Paul Ricouer
Paul Ricouer
Paul Ricouer
RESUMO: O presente artigo trata da linguagem no pensamento de Paul Ricoeur. Mostra como se deu seu
interesse pela linguagem, desde o signo, o símbolo e o mito à linguagem enquanto discurso, que o coloca em
diálogo com várias correntes linguísticas. Destaca-se, em sua trajetória intelectual, a teoria do símbolo e a teoria do
texto, nas quais aparecem várias acepções de linguagem, como as de duplo sentido, polissêmica e analítica, que
convergem para uma teoria da interpretação e um discurso bem fundamentado. A extensão dessa temática (a
linguagem), nesse caso, coincide com a extensão da obra de Ricoeur. Por isso, nossa intenção é, simplesmente,
demonstrar que o pensamento de Ricoeur situa-se na esfera da filosofia da linguagem.
ABSTRACT: This article deals with language in the thought of Paul Ricoeur. It shows how his interest in
language came about, from the sign, the symbol and the myth, to language as a discourse, which puts him in
dialogue with various linguistic currents. In his intellectual trajectory, the theory of the symbol and the theory of
the text stand out, in which several meanings of language appear, such as the double meaning, polysemic and
analytical, which converge to a theory of interpretation and a well-founded discourse. The extension of this theme
(language), in this case, coincides with the extension of Ricoeur’s work. Therefore, our intention is simply to
demonstrate that Ricoeur’s thought is in the sphere of the philosophy of language.
INTRODUÇÃO
Jean Paul Gustave Ricoeur (1913-2005), filósofo francês, tem por base de pensamento a
filosofia reflexiva, a fenomenologia e a hermenêutica, como ele mesmo diz: “eu gostaria de
caracterizar a tradição filosófica à qual me reporto com três traços: ela está na linhagem da
filosofia reflexiva; ela permanece na esfera da influência da fenomenologia husserliana; ela
quer ser uma variante hermenêutica desta fenomenologia” (RICOEUR, 1986, p. 25)1. No
entanto, essas três correntes de pensamento têm em comum, entre outras coisas, os tipos e usos
de linguagem. É verdade que, para compreender o pensamento ricoeuriano, precisa se
considerar essa tríplice influência, mas é igualmente verdade a necessidade de considerar a
linguagem nesse pensamento. Por isso, ao propor a apresentar cada um daqueles elementos ao
modo de introdução, vimos também a igual necessidade de abordar diretamente o tema da
linguagem no pensamento de Paul Ricoeur. Assim, surgiu este artigo sobre Paul Ricoeur e a
1
Sobre a vida e a obra de Paul Ricoeur veja: DOSSE, François. Os sentidos de uma vida. São Paulo: LiberArs,
2017. Ou também o que está disponível no site www.fondsricoeur.fr. Outra importante fonte é a autobiografia:
Intellectual autobiographye in the Philosophy of Paul Ricoeur: Chicago: Open Court, 1995. Tradução em
português: Autobiografia intelectual. In: Da metafísica à moral. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. Vale ainda
conferir: Le vocabulaire de Paul Ricoeur, de Abel e Porée (2007).
linguagem, em certa continuidade com o que já escrevemos sobre filosofia reflexiva e
fenomenologia, precedendo o que escrevemos sobre hermenêutica 2. De caráter introdutório,
trata-se de uma apresentação que mostra a presença da linguagem na obra de Ricoeur e como
ela caracteriza seu pensamento. É uma maneira de oferecer uma visão geral sobre sua obra a
partir da linguagem.
É comum se dizer que a tríplice herança mencionada acima, corresponde a uma tríplice
perspectiva do pensamento de Paul Ricouer. A filosofia reflexiva se refere à tradição de
pensamento que tem como nota a reflexão (a autorreflexão), mas que em Ricoeur se torna ato
reflexivo ou reflexividade. A fenomenologia é a corrente de pensamento que teve vários
desdobramentos no vigésimo século, sendo utilizada por Ricoeur devido ao seu componente
intencional e descritivo. A hermenêutica, tida como teoria da interpretação, aponta para o
escopo das contribuições de Paul Ricoeur, que a assume como arte de explicar e compreender.
Mas, e a linguagem? A linguagem, em Ricoeur, traz as marcas da linguagem natural, simbólica,
estruturalista e analítica, como discorreremos a seguir. Tentaremos, com esta exposição
introdutória, mostrar em que medida Ricoeur é um filósofo da linguagem ou como ele está
associado às correntes linguísticas de seu tempo.
