e representa uma força cósmica impesso-
al. (CAMPBELL, 2007, p. 133).

Estando em sintonia com o pai, o herói poderia assumir o lugar


do próprio pai, uma vez que não seria mais visto apenas como o filho,
mas como alguém preparado para também ser pai.
Diogo Álvares sempre esteve em sintonia com Deus. Exemplo
de cristão, o herói é caracterizado por Durão como pessoa temente
a Deus e respeitador de suas leis, cuja missão maior é catequizar os in-
dígenas. É essa fé que encoraja Diogo Álvares a enfrentar, no quinto
canto, Jararaca e todo o seu exército.

A apoteose

O momento da apoteose se dá quando o herói tem seu envoltó-


rio de consciência aniquilado. Em outras palavras, quando ele se torna

240
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

livre de temores e percebe que sua força e poder vêm de dentro de si,
podendo, a partir de então, alcançar um patamar próximo à divindade.
Campbell explica que

tal como o próprio Buda, esse ser divino é um padrão


da condição divina que o herói humano atinge quando
ultrapassa os últimos terrores da ignorância. Eis o po-
tencial liberador que se encontra dentro de todos nós,
e que todos podem alcançar — através do heroísmo [...].
(CAMPBELL, 2007, p. 145).

O herói passa a demonstrar tamanho desapego por questões ta-


canhas, mesquinhas e até mesmo por sua própria vida, que atinge ele-
vado grau de compreensão de seu papel na jornada que percorre.
Diogo Álvares vive seu momento apoteótico quando, no quinto
canto, em batalha épica, Jararaca, tomado de ciúmes e com orgulho
ferido, ataca Gupeva e aliados. Comandando 300 nações, Jararaca tenta
matar Gupeva e tomar para si o comando geral das nações brasileiras
da região. Diogo Álvares tem nova oportunidade de disparar sua arma
de fogo e com tiro certeiro atinge Jararaca na cabeça, que cai morto.
Os inimigos se rendem e tem início um período de paz entre os nati-
vos, agora comandados por Diogo Álvares.

A benção última

Tendo alcançado a condição legítima de herói, aquele que está


em jornada ainda carece de proteção das entidades superioras. Antes
de prosseguir em sua missão, busca por algo que possa lhe ser útil para
continuar, pode ser um conselho, uma palavra amiga de incentivo,
algum outro amuleto ou arma mágica, ou, até mesmo, uma situação
em que perceba a presença divina de modo positivo. Assim,

enquanto ele cruza limiar após limiar, e conquis-


ta dragão após dragão, aumenta a estatura da divin-
dade que ele convoca, em seu desejo mais exaltado,

241
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

até subsumir todo o cosmo. Por fim, a mente quebra


a esfera limitadora do cosmo e alcança uma percepção
que transcende todas as experiências da forma — to-
dos os simbolismos, todas as divindades: a percepção
do vazio inelutável. (CAMPBELL, 2007, p. 177).

Com Diogo Álvares, a última benção ocorre quando, no sexto


canto, adentra à mata e encontra uma gruta, que se assemelha a uma
igreja, e reconhece nos feitos da natureza a presença de Deus, incenti-
vando-o em sua tarefa catequizante.

O retorno

O retorno significa que a jornada foi cumprida. A volta pode


ser tranquila se o herói estiver amparado pelos deuses ou cheia de per-
calços caso ele os tenha afrontado. Há ainda a possibilidade de que
o herói não queira retornar, pois, encontrando-se em lugar paradisía-
co, pode entender que sua volta é desnecessária. Contudo, para poder
viver em liberdade e transitar entre os mundos, ele deve trazer ao seu
povo o objeto mágico, o elixir que motivou toda a empreitada. Assim,
não será mais um indivíduo, mas representará toda a coletividade.

A recusa do retorno

Depois de alcançar seu objetivo de conquistar o elemento má-


gico que buscava, o herói deve retornar ao seu povo, levando consigo
o objeto tão esperado, que deve servir para modificar a vida da comu-
nidade. Estando o círculo completo,

a norma do monomito, requer que o herói inicie


agora o trabalho de trazer os símbolos da sabedoria,
o Velocino de Ouro, ou a princesa adormecida, de volta
ao reino humano, onde a bênção alcançada pode ser-
vir à renovação da comunidade, da nação, do planeta
ou dos dez mil mundos. (CAMPBELL, p. 195).

242
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

No entanto, estando em lugar divino ou em êxtase pela conquis-


ta, é comum que o herói queira permanecer onde se encontra, julgan-
do desnecessária sua volta, pois seu feito pode não ser reconhecido
por aqueles que o aguardam ou por crer simplesmente ser merecedor
de habitar lugar mais aprazível que o anterior ao início de sua jornada.
No caso de Diogo Álvares essa recusa não ocorre. No oitavo can-
to, Henrique II, rei da França, tenta convencer o lusitano a aliar-se a ele
em troca de exércitos e outras recompensas. O monarca argumenta
que tornaria mais fácil a tarefa de Diogo Álvares de doutrinar os in-
dígenas. Caso aceitasse a proposta francesa, toda a jornada de Diogo
Álvares estaria comprometida, pois seu retorno não traria vantagens
a seu novo povo, os indígenas, nem a sua pátria natal, Portugal. Assim,
Diogo Álvares não recusa voltar ao Brasil e seguir como representante
lusitano entre os nativos, trabalhando em sua aculturação e evangeli-
zação. Recusa, pois, trair seus princípios de patriota.

A fuga mágica

Retornar a sua terra pode ser um feito fácil e tranquilo caso


a conquista do prêmio pelo herói tenha se dado com a dádiva de seu
protetor. Segundo Campbell, se couber ao herói ser “explicitamente
encarregado de retornar ao mundo com algum elixir destinado à res-
tauração da sociedade, o estágio final de sua aventura será apoiado
por todos os poderes do seu patrono sobrenatural” (CAMPBELL, 2007,
p. 198). Assim se dá o regresso de Diogo Álvares e Paraguaçu ao Brasil,
que transcorre sem grandes sustos no oitavo canto, uma vez que Diogo
Álvares não desobedeceu a seu protetor e segue amparado por ele. Eles
passam por uma tempestade que gera preocupação, mas não causa
avarias tampouco atraso na viagem.
Seria possível, no entanto, que ocorresse o contrário, ou seja,
que o herói infringisse as ordens dos deuses, o que tornaria sua vol-
ta para casa repleta de aventuras e perigos, caracterizando verdadeira
caçada. Nas palavras de Campbell, “o último estágio do ciclo mitoló-
gico será uma viva e, com frequência cômica, perseguição. Essa fuga

243
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

pode ser complicada por prodígios de obstrução e evasão mágicas”


(CAMPBELL, 2007, p. 198).

O resgate com auxílio externo

Caso esteja em dificuldades, o herói pode ser socorrido por for-


ças externas, quer seja o retorno de um aliado ou por algum objeto
mágico que lhe tenha sido tirado ou perdido no início da jornada, quer
seja pelo próprio mundo, que venha socorrê-lo. De um modo ou de
outro, o herói receberá auxílio para retornar ao seu povo.
A ajuda recebida por Diogo Álvares e Paraguaçu para que seu
retorno ao Brasil se concretize, acontece ainda no oitavo canto quan-
do a indígena sofre um desmaio e tem premonições sobre o futuro
do Brasil. Essas visões são, em meio a uma viagem sempre perigosa
e repleta de imprevistos, um alento e uma recompensa pelas atitudes
tomadas por Diogo Álvares ao manter-se fiel ao seu ideal, resgatando
assim seu moral para seguir viajem, com a certeza de haver tomado
as melhores decisões, e confirmam que há “continuidade da operação
da força sobrenatural auxiliar que tem acompanhado o eleito em todo
o curso de suas provas” (CAMPBELL, 2007, p. 212).

A passagem pelo limiar do retorno

No décimo canto, ao chegar ao Brasil, Diogo Álvares passou pelo


limiar do retorno. A jornada do herói se dá entre seu mundo, sua terra
conhecida e o mundo sobrenatural do qual deve retornar após ter atin-
gido seu objetivo, trazendo benesses para seu povo. Essa passagem
marca a volta do herói do mundo dos mortos, do mundo subconscien-
te, das trevas. Ao partir em sua missão, o herói é dado como morto
pela comunidade de que faz parte. Somente quando retorna é que
se tem certeza de que vive e cumpriu a missão. Segundo Campbell, “as
aventuras do herói se passam fora da terra nossa conhecida, na região
das trevas; ali ele completa sua jornada, ou apenas se perde para nós,
aprisionado ou em perigo; e seu retorno é descrito como uma volta
do além” (CAMPBELL, 2007, p. 213).

244
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Na jornada de Diogo Álvares, portanto, poder-se-ia falar de dois


limiares de retorno. O primeiro, quando volta à Europa, seu continente
natal, tendo paragem na França. O segundo seria sua volta ao Brasil.
São, portanto, duas missões diferentes com dois portos de partida dis-
tintos, sendo que, em cada uma delas o herói, pode ser considerado
morto até que se dê o seu retorno. Entretanto, para esse cotejamento
com a obra de Campbell, o regresso da França para o Brasil afigura-se
melhor para simbolizar a passagem pelo limiar do retorno, uma vez
que será a Bahia derradeiro destino de Diogo Álvares.

Senhor dos dois mundos

Tornar-se senhor dos dois mundos dá ao herói o poder de transi-


tar entre eles. O herói atinge tal consciência dos mundos, das realida-
des, das circunstâncias, que pode trafegar pelas fronteiras sem correr
os perigos do início de sua jornada. Adquire, assim,

a liberdade de ir e vir pela linha que divide os mun-


dos, de passar da perspectiva da aparição no tempo
para a perspectiva do profundo causal e vice-versa —
que não contamina os princípios de uma com os da ou-
tra e, no entanto, permite à mente o conhecimento
de uma delas em virtude do conhecimento da outra –
é o talento do mestre. (CAMPBELL, 2007, p. 225).

Seja física ou etereamente, o herói consegue vislumbrar o que


ocorre na realidade distinta que ocupa, assim como consegue trazer
mensagens do outro mundo, do passado, do futuro e deslocar-se até lá
se for preciso, pois cumpriu sua missão com sucesso, adquirindo essa
habilidade ou essa permissão.
No caso específico de Diogo Álvares e Paraguaçu, a habilida-
de de atravessar as fronteiras, os mundos, se dá quando retornam
da França tendo realizado com êxito a tarefa diplomática a que se dis-
puseram. Reconhecidos como legítimos representantes de Portugal

245
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

em terras brasileiras e do Brasil no continente europeu, conquistam


o direito de transitar livremente entre o Novo e o Velho Mundo.

Liberdade para viver

Evidentemente, o herói só terá liberdade para viver se completar


sua jornada, pois

o homem, no mundo da ação, não mantém o vínculo


que o situa no centro do princípio da eternidade se se
mostrar ansioso por colher a recompensa de suas fa-
çanhas; mas se deixá-las, e aos seus frutos, aos pés
do Deus Vivo, é por eles liberado, tal como o é, pelo
sacrifício, das amarras do mar da morte. (CAMPBELL,
2007, p. 232).

Alcançando sucesso, terá deixado para trás seu ego, sua individu-
alidade e representará a consciência coletiva que trouxe ao seu mundo
de origem, os ensinamentos, os artefatos, a magia, as relações políti-
co-comerciais com o outro mundo. Essas benesses garantem ao herói
e a seu povo que não sejam mais acometidos pelos mesmos proble-
mas que resultaram em sua missão inicial. Eles estão livres dos que
os oprimiam.
Na jornada de Diogo Álvares, a liberdade para viver realiza-se
após ele ser recebido no Brasil, juntamente com Paraguaçu, agora bati-
zada de Catarina, com pompas reais. Ambos recebem honrarias da co-
roa lusitana e transferem, simbolicamente, a Tomé de Souza, o coman-
do das novas terras. Eles recobram o comando de suas próprias vidas,
não tendo mais nenhuma missão a cumprir.

Considerações sobre o percurso do herói

O cotejamento apresentado revela que a obra de Santa Rita Durão


segue os preceitos básicos do monomito teorizado por Joseph Campbell.
Pode-se encontrar todos os passos pelos quais passa o herói mitoló-

246
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

gico em sua jornada com pequenas variações. Independentemente


de sua origem,

seja o herói ridículo ou sublime, grego ou bárbaro, gen-


tio ou judeu, sua jornada sofre poucas variações no pla-
no essencial. Os contos populares representam a ação
heroica do ponto de vista físico; as religiões mais ele-
vadas a apresentam do ponto de vista moral. Não obs-
tante, serão encontradas variações surpreendente-
mente pequenas na morfologia da aventura, nos papéis
envolvidos, nas vitórias obtidas. (CAMPBELL, 2007, p.
43).

A primeira variação se apresenta na ordem dos fatos. Não é pos-


sível dizer que Diogo Álvares percorre as etapas da jornada na mes-
ma sequência descrita por Campbell. São quatro alterações na ordem
dos fatos. A primeira a se destacar é a ausência do chamado da aven-
tura no correr do enredo. Como o chamado se deu por questões sociais
e políticas, uma vez que Diogo Álvares estava envolvido com a nobreza
e com as questões relativas às navegações, o chamado se dá, portanto,
antes mesmo do início do fluxo narrativo.
O segundo e terceiro pontos destoantes aparecem com o cami-
nho de provas e o encontro com a deusa, que se dão em posições inver-
tidas. O caminho das provas tem início, de fato, no terceiro canto e o
encontro com a deusa, no segundo. É fato que as provas se dão prati-
camente por todo o enredo. No entanto, para Campbell, encontrar-se
com a deusa é um estágio que costumeiramente ocorre após as provas,
pois simboliza que o herói já demonstra evolução em sua empreita-
da e se aproxima do momento em que substituirá o pai, tornando-se
ele próprio um pai. Entretanto, a alteração constatada em Caramuru
não afeta seu fluxo narrativo e tampouco o desconcerta. Ainda que o
encontro com Paraguaçu ocorra antes das provas, a união entre eles
tardará a se concretizar (apenas no oitavo canto). No entanto, o afeto
é imediato e motivo de ciúmes da parte de outras indígenas, levando
à última alteração averiguada, a mulher como tentação.

247
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

O destaque do quarto ponto decorre de que, de acordo


com Campbell, a mulher como tentação deveria ser a sequência ao en-
contro com a deusa, mas, em Caramuru, dar-se-á apenas no sexto can-
to, quando Diogo Álvares e Paraguaçu estão partindo para a Europa
e várias indígenas nadam atrás do navio, clamando para que o lusitano
não parta ou que as leve na viagem.
A segunda variação acontece com inversão da perspectiva.
Em outras palavras, as ações do enredo de Durão, por vezes, são con-
trárias àquelas esperadas, tendo-se por base o monomito. São três
as mudanças.
A primeira, na recusa do chamado, pois, em Caramuru, não é
o herói quem recusa o chamado, mas são as circunstâncias que tentam
atrapalhá-lo, primeiramente com o naufrágio que o impede de chegar
ao destino final, São Vicente, e, num segundo momento, por não ser re-
conhecido como herói pelos indígenas. Mesmo involuntárias, as re-
cusas constatadas cumprem a mesma função prescrita por Campbell,
tentar impedir que a jornada se inicie.
A segunda alteração também se dá com uma recusa, a do retor-
no, pois Diogo Álvares não cogita em momento algum permanecer
na França ou a ela aliar-se e mantém-se firme em seus ideais.
Interessante constatar que as duas alterações apresentadas mos-
tram que o herói sempre persistiu em sua missão, independentemen-
te das adversidades ou tentações. Pode-se, então, afirmar que, ao se
contrapor aos ditames do monomito, Durão atribui a Diogo Álvares
características heroicas ímpares, que o evidenciam como legítimo re-
presentante dos povos português e brasileiro, mesmo sob risco de exa-
gerar nessas peculiaridades e conceber um herói pouco crível, mesmo
para os padrões fantásticos típicos da épica.
A terceira, e última mudança, ratifica a condição divina de Diogo
Álvares. Como não desobedeceu aos deuses e teve sempre o auxílio
das divindades, o herói lusitano não precisa de nenhuma fuga mági-
ca. A sua volta e a de sua tripulação ao Brasil transcorre sem grandes

248
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

problemas. Mesmo quando enfrentam uma tempestade, nada de grave


acontece e ainda são agraciados pelas premonições de Paraguaçu.
As poucas alterações constatadas em nada desvalorizam
Caramuru como exemplo do monomito. Ao contrário, destacam a ri-
queza da poesia épica como exemplo arquetípico, assim como afirma
Campbell:

caso um ou outro dos elementos básicos do padrão ar-


quetípico seja omitido de um conto de fadas, uma lenda,
um ritual ou um mito particulares, é provável que este-
ja, de uma ou de outra maneira, implícito — e a própria
omissão pode dizer muito sobre a história e a patologia
do exemplo. (2007, p. 43).

Tendo em conta que o objetivo maior de Campbell é fazer um es-


tudo psicológico e social sobre a importância do mito para a compre-
ensão da humanidade, destacando que a jornada do herói mitológico
se assemelha, em essência, ao Homem hodierno, a trajetória de Diogo
Álvares e Paraguaçu é apropriada para exemplificar a grandiosida-
de de que é capaz o homem ante as adversidades e, principalmen-
te, as tentações morais. Mantendo-se íntegro aos preceitos cristãos,
Diogo Álvares simboliza toda a honradez e tenacidade do povo lusita-
no e, por conseguinte, brasileiro. Como obra artística, o texto estende
tais características a todos aqueles que possam passar por provações
semelhantes, servindo, assim, tal qual o intuito de Campbell, de exem-
plo para entender a sociedade e o Homem. Assim, pois,

os mitos do fracasso nos tocam com a tragédia da vida,


mas os do sucesso o fazem, tão-somente, com seu pró-
prio caráter de incredibilidade. No entanto, se o mo-
nomito deve cumprir sua promessa, não é o fracasso
humano, nem o sucesso sobre-humano, mas o sucesso
humano, o que nos deve ser mostrado. Eis o problema
da crise do limiar do retorno. Consideraremos, inicial-
mente, os símbolos sobre-humanos, passando em se-

249
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

guida para a exploração do ensinamento prático que o


homem histórico daí pode retirar. (CAMPBELL, 2007,
p. 205).

Estando o herói repleto de poderes anormais, primeiramente


atribuem-se a eles os grandes feitos realizados ou os fracassos de-
correntes da imperícia no uso de tais forças. Em seguida, verifica-se
o quanto de humano foi necessário para lograr êxito, decorrendo daí os
exemplos práticos aprendidos com os mitos e os heróis. Assim é Diogo
Álvares, cujos poderes resumem-se à fé cristã e à moral inabaláveis,
ambas características bastante comuns em níveis menores a muitas
pessoas que podem, portanto, inspirarem-se no exemplo do Caramuru.

Referências

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral.


São Paulo: Pensamento, 2007.
DURÃO, José de Santa Rita. Caramuru: poema épico do descobrimento da
Bahia. In: TEIXEIRA, I. (org.). Épicos: Prosopopeia: O Uraguai: Caramuru:
Vila Rica: A Confederação dos Tamoios: I-Juca Pirama. São Paulo: Edusp:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. p. 355-660.

250
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-12

BREVE HISTÓRICO SOBRE OBRAS, MÁXIMAS


E DEBATES CONCERNENTES À RELAÇÃO
ENTRE LITERATURA E VISUALIDADE

Fábio José Santos de Oliveira1

“Painting is based on icons, signs that maintain a re-


lation of similarity with the object or reality that they
represent. Literature, on the other hand, works with
words, which in Peirce’s terminology are symbolic,
conventional signs.”
César Domínguez, Haun Saussy, Darío Villanueva,
Introducing Comparative Literature
« Il arrive même souvent que le peintre, en opérant
comme poète, se suggère à lui-même comme coloriste
et comme dessinateur des beautés qu’il n’aurait point
rencontrées s’il n’avait point eu des idées poétiques
à exprimer. Une invention en fait éclore une autre. »
Jean-Baptiste Dubos,
Réflexions critiques sur la poésie et la peinture

1 Professor adjunto da Universidade Federal de Sergipe (UFS), professor do Programa de Pós-


Graduação em Letras (PPGL/UFS), professor do Programa de Pós-Graduação em Letras de
Bacabal (PPGLB/UFMA) e coordenador do Grupo de Pesquisa em Literatura e Visualidade –
LiteVis (CNPq/UFS). E-mail: oliveira.fabio@ufma.br.

251
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Tradicionalmente e em termos do mundo Ocidental, as primeiras


informações sobre a relação entre a Literatura e as artes da visualida-
de são encontradas em De gloria Atheniensium, volume III, 346f-347c,
de Plutarco (46 d.C.-120 d.C.). Nessa obra, o filósofo helênico atri-
bui a Simônides de Ceos (c. 556 a.C.-468 a.C.) uma máxima que seria
bem divulgada ao longo da história das artes: “A pintura é uma po-
esia cega; a poesia é uma pintura que fala” (apud AGUIAR E SILVA,
1990, p. 163).2 Aguiar e Silva ainda faz referência a outra passagem
de Plutarco (dessa vez de 17f-18a), na qual lemos que “a arte da po-
esia [seria] uma arte imitativa e […] uma faculdade análoga à pintu-
ra” (AGUIAR E SILVA, 1990, p. 163).3 Neste caso, contaria a capacida-
de de a poesia servir para imitação (mimēsis) da realidade: “É ainda
Plutarco que, ao comentar uma descrição de Tucídides, realça a vivi-
dez pictórica (enargeia) do texto do historiador” (AGUIAR E SILVA,
1990, p. 163 – grifo do autor). O termo enárgeia diz respeito à clareza
e evidência daquilo a que um texto verbal se refere, ou seja, a palavra
tornando visualizável o fenômeno ao qual faz referência. Logo, para
Plutarco, as palavras podem atuar em enargia, isto é, como se devem
a ver, em termos reais, uma determinada descrição ou representação.
Daí que, na máxima inicial, ambas as artes estejam equiparadas, mes-
mo que essa equiparação não deixe escapar um nível a mais de positi-
vidade à palavra: o predicativo associado à pintura indica deficiência

2 O termo “poesia” (do grego poíēsis) seria, na época, o equivalente do atual “Literatura”.
Essa mesma variação terminológica poderá acontecer em outros momentos do nosso texto.
Deixamos desde já registrado que, toda vez que isso se repetir, estaremos considerando espe-
cificidades terminológicas semelhantes a esta, mesmo que, em alguns casos, os contextos já
sejam outros.
3 A mesma referência a Simônides de Ceos poderia ser encontrada em muitos outros estudos, a
exemplo de Lee (1940), Lichtenstein (2004), Moser (2006), Bergez (2007), Domínguez, Saussy
e Darío (2015), entre outros.

252
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

(“ser poesia cega”), enquanto o predicativo associado à poesia indica


eficiência (“pintura que fala”).4
Também Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), na Poética, destaca a po-
esia e a pintura como imitadores da natureza e das ações humanas:

A fábula é, pois, o princípio, a alma, por assim dizer,


da tragédia, vindo em segundo lugar os caracteres.
É mais ou menos como na pintura; se alguém lambu-
sasse [sic] uma tela com as mais belas tintas em con-
fusão, não agradaria como quem esboçasse uma figura
em branco e preto. (2014, p. 26).

Tanto a tragédia quanto a pintura agradariam não por seus


elementos acessórios, mas pela “nitidez” do que lhes seria central.
Um esboço confuso de tintas, ainda que “belas tintas”, não faria jus à
tela, como uma fábula mal estruturada não faria jus a uma boa tragé-
dia. Afinal, “as ações e a fábula constituem a finalidade da tragédia e,
em tudo, a finalidade é o que mais importa.“ (ARISTÓTELES, 2014, p.
25). Nesse sentido, a aproximação entre a poesia (poíēsis, lembrando)
e a pintura estabelecida por Aristóteles tem raiz no potencial miméti-
co de ambas: “Assim como alguns imitam muitas coisas figurando-as
por meio de cores e traços […], outros o fazem por meio da voz […]”.
(ARISTÓTELES, 2014, p. 19). Paradoxalmente, Aristóteles considera
o logos (que quase nada tem de icônico) como decisivo nessa questão:
“com sua ênfase na arte como imitação, [Aristóteles] coloca o ideal
das artes como sendo um ideal imagético e, portanto, mais próximo
da pintura que das artes das palavras” (SELIGMANN-SILVA, 2010, s.
p.).

4 Embora não esteja em nosso enfoque abordar também o contexto oriental, vale ci-
tar uma analogia apresentada por Domínguez, Saussy e Darío (2015, p. 116):
“[…] the twelfth-century poet Su Dongpo, who, referring to another poet and
also painter of the Tang dynasty (the eighth century in Western terms)—Wang
Wei, claimed ‘There is poetry in his painting and painting in his poetry’ […].”
Cf. “[…] o poeta do século XII Su Dongpo, […] referindo-se a Wang Wei, um outro poeta e tam-
bém pintor da dinastia Tang (o equivalente ao século VIII no Ocidente), afirmou: ‘há poesia
em sua pintura e pintura em sua poesia’.”

