Projecto de Pesquisa TFC - gaudêncio

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7.

Índice Provisório

Lista de abreviaturas

Resumo

Abstracte

Palavra-chaves

Introdução

Desenvolvimento

I Capítulo. O princípio da presunção da inocência

I.1. Noção e génese histórica

I.1. Noção

Ab initio, tem-se por princípio «a orientação que informa o conteúdo de um conjunto de normas
jurídicas, que tem de ser tomada em consideração pelo intérprete, mas que pode, em alguns casos
ter directa aplicação»1

Pela afirmação do Professor Germano Marques da SILVA2 trata-se de «um princípio Geral de
direito processual penal que recebeu consagração expressa nos textos internacionais sobre os
direitos humanos e nas constituições democráticas modernas». Com reconhecimento
constitucional denotando deste modo os «princípios constitutivos que exprimem os valores
preferenciais dos bens prevalentes em dado momento numa certa comunidade».3

1
Ana PRATA. Princípio,” in: Dicionário Jurídico. Direito civil. Direito Processual Civil. Organização judiciária”,
Vol. I, 5ª ed., Ed. Almedina, Coimbra, 2012, Pág. 1112.
2
Germano Marques da SILVA. Direito processual Penal Português. Noções Gerais. Sujeitos Processuais e Objecto,
Universidade Católica Editora, Lisboa 2013, Pág. 13
3
José de Figueiredo DIAS. Processo Criminal, Lições ao 5º ano da Faculdade de Direito de 1970-1971, Universidade
de Coimbra, Coimbra 1971, Pág. 99
Diferente da presunção em sentido técnico-jurídico tal como consta do artigo 349º cc, com
recorte para o direito civil, que tem que ver com uma inferência de um facto conhecido para um
desconhecido.

Alude-se que o princípio da presunção da inocência se enquadra no vasto grupo de princípios


fundamentais que informam o Processo Penal. Princípios definidos como indicadores dos
«caracteres fundamentais denunciadores da evolução desejável do processo penal, e que serão os
princípios que devem dominar o processo penal como um tipo de processo ideal a atingir» 4. Pelo
que toda relevância que se dá a este princípio se deve ao facto de que «a presunção de inocência
pertence ao grupo dos princípios fundamentais do processo penal em qualquer Estado-de-
direito»5

Pelo princípio da presunção da inocência, «até haver uma decisão penal condenatória com
transito em julgado todo arguido se presume inocente» 6. Firma-se como um princípio com
efeitos intraprocessual e extraprocessuais, pode ser considerado como um direito público, que
confere a qualidade e condição de ser julgado apenas dentro de um processo penal, com a
projecção da susceptibilidade de ser tratado e considerado como não responsável criminalmente,
enquanto não for condenado e que tal condenação tem de necessariamente transitar em julgado,
daí que se deve garantir o afastamento de quaisquer consequências derivadas da prática do facto
criminoso, enquanto não se remeter o indiciado a pratica de um crime em juízo. E no plano
processual, este princípio aplica-se a todo procedimento inerente a matéria da prova, fazendo
com que qualquer decisão condenatória aplicada como consequência da prática do facto
criminoso, seja suportada sobre provas credíveis, legalmente possíveis e rigorosamente assentes
na clareza dos factos alegados contra a pessoa suspeita de um crime e que são estas provas que
devem fundamentar a decisão condenatória penal7e na eventualidade de se instalar dúvidas sobre
o teor ou conteúdo da prova a mesma deve ser valorada no sentido mais favorável ao arguido8

Visto nesta perspectiva diríamos que o princípio da presunção da inocência tem um pendor
eminentemente processual, porém, pelo asseverado por Germano Marques, de que o princípio da
presunção da inocência «assenta no reconhecimento dos princípios do direito natural como
fundamento da sociedade, princípios que aliados à soberania do povo e ao culto da liberdade

4
Manuel Cavaleiro de FERREIRA. Curso de Processo Penal, Vol. 1º. Ed. Nadubio Lda, Lisboa, 1986, Pág. 21
5
Jorge de figueiredo DIAS. Direito Processual Penal, Vol. I, Ed Coimbra Lda, Coimbra, 1974, Pág. 214
6
Manuel Simas SANTOS et. al. Noções de Processo Penal, 2ª ed, Ed. Letras e Conceitos Lda, Lisboa, 2011, Pág. 50
7
Germano Marques da SILVA. Curso de Processo Penal, Vol. II, Ed. Verbo, Lisboa, 1993, Págs. 89-90.
8
Ibdem. Pág. 91
constituem elementos essências da democracia»9; e apoiados igualmente pela afirmação de Benja
Satula, quando se refere ao Processo Penal como sendo o Direito Constitucional regulamentado,
que «assume o estatuto de veículo de harmonia entre a consagração de Estado Democrático e de
Direito e a dignidade da pessoa humana» 10, nos é possível afirmar que o princípio da presunção
de inocência não pode ser redutível ao formalismo processual penal, porquanto, a defesa dos
direitos liberdades e garantias fundamentais deve estar salvaguardada fora e dentro de um
processo penal, tendo em atenção as alarmantes situações de violações do princípio em causa na
nossa sociedade, com realce no Município do Huambo, de cuja abordagem reservamos para o
terceiro capítulo, onde abordaremos a quês atinente a diversas formas de violação do princípio da
presunção da inocência. Ademais, é comando Constitucional a vinculação a todas entidades, quer
públicas quer privadas, o respeito pelos preceitos inerentes aos direitos, liberdades e garantias
fundamentais, tal como se pode depreender no nº 1 do Art. 28º da CRA.

A ser assim, podemos definir o princípio da presunção da inocência como sendo o princípio que
confere a cada pessoa a prerrogativa de ser reputado inocente, ainda que sobre esta pessoa se
forme uma clara e indubitável evidencia do cometimento de um crime, até que esta pessoa seja
julgada e condenada por uma instância jurisdicional competente, cuja a decisão condenatória
penal esteja transitada em julgado 11, firmando-se como um princípio ao serviço dos direitos do
suposto criminoso fora e dentro do processo

Pois perante uma sociedade como a nossa, onde vislumbramos várias concepções de fazer
justiça, em que em muitos casos não tem importado a dimensão da dignidade da pessoa humana,
o princípio da presunção da inocência enquanto uma garantia Constitucional penal, vista além do
processo penal, pode ser um veículo para a defesa dos direitos, liberdades e garantias
fundamentais do suposto criminoso no sentido de que este princípio apela à consciência de quem
tem cede de fazer justiça, que tal intento só é possível perante um Tribunal do Estado,
competente para julgar em matérias de crimes, fazendo com que a medida da pena seja conforme
os pressupostos e limites estabelecidos por lei.

Dentro do processo penal, este princípio configura a garantia de um tratamento humanizado


diante do poder punitivo do Estado, na certeza de que se vai julgar o acto criminoso e não a

9
Germano Marques da Silva. Direito Processual Penal Português. Noções gerais. Sujeitos Processuais e Objecto
Vol. I, Universidade Católica Editora, 2013, Pág. 50
10
Benja Satula. Reflexo da presunção da inocência da jurisprudência em Africa, in: Guardiã, revista do Tribunal
Constitucional de Angola, nº 1, 2023, Pág. 120
11
Adiante faremos uma abordagem mais pormenorizado sobre o caso julgado.
pessoa presumivelmente criminosa, assegurando um tratamento especial ao arguido, isto é,
podendo ser tratado como inocente no decurso de todo processo12

I.2 Gênese histórica

Ao falarmos da gênese histórica do princípio da presunção de inocência, urge a necessidade de


reconduzi-lo ao âmbito histórico dos próprios Direitos, liberdades e garantias fundamentais para
posteriormente, de uma forma exclusiva se faça uma abordagem histórica ao princípio em causa.

A ser assim começamos por dizer que a proto-história, no que tange aos direitos, liberdades e
garantias fundamentais é caracterizada por uma relativa cegueira em relação ao que tem que ver
com os direitos do homem e temos uma outra caracterizada pela inclusão destes direitos em
alguns documentos declarativos de direitos, liberdades e garantias, dando-se com isto a era da
positivação constitucional dos direitos do homem em documentos constitucionais.13

O processo histórico não é linear encontrando apenas referências nos principais momentos
considerados de consciencialização do problema dos direitos do homem.

Temos assim o momento que de acordo o asseverado por Gomes Canotilho, da luta pelo
reconhecimento da igualdade material e o do “nomo” unitário e a “recta ratio,” isto, é na
antiguidade clássica.

Não se firmas na antiguidade clássica a questão dos direitos do homem na dimensão conhecida
hodiernamente, tendo em consideração a contraposição de qualidade dos direitos atribuídos ao
livre e ao escravo, numa época que se considerava a condição de escravo como sendo natural,
suportada pela ideia de existirem homens com qualidades distintas que eram reconhecidas tento
em conta a aptidão que se tinha em prover encargos para com o Estado, que segundo Platão e
Aristóteles, apenas um pequeno número detinha estas aptidões, sendo que a maioria estaria na
total dependência deste pequeno número, pensamento evidenciado pela ideia da existência de
três classes ou raças de mentes: de ouro, prata e bronze na destinação das funções da Polis.

12
Germano Marques da SILVA. Direito Processual Penal Português. Noções gerais. Sujeitos Processuais e Objecto,
Vol. I, Universidade Católica Editora, 2023, Pág. 54
13
José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora Coimbra,
Coimbra, 1997, Pág. 378.
Nesta contingência de existência de duas classes de pessoas, a classe de escravo reclama a
condição de homem, e neste prisma o escravo é aquele que não obstante a condição de homem,
não pertence a sí mesmo, mas a outro.14

No entanto, o período clássico não é totalmente alheio à ideia dos direitos do homem, ou seja,
dos direitos fundamentais. A partir do pensamento sofístico exalta-se a natureza biológica
comum aos homens e a consequente ideia da igualdade natural e da humanidade. Em pró da
igualdade matéria para a pessoa humana, é curial a passagem de Alcidamas citado por Gomes
Canotilho15, segundo a qual «Deus criou todos homens livres a nenhum fez escravo», e de
Antifon, igualmente citado por Gomes Canotilho16, que atesta que «por natureza são todos iguais
quer sejam bárbaros ou helenos».

Ainda em cede da aspiração do princípio da igualdade encontramos o pensamento estóico que


nos traz a ideia do “nomos” unitário, que converte todos homens em cidadãos do grande Estado
universal, de formas que os direitos das pessoas não estejam limitados ao espaço da polis ou a
uma determinada circunscrição territorial, pensamento do qual se pode depreender a ideia da
universalização e planetarização dos direitos do homem.

É pelo ideal estóico que a percepção da igualdade antropológica se destacou no campo filosófico
e na doutrina político suportada pela ideia de Cícero de igual modo citado por J J Gomes
Canotilho,17 segundo a qual a «lei verdadeira é a razão coincidente com a natureza na qual todos
participam ( ratio naturae quae est lex divina el humana)»

Em pró da fundamentação do direito de todos homens serem considerados iguais, e a


consequente ampliação dos direitos a eles inerentes igualmente a todos os homens temos as
poéticas palavras de Terêncio, citado por Gomes Canotilho 18 que declara: «eu sou homem e nada
do que é humano me é alheio».

No período clássico, apesar de se ter procurado afirmar a ideia da igualdade dos homens assente
na dimensão pessoal e cosmológica, tal pensamento encontrou apenas maior respaldo no plano
filosófico, não podendo sido capaz de se transformar em uma categoria jurídica e em medida
natural da comunidade social.19
14
Cfr. IBIDEM, Pág. 379
15
José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora Coimbra,
Coimbra, 1997, Pág. 379
16
IVI.
17
José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora Coimbra,
Coimbra, 1997, Pág. 379
18
IVI.
19
IVI
Na sequência da análise da proto-história dos direitos do homem é chegado o momento de
falarmos um pouco da fase que marcou a lex natura da inspiração cristã e a secularização do
direito natural.

Pelo que estaremos propriamente nas ideias que nos sãos trazidas na época medieval, cuja maior
protagonismo é conferida às ideias do Tomismo, realçando neste sentido as concepções cristãs
medievais.

Destas nos vem a contraposição da “lex” divina e “lex” positiva que abriram caminhos para a
secularização do direito natural, tendo o direito positivo escrito sido submetido às normas
jurídicas naturais decorrentes da própria natureza humana.

A partir das ideias cristãs, a concepção das leis justas por intermédio da consciência humana,
esta deve ser sempre reconduzida à “lex” divina para a confirmação da “lex” positivo escrita
tendo em consideração categorias do conteúdo da “lex” divina.20

Importa, ainda no que tem que ver com a secularização do direito natural, frisar a escolástica
espanhola, cujo mérito é atribuído à Francisco de Victoria, Vezquez e Suares, cujo pensamento
centra-se na substituição da vontade divina para a razão das coisas, secularização esta que é mais
tarde apoiada por Grotius Pufendorf e Lock, desembocando na “recta ratione” que é explicitada
por Guilherme de Ockam, no século XIV, tendo mais tarde se desvinculado do peso metafisico e
nominalístico, conduzindo à ideia de direitos naturais do indivíduo e à conceptualização dos
direitos humanos universais.21

Cumpre ainda frisar, no período medieval, o dado que nos é trazido a partir da história clássica
Inglesa dos direitos fundamentais, onde temos como destaque a “Magna Charta libertatum” de
1215, considerado um documento histórico importante para a compreensão da «proto-práxis das
garantias processuais penais fundamentais»,22 apesar de no princípio não se tratar de uma
manifestação de direitos fundamentais inerentes a todos porquanto tratava-se de afirmação dos
direitos corporativos da aristocracia feudal em face do seu suserano. Visava fundamentalmente
conferir alguns direitos de predomínio ao Rei e em troca conferia-se alguns direitos de liberdade
plasmados nesta carta, que também pode ser considerada como carta de franquia que alicerça os
interesses locais em face das prerrogativas reais.23

20
José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora Coimbra,
Coimbra, 1997, Pág. 380
21
IVI
22
Francisco Quintanilha Veras NETO; Rofrigo Blieri de ALMEIDA. A Gênese Historica do Processo Penal
Contemporâneo, in: RJLB, Ano 2019, nº 2, Brasília, Pág. 1267
Foi uma lei reputada como sendo de salvação nacional, imposta ao João Sem Terra, visava
colmatar um sentimento de insegurança criadas em relação as excessivas prerrogativas do
soberano e todo mal-estar ocasionada pelas invasões normandas. 24 Sendo que seus autores
pretendiam «corrigir25 os abusos provenientes dos costumes feudais, do despotismo inaugurado
por Guilherme I e seus sucessores».

No entanto releva-se a Magna Charta Libertetum porque desta já se pode depreender certa
abertura na transformação dos direitos aí consagrados, que nesta carta eram considerados
estamentais, para direitos relativos a todos homens,26 tal como se pode compulsar no teor do
Artigo 39º documento em causa, segundo o qual «nenhum homem livre será detido ou sujeito a
prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo
molestado, e nós não nos procederemos, nem mandaremos contra ele, senão em julgamento
regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país». 27 Pelo que nos é possível depreender
no documento em causa a consagração de alguns direitos que são considerados como
fundamentais, porque aí se consagrara que «os de os homens não poderiam ser privados de sua
liberdade, vida ou bens sem julgamento de seus pares e disposição da lei nacional» 28 estando
implícito, neste documento, o direito de ser julgado regularmente.

Contributo do contratualismo

A tónica das ideias do contratualismo é consagrada à questão da justificação da origem do


Estado e com a legislação do domínio, onde Hobbes chega ao leviatham (1651), partindo da
ideia segundo a qual os indivíduos firmam o contrato social em que alienam e abandonam os
seus direitos a favor do soberano que em contrapartida fica com o dever de protege-los. E Locke,
a partir da mesma ideia, de contrato social, opõe-se, no entanto, contra a ideia de atribuição do
poder desmedido ao Rei ou ao Estado, em que tal poder é exercido acompanhada com uma
máquina centralizada, burocrática, em que os nobres detêm privilégios, onde a marginalizada é

23
José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora Coimbra,
Coimbra, 1997, Pág. 380
24
Francisco Quintanilha Veras NETO; Rofrigo Blieri de ALMEIDA. A Gênese Historica do Processo Penal
Contemporâneo, in: RJLB, Ano 2019, nº 2, Brasília, Pág. 1268
25
IBDEM Pág. 1271
26
José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora Coimbra,
Coimbra, 1997, Pág. 381
27
Magna Charta Libertetum. Artigo 39º
28
Hercílio de SOUSA, apud Francisco Quintanilha Veras NETO; Rofrigo Blieri de ALMEIDA. A Gênese Historica do
Processo Penal Contemporâneo, in: RJLB, Ano 2019, nº 2, Brasília, Pág. 1270
sempre a burguesia. Tais ideias vão resultar em uma luta da burguesia em face da falta de
liberdade política, constituindo-se em principal incentivo para os direitos do homem. 29

As ideias de Hobbes vão nos remeter à legitimação do poder absoluto do Rei, ideias estas que
são contrariados por J. Locke no sentido de que o Rei não toma para sí todos os direitos que
poderiam pertencer aos indivíduos. Desta contraposição, é possível vislumbrar a defesa da
autonomia privada concretizada no direito à vida, à liberdade e à propriedade.

Com o individualismo possessivo que se subtrai da teoria de Locke, é possível chegar à teoria
liberal dos direitos fundamentais que protagoniza a defesa total dos direitos do homem perante o
poder do Estado, resultando na limitação do poder do Estado em invadir a esfera privada do
cidadão, em que com Rousseau chegamos à ideia de a liberdade no Estado-sociedade, em que a
esfera da liberdade encontra razões de limitações nos direitos dos outros, que para o Estado
desemboca no dever de autovinculação jurídica.30

Especificidade histórica do princípio da presunção da inocência

Ao concentrarmos especificamente ao princípio da presunção da inocência, quanto ao seu recorte


histórico, podemos apresentar como primeiro dado, quanto à génese histórica do princípio em
questão, o facto de o seu conteúdo axiológico terá aparecido pela primeira vez no sistema
acusatório Romano, no séc. II, em que, no Digesto, o conteúdo valorativo nos vem suportado
pelo «adágio “ei incumbi probatio qui dicit non qui negat,” no sentido de que a incumbência da
prova compete a quem acusa, não a quem se defende».31

Ainda segundo Manuel Barros Lopes, o princípio da presunção da inocência declara-se como
inexistente no período da ascensão do sistema inquisitório puro, isto é no período medieval,
porque neste sistema se tinha absolutizado a revelação da verdade inexistindo este princípio
como um direito conferido ao arguido.32

O princípio da presunção de inocência enquanto uma categoria jurídica autónoma, é resultado da


revolução francesa de 1789, que segundo Jorge Miranda pode ser concebida como marco história
do constitucionalismo francês, é possível compulsarmos um pendor direcionado em acabar com
o Estado absolutista com a aspiração de um Estado constitucional, ou seja, assente na
democracia e no direito, por via da revolução francesa, propondo-se destruir todas instituições da
29
José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora Coimbra,
Coimbra, 1997, Pág. 382.
30
IVI.
31
Manuel Barros LOPES. A presunção de inocência, in: Revista Portucalense nº 31, Universidade Portucalense, Porto
2022, pág. 162
32
IBDEM, Pág. 162
estrutura antiga.33É assim que na matéria penal as ideias tiveram como suporte a obra de Cesare
Beccaria - Dos Delitos e Das Penas (Dei Delliti e Delle Pene), «datada de 1764», com enfoque
na ideia segundo a qual «todo o acto da autoridade de um homem sobre o outro homem que não
derive da absoluta necessidade é tirânico». 34Nesta obra é possível aprender com Beccária que
«um homem acusado de delito, encarcerado e absolvido não poderia trazer consigo nenhum sinal
de infâmia».35

Como consequência de toda abordagem trazida na obra de Beccária, no contexto da revolução


francesa, vem a consagração expressa do princípio da presunção da inocência na Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, no artigo 9º com a proibição de usar o suspeito de um crime
como objecto de medidas arbitrárias.36

Depois da revolução francesa, quase todos os sistemas de inspiração jusnaturalista iluminista,


foram paulatinamente inserindo nas suas ordens jurídicas constitucionais o princípio da
presunção de inocência e tendo em consideração a relevância à exaltação dos direitos à liberdade
individual, o princípio da presunção da inocência foi sendo sucessivamente acolhido em muitos
documentos internacionais.37

Com estes dados é possível afirmar que a importância conferida ao princípio da presunção de
inocência remonta significativamente e que graças a esta importância, hoje por hoje, o princípio
da presunção da inocência é tido como um dos fundamentos do direito processual penal
moderno, com assento «no reconhecimento dos princípios do direito natural, constituindo um
princípio de inspiração do jusnaturalismo (sic) iluminista», 38 permitindo-nos caracterizar este
princípio como sendo fundado na dignidade da pessoa humana, garantindo ao individuo defesa
da sua liberdade contra o exercício de um determinado poder repreensivo, em que no âmbito
penal, desde então, firma-se como defesa da posição concreta do arguido perante a omnipotência
do direito de punir do Estado39 porquanto: (siga-se a formula para citação directa longa) «ao
longo da história o indivíduo tem sentido a necessidade de alcançar um conjunto de garantias
face ao poder público, num desígnio garantístico que tem encaminhado para a afrimação
33
Jorge MIRANDA. Manual de Direito Constitucional. Preliminares o Estado e os Sistemas Constitucionais, Tomo I,
6ª ed. Ed. Coimbra editora, Coimbra, 1997, pág. 159
34
IBDEM, Pág. 167
35
Cesare BECCARIA. Dos Delitos e Das Penas, trad: José Faria Costa, “apud” Manuel barros LOPES. A presunção
de inocência, in: Revista Portucalense nº 31, Universidade Portucalense, Porto 2022, pág. 167.
36
IBDEM, Pág. 167
37
Cfr. Manuel barros LOPES. “A Presunção de Inocência como Regra de Tratamento e Regra de Juízo Probatório”,
in Revista Portucalense, pp 162-196, nº 31, Universidade Portucalense, Porto 2022, pág. 168
38
Manuel Barros LOPES. A presunção de inocência, in: Revista Portucalense nº 31, Universidade Portucalense, Porto
2022, pág. 169
39
IBDEM
constitucional em diferentes sistemas através do reconhecimento da existência de direitos
fundamentais de pessoa garantia do cidadão contra o estado (sic) e o limite do poder politico. O
princípio da presunção da inocência constitui a expressão principal destas garantias limite do
poder, um direito fundamental em qualquer Estado de Direito, seja qual for a forma de
ordenamento jurídico».40

A ser assim, seguindo a esteira do Germano Marques da SILVA41 o princípio da presunção de


inocência surgiu em reacção aos abusos a que eram submetidos os desavindos com a lei, isto é,
pela pratica de ilícitos reputados como crime, onde a regra era a presunção da culpa em
contrariedade com o postulado pelo princípio em causa, sentido reactivo que prevalece até os
dias de hoje, pois a maioria dos ordenamentos constitucionais modernos têm consagrado este
princípio, de igual modo em muitos documentos internacionais. Tal consagração é vista como
«significar reacção aos abusos dos passado mais ou menos próximos, representa sobretudo o acto
de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda sociedade livre».