Desde muito cedo Ricoeur se interessou pela linguagem nas suas mais variadas formas.
A licenciatura em Letras lhe proporcionou estudar as línguas clássicas e ter contato com
clássicos da literatura e da religião, mas foi provocado a mudar de área por conta de seu estilo
“demasiado filosófico” e assim o fez (RICOEUR, 2009, p. 20). No universo filosófico, lhe foi
útil aquele contato com a literatura em geral, pois essa via lhe favoreceu uma experiência com a
linguagem não somente enquanto veículo de comunicação, mas também lugar de habitação,
meio no qual a realidade se dá e acontece. Partindo de seu trajeto, depois de se dedicar ao signo,
ao símbolo e ao mito, Ricoeur se interessa pela linguagem enquanto discurso e dialoga com
várias correntes linguísticas, especialmente de viés estruturalista e analítica. Em seu entender, o
filósofo recebe a linguagem do ordinário da vida e do mundo, toma-a como guia para acessar
realidades profundas e significativas.
2
Estamos nos referindo aos artigos “Paul Ricoeur e a filosofia reflexiva – uma introdução”, que publicamos na
revista Kairós, em dezembro de 2022. E “Paul Ricoeur e a fenomenologia – uma introdução,” publicado na
revista PRISMA, em julho de 2023. O texto sobre hermenêutica ainda será publicado.
A primeira grande frente de trabalho de Paul Ricoeur foi a aplicação do método
fenomenológico no campo prático. Não obstante os êxitos, a eidética da vontade foi incapaz de
descrever e revelar o sentido de realidades da concretude humana, como aquelas do âmbito
involuntário e aquelas outras associadas à experiência de falta (culpabilidade) 3. Face a essas
realidades concernentes à capacidade e, especialmente, a falibilidade humana, Ricoeur recorre
a uma descrição empírica e mítica (mítica concreta), modelo “extra-racional”, em busca de
indícios para sua compreensão (RICOEUR, 2004, p. 10). Na verdade, é essa uma estratégia de
cunho linguístico para abordar indiretamente algo que está presente no campo prático, fazendo
uso dos saberes do universo religioso e mítico. Sem fazer etiologia dos símbolos nem dos
mitos, seu interesse nessa ocasião foi pela função simbólica e mítica reveladora de aspectos da
realidade que escapam a outras análises (RICOEUR, 2004, p. 171; 1970, p. 16-17). Esse
interesse é, na verdade, pela linguagem que comunica o símbolo, que desafia o conceito e
provoca reflexão.
Ricoeur define o símbolo como “toda estrutura de significação em que um sentido
direto, primário, literal, designa, além disso, outro sentido indireto, secundário, figurado, que só
pode ser apreendido através do primeiro” (RICOEUR, 1969, p. 16). O símbolo é, portanto, uma
realidade intencional, uma linguagem que mira um duplo sentido. Por isso, “o símbolo dá o que
pensar” (RICOEUR, 2004, p. 482). Esse mote kantiano é posto por Ricoeur na conclusão de
uma longa reflexão sobre a simbologia. É uma máxima que não serve para encerrar a questão e
sim para alargar a reflexão, para provocar o pensar mais e melhor. Para Ricoeur, o mote diz
pelo ao menos duas coisas: “o símbolo dá; não sou eu que estabeleço o sentido: é ele que dá o
sentido; mas o que ele dá é o que pensar, em que pensar. A partir da doação, a posição”
(RICOEUR, 2016, p. 134)4. Isso significa que o símbolo é, fundamentalmente doação, dom da
linguagem. Uma doação a ser recepcionada pela reflexão, uma recepção que se converte em
obrigação de pensar e em dever de inaugurar um discurso a partir daquilo que o precede e o
funda. O símbolo, nesse sentido, é princípio de um saber filosófico, um saber que não começa
no vazio, nem no ego e sim na linguagem que já coloca em questão o sentido e o seu
fundamento.
3
Sobre Ricouer e a fenomenologia é de grande importância ler: MORATALLA, Tomás Domingo. ¿Es Paul
Ricœur un fenomenólogo? Entre fenomenología y hermenêutica. Escritos. Vol. 26, No. 57, julio-diciembre
(2018).
4
Essa citação faz alusão ao movimento de descentralização do cogito que, para uma filosofia do cogito, é doador
de sentido, além de ponto de partida e fundamento último do pensar. Sobre esse assunto, indicamos nosso artigo:
Repensar a subjetividade com Paul Ricoeur. In: Iluminare – Revista de Filosofia e Teologia / Instituto de
Filosofia e Teologia de Goiás (IFTEG). v. 4, n.1 (jan/jun). Goiânia, 2021. E, notável é o artigo de João Amaral
Ribeiro, intitulado A hermenêutica de Paul Ricoeur face à filosofia reflexiva. Lisboa: Phainomenon, Edições
Colibri, 2000.