253
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

No contexto romano, a Epistula ad Pisones5 (14-13 a.C.) de Horácio


(Quinto Horácio Flaco, 65 a.C.-8 a.C.) destaca-se como obra impor-
tantíssima para a relação interartística. Essa importância acontecerá
não tanto pelo tema tratado (a arte poética), mas porque fragmentos
da obra darão um grande impulso futuramente ao paralelo das artes.
Diz Horácio: “Os eventos transmitidos pelos ouvidos excitam mais fra-
camente o espírito que os submetidos a olhos atentos e que o espec-
tador apreende por si próprio” (2013, p. 26). Nesse fragmento, o poeta
romano evidencia certo privilégio à visualidade, ao considerar como
mais atraente ao intelecto a apreensão dos fenômenos realizada pe-
los olhos, se comparada àquela feita pelos ouvidos. Além disso, para
Horácio:

A poesia é como a pintura [ut pictura poesis]: haverá


uma que, se mais perto permaneceres,/ mais te cativa-
rá, e outra se mais distante ficares;/ esta ama o escu-
ro, aquela, que não teme o aguilhão arguto/ do crítico,
quer ser vista sob a luz;/ aquela uma só vez agradou,
esta, apreciada dez vezes, agradará. (HORÁCIO, 2013,
p. 40).

A poesia agradará como a pintura agrada. Como podemos notar,


a discussão é sobre a arte da palavra, mas o parâmetro comparativo
advém da visualidade. Aliás, é preciso reter o fragmento ut pictura po-
esis [“a poesia é como uma pintura”]: voltaremos a ele mais adiante.
Por agora, basta referir que, a partir da Renascença, essa afirmação será
retomada (e bem retomada) em benefício do paralelo entre as artes.
Dispensando aqui os casos de inscrições encontráveis em cer-
tas pinturas,6 não poderíamos ignorar, durante a Idade Média, os não
poucos manuscritos nos quais aparecem pequenas ilustrações, deno-

5 Essa obra de Horácio, originalmente uma carta (daí o título), também pode aparecer nomeada
como Ars Poetica.
6 « L’écriture même n’échappe pas à un traitement pictural : des inscriptions placées dans
les fonds des tableaux, au Moyen Âge comme à la Renaissance […]. » (BERGEZ, 2007, p. 4).
“A própria escrita não escapa a um tratamento pictural: inscrições localizáveis no fundo dos
quadros, tanto na Idade Média quanto no Renascença […].” (Tradução nossa).

254
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

minadas iluminuras7 e quase sempre concernentes ao conteúdo verbal


do volume ilustrado. As iluminuras encontram variadas formas de re-
alização: as “iniciais” (letras capitais em princípio de parágrafo ou de
capítulo), as “composições decorativas“ (às margens de um manuscrito
e representando elementos fabulosos, da fauna ou da flora), “miniatu-
ras” (que ilustram o conteúdo verbal) e “brasões” (indicativos da famí-
lia responsável pela confecção do manuscrito). Apesar de as iluminu-
ras se aterem a um conteúdo verbal, não se poderia afirmar que seus
artistas desenvolvessem as ilustrações em completa subserviência à
“palavra”. Segundo Hélène Pomme, elementos como o gestual das fi-
guras representadas, a posição das ilustrações na página e até as cores
aplicadas nas figuras poderiam indicar acréscimos de sentido, muitas
vezes de ordem simbólica e/ou emblemática.
As obras ilustradas são geralmente representativas de uma prá-
xis bem definida (religiosa, nobiliárquica, artística ou até científica)
e sua ocorrência está geralmente ligada a essas mesmas práxis. É as-
sim que emergem, desse período, beatos, livros de horas, armoriais, li-
vros de linhagem, cancioneiros, etc. Desse conjunto, talvez o exemplo
mais bem conhecido seja De laudibus Sanctae Crucis [Do louvor à Santa
Cruz], de Rábano Mauro (ca. 780-856), obra que se destaca pela ma-
neira como o autor “desenvolveu o carmen figuratum dentro dos ver-
sus intertexti […]” (CLÜVER, 1997, p. 48). Os textos de fundo religioso
de Rábano Mauro projetam, a partir do conjunto verbal, imagens visu-
ais também religiosas, formando um todo verbo-visual.
Poder-se-ia objetar nesse momento que boa parte dessas obras
ilustradas não corresponde exatamente a produções classificáveis
como literárias (e mesmo na atualidade, quando o termo Literatura
já foi tantas vezes posto em xeque):

[…] o objeto literário, como o entendem as teorias


contemporâneas – ou seja, aquele que se serve cons-
cientemente da faculdade criadora da imaginação para

7 Do latim “illuminare”, significando, segundo Busarello (2007, p. 133), “esclarecer, iluminar;


fazer brilhar”.

255
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

recompor uma dada realidade com fins de fruição ar-


tística – ainda não existe no período aqui focalizado.
(MONGELLI; VIEIRA, 2003, p. 10).

Independentemente dos limites terminológicos desses manus-


critos, valem a menção e o estudo deles em abordagens com cotejo lite-
rário, tendo em vista que esse material tem muito a dizer sobre o modo
de pensar e agir dos indivíduos daquele tempo, sem esquecer, ainda,
a matéria não raro criativa das produções visuais em sua proximidade
com a parte verbal, tanto em termos de uma simples justaposição en-
tre as linguagens, como em termos de uma relação mais estrita entre
estas (a exemplo da simultaneidade verbo-visual de Rábano Mauro).
Mas é a partir do Renascimento que discursos a favor ou contra
a equiparação das artes se farão ouvir com maior insistência. À par-
te a máxima de Simônides de Ceos (“a pintura é uma poesia cega;
a poesia é uma pintura que fala”), compreendendo um quiasmo di-
reto entre a arte da palavra e as artes visuais, as demais ocorrên-
cias da Antiguidade anteriormente apontadas apenas “[aplicam nas]
obras os princípios e experiências da pintura à eloquência e à poesia”
(LESSING, 2020, p. 77-78). Quase sempre o que encontramos são apro-
ximações, que, baldado o específico de cada filósofo, tratam de poten-
cialidades miméticas no uso da palavra.8
De qualquer forma, o Renascimento trouxe à tona grande par-
te dessas considerações e as fez vigorar como discursos importantes
na equiparação entre as artes. Em Ut pictura poesis (1940), Rensselaer
W. Lee (1898-1984) estuda o impacto que esses fragmentos clássi-
cos tiveram sobre a pintura no cenário artístico da Renascença e do
Classicismo. De meados do século XVI a meados do séculos XVIII,
os tratados de artes e sobre literatura quase sempre destacaram a pro-
ximidade entre a pintura e a poesia: “Both Aristotle and Horace had su-
ggested interesting analogies between poetry and painting, though

8 Não cumpre abordar aqui essas especificidades, mas não custa referir, nesse ponto e por
exemplo, as distintas formas como Aristóteles e Horácio concebem a representação da
realidade.

256
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

they had by no means tended to identify them as did the Renaissance


and Baroque critics.” (LEE, 1940, p. 199)9.
Lee expõe ainda como a Poética de Aristóteles e a ut pictura poe-
sis de Horácio foram utilizadas no Renascimento para defender a pin-
tura como arte liberal, e não mecânica, como era avaliada até então:
“Now [after 1550] the analogies between poetry and painting that the-
se famous treatises contained could not fail in a humanistic age to im-
press critics who sought to invest painting with the dignity of a liberal
art […]10.” (LEE, 1940, p. 200). Para tanto, os teóricos do Renascimento
invertem a lógica contida na ut pictura poesis, na qual a pintura é ter-
mo de destaque, tendo em vista que Horácio considerava justamente
a possibilidade imagética contida na poesis. O que era ut pictura poesis
(“a poesia é como uma pintura”) passa a ser lido como ut poesis pictura
(a pintura é como uma poesia”). Com a máxima de Horácio, a litera-
tura e a pintura passam a ser nomeadas como irmãs, do que resulta
uma tradição secular em defesa do paralelo entre as duas.
Segundo Seligmann-Silva (2010; 2011), o pintor do Renascimento
exige para si o título de pictor doctus (pintor erudito), da mesma for-
ma como, através da doutrina do decorum, o poeta era considerado
como doctus poeta (poeta erudito): “A pintura desde o Renascimento
é, de certo modo, uma pintura de e sobre palavras, uma iconologia.”
(SELIGMANN-SILVA, 2011, p. 11)11; « La peinture, alors, se rêve poé-
sie, activité de l’esprit, création de mondes, et puise ses sujets dans
les textes vénérables, sacrés ou païens… Pour trois siècles environ,
la peinture se veut ‘littéraire’. » (BERGEZ, 2007, p. 3)12. Nesses termos,
a pintura é vista ao nível do logos (palavra, discurso, razão), e toma

9 “Tanto Aristóteles quanto Horácio sugeriram analogias interessantes entre a poesia e a pin-
tura, muito embora eles não pretendessem identificá-las de forma alguma como o fariam os
críticos da Renascença e do Barroco.” (Tradução nossa).
10 “Agora [a partir de 1550] as analogias entre a poesia e a pintura que esses famosos tratados
continham não falhariam numa época humanística a impressionar os críticos que buscavam
investir a pintura com a dignidade de uma arte liberal […].” (Tradução nossa).
11 Cf. também: SELIGMANN-SILVA, 2010.
12 “A pintura, então, se sonha poesia, atividade do espírito, criação de mundos, e toma seus
assuntos de textos veneráveis, sagrados ou profanos… Por três séculos aproximadamente, a
pintura quis ser ‘literária’.” (Tradução nossa).

257
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

para a produção da obra categorias das poéticas e retóricas clássicas


(a exemplo da “invenção” e da “disposição”): “Como no século XVII
seria infatigavelmente repetido, o pintor deve saber ‘narrar com o pin-
cel’.” (LICHTENSTEIN, 2004, p. 13). De acordo com Lee (1940, p. 146),
Ludovico Dolce (1508-1568) chega ao ponto de agrupar poetas, histo-
riadores e letrados (ou seja, todos os escritores de então) sob o títu-
lo de pintores. Um outro exemplo interessante pode ser encontrado
em Della Pittura (1435), de Leon Battista Alberti (1404-1472). Embora
defina a pintura como “a flor de toda arte” (2009, p. 97), Alberti não se
exime de apresentar aos pintores o seguinte conselho:

[…] que todo pintor […] se torne íntimo dos poetas,


dos retóricos e de outros iguais conhecedores das le-
tras. Eles proporcionarão novas invenções ou ao menos
ajudarão na composição de uma bela história, por meio
da qual os pintores conquistarão na pintura muito lou-
vor e fama. (2009, p. 130).

Nesse contexto de reavaliação da pintura, cumpre ainda mencio-


nar o papel do paragone (termo italiano para “comparação”, “competi-
ção”), flagrante em Leonardo da Vinci (1452-1519). O paragone refor-
ça, para a pintura, o papel sociológico que a máxima ut pictura poesis
apresentará no Renascimento. Não é por acaso que, em Tratatto della
pittura [Tratado da pintura], Da Vinci apresente a arte pictórica como
a maior de todas. E por quê? Na opinião do pintor, ela estaria ligada
ao mais nobre sentido do corpo humano, isto é, a visão. Além do mais,
contariam a favor da pintura a composição das partes como um todo
imediato, de forma semelhante à natureza, e a velocidade na recepção
da imagem visual. Nesse impulso de valorização da pintura, Leonardo
da Vinci subverte a lógica de Simônides de Ceos referida por Plutarco.
Observe-se que essa máxima avalia a pintura como “poesia cega”;
enquanto o sintagma caracterizador da poesia é “pintura falante”.
Da Vinci não dispensa a oportunidade: se a pintura é uma poesia cega,
nada mais justo do que classificar a poesia como uma pintura muda:
“La pittura è una poesia muta, e la poesia è una pittura cieca, e l’una

258
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

e l’altra vanno imitando la natura quanto è possibile alle loro potenze


[…].” (DA VINCI, 2006, p. 31)13. Mas a valorização da pintura não se re-
aliza apenas no confronto com a poesia. Da Vinci afirma que a arte pic-
tórica também é superior à escultórica, porque, ao contrário daquela,
esta se vê envolta em pó e na lama pastosa dos materiais. Não se pode
negar nessa concepção o velho embate entre artes mecânicas e as artes
liberais. Em resumo: “Não se trata [em Da Vinci] apenas de estabele-
cer a superioridade da pintura sobre as outras artes, mas de situá-la
no ápice de todo o edifício do saber.” (LICHTENSTEIN, 2004, p. 17).
Também Jean-Baptiste Dubos (1670-1742), em Réflexions criti-
ques sur la poésie et la peinture (1719) [Reflexões críticas sobre a poesia
e a pintura], defende o paralelo entre a poesia e a pintura. Boa par-
te dos seus pressupostos advém de Aristóteles e Horácio, como era já
corriqueiro. Daí ele considerar a poesia dramática como o exemplo
perfeito para a aproximação artística: “[…] a pintura de história é a
única a igualar de fato o pintor ao poeta trágico nos dois domínios
que correspondem à mais nobre definição da arte: a representação
das ações humanas e a expressão das paixões.” (LICHTENSTEIN, 2004,
p. 60). Diferentemente de Da Vinci e de outros da época, Dubos evi-
ta a disputa entre as duas artes, salientando apenas o que reforçava
sua irmandade, ainda que sem desconsiderar o que lhes fosse específico:

Comme le tableau qui représente une action, ne nous


fait voir qu’un instant de sa durée, le peintre ne saurait
atteindre au sublime que les choses qui ont précédé
la situation présente jettent quelquefois dans un sen-
timent ordinaire. Au contraire la poésie nous décrit
tous les incidents remarquables de l’action qu’elle
traite, et ce qui s’est passé jette souvent du merveil-

13 “A pintura é uma poesia muda, e a poesia é uma pintura cega, e uma e outra imitam a natu-
reza tanto quanto sua potência o permite […].” (Tradução nossa).

259
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

leux sur une chose fort ordinaire qui se dit ou qui arrive
dans la suite. (DUBOS, 2013, p. 73).14

Naturalmente, Dubos cita alguns exemplos ilustrativos das par-


ticularidades de cada arte. Segundo ele, a sequência acional do as-
sassinato de Júlio César seria inapreensível pela pintura. Por sua vez,
a transmissão de informações como « l’âge, le tempérament, le sexe,
la profession, et même la patrie de ses personnages » (DUBOS, 2013,
p. 80)15, que poderia acontecer de forma “imediata” e em plano único
no caso da pintura, pediria trechos maiores e sequenciais quanto à po-
esia. Mesmo assim, essas especificidades, segundo o crítico, não im-
pedem o diálogo entre as artes, principalmente no que tange ao seu
papel mimético.
Todos esses casos articulam paralelos quase sempre estritos en-
tre a poesia e a pintura. Tal pensamento estético é tão forte que per-
dura até ao século XVIII, quando aparecerá a primeira crítica consis-
tente contra ele; no caso, a de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781),
através de Laokoon (1766) [Laocoonte ou sobre as fronteiras da Pintura
e da Poesia]. Nessa obra, Lessing rejeita de modo contundente os pa-
ralelos interartísticos conclamados até então. Em Laocoonte, Lessing
reage contra Joahann Joachim Winckelmann (1717-1768); mais es-
pecificamente, contra a comparação que este tinha estabelecido en-
tre Filoctetes (409 a.C.) de Sófocles (497/6 a.C.-406/5 a.C.) e o grupo
escultórico Laocoonte e seus filhos, atribuído a Agesandro, Atenodoro
e Polidoro de Rodes.16 Segundo Winckelmann, haveria entre ambas

14 “Como o quadro representando uma ação nos fazer ver apenas um instante de sua duração, o
pintor não saberia atingir o sublime que as coisas que precederam a situação presente lançam
às vezes em um sentimento comum. Por sua vez, a poesia nos descreve todos os incidentes
consideráveis da ação sobre a qual ela trata, e o que se passou lança elementos maravilhosos
sobre uma coisa bastante comum que se diz ou que acontece em seguida.” (Tradução nossa).
15 “[…] idade, temperamento, sexo, profissão, e mesmo a pátria de seus personagens […].”
(Tradução nossa).
16 Segundo Seligmann-Silva, “o grupo de mármore que representa Laocoonte com seus filhos,
uma das esculturas mais famosas da Antiguidade, data de cerca de 140 a.C. – i.e., da época de
inflexão entre o declínio do mundo grego e o nascimento de Roma como potência europeia.
Em 1506 foi encontrada em Roma uma cópia romana de mármore dele (a partir do original
de bronze) de autoria de três escultores de Rodes da era do reinado de Tibério (4-37 a.C.) que
pode ser vista até hoje no Vaticano, onde ela foi abrigada.” (2020, 82-83).

260
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

as obras (o grupo escultórico e a tragédia de Sófocles) o mesmo nível


de exposição do sofrimento. Lessing discorda. Para este, o sofrimento
que a escultura apresenta é menor que o da tragédia, porque há sen-
timentos e expressões que não podem ser demonstrados às claras: “A
pintura enquanto destreza imitadora pode expressar a feiura: a pintu-
ra enquanto bela arte não quer expressá-la.“ (LESSING, 2020, p. 259)17.
Lessing não nega proximidades ocasionais entre as artes.
Exemplos: a impressão de movimento em vestimentas das telas
de Rafael Sanzio (1483-1520), com valoração temporal, e a descrição
do escudo de Aquiles em Homero, com aporte imagético. Entretanto,
esses contatos se comportariam apenas como efeitos de prestidigi-
tação; no cálculo final, a pintura continuaria sendo a arte do espaço
e a poesia a do tempo. Segundo Lessing, por mais talentoso que fosse
um pintor e por mais adequada que fosse sua tentativa de representar
a Odisseia (novo exemplo), esse seria um esforço inútil, pois a obra pic-
tórica resultaria em outra, e, como tal, diferente da de Homero:

Se as obras de Homero tivessem sido totalmente per-


didas, se nós não tivéssemos da sua Ilíada e da Odisseia
nada além de uma série semelhante de pinturas como
as que Caylus sugeriu a partir delas: será que nós po-
deríamos formar a partir dessas pinturas – que pode-
riam ser das mãos do mestre o mais perfeito – o mesmo
conceito, não digo do poeta como um todo, mas apenas
do seu talento pictórico tal como temos dele agora?
(LESSING, 2020, p. 183).

Juntando os pontos, a poesia e a pintura se distinguem em quase


tudo: “Ele [Lessing] evoca a possibilidade de fazer isso no nível do efei-
to que deverá ser produzido (estética do efeito), no nível dos objetos
a serem representados (estética do conteúdo) ou ainda no nível da ma-
neira de representar.” (MOSER, 2006, p. 44). Como “realização”, a poe-
sia decorre em sequência temporal, enquanto a pintura é marcada pela
simultaneidade (totum simul); como “objeto”, a poesia é desenvolvi-

17 O que Lessing nomeia como “pintura” diz respeito às artes plásticas em geral (cf. 2020, p. 79).

261
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

da por uma ação e através do discurso, enquanto a pintura é marcada


pela coexistência de corpos no espaço; quanto aos meios, os da poesia
são artificiais (a palavra), enquanto os da pintura são naturais (figuras
e cores).
No século XIX, as mudanças em termos estéticos vão se apro-
fundando. Pouco a pouco, passa-se da ars poetica (conforme a tradição
clássica) para a ars poetae (com foco no gênio individual); da mimesis
(destaque na imitação) para a poesis (destaque na invenção); da “na-
tura naturata, a criação de Deus enquanto mundo criado, [para] a na-
tura naturans, a criação de Deus enquanto poder criador” (MOSER,
2006, p. 47). O resultado disso é que a pintura já não seria avaliada
pelas histórias que “narraria”, mas pelo trabalho plástico articulado.
Os contatos entre as artes ainda continuam possíveis, mas mudam
de expressão. As artes vão adquirindo autonomia para uma não-re-
presentação da realidade e para uma progressiva autorreferência: «
L’art peut-il sortir du discours de son auto-justification ? Peut-être,
s’il devient une fin en soi, s’il se replie vers son domaine intérieur.
C’est la mutation que prendront en charge les romantiques.» (LAURE,
1998, s. p.)18. Nesse sentido, do “paralelo das artes” parte-se à fraternité
des arts ou mesmo à fusion des arts:

La fraternité des arts est un mouvement dont


on a pu contester la réalité concrète, et qui traduit
une aspiration d’union entre les artistes plutôt qu’en-
tre les arts ; en revanche, la fusion des arts veut unifier
les spécialités, au prix d’une sorte de transmutation
poétique. (LARUE, 1998, s. p.).19

18 “A arte pode sair do seu discurso de autojustificação? Talvez, se ela se tornar um fim em si
mesma, se ela recuar em direção a seu domínio interior. É a mudança de que os românticos se
encarregarão.” (Tradução nossa).
19 “A fraternidade das artes é um movimento do qual podemos constatar uma realidade concre-
ta, e que traduz um anseio de união entre os artistas antes que entre as artes; por sua vez, a
fusão das artes deseja unificar as especialidades ao preço de uma espécie de transmutação
poética.” (Tradução nossa).

262
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Segundo Larue, a fraternité des arts constava da colaboração en-


tre artistas, a exemplo do baile organizado por Alexandre Dumas, pai
(1802-1870), para o qual teriam colaborado dançarinos, pintores, po-
etas e músicos.20 O sentimento de trabalho conjunto marcava a frater-
nité des arts: « Les artistes y travaillent ensemble, les peintres illus-
trent les écrivains contemporains […]. » (LAURE, 1998, s. p.)21. A fusion
des arts aprofunda os contatos: uma arte passa a investir na outra.
Em meio a isso, Delacroix chega a defender que a pintura seria mais
imaterial que a música e a poesia: « […] l’art du peintre est d’autant
plus intime au cœur de l’homme qu’il paraît plus matériel. » (apud
LAURE, 1998, s. p.)22. E isso porque, segundo Delacroix, qualquer obra
pictórica despertaria no público “tesouros desconhecidos da alma“:
« Delacroix lecteur de Byron appelle ‘poésie’ ce principe fédérateur
de tous les arts. » (LAURE, 1998, s. p.)23. Não por acaso assim se expres-
sa Charles Baudelaire (1821-1867) avaliando a produção de Delacroix:
« Grand liseur, cela va sans dire. La lecture des poètes laissait en lui
des images grandioses et rapidement définies, des tableaux tout faits,
pour ainsi dire. » (BAUDELAIRE, 1925, p. 7)24. E nisso se encontra toda
a novidade da afirmação de Baudelaire: que um pintor revele imagens
grandiosas não tanto por sua técnica pictórica mas por sua capacidade
de leitura e absorção do conteúdo lido.
É preciso assinalar que Charles Baudelaire também deporá contra
o “paralelo das artes”, e isso é visto partir do soneto « Correspondances
», de Les fleurs du mal (1857). Nesse poema, Baudelaire defende a cor-
respondência entre as linguagens, mas numa perspectiva que é tan-
to de inovação estética quanto de ruptura metafísica: “o que o poe-
20 A realização desse baile ficou registrada em Mes Mémoires (1852) [Minhas Memórias], do pró-
prio Dumas, pai.
21 “Os artistas trabalham juntos aí, os pintores ilustram os escritores contemporâneos […].”
(Tradução nossa).
22 “[…] quanto mais material pareça a arte do pintor, tanto mais íntima ela será ao coração do
homem.” (Tradução nossa).
23 “Delacroix, leitor de Byron, chama de ‘poesia’ esse princípio unificador de todas artes.”
(Tradução nossa).
24 “Grande leitor, nem é preciso dizer. A leitura dos poetas deixava nele imagens grandiosas e
rapidamente definidas, bem como quadros praticamente prontos, por assim dizer.” (Tradução
nossa).

263
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

ta almeja é nada mais que a perfeita integração de todos os sentidos


e a integração do espírito com a carne, para que o ser possa atingir
uma unidade indissolúvel.” (GOMES, 2016, p. 30). Nessa perspectiva,
a comparação não recai naquilo que haveria de igual entre as artes
(como notamos anteriormente), mas naquilo que as artes poderiam
suscitar no público intimamente. O efeito alcança suma importância
aqui. Essa correspondência, aliás, vai marcar profundamente os ar-
tistas do Simbolismo, sobretudo pela valorização cromática e da si-
nestesia. Basta mencionar o poema « Voyelles » (“Vogais”), de Arthur
Rimbaud (1854-1891), “em que cada som vocálico correspondia a uma
cor, [estimulando] uma onda de pesquisas científicas e estéticas sobre
a sinestesia” (GAGE, 2012, p. 120). Além disso, encontramos no mes-
mo século a defesa da Gesamtkunstwerk (obra de arte total), flagran-
te em Richard Wagner (1813-1883), o qual “[concebia] a Ópera como
uma arte que fosse a súmula de todas as artes, graças à magia da or-
questração e da cenografia” (GOMES, 1994, p. 21).
De algum modo, esse anseio pela arte total redundará no século
XX na chamada “síntese das artes”. Na pintura, temos como exemplos
as colagens de jornal feitas por Pablo Picasso (1881-1973) e Georges
Braque (1882-1963), em diálogo visível com a verbalidade e em cla-
ro desafio aos limites da representação pictórica. Quanto à Literatura,
poderíamos citar os selos colados por Guillaume Apollinaire (1880-
1918) em Calligrammes (1918) [Caligramas], obra na qual, aliás, há um
aproveitamento intenso da iconicidade a partir dos poemas, de tal
modo que o título da obra se tornaria adjetivo para poemas com essa
perspectiva. Em resumo, “seja na pintura, seja na literatura, a partir
do Futurismo e do Cubismo se reforçam as tentativas desse esforço de
‘síntese’, nas quais se projeta como fim imediato o debate sobre a repre-
sentação e sobre os limites aplicados à matéria artística.” (OLIVEIRA,
2020, p. 387). São, portanto, “[…] tentativas de tornar o espaço visual
da pintura lugar concreto da palavra e o espaço eminentemente verbal
da poesia lugar ainda da linguagem visual […].” (OLIVEIRA, 2020, p.
387).