ATT: devemos ver ainda o que diz Germano Marques e Benja Satula sobre a parte histórica do
Princípio em causa

(Não se vai prescindir a inclusão do princípio da presunção de inocência nos princípios


fundamentais do processo penal. Para tal vamos ter em consideração a abordagem feita por
Manuel de cavaleiro de Ferreira, que nos traz a forma ideal de um processo penal enquanto
conditio sine quanon para se punir alguém, cuja obra consta da primeira descriminação da ficha;
O princípio da presunção nas com vista a contrapor a pratica de torturas, as acusações secretas,
bem como a necessidade da individualização das penas e na crença do direito de punir do Estado
como uma função de ressocialização do delinquente. É na fase do iluminismo que o indivíduo
passou a ser visto como sujeito do processo com atribuição da ampla defesa e garantias que
assegurem a sua integridade física e moral diante do poder punitivo do Estado e não como um
mero obejecto do processo. Importa aludir que é nesta fase de revolução em que é afirmada o
40
IBDEM,
41
Germano Marques da Silva. Direito Processual Penal Português. Noções gerais. Sujeitos Processuais e Objecto,
Vol. I, Universidade Católica Editora, 2023, Págs. 50-51
Estado democrático e de direito, como condição de limitar a exacerbada força revolucionaria do
povo e o poderio desmedido do antigo regime absolutista francês, usando a lei como freio para
limitar as liberdades negativas no Estado e a institucionalização do Juiz como a baca do direito.

I.2. O princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Por entendermos que o princípio da presunção de inocência visa exaltar o valor da pessoa
humana, não tínhamos como olvidar a abordagem ao princípio da dignidade da pessoa humana
por julgarmos achar neste princípio o fundamento mais cabal para a consagração e
reconhecimento constitucional do princípio da presunção de inocência. O princípio da dignidade
da pessoa humana é considerado como a «base sobre o qual todos direitos e garantias individuais
são erguidos e sustentados. Ademais inexistiria razão de ser a tantos preceitos fundamentais se
não fosse o nítido suporte prestado à dignidade humana». 42 Com base no reconhecimento
constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana, isto é logo no artigo que podemos
reconduzir toda matéria inerente aos direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrado na
constituição.

Com consagração expressa no artigo 1º da CRA, isto é incluído na série dos princípios dos quais
se baseia o Estado Angolano, o princípio da dignidade da pessoa humana é vista na inspiração
42
Guilherme de Souza NUCCI. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 13 edição, Editora FORENSE LDA, Rio de
Janeiro, 2016, Pág. 76
humanista que se reconduz a valorização da pessoa humana. É um princípio comprometido com
a valorização da pessoa pelo simples facto de o ser e com a defesa dos direitos fundamentais
desta pessoa, contra todo tipo de injustiça e opressão.

Por este dado alude-se que este princípio desempenha um papel importante em muitas ordens
jurídicas dos países do nosso tempo.43 Tal como como observou luís Roberto BARROSO, citado
por Daniel SARAMENTO,44« a dignidade, como conceito jurídico, frequentemente funciona como
um espelho, no qual cada um projecta os seus próprios valores».

O princípio da Dignidade da Pessoa Humana tem sido interpretado em muitas ópticas em que o
homem reclama a sua dignificação, sendo usado em muitos casos para assegurar a autonomia da
pessoa humana e como pressuposto de tolerância dos mais diversos valores com os quais homem
se relaciona, daí que ao princípio da dignidade da pessoa humana muitos atribuam um caracter
amplo de indeterminação. Oliveira ASCENSÃO, a título ilustrativo, na luta contra esta
indeterminação, afirma que «alguma coisa não está certa na invocação da dignidade da pessoa
humana, pois, se ela serve para tudo, então não servir para nada, transformando-se numa fórmula
vazia»45. No entanto apesar desta indeterminação isto não faz com que ao princípio da dignidade
da pessoa humana se atribua um valor diminuto, porquanto a indeterminação que ela encerra
deve-se ao facto de o homem ser participe em muitas formas de relacionar-se enquanto um ser
social, mas o sentido axiológico a ele inerente o acompanha sempre, sendo este princípio
abordado com base a muitas vertentes do saber.

Seguindo o asseverado por Daniel SARAMENTO, que ao abordar a questão da dignidade da


pessoa humana faz questão de interligar a este a dignidade da espécie humana. Assevera-se que
os dois termos estão relacionados no sentido de que a dignidade da pessoa humana pressupõe a
dignidade da espécie humana, porém, esta não pressupõe aquela. O princípio da dignidade da
pessoa humana e da dignidade da espécie humana, estão presente em quase todos documentos
internacionais que versam sobre os direitos do homem e nas constituições contemporâneas.

Não obstante de os dois conceitos estarem interligados, os mesmos comportam tênues


individualizações. «A dignidade da espécie humana consiste no reconhecimento de que o ser
humano ocupa uma posição superior e privilegiada entre todos os seres que habitam o nosso

43
Daniel SARAMENTO. Dignidade da pessoa humana. Conteúdo, trajectória e metodologia, Ed Forum, Belo
Horizonte, 2016, Pág. 15
44
IBDEM, Pág. 16
45
Oliveira José Ascensão. O ‘Fundamento do Direito’: entre o Direito Natural e a dignidade da
pessoa humana, apud, Daniel SARAMENTO. Dignidade da pessoa humana. Conteúdo, trajectória e
metodologia, Ed. Forum, Belo Horizonte, 2016, Pág. 17
mundo»46 e esta superioridade em muitos casos justifica-se no uso da razão, no livre arbítrio e no
dado de a pessoa ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, no plano religioso. Já no
reverso, a dignidade da pessoa humana consiste na «concepção de que todas pessoas, pela sua
simples humanidade têm intrínseca dignidade de ser tratados com o mesmo respeito e
consideração»,47 tendo na concepção hodierna a consideração no plano vertical que nos submete
a superioridade do homem em relação aos animais e no plano horizontal que denota a igualdade
de todos serem humanos considerados entre sem ter em conta a «função que cada um ocupa
desempenha na sociedade»48.

Importa salientar que a ideia da espécie humana é a mais antiga em relação a da dignidade
humana. Não obstante a esta afirmação, a da dignidade da espécie humana, ainda prevalecia a
consideração da desigualdade entre os homens que em muitos casos tida como advinda da
própria condição natural do próprio homem, que infelizmente usada justificativa para
discriminações de varia ordem, apesar de o homem ser criado à “imaogo Dei”, formula da qual
se tem retirado o fundamento para a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana
em constituições modernas e outros documentos internacionais que abordam a questão dos
direitos do homem que surge após o advento do iluminismo, com ele afirmando-se a faceta
igualitária de todos os homens, quando na declaração revolucionaria francesa passou a postular o
teor normativo que nos remete a olhar o homem considerado na sua generalidade, como sendo
nascido livre e igual em direitos.49

Antes da postulação do princípio da dignidade da pessoa humana como uma categoria jurídica,
impondo o dever moral e ético de respeita-la de uma forma vinculativa, este foi preocupação das
áreas tais como: filosófica e religiosa

Segundo Adão de Sousa PIRES,50 e Lafayette PIZZOLI51 plano filosófico, clássico, encontramos
os contributos de Zenon, Aristóteles e Cícero.52

46
IBDEM,ág. 27
47
IBDEM, Pág. 28
48
Linha de pensamento seguido por Antonio PELE. Una aproximación al concepto de dignidad humana, apud,
Daniel SARAMENTO. Dignidade da pessoa humana. Conteúdo, trajectória e metodologia, Ed. Forum, Belo
Horizonte, 2016, Pág. 28
49
Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, artigo 1º
50
Mestre em Direito e professor universitário Brasileiro, pelo Instituto filosófico Rainha da Paz, afeto a igreja
católica no Brasil. Ele fez um estudo com base as encíclicas da igreja com relevância para a dogmática jurídica.
51
Doutor em filosofia de Direito, tendo começado seus estudos pela Universidade La Sapienza – Itália – tendo
atingido ao grau de Doutor pela PUC – SP e professor na mesma instituição, co-autor de Adão Pires, do artigo
científico com substrato na matéria acima ilustrado na nota sobre PIRES.
52
Adão de Sousa PIRES; Lafayette POZZOLI. A Dignidade da Pessoa Humana na Hitória e no Direito: Aspectos de
Tempo e de espaço, in: RJLB, Ano 2020, n 6 (1-34) Pág. 4
O mérito dado a Zenon – filosofo grego que viveu no séc. a.c. – em matéria do desenvolvimento
da dignidade humana, consubstanciam-se no facto de ter desenvolvido a unidade moral do ser
humano que é comum a todas pessoas, e tal unidade consiste no facto de o homem ter direitos
inatos e iguais, colocado acima de tudo no universo pelo facto ser filho de Zeus, pregando que «a
resignação e a firmeza poderiam formar o Homem perante o sofrimento». 53 Zenon é também tido
como influenciador do aparecimento da corrente estoica, que em matéria da dignidade da pessoa
humana contribuiu para o desenvolvimento da individualidade do ser humano, alcançando deste
modo a identidade fundamental para todos, que consiste de vivermos num único mundo
considerado como uma única cidade – cosmo-polis- do qual participamos o homem participa
como amigo e igual em dignidade, além de ser colocado acima de tudo no universo. Desta
universalidade da identidade do gomem resulta também a tomada de consciência de existência de
um direito universal, comum a todos, dada a racionalidade que assiste a todo género humano.54

O contributo de Aristóteles (384-322 a.c) – filosofo Grego da antiguidade clássica – é conferido


ao facto de ter afirmado o fundamento da dignidade que radica da racionalidade e a consequente
sociabilidade por natureza, defendendo a lei e o direito natural na colocação do homem no plano
superior no universo, defendendo o plano ontológico e deontológico do direito natural. Sendo
que os direitos do homem estão relacionados com o direito natural se este direito por sua vez é
visto como um sistema de normas universais e imutáveis no seu sentido axiológico. É ontológico
(o ser do direito) visto como o dever ser do direito positivo; deontológico, no sentido de que o
dizer o direito e o fazer a justiça devem caminhar de mãos dados, exercendo assim a função de
controlo para o direito positivo, sendo inadmissível a contradição entre o direito natural e o
direito positivo. Com isto assevera, Aristóteles a maior garantia de justiça e protecção
docorrentes dos valores universais que informam a dignidade humana, traduzindo-se numa
dignidade social da pessoa humana.55

Prosseguindo com os contributos da perspectiva filosófica clássica, na matéria da dignidade da


pessoa humana, temos o contributo de Marcus Tullius C ÍCERO (104-43 a.c) – filósofo Romano -,
ao qual é dedico o primeiro registo da expressão dignidade do ser humano, expressão, que
segundo CÍCERO, pode visto em duas vertentes: princípio que que representa o cunho universal
do género humano visto como um dom natural; representa as qualidades distintas, no sentido de

53
IBDEM, Pág. 5
54
IBDEM, Pág. 6
55
Adão de Sousa PIRES; Lafayette POZZOLI. A Dignidade da Pessoa Humana na Hitória e no Direito: Aspectos de
Tempo e de espaço, in: RJLB, Ano 2020, n 6 (1-34) Pág. 7
que alguns serviços só podem ser exercido por algumas pessoas, é a dignidade humana
apresentado numa vertente relativizado com bases as aptidões individuais de alguns homens.56

Contributo da religião ao princípio da dignidade humana

Contributos do Cristianismo

Nas paginas anteriores já foi aludido por nós que no mundo religioso Cristão, o princípio da
dignidade da pessoa humana fundamenta-se no dado expresso em Génesis57, segundo o qual o
homem foi criado à “imagem e semelhança de Deus”, com atribuição de prerrogativas de
domínio sobre os animais e a natureza, dado que tem sido fundamental no mundo religioso
Cristão, «ao longo de sua história»,58 para elevação e exaltação do valor da pessoa humana.

Pelo que o facto de Deus ter criado o homem à sua imagem e semelhança, depreendemos deste a
consequência imediata da unidade divina do género humano com Deus, impondo a cada homem
o dever de amar e cuidar o próximo como a sí mesmo, cuja manifestação máxima deste amor,
que o homem deve ter pelo outro homem encontrámo-lo na pessoa de Jesus Cristo, por ter
derramado sangeue a favor da humanidade.

O Cristianismos retoma e aprofunda a ideia da absolutização do valor da pessoa humana, antes


proclamado pelo munodo judaico e grego, a ideia de que a pessoa humana tem um valor absoluto
no plano espiritual, tendo Jesus salvado a todos, tal como se pode perceber pelo preceituado nas
epístolas de S. Paulo aos Romanos59 e aos Gálatas cujo conteúdo não nos reconduz a
descriminação de raça, estado e género, pois todos homens são um em Cristo jesus que afirmou:
«não há Judeus nem Gregos; «não há servos nem livres e não há homem nem mulher, pois todos
vós sois um só em Cristo».60 Com os ensinamentos do cristianismo abriu-se horizontes para
abordagem dos temas relacionados aos direitos humanos.61

A concepção cristã sobre a dignidade da pessoa humana, radicada na obra redentora, vem deste o
séc. I e vai até a idade média, com destaque, tal como já referenciamos, em ensinamentos de São
56
IBDEM, Pág. 8
57
Génesis:1,26-26
58
Daniel SARAMENTO. Dignidade da pessoa humana. Conteúdo, trajectória e metodologia, Ed. Forum, Belo
Horizonte, 2016, Pág. 51
59
Romano, 10,12
60
Gálatas, 3,28
61
Adão de Sousa PIRES; Lafayette POZZOLI. A Dignidade da Pessoa Humana na História e no Direito: Aspectos de
Tempo e de espaço, in: RJLB, Ano 2020, n 6 (1-34) Pág. 10
Paulo, da patrística – com mérito e destaque para o pensamento de Leão Magno, Santo
Agostinho e São Tomás de Aquino.

Os contributos de Santo Agostinho, verificados no séc. IV, têm que ver com a questão da
conciliação da fé e a razão, inexistindo a contrariedade entre estas qualidades, porquanto a razão
informa o processo formal, material metodológico das ciências, proporcionando a organização
lógica fundamentação com base em factos sociais e históricaós; a fé, ilumina os factos sociais,
partindo da revelação espiritual, que está presente em todos os homens, por serem criados à
imagem e semelhança de Deus.62

O Papa Leão MAGNO afirmara no séc. V, d.c., a dignidade do homem pelo facto de Deus o ter
criado a sua imagem e semelhança, tal como já asseverado, tendo acrescentado que a condição
humana dignificou-se mais ainda tendo em consideração o facto de Deus ter assumido a
condição humana na pessoa de Jesus Cristo, condição esta que foi revigorada pela união do ser
humano com Deus mediante a voluntária crucificação de Jesus Cristo.63

Já São Tomas de AQUINO, retoma os pensamentos do séc. VI (480-524), de Ancio Manlio


Severino BOÉCIO, no séc. XII, (1274), tendo com isto formulado para aquela época um novo
conceito de dignidade da pessoa humana, tendo definido a pessoa humana como substância
individual de natureza racional, com capacidade de autodeterminação inerente a sua natureza
humana e pela sua dignidade o ser humano é livre por natureza, existindo em função da sua
própria vontade.64 Para São Tomas de Aquino, «a superioridade humana advém da racionalidade,
bem como do livre arbítrio, em que o homem teria sido investido por ser criado por Deus ao cria-
lo à sua imagem e semelhança».65

Quem relaciona, de igual modo a dignidade da pessoa humana no facto de ser criado á imagem e
semelhança de Deus é o filosofo Pico della Mirandolla, no seu opúsculo sobre a dignidade do ser
humano. Afirma por tal desiderato, o homem ocupa toda a grandeza e superioridade
relativamente à outros seres. O homem é firmado criatura suprema de Deus, cuja superioridade é
definida e regulada com plenitude pelas leis divinas. Ao homem se-lhe autorga uma qualidade

62
iBDEM, Págs. 16-17
63
Leão Magno. O Novo Testamento Interpretado, apud: Adão de Sousa PIRES; Lafayette POZZOLI. A Dignidade da
Pessoa Humana na História e no Direito: Aspectos de Tempo e de espaço, in: RJLB, Ano 2020, n 6 (1-34) Pág. 16
64
: Adão de Sousa PIRES; Lafayette POZZOLI. A Dignidade da Pessoa Humana na História e no Direito: Aspectos de
Tempo e de espaço, in: RJLB, Ano 2020, n 6 (1-34) Pág. 17.
65
São Tomas de AQUINO. the summa theologica, trad. Daniel J. Sullivan, apud: Daniel SARAMENTO. Dignidade da
pessoa humana. Conteúdo, trajectória e metodologia, Ed. Forum, Belo Horizonte, 2016, Pág. 31
indefinida que modelado por seu próprio livre arbítrio o homem torna-se soberano e artífice no
seu ser.66

No mundo judaico a dignidade da pessoa humana é tabém exaltada com recorte ao termo Cavod
que traduzido em hebraico é um termo relacionado a dignidade, honra ou gloria que embora
esteja referenciada a Deus, ela também é usada referindo-se a dignidade da pessoa humana, com
a expressão Cavod Hntigo´adam.67 A concepção judaica sobre a dignidade da pessoa humana
consubstancia-se igualmente no que é relatado no antigo testamento, alhas é a concepção seguida
por todas religiões monoteístas.68

Na religião Islâmica, a dignidade é igualmente exaltada com especificação clara no alcorão de


que Allah terá atribuído dignidade maior ao homem ao ponto de conferir aos anjos a
obrigatoriedade de se prostrarem diante dos filhos de Adão69

Pelo que em linhas gerais, na perspectiva religiosa, a dignidade da pessoa humana reside no facto
deste ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. Assim, basta ser pessoa para que ela seja
posta no topo de todo conteúdo valorativo que se pode dar a um ser, porquanto a pessoa humana
é um ser de cuja dignidade a ela transcende, por que vem do Ente supremo.