Tudo o que é dito pode sê-lo em enigmas (símbolo), fazendo-nos pensar para decifrar,
para compreender esse tudo que é a realidade. Para melhor perceber isso, Ricoeur nos convida a
visitar o império variado dos símbolos que, como sugerem as leituras eliadiana, freudiana e
bachelardiana, apontam para as expressões sagradas cósmicas, oníricas e poéticas. O aspecto
cósmico favorece a leitura do sagrado primeiramente no mundo, nos elementos da natureza, do
cosmos. Essas realidades são como que hierofanias, manifestações do sagrado que ampliam as
experiências antropocêntricas e trazem um sentido englobante da realidade em “regime
ontológico” (RICOEUR, 1970, p. 16; 37). A dimensão onírica remete às funções psíquicas dos
símbolos mais fundamentais e mais estáveis da humanidade. Em relação ao cosmo, o onírico é
o correlato antropológico de manifestação do sagrado, é a vinculação entre o “ser do homem e o
ser total” (RICOEUR, 1970, p. 17). Não é o caso de opor a dimensão cósmica à dimensão
onírica, pelo contrário, é preciso vincular, pois ambos são como que “dois polos de uma mesma
expressividade: me expresso ao expressar o mundo; exploro minha própria sacralidade ao
decifrar o mundo” (RICOEUR, 2004, p. 178). Essa dupla expressividade é completada pela
terceira modalidade do símbolo que é a imaginação poética. Imaginação não é aqui um modo
de suprir ausências (representação), mas sim, ostentar a presença das coisas do mundo
(expressar). Diferente das manifestações cósmicas e oníricas, o símbolo poético nos mostra a
expressividade em seu estado nascente, faz surgir, assim, a linguagem em sua emergência. E
vale destacar que não são três formas independentes de símbolos, pois são vinculadas e
comunicáveis entre si, são aspectos de um tipo de estrutura simbólica.
Ricoeur diferencia o símbolo de outras linguagens que lhe são próximas, como é o caso
do signo e do mito. Ele toma o símbolo como “significações analógicas espontaneamente
formadas e dadas” (p. ex: a água). Essa é uma realidade intencional, uma linguagem que mira
um duplo sentido. Diferente do signo que é amplo, visa além dele próprio e vale por tal coisa
visada (ex: a palavra) (RICOEUR, 2004, 179; 1970, p. 10). Por sua vez, Ricoeur considera o
mito uma espécie de símbolo desenvolvido em forma de narrativa. O mito é “uma forma de
discurso que eleva uma pretensão ao sentido e à verdade” (RICOEUR, 2016, p. 177). Mas, a
situação não é simples, pois é comum que a filosofia busque o fundamento racional, a razão de
ser e exclua a narrativa mitológica. Paradoxalmente, o mito insiste em se mostrar, pois ele não
se esgota em sua potencialidade imaginativa de conotação ontológica. É assim que, na história
da filosofia, foi e será preciso escolher entre mythos e logos (representação-conceito), exceto se
se admitir os dois, criando um modo de bem articulá-los, como procura fazer Paul Ricoeur.
Enquanto forma de discurso, Ricoeur chama atenção para a estrutura do mito, podendo
ser explicada, sem esgotar sua significação que está para além de toda explicação estrutural.
Sua significação advém de uma linguagem polissêmica que o caracteriza, sendo capaz de dilatar
o enunciado que carrega o sentido e a referência, algo próprio de uma linguagem indireta.
Enquanto discurso, o mito diz algo sobre alguma coisa, diz algo ‘in illo tempore’, por meio de
representações, ritos, valores e histórias de começo e fim. Nisso, o discurso mítico engendra
sabedoria, favorece conhecimento de mundos, viver neles e enfrentar seus absurdos, pois faz
aparecer horizontes de sentidos. Acomodando-se no mundo, o mito nos faz repousar no ser,
haurindo significações para o existir.