264
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Como pudemos perceber, da ut pictura poesis à “síntese das ar-


tes”, a quantidade de obras passíveis de interesse para um estudioso
das relações interartísticas é bem vasta. Por força da brevidade des-
te texto, encerramos nossa abordagem em princípios do século XX e,
com isso, deixamos escapar um amplo leque de discussões de diversa
ordem ocorridas após esse período. Para não deixarmos em branco,
da segunda metade do século XX para cá, encontramos uma perspec-
tiva mais aberta às tecnologias e aos produtos culturais a elas asso-
ciados, e isso gerou (e tem gerado) uma série de estudos, resumidos
geralmente sob o signo da intermidialidade. Abre-se aqui um cami-
nho bem diverso de tudo quanto foi exposto.25 Independentemente
do caso, um estudo comparativo entre-artes/ entre-linguagens pede
do pesquisador certo nível de aprofundamento em qualquer uma das
áreas confrontadas, ainda que alguma delas possa se destacar em vir-
tude do campo de atuação desse mesmo pesquisador (no nosso caso,
a linguagem verbal e, por sua vez, a Literatura).
Aguinaldo José Gonçalves, um expoente dos estudos interartísti-
cos nacionais, afirma, em “As relações homológicas entre a Literatura
e as Artes Plásticas”, que aproveitamentos temáticos, classificados
por ele como “relações analógicas imediatas” (1997, p. 58)26, tendem
a produzir apenas resultados superficiais. Para Gonçalves, é importan-
te que a pesquisa avance do estágio das aproximações por assunto (que
podem até se fazerem necessárias) para o de possíveis confluências
em níveis mais profundos. No caso de Gonçalves, esse aprofundamen-
to é classificado como “relações homológicas”. Ainda que sua meto-
dologia de atuação heurística não sirva necessariamente para todo
e qualquer estudo entre-artes, seu interesse por diálogos que apro-
fundem a mera obviedade diz muito sobre resultados mais rentáveis
hermeneuticamente quando da comparação entre obras de artes
distintas. E é justamente em termos de uma discussão aprofundada
e amadurecida que adquire importância um histórico das relações in-
terartes, mesmo que breve como o que estabelecemos aqui. Esperamos

25 Para uma introdução a esses estudos, conferir Moser (2006) e Clüver (2006).
26 Texto recuperado ainda em Museu movente (2004, p. 21-36), também de Gonçalves.

265
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

que esse panorama histórico sobre obras, máximas e debates teóricos


concernentes à relação entre artes distintas (com enfoque nas da vi-
sualidade, diga-se de passagem) possibilite ao leitor uma ideia mais
nítida da complexidade do assunto, « non pour confondre littérature
et peinture, mais bien plutôt pour aviver leurs différences en faisant
valoir leurs séductions réciproques […]. » (BERGEZ, 2007, p. 4)27.

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DA VINCI, Leonardo. Trattato della pittura. A cura di Angelo Borzelli.
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27 “Não para confundir literatura e pintura, mas, antes, para avivar suas diferenças ao valorizar
suas seduções recíprocas.” (Tradução nossa).

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

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268
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-13

VOZ DA INSUBMISSÃO E DA RESISTÊNCIA:


A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NEGRA NO
CONTO NKALA DE CRISTIANE SOBRAL

Francisca Katrine de Carvalho Souza1


Welida Maria Gouveia Silva (UFMA)2
Wheriston Silva Neris3

Introdução

Cristiane Sobral é uma escritora carioca, reconhecida por suas


coletâneas de poesias e contos de literatura afro-brasileira. Os seus
trabalhos estão pautados em temas sociais, sobretudo no que diz res-
peito aos temas da negritude, cultura, identidade, memória, ances-
tralidade, preconceitos, dentre tantos outros. Estreou na literatura
brasileira nos anos 2000, contribuindo com a obra Cadernos Negros,
nutrindo um discurso de resistência, protagonismo e feminismo ne-
gro (SOBRAL, 2000). Dentre sua recente produção literária, selecio-
namos o livro Tapete voador (2016) como foco principal para análise

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras, Campus Bacabal da Universidade


Federal do Maranhão–UFMA. e-mail: katrinephb2012@gmail.com
2 Estudante do curso de Pós-graduação em Letras, Campus Bacabal da Universidade Federal do
Maranhão–UFMA. E-mail: welida.gouveia@discente.ufma.br
3 Professor Adjunto do Curso de Ciências Humanas – Sociologia (CHBA/UFMA) e docente do
Mestrado em Letras do Campus de Bacabal (PPGLB/UFMA) e de Sociologia (PPGS/UFMA).
E-mail: wheriston.neris@ufma.br

269
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

neste texto. Sinteticamente, a obra é composta por dezenove contos,


que abordam questões sociais como: discriminação racial, colorismo
e empoderamento negro, além de outras temáticas que evocam a pre-
sença do negro como agente de sua própria história.
Dentre as narrativas que integram a obra elegemos o conto
Nkala: uns relatos de bravura, para análise mais detalhada. Entre vá-
rios motivos que nos fizeram escolhê-lo, destacaríamos, em primeiro
lugar, as próprias características da personagem em pauta: uma jovem
princesa do Reino do Congo, filha única do Rei Lukem Lu Nimi, que de-
sejava instaurar o seu matriarcado na comunidade, mas teve sua aldeia
atacada e aniquilada pelos portugueses. Na sequência de sua trajetó-
ria, a personagem sobrevive à penosa viagem transatlântica em um
navio tumbeiro e, assim que desembarca no Brasil, passa a ser exposta
no mercado como peça valorativa, à semelhança da experiência his-
tórica de diversos negros trazidos do continente africano e escraviza-
dos na América Portuguesa. A despeito das condições apresentadas,
a personagem não perde, entretanto, o domínio sobre si e não aceita
passivamente a dominação do outro, lutando com bravura até a morte
pelo direito à liberdade.
De maneira geral, a tessitura de O tapete Voador contrapõe-se
às imagens do negro cativo submisso, relegado à condição de escra-
vo dócil, reconhecedor de sua inferioridade frente ao branco, para
uma representação na qual, mesmo submetidos a experiências pessoais
e coletivas ultrajantes, não deixam de demonstrar agência, resistência
e luta nos quadros da Diáspora Africana. Desse ângulo, a escrita da au-
tora preenche a função de refletir sobre estereótipos, como um meio
para ironizar, ridicularizar e protestar contra eles mesmos. A produção
literária neste aspecto desempenha o papel reflexivo de representar
uma sociedade em que o negro é agente de transformação, ressigni-
ficando conceitos e discursos sobre suas experiências e modalidades
de agência em várias esferas sociais.
Além da própria capacidade de transitar entre temas da história
e da literatura, convém destacar que a própria trajetória pessoal da au-

270
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

tora e sua percepção sobre o papel da literatura constituem exemplos


lapidares da importância contemporânea da autoria feminina negra
como lugar para (des)construção de discursos subalternizantes sobre
a identidade, a história e a cultura negras. Nessa perspectiva, sua escri-
ta de autoria negra feminina pode ser compreendida através da noção
de Escrevivência, que designa uma espécie de projeto no qual, como
esclarecia Conceição Evaristo (2005, p. 54):

As escritoras negras buscam inscrever no corpus lite-


rário brasileiro imagens de auto representação. Criam,
então, uma literatura em que o corpo-mulher negra
deixa de ser o corpo do “outro” como objeto a ser des-
crito, para se impor como sujeito-mulher-negra que se
descreve, a partir de uma subjetividade própria experi-
mentada como mulher negra na sociedade brasileira.

Para a composição deste artigo escolheu-se analisar como a li-


teratura afro-brasileira de autoria feminina reconstrói o imaginário
feminino negro. Além disso, evidenciamos a personagem Nkala como
uma mulher destemida, que se opõe ao sistema escravocrata, e como
seu ato de resistência reconfigura o espaço figuracional em que ela es-
tava inserida. As bases teóricas estão ancoradas tanto na sociologia
da literatura (CANDIDO, 2006; LAHIRE, 2011), quanto na crítica fe-
minista a qual, parece-nos, não apenas possui maior pertinência para
compreensão do objeto proposto, como também compartilha dos mes-
mos pressupostos políticos e críticos às formas de subalternalidade
produzidas pelo discurso colonial. Através dos estudos de Hooks (1995),
Gonzalez (2020), Santiago (2012), Dalcastagné (2014) contextualiza-
mos o papel social da mulher negra, o protagonismo feminino, o resga-
te da memória e da cultura ancestral utilizado como ato de resistência
pacífica. Deste modo, a leitura da obra de Cristiane Sobral permite ou-
tro olhar e novas interpretações da história de negras no Brasil.

271
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

1 A representação do negro na literatura de autoria feminina

A literatura como meio de expressão é um espaço de vozes,


por meio dela o discurso se materializa e se propaga. A construção des-
se enunciado se dá pela visão do autor sobre determinado fato e onde
ele está inserido. Segundo Antonio Candido (2006, p. 84) “a produção
da obra literária deve ser inicialmente encarada com referência à posi-
ção social do escritor e à formação do público”. Sendo assim, utiliza-se
da arte para representar ou contestar um pensamento, uma interpre-
tação da sociedade, ainda que o autor não tenha vivido em certa época
ou tido as experiências que ele narra.
Deste modo, o fato social é o objeto de trabalho tanto para a re-
alidade quanto para a ficção/literatura. É por meio da interpretação
que os discursos são validados, já que a primeira se apropria dos acon-
tecimentos sociais para narrá-los em sua perspectiva historiográfica,
a segunda utiliza esses mesmos acontecimentos para representá-los
no nível da ficção, reconstruindo-os para melhor ser adequar ao seu
discurso estilístico. Na obra Literatura e Sociedade, Antonio Candido
fala da relação entre o fator externo e a arte literária, essa percep-
ção de mundo que serve como base para o escritor, pois “o externo
(no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado,
mas com o elemento que desempenha um certo papel na constituição
da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (CANDIDO 2006, p. 13).
As mulheres negras durante muito tempo foram representadas
por outros autores na literatura apenas como personagens secundá-
rias, sem importância, muitas das vezes sendo sexualizadas ou coisifi-
cadas. Entretanto, começou a haver a mudança desse panorama com o
incremento do debate sobre a literatura feminina afro-brasileira, e o
maior destaque conquistado por mulheres negras autoras que pas-
saram a tematizar sobre a identidade afro-brasileira com um olhar
de dentro. Dito isso, após o exposto, neste tópico buscaremos por meio
de bases teóricas fazer a conceituação, entender a importância, e a re-
levância para o cenário social e literário desse tipo de literatura como
meio de representar o protagonismo das mulheres negras.

272
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Consoante a isso, Santiago caracteriza a literatura afro-femini-


na como:

[...] a literatura afrofeminina é uma produção de au-


toria de mulheres negras que se constitui por temas
femininos e de feminismo negro comprometidos
com estratégias políticas civilizatórias e de alterida-
des, circunscrevendo narrações de negritudes femini-
nas/feminismos por elementos e segmentos de memó-
rias ancestrais, de tradições e culturas [...] do passado
histórico e de experiências vividas, positiva e negati-
vamente, como mulheres negras (SANTIAGO, 2012,
p.155).

Dessa forma, conforme apresentado por Santiago, a literatu-


ra de autoria feminina negra se distingue por ser escrita por mulhe-
res negras que tematizam seus sentimentos, vivências e memórias,
com consciência e resistência aos modos consagrados e naturalização
de representação dos corpos e até mesmo da sexualidade femininas.
Parece bem adequada, nesse sentido, a forma como Bell Hooks coloca
a questão:

Mais que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade,


as negras têm sido consideradas ‘só corpo, sem mente’.
A utilização de corpos femininos negros na escravidão
como incubadoras para a geração de outros escravos
era a exemplificação prática da ideia de que as ‘mulhe-
res desregradas’ deviam ser controladas. Para justificar
a exploração masculina branca e o estupro das negras
durante a escravidão, a cultura branca teve que pro-
duzir uma iconografia de corpos de negras que insistia
em representá-las como altamente dotadas de sexo,
a perfeita encarnação de um erotismo primitivo e de-
senfreado (HOOKS, 1995, p. 469).

273
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Como visto no passado escravo a mulher negra, teve seu corpo


dominado e explorado pelo homem branco, servindo para gestar no-
vos escravos e aumentar a mão de obra e o dinheiro do seu senhor,
ou como prazer para o escravocrata, ou ainda alimentando os filhos
das sinhás. A escritora Bell Hooks, aponta que a mulher negra era tida
apenas com serventia do seu corpo; a mente, a inteligência, por sua
vez ficaram relegadas ao descaso e desprezo durante o período da es-
cravidão. Porém, o que aponta a escritora é que essa imagem da mu-
lher negra vista apenas como corpo-objeto, que poderia ser exorciza-
do como uma reminiscência do passado, ainda permanece presente
na sociedade atual, com a sexualização, erotização desse corpo negro
feminino. Como diria Lélia Gonzalez (2020), sexismo e racismo combi-
nam-se aqui para formar uma neurose cultural brasileira que se imiscui
e se reproduz no imaginário e no cotidiano através de noções e papéis
como mulata, doméstica, mãe preta, entre vários outros. Esse olhar pe-
jorativo sob as mulheres negras transcende e atravessa, pois, o próprio
meio literário.
Dessa perspectiva, o reconhecimento de uma literatura femini-
na negra e a emergência de modos de representação que questionam
os pressupostos implícitos inscritos na cultura brasileira só pode apa-
recer como uma espécie de revolução simbólica. Isto é, desde que es-
tejamos em condições de reconhecer quando essas mulheres assumem
a posse da caneta para expressar-se, ajudam a desmistificar essa ima-
gem herdade e reproduzida no espaço social e simbólico. Mudar a pers-
pectiva, dar voz ao silenciados, complexificar os modos de resistência
nas entrelinhas do dito e não dito participa então de uma luta muito
mais ampla por direitos e reconhecimento, os quais tem-se destacado
como lugar importante das pautas políticas contemporâneas.
Além disso, se esses fatores ajudam a entender parte das pecu-
liaridades das dinâmicas que atravessam o espaço brasileiro, relegando
a escrita negra a condições subalternas e periféricas, estas dinâmicas
não deixam de ser atravessadas também por questões de gênero, haja
vista o número diminuto de mulheres negras escritoras consagradas
no panteão literário nacional. De maneira mais ou menos clara, pois,

274
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

o que entra em questão é o próprio posicionamento político e a pers-


pectiva de leitura sobre a sociedade brasileira, incluso o próprio espa-
ço literário. A relevância desse tipo de literatura foi bem sintetizada
por Dalcastagné, quando afirmava que:

E é por isso que precisamos de escritoras e escritores


negros, porque são eles que trazem para dentro de nos-
sa literatura outra perspectiva, outras importâncias
de vida, outra dicção. Na sociedade brasileira, a cor
de pele–assim como o gênero ou a classe social–es-
trutura vivências distintas. Precisamos de mais negras
e negros, moradoras e moradores da periferia, traba-
lhadoras e trabalhadores escrevendo, não para coletar
um punho de “testemunhos” (o nicho em que em geral
são colocados), mas para que sua sensibilidade e ima-
ginação deem forma a novas criações, que refletirão,
tal como ocorre entre os escritores da elite, uma visão
de mundo formada a partir tanto de uma trajetória
de vida única quanto de disposições estruturais com-
partilhadas (DALCASTAGNÉ, 2014, p. 68).

Com a literatura negra feminina temos personagens que an-


tes não tinham vez, não tinham papeis de destaque, ficavam em se-
gundo plano com escritores brancos. Um novo tipo de literatura traz
à tona vozes, experiências, memórias, realidades que antes não eram
visualizadas, ou que tinham suas vidas narradas e descritas a partir
de uma perspectiva distante, de um olhar de fora, de cima e perpas-
sado por outros critérios valorativos. Gostemos ou não das produções
literárias em pauta, não parece haver dúvidas de que os escritores e es-
critoras negras têm produzido ângulos de análise e experiências esté-
ticas inovadoras que não deixam de estar ligadas às suas trajetórias,
posições e modos de ver e simbolizar o mundo social. A(u)tores antes
silenciados, seus olhares participam de um processo de ressignificação
e valorização das culturas negra e afro no Brasil.

275
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Mais interessante, ainda, é perceber como essas próprias autoras


concebem seu projeto criador e o papel social da escrita. Em diversas
de suas entrevistas, Cristiane Sobral pontua, por exemplo, que com
Literatura negra temos o resgate de tradições, memorias e histórias
do passado foram muitas vezes esquecidas, negligenciadas por outros
escritores.

Escrever é reescrever. A literatura negra tem um te-


cido próprio, apresenta a nossa subjetividade, fala
também de um sujeito construído no coletivo, resgata
os valores da negritude brasileira, da sua própria cul-
tura, dos meios de criação e reflexão sobre a experiên-
cia negra. Há um resgate positivo da nossa etnicida-
de, da nossa identidade, um ponto de vista diferente
do apresentado nas versões dominantes (SOBRAL,
2013, s/p.).

Assim como Nkala–do conto escolhido para este estudo–que


usa a dança como instrumento de luta, que se afirma como mulher ne-
gra, forte, e que ganha vida e ressonância a cada nova leitura, Cristiane
Sobral também exerce, por seu turno, sua posição de denúncia, crítica
e resistência através da escrita. Tensão e afinidades pouco aprofunda-
das nos trabalhos disponíveis, é difícil não reconhecer aqui as cone-
xões e afinidades entre ambas, tais são as analogias (ditas e as implíci-
tas) entre as suas posições nas relações raciais, de gênero, em resumo,
de dominação que atravessam a cultura brasileira.
A escritora Cristiane Sobral resiste contra o preconceito, à perso-
nagem usa a dança como instrumento de luta, enquanto Cristiane usa a
escrita para denunciar, chamar atenção, mostrar as belezas da litera-
tura afro-brasileira feminina. Com a personagem do conto, Cristiane
apresenta uma personagem mulher, negra, forte, uma princesa que foi
preparada pelo pai para assumir o trono quando chegasse o momento
certo. Nkala, a qual diverge das características das personagens ou-
trem, apresentada por escritores brancos, dessa forma percebeu a rele-
vância de se ter a literatura de autoria feminina negra.

276
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

2 Corpo e coisificação: a mulher tem outros papeis sociais na visão


de Cristiane Sobral

A obra O tapete voador O conto Nkala: um relato de bravura mes-


cla elementos históricos com os aspectos ficcionais: a representação
de uma jovem princesa do reino do Congo, na África Central; a inva-
são Portuguesa e o tráfico negreiro no Brasil colonial, constituem ele-
mentos-chave no enredo. Cristiane Sobral apresenta, de forma poética
e tocante, um dos períodos mais bárbaros da história: a escravidão,
o massacre de uma tribo africana, a captura de negros e o translado
da África para o Brasil.

Nkala, princesa do Reino do Congo, filha única do Rei


Lukeni Lu-Nimi, vivia mais um dia em família, em sua
aldeia africana. Com os seus desfrutava um tempo
bom, era dia de festa, um desses instantes para relem-
brar. Era uma moça muito apegada à sua família. Com a
mãe aprendera as artes do amor, com o rei, seu patriar-
ca, as artes da guerra. Sempre prometera ao seu genitor
que, chegada a hora, reinaria entre os seus com sabe-
doria. Nkala era conhecida por todos pela beleza do seu
dançar. Bailava como vivia. Intensamente. Naqueles
tempos, tudo estava como deveria ser em sua comuni-
dade (SOBRAL, 2016, p. 29).

Observamos que o perfil da princesa congolesa é de uma jovem


mulher instruída para a liderança, que conhecia técnicas de guerra e as
responsabilidades do reinado e que deveria zelar e defender seu povo
dos inimigos quando herdasse o trono de seu pai. A ambientação
do conto revela que a aldeia de Nkala permite que mulheres exerçam
a função política. É interessante essa projeção que a autora faz em re-
lação à personagem Nkala, colocando-a como sujeito atuante que não
está destinada somente aos afazeres domésticos, à procriação ou o
âmbito privado da casa/lar. A narrativa não faz menção, por seu turno,
a ocorrência de casamento e ou existência descendentes da princesa
negra, o que, apesar dos avanços recentes na condição feminina em ce-

277
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

nário internacional, não deixa de contrastar com os modelos patriar-


cais inscritos na cultura:

Nesse modelo de organização social, a autoridade


máxima é exercida pelo pater famílias, que, através
de relações pessoalizadas, articula o público e o priva-
do em torno de seu poder de mando [...] como a repre-
sentação da virilidade – com sua dupla moral sexual
–, e, ainda, como um modelo nacional de dominação,
vide o “sadismo de mando”. [...]Às mulheres cabe, nes-
se modelo, atuar no espaço doméstico e zelar, através
de uma conduta moral e sexual retilíneas e da educa-
ção das crianças, pela honra da família (MOUTINHO,
2004, p. 67).

O modelo pater famílias, apontado por Laura Moutinho, está re-


lacionado ao paradigma discursivo da família tradicional, reproduzida
ad nausean, mesmo que a realidade das configurações familiares bra-
sileiras desde o período colonial seja bem mais diversificada e variável
do que sua representação. Seja como for, o fato é que ainda assim essa
estrutura mantém-se organizada em torno de uma marcada divisão
dos papéis entre homens e mulheres o que, no final de contas, cons-
titui um divisor de poder entre os sexos. E é aqui que o enfoque sobre
nossa personagem desafia a imaginação, porque combina tanto aspec-
tos relacionados ao passado e à ancestralidade, isto é, herdados, quan-
to joga com as representações atuais sobre o papel, a vez e a voz do
feminino contemporâneo.
O desenvolvimento da personagem ecoa um grito de revolta con-
tra a condição de objeto em que estava sendo colocada, notadamente
com relação à objetivação do seu corpo e os usos e abusos de sua sexu-
alidade. A autora chama atenção para essa construção ideológica mui-
to comum durante o período escravocrata, da apropriação do corpo
negro, coisificado, desumanizado, humilhado. A visão narrativa expõe
como o branco exercia poder sobre o corpo negro, no seguinte tre-
cho diz:

278
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

[...] com seus corpos coisificados, seus dentes expos-


tos, braços e pernas avaliados, músculos manipulados,
exibidos em troca de dinheiro. [...] O homem riu alto,
com deboche, salivando muito, enquanto cobiçava
o seu corpo nu ali exposto. Fez questão de dizer a todos
que essa escrava não venderia, seria seu animal de es-
timação! Para os seus serviços exclusivos até que esti-
vesse bem gasta (SOBRAL, 2016, p. 33-34).

É difícil não perceber aqui as familiaridades entre a descrição


literária acima e a forma como mulheres negras ainda hoje são trata-
das, como se não tivessem competências, cultura, intelecto–“só cor-
po, sem mente” criticava Bell Hooks (1995). O mesmo ocorre no con-
to com Nkala que tem o corpo avaliado pelo mercador, quanto a sua
utilidade e capacidade de satisfazê-lo. Cristiane Sobral traz, assim,
pela revelação da brutal coisificação do corpo de Nkala, uma oportu-
nidade para reflexão em relação à sexualidade e a própria autonomia
da mulher sobre si no Brasil. A impressão que fica para nós, na condi-
ção de leitores, é que afinidades e paralelismos com o contexto atual
não constituem mera coincidência. Mudam os autores ou os persona-
gens, e apesar de guardadas as particularidades do contexto, o enredo
e sentido continuam estranhamento familiares.

3 No canto e na dança há um grito de resistência

A literatura afro-brasileira faz representações do período escra-


vocrata colocando a figura do negro como agente de transformação,
caracterizando e descrevendo as formas de resistência como uma ma-
neira do negro colocar-se em oposição a todo tipo de exploração e do-
minação branca. O revide direto e indireto é estabelecido por meio
do confronto armado, das estratégias de fugas, dos quilombos, da so-
brevivência no cativeiro, da preservação da cultura, dos costumes e da
religião. Nessa perspectiva de oposição às explorações servis, mui-
tos africanos viam as revoltas como uma maneira de contestar o po-
der dos escravistas, por isso agiam de acordo com suas possibilida-

279
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

des, tornando toda categoria de resistência uma forma de conquistar


a liberdade.
Na obra de Cristiane Sobral, temos as experiências vividas
por muitas mulheres negras no que se refere às lutas por liberdade,
igualdade e justiça, revelando protagonismo que só recentemente
tem sido reconhecido em pesquisas historiográficas. Os móveis e mo-
dalidades de resistência são, como não poderiam deixar de sê-lo, di-
versos ao mesmo tempo em que particulares.
Não é ao acaso que, diante da necessidade de reagir ao cativei-
ro, no conto a mulher negra também faz parte dos movimentos de lu-
tas sociais, mostrando-se como agente transformador da vida em ca-
tiveiro, reconstituindo, assim, sua identidade de gênero e raça. Isto
que pode ser observado, por exemplo, através do combate a invasão
dos portugueses à aldeia do Rei Lukem Lu Nimi; ou por meio da persis-
tência em manterem-se vivos durante a viagem longa e de não aceitar
ser vendido como escravos. Portanto, a representação da resistência
negra na obra pode ser compreendida como pacífica direta, quando
o objetivo é declarar ao opressor que o sujeito não sucumbira a vonta-
de dele, assim:

A resistência pacífica indireta não é abertamente opo-


sitora ao poder dominante, mas pode ser feita de pe-
quenos atos de revide por parte dos povos oprimidos
[...]. Trata-se de uma forma indireta de resistência, pois
o opositor não sabe claramente que está sendo enfren-
tado. Isso ocorre, geralmente, devido ao fato de o opri-
mido não possuir outras formas de lutar ou enfrentar
diretamente o opositor com o uso de armas e técnicas.
A segunda forma de resistência pacífica seria a dire-
ta, quando o opressor sabe que está sendo enfrentado,
mas o oprimido não se utiliza de armas ou outros ti-
pos de instrumentos similares de ataque (FELDMAN;
SILVESTRE, 2020, p.32, grifo nosso).