(Vamos desenvolver mais sobre a prespectiva de outras religiões.)

Ideias iluministas

Os ideias do iluminismo estão latentes na ideia de endeusar a razão humana, apregoando que por
ela se pode explicar e dominar todas as coisas sem intervenção divina. Não é mais Deus no
centro de tudo, porque é substituído pelo homem e a sua inteligência. É a época do
“antropocentrismo”

O iluminismo torna-se assim em um movimento com crença exacerbada na razão humana,


desalojando deste modo a religiosidade no centro do pensamento, colocando no seu lugar o
homem. E este desenvolvimento teórico humanista, redundou em uma série de consequências
retratadas no campo filosófico e jurídico, que podem ser considerados como relevantes para

66
Adão de Sousa PIRES; Lafayette POZZOLI. A Dignidade da Pessoa Humana na História e no Direito: Aspectos de
Tempo e de espaço, in: RJLB, Ano 2020, n 6 (1-34) Págs. 18-19
67
Daniel SARAMENTO. Dignidade da pessoa humana. Conteúdo, trajectória e metodologia, Ed. Forum, Belo
Horizonte, 2016, Pág. 51
68
Adão de Sousa PIRES; Lafayette POZZOLI. A Dignidade da Pessoa Humana na História e no Direito: Aspectos de
Tempo e de espaço, in: RJLB, Ano 2020, n 6 (1-34) Pág. 14
69
Alcorão, sura 17.
questão da ideia da dignidade humana, incluindo nestas a exaltação dos direitos individuais do
homem.70

O conceito iluminista da dignidade da pessoa humana, não surgiu “de per sí.” Ele foi
influenciado e consolidado por outros pensamentos sobre o valor da pessoa humana.

Neste movimento, é curial a influencia de Kant, ao tomar o “homem como um fim em sí mesmo”
e não como um meio do Estado, da sociedade ou do outro homem, cuja a dignidade é ontológica
e o direito e o Estado devem ser ordenados na perspectiva da salvaguarda desta dignidade,
beneficiando sempre o individuo.

Como ilustrado o conceito da dignidade da pessoa humana é de construção histórica e vimos que
nisto o cristianismo desempenhou uma grande importância. No entanto, o iluminismos aliada a
revolução Francesa e a consequente Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão,
fez com que se desse um grande salto na configuração da dignidade da pessoa humana como
uma categoria jurídica.

Na perspectiva filosófica, o tema relacionada à dignidade da pessoa humana foi abordada, dentre
vários, por pensadores como: Cicero, Pico della Mirandola e Kant

Pelo que a consagração jurídica da dignidade da pessoa humana enquanto uma categoria jurídica
é uma novidade do séc. XX, após o fim da segunda guerra mundial 71. Porem, não é este o
entendimento de Daniel SARAMENTO, afirmando que no séc. XVIII e XIX, já existiam alguns
documentos que tinham como pressuposto na dignidade humana, com realce para a autonomia e
igualdade, embora no plano formal e na necessidade de limitação do poder estatal, não obstante
ao facto de que os documentos que surgiram depois aprimoraram a questão da inclusão dos
direitos individuais, políticos, sociais, económicos etc., que decorreram da indignação pela
violação da dignidade humana,72 referindo-se, no plano interno, entre outros: do decreto que
aboliu a escravidão na França, redigido no ano 1848, em que se afirmava a escravidão como um
atentado a dignidade humana, o seu preâmbulo; constituições do México de 1917, da Alemanha
e da Finlândia, ambas de 1919.73
70
Adão de Sousa PIRES; Lafayette POZZOLI. A Dignidade da Pessoa Humana na História e no Direito: Aspectos de
Tempo e de espaço, in: RJLB, Ano 2020, n 6 (1-34) Págs. 19-20
71
Dieter GRIMM. A dignidade humana é intangível, apud: Daniel SARAMENTO. Dignidade da pessoa humana.
Conteúdo, trajectória e metodologia, Ed. Forum, Belo Horizonte, 2016, Pág 51
72
Daniel SARAMENTO. Dignidade da pessoa humana. Conteúdo, trajectória e metodologia, Ed. Forum, Belo
Horizonte, 2016, Pág. 52
73
IBDEM, Pág. 53
Chegados até aqui, importa salientar que a história da dignidade da pessoa humana passou por
quatro fases históricas fundamentais para a definição do princípio da dignidade da pessoa
humana como um princípio jurídico, mormente: Cristianismo, iluminismo, momento de ideias de
Kant e o momento pois segunda Guerra Mundial.

Por tudo dito quanto, a respeito a respeito do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana afirma-
se que «a dignidade da pessoa humana é o ponto de partida do ordenamento jurídico. E antes de
mais uma imposição ontológica. A dignidade da pessoa humana implica que a cada homem
sejam atribuidos direitos».74

I.3. O princípio da presunção de inocência como garantia fundamental

O presente número justifica-se pelo facto da necessidade de demostrar a relevância que deve ser
dado ao princípio da presunção da inocência, depreendendo dele algumas consequências
atribuídos a este princípios no plano processual penal e a justificação que ele encerra quando
reconduzido à pessoa do suspeito ou arguido da pratica de uma infracção penal.

74
Carlos Alberto B. Burity da SILVA. Teoria Geral do Direito Civil, 2ª Edição, Editora NORPRINT – a casa do livro,
luanda 2018, Pág. 124
É um como já se terá feito saber, é um princípio com consagração constitucional, no nosso caso
vem expresso no nº 2 do artigo 67º da CRA, e em alguns documentos internacionais de grande
realce como adiante teremos prazer de fazer menção com mais pormenor.

O princípio da presunção de inocência é reputado como sendo uma garantia constitucional penal
para a salvaguarda dos direitos e liberdades fundamentais tal como a nossa Lei Magna testifica
ao reconduzi-lo ao âmbito dos direitos e liberdades fundamentais, 75 sendo que Estado, não
obstante ao facto de reconhece-los, propõe-se igualmente a criar condições políticas,
económicas, sociais, culturais, de paz e estabilidade que Garantam a sua efectivação e protecção,
nos termos da Constituição e da lei, cujo o dever de respeitar e de garantir o seu livre exercício
incumbe a todas autoridades do poder público76.

O princípio da Presunção de inocência, tal como afirmou Renée K OERING, citado por Jorge de
Figueiredo DIAS77 o princípio de presunção de inocência é visto como «o próprio símbolo do
processo equitativo é um princípio cardinal dos procedimentos penais democráticos, é para
retomar a tão bela expressão da camara dos Lordes, um fio de ouro tecido na tela do Direito
Penal. Tal como merece ser proclamado direito fundamental e protegido rigorosamente contra
ataques injustos (sic), que poderá sofrer». ( seguir o formato da citação directa longa)

O Princípio da presunção de inocência, enquanto uma garantia fundamental consubstancia-se na


«ideia-força de que o processo deve assegurar todas necessárias garantias práticas de defesa do
inocente, quem não foi ainda solene e publicamente julgado por sentença transitada» 78 pois nele
se recorta o direito individual ou reportado no plano institucional de alguém ser presumido
inocente e ser considerado como tal em sede da relação jurídico-penal por força deste princípio
ser consagrado, «seja na Constituição formal, seja na Constituição material», 79 suportado por
valores que não obstante ao facto de muito deles não conhecerem a consagração expressa na
constituição têm a mesma força em equiparação aos valores ou direitos consagrados na
constituição formal.

75
Tal como consta da epígrafe da secção II do capitulo II, consagrado aos direitos, liberdades e garantias
fundamentais na CRA.
76
Cfr. CRA no Artigo 56º, com a epígrafe de garantia geral do Estado.
77
Jorge de Figueiredo DIAS. Processo Criminal, lições ao 5º ano, da faculdade de Direito, Universidade de Coimbra
1970-1971, Pág. 51
78
Jorge de Figueiredo DIAS. Processo Criminal, lições ao 5º ano, da faculdade de Direito, Universidade de Coimbra
1970-1971, Pág. 51
79
Zeferino CAPOCO. Manual de Ciência Politica e Direito Constitucional, Escolar Editora, Angola, 2015, Pág. 263.
A positivação dos direitos fundamentais é uma característica das constituições modernas,
«considerando que tais direitos constituem a base fundamental das garantias e prerrogativas a
que o poder tem de dar protecção». 80 Fazendo com que em todos os patamares em que se
situarem os direitos fundamentais eles sirvam na verdade de protecção do homem em
sociedade.81

Nesta linha de ideia, nos é possível afirmar que «a constitucionalização dos direitos
fundamentais como direitos da pessoa, em sentido subjectivo, e como direitos tutelados pelo
Estado como valores universais, em sentido objectivo, tem uma função jurídica a realizar não só
pelo próprio Estado criador de tal direito e monopolizador do poder» 82 assim como pelos
particulares de os proteger de toda acção que os visa prejudicar.

A susceptibilidade de alguém cometer um crime e o consequente facto de responder por este


crime, entendendo igualmente que deve existir, necessariamente, alguém, o Estado por
intermédio dos Tribunais, com poderes de responsabilizar este alguém pelo cometimento do
crime faz-nos pensar numa relação jurídico-processual penal.

E nesta relação o suspeito de um crime e (ou) arguido, por força do princípio da presunção de
inocência, se-lhe assiste o direito fundamental de ser considerado como inocente no curso de
todo processo tendente a responsabilização penal. Na aludida relação, por imperatividade
Constitucional e das demais leis que regem os direitos fundamentais, o princípio da presunção de
inocência transforma-se em uma garantia a favor do suspeito na prática de um crime de tal modo
que quem detém o poder de responsabilizar carregue consigo a obrigação de agir e tratar o
suspeito ou o arguido como um inocente, enquanto não se proferir pelo órgão competente uma
decisão condenatória penal definitiva, suportada em meios de provas legalmente exigíveis.

Pelo princípio da presunção de inocência, o suspeito da prática de um crime retoma a sua


condição natural de inocente, que decorre do facto de ninguém nascer criminoso. Assim quem
achar que se quebrou esta condição tem consigo a obrigação de demostrar em tribunal
competente a quebra desta condição natural de inocente.83

80
IBDEM, Pág. 263
81
Cfr. IBDEM, Pág. 265
82
IBDEM, Pág. 272
83
Guilherme de Souza NUCCI. Manual de Processo Penal e Execução Penal, 13 edição, Editora FORENSE LDA, Rio de
Janeiro, 2016, Pág. 76
Trata-se de uma garantia substantiva com recorde no plano processual. «Ela resulta directamente
de uma consagração constitucional», cá por nós vem expresso no artigo 67º nº 2 84

Enquanto uma garantia fundamental, o princípio da presunção de inocência é visto como a


«manifestação do respeito pela dignidade da pessoa humana no processo penal e solidariamente
sustentado na Constituição Processual Penal, é um princípio estruturante do processo penal. Seu
estudo é feito em sede do estatuto do arguido e com maior relevância no processo justo e
equitativo. A presunção de inocência faz parte do conjunto de princípios que constituem as
garantias mínimas do padrão internacional do processo penal e sua abordagem e apreciação não
se circunscrevem, apenas, ao que sucede em sede do processo, da discussão e produção da
prova.»85 (seguir a formula da citação directa longa). Visto neste Plano o princípio da presunção
de inocência transforma-se em um instrumento para a protecção dos Direitos Humanos, no
processo e não só, implicando que quem acusa seja ele a arcar com toda investida para a
demonstração da verdade que afirma, ou seja o ónus da prova deve caber a quem acusa,
porquanto ao acusado assiste a prerrogativa de ser considerado como inocente e que sobre este
não pode recair nenhuma acção que se reconduz em tratar o suspeito e (ou) arguido como
culpado da pratica do crime, proibindo-se assim a presunção de culpa em sede do processo
penal.86

Se alguém tem direito de ser considerado como inocente em sede de um processo penal,
seguindo o que assevera Jorge de Figueiredo DIAS, ao princípio da presunção de inocência se
pode depreender algumas consequências tais como: a obrigatoriedade da demostração com
suficiência as provas que suportam a acusação por parte de quem acusa; a excepcionalidade da
aplicação das medidas de coacção física e patrimonial, observando o critério da estrita
legalidade; o dever de comunicação ao arguido sobre todas as provas produzidas contra sí de
formas que este prepare eficazmente a sua defesa; transferir para as fases subsequentes todas as
provas produzidas nas fases anteriores do processo, com maior realce na fase da instrução
preparatória; a limitação e a obrigatoriedade de autorização por um juiz a recolha de provas em
locais consideradas privadas; as atribuições conferidas aos intervenientes e prossecutores do

84
Frederico Lacerda da Costa PINTO. Sebenta de Direito Processual Penal 1º semestre, 4º Ano da faculdade de
direito, Universidade Nova de Lisboa 2019-2020, Pág. 9
85
Benja Satula. Reflexo da presunção da inocência da jurisprudência em Africa, in: Guardiã, revista do Tribunal
Constitucional de Angola, nº 1, 2023, Pág. 134
86
Benja Satula. Reflexo da presunção da inocência da jurisprudência em Africa, in: Guardiã, revista do Tribunal
Constitucional de Angola, nº 1, 2023, Pág. 129
processo devem ser conferidas por lei; a prerrogativa de o arguido não pronunciar-se sobre os
factos que o incriminam, com a possibilidade de estar em silêncio quando lhe for inquirido sobre
estes factos sem que tal silêncio seja negativamente valorado a seu desfavor; o dever de sujeição
a reserva de culpabilidade a favor do arguido; a observância do princípio “ in dúbio pro reo” que
impera a obrigatoriedade de decidir a favor do arguido em questões consideradas como
duvidosas ou imperceptíveis no decurso de todo processo.87

Por assim ser, o princípio da presunção de inocência não pode ser relevado apenas dentro do
processo penal, mas igualmente fora do processo, tal como assevera Germano M ARQUES, para
que dentro do processo sirva de veiculo para o respeito «da dignidade do imputado no decurso de
todo processo e ainda a formação do próprio juízo por parte do tribunal que deve afastar todo
tipo de pressão da opinião pública seja para condenar ou para absolver». Fora do processo o
princípio da presunção de inocência vai servir de mecanismo de respeito «da imagem do
imputado ou seja ao respeito da sua honra e reputação por parte de todos»88.

Com isto pode evitar-se a exacerbada rotulação criminosa contra os suspeitos da prática de factos
criminosos que ocorre na nossa sociedade que em muitos casos se transforma em um autêntico
suplício, degradando assim a imagem dos que se vêm na posição de um suspeito da prática de
um crime. Pois a eles se dirige sempre um tratamento no sentido de já estarem condenados.
Diga-se mesmo que em muitos caso nos nossos bairros a questão da rotulação criminosa que
decorre da inobservância do princípio da presunção da inocência tem levado a que se agridam
fisicamente pessoas que sobre os quais apenas formou-se uma certa opinião pública criminosa
não declarada por nenhuma instância jurisdicional.

Dai que a perspectiva do princípio da presunção de inocência como uma garantia fundamental
nos deve sempre levar ao dever de tratamento e respeito pela dignidade do suspeito ou arguido,
por parte de todos, vendo sempre nele um provável inocente de cuja culpa apenas deve ser
declarada e confirmada por uma decisão condenatória penal proferida pelo tribunal competente
em matéria penal

I.3.1 A consagração do princípio da presunção da inocência na legislação internacional

87
Cfr. Jorge de Figueiredo DIAS. Processo Criminal, lições ao 5º ano, da faculdade de Direito, Universidade de
Coimbra 1970-1971, Pág. 207-208
88
Germano Marques da SILVA. Direito Processual Penal Português. Noções Gerais, Sujeitos Processuais e Objecto,
Universidade Católica Editora, Lisboa 2013, Pág.
Ao incluirmos o tópico inerente a consagração do princípio da presunção de inocência no plano
internacional no corpo da nossa pesquisa queremos ilustrar a importância dada ao princípio da
presunção de inocência e percebermos qual é o âmbito da sua incidência, enquanto um dos
princípios que se dedica à dignidade da pessoa humana enquanto um valor universalmente
considerado. Como é óbvio não podemos aceitar que este princípio seja indiferentemente
considerado no plano da legislação internacional, enquanto conjunto de normas e valores
jurídicos que se dedica a exaltar o valor da pessoa humana na perspectiva da universalidade dos
direitos humanos. Pelo que vamos procurar expor quias os documentos que realmente consagram
no seu corpo o princípio da presunção de inocência; qual é o nível de incorporação e observância
destes documentos no nosso ordenamento jurídico e porque da tal incorporação.

De acordo com José M. FERRO89, afirma-se que «a nossa ordem constitucional confere especial
relevância constitucional direitos do Homem» de formas que firmou-se particularmente sensível
«ao tema geral dos Direitos Fundamentais um extenso elenco» destes direitos que são assumidos
como fonte dos direitos fundamentais declarando que a consagração constante ou expressa na
constituição sobre os direitos fundamentais não exclui «quaisquer outros constantes em Leis e
das regras aplicáveis de direito internacional» 90. Por este preceituado ocorre dizer que toda
referencia aos direitos fundamentais pode ser feita tendo em consideração, não só a CRA, mas
também os documentos internacionais referenciados no nº 2 do artigo 26 da CRA, Mormente
DUDH, CADHP e todos outros documentos que versem sobre os direitos fundamentais
«ratificados pela República de Angola».91 É com base este espirito que se deve olhar a presunção
da inocência enquanto um princípio fundamental reconduzido no plano internacional pois «os
Estados enquanto destinatários das normas internacionais têm obrigação de observar o seu
cumprimento».92

Cremos, com isto, que o princípio da presunção da inocência faz parte do ordenamento jurídico-
constitucional Angolano no mesmo sentido em que é visto no plano da legislação internacional,
porquanto os mesmos documentos são incorporados automaticamente no nosso ordenamento
jurídico pela cláusula de recepção plena afirmando que «o direito internacional geral ou comum
recebido nos termos da presente Constituição faz parte integrante da Ordem Jurídica
Angolana».93 Com isto o Estado Angolano se propõe a garantir a observância das normas

89
José Miguel Ferro. Direito Internacional Público. Sua incorporação no Sistema Jurídico Angolano, 1ª edição, FD-
Iuris Editora, Luanda 2022, Pág. 155
90
CRA, Artigo 26º, nº 1.
91
CRA, Artigo 26 nº 2.
92
Paulo LUKAMBA. Dirieto Internacional Público, 3ª edição, Escolar Editora, Lobito 2014, Pág. 44
93
CRA, Artigo 13, nº 1.
internacionais inerentes ao princípio da presunção de inocência, por ser esse um dever próprio
enquanto garante da defesa dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, não permitindo que
o princípio em causa seja violado porque da sua violação está em causa a dignidade da pessoa
humana que é um valor supremo da qual o próprio Estado se baseia.94

Na nova configuração internacional não se ignora a individualidade e subjectividade da pessoa


humana, no sentido em que ela é colocada no centro e em torno do qual a «ordem-jurídico-
internacional Actual (sic), tendo como enfoque a análise do processo da universalização dos
Direitos Humanos, e que para tal mereceu que se lhe instituísse a seu favor os pactos e
convecções internacionais, para evidenciar e salvaguardar os direitos inerentes a todos os
indivíduos neste planeta».95

Assim, os documentos legislativos internacionais que em breve vamos expor são clara evidência
de que «os direitos essenciais do Homem não derivam do facto de ser nacional de um
determinado Estado mas sim do facto de ter como fundamento os atributos da pessoa humana».96

É com base nos fundamentos que radicam dos atributos que decorrem do facto ser Pessoa
Humana que se justifica a protecção interna e internacional dos direitos inerentes ao homem.
Assim o Princípio da Presunção de inocência, coincide com o conteúdo dos Direitos Humanos
no plano internacional e tal como se pode encontrar no Preâmbulo da DUDH que atesta que
cabem aos Estados conferir a total protecção e igualmente aos particulares lutar para sua total
promoção.97

Com isto nos é possível elencar com uma certa

segurança e objectividade alguns documentos legais que se reportam no plano internacional e


que fazem de forma expressa a consagração do princípio da presunção de inocência tais como:
DUDH (Declaração Universal dos Direitos do Homem), de 1948, nº 1 do artigo 11º; PIDCP
(Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos) de 1976, no seu nº 2 do artigo 14º; CDHUE
(Convenção dos Direitos Humanos da União Europeia) nº 1 do artigo 48º, com ressalvas quanto
a sua aplicabilidade no nosso ordenamento jurídico por causa do caracter comunitário que este
documento encera; CADHP (Carta Africana dos Direitos do Homem e Dos povos, na alínea b),
nº 1 do Artigo 7º.