Embora existam diferenças, é estreita a relação entre símbolo e mito. Podemos até dizer
que a simbologia se desdobra ou está acomodada em narrativas mitológicas que dão traços
históricos para as realidades abordadas. Se no império variado dos símbolos Ricoeur se dedica
ao estudo das expressões sagradas cósmicas, oníricas e poéticas, no universo mítico, ele analisa
os chamados mitos de começo e fim, pertencentes à cultura grega e hebraica. Destacamos os
mitos de origem que costumam retratar o caos originário ou um cenário de harmonia no qual se
dá irrupção do mal (RICOEUR, 2004, p. 325, 349). Nesse mesmo âmbito está o mito adâmico
que é um mito antropológico por excelência. Esse mito possui uma tríplice função: dissociar o
mal da bondade originária, diferenciar o Deus santo do homem pecador e assim ser o ponto de
ruptura entre o ontológico e o histórico (RICOEUR, 2004, p. 378). Um outro tipo é o mito da
alma exilada, ao qual segue a ideia de retorno. Ele retrata a invenção da alma e do corpo, o
indício de dualidade, de positividade da alma em detrimento do corpo e a ideia de uma vida
feliz anterior e posterior a sua união com corpo (RICOEUR, 2004, p. 419ss). É comum a esses
três tipos de mitos evocados a concepção dramática da realidade e o trágico da existência
humana no mundo. Eles estão para acenar um ponto de partida que não precisa ser uma
primeira verdade, mas um pressuposto prévio, um lugar em que o pensamento habita no plano
da linguagem.
De modo geral, os relatos mitológicos têm a função de englobar a humanidade em uma
história exemplar, tornar a universalidade do homem uma experiência concreta e assim procurar
desvendar o enigma da existência humana (RICOEUR, 2004, p. 313). Assim, o mito tem um
alcance ontológico por apontar para a relação entre o ser essencial do homem e sua existência
temporal e concreta. Seu formato não é de relatar um fato acontecido, nem de explicá-lo, mas
sim de convidar a conhecer por outro ponto de partida que não seja o racional (logos). O mito
possui formas de acontecimentos diferentes dos relatos históricos, pois sua ‘referência’ é para
aquém do começo e além do fim da historiografia. Daí que os mitos de origem e de fim – que
são os mais conhecidos – possuem “excesso de significação”, sem contar que todos eles são ou
trazem espectros do trágico, revelando, assim, uma dimensão própria do existir humano.
O símbolo e o mito possuem estrutura intencional e caráter de duplo sentido que
desafiam o pensamento. Pensar o símbolo e/ou o mito é pensar a linguagem na qual eles se
movem e isso requer interpretação. Com efeito, não existe símbolo sem um princípio de
interpretação, assim como não há interpretação que não pertença ao pensamento simbólico e de
duplo sentido (RICOEUR, 1970, p. 20)5. Algo parecido se dá com as narrativas mitológicas,
uma peça simbólica maior, que se abre ainda mais a um imaginário que exprime realidades
significativas. Tanto o símbolo quanto o mito fazem-nos regressar à experiência originária da
linguagem, renunciando a um fundamento absoluto e inserindo-nos num mundo mais vasto e
diverso, onde o existir é mediar. Nesse sentido, a abordagem do símbolo e do mito leva,
inicialmente, Ricoeur a definir hermenêutica como ciência de decifração de símbolo, cujo
sentido literal é guiado por um segundo sentido a ser descoberto, com valor ontológico
implicado (RICOEUR, 1970, p. 37; 1997, p. 71). Sem ser evasivo, o símbolo e o mito unem,
mediam as relações entre paradoxos, entre o subjetivo e a realidade, apontando para a realidade
na qual nos movemos, existimos e pensamos.
O fato de conceber o mito como discurso e levar em conta sua estrutura, nos leva a
considerar a relação de Ricoeur com o estruturalismo, cujas raízes remontam a Ferdinand de
Saussure, com sua distinção entre langue (língua) e parole (fala). Nesse modelo estrutural, a
linguagem não é mediação, é um mundo próprio no qual cada elemento se refere apenas a
outros elementos do mesmo sistema, configurando um sistema autossuficiente e de relações
internas. Por preferir a sintaxe, realizar uma semiótica e fazer desaparecer a linguagem como
discurso, o estruturalismo será confrontado por Ricoeur com a semântica de Emile Benveniste,
passando assim da langue/parole à frase (RICOEUR, s/a, p. 14; 1986, p. 115). A frase já possui
uma significação e é um procedimento integrativo de linguagem. Da frase Ricoeur passa ao
discurso, tido como “o evento da linguagem”, capaz de comportar semântica e semiótica, o
signo e a frase. O discurso tem estrutura diferente daquele analítico estruturalista, pois sintetiza
identificação (singular) e predicação (universal) numa frase com significação. No discurso o
evento e a significação se articulam, tal como uma relação de noese e noema dentro da
linguagem que não é fechada em si, pois ela diz e dizer é mostrar, direcionar a algo distinto dela
mesma (RICOEUR, 1969, p. 56; 1986, p. 184).