280
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

A resistência de Nkala configura-se como resistência pacífica


direta, pois é também um resgate cultural e memorial dos antepassa-
dos, das expressões culturais como cantar, dançar, bater palmas e pés
no chão... em resumo, exemplos verossímeis de práticas ancestrais co-
muns em diversas comunidades africanas e/ou afro-brasileiras. Assim,
as lembranças de sua família e da aldeia alimentam na jovem o desejo
por justiça e liberdade.
De acordo com Feldman e Silvestre (2020, p. 32) “mais que uma
ideia de oposição binária, a resistência pode assumir formas tão su-
tis quanto efetivas para minar, questionar a cultura dominante e até
mesmo ressignificar a cultura dominada”. Ilustrativo disto, para não se
submeter à vontade do mercador, Nkala descobre uma forma de ser
dona de si mesma, de não sucumbir às ordens do homem.

Nkala respirou fundo e começou a dançar, como dan-


çava em sua aldeia, onde as danças, os cantos e os ritos
eram inseparáveis, um contínuo movimento de liga-
ção com a ancestralidade [...] com um gesto, ordenou
que parasse de dançar e voltasse à fila. Nkala, desafia-
dora, com ares de sonho continuou a dançar, a cantar,
e a bater os pés no chão (SOBRAL, 2016, p. 34).

Nota-se que as expressões culturais congolesas são símbolos


fortemente marcados na identidade da jovem princesa. Ela as utilizou
como forma de defesa também para mostrar a seu opositor que era
livre, que possuía autonomia sobre seu corpo, que carregava a heran-
ça cultural de seus antepassados e que pertencia a um lugar que não
era aquele. Como ressalta Hall (2005), não importa o quão deforma-
das estejam as tradições e as comunidades negras, elas ainda estarão
presentes na memória dos vivos, pois a cultura popular carrega em si
uma ressonância, acentuada nas experiências cotidianas, nas tradi-
ções, enfim, naquilo que não se perde ainda que se ressignifique para
existir.
Como sabido, essas tradições foram utilizadas por muitos ne-
gros para reconstruir suas vidas nas colônias, sobreviver e adaptar-se

281
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

as imposições do branco. Observamos que a personagem do conto ain-


da que tenha sido afastada de sua terra e dos familiares busca nas lem-
branças e nas experiências que tiveram com eles forças para lutar.
Ainda aprisionada no navio negreiro, e vendo todo horror que o
tráfico produz, Nkala sentia que perdia o lar, os familiares, a liberda-
de e a vida, assim, como outros negros que amarrotados nos porões
dos navios não possuíam certezas quanto aos seus horizontes futuros.
Sabe-se que muitos negros não resistiam à travessia, eram descarta-
dos no mar, sem cerimonias fúnebres, sem despedidas. Nkala precisava
acreditar na liberdade e lutar por ela, em prol de si mesma e de todo
aqueles que não resistiram às péssimas condições da viagem.
Nkala não precisou utilizar a linguagem verbal para resistir e in-
citar o seu povo a fazer o mesmo, ela apenas dançou veementemente
como fazia nas celebrações de sua terra natal. Quando, insistentemen-
te, o mercador ordenou que ela parasse, a jovem reagiu de forma vee-
mente, exercendo um papel de liderança convergente com o seu papel
de princesa. Inadvertidamente, com o ato, a jovem princesa incentivou
os outros escravos presentes a se rebelarem contra aquela situação.
Inicialmente batendo os pés, cantando, gritando... foi pela tomada
de voz que se manifestou mais clara e abertamente a resistência con-
tra a opressão a que eram submetidos, como visto no seguinte trecho:

Observando o seu movimento de resistência, outros


companheiros também começaram a bater os pés
no chão, a gritar como podiam, a cantar. Tentavam ain-
da agredir os seus algozes, em uma tentativa desespe-
rada de libertação, acorrentados, machucados, esquá-
lidos, exauridos da travessia. Morreram ali, agredidos,
tentando reagir aos opressores, proclamando uma de-
sesperada insurreição. Entretanto, aquele chão em ter-
ras distantes não ficou manchado apenas com o sangue
negro, o corpo branco dos senhores também foi perfu-
rado pela inesperada revolução (SOBRAL, 2016, p. 34).

282
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Sem perder por um momento a compreensão da luta desigual


em ação, a autora nos leva então a pensar na coragem, na resistência
e na tenacidade de mulheres negras que, mesmo subordinadas, insul-
tadas e/ou violentadas, resistem à condição servil e continuam a dar
mostras contínuas de uma força física e espiritual impressionantes.

O algoz já estava de chicote em punho, a proferir os in-


sultos de um opressor legítimo no ofício da subordi-
nação. Muitas chibatadas foram desferidas no corpo
em movimento de Nkala, ela parecia estar em transe,
dançando, dançando [...].
Luta desigual. Tantos homens e uma única mulher ví-
tima do espancamento coletivo. Nkala, brutalmente
agredida, ainda flutuou por alguns instantes, em seus
derradeiros movimentos. Só deixou de sentir dor quan-
do entregou seu corpo à terra, enquanto os seus insub-
missos olhos secos fitavam o céu cinzento (SOBRAL,
2016, p 34-35).

Enquanto recebia as chibatadas que lhe tornava completamen-


te dilacerada, a princesa permanecia firme, inundada pelo próprio
sangue, pelas feridas que rompia a carne, os órgãos, os ossos. Dona
de si e de sua vontade, não obedecia às ordens do algoz e num plano
de misticidade entrega-se ao transe de suas próprias experiências cul-
turais. A resignação com que a mulher recebia o açoitamento marca
a profunda ligação com a religião africana, a consciência de um transe
vingativo que invocava os orixás, e abre caminho para Aruanda, lugar
de tranquilidade, morada dos orixás.
Percebe-se neste trecho o abuso e a violência que Nkala sofreu.
Sob nossa perspectiva, o chicote do mercador, descarregado sobre
o seu corpo, não simboliza somente a fúria provocada pela insubor-
dinação de uma escrava. Ela dramatiza o ódio pela mulher que desafia
o homem e por todas as ações que tendem a diminuir ou questionar
essa relação de poder, quer no passado, quer no presente.

283
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Considerações Finais

Esta análise buscou compreender com a escrita de autoria ne-


gra faz uma representação do papel social da mulher negra, distinta
da ideia que por muito tempo estava implantada na literatura. Além
de revelar como a obra de Cristiane Sobral faz uma crítica aos estere-
ótipos que subalternizava a mulher e impedem que sejam vistas como
heroínas, sujeitos que participavam de movimentos de resistência,
luta por justiça, e liberdade. Deste modo, verificou-se na personagem
Nkala a representatividade feminina, a militância, o ato de resistência
pacífica direta e a morte como consequência de sua luta.
Neste intuito, a discursão que se fez nesta análise também pro-
pôs uma nova visão sobre a escrita, ou melhor, escrevivência de au-
toras negras, que resgatam a memória e a ancestralidade dos negros.
Cristiane Sobral em seu conto Nkala: um relato de bravura, ressigni-
fica conceitos e ideologias que cercam o universo feminino negro.
Com maestria a autora utiliza a arte para representar a identidade
cultural e a bravura de uma mulher africana em suas experiências:
a vida em África, a invasão de sua aldeia pelos mercadores portugue-
ses, a captura, o translado para o Brasil, as mazelas do tráfico negreiro,
as estratégias de resistência que reconfiguram o imaginário que se fa-
zia em relação ao negro, tido como maleável e inativo.
Dessa perspectiva, à guisa de conclusão, o conto de Cristiane
Sobral coloca em questão três elementos que nos parecem importan-
tes. A começar pelo destaque dado a uma mulher negra que desafia
os limites sociais no período colonial, o que traz aportes figuracionais
interessantes para discussões historiográficas recentes em sala de aula
e acompanha as tendências mais recentes de revisão do cânone histo-
riográfico branco, masculino e eurocentrado. Em segundo lugar, a au-
tora e o conto permitem colocar em questão os modos consagrados
de representação da mulher negra presentes no universo de produções
literárias brasileiras e o caráter inovador provocado pelo incremento
de importância da autoria feminina e negra. Por fim, e não menos im-
portante, o conto pode ser tomado então como um laboratório de re-

284
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

flexão sobre as relações entre dominantes e dominados no Brasil, per-


mitindo ao leitor experimentar sensivelmente um “olhar de dentro”
ao mesmo tempo em que uma perspectiva vinda de baixo, isto é, desde
que estejamos em condições de reconhecer que a compreensão literá-
ria sobre as relações de dominação também pode oferecer um contri-
buto para o (re)exame crítico dessas mesmas relações.

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FELDMAN, Alba. K. T.; SIVESTRE, Nelci. A C. Estratégias de resistência,
sobrevivência e continuidade no discurso de grupos étnicos colonizados:
reflexões teóricas. In: FELDMAN, Alba. K. T.; FELLIPE, Ruan Munhoz.
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285
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

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286
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-14

A TECNOLOGIA EM O CONTO DA AIA


(1985), DE MARGARET ATWOOD: A VISÃO
FUTURÍSTICA DO HOJE E DO AMANHÃ

Jaynne Silva de Sousa Borges1


Naiara Sales Araújo2

Introdução

No campo da Ficção Científica, como o próprio nome já dá pistas,


é comum que as temáticas críticas abordadas sejam combinadas, den-
tre muitas outras características, com a presença de cenários, objetos
e sistemas tecnológicos. Vale ressaltar que por tecnologia, neste con-
texto, tem-se a ideia de versões modernas e avançadas de ferramentas
e funções já existentes, ou mesmo de materiais que, quando descritos,
ainda não existiam.
Um dos subgêneros da Ficção Científica, a Distopia ou Ficção
Distópica, utiliza representações da tecnologia que levam ao extre-
mo as possibilidades negativas que esta pode proporcionar, como,
por exemplo, o controle violento da população, o monitoramento
constante, os efeitos físicos e psicológicos provocados pelo uso fre-

1 Mestranda do programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Maranhão-


Campus Bacabal. E-mail: jaynneborges96@gmail.com.
2 Docente do programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Maranhão-
Campus Bacabal. E-mail: naiarasas@ufma.br.

287
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

quente de ferramentas tecnológicas, dentre outras consequências.


As vantagens também podem ser apresentadas, mas o oposto é mais
comum. A série de streaming Black Mirror é um dos casos de Ficção
Distópica que tem enfoque direto nos malefícios do uso desenfreado
da tecnologia.
Partindo dessa ideia, o objetivo deste capítulo é analisar a vi-
são futurística da contemporaneidade e das possibilidades do porvir
na obra O conto da aia (1985), de Margaret Atwood. Tal produção com-
põe o rol da literatura distópica clássica, cujo ápice produtivo e de
destaque se deu no século XX, juntamente às contribuições de Aldous
Huxley, George Orwell, Ray Bradbury, Ursula K. Le Guin, dentre outros.
Assim, nossa análise será pautada nas passagens de O conto
da aia (1985) que exploram as ferramentas tecnológicas, sejam elas
utilizadas a favor dos interesses da classe dominante ou no contexto
geral da história. Tais aparatos foram baseados em objetos e serviços
que já existiam à época da produção do livro combinados às previsões
e promessas de evolução na ciência, na comunicação, na saúde e em
outras áreas de interesse social.
O referencial de tal estudo passa por discussões alusivas ao gê-
nero Ficção Distópica, com ênfase no que se fala a respeito da tecno-
logia e suas funções para histórias desse tipo. Também se discorre so-
bre as Teorias da Recepção, pois estas ajudam a entender as possíveis
leituras contemporâneas do que a tecnologia representava no passado
e do que se esperava e se espera desta, com base na experiência recep-
tiva do público leitor. Na seção a seguir, apresentam-se os embasa-
mentos sobre o gênero literário Distopia, com apontamentos em par-
ticular sobre a tecnologia em tal contexto.

1 Narrativas distópicas e suas relações com a tecnologia

Para entender o conceito de distopia é necessário explorar, an-


tes e rapidamente, o significado de utopia. Isso porque, de acordo
com Fátima Vieira (2010), no texto “The concept of utopia” (“O con-
ceito de utopia”), tal palavra surgiu como um neologismo para nomear

288
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

uma ideia já existente, a qual remete a um lugar ainda não descoberto


e imaginado onde a sociedade é bem-organizada, com muitas riquezas
e possibilidades inexploradas e um sistema harmonizado, com regras
visando boa convivência e uma vida adequada para todos.
Assim, a palavra utopia, que significa etimologicamente não-lu-
gar ou lugar nenhum, foi utilizada primeiramente por Thomas More,
no romance Utopia (1516). A partir de tal ocorrência, o termo ganha
popularidade e deixa a posição de neologismo, mas continua geran-
do novos neologismos, como “distopia” (VIEIRA, 2010). Nesse sentido,
distopia, que também recebe o nome de antiutopia, significa literal-
mente lugar ruim, lugar anormal. É entendida como a versão contrária
do termo inventado por More, pois é formada de valores negativos,
situações catastróficas e injustas, estando bem próxima da realidade,
e não mais sendo o “lugar nenhum”.
Existem muitas discussões e controvérsias quanto ao fato de dis-
topia representar o oposto de utopia, pois ambas as denominações pas-
saram por evoluções de sentido, foram e ainda são usadas em diversos
campos de conhecimento, como sociologia, política, medicina e litera-
tura, este último de interesse do presente texto.3 A respeito da Ficção
Utópica, Carlos Eduardo Ornelas Berriel (2005) afirma, no texto
“Utopia, Distopia e História”: “[h]á em toda utopia um elemento dis-
tópico, expresso ou tácito, e vice-versa. A utopia pode ser distópica
se não forem compartilhados os pressupostos essenciais, ou utópica
a distopia, se a deformação caricatural da realidade não for aceita”.
Desse modo, no âmbito literário ou ficcional, Utopia e Distopia
são concepções inter-relacionadas, por vezes paralelas, visto que o
ideal de perfeição da primeira pode deixar brechas para se analisar
que nem todos são contemplados por tal harmonia e justiça; além
disso, o estado de desigualdade e opressão das Distopias é baseado
nos desejos de organização, pureza e limpeza de classes ou figuras do-
minantes, visão bastante próxima das características da Utopia.

3 Para tratar de utopia e distopia no âmbito literário, utiliza-se doravante Ficção Utópica/
Utopia e Ficção Distópica/Distopia.

289
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Para Naiara Sales Araújo (2018, p. 275), diferente do contexto


utópico, no “sentido distópico, o paraíso é substituído pelo inferno e a
felicidade pela infelicidade; conquistas resultantes de esforços huma-
nos são substituídas pela degeneração social humana e a vida é piorada
pelo desenvolvimento técnico”. Por conseguinte, o diferencial provo-
cativo e perturbador da Ficção Distópica é a ambientação num futuro
distante, o qual costuma ocorrer após guerras ou catástrofes naturais,
mantendo, porém, características atemporais semelhantes à atualida-
de e também a alguns momentos do passado.
Jessica Langer, no texto “The Shapes of Dystopia: Boundaries,
Hybridity and the Politics of Power” [“As formas de Distopia: Limites,
Hibridismo e Políticas de Poder”], aponta a Distopia como uma ver-
são mais clara e detalhada da Utopia, pois esta evidencia os parado-
xos e contradições ignorados na sociedade perfeita, mostrando o quão
conturbados e relevantes eles podem ser:

Em vez de imaginar um mundo em que os aspec-


tos criticados da sociedade do autor desapareceram,
ela imagina um mundo em que esses mesmos aspectos
estão crescidos demais e descontrolados, deslocando-
-os em um universo alternativo onde a vida é definida
por eles (LANGER, 2010, p. 171, tradução nossa).4

Assim, a Distopia se configura como um sistema social em que


grande parte das desigualdades existentes e possíveis no mundo real
são aumentadas em quantidade e qualidade, intensificadas e muitas
vezes somadas a crises econômicas, biológicas, sociais, políticas, tec-
nológicas. Comumente, há forte controle de lideranças totalitárias,
com tendências geralmente conservadoras, a partir das quais impõem
e naturalizam uma divisão de classes injusta, desigual e opressiva.

4 Rather than imagining a world in which the criticized aspects of the author’s society have
disappeared, it instead imagines a world in which those same aspects are overgrown and run
amok, displacing them into an alternate universe where life is defined by them (LANGER,
2010, p. 171).

290
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

As Distopias também podem abranger avanços tecnológicos, co-


mumente usufruídos por grupos de classes mais altas que possuem,
ainda, outros privilégios. Esse é um mundo que só existe no campo
ficcional; por isso, compõe-se usualmente de cenas e acontecimentos
que chocam, que causam sensações ruins a quem o conhece, e pode
parecer até absurdo ou irreal, mas se analisado minuciosamente,
tem muitas características da realidade.
“As distopias são frequentemente descritas como ‘conservado-
ras’, embora possam, na verdade, ser agudamente críticas das socieda-
des que refletem”5, afirma Gregory Claeys (2010, p. 107, tradução nos-
sa), em “The origins of dystopia: Wells, Huxley and Orwell” [“As origens
da distopia: Wells, Huxley e Orwell”]. Nesse sentido, a distopia surge
como uma ideia anti-perfeição, manifestada em sociedades problemá-
ticas, caóticas e onde tudo e todos representam a junção das piores
situações e características existentes, como um pesadelo generalizado.
Claeys (2017) identifica certo padrão nas distopias produzidas
nas últimas sete décadas, o qual, segundo ele, abrange pelo menos
cinco temas: guerras nucleares, degradação ambiental, conflitos entre
mecanização e identidade humana, degeneração cultural e o combate
ao terrorismo – esse último em resposta aos ataques de 11 de setem-
bro de 2001. Alguns desses motes continuam as discussões das Ficções
Distópicas das décadas anteriores, o que ilustra a atemporalidade des-
se subgênero e de seus debates, bem como desenvolve e atualiza tais
assuntos.
A partir desses aspectos, é indiscutível o caráter ficcional
da Distopia, originada e manifestada especial e principalmente
por obras literárias. Desse gênero, são frequentemente lembrados
os clássicos Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, 1984
(1949), de George Orwell e Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury,
que guardam relações e até mesmo certas inspirações dos seus respec-
tivos antecessores do gênero.

5 Dystopias are often described as ‘conservative’, though they may in fact be sharply critical of
the societies they reflect, as we will see (CLAEYS, 2010, p. 107).

291
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Cabe destacar, ainda, a repopularidade do gênero na última dé-


cada para o público mais jovem através de séries de obras como Jogos
Vorazes (2008-2010), Maze Runner (2009-2016), Divergente (2011-
2013) e A Seleção (2012-2014), além de uma valorização mais tardia
de obras como Duna (1965), O doador de memórias (1993) e O conto
da aia (1985).
Sendo a Ficção Distópica um subgênero da Ficção Científica,
é possível encontrar nessa categoria de história de cunho catastrófi-
co avanços tecnológicos, alguns dos quais são considerados previsões,
a exemplo das distopias do século XX. Essas tecnologias superdesenvol-
vidas e inovadoras, tão presentes e caracterizantes da Ficção Científica,
são utilizadas nos romances distópicos com objetivos que interessam
aos grupos dominantes, servindo principalmente como mecanismo
de vigilância, controle e uniformização da sociedade.
A título de exemplo, Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous
Huxley, é baseado numa humanidade altamente dependente da tec-
nologia. O “deus” deles é Henry Ford, criador do sistema de produção
em massa e fundador da Ford Motor Company. Na Londres de 632 DF
(Depois de Ford), as pessoas são geradas em laboratório e com fun-
ções pré-definidas, logo, o desenvolvimento delas pode ser mais cui-
dadoso, se forem de classes altas, ou mais negligente, se forem de clas-
ses baixas.
Nesse panorama, seja qual for a origem desses indivíduos, to-
dos trabalham, em maior ou menor nível, de forma mecanizada, como
componentes iguais necessários para o funcionamento dessa civiliza-
ção. Como resultado, há uma falsa aparência de que tudo corre bem e
todos são felizes e completos, como numa utopia.
Outro caso que sustenta tais aspectos é o do livro 1984 (1949),
de George Orwell. Seu enredo tem um meio social mais precarizado,
pelo menos sob a visão do protagonista Winston. Contudo, ele traba-
lha numa função relativamente privilegiada, no Ministério da Verdade,
onde modifica as informações e documentos para que sempre benefi-
ciem e atestem as vontades do Partido.

292
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Assim, Winston tem contato com tecnologias semelhantes


às contemporâneas, mas que para a época de produção da obra eram
apenas sonhos: através de um computador, aparentemente, o protago-
nista dita as palavras e reescreve a história da Oceania, conforme as or-
dens que lhe chegam por um tubo. Em 1984, todas as pessoas são vigia-
das por teletelas, com as quais também se comunicam, são alertadas
quando não cumprem o esperado, etc.
Ou seja, as grandes tecnologias não existem nas distopias apenas
para representar o futurismo, ainda que essas histórias sejam pensadas
nesse sentido. Há também o fator crítico dos limites e desvantagens
desses avanços, bem ao estilo trágico e alarmante que é típico do gêne-
ro aqui tratado. De maneira análoga, Luciano Monti (2019), no artigo
“Nuove generazioni e tecnologia tra utopia e distopia” [“Novas gerações
e tecnologia entre utopia e distopia”], defende que os autores de ro-
mances distópicos são os primeiros intérpretes dos temores da huma-
nidade no século XIX e XX acerca dos efeitos negativos da tecnologia.
Tal afirmativa evidencia e valoriza o trabalho aprofundado
dos autores de Distopia no estudo e materialização da subjetividade
pessoal e coletiva quanto ao futuro e suas incertezas. Mais que pro-
fetas, tais criadores dão visibilidade e voz a um aspecto da sociedade
que antes não era estruturado como uma problemática relevante, e ao
invés de prever novos objetos, invenções, serviços, projetam situações
a partir de um estudo delicado de seu contexto e das possíveis conse-
quências do que já presenciavam e do que poderiam vivenciar. Assim,
Monti continua:

Embora seja verdade que a literatura não se baseia


em fundamentos científicos, interpreta plenamente
uma imaginação coletiva e adverte contra certas ra-
dicalizações. Certamente não são previsões baseadas
em elementos científicos, mas representações formi-
dáveis dos sentimentos cotidianos. Rotular estes me-
dos como meras fantasias seria um erro tão grande
quanto tomá-los inteiramente por garantidos ao abra-

293
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

çar o obscurantismo tecnológico (MONTI, 2019, p. 44,


tradução nossa).6

Portanto, tal autor posiciona a literatura – e aqui destaca-se,


a Ficção Distópica – como materialização e tradução dos comporta-
mentos e sentimentos da sociedade, não generalizando-os, mas ma-
nejando informações de forma crítica e flexibilizando-as. Por mais
que argumente que a literatura não é um estudo antropológico exato,
o que é verdade, vale salientar que esta é proporcionalmente impor-
tante, séria e pertinente para uma análise social desse cunho.
Feitos os apontamentos sobre o gênero literário Distopia, a se-
ção seguinte apresenta debates sobre a maneira de analisar a obra pro-
posta nesta pesquisa, a saber, uma abordagem que visa os processos
de leitura e seus efeitos.

2 Teorias da Recepção: por uma análise do efeito estético

Este estudo é pautado no método de análise receptiva, ou seja,


considera-se o leitor como fator essencial de ressignificação e disse-
minação do objeto artístico, nesse caso, do texto literário. A Teoria
da Recepção ou Estética da Recepção visa ampliar o campo de estudos
da literatura e de outras produções artísticas, pois além de compreen-
der os elementos que já eram e ainda são analisados (texto e autoria),
insere nesse processo a participação do leitor/espectador/receptor
como integrante ativo na construção do significado, na reflexão e na
difusão de uma obra.
Um dos pioneiros na Teoria da Recepção é Wolfgang Iser, reco-
nhecido por suas ideias a respeito da relação entre texto e leitor. Para
ele, essa interação é como um “modo de criação do mundo”, em que
o texto deixa de ser a única origem do conteúdo para dividir essa fun-
6 Se è pur vero che la letteratura non si fonda su basi scientifiche essa pienamente interpreta
un immaginario collettivo e mette in guardia contro certe radicalizzazioni. Non si tratta certo
di previsioni fondate su elementi scientifici ma formidabili rappresentazioni del quotidiano
sentire. Bollare queste paure come delle pure fantasticherie sarebbe un errore altrettanto
grande di quello di prenderle integralmente per fondate abbracciando l’oscurantismo tecno-
logico (MONTI, 2019, p. 44).