94
CRA, Artigo 1º
95
José Miguel Ferro. Direito Internacional Público. Sua incorporação no Sistema Jurídico Angolano, 1ª edição, FD-
Iuris Editora, Luanda 2022, Pág. 407-408.
96
IBDEM, Pág. 408.
97
Cfr. IBDEM, Pág. 409.
Depois da consagração expressa nos documentos internacionais acima citados, dada a sua
reputada transversalidade em matéria de direitos humanos no plano internacional, o princípio da
presunção de inocência aos poucos foi encontrando cobertura em muitos outros documentos
reputados como históricos, isto é, pelo mundo lá fora. É por exemplo a Convenção Americana
sobre os direitos humanos de 1969, isto é, no seu artigo 8º; Carta Canadense dos Direitos e
liberdades, na alínea d), do artigo 11º; Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos
datada do ano 1981, no seu salmo V, B98.

Todos estes documentos têm previsto o princípio da presunção de inocência no sentido conferir
ao suspeito na prática de um crime o direito a ser tratado como inocente até que sua culpa seja
confirmada por tribunal competente em razão da matéria Penal. E por causa do critério da
recepção e consequente incorporação na ordem jurídica angolana, do princípio da presunção de
inocência decorre inferências normativas que podem ser considerados como formal e
materialmente constitucionais, «considerados como sendo todas as normas do Estatuto jurídico
do Estado, todas que regulam o seu poder e as suas relações com a sociedade mesmo se só
alguns»99. Sendo que o Princípio da presunção de inocência tal como outros princípios
fundamentais identificam-se mais com a Constituição Material.

Com isto afirma-se, que o princípio da presunção de inocência, no plano internacional pode ser
visto, quanto aos seus preceitos, como sendo parte da constituição formal e material.

(aqui vamos falar da Constituição enquanto fonte do Processo Penal, dada a atenção que ela dá a
matéria de direito liberdade e “garantias fundamentais”, porquanto vamos tratar o princípio
enquanto uma garantia constitucional, por estar incito a questão da violabilidade dos direitos,
liberdades e garantias fundamentais decorrentes dos julgamentos fora do poder jurisdicional
instituído, cujos preceitos são de aplicação directa e informantes de toda interpretação das leis,
asseverado na pág. 29 da obra de MCF.)

I.4 A crítica ao princípio da presunção de inocência

Como se pode depreender das referências que já foram feitas a respeito do princípio da
presunção de inocência, infere-se que o princípio em causa tem a sua razão de consagração
consubstanciada na defesa dos direitos fundamentais do suspeito ou arguido na prática do crime
98
Manuel barros LOPES. A presunção de inocência, in: Revista Portucalense nº 31, Universidade Portucalense,
Porto 2022, pág. 168
99
Jorge MIRANDA. Manual de Direito Constitucional. Constitucional, Tomo II, 6ª edição, Coimbra Editora, Coimbra
2007, pág. 56
e como é obvio, numa sociedade como a nossa, marcada por um grau elevadíssimo de
criminalidade vista a olho nu, sem desprimor de considerarmos que a cultura jurídica é um sonho
por alcançar, a defesa dos Direitos Fundamentais do suspeito da prática, evidenciada ou não, de
um crime em muitos casos é visto como uma defesa reconduzida à pessoa do criminoso e não
aos seus direitos. Dai que o princípio da presunção de inocência não tem escapado de algumas
críticas.

A ser assim, propusemo-nos neste tópico elencar algumas críticas e aquilo que achamos ser a
principal razão de tais críticas.

Começando pelas críticas que se levantam contra o princípio da presunção de inocência, importa
frisar que, de acordo o asseverado por Germano Marques da S ILVA100 este princípio é visto como
uma mera ficção, ou seja, uma mentira da lei sobre a própria lei. Porque ao mesmo tempo que a
lei impõe o dever de tratar o suspeito ou arguido como inocente, vem igualmente a própria lei a
impor medidas que ilustram que o presumível inocente não é tão inocente.

Uma outra crítica ao princípio da presunção de inocência se reconduz ao plano processual


suportada na ideia de que em momento algum deve ser tido a pé da letra no processo. Porque
«tomando-a ao pé da letra não apenas em matéria de prova mas também em todo decurso do
processo, nomeadamente na fase da instrução preparatória, se pretenda concluir pela
ilegitimidade de utilização contra o arguido, de qualquer meio de coacção maximes a prisão
preventiva»101

Não deixaríamos, igualmente, de frisar que ao princípio da presunção de inocência, no âmbito da


comunicação social, configura-se sempre o princípio em questão com a violação de um outro
direito considerado como fundamental, o de liberdade de expressão e dever de informar.

As críticas que se impõem ao princípio da presunção de inocência entendemo-las tendo como


tópico o facto de que o crime é sempre visto como um mal, tanto por parte de quem sente
directamente os seus efeitos negativos assim como para quem se propõe a reprimi-lo. A
consideração de algumas acções consideradas como crime, em nossa sociedade, nos parece que
assenta apenas no critério do facto de alguém ser ofendido, ou considerando-se como tal.
Consequentemente espera-se a responsabilização por este facto, reputado como crime, a qualquer

100
Germano Marques da SILVA. Direito Processual Penal Português. Noções Gerais, Sujeitos processuais e Objecto,
Universidade Católica Editora, Lisboa 2013, Pág. 54.
101
Jorege de Figueiredo DIAS. Processo Criminal. Lições ao 5º ano, faculdade de Direito ano 1970-1971,
universidade de Coimbra, pág. 207.
custo, prescindindo das regras que devem ser observadas para que alguém seja responsabilizado
e rotulado como criminoso.

Disto decorre que o crime em nossa sociedade «passa a ter significados diferentes para pessoas
diferentes e que nem sequer encontrou ainda os contornos do significado que lhe é correctamente
adstrito»102, iesto é, decorrentes da concepção jurídico-legal que em linhas gerais vai coincidir
com a conformação da Lei Penal substantiva, na parte especial do código penal, que resulta da
percepção do crime «como um comportamento, mas só aquele que a Lei Penal tipifica como
tal»103, passível de uma pena ou medida de segurança.

Assim, olhando para o cerne da nossa abordagem só é criminoso aquele que praticar determinado
facto que de acordo como o nº 1 do Artigo 1º do CP está descrito e declarado passível de pena
por lei anterior ao momento da sua prática» e for julgado por um tribunal, legalmente
competente, com a sentença transitada em julgado. Dado que contrasta totalmente com a
consciência que o cidadão comum formou acerca da noção do crime e do criminoso, que se
reconduz sempre a uma perspectiva sociológica e não jurídico-legal.

Dai que a ratio adstrito ao princípio da presunção de inocência é visto por muitos como não
justificável, porquanto a definição do crime e do criminoso coincide sempre com a perspectiva
sociológica da teoria do delito natural, que segundo G AROFALO104 a consciência do ilícito
«existiria na sociedade humana independentemente das circunstâncias e exigências duma dada
época ou concepção particular e que corresponderia a violação dos sentimentos altruísticos
fundamentais: a piedade (crime contra as pessoas) e a propriedade (crime contra o património).

De acordo com esta teoria o crime resulta da violação destes sentimentos latentes na maioria dos
integrantes da comunidade, dai que o delito natural seja definido como «a ofensa feita ao senso
moral médio da humanidade civilizada»105.

Ainda no que concerne a perspectiva sociológica do crime, em detrimento da perspectiva


jurídica, é defensável E. DURKHEIM, citado por Jorge de Figueiredo DIAS106, que tem o crime

102
R. QUINNEY; WILDEMAN. The Problema of Crime. A Critical Introdution to Criminology, apud., Jorge de
Figueiredo DIAS; Manuel da Costa ADRADE. O Homem delinquente e a Sociedade Criminógena, Coimbra Editora
Lda, Coimbra 1984, Pág. 65
103
Jorge de Figueiredo DIAS; Manuel da Costa ADRADE. O Homem delinquente e a Sociedade Criminógena,
Coimbra Editora Lda, Coimbra 1984, Pág. 65
104
GAROFALO, apud., Jorge de Figueiredo DIAS; Manuel da Costa ADRADE. O Homem delinquente e a Sociedade
Criminógena, Coimbra Editora Lda, Coimbra 1984, Pág. 108
105
Jorge de Figueiredo DIAS; Manuel da Costa ADRADE. O Homem delinquente e a Sociedade Criminógena,
Coimbra Editora Lda, Coimbra 1984, Pág. 108
106
Jorge de Figueiredo DIAS; Manuel da Costa ADRADE. O Homem delinquente e a Sociedade Criminógena,
Coimbra Editora Lda, Coimbra 1984, Pág. 109
como «ofensa dos Estados fortes definidos da consciência colectiva». E. D URKHEIM, afasta-se da
tese apresentada por GAROFALO com destaque na generalização da humanidade, não opitando
pelo critério civilizacional e pelo contudo material que que este atesta, sendo que para E.
DURKHEIM os sentimentos fundamentais não são redutíveis aos que G AROFALO faz menção
considerando-os de forma relativa afirmando que são «todos os sentimentos fortes e precisos
cuja caracterização deve ser formal» porque são sentimentos considerados como universais.

Ocorre dizer que o crime e o criminoso, vistos na perspectiva sociológica, o que é curial é a
presunção de culpa e nunca de inocência, de tal formas que o princípio da presunção de
inocência seja visto como repugnante, ante uma violação de um bem tido pela comunidade como
fundamental.

Seguindo a esteira de Jorge de Figueiredo D IAS diga-se que o princípio de inocência é sempre
visto no plano técnico-jurídico e quando atrelado a questões de decisões sobre a ilicitude ou
crime atende-se a todos aspectos ligados a regras e excepções. Pois, quando se ataca a
«autonomia ética» de outrem não se aplica simplesmente a regra que decorre da consciência da
ilicitude mas também o critério da causa justificativa107.

Indubitavelmente é perceptível que cumprir as injuções que o princípio da presunção de


inocência encera envolve um certo sacrifício, não obstante ao facto de muitos terem a convicção
de que a dignidade da pessoa humana tem um sentido axiológico que transcende o mal que esta
pessoa é capaz de fazer ou causar à outrem. É igualmente claro que no decurso de um processo
penal sobre o arguido recaem-se uma série de medida e que algumas coarctam da forma mais
grave a liberdade deste arguido, com realce para a prisão preventiva, que é uma medida mais
gravosa dentre todas medidas de coacção pessaol prescritas na lei, que na verdade pode ser
percebida como antecipação da pena de prisão. Porém, atendendo as especificidade que o próprio
processo penal encera, havendo necessidade de velar pela integridade das provas, de inibir uma
provável fuga do indiciado como autor do crime e de acabar com uma provável continuidade da
actividade criminosa Constituição e a lei admitem a prisão preventiva como a medida mais
gravosa em razão do que se pode compulsar no nº 1 do Artigo 64º da CRA e na al. g), nº 1 do
Artigo 260 do CPP. No entanto a prisão Preventiva não é a única a que visa acautelar o fim útil
do processo, é apenas a mais gravosa e de aplicação criteriosa em «razão da necessidade» 108.

107
Op Cit.. O Problema da consciência da Ilicitude em Direito Penal. Dissertação de Doutoramento em Ciências
Jurídicos, Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra 1969, Pág. 405
108
Cfr. Germano Marques da SILVA. Curso de Processo Penal, Volume II, Editorial Verbo, Loures 1993, Pág. 206.
As críticas ao princípio da presunção de inocência, segundo o Professor Germano Marques da
SILVA109, podemos afirmar que as críticas ao princípio da presunção de inocência são
inadmissíveis «perante uma ordem inspirado por um critério superior de liberdade, assente no
valor moral da pessoa humana».

Devemos perceber que quando se afirma que alguém é presumível inocente não significa que o
seja efectivamente, porém do ponto de vista jurídico também não é efectivamente culpado,
porque a sua culpabilidade ou inocência precisa ser declarada e confirmada judicialmente
mediante uma sentença ou acórdão do tribunal competente e que esta decisão seja inatacável
ordinariamente. Mas mesmo assim a condenação não implica cabalmente que a culpa de que se
imputa à uma determinada pessoal corresponda com a acção que desencadeou tal decisão. Pode
se dar o caso de alguém ser condenado por um crime e não o ser efectivamente, disto a praxe nos
nossas tribunas testifica.

Disto resulta que a «suspeita processual de que alguém seja culpado, faz nascer o direito de ser
tratado como inocente e disto decorre que o presumido inocente é igualmente presumido
culpado, por ter o estatuto processual de arguido que é alguém que contra a qual se tenha
recolhido indícios de ter praticado um crime» 110 (seguir a fórmula da citação directa longa),
configurando assim um dever de tratar o indiciado criminoso como inocente, porquanto sua
culpa carece de confirmação judicial.

109
Op. Cit., Curso de Processo Penal I, 2ª edição, Editorial Verbo, Loures 1994, Pág. 73
110
IBDEM
II Capítulo. O princípio da presunção da inocência como garantia processual

Para o presente capítulo propusemo-nos a olhar o princípio da presunção da inocência como uma
garantia processual porque entendemos ser no processo, enquanto «conjunto de actos que visam
a aplicação do direito penal» 111, onde este princípio tem maior incidência, não obstante ao facto
de que por ser um princípio fundamental a sua observância é também um imperativo em
qualquer situação concreta da vida em que uma pessoa seja tida como indiciado ou suspeito da
prática de um crime.

Com este postulado ocorre dizer que a luz do nº 1 do artigo 67º da CRA, que determina a
aplicação de uma consequência penal apenas seguindo as determinações da lei e em consonância
com o Artigo 1º do CPP a concretização da aplicação de uma consequência penal só é possível
dentro de um processo legalmente possível e «devido com base a natureza do direito a
acautelar»112.

No processo penal encontramos sempre a questão relativa a protecção dos direitos, liberdades e
garantias fundamentais. Disto resulta que, seguindo os contributos de Geuppe B ETTIOL113, cada
acto realizado no processo é sempre resultado duma regulamentação normativa que pode ser tida
como «consequência do surto do fortalecimento da ideia dos Estado de Direito, como ideia de
garantia da liberdade do cidadão e da limitação da intervenção estadual, no processo de que o
Estado deve reconhecer e respeitar os direitos invioláveis da pessoa»

Já foi pontualmente adiantado por nós que o princípio da presunção de inocência é um princípio
com cobertura expressa na constituição. Deste modo não temos como esquivar-nos, ao
abordarmos este princípio, da vertente processual porquanto, tal como nos é asseverado por José
António BARREIROS114, «o processo penal é o direito constitucional aplicado», por causa do
entendimento de que é no direito Constitucional onde encontramos maior incidência protectivo
dos direitos atinentes a liberdades individuais. Disto decorre que num Estado Enraizado nos
valores da democracia e legalidade, o processo penal não pode ser empregue como «uma mera
intervenção estadual para fins de desinfecção ou da defesa social»

111
José António BARREIROS. Processo Penal I, Almedina Editora, Coimbra, 1981, Pág. 155
112
José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora
Coimbra, Coimbra, 1997, Pág. 487.
113
Giuseppe BETTIOL. Instituições de Direito e Processo Penal, Trad. Manuel da Costa ANDRADE, Coimbra Editora,
Coimbra, 1974, Págs. 272-274
114
José António BARREIROS. Processo Penal I, Almedina Editora, Coimbra, 1981, Pág. 273
Queremos demostrar que o princípio da presunção de inocência implica sempre um julgamento
que terá como consequência a prolação de uma decisão condenatória ou absolutória que depois
de transitado em julgado vai determinar a culpa efectiva ou retomar o estado anterior, o da
qualidade e condição de inocento.

Consequentemente vamos procurar relacionar o princípio da presunção de inocência com a tutela


jurisdicional, porquanto da observância do princípio da presunção da inocência resulta o direito
de ser julgado para que da decisão advinda deste julgamento confirme ou infirme a condição da
inocência. E poderemos, igualmente, procurar expor algumas implicações do princípio da
presunção de inocência com as fases do processo penal, tendo como protótipo o processo
comum.

II. 1.1 O princípio da presunção de inocência e o direito a tutela jurisdicional


Chegados neste número, adiantamos que de acordo o nº 1 do artigo 29 da CRA e do Artigo 11º
da Lei noº 29 /22 de 29 de agosto (lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos
Tribunais da Jurisdição Comum), consagra a garantia do acesso ao direito e tutela jurisdicional
que consiste na garantia de se recorrer aos tribunais para defesa dos direitos e interessas
legalmente protegidos, de modos que a todos se faça justiça, sem olhar pelos meios económicos
de que se dispõe.

Assim podemos definir a tutela jurisdicional como sendo a faculdade conferida a todos de de
recorrer aos tribunais para a defesa de seus «direitos e interesses legalmente protegidos e a
garantia da legalidade democrática, o que significa que os tribunais têm uma relevante função na
garantia a ordem jurídica»115

É consabido que a tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos não é feito apenas
mediante o acesso aos tribunas, pois existem outros mecanismos extrajudiciais de que se pode
dispor para a defesa e salvaguarda dos direitos e interesse que a lei confere uma certa relevância.
Mas atendendo o âmbito da nossa abordagem vamos nos reconduzir apenas na questão do acesso
aos tribunais, que por intermedio de um processo realiza-se um «complexo de actos dirigidos ao
exercício da jurisdição»116 que por sua vez vai consistir no poder conferido ao Estado de realizar,
por meio dos tribunais, a justiça em nome do povo, tal como resulta do nº 1 do Artigo 174º da
CRA. Isto porque num Estado como o nosso, a julgar pela atenção que, pelo menos no plano
constitucional, é dada aos direitos, liberdades e garantias fundamentai, «a garantia do acesso aos
tribunais reputa-se como sendo a concretizadora dos princípios estruturante do Estado de
direito».117

Certamente o exercício da jurisdição entanto poder do Estado de administrar a justiça, dizendo o


direito, é visto num plano muito amplo. No entanto a nossa abordagem tem que ver com a justiça
penal, que tal como veremos adiante constitui poder exclusivo do Estado que soberanamente a
exerce por intermedio dos órgãos jurisdicionais.

Pode ocorrer que se questione o que a tutela jurisdicional tem que ver como com o princípio da
presunção de inocência. Por entendermos que considerar alguém como culpado só é possível

115
Suzana Tavares da SILVA. Direito Constitucional I, Ed. Instituto Jurídico Fculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, Coimbra, 2016, Pág. 240
116
José António BARREIRO. Processo Penal I, Almedina Editora, Coimbra, 1981, Pág. 156
117
José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora Coimbra,
Coimbra, 1997, Pág.485
depois da prolação de uma decisão condenatória transitada em julgado, tal como resulta do nº 2
do Artigo 67 da CRA, o princípio da presunção de inocência tem muito que ver com a questão
da tutela Jurisdicional porque se alguém quer ver no outro um culpado, de uma infracção penal,
nomeadamente um crime e que por esta culpa se deve responsabilizar este alguém, terá de faze-
lo por intermedio do exercício da prerrogativa de recorrer ao tribunal, que mediante sua decisão
vai confirmar a inocência ou a culpa do indiciado. Sendo que a presunção de inocência pode se
transformar em um direito de ser julgado por um órgão jurisdicional, que tem a obrigação de
salvaguardar no processo os direitos fundamentais do ofendido assim como do arguido.

Sublinhamos assim que as «garantias da acção penal constituem um dos desenvolvimentos mais
relevantes no contexto do Estado de direito e que se formam, essencialmente, sob égide do
reconhecimento da dignidade da pessoa humana (em especial a presunção de inocência) e a
disseminação dos direitos humanos e da necessidade de impor algum equilíbrio de forças entre o
poder público e os indivíduos».118

Pelo que o julgamento se firma como um direito que assiste a todos, e pelos condicionalismos
impostos pelo princípio da presunção de inocência, por entendermos que num julgamento, até
que a decisão daí decorrente transite em julgado, está sempre implicado um inocente. Assim pelo
princípio da presunção da inocência, não basta conferir o direito ao julgamento assim como este
deve ser conferido tendo em consideração os critérios de justiça, celeridade e legalidade 119.