5
É comum entre os comentadores, como os renomados Jervolino (2011) e Grondin (2015), apresentar o itinerário
intelectual de Ricoeur destacando o símbolo/mito no esboço da teoria da interpretação. Estamos de acordo com
isso, muito embora aqui nos interessa tratar mais diretamente da linguagem, deixando sua clara incidência
hermenêutica para outro momento. A propósito, Barros de Oliveira, em seu artigo, “Entre philosophie et
linguistique: autour de ‘Philosophie et langage’ de Paul Ricœur” (2020), ao reconstruir a filosofia da linguagem
de Paul Ricoeur, sinaliza para a raridade desse empreendimento que situa as reflexões de Ricoeur no campo da
filosofia da linguagem.
O debate com o estruturalismo foi intenso e muitos outros elementos foram colocados
em questão. No geral, Ricoeur concorda que a análise estrutural tem lugar garantido, pois a
linguagem pode ser analisada por aquilo que a constitui. Mas isso não significa enclausurá-la
em sua estrutura, pois, mais que relação entre signos, ela é “emergência de expressividade”, é
produção de enunciado significativo (RICOEUR, 1969, p. 78; 84). Ainda no mesmo terreno,
Ricoeur diferencia filosofia estruturalista e estudo estrutural de textos. Enquanto ele concorda
com o método, resiste sua transformação em filosofia, como fez Lévi-Strauss. A filosofia
estruturalista levistrussiana transforma em sistema fechado qualquer realidade, tais como a
história, a cultura, os mitos e até o próprio homem, numa redução à uma constituição estrutural
(RICOEUR, 2009, p. 126). Tal redução, no entender de Ricoeur, leva à supressão de qualquer
realidade, inclusive o próprio homem. Para, ao mesmo tempo, se beneficiar e atravessar o
estruturalismo, Ricoeur reforça a ideia de linguagem enquanto discurso irredutível a
fechamento e dotado de tensão ontológica. Quanto à sua expressão, depois da abordagem do
símbolo, é a vez da metáfora, amplamente trabalhada na obra La métaphore vive (1975).
Ricoeur fala da metáfora em termos de estrutura e significação. Segundo ele, na
semântica moderna a metáfora tem a ver com a frase e não com a palavra; ela é um fenômeno
de predicação, é criação, invenção e não mera substituição de termos nem ornamento do
discurso. Fala-se, então, de enunciado metafórico. Mas uma metáfora não existe em si mesma,
o que existe é o sentido garimpado no enunciado, é a novidade que ela diz acerca da realidade
(RICOEUR, s/a, p. 58). Faz parte do enunciado metafórico a questão semântica e o problema da
referência. Para Ricoeur, a metáfora libera o enunciado da fixação literal ou da intenção do
enunciador. Num movimento de suspensão da referência, a metáfora inaugura uma “denotação
de segunda ordem” (conotação) e assim ‘reescreve’ a realidade (RICOEUR, 2000, p. 13). Além
disso, a metáfora é uma arte de mostrar, “de fazer ver. [...] de fazer aparecer o discurso”,
descobrindo imagens e provocando o pensamento conceitual a pensar mais, auxiliado pela
interpretação (RICOEUR, 2000, p. 60, 465; 1997, p. 53). O enunciado metafórico relaciona
semântica e ontologia, sentido e realidade, possuindo uma “veemência ontológica” que cabe
uma exploração.
O enunciado metafórico aparece em vários tipos de discursos como, por exemplo, na
retórica e na poética. A retórica é a disciplina mais antiga de uso da linguagem como discurso
e, até hoje, há quem a utilize para explorar essa parte da linguagem. Ela é a arte de argumentar
para convencer uma plateia de que uma opinião é melhor que sua rival. A poética em certos
âmbitos chega a se confundir com a retórica, sobretudo se tomarmos a definição aristotélica de
poiésis como produção de discurso, realidade comum às duas que se repete na região do
provável. Mas, o que diferencia uma da outra é a proveniência de lugares diferentes e a
projeção a objetivos diferentes. Desse modo, a poética é a arte de construir intrigas para
expandir a imaginação individual e coletiva (RICOEUR, 1992). Ricoeur se ocupa mais com a
poética do que com a retórica, sendo que há várias outras modalidades de discurso, como o
discurso hermenêutico que falaremos adiante. O discurso poético é agenciado pelo par mythos e
mimesis: enquanto o mythos metaforiza, a mimesis reescreve. A junção desses dois é obra de
toda poesia, sendo mais facilmente manifestada naquela em que o mythos toma forma de
discurso narrativo e a mimesis redescreve o agir humano (RICOEUR, 1983, p. 9).