294
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

ção com o receptor, produzindo desde a materialidade até a subjetivi-


dade através desse conjunto.
Iser (2011) não enfoca de fato no produto dessa interação, mas no
jogo entre autor-texto-leitor, o qual, segundo ele, não resulta exata-
mente em uma representação do mundo externo: esse sistema gera,
na verdade, muitas diferenças. O texto é fruto das intenções do autor,
é referência do mundo real, mas também é uma espécie de interfe-
rência nesse mundo, um recorte das múltiplas possibilidades de in-
terpretação que o mundo existente pode oferecer. Iser explica, mais
detalhadamente, que os

autores jogam com os leitores e o texto é o campo


do jogo. O próprio texto é o resultado de um ato inten-
cional pelo qual um autor se refere e intervém em um
mundo existente, mas, conquanto o ato seja intencio-
nal, visa a algo que ainda não é acessível à consciência.
Assim o texto é composto por um mundo que ainda
há de ser identificado e que é esboçado de modo a in-
citar o leitor a imaginá-lo e, por fim, a interpretá-lo
(ISER, 2011, p. 107).

Tal novo mundo é, assim, moldado, construído e reconstru-


ído, por isso formado por vários níveis de diferença. Estes, segundo
Iser, ocorrem extratextualmente, ainda no processo de criação do au-
tor, com o mundo extratextual e também com outros textos (ISER,
2011). Portanto, há contribuições das impressões próprias do criador
do texto, influências externas intencionais e não intencionais, textuais
e contextuais, que compõem a produção artística a partir de múltiplas
direções.
Os níveis de diferença também acontecem intratextualmen-
te, entre os itens baseados nos sistemas extratextuais e as possibili-
dades semânticas do texto; e entre texto e leitor, tanto nas decisões
próprias do receptor como nas necessárias para a leitura, além do que
o texto projeta com seu mundo novo e o que essa projeção quer pro-
vocar (ISER, 2011). Ou seja, considerando-se o que já vem do mundo

295
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

externo, consequentemente a estrutura e formação do texto também


são importantes compositoras dessas diferenças, bem como os senti-
dos que empregam. Elas implicam, ainda, as decisões e escolhas envol-
vidas na materialidade do texto e as que o seu leitor também exerce.
São essas diferenças que movimentam o jogo e contribuem para
a dualidade dele, pois, ao mesmo tempo que ele remove as diferenças
no trajeto para o encerramento, também tenta manter as diferenças
ao restabelecer sua liberdade, continuidade e abertura (ISER, 2011).
Portanto, o jogo do texto é um contínuo de combinações, um processo
constante que se inicia ainda na criação do autor e sua obra, e é sempre
renovado conforme cada leitura e recepção. Esses raciocínios dão con-
ta, de certo modo, da gama de procedimentos envolvidos na receptivi-
dade de um texto.
A seguir, aplicam-se os conhecimentos aqui levantados e as dis-
cussões da seção anterior para analisar a tecnologia e suas projeções
na obra O conto da aia (1985), de Margaret Atwood.

3 A tecnologia em O conto da aia

O conto da aia é o relato de Offred, uma das mulheres que fo-


ram vítimas da instauração da República de Gilead, no que antes eram
os Estados Unidos da América. Através de ações terroristas, suprema-
cistas religiosos do território norte-americano revogam o Estado de-
mocrático e livre, implantando um governo teocrático baseado nas leis
da Bíblia, as quais beneficiam apenas parte dos cristãos e oprimem
os demais habitantes do país.
Dessa maneira, a sociedade é reorganizada em castas baseadas
na condição moral da população: os idealizadores do novo governo
são os Comandantes e Esposas (casais ricos), os subordinados respon-
sáveis por controlar o território e treinar/punir as classes inferiores
são os Olhos (polícia/exército de alto escalão), Anjos (servidores da lei
e trabalhadores em geral) e as Tias (professoras doutrinadoras de mu-
lheres), e os demais seguidores das leis divinas são as Econopessoas.

296
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

As mulheres férteis consideradas pecadoras (adúlteras, rebeldes,


homossexuais) são forçadas a servir como Aias, o caso da protagonis-
ta da obra aqui analisada. As inférteis podem trabalhar como Marthas
(empregadas de famílias ricas) ou são presas em locais radioativos para
trabalhar até a morte, como Não-mulheres. Há ainda as que recebem a
“oportunidade” de se prostituir na Casa de Jezebel, e os transgressores
graves da lei (homens e mulheres criminosos sem utilidade) são mor-
tos e pendurados nos muros do país como exemplo do que não fazer.
Como mostrado ao longo da pesquisa, O conto da aia é, em suma,
um romance distópico crítico a alienação religiosa e ao conservadoris-
mo extremista. Portanto, tendo em vista a história ser narrada por uma
protagonista inserida na classe mais reprimida nesse sistema, as infor-
mações sobre tecnologias usufruídas por seus superiores podem ser li-
mitadas ao que ela teve ou tem conhecimento.
Em tal contexto, a tecnologia é suprimida para se retornar a um
estado de purificação e simplicidade. A República de Gilead surge como
solução principalmente para as crises de infertilidade, pois poucos
bebês nascem e dessa parcela, grande parte tem problemas de saúde
ou deficiências físicas e não sobrevive por muito tempo. Desse modo,
os aparatos tecnológicos são vistos como agravantes de tal situação,
além de serem desnecessários para uma existência sacra e normal,
afastando a população de Deus e dos propósitos cristãos.
Ademais, a personagem Offred cita diversas tecnologias ao longo
da história, tanto dos tempos anteriores a Gilead (que tinham aparatos
bastante inovadores), quanto do momento em que a trama se desen-
volve. A teonomia de tal sociedade prega o afastamento de informa-
ções especialmente para as mulheres, que não podem ler e devem
se comunicar de forma breve em determinadas situações – supermer-
cados, hospitais, postos de controle.
Todavia, são apresentados aparelhos como Compudoc,
Compuconta, Compufala, similares aos atuais computadores
com softwares de leitura e edição de documentos diversos, aos bancos
financeiros e contas bancárias com acesso virtual e aos mecanismos

297
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

de escrita e comando por voz. Acrescenta-se que hoje todos estão pre-
sentes em meios de comunicação e de acesso à informação modernos
e compactos, como os smartphones.
Tais nomenclaturas causam estranhamento no contexto atual
de leitura, visto seu caráter literal, pois descrevem quase exatamen-
te o que representam, além de serem composições incomuns e com
pronúncia pouco fluida. Mas essa é uma das características mais mar-
cantes da Ficção Distópica, conforme a pesquisadora María Paulina
Moreno Trujillo (2016, p. 202, tradução nossa) afirma:

Dentro da linguagem característica da distopia crítica


feminista, é necessário evidenciar o uso da catacrese
como figura recorrente, já que ao estar no meio de uma
realidade diferente, a relação da linguagem com seu
significante se desvia de maneira natural e aparecem
palavras novas ou significados cruzados que implicam
sentidos ulteriores [...]. 7

É preciso destacar que apesar de a autora se referir ao cenário


fictício quando denomina tal fenômeno de catacrese, as palavras ci-
tadas anteriormente são, na verdade, neologismos, pois só dentro
da história elas têm o objetivo de substituir outros nomes que foram
abolidos, mas isso não ocorre para o leitor. A autora aparentemente
abarca a obra e a leitura desta como atestações suficientes de validar
tal afirmativa, mas não se pode tomar isto como verdade absoluta.
Isto posto, os neologismos de O conto da aia são a atualização
ou mudança da linguagem, utilizados para marcar a transição de um
passado de denominações banais e obsoletas para um presente e fu-
turo inovador, com tecnologias avançadas, novas regras, novos modos
de viver. Em geral, esses títulos servem para dar novo sentido a coisas

7 Dentro del lenguaje característico de la distopia crítica feminista es necesario evidenciar el


uso de la catacresis como figura recurrente ya que al estar en medio de una realidad diferente
a la propia la relación del lenguaje con su significante se desvía de manera natural y apare-
cen palabras nuevas o significados cruzados que implican sentidos ulteriores [...] (MORENO
TRUJILLO, 2016, p. 2).

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

já existentes ou para identificar produtos, serviços e instituições origi-


nais, resultantes do novo regime.
No Capítulo Quatro de O conto da aia, a protagonista narra sua ida
às compras em Gilead. Para circular na cidade, é preciso passar por pos-
tos de controle altamente vigiados e com soldados armados, que confir-
mam a identidade dos transeuntes através de Compucheque, um apa-
relho de checagem de credenciais. Offred cita também, no Capítulo
Onze, um Compudoc, quando está na fila de espera para uma consulta
ginecológica. Tal aparelho funciona como uma base de dados sobre
as pacientes, para verificar sua identidade, histórico médico e informa-
ções necessárias para as mulheres serem examinadas.
Além disso, a personagem principal rememora, no Capítulo
Vinte e Oito, um momento transcorrido pouco antes de a República
de Gilead ser instaurada, quando fornecia seu Compunúmero ao re-
alizar alguma compra (um possível número de identidade, particular
de cada cidadão). A respeito dessas três ocorrências, nota-se a referen-
ciação aos sistemas virtuais de armazenamento de informações sobre
cada indivíduo, através dos quais se atesta ou não a veracidade de do-
cumentos e a existência das pessoas. Mesmo rejeitando a modernida-
de, o governo gileadiano não abre mão de tais serviços para controlar
a população, impedir fraudes e fugas.
Porém, nessa nova realidade todos perdem suas antigas identifi-
cações e recebem novos nomes (no caso das Aias, são nomeadas como
posses de seus Comandantes). As relações sociais são reorganizadas
para que não haja mais vínculos familiares entre os pecadores, seus
laços de sangue e de amizade são rompidos, seus históricos, apagados.
Todos cumprem funções automáticas para servir às vontades divinas,
e mesmo supostamente buscando o reconhecimento de Deus, assu-
mem que são seus meros instrumentos.
Dessa forma, nota-se que apesar de os exemplos anteriores
não figurarem tecnologias tão evoluídas em comparação ao que é co-
mum nas ficções científicas, ainda é possível perceber avanços e certas
“previsões”, o que contrasta com o modelo autoritário e conservador

299
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

de governo das sociedades distópicas. Isso demonstra que ao invés


de um alcance ilimitado de possibilidades e liberdades, a tecnolo-
gia pode se tornar, na realidade e no mundo fictício, um mecanismo
de controle e limitação, usado a favor apenas dos mais poderosos.
No Capítulo Cinco, Offred está fazendo compras e mencio-
na um aparelho chamado Compubite, aparentemente uma caixa
registradora. Não se usa mais dinheiro para transações cotidianas.
Compucontas, Compubancos e Compucards da época pré-Gilead
foram zerados e extintos, ao que parece, e tudo passa a ser compra-
do com vales, os quais são ilustrados por desenhos das mercadorias
– não é permitido ler palavras.
Mesmo antes de o governo teocrático de O conto da aia ter sido
instalado, a relação com o dinheiro era semelhante à praticada na atu-
alidade, como aponta a protagonista: “[...] Era considerado uma coi-
sa normal [mulheres com emprego]. Agora é como lembrar dinheiro
em papel-moeda, quando eles ainda tinham isso [...]. Naquele tempo
já era obsoleto, não se podia comprar nada com ele” (ATWOOD, 2017,
p. 207). Ela continua explicando que aos poucos as pessoas trocaram
o papel pelo cartão de crédito/débito, e assim todo o dinheiro que ti-
nham ficava com os bancos.
Essa conjuntura não poderia ser mais próxima dos serviços atu-
ais de transação por aproximação ou por transferência instantânea,
e ilustra uma ameaça aos limites de tanta virtualização da realidade.
O que é concreto e tangível pertence aos indivíduos pois, em tese, está
sob seu domínio e proteção física, mas as posses imateriais e abstratas
são realmente de seu controle?

Imagino que tenha sido assim que puderam fazê-


-lo, da maneira como fizeram, tudo ao mesmo tempo
de uma só tacada, sem que ninguém soubesse com an-
tecedência. Se ainda tivesse sido dinheiro vivo, que se
pudesse ter em mãos, teria sido mais difícil (ATWOOD,
2017, p. 208).

300
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

O que ocorre em O conto da aia está mais para um retrocesso


das relações tecnológicas do que um exemplo do progresso exces-
sivo destas. No enredo, o passado representa o ápice do desenvol-
vimento da modernidade, ou algo próximo a isso, enquanto o pre-
sente em Gilead advém não exatamente das consequências de uma
tecnologia avançada, mas se utiliza de tais possibilidades para atingir
um estado imaculado. Outrossim, mantém as ferramentas que convêm
aos dominadores.
Sobre o monitoramento da população, a protagonista não faz
menção a câmeras dentro e fora dos estabelecimentos e residências.
Se existem ou não, esta não sabe, mas justifica que para tal controle
a própria população serve de testemunha, responsabilidade que recai
principalmente sobre as Aias, as quais devem andar em pares para vi-
giar umas às outras (ATWOOD, 2017, p. 29). Contudo, as Cerimônias
públicas são gravadas e televisionadas, em especial as de julgamen-
to e homicídio dos transgressores da lei. Editadas, as cenas advertem
o público a não cometer crimes, ou serão igualmente punidos.
Disto, entende-se como a situação geral da República de Gilead,
cujas tecnologias são suprimidas apenas ao necessário, representa
a falta de controle dos sujeitos diante do que não é material. Afinal,
pessoas de grande poder político e econômico detêm os dados da maio-
ria dos cidadãos, e isto não é exclusivo da Ficção Distópica ou Ficção
Científica.
Conforme apresentado por Luiz Adriano Borges, em seu estudo
Distopias e filosofia da tecnologia (2021):

Em muitos casos, as ficções científicas adiantaram mui-


tas das preocupações e implicações éticas que os di-
versos ramos da filosofia iriam debater posteriormen-
te. Atuando como experimentos mentais, as distopias
tentaram demonstrar de maneira ficcional, como hipó-
tese, como se daria a aplicação, na vida real, de certas
ideias. O objetivo é ampliar o conhecimento humano
através da reflexão (BORGES, 2021, p. 63).

301
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Vê-se que todos os pontos de discussão desse gênero literário


geral e de suas ramificações têm objetivos científicos, investigativos
e contribuintes para uma formação argumentativa e reflexiva. Nesse
sentido, Atwood lança mão do poder de reflexão que as distopias são ca-
pazes de proporcionar e incita o leitor a fazer um passeio nas concep-
ções presentes e futuras do papel da tecnologia na vida humana.

Considerações finais

A partir desta análise, pode-se concluir, afinal, que O conto da aia


– precisamente a autora Margaret Atwood – não inventou nenhum
aparelho que não existia e nem arriscou prever os que viriam e virão
a existir, mas modernizou as tecnologias presentes na época, com mo-
dificações que eram calculadas para acontecer. Presume-se que para
os leitores do século XX tais previsões parecessem revolucionárias, an-
tes e depois do desenvolvimento das tecnologias citadas.
Hoje, os nomes das tecnologias da República de Gilead causam es-
tranhamento, por tratarem de objetos que fazem parte da rotina da so-
ciedade do século XXI e possuem qualificações diferentes e modernas.
Para quem vivenciou o fim do século XX, o novo milênio era aguardado
com expectativa de muitas transformações, e de fato, as proporcionou.
Mas, para os nascidos após 2000, as projeções de épocas anteriores
sobre a contemporaneidade normalmente são antiquadas.
É fundamental destacar o momento contemporâneo de estreito
contato da sociedade com a tecnologia, a qual tem sido extremamente
útil diante da pandemia global de Covid-19. Testemunha-se o proces-
so de inserção e utilização massiva da tecnologia inteligente, através
de smartphones, smartTvs, casas inteligentes; também a virtualização
do comércio, de prestações de serviço e de demais comunidades, den-
tre infinitas possibilidades causadas pela tecnologia.

302
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Contudo, é paralela a preocupação sobre os limites de tal con-


trole, permissividade e das possibilidades da tecnologia na vida coti-
diana. Os medos que originaram as Distopias prevalecem com o passar
dos anos, mas ter a vida controlada por máquinas, sistemas virtuais,
empresas e pessoas de alto poder já é uma prática naturalizada e real.
A análise aqui realizada demonstra que as representações da tec-
nologia em O conto da aia (1985) são condizentes com os avanços
da contemporaneidade, ainda que não sejam pretenciosamente pro-
féticas nem extrapolem nas idealizações. Destaca-se a permanência
da visão de insegurança quanto aos progressos tecnológicos, do medo
do que podem se tornar – que é vivenciado enquanto se usufrui de tais
ferramentas –, e das reflexões sobre os limites da privacidade e do
controle.

Referências

ATWOOD, Margaret. O conto da Aia. Trad. Ana Deiró. Rio de Janeiro: Rocco,
2017.
BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Utopia, distopia e história. Revista Morus
– Utopia e Renascimento, n. 2, p. 4-10, 2005.
BORGES, Luiz Adriano Gonçalves. Distopias e filosofia da tecnologia.
Artefilosofia, v. 16, n. 30, p. 47-66, 2021.
CLAEYS, Gregory. The origins of dystopia: Wells, Huxley and Orwell. In:
The Cambridge companion to utopian literature. Cambridge: Cambridge
University Press, 2010.
HILÁRIO, Leomir Cardoso. Teoria crítica e literatura: a distopia como
ferramenta de análise radical da modernidade. Anuário de literatura:
Publicação do Curso de Pós-Graduação em Letras, Literatura Brasileira e
Teoria Literária, v. 18, n. 2, p. 201-215, 2013.
ISER, Wolfgang. O jogo do texto. In: LIMA, L. C. A literatura e o leitor: textos
de estética da recepção. São Paulo: Paz e Terra, 2011. p. 105-118.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

LANGER, Jessica. The Shapes of Dystopia: Boundaries, Hybridity and the


Politics of Power. In: HOAGLAND, Ericka; SARWAL, Reema. Science Fiction,
Imperialism and the Third World. Londres: McFarland & Company, 2010.
MONTI, Luciano. Nuove generazioni e tecnologia tra utopia e distopia. Teoria
e Critica della Regolazione Sociale/Theory and Criticism of Social
Regulation, v. 1, n. 18, p. 41-54, 2019.
MORENO TRUJILLO, María Paulina. El cuento de la criada, los símbolos y las
mujeres en la narración distópica. Escritos, v. 24, n. 52, p. 185-211, ago. 2016.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-15

O ESPAÇO DEMARCADO E A EXISTÊNCIA


DESVALIDA EM LITANIA DA VELHA,
DE ARLETE NOGUEIRA DA CRUZ

Mairylande Nascimento Cavalcante1


Cristiane Navarrete Tolomei2

Preliminares: Litania e a autora de Cantanhede

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.


Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito.
(...)
É a vida.
O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero…
Manuel Bandeira

A Arte da Palavra é a materialização do apolíneo a ser lembrado


ou da ferida a ser despertada. O fluxo sequencial das temáticas abor-
dadas nas literaturas corrobora para traçar novos conceitos, traçar
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Bacabal (PPGLB) da Universidade
Federal do Maranhão (UFMA). Bolsista FAPEMA. E-mail: mairylande.nc@discente.ufma.br
2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras Bacabal (PPGLB) da Universidade Federal
do Maranhão (UFMA). E-mail: cristiane.tolomei@ufma.br

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

uma história perceptiva do imaginário até o comum realista, dessa


forma, levando-nos para possíveis simbologias históricas. Mediante
a isso, salientamos que o poema narrativo e verbo-visual Litania
da Velha (2002), da autora maranhense Arlete Nogueira da Cruz, se re-
vela de inestimável importância para o campo literário e para os múl-
tiplos saberes que o reverberam, uma vez que a escrita da autora não se
faz alheia aos acontecimentos sociais de São Luís, o seu texto não é
somente o preceptor de uma conversão e compreensão de atos, é so-
bretudo uma tarefa dialógica entre a suspensão dos limites do fictí-
cio e da inesgotável experiência humana. Em vista disso, caucionamos
que o fictício em Litania da Velha é uma realidade que se retroalimen-
ta de si mesmo, é um imaginário significante que vigora na realidade
que atravessa os processos históricos que circundam a cidade e a exis-
tência humana.
Com base nisso, afirmamos que ser o “poeta sórdido”, como diz a
epígrafe, é retirar da realidade a tradução da arte em seus liames po-
éticos e antropológicos, assumindo um papel essencial na transgres-
são de formas privilegiadas da/e/na literatura. A partir disso, podemos
afirmar que a escrita arletiana suscita a simultaneidade da angústia
e da experiência humana. Seguindo essa perspectiva, recorremos
às palavras de Manoel Bandeira que reforçam a ideia do poeta sórdido,
este que ecoa na persona de Arlete Nogueira da Cruz: “poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida”.
Nessa esteira de relações, a liquefez literária presente na escrita
de Arlete Nogueira é constantemente reinventada–nos transportan-
do para um ato poético, uma linguagem com passado, a qual registra
os mundos de experiências e congrega à cultura traços que transcen-
dem os sentimentos complexos e ambivalentes na textualidade e na
história. Diante disso, nos é possibilitado arguir a tênue relação entre
literatura e resistência nos protestos poéticos da autora de Cantanhede.
Nesse ínterim, salientamos que um termo chave para este traba-
lho é a palavra re-existência – resistir para escrever, sobreviver, pensar,
para não se perder as narrativas holísticas, o espaço, a memória e as
experiências humanas. Feito este possível de visualizar em Arlete e no

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

seu ofício de escrever, assim como nos lembra Ricardo Leão em Sal
e Sol (2006).

Arlete diz o que pensa sem, entretanto, perder a na-


tural elegância, o que torna o seu depoimento ainda
mais nodal [...] Arlete deixou um importante legado
e uma inegável contribuição para a feição da cultura
maranhense no século XX, que sem ela seria indubi-
tavelmente mais pobre. Devido a isso, suas importan-
tes críticas, resultados da indignação, são incisivas
e fortes, apontando os nossos descasos, o deboche
que é comum em nossa terra, destinado em grande
parte aos que nela trabalham para o seu engrandeci-
mento (LEÃO, 2006, p.16).

A contribuição de Nogueira para a cultura maranhense a litera-


tura maranhense é imensurável, haja vista que a sua postura diante
das agruras do ser, da cultura em perigo, do passado político vergo-
nhoso e da memória ameaçada, são elementos que se reforçam entre
si para evitar que “a lembrança de pessoas, objetos e lugares seja des-
truída pelo apagamento da memória coletiva, para que algo dos ho-
mens que nos trouxeram ao momento histórico presente permaneça
e seja, afinal, conhecido e respeitado (LEÃO, 2006, p. 19).
A escrita além de externar e cadenciar uma prosa ou poesia,
é um calor sufocante que contempla o desnorteante “estar no mun-
do”, e, em determinados momentos, provoca alegria ou uma dor agu-
da, uma memória que seja ou não sinônimo de nostalgia – como pode
ser observado nas obras Litania da Velha (2002) e A parede (1998).
Como dado a epígrafe acima, o poeta tem a capacidade de tra-
zer a sujeira da vida, odores desagradáveis, a inquietude a nos afetar.
A exemplo disso, temos o medo, o clamor e a dor que se pode sentir
com a tensão incutida com os personagens de uma obra – a exemplo
disso, o descaso da saúde pública para atender uma prostituta com a
violência marcada em seu corpo em Compasso Binário (1970); a memó-
ria derruída e a Velha pedinte desintegrada de seu corpo atravessado

307
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

pelas desigualdades vistas na Litania de Arlete; A angústia, a fragmen-


tação e o deslocamento existencial de Cinzía em A parede (1998). Todas
essas obras esboçam vozes que minam com autonomia a resistência–a
resistência humana e espacial que se faz na denúncia, pois a cidade
de São Luís é uma personagem amálgama.
Dessa forma, evidenciamos que a escrita arletiana traz lampe-
jos da condição humana em sua insignificância – não como percur-
so comum a todos, mas como artérias hierarquizadas e classificadas.
Quanto a cidade, ela é colocada na falência humana – o corpo não se
manifesta sem o espaço, e a cidade personificada se conjuga à existên-
cia decadente das personagens, em especial a figura da Velha, objeto
deste trabalho.
Furtado (2002) aponta que a cidade em Litania da Velha sofre
uma dupla morte: a física e a historicizada. O espaço torna-se homó-
logo, e suas tramas são reclamadas em consonância com as da Velha.
Nesse sentido, o poema é um empreendimento que dá voz ao
corpo negligenciado, silenciado e roubado dos direitos básicos de so-
brevivência. Pensar o corpo da velha mendiga é pensar o corpo su-
balterno, o corpo da mulher que em seu prazo de “validade” perdeu
o valor diante da sociedade que consome e mercantiliza a vida. Cruz
inscreve no corpo feminino questões políticas e subjacentes ao corpo
envelhecido, “o corpo humilhado expõe o segredo mais íntimo à glória
fugaz” (CRUZ, 2002, p.45).
Diante de tudo isso, inferimos que as representações dispos-
tas na obra disponibilizam de mecanismos que nos permitem refletir
e livrar a nossa própria existência do esquecimento, tanto memorial
quanto social. Assim como também nos levam a (re) pensar as causas
e consequências do dispêndio causado sobre o corpo-território, de-
nunciando o não ter–não ter lugar, pertencimento, alimento e memó-
ria sobre contorno da vida, não ter direitos básicos em seu tempo para
sobreviver. Portanto, a poeticidade de Litania da Velha reclama quando
na mesma intensidade liberta a penúria humana da invisibilidade.

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Quanto à sistematização deste artigo, ele se divide em duas par-


tes, cuja primeira enseja compreender como o espaço dividido pelo
sistema-mundo-capitalista moderno/colonial que influencia na exis-
tência do sujeito poética e na representação da cidade em Litania
da Velha. Enquanto a segunda seção busca dar continuidade à discus-
são anterior evidenciando as entrelinhas do espaço e do “eu” diante
da transformação espacial.
Destarte, salientamos que o poema Litania da Velha, faz menção
a dois epicentros poéticos: a Velha pedinte e a Velha cidade. O reco-
nhecimento de ambas no mundo é negligenciado pela ruína de suas
existências. A decadência humana é evidenciada pela invisibilidade
da velha, a cidade e a velha são silenciadas por serem conduzidas para
o (a) lugar, ou melhor, o lugar do lucro e do consumo onde se esvai
a memória e a vida do subalterno.