A ser assim da tutela jurisdicional vai resultar no comando de julgar que deve basear-se no
critério de justiça. Tal alusão nos faz remeter à abordagem do sentido e (ou) significado do
processo justo. Pelo que apoiado na doutrina americana, o professor Gomes C ANOTILHO120,
reconduz a abordagem do processo justo com base a duas perspectivas do direito, adjectiva e
substantiva.

A primeira tem que ver com a perspectiva processual, que no dizer do citado, esta perspectiva
nos remete a teoria do processo devido segundo a qualificação legal. Segundo esta teoria a
pessoa privada dos seus direitos fundamentais mormente: a vida, a liberdade e propriedade, tem
o direito de exigir que esta privação seja feita mediante o processo especificado na lei, colocando
a tónica no processo criado por lei.121

118
Suzana Tavares da SILVA. Direito Constitucional I, Ed. Instituto Jurídico Fculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, Coimbra, 2016, Pág. 146
119
CRA, artigo 72º
120
José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora Coimbra,
Coimbra, 1997, Pág. 488,
121
IBDEM, Pág. 489,
Pela perspectiva substantiva ou material, inerente a teoria material no dizer do professor
CANOTILHO, depreende-se que não obstante a observância do processo especificado ou por lei,
ele deve ser justo e adequado sempre que seja visto na perspectiva de limitar a vida ou sacrificar
a liberdade e a propriedade, deve ser um processo materialmente informado pelos princípios da
justiça, a começar pelo processo da criação normativa legislativa.122

Com base nesta consideração, resulta que o processo justo é o que respeita critérios formais
assim como materiais com vista a conferir tutela alargada dos direitos fundamentais,
proporcionando aos que têm o poder de decidir no âmbito judiciário, caminhos que melhor se
adequem a um processo equitativo, que garanta da melhor forma possível a salvaguarda dos
direitos fundamentais123 dos quais não se alheiam o direito de ser tratado como inocente.

II.2. A relação do princípio da presunção de inocência com os princípios da oficiosidade e


jurisdição e (ou) juiz natural

II.2.1 A relação como o princípio da oficiosidade ou oficialidade.

Partindo do pressuposto de que o princípio da presunção de inocência pode ser vista como um
mecanismo de defesa dos direitos fundamentais, pela proibição da presunção de culpa,
resultando assim na necessidade da promoção da acção penal tendente a verificação,
demostração e consequentemente a declaração, em sede de julgamento, mediante decisão
condenatória transitada em julgado a culpa da pessoa que sobre a qual recai fortes e suficientes
indícios da prática do crime, vamos nos ocupar em saber a quem cabe a função de promover o
processo penal, uma vez que a determinação da culpa tem de ser feita mediante um processo.

Gostaríamos de lembrar, antes demais, que no âmbito da configuração do ilícito penal ou


infracção penal, cabe o crime e contravenções. O crime é sempre reputado como sendo o ilícito
mais grave em relação a contravenções, sendo que para a presente abordagem as nossas atenções
estão viradas para o crime, que de forma curial consiste no acto humano, ilícito, culposo, típico e
punível, cuja punição resulta sempre da necessidade de cumprir a função retributiva ético e na

122
IVI.
123
Cfr. José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora
Coimbra, Coimbra, 1997, Pág. 488.
prevenção geral ou especial, atrelado a ressocialização do criminoso, fazendo do cidadão que
infelizmente vier a suportar a mácula de ser reputado como culpado de um crime, transforme-se
em um cidadão útil para a sociedade.

Assim o crime vai consistir em:

«conduta do homem que lesa as condições de existência, conservação ou desenvolvimento


de uma sociedade num determinado momento da sua história para qual se preve como
consequência que recai sobre o seu autor uma pena de natureza de (sic)pe forma aflitiva de
privação ou limitação da fruição de determinados bens jurídicos»124.

Disto resulta que o crime, pelo menos os seus efeitos, repugnam a todos. Nisto pode ocorrer que
todo aquele que se sentir ofendido ou até mesmo lesado, esteja na ânsia de querer, de per si,
responsabilizar o autor do crime. Tal desiderato a acontecer, para lá de ferir o princípio da
proibição de fazer justiça por mãos próprias ou o princípio da supremacia da função jurisdicional
conferida ao Estado, não se compagina com o princípio da presunção de inocência.

Mas, tal como já se tentou mostrar, o crime não é só um facto humano doloso. Ele poderá
preencher alguns elementos que concorrem para a sua caracterização como uma conduta
perceptivel no plano físico e no plano psicológico. O que implica a consagração na lei pena, que
nos vai remeter na questão da tipicidade e na fórmula da anti juridicidade que conforma a razão
de se atribuir uma dada consequência125. Por isso, a anti juridicidade não é redutível ao
movimento manifestado em gesto de acção, e ofensa decorrente desta acção, é igualmente
necessário que a acção em causa coincida com com o postulado na previsão legal, com o tipo,
sem prescindir igualmente a «voluntariedade da acção e o fim visado»126 .

Consequentemente, não se pode configurar o crime apenas no plano psicológico, de modos que a
qualificação de um determinado facto humano como crime não tenha como pressuposto o sentir-
se lesado por tal facto, pois o da consideração de um facto como crime implica sempre o
sentimento de responsabilização por aquele facto e nesta ânsia de responsabilizar perecem
muitos direitos de potenciais inocentes.

124
Giuseppe BETTIOL. Instituições de Direito e Processo Penal, Trad. Manuel da Costa ANDRADE, Coimbra
Editora, Coimbra, 1974, Pág. 27
125
Cfr. Giuseppe BETTIOL. Instituições de Direito e Processo Penal, Trad. Manuel da Costa ANDRADE, Coimbra
Editora, Coimbra, 1974, Pág. 37
126
Cfr IBDEM, Pág. 32
Assim, tal como assevera Jorge de Figueiredo DIAS127 ao princípio da oficiosidade ou
oficialidade, estará sempre em causa saber quem tem o poder funcional de promover o processo
penal, tendo em consideração a função:

«de investigar a prática de uma infracção e a decisão de submeter ou não a julgamento. Não no
sentido de determinar se uma competência deve ser deferida ao juiz da causa ou antes a qualquer
entidade dele diferenciada – uma vez que a problemática relativa ao princípio em questão decorre a
nível diferente da querela sobre a estrutura acusatória ou inquisitório do processo penal embora não
deva negar-se (sic)que o princípio se afirmou historicamente em conjunção com a viragem para o
processo inquisitório. Mas naquele outro sentido de estabelecer se uma tal iniciativa deve pertencer
a uma entidade pública ou estadual – que interprete e represente o interesse da comunidade
constituída em Estado, na perseguição oficiosa das infracções -, ou antes a quaisquer entidades
particulares designadamente o ofendido pela infracção. considerando-se o direto Penal como o
direito de “protecção dos bens fundamentais da comunidade e o processo penal como um assunto
da comunidade jurídica”»

Quanto ao princípio da jurisdição queremos saber quem tem o poder-dever de julgar para a
devida responsabilização do suspeito ou arguido, depois de uma convicção devidamente formada
no processo sentencie a culpa apta a afastar a presunção de inocência.

Por isso ao corelacionarmos o princípio da presunção de inocência com os princípios da


oficialidade e jurisdição ou juiz natural, queremos demostrar que não cabe a todos reputar
outrem de criminoso ao ponto de determinar sobre ele a consequência que a lei prevê para um
determinado acto que preenche os pressupostos de ser considerado como crime e em quais
termos deve faze-lo, sem que o mesmo seja julgado e condenado por meio de uma decisão
transitada em julgado.

Resulta que pelo princípio da oficialidade ou oficiosidade,

«a iniciativa e o impulso processual competem, no processo penal, ao Estado, a uma entidade


oficial. Sendo, como são, o direito penal e o direito processual penal instrumentos (sic) de defesa
dos valores fundamentais da sociedade e do Estado, coincida ela ou não com o interesse e a
vontade dos particulares, contrarie ou não esses interesses. O processo penal não é disponível, não
está na disposição dos particulares»128.

Tal como nos é asseverado por Giuseppe B ETTIOL129, da prática do facto que configura crime
decorre sempre «a destruição ou negação de um bem ou de um interesse público ou privado»,
127
Jorge de Figueiredo DIAS, Processo Criminal. Lições ao 5ª Ano da Faculdade de Direito de 1970-1971,
Universidade de Coimbra, Coimbra, 1971. Pág. 102
128
V. Grandão RAMOS. Direito Processual Penal. Noções Fundamentais, Escolar Editora, Lobito, 2013, Págs. 61-61.
129
IBDEM, Págs. 25-26
criando dano no normal ordenamento da vida social. Porquanto se sabe que enquanto um acto
ilícito, o crime viola sempre um dever jurídico munida de uma consequência juridicamente
considerada

Se pretende igualmente aprofundar mais um pouco acerca do princípio da jurisdição, para que se
procure esclarecer a quem assiste o pode-dever de julgar, de formas que deste acto resulte a
permanecia do estado de inocência ou passa-se na consideração como culpado.

A ser assim diga-se que o princípio da oficiosidade decorre do facto de nos Estados modernos a

«promoção processual, eregiu-se como tarefa fundamental do Estado. Pelo que o caracter público
da acção penal e o monopólio estadual da perseguição dos agentes de um crime dá sempre lugar à
abertura de um processo penal» é assim que tal reserva oficiosa do exercício da acção penal –
normalmente a cargo do Ministério Público (MP)»130.

Importa adiantar que toda promoção processual penal tem como principal condicionante a
notícia de uma infracção penal, mormente do crime, por conhecimento oficioso, denúncia ou
auto de notícia que via de regra ocasiona a promoção do processo crime, tal como nos vem
sancionado no Artigo 49º do CPP. Assim o Estado promove o processo penal para consecução
da acção penal por intermedio do MP que nos termos do nº 1 do Artigo 185º da CRA, é um
órgão da Procuradoria-Geral da República, dotado de autonomia funcional e estatutária que nos
termos da lei firma-se como essencial à função jurisdicional.

Com isto, nos termos do nº 1 do Artigo 48º do CP, o MP adquiri a qualidade de autoridade
judiciária com amplos poderes no âmbito da promoção processual, podendo participar na
descoberta da verdade e na realização da justiça penal, podendo basear a sua actuação em
critérios de objectividade e legalidade. É a este órgão que compete a exclusiva missão de
perseguir os que eventualmente estejam na posição de presumíveis autores de crimes para que se
determine a sua submissão ou não à julgamento. Nesta tarefa que via de regra cabe ao MP,
sempre que a necessidade justifique, o Estado dispõe de um outro órgão, os Serviços de
Investigação Criminal órgãos de Polícia Criminal que, embora preserve sua autonomia, no
âmbito da promoção processual penal e administração da justiça penal, assiste e coadjuva o MP,
podendo actuar no processo sob direcção do MP131.

130
Carlos Adérito TEIXEIRA. “Princípios Fundamentais Enformadores do Processo e Direitos Fundamentais”, in
Carlos Adérito TEIXEIRA; Jorge GONÇALVES, Direito Penal e Processo Penal, Tomo II, Ed. INA – Instituto Nacional
de Administração, Lisboa, 2007, Pág. 55
131
CPP, Artigo 55º
É assim, no âmbito da realização penal, o MP toma oficiosamente o conhecimento da noticia do
crime, por meio de denuncia - facultativo ou obrigatório - que é um dos mecanismos de que os
indivíduos se podem valer para dar a conhecer a notícia do crime, além do outros já mencionado,
no caso o auto de notícia que é um expediente para o conhecimento do crime que é exclusivo à
autoridades judiciárias ou órgãos de polícia que no exercício das suas funções tomem
conhecimento da prática de crime e a queixa que consiste em um expediente que toma a forma
de denuncia, mas com a manifesta intenção de que sobre ela se deva instaurar o competente
procedimento criminal, a disposição dos que encontrarem na qualidade de ofendido num crime
classificado como semi-público ou particular132.

Pelo facto de o crime assumir várias naturezas no processo, o princípio da oficialidade não é
absolutizado, no sentido de limitar a participação de outros intervenientes no processo. É assim
que seguindo a linha de pensamento dos Rodrigues FERREIRA e Henriques Vaz LACERDA133, do
exposto, não resulta que os indivíduos não possam intervir no processo penal, no entanto a sua
intervenção é limitada com base algumas condições de «procedibilidade» ancoradas aos critérios
da protecção da vítima, à tutela do bem em causa no processo e do interesse. Mas mesmo assim,
via de regra a dita intervenção não implica o desaforamento da competência de promoção
processual penal ao MP.

Se o princípio da oficialidade pressupõe o exercício da acção pelo Estado 134 mediante o MP que é
o órgão tido como o patrono da prossecução da acção penal nos termos da CRA 135. No processo
penal, o MP pratica vários actos no interesse da acusação, com maior incidência nos crimes
públicos, mas, tendo em consideração ao que já fizemos menção, relacionado aos critérios de
estrita legalidade e objectividade, este órgão é obrigado a agir inclusive no interesse do
arguido136.

É com base nisto que ao MP não cabe apenas acusar, mas também arquivar ou suspender o
processo para «aguardar melhor prova»137

O princípio da oficialidade ao determinar o órgão que tem a obrigação de agir, não apenas no
interesse da acusação mais também no interesse do acusado, é possível compulsar neste princípio

132
Tal como se pode inferir do teor dos artigos 48º, Nº 1 e 2 , al., a); 303º; 304º; 305º nº 4, todos dos CPP.
133
Cfr. Carmindo Rodrigues TEIXEIRA; Henriques Vaz LACERDA. Lições de Direito Penal, Faculdade de Direito,
Universidade de Lisboa, 1940-1941, Pág. 33
134
Cfr. António BARREIROS. Processo Penal I, Almedina Editora, Coimbra, 1981, Pág. 278
135
CRA, Artigo 186º, nº 1
136
Cfr. António BARREIROS. Processo Penal I, Almedina Editora, Coimbra, 1981, Pág. 279
137
António BARREIROS. Processo Penal I, Almedina Editora, Coimbra, 1981, Pág. 279
uma alargada tutela da inocência, acreditando que pela actividade probatória a que incumbe o
MP a demonstração da verdade dos factos que determinarem a prática ou não do crime será feita
será feita com a máxima objectividade, fazendo com que a promoção do processo penal não
resulte em materialização da vingança privada, que só vê o lado da culpa em detrimento do lado
da inocência.

II.2.2 a relação com o princípio da jurisdição e (ou) Juiz natural

Ocupando-nos ao princípio da jurisdição e (ou) juiz natural, ocorre dizer que já foi adiantado
alguns subsídios a seu respeito do princípio da jurisdição. Porém vamos procurar aborda-lo com
mais pormenor e dada a sua relação entre o princípio da jurisdição com o do juiz natural,
procuraremos encontrar os pontos que os separa, tendo em consideração o dado de que certas
violações reconduzidas ao princípio da presunção de inocência tendem a considerar o indiciado
na prática do crime como se de um culpado já se tratasse, sendo que a tese a que nos
subscrevemos visa defender que a culpa deve decorrer da declaração de uma decisão judicial e
que a comunidade atribua esta culpa a alguém depois de a decisão que tendo declarado a
respectiva culpa a mesma decisão tenha transitado em transitado em julgado.

O teor do nº 2 do artigo 67º da CRA, que constitui o substrato da nossa pesquisa, nos vem
expresso a única condição passível de afastar a presunção de inocência que é por meio de uma
decisão, no caso a sentença, que nos termos do artigo 110º do CPP, nº 1 al. b), consiste num acto
decisório que no fim da fase de julgamento conhece do objecto do processo, mas quando
prolatado por um tribunal singular.

Dados que relacionados com como o poder de julgar e decidir sobre a culpa ou inocência do
arguido imperam algumas questões tais como: a sentença deve ser percebida enquanto uma
decisão exclusiva do tribunal singular ou sobre este se deve fazer uma interpretação extensiva no
sentido de incluir toda e qualquer decisão final proferida pelo tribunal, seja na sua composição
singular, seja na sua composição colegial?

É generalizadamente sabido que quando se fala do poder jurisdicional são muitos as tribunas
acometidos no poder-dever de administrar a justiça desde a jurisdição comum a especial.
Impondo-se desta forma questionar a qual jurisdição pertence o mérito de administrar a justiça
penal? A comum ou a especializada? No ordenamento jurídico Angolano é permissível a criação
de tribunais “ad oc” para conhecerem da matéria relativa a administração da justiça penal?

O princípio de jurisdição pode ser entendido como sendo a manifestação do poder-dever de dizer
o direito, ou seja, o poder de julgar, que quando relacionada com o princípio do juiz natural,
vamos depreender o poder-dever de dizer o direito no âmbito da administração da justiça penal,
entendendo-o como o princípio que se adequa ao contexto do assunto a que nos estamos a
ocupar.

A garantia do Juiz natural ou legal visa a materialização de um outro direito, que é o direito de
ser julgado por um tribunal legalmente competente. É um princípio que de acordo Giuppe

BETTIEL138, concede-nos a ideia de que o Juiz que deve julgar e limitar as liberdades
fundamentais deve ser previamente «estabelecido, isto é o Juiz Ordinário» de tal modo que
ninguém pode ser subtraído da jurisdição legalmente constituído para julgar matéria relativa ao
crime dada a capacidade gravosa que o direito Penal encera.

É um princípio que se consubstancia na existência na «garantia de existência de julgamentos


independentes e imparciais, importando um voto de confiança da comunidade da administração
da justiça»139. Porquanto «todos cidadãos têm direito a um julgamento imparcial, devendo o
tribunal assegurar, em todo processo, um estatuto de igualdade substancial das partes»140

Havendo necessidade da prolação de uma decisão condenatória transitada em julgado, urge a


necessidade de saber quem tem o poder-dever de proferir tal decisão, enquanto consequência do
princípio da presunção de inocência.

É com base neste espírito que se vai analisar a questão atinente ao princípio Da jurisdição e (ou)
juiz natural ou legal para que se possa saber qual é a jurisdição vocacionada a acautelar a
inocência.

Prosseguindo, diga-se que a jurisdição «é o poder atribuído, constitucionalmente, ao Estado para


aplicar a lei ao caso concreto, compondo litígio e resolvendo conflitos»141. Disto decorre que

138
Giuppe Bettiel. instituições de Direito e Processo Penal, trad., Mnauel da Costa Andrade, 32ª edição, Coimbra
Editora Lda, Coimbra, 1917, Págs. 253-255
139
Isabel GRAES. Juiz Natural ou Legal, apud., João ANDRADE. “ O princípio do Juiz Natural na Tradição
Romanística”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Nº 1, ano 2019, PP 217-243, Pág. 218
140
Lei Nº 29/22 de 29 de Agosto. Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição
Comum, Artigo 14º, nº 1
141
Guilherme de Sousa NUCCI. Manual de Processo Penal e Execução, 13ª Edição Editora Forense, Rio de janeiro,
2016, Pág. 239
A jurisdição, no ordenamento jurídico Angolano, é exercida pelos Tribunais tal como se pode ler
no nº 1 do artigo 174º da CRA. Olhando pela configuração para configuração deste princípio
diríamos que todo tribunal apta a proferir uma decisão condenatória esta apta a tutelar a
inocência do arguido ou suspeito prática de um crime. No entanto a decisão condenatória a que
nos estamos a referir é a reconduzível a matéria penal, porquanto é a única que se deve alicerçar
na culpa e o que está em causa é a culpa.

O sistema judiciário angolano está repartido em jurisdição comum e jurisdição especializada. Tal
como se pode perceber por intermedio da Lei orgânica sobre a organização e funcionamento dos
tribunais de jurisdição comum, Lei nº 29/22 de 29 de agosto, é composto por tribunais de
primeira e segunda instância, com a competência de julgar e decidir sobre toda matéria que por
lei não seja atribuída à tribunais que integram a jurisdição especializada 142.

Os Tribunais da jurisdição comum, para a sua actuação no que a administração da justiça diz
respeito, está organizada com base a competência determinada tendo como critério da hierarquia,
da matéria e do valor da causa 143, sem desprimor do critério da conexão, que entendemos ser
processual.