O discurso narrativo, bem apresentado em Temps et récit (1983-1985), por estar no
domínio do poético, é coerente, possui uma linha condutora e seu conjunto mostra-se completo,
um enredo de elementos heterogêneos. Com o discurso narrativo, Ricoeur preserva a amplitude,
a diversidade e a irredutibilidade da linguagem. Mostra ainda que todo enredo está vinculado ao
tempo e mesmo os enredos de ficção possuem validez (RICOEUR, 1986, p. 11). Além disso,
assegura que a vida humana é potencialmente narrativa e está em busca de narrador. Sendo uma
boa estratégia de mediação, a narrativa é invenção de um enredo (intriga), literário ou histórico
que, operada pelo par mythos-mimesis, reescreve a ação humana. Cabe a mimesis transpor a
ação ao reino do “como-se”, realizando ruptura e ligação, numa tríplice operação de
prefiguração, configuração e refiguração (RICOEUR, 1983, p. 78). Essa tríplice operação ou
tríplice mimesis, corresponde à referência, à criação e à recepção. Isso quer dizer que o discurso
narrativo se ocupa com a ação, parte das ações humanas e tende às ações. Está implicado nesse
discurso, além da linguagem, a questão temporal, historiográfica e ainda um modo de poder
ser/existir no mundo. Com o discurso narrativo, Ricoeur vê a linguagem em seu potencial de
reorientar, reestruturar e produzir um modo de habitar no mundo, um modo de acessar uma
ontologia.
Com a teoria narrativa, Ricoeur deu uma atenção especial à noção de texto, que pode ser
tomado em sentido alegórico, analógico e simbólico. O texto é tudo aquilo que é suscetível de
compreensão: não somente a escrita, mas também as ações humanas, os monumentos e a
história (individual ou coletiva); aquilo que é inteligível no sentido de que pode ser tomado
como texto ou são inscritos enquanto tais (obras). Seja ele qual for, o texto é um discurso,
evento da linguagem dotado de referência e significação. O discurso pode ser oral ou escrito.
Enquanto oralidade, pressupõe locutor, interlocutor e assunto; é um fenômeno temporal e
intencional, distinto da língua que é virtual e atemporal (fora do tempo) (RICOEUR, s/a, 26;
1986, p. 184). O discurso reforça o lugar da palavra (realidade virtual) e da frase (realidade
atual) contemplando, assim, semiótica e semântica numa peça maior que é o texto. Desse modo,
com a noção de texto, Ricoeur concebe uma teoria da interpretação que tem como mote
explicar mais para compreender melhor.
O texto pode ser um discurso fixado (escrita) ou um discurso realizado (ação). Nesse
último caso, entramos no domínio prático onde a ação é tida como quase-texto, tal qual uma
obra endereçada a leitores (RICOEUR, 1986, p. 175; 1997, p. 118). Para Ricoeur, o “fazer” é
também uma forma de “dizer”, por isso, há um ‘discurso da ação’ que pode ser analisado nos
níveis dos conceitos, das proposições e dos argumentos. No nível dos conceitos estão as
seguintes categorias: sentido, intenção, fim, razão, desejo, preferência, escolha, agente e
responsabilidade. Através das proposições as ações são expressas mostrando, assim, uma
estrutura locucionária capaz de fixar uma força ilocucionária, permitindo sua autonomia (como
no texto)6. O terceiro nível é o dos argumentos que se atém ao discursivo, tentando mostrar
causas, motivos e o que se torna inteligível para a história (RICOEUR, 1977, pp. 11-17). Com
esse movimento em torno da ação, Ricoeur realça o papel da linguagem, dessa vez situando-a
no nível do vivido, da atuação, considerando a ação como um texto.