1 Espaço, disputa e desumanização

O olhar conformado desconfia do tempo que de-


nuncia a tragédia.
A. N. C.

O espaço vem sendo mastigado desde 1500, os seres humanos


são devorados cotidianamente pelas mãos que ditam os seus passos.
O que lhes restam? Engolir a seco a dor. O que lhes é atribuído de re-
compensa? A força bruta que corrói suas veias. Nas palavras de Eduardo
Galeno (2000) não tivemos “nem herança nem bonança“, não temos
nem se quer a voz que ficou entalada nas entrelinhas da história ofi-
cial. A colonização nos deixou em quantidade e consciência desfavorá-
vel nessa guerra que se perdura na América Latina, somos colonizados
em corpo e alma, em território e em ação, a energia que despachamos
no intento de falar às vezes é pulverizada perante a voz que, eloquen-
temente, nos grita, atalha e convence que não é o caminho a ser segui-
do, principalmente quando somos compenetrados pela modernidade/
colonial e pelo sistema-mundo moderno/colonial.

309
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Diante desse imbricamento histórico e social sobre o espa-


ço, recorremos ao geografo Milton Santos (1979) para conceituali-
zarmos essa categoria a fim de situá-la no campo analítico enquan-
to um produto de sociabilidade que reproduz práticas excludentes.
Isto posto, o espaço é “social, histórico, político e econômico”, dado
que nele podemos observar mais que um delinear geográfico, uma vez
que emulamos corriqueiramente ações que se conjugam as diver-
sas espacialidades que estamos inseridos cotidianamente, haja vis-
ta que constantemente andarilhamos por lugares que são povoados
por diferenças segregacionistas.
Nesse ínterim, quando estamos imersos em um espaço/territó-
rio também somos alocados em diversas esferas da sociedade, por isso
nos é permitido inferir que o espaço se transforma e é transformado
de acordo com as práticas humanas, tornando-o propício para disputas
socioeconômicas, políticas e culturais.
Na literatura as diferenças socioeconômicas engendram diferen-
ças espaciais e sociais, as quais são levadas a cabo quando o desejo
de se hierarquizar a vida humana é latente combustível, como pode
ser observado na favela descrita em Quarto de Despejo, de Carolina
Maria de Jesus.
A ideia que temos de humanidade (ocidental) invalida as par-
ticularidades dos sujeitos que são periféricos a ela, logo seu espaço
e corpo são excluídos do eixo do divino progresso. Em O espaço dividido
(2005) Milton Santos afirma que tanto a modernização quanto a glo-
balização são processos seletivos, assim a exclusão dos espaços me-
diante a esses dois fenômenos se deve ao fato de que eles não repre-
sentam grande valia para as instituições capitalistas e estatais. Sendo
assim, um corpo-território só passa a ter visibilidade quando desperta
interesse econômico. Posto isto, é possível inferirmos que negligên-
cia sobre as corporalidades do território e do ser podem ser previstas
e inevitáveis.
Com base nisso, a divisão do espaço em Litania da Velha expõe
a situação de vulnerabilidade da personagem e da urbe no momento

310
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

em que “a rua se reserva precária aos passos vacilantes, entre lem-


branças“ (CRUZ, 2002, p. 20). O caminhar da Velha é encadeado às ruas
da cidade decadente, a precariedade do espaço mostra-se ambígua
à sua representatividade histórica, visto que o espaço ficcional do poe-
ma corresponde ao Centro Histórico de São Luís, o qual se encaminha
para o esquecimento.
No poema é evidenciado a miséria que se encontra os casarões
situados na ilha. Como foi explicitado anteriormente, o olhar zeloso
pelo espaço é seletivo, por isso a cidade sofre com seu ácido abandono,
excluída do direito aos cuidados que deveriam partir de políticas pú-
blicas, no entanto, observam o sobrado que irrompe “na complacência
de quem lhe espreita essa queda” (CRUZ, 2002, p. 32).
Nelly Novaes Coelho em Resgate da “presença perdida” (CRUZ,
2002 apud NOVAES, 2002, p. 86) comenta que Litania da Velha
nos transporta para este lugar de dupla destruição (do corpo e da cida-
de). O desbaratamento da “célula mater”, como é chamado por Coelho,
é uma realidade invisível “de tão vista”.
A naturalização da degradação do espaço aos olhos dos sujeitos
que por ele percorrem adensa e permite que a indiferença, a injustiça
e a “complacência” se perpetue sobre o corpo-cidade. Conforme José
Aparício da Silva nos mostra

“a expressão corpo tanto à velha quanto aos monu-


mentos históricos que a circundam, que se estreitam
e se espalham em idêntica degradação [...] provocam
na velha um certo alento ao saber que ambas, ela e a ci-
dade, se encontram em semelhante condição: feridas
pelo abandono” (CRUZ, apud, SILVA, 2002, p. 97).

O que pode ser percebido ainda em A parede (1998, p. 101),


em que Arlete Nogueira deixa clarividente a demarcação citadina.

São Luís é praticamente isso: o centro antigo, com mais


de trezentos e cinquenta anos, e esse corredor extenso

311
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

ladeado de casas, com algumas ruas transversais e pa-


ralelas que formam bairros pobre (Areal, Jordoa, João
Paulo e Anil) até se abrir como uma estrela ou uma pata,
muito adiante (já no anil), para São José de Ribamar,
Olho D´água e o interior maranhense”.

A cidade que antes era uma se dividiu em duas (a cidade Velha


e a cidade Nova). O espaço histórico é visto como o velho, enquan-
to o novo é representado pela transformação da paisagem em decor-
rência do crescimento vertical da área urbana, segregando os corpos
que habitam esses espaços.
As palavras do poema findam a existência da caminhante e da
arquitetura da cidade, ambas com marcas da temporalidade que se in-
teiriza sem intervalo e da ambição que omite a decadência de suas ma-
terialidades, assim exibindo a fragilidade e o descompasso impiedoso
da humanidade que fora perdida, pois “o corpo se desenha à frente
como uma branda forma de consolo” (CRUZ, 2002, p. 25), em que “a la-
deira se acrescenta difícil ao seu cansaço e seu fôlego“ (CRUZ, 2002, p.
30) e as “antigas alcovas se abrem na incontinência dos restos” (CRUZ,
2002, p. 25). Esses versos emblemáticos patenteiam a vida e a cidade
no inferno existencial, nos indicando não ter término.
Enfim, o que queremos dizer com tudo isso, é que o regalo de
“fazer parte da terra” se transformou em mercado, consumo, disputa
e revoltas políticas capitalizadas. As configurações espaciais transitam
na ambição que derrama o sangue de seus habitantes, que na repre-
sentação do eu poético os resultados da exploração e divisão espacial
são previstos quando a “a velha projeta a agonia do coração combali-
do” (CRUZ, 2002, p.33), fragilizado com todas as injustiças que perfu-
ram o seu corpo.
Deste modo, a capitalização da vida e do espaço exclui desconsi-
derando as vivências do “ser” colocando a memória. O deslocamento
territorial nos encaminha para uma existência anulada.
A nossa constituição enquanto um corpo vivo é invalidado, pois
a busca para manter o que se entende por corpos de elegíveis experiên-

312
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

cias a serem compartilhadas se sobrepõe aos corpos subalternos, estes


localizados no lado “velho” da linha abissal. Nesse ínterim, a cidade
compartilha da mesma morte do “eu” – a morte dos espíritos menos
desfavorecidos e a morte das figuratizações do espaço ludovicense.

2 “Os sobradões sem telhados são armadilhas de sorrateiro inte-


resse”: as entrelinhas do espaço e do sujeito

Gaston Bachelard em sua obra A poética do espaço (1993), sen-


sibiliza os limites geográficos e os objetos que são espapaçados nele
a partir da fenomenologia da imagem e das nuanças que estrutura-
ram as dialéticas da vida em confluência com o sentimento de habitar.
Ele afirma que todos nós fazemos parte de um lugar, onde são desen-
volvidas emoções difusas, mas que de alguma maneira levam ao nosso
enraizamento “num canto no mundo”.
Ao sublinharmos tais palavras, usamos o pensamento do autor
para reiterar a homologia do espaço ao ser: “a casa remodela o ho-
mem” . Diante disso, ampliamos o pensamento do filósofo sobre o es-
paço casa, lugar de emersão de lembranças e contingências subjetivas,
para alcançarmos a figuratização da cidade, esta que vem sofrendo
com a celeridade das multiplicidades espaciais e temporais.
Com efeito, salientamos que o lugar do sujeito no mundo é ar-
raigado por todas as veias que fazem pulsar a sua vida, o que compre-
enderá os cosmos de sua realidade visível e ao mesmo tempo intan-
gível, mas em sua concórdia, concreta. Ao longo de nossa existência,
sonhamos e idealizamos vários lugares, aqueles que acreditamos
que poderia ser o melhor para findarmos permanências. Entretanto,
alguns espaços não são avivados à nossa consciência, porque para
emitirmos imagens sobre algumas espacializações é necessário que vi-
vamos as imagens que se apresentam. Pois “quando a imagem é nova,
o mundo é novo” (BACHELARD, 1993, p. 65), e na contemporaneidade
os mundos se multiplicam constantemente, nos encaminhando para
realidades plásticas e líquidas, que desvalorizam o reconhecimento
de nossas narrativas.

313
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Nesse ínterim, a vida que guardava tesouros memoriais se dis-


solve nos núcleos coronários que unem o ser ao seu espaço. Não neces-
sitamos de preâmbulos para identificarmos as transformações nas fi-
guratizações espaciais, a memória ao se manifestar nos diz o que é,
sem precisar nos dizer o que foi um dia. Dessa maneira, o sentimen-
to de afetividade vai se esvaindo, sendo substituído por conexões
sem profundidade.
A incipiência da frivolidade para com os múltiplos espaços, sub-
jetivos e/ou físicos, é condicionada por uma projeção de cidade e cor-
po-espaço que são incompatíveis às individualidades únicas de cada
território. Isso se configura no que podemos chamar de “globalitaris-
mo” – o processo de globalização que nos faz reimaginar nosso lugar
no mundo e nos coloca em uma realidade irreconhecível ou rendida
a celeridade temporal e ao esquecimento, o que ocasiona o desloca-
mento de existenciais. O que pode ser observada no poema Litania
da Velha (2002).
Arlete Nogueira em Litania da Velha, reivindica a cidade perdida
– perdida no “desvão da memória”, ou no espaço que escoa no esgoto
suas louvações desiludidas. Os labirintos da Ilha tornaram-se o com-
partilhamento da ousada dependência dos projetos globais que se im-
põem sobre o local. A cidade se acinzenta, reclamando a luz dos dias
que se aparataram dos seus dois corpos condensados: a Velha pedinte,
que canta sua ladainha, e a cidade que desmorona na acidez gástrica
daqueles que engolem seus escombros com o brio no olhar.
A cidade em seus desarranjos é a sombra da desumanização,
da hierarquização de raça, classe e gênero. São Luís se conflui ao cor-
po de uma mulher exausta que ao caminhar em passos curtos observa
a angústia e a dor do espaço devorado pelo poder econômico e pelo
descaso estatal e das próprias pessoas que se localização nesse espaço.
Com efeito, é importante ressaltarmos que o poema Litania
da Velha, em sua 4ªedição publicada em 2002, é composto por um
conjunto de fotografias que traduzem de modo particular os passos
combalidos da Velha pedinte e da cidade em desmoronamento histó-
rico e memorialístico, o que nos permite analisá-los em conjunto, pois
conforme Alfredo Bosi (2009, p. 19):

314
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

A experiência da imagem, anterior à da palavra,


vem enraizar-se no corpo. A imagem é afim à sensação
visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol,
do mar, do céu. O perfil, a dimensão, a cor. A imagem
é um modo da presença que tende a suprir o contato
direto e a manter juntas, a realidade do objeto em si
e a sua existência em nós. O ato de ver apanha não só
a aparência da coisa, mas alguma relação entre nós e
essa aparência: primeiro e fatal intervalo.

A imagem de São Luís que vem a se entranhar no leitor não ne-


cessita de uma memória prévia sobre o conjunto arquitetônico da ci-
dade, visto que, a experiência que é despachada sobre ela já nos aponta
sobre o que a velha cidade deixou de ser. Observemos abaixo o verso
e a imagem retirada do poema que vem a complementar a construção
poética da obra.

Fotografia 1– imagem do poema – verso 4


“Os sobradões sem telhados são armadilhas de sorrateiro interesse”.

Fonte: Cruz (2002, p. 59-60).

315
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

O “sorrateiro interesse“ é a fenda e a própria ferida da moderni-


dade/colonial. A transmutação da arquitetura e a negligência dos es-
paços que narram a historicidade das experiências humanas, extermi-
nam o abrigo do “eu”. As forças de integralização retiram o privilégio
do corpo de lembrar, a alma perde seu abrigo em prol da dinâmica ca-
pitalista, o que nos faz retornar a Bachelard, “a casa remodela o ho-
mem”. O ser humano, assim, é modelado de acordo com a hegemonia
de poder dominante.
A cidade em Litania da Velha é castigada pela ambição humana,
os sobradões, como visto na imagem são esquecidos. O espaço é hie-
rarquizado de acordo com os valores que são postos sobre ele – caso
seja de grande valia para as instituições capitalistas, logo ele será
atendido com maior atenção. No entanto, a atenção também é voltada
para o extrativismo, visto que os sobradões são monumentos históri-
cos, espaços historicizados.
O espaço é socialmente dividido, assim as cidades na contempo-
raneidade sofrem com a contiguidade da expansão de verticalidades.
Segundo Milton Santos (2005), a economia que se localiza na intri-
cada na teia de ralações entre território e sociedade, faz com que o
espaço seja o ambiente de desigualdades socioeconômicas e de classe.
Não são apenas os corpos que são classificados, a cidade é entretecida
nesta mesma divisão. Vejamos no seguinte verso: “A rua se reserva pre-
cária aos passos vacilantes, entre lembranças“ (CRUZ, 2002, p. 20).
A precariedade da rua é uma extensão e complementariedade
dos passos da Velha. Segundo Osman Lins (1976), essa confluência
do espaço com a trajetória do ser faz menção a elementos exteriores
ao sujeito, mas que os caracteriza. Sendo assim, a precariedade é com-
partilhada entre a cidade e a velha mendiga. Ambas falecem na lem-
brança que se esvai em suas minúcias orgânicas, como asseverou
Candau (2012), um sujeito sem lembrança se perde de sua identidade.
“A cidade é uma ilha que se desfaz em salitre” (CRUZ, 2002, p.67),
esse excerto marca a segregação social em decorrência da moderni-
dade/colonial, a qual é indiferente a condição humana e a interação

316
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

do corpo com a natureza ontológica em seu entorno. O espaço cita-


dino passa pela segregação do apartheid social. Assim como postula
Boaventura de Sousa Santos, tal segregação determina quem são os
excluídos a partir da topografia urbana. O “salitre“ é corrosivo, a cidade
ao estar implicada nele torna-se pouco a pouco resíduos das ações pra-
ticadas pelas mãos que gritam o progresso, mas que também silenciam.
O corpo da Velha e a cidade se estreitam na mesma condição.
Excluídos para dá vazão ao poder do capitalismo moderno/colonial sus-
tentado pelo sistema-mundo. O abandono da cidade e da Velha pedin-
te implicam na classificação epistêmica do espaço e de seu habitante.
Essa mesma condição pode ser observada durante a ostensi-
va colonização, período em que os sujeitos que habitavam as zonas
do não-humano foram forçados a sair de suas terras, de seus rizomas
e do seu lugar de identidade. Hoje, diante do projeto da modernida-
de/colonialidade ele possuí o lócus fraturado, o seu ethos fragmenta-
do e desterritorializado pela simultaneidade do tempo-espaço e pelo
sistema-mundo moderno/colonial. Dessa forma, o sujeito é atingindo
pela colonialidade nos pequenos detalhes de seu cotidiano, o que aca-
ba por marcar sua existência como “um ato de qualificação epistêmi-
ca” (BERNADINHO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL,
2020, p.13).
Assim, nos trechos do poema, “o sobrado desaba na complacên-
cia de quem lhe espreita essa queda” (CRUZ, 2002, p. 65) e “a sacola es-
conde improvisos da vida e ganhos equivocados” (CRUZ, 2002, p. 20),
evidencia condições sub-humanas que atingem a dignidade do eu e da
cidade. A velha cidade e velha mendiga revelam sua degradação como
corpos não ocidentais, corpos não humanos. Como María Lugones as-
severa, a dicotomia de humano e não humano só existe hierarquização
imposta pelo ocidente. O que se localiza fora desse prisma é se confi-
gura como o retrato do humano a se curvar com “a piedade“ está que
“é injúria que a velha cata com a gratidão de quem deve” (CRUZ, 2002,
p. 38).

317
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Diante de tudo isso, as palavras do poema findam a existência


do corpo, este que parece estar legado desde a infância à subalternida-
de, “a criança brinca no esgoto que escoa o seu sonho pequeno” (CRUZ,
2002, p. 21). A cidade é a força materna que abriga esse corpo com ter-
nura e penar, pois, no “céu, de medonhas nuvens, se acinzenta para
o barulho e o brilho”. (CRUZ, 2002, p. 41). Por fim, nos apropriamos
das palavras da poeta e professora Sônia Almeida: “Litania da Velha
não é disto ou daquilo: é de tudo o que não foi, de tudo que poderia
ser” (CRUZ, 2002, p. 142). Litania versa sobre o cansaço do corpo e da
cidade, existências que se ausentam na naturalidade da violência de-
ferida contra suas corporeidades.

Considerações Finais

A condenação do sujeito, a opressão e a perda territorial está


presente na prática discursiva e política do sistema-mundo-capitalis-
ta moderno/colonial, e nas desiguais geometrias de poder que asso-
lam a realidade dos subalternizados, do morador de rua, do pedinte,
do mendigo, dos sujeitos periféricos e marginalizados, cujo aos quais
não é destinado o ideário dos direitos humanos como uma prática
dialética entre alteridade e outredade, nem tão pouco considerados,
essenciais e comuns a todos. A manutenção da lógica colonial em tor-
no da vida do sujeito subalterno e do território com práticas racializa-
das, só existe em função da “necessidade” de se hierarquizar a existên-
cia humana.
Na obra Litania da Velha (2002), Arlete Nogueira faz menção
a dois epicentros poéticos: a Velha pedinte e a Velha cidade. O reco-
nhecimento de ambas no mundo é negligenciado pela ruína de suas
existências. A decadência humana é evidenciada pela invisibilidade
da velha, a cidade e a velha são silenciadas por serem conduzidas para
o (a) lugar, ou melhor, o lugar do lucro e do consumo. Dessa forma, elas
são deslocadas simultaneamente pela perda do corpo-espaço-memó-
ria, em virtude da manutenção da lógica colonial, o que desloca o sujei-
to de si mesmo e de seu lugar no mundo. Entretanto, Arlete Nogueira

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LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

em Litania da Velha (2002) viabiliza a emersão do lócus de enunciação


de um sujeito subalterno e do espaço negado: a Velha pedinte, negra
e fora da classe econômica de maior prestígio na sociedade metafori-
za-se no reclame de seu corpo, das ruas e dos monumentos históricos.
Ademais, diante deste breve estudo foi possível inferir que os
sistemas que são mantidos pela lógica da modernidade/colonialida-
de trazem ostensivas consequências para a vida humana e para os es-
paços. Associamos sempre um elemento ao outro, pois acreditamos
que eles se conjugam fortemente na teia de relações que tecem suas
identidades, suas narrativas. E quando o sujeito é deslocado de si mes-
mo e a cidade passa por reparos que desconsideram a sua voz, sua cor-
poreidade, é desconsiderado a existência humana. E uma forma para
driblarmos a perda existencial, memorial e espacial, é tornarmo-nos
conscientes das desvalias ocasionadas pelo estado egóico e mercantil
imposto na epiderme das coisas.

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320
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

https://doi.org/10.29327/5140999.1-16

JOGUEI FORA AS CHAVES DO ARMÁRIO:


MEMÓRIA E IDENTIDADES HOMOAFETIVAS NA
LITERATURA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA

Rubenil da Silva Oliveira (UFMA)1

Introdução

“Sair do armário”, expressão comumente usada para nomear


a atitude de os homoafetivos revelarem a sua orientação sexual, en-
quanto aqueles que não querem ter a sua orientação revelada são cha-
mados de enrustidos. Sair ou ficar aprisionado no armário é uma es-
colha individual, comum, que reflete sobre os espaços de liberdade
e o modo como a prática homoafetiva é encarada na estrutura social,
nas famílias, inclusive muitos deles chegam até a se casar na tenta-
tiva de manterem ocultas a sua orientação sexual. No tocante a essa
atitude, considera-se que o escritor moçambicano Guilherme de Melo
ousou, à medida que saiu da sua terra natal e foi para Portugal, e mais

1 Graduado em Letras – Português/Literatura (UEMA); Graduado em Ciências Humanas –


Sociologia (UFMA); Mestre em Letras – área de concentração Literatura, memória e cultura
(UESPI); Doutor em Letras – área de concentração em Estudos Literários (UFPA). Professor
Adjunto I de Literaturas de Língua Portuguesa (UFMA). Professor permanente do Programa
de Pós-Graduação em Letras de Bacabal (PPGLB). Líder do Grupo de Pesquisa em Literatura,
Negritude e Diversidade (GEPELIND). Vice-líder do Grupo de Pesquisa em Literatura,
Enunciação e Cultura (LECULT). E-mail: rubenoliveira50@hotmail.com/rubenil.oliveira@
ufma.br

321
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

ainda, quando pediu a anulação do casamento heterossexual e assu-


miu a sua homoafetividade.
A literatura como arte transfigurada remete à presença das cate-
gorias memória e identidade na sua constituição, além disso, demons-
tra haver entre a literatura e as sociedades uma interdependência
de fatores ideológicos e materiais. Neste sentido, carregar na memória
as marcas constituintes de uma identidade e transformá-la em ma-
téria literária usando a escrita autobiográfica é contrapor-se à lógica
patriarcalista, permitir que as vozes do silêncio possam ecoar como
se gritos. Este foi o comportamento adotado por Guilherme de Melo
quando publicou o romance A sombra dos dias (1981) e os livros en-
saísticos Ser homossexual em Portugal (1982) e Gayvota: um olhar
(por dentro) sobre a homossexualidade (2002).
Neste artigo pretendeu-se analisar a representação da memó-
ria e identidade homoafetivas na literatura portuguesa contemporâ-
nea. A pesquisa usada quanto ao estudo foi a de natureza bibliográfica
a partir do fichamento da obra literária e dos teóricos que fundamen-
tam a temática. Dos objetos destaca-se o romance A sombra dos dias,
de Guilherme de Melo, no qual o autor trata da homoafetividade
no seio de uma família e Nação quando isto ainda não era possível,
sendo o romance articulado com a discussão do livro teórico A epis-
temologia do armário, de Eve Sedgwick. Ressalta-se que, entende-
-se memória como a lembrança de fatos passados e identidade como
uma marca do sujeito que pode ser modificada por critérios temporais
e subjetivos.
Mesmo que haja correlação entre a orientação sexual do autor
e da personagem protagonista do A sombra dos dias (Guy), não se
pretendeu neste artigo determinar verdades absolutas sobre a autoria,
uma vez que a percepção da escrita de si é tomada com o foco na per-
sonagem. Por outro lado, toma-se o referido romance e autor como
objeto para a contextualização da temática homoafetiva na literatura
em terras lusitanas, Guy traz a liberdade conquistada pelos homoafe-
tivos em terras americanas no pós-Stonewall, sem máscaras ou inter-
ditos. Desse modo, a produção literária de Guilherme de Melo pode

322
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

ser tomada como referência para os estudos da homocultura na litera-


tura portuguesa contemporânea.

1 Uma literatura que não cabe no armário: uma construção


epistemológica

Para tratar da experiência homoafetiva na literatura portuguesa


é preciso considerar a literatura como “uma forma particular, histó-
rica e localizada [...] escritura geral ou arquiescritura, a qual não se
reduz nem à escrita fonética (de tipo ocidental, como os caracteres
gregos e latinos), nem muito menos à fala” (DERRIDA, 2014, p. 16).
Essa acepção não corresponde apenas à literatura que trata da prática
do amor entre pessoas do mesmo gênero, mas à transformação do real,
“como parte de um sistema que a condiciona, a atravessa e a trans-
cende” (BOSI, 2002, p. 9) e percebe a real condição do homem em um
determinado contexto, seja parte da memória coletiva ou individual.
Por isso, diz-se ainda que:

O espaço da literatura não é somente o de uma ficção


instituída, mas também o de uma instituição fictícia,
a qual, em princípio, permite dizer tudo. Dizer tudo é,
sem dúvida, reunir, por meio da tradução, todas as figu-
ras umas nas outras, totalizar formalizando; mas dizer
tudo é também transpor [franchir] os interditos. É li-
berar-se [s’affranchir] – em todos os campos nos quais
a lei pode se impor como lei. A lei da literatura ten-
de, em princípio, a desafiar ou a suspender a lei. Desse
modo, ela permite pensar a essência da lei na experi-
ência do “tudo por dizer”. É uma instituição que tende
a extrapolar [déborder] a instituição (DERRIDA, 2014,
p. 22, itálico, do autor).