Já foi adiantado que estamos a nos ocupar do princípio da presunção de inocência enquanto uma
garantia constitucional penal, impera que a pessoa sujeita a suspeita da prática de um crime não
pode ser julgada por qualquer instância Jurisdicional, como é obvio a sua matéria se reconduz ao
âmbito penal.

Seguindo os ensinamentos do Professor Jorge de Figueiredo DIAS144, o julgamento que tem


como fim a declaração da inocência ou culpa de alguém colide sempre com os «direitos
fundamentais das pessoas», podendo incluir o direito de ser considerado inocente. Isto faz com
que o facto em que estejam em causa estes direitos «deva ser submetido a um tribunal previsto
como competente por lei anterior, e não ad hoc criado ou tido como competente».

A tutela dos direitos fundamentais da pessoa humana é de vinculação necessária, disto decorre
que o processo da administração da justiça deve estar baseado nos valores de independência,
legalidade e imparcialidade, e confiança da comunidade aquela administração. Assim sob
princípio do juiz natural, enquanto um princípio reconduzido ao direito processual penal, que
tem como objectivo a materialização do direito de punir vai ter como consequências: a criação

142
Cfr. Lei nº 29/22 de 29, Artigo 1º
143
Cfr. Lei nº 29/22 de 29, Artigo 27º
144
Jorge de Figueiredo DIAS. Processo Criminal. Lições ao 5ª Ano da Faculdade de Direito de 1970-1971,
Universidade de Coimbra, Coimbra, 1971. Pág. 335-337
por lei dos tribunais que se devem dedica em administrar a justiça penal, sendo que seja a mesma
lei a fixar a competência dos respectivos Tribunas; a criação legal e a determinação da sua
competência tem de ser anterior ao facto que este tribunal pretender julgar; o tribunal penal esta
obrigado a vincular-se a competência que por lei lhe foi pré determinada; a não admissibilidade
do desaforamento a um órgão jurisdicional instituído por lei .

Pelo podemos afirmar que, tendo em consideração os artigos 174º, nº 1 da CRA; artigo 9º, nº 1;
os artigos 13º, 31º, 49º, 50º, nº 1, al. b) da Lei Nº 29/22 de 29 de agosto (Lei Orgânica Sobre a
Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum), A decisão sobre a inocência
ou a culpa, pelo menos na fase ordinária do processo, apenas compete aos tribunais de jurisdição
comum, com incidência em todas as fases do processo até o transito em julgado da decisão
condenatória. A única excepção é conferida ao tribunal militar, isto é para os crimes da natureza
militar, tal como é previsto pelo artigo 9º do CPP.

A ser assim a sentença a que se refere o nº 2 do artigo 67 da CRA, não pode ser percebido na
perspetiva restritiva que faz com que ela seja redutível a uma decisão do tribunal singular. Deve
ser percebido como uma decisão final, que conhece do objecto do processo, seja ela decida por
um tribunal singular ou não de forma a abranger todos os níveis jurisdicionais que são
legalmente competentes a proferir uma decisão condenatória penal, tal como se pode perceber do
nº 2 do artigo 13º da Lei Nº 29/22 de 29 de agosto.

II. 2. A presunção de inocência nas fases do processo

Relacionando o princípio da presunção da inocência com as fases de processo queremos ilustrar


a transversalidade deste princípio no processo penal. Tendo como foco o processo comum,
vamos procurar ilustrar as formas de manifestação deste princípio nas fases de instrução
preparatória, da instrução contraditória, do julgamento, do recurso. Igualmente vamos procurar
aludir o alcance deste princípio com o transito em julgado.

Importa adiantar que toda pessoa que sobre si se formar indícios da prática de um crime, a ela se
atribui um estatuto processual especial, o de arguido, transformando-o em sujeito e não como
objecto processual, mormente no que toca a obtenção de prova, passando a exercer os direitos e
deveres que decorrem desta posição. Com isto queremos afirmar que desde o momento que a
pessoa se vê implicado em processo passa automaticamente a beneficiar da prerrogativa de ser
presumido e considerado como inocente com o «alcance do estatuto da presunção de inocência a
vigorar ao longo do processo»145

«o princípio da presunção da inocência reporta-se para todo processo até o transito em julgado da
decisão condenatória, no sentido em que sua incidência começa desde que é aberto o processo isto,
é desde que se tem notícia do crime, pela denuncia, auto de notícia, ou queixa, desencadeando,
desencadeando a fase da instrução preparatória até que sobre o crime em causa se profira uma
decisão condenatória que, transitada em julgado vai enfraquecer ou determinar o enfraquecimento
ou o termo da incidência do princípio da presunção de inocência no processo, não obstante ao facto
de que este princípio pode, eventualmente, vir a renascer em sede de um recurso extraordinário,
mormente o recurso de cassação»146

E com base neste pensamento queremos perceber de que formas o princípio da presunção de
inocência vai incidir nas fases de processo, compulsando nelas as formas orientadas ao
acautelamento da inocência. Cônscio de que a demostração da culpa do arguido, da qual depende
a condenação ou absolvição, que consequentemente vai confirmar a inocência ou a culpa do
arguido, ocorre no processo mediante um percurso processual que passa por várias fases.2.1. Na
fase de instrução preparatória

Por força do princípio da presunção de inocência, a responsabilização penal só é possível no


devido processo legal que mediante a consecução de vários actos vai conduzir a prolação de uma
decisão condenatória que vai afastar a presunção de inocência e confirmar a presunção de culpa
enquanto uma verdade formada dentro do processo, obedecendo todas as normas e regras
jurídicas que informam o processo que:

145
Manuel Barros LOPES. “O princípio da presunção de inocência como regra de tratamento e regra de juízo
probatório”, in Revista portucalense, nº 32, Universidade portucalense, Porto 2022, pp 162-196, Pág. 182.
146
Declarações prestadas pelo Dr. Inácio SALESSO, Juiz de Direito do tribunal de comarca do Huambo, a quanto da
nossa passagem por aquela Instituição na Sala do Crime, 2ª secção dos crimes comuns, no dia 01 de novembro de
2024.
«enquanto direito constitucionalmente aplicado o processo penal encontra sua finalidade na
administração da justiça, busca da verdade material, restabelecimento da paz jurídica e tutela de
direitos individuais. Entre os direitos constitucionalmente protegidos, contam-se o da… presunção
de inocência (até ao transito em julgado da sentença condenatória)» 147

Fase da instrução preparatória

A instrução preparatória é a fase que apenas tem seu cobro no processo comum, em função da
complexidade processual que esta fase encera. É uma fase que não se observa ao nível da
tramitação processual dos processos especiais tais com: o processo sumário, o processo de
contravenções e processo abreviado, por serem processos que a lei confere certos critérios que
que fazem com que se prescinda a fase da instrução preparatória, enquanto uma fase cronológica
do processo.

«O processo é um conjunto de actos coordenados para um fim, o julgamento ou decisão. Não


pode haver julgamento sem instrução, no sentido de que para decidir importa recolher os
elementos necessários a formação do juízo»148

Seguindo o professor Grandão RAMOS149,

«a instrução preparatória é a fase de investigação e recolha de provas ou de formação do corpo


do delito.
Ela abre-se com a noticia ou conhecimento de que foi cometida uma infracção. Conhecimento
que pode ser directo (oficioso) ou obtido através da informação de terceiras pessoas.
Para que haja esse conhecimento necessário à abertura de instrução preparatória, basta a simples
suspeita da existência de um crime».

Tal como qualquer direito constitucionalmente consagrado a presunção de inocência, na sua


incidência processual, «é conformadora das soluções legais, da lei processual ordinária» 150. Com
isto o afastamento da presunção de inocência mediante uma decisão condenatória transitada em
julgado, é feita observando algumas fases legalmente determinadas com finalidade primordial de
demostração da veracidade dos factos, das quais se inclui a fase da instrução preparatória que é
147
Carlos Adérito TEIXEIRA. “Princípios informadores do processo e Direitos Fundamentais”, In, Carlos Adérito
TEIXEIRA; Jorge GONÇALVES, Direito Penal e Processual Penal, Tomo II, INA, Lisboa, 2007, PP 51-100, Pág., 54
148
Manuel de Cavaleiro de FERREIRA. Curso de processo penal, Vol. II, Lisboa, 1958, Pág. 145
149
Grandão RAMOS. Direito Processual Penal. Noções Fundamentais, Escolar Editora, Lobito, 2013, Pág. 275.
150
IBDEM
por excelência uma fase de recolha das provas que eventualmente poderão fundamentar a
acusação.

Dentre todas as fases que informam o processo comum, a fase da instrução preparatória é a
primeira. Ela tem seu início tão logo que se obtém a notícia do crime 151, que pode ser obtida
oficiosamente, mediante a denuncia de terceiros ou queixa 152. E depois de obtida a notícia do
crime determina-se se ao mesmo cabe ou não a instrução preparatória que se destina a formação
de um juízo de probabilidade sobre a prática da infracção penal.

A direcção da instrução preparatória, enquanto titular da acção penal 153. Apenas ao MP cabe o
início da instrução preparatória que mediante um acto seu determina a sua abertura, de modos
que sem o acto expresso do MP não se observa a existência do processo comum 154. A ser assim,
nesta fase materializa-se o princípio da oficialidade porquanto apenas o MP está vocacionado por
lei a abrir a instrução preparatória, assim como apenas a ele cabe o poder de promover o
procedimento penal em nome do Estado tal como se pode depreender do artigo 48º, nº 1 e nº 2 al.
a), b) e c) do CPP.

Enquanto uma autoridade judiciária, compete a este órgão participar na descoberta da verdade e
na realização da justiça penal, pautando, na sua actuação, por critério de estrita legalidade e
objectividade.

Deste modo o MP, no que tem que ver com a investigação e apuramento da veracidade dos
factos, siga apenas aquilo que é determinado pela lei e actuando no exclusivo interesse do
esclarecimento da verdade observando todas determinações legais estatuídas para salvaguarda
dos direitos do arguido. O MP é órgão que depois da aquisição da notícia do crime, ordena a
abertura da instrução preparatória, bem como fiscalizar a legalidade de todos actos que são
praticados em sede de investigação e instrução do processo, dirigindo-a com plenitude dos
poderes legalmente estatuídos.

Da materialidade do princípio da oficiosidade decorre igualmente que, dada a complexidade que


encerra a demostração da veracidade dos factos no processo, o MP seja assistido e coadjuvado
pelos órgãos de polícia criminal que, não obstante ao caracter de subsidiariedade ao MP, os
Órgãos de Polícia Criminal detêm competências especiais na fase de instrução preparatória que
são consubstanciadas em proceder os interrogatórios aos arguidos em liberdade; proceder os
151
CPP, Artigo 302º nº 2
152
Cfr. CPP, Artigo 303º.
153
CPP, Artigo 309º, nº 1
154
Germano Marques da Silva. Direito Processual Penal. Do procedimento (Marcha do Processo), Vol. III,
Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, Pág. 59
interrogatórios subsequentes do arguido preso; ordenar revistas e buscas; e acompanhar as
buscas autorizadas pela autorizadas judiciária competentes; ordenar a apreensão de objetos
relacionados com a infracção penal e ordenar a detenção fora do flagrante delito quando ocorrer
que a pessoa a deter não se vai apresentar voluntariamente perante a autoridade judiciária no
prazo que lhe for fixado, em conformidade com o nº 3 do artigo 254º155.

A fase de instrução preparatória é marcada por uma ampla actividade investigativa, que consiste
na «actividade que compreende a deteção, recolha de indícios e provas que, nos termos da lei
processual penal, visa averiguar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a sua
responsabilidade, no âmbito de um processo judicial» 156

Em função da investigação, que é uma actividade de reconhecida complexidade que envolvem


actores de dotada competência para tal, a fase de instrução preparatória é também marcada por
uma ampla intervenção dos Órgãos de Polícia Criminal, que assiste e coadjuva o MP «no
exercício das funções que desempenham na realização da administração da justiça penal. Os
OPC, assistindo e coadjuvando o MP, procede, nomeadamente, a investigação das infracções
penais e a instrução»157 de formas a permitir que a formação de juízo de probabilidade esteja
assente na materialidade da prova, isto é, a verdade dos factos deve ser suportado pela prova
material, «a prova real que deve prevalecer sobre a prova formal ou legal», de formas a procura
atingir o fundo dos factos para se inteirar se o arguido cometeu efectivamente o facto de que é
suspeito.

Toda investigação levada a cabe na fase da instrução preparatória, visa fazer fé do juízo de
probabilidade sobre o cometimento da infracção penal de que se é suspeita e «por força da
consagração constitucional do princípio da presunção de inocência do arguido», todos os factos
depreendidos pela noticia do crime, depois de apurados no processo, são considerados apenas
como prováveis quanto a sua prática, não podendo serem presumidos como verdadeiros158.

A denúncia, que por meio do qual se obtém a notícia do crime, «é a transmissão ao Ministério
Público, na forma estabelecida por lei de, para efeitos de procedimento criminal, do

155
Cfr. CPP, Artigo 55º nº 1 e nº2 als a), b) c) d) e e)
156
José Mouraz Lopes. Manual de Gestão para a Investigação Criminal no Âmbito da Criminalidade Organizada,
Corrupção, Branqueamento de Capitais e de Tráfico de Estupefacientes, Edições Camões – Instituto da Cooperação
e da língua Portuguesa, lisboa, 2017, Pág. 14
157
CPP, Artigo 55º nº1
158
Grandão RAMOS. Direito Processual Penal. Noções Fundamentais, Escolar Editora, Lobito, 2013, Pág. 276
conhecimento de factos com eventual relevância criminal» 159. Ela pode ser obrigatória para os
órgãos judiciários, órgãos de polícia criminal e para qualquer funcionário público que no
exercício da sua função tomarem conta ou presenciarem a prática de um crime, determinando-se
assim o chamado conhecimento oficioso.

«A legitimação para proceder a denúncia de um crime não depende de qualquer qualificação.


Cabe a todos cidadãos em geral sem mesmo se exigir plena capacidade jurídica. É que a
denúncia não é de considerar um acto jurídico, mas como simples declaração de ciência» 160.
Consistindo na mera declaração do conhecimento da notícia do crime, resulta que a denúncia
seja facultativa para o público em geral, em relação á todo tipo de crime. Mas, a denúncia feita
em relação aos crimes classificados como semipúblicos ou privados, para efeito de procedimento
criminal importa que a mesma tome a forma de queixa. Tomando a forma de queixa, imperioso
se torna que ela seja feita por pessoas que por lei são reconhecidas como legitimas para a fazer.

Assim, a denúncia que toma a forma de queixa é a feita por pessoas que são consideradas como
portadores do direito ou interesse que a norma incriminadora, num caso concreto proteger. Trata-
se da prerrogativa legal conferida aos ofendidos da prática do crime de a denúncia feita por estes
poder ser acompanhada de declaração expressa que manifeste a pretensão da instauração do
procedimento criminal em relação ao crime em que se sentem prejudicados como ofendido.

Como se pode depreender, é uma prerrogativa conferida apenas aos ofendidos, não aos ofendidos
ou lesados.

Daí que a queixa é mais que uma denúncia, porque aquela «é manifestação de vontade de que
seja instaurado o procedimento criminal»161 e a denúncia é a manifestação da notícia do crime
sem que para tal se manifeste a vontade de, sobre o creme em causa, se instaure o competente
procedimento criminal.

Quanto se fala em conhecimento oficioso da notícia do crime, trata-se do conhecimento da


prática do crime que obtido directamente pelas autoridades judiciárias ou por órgãos de polícia
criminal de crime cuja a prática estes tenham presenciado, podendo para tal, levantar ou mandar
levantar o auto de notícia 162, que de acordo o prof. Manuel Cavaleiro de Ferreira 163é percebido

159
IBDEM, Pág.54.
160
Manuel Cavaleiro de FERREIRA. Curso de Processo Penal, Vol. III, Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, Lisboa, 1958, Pág. 140
161
IBDEM, Pág. 56
162
CPP, Artigo 302º nº 1.
163
Manuel Cavaleiro de FERREIRA. Curso de Processo Penal, Vol. III, Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, Lisboa, 1958, Pág. 140
como um documento que suporta «a denúncia feita por autoridade, agente de autoridade ou
funcionário público que no exercício das suas funções, tenha presenciado uma infracção». É a
forma que toma a denuncia de todos que por lei estão obrigados a denunciar as infracções que
tenham presenciado, no caso as autoridades judiciárias ou de polícia criminal e qualquer pessoa
que com o Estado tenha uma relação de empregabilidade, por crimes que tenham presenciado no
exercício das suas funções e «por causa delas»164.

Em suma, o auto de notícia é um documento no qual se faz constar os principais elementos


factuais da prática do crime, a identidade do suposto autor e do autuante, que reflete «um
testemunho presencial» sobre a prática do crime. a fase marcada pela realização das diligências
conducentes ao apuramento da prática ou não de uma infracção penal, «e no caso de o ter sido,
descobrir os seus agentes e a respectiva responsabilização penal, recolhendo-se os pertinentes
elementos de prova, em ordem a formular a acusação ou a arquivar o processo»165.

Seguindo a esteira de Germano Marques da SILVA166, que tal como uma boa parte da doutrina
portuguesa e brasileira, se refere a fase de instrução preparatória com a terminologia inquérito,
diz-nos que é uma fase que pode ser percebido em dois sentidos «fase preliminar e actividade de
investigação e recolha de provas sobre a existência de um crime e seus agentes em ordem à
decisão sobre a acusação»167.

Enquanto fase processual o autor distingue a «perspectiva cronológica da lógica» asseverando


que em:

«sentido lógico é a actividade processual que ocorre no decurso da fase cronológica do inquérito e
tem finalidade essencial o esclarecimento da noticia do crime em ordem a decisão sobre a
acusação.
Enquanto actividade é o conjunto de diligencias processuais que sob direcção do MP, têm lugar na
fase cronológica do inquérito e visa investigar a eventual prática de um crime, determinar os seus
agentes e a responsabilidade deles e descobrir as provas em ordem a decisão sobre a acusação» 168.

Diante de uma notícia de crime importa que se confirme tal notícia no sentido de «de averiguar
se se confirmará e em que termos, quem foi o seu agente e a sua responsabilidade e de tudo

164
Germano Marques da Silva. Direito Processual Penal. Do procedimento (Marcha do Processo), Vol. III,
Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, Pág. 55.
165
CPP, Artigo 302º nº 1.
166
Germano Marques da Silva. Curso de Processo Penal III, 2ª edição, Editora verbo, lisboa 2000, Pág. 71
167
IBDEM
168
IBDEM
recolher as provas que hão-de fundamentar a acusação ou não acusação» 169. É preciso presumir
sempre a inocência do suspeito, podendo a acusação estar assente em provas substanciais,
fazendo com que a submissão do arguido, mormente na fase de julgamento seja feita sem
acarretar custos graves ao arguido decorrentes do facto de publicita-lo como agente de um
determinado crime. Embora impossível porquanto o suspeito implicado na fase da instrução
preparatória não foi julgado e declarado como inocente ou culpado, pela fase da instrução
preparatória a ideia é procurar ao máximo evitar que um inocente seja submetido ao julgamento
como provável culpado

Características da fase de instrução preparatória

Se o sistema processual angolano tem a tendência de ser um sistema misto, isto é, por não
prescindir dos relevantes valores adjacentes aos sistemas inquisitório e acusatório, uma primeira
característica que se atribui à instrução preparatória é o facto de ser caracterizada como sendo
uma fase secreta, decorrente da influencia do sistema inquisitório. 170 É dominada pelo princípio
de segredo de justiça no sentido de que tudo quanto for a ocorrer nesta fase, o conhecimento do
seu conteúdo seja vedado.

Afirmando que a fase da instrução preparatória é marcada pelo princípio de segredo de justiça,
impera a necessidade de saber quem está sujeito a este segredo.

Assim, por força do princípio de segredo de justiça a lei determina que:

«estão sujeitos a segredo de justiça as autoridades judiciárias, os membros dos órgãos de


policia criminal os sujeitos e outros participantes processuais e, em geral, todas as pessoas
que a qualquer título e por qualquer forma tomarem conhecimento de elementos do
processo protegidos por segredo de justiça»171.