O discurso da ação em Ricoeur nos remete ao seu contato com a filosofia analítica. Os
pressupostos da filosofia analítica são empregados tanto no texto quanto na análise do ato, isto
é, no discurso enquanto tal. Considerando que o discurso é um evento significativo, sua
realização se dá mediante a atos de enunciação e envolvimento de enunciador. Os atos de
enunciação ou simplesmente ato discursivo são analisados pelos prismas semântico e
pragmático, seguindo os linguistas Paul Grice, J. L. Austin, Searle, Strawson e Frege
(RICOEUR, 1986, p. 184; 1990, p. 39). No plano semântico a linguagem é estruturada ao modo
de designação, através de operadores de individuação disto ou daquilo. Para Ricoeur, a
vantagem nesse caso é o de apontar para um estatuto lógico elementar de sentido. No plano
pragmático, o significado de uma proposição depende do contexto de interlocução, é
constituído pelo “eu/falo/faço” fazendo notar que o discurso é dizer algo sobre algo para
alguém. No entender de Ricoeur, isso é diferente de uma simples proposição lógica, pois os
dois polos do discurso estão implicados, uma vez que o ato de se dirigir a alguém exige a
inversão e nisso cada um designa a si mesmo dirigindo-se ao outro. Essa abordagem é ampla,
6
Vejamos uma passagem que sintetiza a relação texto e ação. “Je dirai en bref que d’un côté la notion de texte est
un bon paradigme pour l’action humaine, de l’autre l’action est un bon référent pour toute une catégorie de
textes. En ce qui concerne le premier pont, l’action humaine est à bien des égards un quasi-texte. Elle est
extériorisée d’une manière comparable à la fixation caractéristique de l’écriture. En se détachant de son agent,
l’action acquiert une autonomie semblable à l’autonomie sémantique d’un texte; elle laisse une trace, une
marque; elle s’inscrit dans le cours des choses et devient archive et document. A la manière d’un texte, dont la
signification s’arrache aux condition initiales de sa production, l’action humanie a un poids qui ne se réduit pas à
son importance dans la situation initiale de son appartion, mais permet la réinscription de son sens dans de
nouveaux contextes. Finalement, l’action, comme un texte, est un oeuvre ouverte, adressée à une suite indéfinie
de “lecteurs” possibiles” (RICOEUR, 1986, p. 175).
basta dizer nesse momento que o discurso envolve enunciado e enunciador, numa correlação
inevitável. Dizemos ainda que se pode falar de “veemência ontológica” da linguagem, no caso
aqui, dos atos de linguagens ou enunciados discursivos.
A análise linguística esforça-se para esclarecer a linguagem ordinária e reforça, assim, a
teoria do discurso fixado (texto) e a teoria do discurso realizado (ação) de Paul Ricoeur 7. Em
seu emprego, Ricoeur é capaz de manter a diferença em relação a outras abordagens, como a
fenomenologia, por exemplo, como está no já citado Le discours de l’Action (1977). Nesse
ensaio, Ricoeur analisa o discurso da ação a partir da análise linguística e da fenomenologia
com a finalidade de apresentar pressupostos para uma filosofia da ação, algo anterior aos
discursos ético, jurídico e político. Em certa altura da obra, ele compara as duas abordagens,
apresenta os limites e torna uma complementar a outra, mantendo as distinções, passando a
chamar fenomenologia linguística (RICOEUR, 1977, p. 131; 2016, p. 113). Esse procedimento
é feito em vários outros momentos discursivos, fazendo sobressair um tipo de método oriundo
da fenomenologia e da linguagem que se completa com a hermenêutica, que se perfila como um
tipo discurso8.
O discurso hermenêutico se caracteriza por seu caráter interpretativo, não obstante o
distanciamento temporal, geográfico ou cultural do texto (ou da ação). Por visar o sentido, o
discurso hermenêutico é teoria de múltiplos sentidos. Tradicionalmente, o discurso
hermenêutico foi aplicado em textos sagrados, em textos clássicos e em textos jurídicos. Essa
aplicação visava reencontrar a intenção que estava por trás de cada texto, mas para Ricoeur, o
objetivo é encontrar o sentido do próprio texto que é autônomo e possui mundo próprio 9. A
hermenêutica é porta de entrar para a aventura no mundo do texto e isso se dá graças à
imaginação produtiva que, suspendendo referências, faz pensar mais, descortinar horizontes e
alargar sentidos. Desse ponto de vista, o discurso hermenêutico tem a pretensão de, ao
7
Há quem diga que Ricoeur não dialogou com a filosofia analítica, o que ele fez foi tomá-la como método ou
referência para sua elaboração filosófica. Quem defende essa posição é Pascal Engel, em Y a-t-il eu vraiment une
recontre entre Ricoeur et la philosophie analytique? In: Études Ricœuriennes / Ricœur Studies Vol 5, n. 1. 2004,
pp. 125-141. Ao nosso ver, o diálogo de Ricoeur com a filosofia analítica acontece na medida em que seu perfil e
seu estilo filosófico lhe permitem.