Em conformidade com o fragmento, notou-se que a literatu-


ra tem o status de ultrapassar os limites daquilo que se convencio-
nou chamar realidade, uma vez que os efeitos do texto sobre o leitor
possibilitam novas leituras e, por conseguinte, apreensões distintas

323
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

da narrativa. O extrapolamento da realidade contribui para a negação


de uma visão universal para a literatura e, faz evidenciar a ideia de que
há “tantos segmentos literários quantos são as instâncias sociais dife-
renciadas produtoras de cultura, havendo, portanto, para citar alguns
exemplos, uma ‘literatura de mulheres’, outra de gays, uma terceira
de afro-americanos e assim por diante” (SOUZA, 2014, p. 35) como de-
fendido pelos culturalistas.
Ressalta-se que a literatura gay ou homoafetiva só passa a circu-
lar nas academias com o surgimento da abordagem dos estudos cultu-
rais enquanto corrente da crítica da literatura e da literatura de mino-
rias sexuais, porque ela é demarcada por um caráter interdisciplinar.
Também convém ressaltar a diferenciação recorrente entre o que
se chama literatura gay e de literatura homoafetiva, sendo à primei-
ra vista como aquela em que a autoria, o ponto de vista, a temática,
a linguagem e o público são gays. Já a segunda é caracterizada como
aquela em que a autoria não é gay, mas de um autor heterossexual
que apenas trata do universo dos gays (SILVA, 2012). Dito isto, vê-se
que nem a literatura nem o sujeito homoafetivo precisam estar encar-
cerados aos seus armários, uma vez que “a experiência literária se faz
por um trânsito entre as instâncias da invenção, recepção e reinvenção
da experiência originária do escritor, convertida em letra” (DERRIDA,
2014, p. 23).
O pensamento derridiano alude à construção da literatura como
escrita de si, da experiência do sujeito escrevente como presente na es-
crita foucaultiana, um exercício de disciplinamento do corpo, capaz
de diminuir a intensidade da solidão (FOUCAULT, 2014). É nessa pers-
pectiva que se inclui o romance A sombra dos dias (1981), do escritor
de Guilherme de Melo, que tem o tom confessional e se põe contra
a hostilidade heteronormativa, ressignifica as relações homoafetivas
e tira a literatura do armário. Sobre a metáfora do armário, sustenta-se:

A epistemologia do armário não é um tema datado


nem um regime superado de conhecimento. Embora
os eventos de junho de 1969, e posteriores, tenham

324
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

revigorado em muitas pessoas o sentimento de po-


tência, magnetismo e promessa da autorrevelação gay,
o reino do segredo revelado foi escassamente afetado
por Stonewall. De certa maneira, deu-se exatamen-
te o oposto. Para as antenas finas da atenção pública,
o frescor de cada drama de revelação gay (especial-
mente involuntária) parece algo ainda mais acentua-
do em surpresa e prazer, ao invés de envelhecido, pela
atmosfera cada vez mais intensa das articulações pú-
blicas do (e sobre o) amor que é famoso por não ousar
dizer seu nome. Uma estrutura narrativa tão elástica
e produtiva não afrouxará facilmente seu contro-
le sobre importantes formas de significação social
(SEDGWICK , 1990, p. 21).

Assim como não há uma data marcada para a superação do co-


nhecimento não se tem ao certo quando na história da literatura portu-
guesa surgiram os primeiros textos que tratavam do amor entre pesso-
as do mesmo sexo. Todavia, em 1891, foi publicado O Barão de Lavos,
de Abel Botelho, nele o amor homoafetivo ainda era apresentado
de modo sutil, idealizado e platônico, embora se perceba quanto à te-
mática e época que há filiação do autor e obra com a estética realista/
naturalista como percebido no fragmento que segue.

Devia de ser rapaz quem ele procurava; porque os olhos


deste homem alto e seco poisavam de preferência
nas faces imberbes, levemente penujosas, dos adoles-
centes. Fitava-os um instante, com uma fixidez gulosa
e sombria, e desandava logo para outro lado. Percebia-
se mesmo, ao cabo de alguns minutos de observação,
que ele não procurava determinadamente alguém.
Ao contrário, parecia comparar, confrontar, escolher
(BOTELHO, 2017, p. 7).

Evidenciou-se, no excerto, que a homoafetividade é expres-


sa a partir do modo como o sujeito contempla a beleza do masculino

325
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

como se tivesse desejoso não apenas para compará-los, pois o olhar


é guloso, comportamento comum à prática pederasta na educação he-
lênica. Considerando o contexto, tema e conceitos explorados na obra
de Botelho, destacam-se os conceitos de classe dominante e elite eco-
nômico-cultural, o que evidencia as contradições do Estado burguês
e da sociedade burguesa – inclusive registra as qualidades que o cida-
dão porta para ser reconhecido como membro dessa elite: etnia, classe
social, religião, sexualidade (LYRA; GARCIA, 2002).
Além de O Barão de Lavos na primeira dentição do Modernismo
português são encontrados outros textos que têm temática homoafe-
tiva, como é o caso de A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro
e o poema Ode Marítima, de Álvaro de Campos. Por outro lado, acres-
centa-se que o movimento modernista traz consigo o questionamen-
to acerca da relação entre autor e obra como proposto pelas críticas
biográfica e determinista, fato que se evidencia na literatura através
da linguagem e mostra a presença de um homem com poderes limi-
tados e em crise como um retrato do mundo à sua volta. Esta percep-
ção é confirmada na obra de Sá Carneiro, conforme se vê no fragmen-
to abaixo.

Correu simples a nossa conversa durante a refeição.


Foi só ao café que Ricardo principiou:
— Não pode imaginar, Lúcio, como a sua intimi-
dade me encanta, como eu bendigo a hora em que
nos encontramos. Antes de o conhecer, não lidara se-
não com indiferentes — criaturas vulgares que nunca
me compreenderam, muito pouco que fosse. Meus pais
adoravam-me. Mas, por isso exatamente, ainda menos
me compreendiam, Enquanto que o meu amigo é uma
alma rasgada, ampla, que tem a lucidez necessária para
entrever a minha. É já muito. Desejaria que fosse mais;
mas é já muito. Por isso hoje eu vou ter a coragem
de confessar, pela primeira vez a alguém, a maior estra-
nheza do meu espírito, a maior dor da minha vida (SÁ-
CARNEIRO, 2013, p. 57).

326
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Observou-se que a conversa entre Ricardo e Lúcio demonstra


a existência do sujeito em crise, condição esta que se vê diminuída
a partir do conhecimento de um sobre o outro, embora Ricardo diga
que ainda há algo de estranho em si e isso o causa dor. Sobre a perso-
nalidade atormentada, a dor e o estranhamento de Ricardo ressalta-se
que a causa é a não aceitação da orientação sexual homoafetiva por ele
mesmo e isto o leva ao suicídio. Essas marcas são perceptíveis tam-
bém na personalidade de Lúcio quando ele em suas confissões narra
o que o fez chegar à prisão, o pseudo-assassinato do amigo, Ricardo,
por quem ele nutria algum afeto.
Ainda considerando a dimensão da memória evidenciada
na constituição das identidades tanto de Ricardo quanto de Lúcio
a tentativa de continuarem presos nos seus armários, pois a socieda-
de na qual viviam não aceitava a orientação sexual deles. Essa crise
é também observada na fragmentação do eu lírico no poema “Ode ma-
rítima”, de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, conso-
ante o que se observa no fragmento que segue:

Vossa fúria, vossa crueldade como falam ao sangue


Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo
cio sobrevive!
[...]
Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos pi-
ratas!
Ser no meu subjugado a fêmea que tem de ser deles!
E sentir tudo isso – todas estas coisas duma só vez –
pela espinha!
Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha imagina-
ção!
Amantes casuais da obliquidade das minhas sensações!
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,

327
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

A vós, odiados amados do seu sangue de pirata


nos sonhos!
Porque ela teria convosco, mas só em espírito, raivado
Sobre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar!
Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia
oceânica
Seu espírito de bruxa dançaria em volta dos gestos
Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos
[estranguladoras!
E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se aca-
so viésseis,
Iria beber nos rugidos do vosso amor todo o vasto,
Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias,
E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat
de vermelho e amarelo! (PESSOA, 2015, p. 2015).

A expressão da homoafetividade na obra de Fernando Pessoa é,


por vezes, tomada como um apontamento da crítica biográfica, entre-
tanto, esta não é a expressão mais próxima da escrita de si, não se
quer neste artigo fazer um “pacto autobiográfico”, isso já o fez Lejeune
em livro homônimo. Não se quer abrir as portas do “armário” de Pessoa
ou do seu heterônimo, Álvaro de Campos, mas que o eu lírico de “Ode
Marítima”, também joga fora as chaves do armário, conforme se vê
nos versos “Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres”,
“Ser no meu subjugado a fêmea que tem de ser deles!”. Nota-se ain-
da que nos versos o eu lírico assume-se a partir do mito de que todo
homoafetivo carrega uma mulher acorrentada dentro de si, embora
se saiba que o referido mito não traduz a realidade em si, pois apenas:
“Alguns poucos podem até ter trejeitos efeminados e entre si, de forma
irreverente, se chamarem de ‘mona’, ‘mulher’ etc.” (MOTT, 2003, p. 33).
O percurso até aqui demonstrado evidencia que o desejo de rom-
per com o fechamento do armário social, da ruptura do medo de com-
prometer a sua produção literária, quando ela tratava da homoafe-

328
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

tividade, foi praticado por alguns poucos escritores nas literaturas


de língua portuguesa, inclusive no seu berço – Portugal. Mas, é, na se-
gunda metade do século XX, que a literatura tem uma abertura para
a abordagem dos estudos culturais e da literatura de autoria das mi-
norias étnicas e sexuais como correntes da crítica literária, correntes
essas que permitem pensar a identidade e memória dos homoafetivos
na literatura.
Na contramão a essa abertura da crítica vê-se que os estudos
da literatura gay em alguns locais ainda são tímidos por falta de pes-
quisadores, pois muitos temem que os leitores possam relacionar o seu
objeto de investigação à sua orientação sexual. Por outro lado, nota-se
que o estudo da literatura gay e/ou de temática homoafetiva, nas aca-
demias e grupos de pesquisa, encontra-se ainda em fase de consolida-
ção, porque esse tema ainda é um tabu e, por sua vez, requer a presen-
ça de um estudo interdisciplinar. Além disso, deve-se ressaltar que:

Mesmo uma pessoa gay assumida lida diariamente


com interlocutores que ela não sabe se sabem ou não.
É igualmente difícil adivinhar, no caso de cada inter-
locutor, se, sabendo, considerariam a informação im-
portante. No nível mais básico, tampouco é inexpli-
cável que alguém que queira um emprego, a guarda
dos filhos ou direitos de visita, proteção contra violên-
cia, contra “terapia”, contra estereótipos distorcidos,
contra o escrutínio insultuoso, contra a interpretação
forçada de seu produto corporal, possa escolher delibe-
radamente entre ficar ou voltar para o armário em al-
gum ou em todos os segmentos de sua vida. O armário
gay não é uma característica apenas das vidas de pes-
soas gays. Mas, para muitas delas, ainda é a caracterís-
tica fundamental da vida social, e há poucas pessoas
gays, por mais corajosas e sinceras que sejam de hábi-
to, por mais afortunadas pelo apoio de suas comunida-
des imediatas, em cujas vidas o armário não seja ainda
uma presença formadora. (SEDGWICK, 1990, p. 22).

329
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Mediante o fragmento constatou-se que “o viver no armário”


não é uma condição inerente ao público homoafetivo, mas da vida so-
cial. Desse modo, a vida no armário não acontece apenas por uma es-
colha individual, antes, é forçada pela estrutura social, é a força da co-
letividade que se impõe sobre o indivíduo, como acontecera com o
escritor Guilherme de Melo, que chegara a se casar numa relação hete-
rossexual. Todavia, o autor ao sair de Lourenço Marques, antigo nome
de Maputo, capital de Moçambique, e se instalar em Lisboa, resolve
pedir a anulação do seu matrimônio e assim “assumir frontalmente
a sua posição de homossexual sem se arriscar, ainda, a toda a série
de consequências desagradáveis” (MELO, 1982, p. 12).
A sombra dos dias é um romance de memórias familiares, me-
mórias que assumem o olhar individual e o do coletivo, no qual se so-
bressai à memória do grupo e ganha destaque: “as lembranças dos even-
tos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus membros
e que resultam de sua própria vida ou de suas relações com os grupos
mais próximos, os que estiveram mais frequentemente em contato
com ele” (HALBWACHS, 2013, p. 51). Essas memórias ou lembranças
como queiram ser chamadas são reforçadas pelo narrador seja na des-
crição do contato de Guy com a irmã, Ilse, seja na amizade com os com-
padres – Paulo e Jaqueline, como mostradas logo no primeiro capítulo
da narrativa. Outro ponto de destaque de expressão da memória e da
identidade gay na obra é quando Guy percebe-se diferente dos outros
meninos, conforme se vê no fragmento a seguir.

Guy compreendeu então que já todos haviam notado


a idolatria que a rapariga lhe manifestava. É, o que
era pior ainda, a sua total indiferença por ela. A jura
que um dia a si mesmo fizera, quando ocorrera o caso
do garoto humilhado pela turba dos outros rapazes,
acudiu-lhe à lembrança com a agudeza de um estile-
te. “É preciso que nunca se apercebam de que também
eu sou diferente.” Nesse mesmo dia, quando as au-
las terminaram, Guy retardou estudadamente o pas-

330
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

so de modo a colocar-se, com naturalidade, ao lado


de Maria Aline. (MELO, 1981, p. 87).

A atitude do autor em jogar fora as chaves do armário não é tão co-


mum, sobretudo, quando se considera que há algo a perder, no caso
da literatura, o descrédito do autor por aqueles que ditam o cânone.
Porque na literatura canônica não são aceitos temas como o amor ho-
moafetivo, a negritude ou o empoderamento feminino, então, o autor
que escreve sobre esses temas corre um sério risco de ser alçado à con-
dição de esquecido da crítica e do público. Também se nota que nos
textos literários gays anteriores ao Movimento de Stonewall a morte
ou a solidão para os homoafetivos era sempre o desfecho das narrati-
vas, além de um tom jocoso e pilhérico para com tais sujeitos. Sobre
esse risco e punição para a saída do armário, na história do Brasil,
afirma-se:

Mas é no fim do século XIX que começa a prática de se


explicitar a fama de pederasta deste ou daquele sujei-
to. O Brasil também vivia a era vitoriana e também teve
os seus oscarwildes. Por exemplo: no início do século
XX, nas rodas de intelectuais cariocas, eram conheci-
dos os reais motivos pelos quais fora vedado ao escri-
tor João do Rio o acesso à carreira diplomática: era ho-
mossexual, negro e gordo ou desengonçado. Mas nem
os diplomatas brasileiros ficaram imunes à homofo-
bia reinante na terra de Santa Cruz: uma prova disso
foi o assassinato do diplomata Décio Escobar há mais
de 50 anos. No Brasil, não só os homossexuais pobres
são perseguidos e assassinados, ricos empresários ho-
mossexuais também são eliminados. Além de artistas
e profissionais liberais. (TOLEDO, 2006, p. 10).

Embora o estudo aqui empreendido não se dê acerca da litera-


tura brasileira como o fragmento acima, vê-se que a sociedade euro-
peia também não admitia a presença da homoafetividade, tampouco
a africana (moçambicana) que é a natalícia do jornalista Guilherme

331
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

de Melo. Há ainda na atualidade uma forte censura à literatura gay,


mesmo nos círculos literários, pois a obediência ao cânone pela crítica
considera-a uma literatura menor. Para isso, vale considerar o con-
ceito estético desta, dado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, como
segue abaixo:

As três categorias da literatura menor são a desterri-


torialização da língua, a ligação do individual com o
imediato político, o agenciamento coletivo de enun-
ciação. O mesmo será dizer que “menor“ já não qualifi-
ca certas literaturas, mas as condições revolucionárias
de qualquer literatura no seio daquela a que se chama
grande (ou estabelecida). (DELEUZE; GUATTARI, 2003,
p. 41-42).

Neste sentido, a condição de menor consiste no uso das três


acepções, a primeira por tratar de uma língua que expressa às condi-
ções e a voz de um grupo minoritário – os homoafetivos; da ligação
do individual com o político, visto que ao tratar da identidade homo-
afetiva essa literatura assume-se como uma ação política que supera
a condição individual. Porque “o seu espaço, exíguo, faz com que to-
das as questões individuais estejam ligadas imediatamente à política.
A questão individual ampliada ao microscópio torna-se muito mais
necessária, indispensável, porque outra história se agita em seu inte-
rior.” (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 39). E, por último, a percepção
de que “tudo toma um valor coletivo” (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p.
1), assim, a voz assumida por Guy não representa somente a ele como
gay, mas a todos os gays. Nesta perspectiva, acrescenta-se o ponto
de vista da personagem como a representação coletiva dos gays mas-
culinos no registro do diário de Guy:

Não é que senti-las junto de mim me traga qualquer


asco ou repugnância. Só que a sua presença me é in-
diferente, sob o ponto de vista sexual. Às vezes, quan-
do estou ao pé de qualquer mulher, faço um esforço
por me excitar, imaginando-a despida. Vejo-lhe, men-

332
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

talmente, os seios, o ventre, suponho-me a mexer-lhe


no sexo. E continuo espantosamente morto e parado.
Contudo, se qualquer rapaz está ao meu lado, logo
a excitação me toma. Na rua, no comboio, no auto-
carro, olho os homens e não consigo afastar de mim
um desejo desvairado de me acercar deles o mais pos-
sível, de sentir o cheiro a tabaco e a leve transpiração
que deles venha. O simples facto de os imaginar nus me
produz a erecção. E, todavia, é o desejo de lhes beijar
o corpo, de lhes prender o sexo entre as minhas mãos,
de me sentir por eles possuído como se eu próprio fos-
se uma mulher, o que nessas alturas me toma. Porquê?
Ó meu Deus, porquê este ser-não sendo que afinal
eu sou? (MELO, 1981, p. 122).

O excerto demonstra que a identidade homoafetiva é encara-


da como marca do sujeito sociológico, mutável, transitória e sujeita
às ações do meio social (HALL, 2014) e que não pode ser demarcada
por estereótipos ou mitos. Embora Guy não sinta motivado a explorar
o sexo feminino, isso não acontece com todos os que se assumem gays,
há alguns deles que mesmo se sentindo mais atraídos pelo masculino
conseguem se relacionar sexualmente o feminino. Percebe-se ainda
que mesmo que desejasse aos homens os quais ele via, Guy não é um
sexófilo insaciável, ele não é um profissional do sexo, além de se con-
siderar uma identidade pertencente a um não-lugar.
Nesta perspectiva, compreendeu-se que a homoafetividade é re-
presentada por meio de estereótipos que a tipificam como um entre-
-lugar, uma identidade que não pode ser representada pelo masculino
nem pelo feminino, porque não se exerce todos os papéis do primeiro
tampouco se carrega a feminilidade da mulher. Desse modo, a negação
da libido masculina diante do feminino como expresso por Guy revela
que quando ele deseja o masculino e, com isso sente ereções por ou-
tros homens. Isso vem reforçar a ideia de que refutar a “dominação
melancólica da homossexualidade culmina na incorporação do obje-

333
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

to do desejo do mesmo sexo e ressurge na construção de ‘naturezas’


sexuais distintas, as que exigem e instituem seus opostos por exclu-
são” (BUTLER, 2017, p. 101). Essas naturezas sexuais distintas podem
ser observadas nas relações fraternais de Guy, como comprova o excer-
to que segue.

Mergulhava até ao fundo no meio homossexu-


al. Repartia-se pelos parties em casa de uns e ou-
tros. Os jantares de lésbicas começavam igualmen-
te a tornar-se moda e a presença de três ou quatro
homossexuais, seus amigos, era natural. Guy nunca
era dispensado. Afundava-se naquele trepidante mun-
do de amantes e chulos de companheiros, de parcei-
ras com suas paixões e seus ciúmes, seus despiques,
suas zangas, seus requintes – entre música, luzes ve-
ladas, libações. E por vezes o fumo discreto da mari-
juana que começava a descer do Norte, nas mochilas
e nos blusões dos guerreiros que chegavam das zo-
nas de luta, apanhados por toda a sorte de traumas,
em busca do repouso na cidade. (MELO, 1981, p. 322).

A partir do excerto evidencia-se que a literatura gay completa


a sua saída do armário e carrega o signo da estereotipia do univer-
so gay, na qual estes sujeitos em sua representação “emergia com as
tintas do humor e da caricatura. A estereotipia era a marca central
das personagens, reiterando-se, assim, a imagem que foi perpetuada,
até meados do século XX [...]” (SILVA, 2014, p. 62). Outro estereótipo
da identidade gay é o intenso desejo de não está só, ele estava sempre
próximo a algum amigo, também quando dos seus momentos de me-
lancolia eram os amigos e familiares que deles se aproximavam como
visto quando da briga e separação entre Guy e Emanuel. Portanto,
A sombra dos dias, de Guilherme de Melo, como parte da produção
literária portuguesa contemporânea lança fora as chaves do armário
e demarca uma nova configuração para a literatura gay.

334
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

Considerações finais

A história dos gays demonstra que os conflitos entre eles


e suas relações são constantes e ora mais profundos e dolorosos,
ora mais amenos. A dor resulta, geralmente, da morte ou do isolamen-
to das personagens como visto em A Confissão de Lúcio, de Mário
de Sá-Carneiro. E, mais tardiamente, por força das ações afirmativas
das políticas sociais de gênero, esse conflito adquire nova configura-
ção como visto na obra de Guilherme de Melo ou ainda na representa-
ção da crise existencial vivida pelos homoafetivos, no início do século
XX, como expresso por Álvaro de Campos, o heterônimo de Fernando
Pessoa. Essa diferença quanto aos modos de representação das práti-
cas e do amor homoafetivo estão imbricadas nas mudanças sociais e,
por conseguinte, do pensamento social, sobretudo, pós-Stonewall e,
na década de 1980, quando a homoafetividade deixa de ser classificada
como doença psíquica pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
No tocante ao uso da escrita de si na produção literária homoafe-
tiva vê-se que há uma espécie de pacto com a experiência de quem nar-
ra e uma identificação mais direta com o leitor que também vive essa
experiência, o que reforça a criação do horizonte de expectativas sobre
a obra. Também, o escritor e o leitor que optam por, respectivamente,
escrever e pesquisá-la, acabam por, forçosamente, serem julgados pelo
outro (o crítico) quanto a sua orientação sexual e isso afasta àqueles
que por algum motivo têm medo de serem “arrancados do armário”
ou questionados sobre sua identidade sexual. Isso aponta para a cons-
trução das diferenças entre as narrativas daqueles que confessam suas
vivências, afetos, dores e desilusões em razão de a sua orientação se-
xual ser a homoafetiva e as daqueles que não têm essa experiência
tampouco se identificam ou são sensíveis a essa dor.
O entrelaçamento da obra A epistemologia do armário (1990),
de Eve Sedgwick e o romance A sombra dos dias (1981), do jornalista
Guilherme de Melo tomado como objeto central desse artigo reforçam
a ideia de que, hoje, a literatura de expressão gay não mais cabe no ar-
mário. Considera-se que as memórias e identidades precisam ser ainda

335
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA LITERATURA
VOLUME III

mais exploradas e aprofundadas, aqui fica apenas o prenúncio desse


estudo, visto que seus diversos aspectos o objetivo pretendido deman-
daria uma tese e não somente um artigo. Porque ao considerar que o
romance A sombra dos dias tira do armário a literatura gay, em am-
plo sentido, precisa-se considerar o percurso da produção literária
portuguesa até 1980 e estabelecer uma diferença entre as anteriores
e esta obra.
Compreendeu-se que a saída do armário para a literatura foi pos-
sível porque o contexto de produção de Guilherme de Melo é outro
que não se assemelha ao dos seus antecessores e que para isso se ele
tivesse continuado em Moçambique também não teria essa possibili-
dade. Sair do armário é uma atitude corajosa, em outros tempos, ou-
sada e desafiadora, sobretudo, em territórios marcados por guerras
civis e regimes políticos autoritários, como era o caso de Moçambique
e Portugal. Mas o autor ultrapassa esses limites e ainda constrói
um narrador que é seu alter ego, inclusive pode ser lido como a abre-
viação do seu próprio nome – Guy, mesmo com a troca linguística
do “i” pelo “y”, que é também uma expressão do sonho de liberdade
conquistado pelos homoafetivos depois do Movimento de Stonewall.
Então, o romance de Guilherme de Melo e a obra de Eve Sedgwick re-
presentam a intersecção desse sonho de viver a identidade sexual ho-
moafetiva sem o interdito do outro.

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SOUZA, Roberto Acízelo de. História da literatura: trajetória, fundamentos,
problemas. São Paulo: É Realizações, 2014. (Biblioteca Humanidades)
TOLEDO, José Luiz Dutra de. O gato que ri do meu ego esquizofrênico. Rio
de Janeiro: eBooksBrasil, 2006. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/
eLibris/gatoqueri.html. Acesso em: 20 set. 2013.