Vai-se mais longe determinado que a violação «a violação do segredo de justiça pelas pessoas a
ela sujeitas é punida nos termos da lei penal». Disto resulta que todos que tiverem de intervir no
processo nesta fase e todos que tenham conhecimento sobre o conteúdo do processo estejam
sujeitos a obrigatoriedade de não publicitarem ou divulgarem por qualquer meio o que tiver de
ocorrido no processo.
169
IBDEM, PÁG. 73
170
Cfr. Grandão RAMOS. Direito Processual Penal. Noções Fundamentais, Escolar Editora, Lobito, 2013, Pág. 278
171
CPP, Artigo 98º, nº 1
A ser assim todos, desde que tenham tomado conhecimento do teor do que estiver postulado no
processo estão obrigados a não divulgarem o que nele contem enquanto vigorar no processo o
segredo de justiça.

O segredo de justiça é protegido, não apenas por normas do direito penal adjectivo determinando
a sujeição ao segredo de justiça, mas também pelo directo penal substantivo. É tando que «quem
der a conhecer actos, factos ou conteúdo de documentos de um processo protegido por segredo
de justiça ou a que a lei processual ou o juiz não permitir o acesso público é punido com pena de
prisão de 3 anos ou com multa de até 360 dias»172.

Não se pode pôr ao conhecimento geral o “quid” da investigação para que não suceda o
falseamento e manipulação das provas e a consequente perturbação da investigação.

E quais as consequências que se podem depreender ao segredo de justiça face ao princípio da


presunção de inocência enquanto estiver a decorrer a fase da instrução preparatória?

Da consideração rigorosa do princípio da presunção de inocência pode resultar que todo acto que
ocorrer no processo, máxime actos instrutórios, sejam direccionados a ordem a decidir sobre a
inocência ou culpa do suspeito, que diante de possibilidade de ver os seus direitos fundamentais
resignados em nome da pretensão punitiva. Resulta que o arguido tenha maior necessidade de
exercer a sua defesa em todo processo, o que certamente não se liga intimamente com o facto de
se produzir provas contra o arguido sem que o mesmo saiba de quais provas que contra ele se
produziram. Dai que em favor da defesa dos direitos do presumível inocente é defensável que
não se absolutize o segredo numa fase em que o substrato é a produção de provas num contexto
que parece que o foco é mais dado a comprovação da prática e não a comprovação do não
prático.

Ao postular-se, por comando constitucional, que todo cidadão se «presume inocente até ao
transito em julgado da sentença condenatória» 173, a ordem das diligências investigativas tinha
que ser tendente a comprovar a inocência e não por exclusivo a culpa do arguido, dai que
quando o assunto é a produção de provas contra o arguido nada se poderia ocultar a este, para
que não suceda que seja surpreendida com uma decisão da qual não esteja preparada para se
defender, prejudicando assim a prorrogativa da ampla defesa que assiste ao arguido 174. Em vista

172
CP, Artigo 356º
173
CRA, Artigo 67º nº 2
174
Cfr. Guilherme de Sousa NUCCI. Manual de processo Penal e Execução Penal, 13ª edição, Edtora Forense, São
Paulo, 2016, Pág. 592
disso é indubitável que «a presunção de inocência está acima dos indícios constituídos por
dúvidas razoáveis quanto a futura condenação»175

Defendemos assim ponderação na observância de segredo de justiça, analisável no caso


concreto, fazendo com que a limitação do arguido no processo, em obediência ao princípio de
segredo de justiça, em relação ao arguido, seja determinada naqueles casos que do conhecimento
dos autos no processo decorra a deturpação da investigação.

Já pela vedação feita ao público em geral, em razão do princípio da presunção de inocência diga-
se que pode ter alguma valência para o arguido, pois «da publicidade dos actos instrutórios
afectaria desnecessariamente o arguido»176, questão que poderemos aludir com mais propriedade
no capítulo subsequente.

Uma outra característica conferida à fase de instrução preparatória é o facto de ela ser
essencialmente uma fase escrita. É uma característica que pode ser tida como corolário da
primeira. Se as provas que são produzidas durante a fase da instrução preparatória não são de
conhecimento geral, então devam ser escritas de formas a mente-las integra ao serem
transladadas para as fases subsequentes177.

Todas as diligências efectuadas durante a fase da instrução preparatória devem ser reduzidas a
escrito e autuadas num único processo178, porquanto é nesta fase que se define o objecto do
processo, «a fim de que as partes tomem quanto a ele posição e intervenham na sua elaboração e
definição»179. Daí que da decisão da abertura da instrução preparatória «exige na sua
conformação processual a contrariedade das partes», não podendo ignorar-se a posição do
arguido como parte no processo e da qual recai a presunção de inocência.

. Estando implicado um inocente no processo não basta a configuração de um facto como


criminoso, é preciso reunir sobre estes factos provas, o que justifica toda uma actividade
processual direcionada à recolha de provas suficientes que possibilitem a realização do fim
último do processo penal, que é o de aplicação do direito penal substantivo, que vai resultar na
imposição de um resultado punitivo, mormente uma pena, a ser aplicado mediante um
julgamento conforme a lei.

175
Manuel Barros LOPES. «O princípio da presunção de inocência como regra de tratamento e regra de juízo
probatório», in Revista portucalense, nº 32, Universidade portucalense, Porto 2022, pp 162-196, Pág. 189.
176
Manuel de Cavaleiro de FERREIRA. Curso de processo penal, Vol. III, Lisboa, 1958, Pág. 155.
177
IBDEM
178
CPP, Artigo 320º.
179
Manuel de Cavaleiro de FERREIRA. Curso de processo penal, Vol. III, Lisboa, 1958, Pág. 145.
Com isto a instrução preparatória vai permitir a formação de uma convicção em relação a prática
de um e esta convicção não visa, a prior, castigar ou rotular o suspeito como criminoso. Toda
actividade que se deve levar a cabo na fase da instrução preparatória encera-se apenas no fim de
«investigar o crime e reunir o conjunto de provas que formam o corpo de delito, isto é, as provas
capazes de transformar o juízo inicial de suspeita um juízo de probabilidade sobre a existência do
crime e da pessoa que o cometeu»180, para um juízo de probabilidade da qual vai depender a
acusação ou não.

Uma possível implicação que se pode depreender da característica da redução a escrito da


instrução preparatória em relação ao princípio da presunção de inocência consiste na
obrigatoriedade de se manter a integridade das provas, ainda que quanto ao seu conteúdo,
possam vir a confirmar a inocência do arguido. Não se pode ser considerada como irrelevante a
prova porque produzida a favor da defesa, afastando a sua inserção nos autos.

Tendo em consideração a necessidade de decidir sobre a condenação do arguido, que transitada


em julga será o ponto de confirmação ou infirmação da inocência do arguido, a instrução
preparatória é «pressuposto necessário»181 para um julgamento de cuja decisão esteja suportada
em provas rigorosamente obtidas respeitando a posição do arguido de formas que, por força do
princípio da presunção de inocência enquanto uma garantia processual, «a prova da inocência ou
extinção da responsabilidade do arguido pode ser verificado sem audiência e no decurso do
processo». E a fase da instrução preparatória sob o ponto de vista cronológico e lógico do
processo é a primeira fase em que são praticadas diligências tendentes ao esclarecimento do
facto criminoso que pesa sobre o presumível inocente. Daí que as provas produzidas mediante as
diligências realizadas na fase da instrução preparatória devem ser inscritas de formas a se ter
uma memória fiel sobre a prova da inocência ou da culpa.

Duração da instrução preparatória

Sabendo que na instrução preparatória esta em causa os direitos fundamentais do presumível


inocente na prática de um determinado crime, importa que a mesma não perdure uma eternidade
porquanto pode se dar, nesta fase, a imposição de certas medidas que se destinam a limitação dos
interesses e direitos fundamentais do arguido. Ser submetido em um processo importa custos e
desgaste de imagem para o arguido, pela necessidade urgente da prolação de uma sentença que

180
Ibdem, Pág. 27
181
IBDEM
transitada em julgado vai determinar a inocência ou a culpa do arguido, urge a necessidade de
delimitar por quanto tempo o presumível inocente deve ser submetido sob investigação dentro do
processo.

Com isto, olhando pelo consagrado no nº 1 do artigo 321º do CPP, a instrução preparatória
deverá ter uma duração de 6 meses, havendo o arguido preso. Não havendo, a duração é de 24
meses.

Por força do nº 2 do artigo 321º CPP, o prazo de 6 meses poderá ser acrescido para 10 meses nas
situações em que a pena for superior a 5 anos de prisão, no seu limite máximo, quando o
processo «se revestir de especial complexidade em função do número de arguidos e ofendidos,
do carácter violento ou organizado do crime e do particular circunstancialismo em que foi
cometido»182.

Os fins da fase da instrução preparatória

Seguindo a linha de pensamento de Giuppe BETTIEL183 a instrução preparatória é qualificada


como sendo uma fase marcada pela contraposição dos factos com as respectivas provas,
compulsando a suficiência da veracidade que estas provas enceram.

Seguindo o asseverado pelo Prof Grandão RAMOS184, identifica-se a instrução preparatória em


sentido matéria, como um conjunto de actividades dirigidas «à recolha de provas dos factos
cometidos, de quem os cometeu, da personalidade do agente, com vista à realização do fim do
processo, isto é, à aplicação do direito penal substantivo aos factos delituosos apurados pelo
tribunal».

E em sentido formal, o autor refere-se à instrução preparatória como sendo a «fase do processo
que tem como fim investigar o crime e reunir o conjunto de provas capazes de transformar o
juízo inicial de suspeita num juízo de probabilidade sobre a existência do crime e da pessoa que
o cometeu».

Seguindo o aludido por este autor, a instrução preparatória não deve ser confundida com a
actividade de recolha de prova que é transversal a todo processo.

182
CPP, Artigo 283º nº 2
183
Giuppe BETTIEL. instituições de Direito e Processo Penal, trad., Manuel da Costa ANDRADE, 32ª edição,
Coimbra Editora Lda, Coimbra, 1917, Pág. 277
184
Grandão RAMOS. Direito Processual Penal. Noções Fundamentais, Escolar Editora, Lobito, 2013, Pág. 277.
Deste modo, a instrução preparatória deve ser vista como a fase preliminar do processo que tem
o fim exclusivo de investigar e esclarecer os meios de prova que hão de fundamentar a acusação.

Mas na óptica a que nos estamos a referir, que é o da defesa da inocência por vermos no
princípio da presunção de inocência uma garantia face ao poder punitivo, à fase da instrução
preparatória se pode reconduzir o fim de tutela da inocência do presumível inocente, o arguido,
porque pelo dever de investigar com legalidade e objectividade, interessando-se apenas com o
esclarecimento da verdade real dos factos adjacentes ao crime, se deve igualmente olhar pela
possibilidade de encontrar no suspeito um inocente.

A instrução preparatória não pode ser vista apenas na perspectiva de acusação porque tendo em
consideração o princípio da presunção de inocência ela deve atender igualmente a perspectiva da
provável inocência do arguido porque do resultado da investigação decorre a obtenção dos
elementos que se destinam a servir de fundamentação de acusação assim como da não acusação;
porque o processo deve ser informado pelo princípio da verdade material, a instrução
preparatória serve para a verificação ou não da infracção; porque dominada pela estrutura
objectiva da infracção, a instrução preparatória vai servira a futura determinação ou não da
responsabilidade do suspeito que passa a ser considerado como provável ou não provável
agente do crime de que é suspeito185.

Seguindo a linha de pensamento do professor Germano MARQUES186, do inquérito ou a instrução


preparatória, na terminologia adoptada na nossa ordem jurídica, podem resultar: a decisão sobre
o arquivamento do processo, a suspensão provisória do processo e a decisão sobre a acusação e
sua respectiva fundamentação. Da instrução preparatória, pode ainda advir a ainda a decisão
sobre a questão da responsabilização civil e fundamentação da aplicação das medidas de coacção
e garantia patrimonial.

Por conseguinte, ao elencar-se a fundamentação da aplicação das medidas de coacção e de


garantia patrimonial, como um dos fins da instrução preparatória, remete-nos a dedicar alguma
atenção à prisão preventiva nas suas subespécies, domiciliar e carcerária, porque, conforme
aludido pelo Dr. Carlos Pinto de ABREU,

«característica fundamental da operatividade do direito Penal é estar sempre presente a


possibilidade de privação de liberdade da pessoa. Privação da liberdade em virtude de condenação

185
Cfr. Manuel de Cavaleiro de FERREIRA. Curso de processo penal, Vol. III, Lisboa, 1958, Pág. 149.
186
Cfr. Germano Marques da SILVA. Curso de Processo Penal III, 2ª edição, Editora Verbo, Lisboa, 2000, Pág. 71.
em pena efectiva de prisão. E privação de liberdade em resultado da aplicação de medida
precisamente a prisão preventiva.»187

Em consequência disto, da aplicação da prisão preventiva domiciliar e carceraria resulta sempre


privação da liberdade individual antes da prolação da decisão condenatória penal, e isto de certa
forma faz pensar que, nestes casos, a presunção de inocência seja apenas uma questão de
formalismo legal e não de praticidade processual, no sentido de que se o suspeito ou arguido é
presumido inocente, a ele não se lhe podia impor nenhuma medida que restringisse os seus
direitos, enquanto não se proferir contra ele uma decisão condenatória transitada em julgado.

Pelo que, preocupados com a questão da observância do princípio da presunção de inocência,


quanto à praticidade processual, com realce ao quesito da aplicação da prisão preventiva
domiciliar e carceraria, consideradas medidas cautelares mais gravosas, procedemos a visita ao
SIC – Delegação Provincial do Huambo, onde tendo sidos recebidos pelo gabinete jurídico
daquela instalação, na pessoa do Dr. Clemente JÚLIO, chefe do referido Gabinete nos exortou-se
que:

«da Imposição das medidas de coacção não decorre necessariamente o desrespeito deste princípio
que é considerado como um dos princípios basilares do processo penal. Compreende-se que a
aplicação de uma medida de coacção a um suspeito ou arguido seja visto e, de facto o é, como um
sacrifício maior ao arguido porque determinam a limitação do direito de liberdade física ou de se
mover de um lugar para outro. Mas o primeiro dada que se deve reter é que estas medidas só se
aplicam em relação aos indícios que correm contra o arguido.
E sempre que se encontrar provas que indiciem a pratica, por alguém, de um determinado crime
ainda assim é necessário que se cumpram os pressupostos para a aplicação da referidas medidas
que são impostas por lei que são plasmados de forma no artigo 263º, nº 1alíneas a), b), e c), do
CPP, que consistem na fuga ou perigo de fuga perigo de perturbação da instrução do processo e
perigo da continuação da actividade criminosa. Não obstante ao facto de que todas medidas de
coacção obedecem, quanto a sua imposição, os princípios e critérios estabelecidos por lei.»

Com o mesmo objectivo de perscrutar a incidência do princípio da presunção de inocência, no


que tem que ver com a complexidade incita na aplicação da prisão preventiva, tivemos
igualmente o privilégio de trocar algumas impressões com o Dr. Inácio SALASSO, Juiz de Direito
na comarca do Huambo, sala dedo crime, II secção dos crimes comuns, que questionado sobre o

187
Carlos Pinto de ABREU “a presunção de inocência, medidas de coacção, publicidade, dignidade e respeito – um
exercício, para jurista e jornalista, de pura racionalidade teórica, mas de difícil compatibilidade prática”, in II
congresso do processo penal, Universidade Católica de Angola, luanda, 2017, PP 59-79, Pág. 60 disponível
http://carlospintodeabreu.com/public/files/presucaodeinocênciamedidasdecoacçãopdf. Acesso à 08.11.2024
assunto também afastou a possibilidade de violação do princípio da presunção de inocência
quando se aplica a prisão preventiva, seja ela domiciliar ou carcerária.

Pronunciando-se nos seguintes termos:

«É preciso ter em consideração que o Direito Penal confere a prerrogativa de em nome de


todos acautelar certos valores e interesses dos quais depende a subsistência da própria
sociedade. Com isto haverá sempre necessidade de manter o suspeito do crime sob
disposição da justiça, não obstante a necessidade de acautelar um bem maior, mediante um
processo. Daí que em certas circunstâncias poderão ocorrer no processo situações que
legitimam a aplicação da prisão preventiva por um juiz que, quando analisada, em caso
concreto, a necessidade de tal aplicação. Nisto não consiste a violação do princípio em
questão porque a restrição dos direitos decorrentes da aplicação de tal medida não resulta
de uma pena.
É apenas uma medida que a própria lei consente na sua aplicação em pró da salvaguarda de
um bem maior. Pensemos por exemplo na necessidade de manter preso, preventivamente,
alguém que sobre qual recai fortes indícios de que tem matado pessoas e que sente goto em
matar de forma permanente. Desta acção veremos que em certas circunstâncias, no
processo crime, a aplicação das medidas de coacção é uma necessidade e não violação do
princípio da presunção de inocência, que assiste ao arguido até a decisão transitada em
julgado, lembrando que tal medida é sempre temporária porque não é uma pena».

Por estes argumentos infere-se que todas medidas de coacção têm uma natureza cautelar que
justifica o sacrifício a ser empenhado pelo arguido.

É inquestionável que privação da liberdade que não decorre de uma decisão condenatória
transitada em julgado, não deixa de ser arrepiante, face ao princípio da presunção de inocência,
mas também não se pode prescindir dela em casos que justifique a sua imposição ao arguido.

Pelo asseverado pelo Dr. Carlos Pinto de ABREU, depreende-se que pelo facto de o princípio da
presunção de inocência impor «que só haja condenação após o cidadão ter sido solene, pública e
definitivamente julgado culpado, em processo participado, justo, leal e equitativo, em que a
188
igualdade de armas seja real e efetiva», para que a aplicação das medidas de coacção,
mormente a prisão preventiva domiciliar e carcerária, não constitua total indiferença ao princípio
da presunção de inocência, tem de se atender com rigor a naturezas das próprias medidas de
coacção, isto é, a natureza cautelar189, obedecendo para tal todos os condicionalismos que nos
188
Carlos Pinto de ABREU “a presunção de inocência, medidas de coacção, publicidade, dignidade e respeito – um
exercício, para jurista e jornalista, de pura racionalidade teórica, mas de difícil compatibilidade prática”, in II
congresso do processo penal, Universidade Católica de Angola, luanda, 2017, PP 59-79, Pág. 66, disponível
http://carlospintodeabreu.com/public/files/presucaodeinocênciamedidasdecoacçãopdf. Acesso à 08.11.2024
189
CPP, Artigo 248, al. b)
remetem excepcionalidade destas medidas, cuja convicção deve estar suportada na verdade sobre
a existência do fumus commissi delicti e no periculum libertatis, que nos remete à clara evidência
sobre a pratica do delito ou crime e ao perigo que pode configurar a liberdade do suspeito neste
delito ou crime.

Reiteramos, apenas a verdade confirmada sobre os pressupostos da aplicação das medidas de


coacção, devem legitimar sua imposição. E esta verdade, seguindo a linha de pensamento do Dr.
Carlos Pinto de ABREU, deve procurar-se como insistência e construída com «paciência». Uma
verdade que «busca-se com o coração descomprometido, com espírito aberto. Constrói-se com
rigor, seriedade e isenção a partir da percepção, da objectividade, da prova e contraprova, do
teste permanente. E de um teste que resista ao amplo e livre contraditório»190

Com efeito, sob pena de flagrante inconstitucionalidade, os pressupostos de que dependem a


imposição das medidas de coacção pessoal, mormente «fuga ou perigo de fuga; perigo real de
perturbação da instrução do processo no que respeita, nomeadamente, a aquisição, conservação e
integridade da prova; perigo em função da natureza, das circunstâncias do crime e da
personalidade do arguido, da continuação por este da actividade criminosa ou de perturbação
grave da ordem e tranquilidade pública»191, não podem ser presumidos, têm de ser verificados em
cada caso concreto.

Por exemplo, não se pode presumir, de antemão, que o suspeito ou arguido não se poderá
apresentar voluntariamente diante dos órgãos jurisdicionais, se para tal não se confirmar a
susceptibilidade de ele poder vir negar tal obrigação, inferindo-se por este pensamento a
imposição da prisão preventiva. Pois, pela presunção de inocência, impõe-se que se presuma a
obediência do arguido ao chamado do Estado, no âmbito de administração da justiça penal,
sendo que o recurso a uma medida restritiva da liberdade deve estar legitimado na falta a este
chamado, que efectivamente afasta a aludida presunção de obediência.192

Se o suspeito ou o arguido não manifestar nenhum perigo de fuga, isto é, pela tentativa de fuga,
não se pode crer que este venha desaparecer das garras do poder punitivo.