8
É digno de nota, neste momento, o instrutivo texto de Philipper Lacour, em que ele apresenta cinco diferentes
níveis de discurso da filosofia de Ricoeur, quais sejam: a análise descritiva, a composição transfrástica, a
autocompreensão interpretativa, a antropologia das capacidades fundamentais e, por fim o metafísico. São
discursos que se articulam reflexivamente em prol de variadas significações. (Cf. LACOUR, Philipper.
Signification et réflexivité dans la philosophie de Ricoeur. In: Études Ricœuriennes/ Ricœur Studies, Vol 11, No
1, 2020).
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Existe uma vasta biografia de Ricoeur sobre a hermenêutica, da qual indicamos: Le conflit des interprétations.
Essais d'herméneutique (1969), Du texte à l’action. Essais d’hermnéneutique II (1968) e os vários textos em
Hermenêutica e ideologias. Sobre a bibliografia secundária, reportamos ao leitor à nossa dissertação, na qual
trabalhamos esse tema e indicamos estudiosos que também o fizeram. CORREIA, Mário. Sujeito e Tempo em
Paul Ricoeur. Fenomenologia, Poética e Hermenêutica a subjetividade. Goiânia: Espaço Acadêmico, 2020.
interpretar, provocar inovação semântica e abrir um novo mundo. Mas, não é uma pretensão
ingênua, pois a ela se acompanha a crítica, tornando assim o discurso hermenêutico uma
reflexão, um estilo filosófico, um modo de filosofar hermeticamente. Ademais, acompanha a
hermenêutica a tarefa de revelar as dimensões de novas realidades descobertas, numa certa
explicitação ontológica.
Hermenêutica e linguagem caminham juntas. A propósito, na obra ricoeuriana, a
hermenêutica está presente desde quando ele aderiu a uma mítica concreta para melhor
compreender algumas realidades que o método fenomenológico não consegue alcançar. Onde
há símbolo, mito, metáfora, narrativa, texto, há necessidade de interpretação. Quando o
discurso, essa grande peça da linguagem, se desprende de seu enunciador/autor naturalmente
ele passa a fazer parte do campo hermenêutico. E, nesse campo, o método e o sentido farão
diferenças numa busca de explicação e compreensão. A manutenção do método e do sentido
condiz com o que Ricoeur também faz na fenomenologia ou na linguística, quando mantém
pensamento e realidade. Vale notar que fenomenologia, linguagem e hermenêutica formam um
tripé de sustentação de toda a reflexividade ricoeuriana, cujo chão ou alcance ontológico
merece ser investigado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
CORREIA, Mário. Repensar a subjetividade com Paul Ricoeur. In: Iluminare – Revista de
Filosofia e Teologia / Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás (IFTEG). v. 4, n.1 (jan/jun).
Goiânia, 2021.
ENGEL, Pascal. Y a-t-il eu vraiment une recontre entre Ricoeur et la philosophie analytique?
In: Études Ricœuriennes / Ricœur Studies Vol 5, n. 1. 2004.
GENDE, Carlos Emilio. Lenguaje e interpretación en Paul Ricoeur. Buenos Aires: Prometeo
Libros, 2005.
GRONDIN, Jean. Paul Ricoeur. Trad. Sybil Safdie Douek. São Paulo: Ed. Loyola, 2015.
RIBEIRO, João Amaral. A hermenêutica de Paul Ricoeur face à filosofia reflexiva. Lisboa:
Phainomenon, Edições Colibri, 2000.
RICOUER, Paul. Autobiografia intelectual. In: Da Metafísica à Moral. Lisboa: Instituto Piaget,
1997.
RICOUER, Paul. A metáfora viva. Trad. Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2000.
RICOUER, Paul. Du texte à l’action. Essais d’herméneutique II. Paris: Le Seuil, 1986.
RICOUER, Paul. Finitud y culpabilidad. Livro I: El hombre falible. // Livro II: La simbólica
del mal. Madrid: Trotta, 2004.
RICOUER, Paul. Freud: uma interpretación de la cultural. Ciudad de México: Siglo XXI,
1970.
RICOUER, Paul. Le conflit des interprétations. Essais d'herméneutique. Seuil, Paris, 1969.
RICOUER, Paul. Lectures II. La contrée des philosophes. Paris: Seuil, 1992.
RICOUER, Paul. Escritos e Conferências, 3: antropologia filosófica. São Paulo: Loyola, 2016.