338
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

SOBRE OS AUTORES

ANAILDO PEREIRA DA SILVA


Mestre em Letras pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA. Graduado
em letras Português – Inglês e respectivas literaturas pela Universidade
Estadual do Maranhão – UEMA. Professor substituto de Língua Portuguesa no
Instituto Estadual de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão – IEMA,
Unidade Plena de Zé Doca – MA. Membro do Grupo de Pesquisa Discurso,
Escrita e Formação – GPDEF/UEMA.

ANDRÉ FELIPE RIBEIRO


Mestrando em Letras/PPGLB pela Universidade Federal do Maranhão. Prof.
especialista em MBA/Gestão Escolar pela Universidade de São Paulo. Possui
especialização em Metodologia de Língua Inglesa e Docência do Ensino
Superior. Atua como professor do quadro efetivo da cidade de Pedro do Rosário
– MA e como monitor de Inglês pelo Núcleo de Cultura Linguística–NCL/
UFMA.

ANTÔNIA LUZIANE SILVA DE CASTRO


Possui Licenciatura em Letras, habilitação Língua Portuguesa, pela
Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Atualmente, é discente do
Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), pela Universidade Federal
do Maranhão, atuando na linha de estudo Texto e Discurso. Durante a
Licenciatura em Letras, foi bolsista do Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação Cientifica (PIBIC) e da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao
Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA). Possui
experiência na área de Letras com ênfase em Língua Portuguesa, atuando
principalmente nos seguintes temas: ensino, texto, leitura, argumentação e
análise do discurso.

339
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

CACIO JOSÉ FERREIRA


Doutor em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB) e professor do
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM) e do Programa de Pós-Graduação em Letras de Bacabal (PPGLB/
UFMA). Possui profícua produção intelectual, principalmente por meio de
pesquisas acadêmicas e publicações em diversos periódicos. Publicou as
obras Inocente céu de cinzas (2020), Fábulas da terra falada (2019) e organizou
diversos livros, entre eles: 1Q79 – Leituras de Haruki Murakmi (2020), com
Lica Hashimoto e Wagner Barros Teixeira; A cena simultânea: literatura e
dramaturgia em urdidura (2020), com Francisco Alves Gomes, Lucélia de Sousa
Almeida e Sidney Barbosa; Casulos de imagens: a poesia japonesa no Amazonas
(2017), com Rita Barbosa de Oliveira; Espelhos peregrinos: diálogos literários
na contemporaneidade (2019), com Francisco Alves Gomes, Norival Bottos e
Walter Guarnier.

CLERIA LOURDES MOREIRA PEREIRA


Mestranda em Letras/PPGLB da Universidade Federal do Maranhão, possui
especialização em Linguística Aplicada e Ensino de Línguas; Língua
Portuguesa e Literaturas Portuguesa e Brasileira, atua como professora do
quadro efetivo da rede pública estadual, no Instituto de Educação, Ciência e
Tecnologia do Maranhão – IEMA.

CRISTIANE NAVARRETE TOLOMEI


Professora Adjunto III da Coordenação de Letras do Centro de Ciências,
Educação e Linguagens da Universidade Federal do Maranhão. Graduada
em Letras pela Universidade Estadual Paulista/UNESP/IBILCE (2001), com
Mestrado em Letras (Teoria da Literatura) pela Universidade Estadual Paulista/
UNESP/IBILCE (2004) e Doutorado em Letras (Estudos Comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (2010). Pós-
doutorado em História Literária pela Universidade Estadual Paulista/UNESP/
Assis (2013), e pós-doutorado em Estudos Comparatistas pela Universidade
de São Paulo/USP (2015/2017) com bolsa CNPQ-JR (2017). Atualmente
realiza pós-doutorado, com bolsa FAPEMA, em Literatura Comparada na
Universidade do Porto, sob a supervisão da professora Isabel Pires de Lima.
Docente permanente dos Programas de Mestrado em Letras de Bacabal, na
linha de pesquisa 2: Literatura, Cultura e Fronteiras do Saber; e do Mestrado
Interdisciplinar em Cultura e Sociedade, na linha de pesquisa 1: Expressões

340
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

e processos socioculturais. Integrante da equipe do Programa Nacional de


Cooperação Acadêmica na Amazônia n. 21/2018/CAPES - UFMA/UEMA/
UESB. Líder do Grupo de Pesquisa marginalia (Estudos Decoloniais) e vice-
líder do Grupo de Estudos Raça, Gênero e Sexualidade (GERS/UFU), ambos
registrados no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq. Como experiência
na captação de recursos, a docente já aprovou vários projetos de pesquisa
pelo PIBIC-UFMA/CNPq/FAPEMA-UNIVERAL-EVENTOS-PUBLICAÇÃO. Atua
na área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, Estudos
Decoloniais, Literatura e Imprensa, Literatura e História.

DANIELLA FIGUERÔA PILATTI


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento
Rural (PPGADR) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar); bolsista do
projeto de extensão “Difundindo e popularizando as atividades de ensino,
pesquisa e extensão do Centro de Ciências Agrárias (CCA)”; e graduanda
em Agroecologia pela mesma instituição. Graduada em Comércio Exterior e
especialista em Gestão Estratégica de Negócios pela Faculdade de Tecnologia
de Praia Grande (FATEC-PG). Tem experiência nas áreas de administração e
economia rural, produção animal e reflorestamento.

DILSON CÉSAR DEVIDES


Doutor em Estudos Literários pelo IBILCE/UNESP. Atualmente é professor
da Universidade Federal de Mato Grosso, campus do Araguaia. Atua também
como docente e orientador nos cursos de pós-graduação stricto sensu de Letras
(PPGLB/UFMA) e Estudos da Cultura Contemporânea (PPGECCO/UFMT).
Vem desenvolvendo pesquisas sobre adaptação literária para novas mídias
(internet, videogames) e sobre literatura espírita aplicada à biblioterapia.

EDILENE RODRIGUES AFONSO


Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGLB), na Universidade
Federal do Maranhão (UFMA), na área da Análise do Discurso de vertente
materialista, Bolsista CAPES, vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisas em
Discursos, Interseccionalidades e Subjetivações (GEPEDIS/CNPq), graduada
no curso superior de Licenciatura em Linguagens e Códigos–Português, pela
mesma Universidade. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em
Língua Portuguesa e Discurso.

341
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

ELINE EDUARDA SAMUEL BARROS


Graduada em Letras-Português pela Universidade Federal do Maranhão
(UFMA). Mestranda do PGLB - Programa de Pós-Graduação em Letras da
UFMA, campus de Bacabal, na área de Texto e Discurso. Participante do
GPELE - Grupo de Pesquisa Ensino, Leitura e Escrita.

FÁBIO JOSÉ SANTOS DE OLIVEIRA


Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de
São Paulo (USP) e Université Paris 8, pós-doutor pelo Instituto de Estudos
Brasileiros (IEB/USP) e pós-doutor pela Sorbonne Université. Ele tem,
publicados, alguns livros de contos, poesia e crítica literária. Atualmente, Fábio
de Oliveira é professor adjunto do Departamento de Letras da Universidade
Federal de Sergipe (campus Prof. Alberto Carvalho), é professor do Programa
de Pós-Graduação em Letras de Bacabal (PPGLB/UFMA), na linha de
“Literatura, Cultura e Fronteiras do Saber”, e é professor do Programa de Pós-
Graduação em Letras (PPGL/UFS), na linha “Literatura e Recepção“. Fábio de
Oliveira coordena, também, o Grupo de Pesquisa em Literatura e Visualidade
– LiteVis (CNPq/UFS), através do qual desenvolve pesquisas sobre a relação
entre a Literatura e as artes do campo da visualidade.

FRANCISCA KATRINE DE CARVALHO SOUZA


Formada em Licenciatura Plena em Letras Português pela universidade
Estadual do Piauí (UESPI), campus Parnaíba. Especialização em Estudos
Linguísticos e Literários pela Faculdade Única, Mestranda em Letras pela
Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus Bacabal.

FRANCISCO ALVES FILHO


Doutor em Letras pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Campinas, é professor titular do Departamento de Letras da
Universidade Federal do Piauí e, no programa de pós-graduação em Letras,
é professor permanente. Coordena o núcleo de pesquisa CATAPHORA.
Publicou o livro Gêneros Jornalísticos: Notícias e Carta de Leitor no Ensino
Fundamental, pela Editora Cortez e coautorou a coleção de livros didáticos
Projeto Carnaúba, voltada para ensino de leitura e produção de textos no
Ensino Fundamental. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em
Teorias de Texto, Análise de Gêneros, Gêneros Acadêmicos e Escrita Científica.

342
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

FRANCO BAPTISTA SANDANELLO


Doutor e pós-doutor em Estudos Literários pela UNESP, com estágios pós-
doutorais na Université Sorbonne Nouvelle e na Université Lumière Lyon 2.
Professor da Academia da Força Aérea; professor permanente do Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Literatura da UFSCar; professor permanente
do Programa de Pós-Graduação em Letras Bacabal da UFMA; e pesquisador
colaborador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da
Universidade de Lisboa. Possui trabalhos publicados em Portugal, França,
Dinamarca, República Tcheca, Estados Unidos e Argentina. Suas obras mais
recentes são a reedição d’O Cromo, de Horácio de Carvalho (Univ. Lisboa–Ed.
UNESP, 2021), e a coletânea de crônicas inéditas de Domício da Gama, De
Paris (Alameda, 2020).

GLÓRIA FRANCA
Professora Adjunta do Departamento de Letras, e do PPGLB Mestrado em
Letras (Bacabal), da UFMA. Possui doutorado em cotutela de tese–Doutorado
em Linguística, pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)–na UNICAMP,
com bolsa FAPESP, e Doutorado em Ciências da Linguagem, pela École
Doctorale Erasme, Laboratório Pléiade, da Université Paris 13 Sorbonne Paris
Cité (Bolsa CAPES/PDSE). Mestrado em Ciências da Linguagem, Linguagem,
pelo Institut de Linguistique et Phonétique Génerales et Appliquées, ILPGA,
pela Universidade Paris 3–Sorbonne Nouvelle. Possui graduação em Letras
pela Universidade Federal do Maranhão (2008). Coordena o Grupo de Estudos
e Pesquisas em Discursos, Interseccionalidades e Subjetivações (GEPEDIS/
CNPq), com o projeto em curso “Discurso, cultura e silenciamentos: uma
leitura interseccional/decolonial de processos de identificação”(2021-2023).
Integra o grupo de pesquisas Mulheres em Discurso/CNPq, coordenado pela
profª. Drª. Monica Zoppi-Fontana e é membro associada do Laboratório
Pléiade/ Paris 13. Desenvolve e orienta pesquisas no campo da Linguística,
com enfoque na articulação entre Análise do Discurso (em sua vertente
materialista) e Estudos interseccionais e epistemologia decolonial.

HELLEN PESSOA DE SOUSA MIRANDA


Aluna de graduação em Letras de Bacabal, da Universidade Federal
do Maranhão. Vem desenvolvendo pesquisa de Iniciação Científica
(PVCEL2747-2021) acerca da expressão da posição de advérbios qualitativos
e modalizadores terminados em -mente, com base em textos escritos nos
séculos XVIII, XIX e XX.

343
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

HELOÍSA REIS CURVELO


Doutora, mestre e especialista em Linguística, Professora de Língua e
literatura do Curso de Letras/Espanhol, Campus Dom Delgado/UFMA,
Professora Programa de Pós-graduação em Letras/Mestrado acadêmico,
Campus Bacabal/UFMA, Coordenadora do Projeto de Pesquisa: Toponímia
Maranhense: estudos sobre os topônimos do Maranhão orienta pesquisas em
Iniciação Científica, atua no âmbito da Lexicologia, mas especificamente, com
estudos direcionados à Toponomástica. É adepta das Metodologias Ativas de
aprendizagem, dos princípios da Andragogia e de práticas pedagógicas que
envolvem gamificação.

JAYNNE SILVA DE SOUSA BORGES


Mestranda em Letras do Programa de Pós-Graduação da Universidade
Federal do Maranhão, Campus Bacabal (PPGLB). Bolsista do Programa de
Desenvolvimento da Pós-Graduação da CAPES. Graduada em Letras pela
Universidade Federal do Maranhão. Membro do grupo de pesquisa Ficção
Científica e Gêneros Pós-modernos na Era Digital – FICÇA (CNPQ).

JOÃO VITOR CUNHA LOPES


Licenciado em Letras–Português pela Universidade Federal do Maranhão
(UFMA). Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual do Maranhão
(UEMA). Mestrando em Letras pela Universidade Federal do Maranhão
(UFMA). É membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Sociolinguística
do Maranhão (GEPeS-MA/UFMA). Atualmente, é professor substituto na
Universidade Estadual do Maranhão (Campus Lago da Pedra). Tem interesse
na área de Linguística, com ênfase em Sociolinguística Variacionista, atuando
nos seguintes temas: português maranhense; variação morfossintática;
variação e mudança linguística.

JOSÉ ANTÔNIO VIEIRA


Doutor e Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte/UFRN. Professor Adjunto e Diretor do Curso de Letras da
Universidade Estadual do Maranhão/UEMA, Campus Pedreiras. Professor do
Programa de Pós-graduação em Letras (Mestrado) do Centro de Ciências,
Educação e Linguagem/CCEL, da Universidade Federal do Maranhão/UFMA,
Campus Bacabal. Líder do Grupo de Pesquisa Discurso, Escrita e Formação/
GPDEP/UEMA.

344
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

JOSÉ RIBAMAR MOURA


Possui Licenciatura em Letras, habilitação Língua Portuguesa e Inglesa
e suas Respectivas Literaturas, pela Universidade Estadual do Maranhão
(UEMA). É especialista em Língua Portuguesa/Inglesa e suas Literaturas,
pela Faculdade de Educação Física de Barra Bonita (FAEFI); em Orientação,
Gestão e Supervisão Educacional, pela Faculdade Evangélica do Meio Norte
(FAEME). Atualmente, é discente do Programa de Pós-Graduação em Letras
(PPGL), pela Universidade Federal do Maranhão, atuando na linha de estudo
Texto e Discurso. Como docente, faz parte do quadro de professores efetivos
da Secretaria Municipal de Educação da cidade de Peritoró (MA).

LUÍS HENRIQUE SERRA


Doutor em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, graduou-se em Letras (línguas e literaturas
inglesa e portuguesa) pela Universidade Federal do Maranhão. É líder do
Grupo Estudos em Terminologia, Texto e Discurso – GETTEX. É professor
permanente do Programa de Pós-graduação em Letras e da Coordenação do
curso de Letras do Centro de Ciências, Educação e Linguagem da Universidade
Federal do Maranhão. É coautor do dicionário crítico de Domingos Vieira Filho
e organizador de coletâneas de estudos linguísticos. Suas áreas de atuação
são: Terminologia; Estudos do Léxico; Estudos do Texto e do Discurso das
ciências e das áreas técnicas; Ensino de Língua Materna e Estrangeira; Texto
e Discurso.

MAIRYLANDE NASCIMENTO CAVALCANTE FERREIRA


Graduada em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela
Universidade Estadual do Maranhão - UEMA. Membro do Grupo de Pesquisa
CNPq - Marginália decolonial. Pós-graduada em Educação Especial e Inclusiva;
em Língua Portuguesa e Literatura, ambas especializações foram cursadas pela
Faculdade Campos Elíseos- FCE. Mestranda do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do Maranhão - UFMA/PPGLB, vinculada à
linha de pesquisa 2: Literatura, cultura e fronteiras do saber, sob orientação
da profa. Dra. Cristiane Navarrete Tolomei. Tem como área de interesse a
antropologia-social dos estudos decoloniais, e as categorias analíticas do
espaço ficcional e da memória.

345
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

MARIANA APARECIDA DE OLIVEIRA RIBEIRO


Professora Adjunta do curso de Letras e do Mestrado Acadêmico em Letras da
Universidade Federal do Maranhão, Centro de Ciências de Bacabal. Formada
em Letras, Português/Latim pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (UNESP). É doutora e mestre em Educação pela Universidade
de São Paulo (USP), na linha de pesquisa: Linguagem e Educação. É
coordenadora do Grupo de Pesquisa Ensino, Leitura e Escrita (GPELE) e do
projeto de pesquisa: A produção científica de pesquisadoras maranhenses:
uma análise de artigos de diferentes áreas de conhecimento, financiado pela
FAPEMA. Tem experiência em Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa,
Estágio, Produção de Texto e Metodologia científica. É vice coordenadora
e docente permanente do Mestrado Acadêmico em Letras do Programa de
Pós Graduação em Letras (PPGLB) e professora colaboradora do Mestrado
Profissional em Letras da Universidade Federal do Sul e Sudoeste do Pará
(UNIFESSPA) - campus de Marabá.

MARIANA JAFET CESTARI


Professora do Departamento de Linguagem e Tecnologia do Centro Federal
de Educação Tecnológica de Minas Gerais. É graduada em Letras, mestra e
doutora em Linguística pela Unicamp. Integra os grupos de pesquisa Mulheres
em Discurso (Unicamp/CNPq) e Discurso, Interseccionalidade e Subjetivações
(UFMA/CNPq). É vice-líder do grupo Discurso Tecnologia e Divulgação do
Conhecimento (CEFET-MG/CNPq). Suas pesquisas e atuação na extensão
partem da Análise de Discurso, em diálogo com os estudos de gênero e de
raça.

MONICA FONTENELLE CARNEIRO


Doutora e Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (UFC),
com estágio pós-doutoral nessa mesma instituição. Especialista em Língua
Inglesa e em Linguística Aplicada ao Ensino da Língua Materna e Estrangeira.
Licenciada em Letras (Português/Inglês) pela Universidade Federal do
Maranhão (UFMA). Professora permanente do Programa de Pós-Graduação
em Letras–PPGLetras (Mestrado em Letras)–São Luís (Vice-coordenadora no
biênio 2021-2023) e do Programa de Pós-Graduação em Letras–PPGLetras
(Mestrado em Letras)–Bacabal, além de professora colaboradora do PPGDIR–
Programa de Pós-Graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça
(Mestrado em Direito), todos da UFMA. Professora do Departamento de Letras

346
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

(UFMA), com experiência nas áreas de Letras e Linguística, tendo especial


interesse em Linguística Cognitiva, Linguística Aplicada, Análise do Discurso,
Psicolinguística, com foco nos estudos da Lingua(gem), Figuratividade,
Discurso, Ensino/Aprendizagem de Línguas e Formação de Professores.
É membro da ABRALIN (Associação Brasileira de Linguistas) e coordena a
Comissão de Linguística e Cognição (2021 a 2023); da ANPOLL (Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística) e coordena o
GT Linguística e Cognição (2021-2023; e da ALAB (Associação de Linguística
Aplicada do Brasil). Participou do Grupo de Trabalho Estudos Linguísticos
na Amazônia Brasileira–ELIAB, (ANPOLL), de 2019 a 2021. Pesquisadora
associada dos Grupos de Pesquisa GELP-COLIN/UFC e GEPLA/UFC e líder do
GELP-COLIN UFMA. Membro titular da Comissão Institucional de Ciências
Humanas do PIBIC/PIBITI. Pesquisadora e líder de equipe brasileira, do
Projeto Internacional de Pesquisa Bibliography of Metaphor and Metonymy
(METBIB), coordenado pelas universidades espanholas de Córdoba e La Rioja,
em parceria com a Editora John Benjamins (Amsterdã, Holanda), atuando
como Editora Associada do projeto.

MARIANA LIMA DA SILVA


Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão–UEMA (2018),
especialista em Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa pelo Centro
Universitário Internacional–UNINTER (2019) e mestre em Letras pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras de Bacabal/PPGLB, da Universidade
Federal do Maranhão–UFMA (2021). Atualmente é professora substituta da
Universidade Estadual do Maranhão – Campus Pedreiras e Lago da Pedra.

NAIARA SALES ARAÙJO


Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Metropolitana
de Londres; Professora dos programas de pós-graduação em Letras da
Universidade Federal do Maranhão; Professora de Línguas e Literatura do
Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão. Líder do
grupo de pesquisa Ficção Científica e Gêneros Pós-modernos na Era Digital
– FICÇA (CNPQ). No momento, é professora Visitante do Departamento
de Línguas e Literaturas Hispânicas da Universidade de Pittsburgh pelo
Programa Leitorado do Ministério da Relações Exteriores do Brasil, onde atua
como professora de Língua, Cultura e Literaturas Luso-Brasieliras.

347
LINGUAGEM, DISCURSO E CULTURA
VOLUME III

NORIVAL BOTTOS JÚNIOR


Professor Adjunto da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Doutor
em Literatura e Estudos Comparados pelo Programa de Pós-Graduação em
Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás (UFG). Desenvolve
pesquisas sobre o ensino de Língua Portuguesa, com ênfase nos gêneros
textuais que envolvem imagens, tais como as histórias em quadrinhos,
mangás e romances gráficos. No campo da Literatura estuda especialmente a
Literatura Amazonense, preocupando-se, sobretudo, com a possibilidade de
desconstrução, subjetivação e desterritorialização na produção de narrativas
rizomáticas. Há interesse também pelos conceitos de aporia, rizomas, platôs,
ritornelo, subjetivação, devires múltiplos, homo sacer e a “vida nua. Seu
aporte teórico se baseia nos conceitos chave da teoria de Gilles Deleuze,
Félix Guattari, Giorgio Agamben, Georges Didi-Huberman, Jacques Derrida e
Maurice Blanchot.

PAULO DA SILVA LIMA


Possui Licenciatura em Letras, habilitação em Língua Portuguesa e Inglesa,
pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), mestrado e doutorado em
Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente, é professor
adjunto IV da Universidade Federal do Maranhão, Campus Bacabal. É
professor do Mestrado Acadêmico em Letras e do Mestrado Profissional
em Letras da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Além disso, é
docente no Mestrado Acadêmico em Letras da Universidade Federal do
Maranhão UFMA, Campus Bacabal, atuando na Linha de Pesquisa “Texto,
Discurso e seus Múltiplos Objetos”. Atua como pesquisador na área de Texto/
Discurso e Ensino de Língua Portuguesa, com experiência na prática docente
e em gêneros textuais.

RUBENIL DA SILVA OLIVEIRA


Professor Adjunto I de Literaturas de Língua Portuguesa, da Universidade
Federal do Maranhão (UFMA), Centro de Ciências de Bacabal (CCBa),
Coordenação de Letras de Bacabal (CCLB); Professor Permanente do Programa
de Pós-Graduação em Letras de Bacabal (PPGLB-UFMA); Doutor em Letras –
área de concentração em Estudos Literários (UFPA); Mestre em Letras – área
de concentração Literatura, memória e cultura (UESPI); Graduação em Letras
– Língua Portuguesa e respectivas Literaturas (UEMA). Vice-líder do Grupo
de Pesquisa Literatura, Enunciação e Cultura (LECULT); Líder do Grupo de
Pesquisa em Literatura, Negritude e Diversidade (GEPELIND).

348
TYARA VERIATO CHAVES
Possui graduação em Publicidade e Propaganda pelo Instituto de Educação
Superior da Paraíba (2006), mestrado no Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL) da UNICAMP (2015) e é doutora pela mesma universidade (2020). Tem
experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise do Discurso,
trabalhando as relações entre linguagem, violência, militância política,
literatura e gênero. É pesquisadora visitante do Programa de Pós-Graduação
em Letras/Bacabal (PPGLB/UFMA/FAPEMA), também integra o grupo de
pesquisa CNPq Mulheres em Discurso (MulherDis) e o Centro de Pesquisa
PoEHMaS (Política, Enunciação, História, Materialidades, Sexualidades).

WELIDA MARIA GOUVEIA SILVA


Formada em Letras pela universidade Estadual do Maranhão (UEMA), campus
Itapecuru Mirim em 2018. Especialista em Literatura brasileira pela FAVENI,
2020 e Mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
campus Bacabal. Trabalha com literatura brasileira no âmbito da religião afro-
brasileira e feminismo negro, seguindo a corrente literária no viés dos Estudos
Culturais (Hall e Nestor Canclini), Estudos antropológicos (Ferreti e Laura
Moutinho), bem como nas contribuições da Crítica Feminista contemporânea
(Rita Segato).

WENDEL SILVA DOS SANTOS


Professor da Pós-Graduação em Letras de Bacabal (PPGLB/UFMA) e do Curso
de Graduação em Letras de Bacabal da Universidade Federal do Maranhão. Tem
interesse em estudos de variação sociolinguística, especialmente aquelas que
estão dispostas no nível morfossintático dos estudos linguísticos. Atualmente
coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa em Sociolinguística (GEPeS/UFMA)
e o Sociolinguística Histórica do Português Maranhense: análise de dados
linguísticos a partir textos publicados entre os séculos XIX e XX”, código
PVCEL2747-2021.

WHERISTON SILVA NERIS


Professor Adjunto de Sociologia do Campus III da Universidade Federal do
Maranhão, possui Licenciatura em História pela Universidade Federal do
Maranhão (DEHIS/UFMA), mestrado em Ciências Sociais–PPGCSO/UFMA e
Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (PPGS/UFS),
com estada de doutoramento junto à École des Hautes Études en Sciences
Sociales (EHESS/CESSP) e à Ecole Normale Supérieure, Centre Maurice
Halbwachs (Paris, 2013). Atualmente integra os seguintes programas de
pós-graduação como docente permanente: Programa de Pós-Graduação em
Sociologia (UFMA/Imperatriz) e o Programa de Pós-Graduação em Letras
(UFMA/Bacabal). Seus estudos se concentram nos domínios da Sociologia
Histórica do Catolicismo, Sociologia Política, Sociologia da Cultura, Elites e
Grupos Dirigentes.

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