190
Carlos Pinto de ABREU “a presunção de inocência, medidas de coacção, publicidade, dignidade e respeito – um
exercício, para jurista e jornalista, de pura racionalidade teórica, mas de difícil compatibilidade prática”, in II
congresso do processo penal, Universidade Católica de Angola, luanda, 2017, PP 59-79, Pág. 63, disponível
http://carlospintodeabreu.com/public/files/presucaodeinocênciamedidasdecoacçãopdf. Acesso à 08.11.2024
191
CPP, Artigo 263º, nº 1
192
Cfr. Aury Lopes Junior. Direito Processual Penal, 16ª edição, Editora Saraiva, São Paulo 2019, Pág.790
Igualmente não se pode pensar que o suspeito ou arguido, venha continuar a actividade
criminosa só porque as características fisiológicas fazem pensar que ele seja, de facto, altamente
perigoso.

É preciso ter fé no valor moral da pessoa humana e garantir outros mecanismos possíveis à
eficácia do poder punitivo do Estado, sem que para tal o presumido inocente se veja penalizado
nos seus direitos fundamentais sem uma sentença que confirme a sua culpa. Deste modo, importa
193
que se tenha sempre presente o pensamento de que «nem sempre o que parece é» e «a única
presunção que a constituição permite é a de inocência e ela permanece intacta em relação a fatos
(sic) futuros».194

Se é assim, a preventiva domiciliar e a carcerária, enquanto medidas preventivas empregues


apenas no processo como uma medida cautelar, a sua imposição ao arguido não pode redundar
um tratamento que faça crer que se trata de uma pena de prisão empregue de forma antecipada.
Para tal a aplicação das medidas em causa deve ser informada pela imperiosa necessidade da sua
aplicação, isto é, observando-se sempre o princípio da necessidade que impera que a prisão
domiciliar e a prisão preventiva ou carcerária, enquanto medidas mais gravosas, sejam aplicadas
nos casos em que outras medidas não se coadunem ou sejam insuficientes para o fim que encera
a imposição das medidas em causa, conforme versado pelos artigos 277º nº1, e 279 nº 1, todos do
CPP.

Importa que se cumpra estritamente o que a lei determina quanto aos requisitos e procedimentos
para a sua aplicação. Não podendo prescindir todo tratamento inerente aos prazos de duração que
a lei determina no artigo 283º do CPP

Nestes termos, a finalidade principal da instrução preparatória consiste: na decisão de


arquivamento do processo, suspensão do processo e como último “ratio”, na formulação de
acusação, tal como se pode determinar pelo postulado, respectivamente, nos artigos 322º, 325º e
326º do CPP.

Com efeito, é perceptível que o fim principal, em muitos casos é a formulação da acusação.
Todavia, por força do princípio da presunção de inocência, importa que a instrução preparatória
esteja em vista, igualmente a demostração da inocência do arguido, dado que, não obstante a

193
Carlos Pinto de ABREU “a presunção de inocência, medidas de coacção, publicidade, dignidade e respeito – um
exercício, para jurista e jornalista, de pura racionalidade teórica, mas de difícil compatibilidade prática”, in II
congresso do processo penal, Universidade Católica de Angola, luanda, 2017, PP 59-79, Pág. 63, disponível
http://carlospintodeabreu.com/public/files/presucaodeinocênciamedidasdecoacçãopdf. Acesso à 08.11.2024

194
Aury Lopes Junior. Direito Processual Penal, 16ª edição, Editora Saraiva, São Paulo 2019, Pág. 783.
superação do juízo de suspeita para um juízo de probabilidade, sobre a prática do crime e sobre a
futura aplicação de um pena em julgamento, ainda assim não se tem legitimidade alguma da qual
resulte a limitação dos direitos consagrados ao arguido por força da presunção de inocência,
enquanto uma garantia constitucional penal.

2.3 A presunção da inocência na fase da instrução contraditória

Ao atrelarmos a fase da instrução contraditória ao princípio da presunção de inocência enquanto


uma garantia constitucional penal, a nossa preocupação passa necessariamente em demostrar
como ela é imprescindível à demostração da inocência do arguido, sem que para tal seja
necessário efectuar esta demostração em julgamento, uma vez que, a transversalidade do
princípio da presunção de inocência do arguido em todo processo impera que a inocência do
arguido é demonstrável em qualquer fase do processo. Dai que, por agora, nos vamos ocupar em
analisar esta fase e compulsar nela aspectos que concorrem para a demostração da inocência do
arguido tendo como ponto fulcral o princípio constitucional penal da presunção de inocência.
Se atendermos a abordagem feita no artigo 332º, nº 1, a instrução contraditória pode ser definida
como a fase que visa confirmar ou infirmar a acusação ou o a não acusação feita contra ou a
favor do arguido na fase da instrução preparatória.

Direcção da fase de instrução contraditória

É uma fase dirigida pelo Juiz que a exerce com plenitude de poderes conferidos ao Juiz na fase
do julgamento195. Nesta fase, confere-se predomínio aos «princípios da oralidade e
contrariedade», podendo participar dela o MP, o Arguido e o seu defensor, o assistente e o seu
defensor196.

É uma fase dirigido por Juiz como consequência do princípio do contraditório que impera que
para diferentes fases do processo intervenham diversos órgãos, característica própria da
configuração do processo acusatório, sem implicar, no entanto, um posicionamento passivo por
parte do Juiz, para o sistema acusatório temperado como o sistema inquisitório197.

«É O Juiz que a dirige e o único que pode inquirir as testemunhas oferecidas. O Ministério
Público e os advogados ou defensores apenas poderão requerer que sejam feitas quaisquer
perguntas para completar ou esclarecer os depoimentos»198

Características da fase de instrução contraditória

É uma fase ainda dominada pelo princípio de segredo de justiça, no entanto aberto para a pronta
intervenção da defesa; ao contrário da fase da instrução, a fase da instrução contraditória é
dominada pelos princípios da oralidade e contraditório.

Acresce-se, ainda, que esta fase é também caracterizada como sendo uma fase eventual,
porquanto, facultativa199. Para a sua observância no processo importa que seja «requerida no
prazo de 10 dias, a contar daquele em que ocorrer a notificação da acusação ou do despacho da
acusação de arquivamento»200. Assim como a instrução preparatória, ela não ocorre de forma

195
Cafr. CPP, Artigo 334º, nº 1 e 12º al. b).
196
Cfr. CPP, artigo 335º, nº 1.
197
Cfr. Carlos Adérito TEIXEIRA. «Princípios informadores do processo e Direitos Fundamentais», In, Carlos
Adérito TEIXEIRA; Jorge GONÇALVES, Direito Penal e Processual Penal, Tomo II, INA, Lisboa, 2007, PP 51-100,
Pág. 55
198
Grandão RAMOS. Direito Processual Penal. Noções Fundamentais, Escolar Editora, 2013, Lobito, pág. 285
199
CPP, Artigo 332º, nº 2
200
Cfr. CPP, Artigo 333º nº 1
autónoma nos processos especiais, isto é, processos para cujos crimes são punidos com penas
inferiores a 5 anos no seu limite máximo ou para crimes puníveis com pena diversa da pena de
prisão, sendo que para efeito do contraditório nestes processos, é exercida directamente em sede
de julgamento, onde é produzida toda a prova201.

Ao falar-se do requerimento como “conditio sine quanon” para que ocorra a instrução
contraditória, nos remete a saber a quem realmente recai a legitimidade para o requere-la. Pelo
que, a instrução contraditória pode ser requerida: pelo arguido em relação aos factos que dizem
respeito a acusação deduzida pelo MP ou pelo assistente quando o criem admitir acusação
particular; pelo assistente, sempre que este achar que há factos das quais o MP não deduziu
acusação, nos casos em que o procedimento criminal não depender da acusação particular 202.

No número anterior, as nossas atenções estavam centradas a demostrar que a prova da inocência
ou da culpabilidade do arguido, pode ser provada em sede da instrução preparatória. E neste,
seguindo a ilustração que o professor Grandão RAMOS faz a respeito desta fase, a instrução
contraditória pode ser reputada como uma fase complementar a fase da instrução preparatória.

«O objectivo é o mesmo. No fundo não é mais que o prolongamento da instrução, agora


presidida pelo Juiz e denominada pelo princípio do contraditório.
Nos autos de instrução contraditória intervirão, como partes processuais, o Ministério
Publico e o arguido em pé de igualdade e com o seu direito de defesa perfeitamente
garantido»203.

E por seu turno, Manuel Cavaleiro de FERREIRA, assevera que:

«a instrução contraditória é assim, e antes de qualquer outra característica, uma instrução em que o
arguido intervém como parte, dirigida pelo Juiz, e que por isso mesmo assegura aos cidadãos a
possibilidade efectiva de organizarem a sua defesa, antes da audiência de discussão e julgamento.
Não é apenas em julgamento que a defesa terá a plenitude dos seus direitos de parte» 204

Por conseguinte, vendo a fase da instrução contraditória como continuação da instrução


preparatória, é uma fase que se destina a assegurar, ela destina-se a assegurar, a plenitude da
intervenção da defesa, não obstante ao facto de que os actos a ela inerentes não sejam redutíveis,

201
Cfr. Grandão RAMOS. Direito Processual Penal. Noções Fundamentais, Escolar Editora, 2013, Lobito, pág. 284.
202
Cfr. CPP, Artigo 332º, nº 4
203
Grandão RAMOS. Direito Processual Penal. Noções Fundamentais, Escolar Editora, 2013, Lobito, pág. 284.
204
Manuel Cavaleiro de FERREIRA. Curso de Processo Penal, III Vol., Lisboa, 1958, Pág. 168.
com exclusividade, a defesa. É uma fase em que o arguido se manifesta inequivocamente e com
mais segurança como parte porquanto, é presidida por uma entidade judicial cuja actuação deste
é informada pelos critérios da legalidade e objectividade, aparecendo como um terceiro imparcial
na lide que se configura entre a acusação e a defesa.

Prazo da instrução preparatória

A fase da instrução preparatória tem uma duração de 2 meses sempre que nela estiver implicado
um arguido preso e 4 meses sempre que houver arguido preso. E sempre que a acusação disser
respeito a um crime punível com pena de prisão superior, no seu limite máximo, a 8 anos, a
instrução poderá durar 3 meses ou 6 meses, conforme haja ou não arguido preso,
respectivamente.

Fins da instrução preparatória

Olhando a fase da instrução contraditória como um mecanismos que o arguido tem a sua
disposição para que, com base a presunção de inocência que sobre si é feita, destrua ou
enfraqueça a prova indiciária que contra ele se formou, ela poderá resultar na abstinência de o
MP acusar205.

Na fase da instrução preparatória a defesa é feita em relação a acusação formulada pelo MP


como resultado da instrução preparatória. Mas, por força do princípio da presunção de inocência,
esta acusação não pode ser tida como o cerne de toda verdade em relação a imputação contra o
arguido, ainda que sobre ela se tenha reunido provas consideradas como as mais idóneas
possíveis.

O juiz que preside a instrução contraditória devera sempre presumir a inocência do acusado,
podendo ordenar e atender diligências que visam fortificar a convicção sobre a não prática ou
prática dos actos que são imputados ao arguido.

Assim, o conteúdo da instrução contraditória não pode estar incito, por exclusivamente a
confirmar a acusação feita contra o presumido inocente, devendo a favor do arguido conferir
toda oportunidade possível para ilidir a acusação contra ele formulada, transformando-a em uma
acusação provisória. Daí que, «o número dos factos “probandos” desde que respeitando eles a

205
Cfr. Grandão RAMOS. Direito Processual Penal. Noções Fundamentais, Escolar Editora, 2013, Lobito, pág. 286.
acusação, não determinem a sua alteração substancial, se relativos a defesa, quaisquer factos
novos podem ser tema de prova»206.

Com efeito, vislumbra-se uma nítida identidade de natureza entre a instrução preparatória e
instrução contraditória, cuja relação é de complementaridade, no sentido de que esta não deixa
de ser instrução porquanto o objectivo primordial perseguido na fase da instrução contraditória é
o mesmo em relação a fase da instrução contraditória, que consiste na demostração da veracidade
dos factos que pesam contra o arguido. Porém por se conferir nesta fase, a favor do arguido
prerrogativa de contrariedade em relação a acusação, podendo defender-se em igualdade de
armas de todos os factos que sobre ele pesam207.

Porque o arguido é presumido inocente, não se parte para a fase de julgamento suportando-se por
exclusivamente aos factos constantes na acusação. Importa que se dê a conhecer ao arguido «as
imputações que lhe são feitas, por forma a poder reagir às mesmas podendo-se, através da
negação, refutação ou infirmação da versão da acusação ou através do oferecimento de
provas»208, conferido, deste modo ao arguido, o direito de apresentar a contraprova.

Na fase da instrução contraditória cumpre-se assim o cerne do princípio do contraditório que « é


a dialética que se consubstancia no poder que é dado à acusação e à defesa de deduzir as razões
de facto e de direito, de oferecer as suas provas, de controlar as provas por si oferecidas e de
discutir o resultado de umas e outras»209. Daí que à defesa se deve conceder a oportunidade de:

«a) conhecer as opiniões, argumentos e conclusões da outra “parte” e manifestar as suas


próprias; indicar os elementos de facto e de direito que fundamentam as suas conclusões e
produzir as provas que as atestam; c) exercer a actividade propulsiva ao processo»210.

Por tudo isto, olhando a configuração do princípio da presunção de inocência, como uma
garantia constitucional penal, além da pronuncia, que consiste na decisão da «confirmação do
juízo de probabilidade expresso na acusação pública ou privada a respeito da existência do
crime»211, considerando como provado os factos alegados pelo MP, o fim da fase da instrução
contraditória há-de ser o de proferir o despacho de não pronuncia que, diferente do despacho de
206
IBDEM, pág. 169
207
Cfr. “IBDEM”
208
Carlos Adérito TEIXEIRA. “Princípios informadores do processo e Direitos Fundamentais”, In, Carlos Adérito
TEIXEIRA; Jorge GONÇALVES, Direito Penal e Processual Penal, Tomo II, INA, Lisboa, 2007, PP 51-100, Pág., 57

209
Jorge de Figueiredos DIAS. Curso de Processo Penal, apud Carlos Adérito TEIXEIRA. “Princípios informadores
do processo e Direitos Fundamentais”, In, Carlos Adérito TEIXEIRA; Jorge GONÇALVES, Direito Penal e Processual
Penal, Tomo II, INA, Lisboa, 2007, PP 51-100, Pág. 57
210
IBDEM
211
Grandão RAMOS. Direito Processual Penal. Noções Fundamentais, Escolar Editora, 2013, Lobito, pág. 287
pronuncia, decorre da prova da inocência do arguido ou da insuficiência dos indícios formulados
contra o arguido de que em sede de julgamento se venha impor, contra ele, uma pena de
prisão.212

2.2. Na fase do julgamento

Antes de mais, seguindo o asseverado pelo professor Grandão RAMOS, diz-se que:

«o julgamento é o conjunto de actos e actividades processuais concentradas num determinado


lugar que tem por fim a formação de um juízo de certeza sobre a responsabilidade do réu (sic). É
uma fase dirigida à procura da verdade objectiva»213

2.3 na fase do recurso

212
CPP, Artigo 352º, nº 4
213
Grandão RAMOS. Direito Processual Penal. Noções Fundamentais, Escolar Editora, 2013, Lobito, pág. 292
II.3 O valor do caso julgado, (importa ter em atenção a abordagem de MCF, sobre a teoria do
caso julgado na

II.3 O PRINCÍPIO in dúbio pro reu como consequência do princípio da presunção de inocência

II.4. Âmbito da jurisdição penal (importa que se fale da competência em razão da matéria e do
princípio do juiz natural)

II. A admissibilidade da detenção feita pelos particulares

III Capítulo. As diversas formas da violação do princípio da presunção da


inocência

III.1. violação do princípio da presunção da inocência pela mídia

III.2. A presunção de inocência e a dever presunção de parcialidade

III.3. A forma mais abominável da violação da presunção de inocência

III. 4 a necessidade da enxertia do possesso cível no processo penal (Art. 75 CPP)

III.4.1. a necessidade e pertinência que se deve dar ao pedido

Conclusão

Anexos

Bibliografia

8. Bibliografia

Rascunho da pesquisa

I capítulo

O princípio da presunção da inocência


I.1. Noção

Ab initio, tem-se por princípio «a orientação que informa o conteúdo de um conjunto de normas
jurídicas, que tem de ser tomada em consideração pelo interprete, mas que pode, em alguns casos
ter directa aplicação»214

Alude-se que o princípio da presunção da inocência se enquadra no vasto grupo de princípios


fundamentais que informam o Processo Penal. Princípios definidos como indicadores dos
«caracteres fundamentais denunciadores da evolução desejável do processo penal, e que serão os
princípios que devem dominar o processo penal como um tipo de processo ideal a atingir» 215.
Pelo que toda relevância que se dá a este princípio, damo-lo pelo facto de que «a presunção de
inocência pertence ao grupo dos princípios fundamentais do processo penal em qualquer Estado-
de-direito»216

Pelo princípio da presunção da inocência, «até haver uma decisão penal condenatória com
transito em julgado todo arguido se presume inocente»217. Firma-se como um princípio com
efeitos extraprocessuais, pode ser considerado como um direito público, com confere a qualidade
e condição de ser julgado apenas dentro de um processo penal, com a projeção da
susceptibilidade de ser tratado e considerado como não responsável criminalmente, enquanto não
for condenado e que tal necessariamente tem de transitar em julgado, daí que se deve garantir o
afastamento de quaisquer consequências derivadas da prática do facto criminoso, enquanto não
se remeter o indiciado a pratica de um crime em juízo . E no plano processual, este princípio
aplica-se a todo procedimento inerente a matéria da prova, fazendo com que qualquer decisão
condenatória aplicada como consequência da prática do facto criminoso, seja suportada sobre
provas credíveis, legalmente possíveis e rigorosamente assentes na clareza dos factos alegados
contra a pessoa suspeita de um crime e que são estas provas que devem fundamentar tal decisão

214
Ana PRATA. Princípio in: Dicionário Jurídico. Direito civil. Direito Processual Civil. Organização judiciaria,
Vol. I, 5ª ed., Ed. Almedina, Coimbra, 2012, Pág. 1112.
215
Manuel Cavaleiro de FERREIRA. Curso de Processo Penal, Vol. 1º. Ed. Nadubio Lda, Lisboa, 1986, Pág. 21
216
Jorge de figueiredo DIAS. Direito Processual Penal, Vol. I, Ed Coimbra Lda, Coimbra, 1974, Pág. 214
217
Manuel Simas SANTOS et. al. Noções de Processo Penal, 2ª ed, Ed. Letras e Conceitos Lda, Lisboa, 2011, Pág.
50
condenatória218e na eventualidade de se instalar dúvidas sobre o teor ou conteúdo da prova a
mesma deve ser valorada no sentido mais favorável ao arguido219

Visto nesta perspectiva diríamos que o princípio da presunção da inocência tem um pendor
eminentemente processual, porém, pelo asseverado por Germano Marques, de que o princípio da
presunção da inocência «assenta no reconhecimento dos princípios do direito natural como
fundamento da sociedade, princípios que aliados à soberania do povo e ao culto da liberdade
constituem elementos essências da democracia» 220; e apoiados igualmente pela afirmação de
Benja Satula, quando se refere ao Processo Penal como sendo o Direito Constitucional
regulamentado, que «assume o estatuto de veículo de harmonia entre a consagração de Estado
Democrático e de Direito e a dignidade da pessoa humana»221, nos é possível afirmar que o
princípio da presunção de inocência não pode ser redutível ao formalismo processual penal,
porquanto, a defesa dos direitos liberdades e garantias fundamentais deve estar salvaguardada
fora e dentro de um processo penal, tendo em atenção as alarmantes situações de violações do
princípio em causa na nossa sociedade, com realce no Município do Huambo, de cuja abordagem
reservamos para o terceiro capítulo. Ademais, é comando Constitucional a vinculação a todas
entidades, quer públicas quer privadas, o respeito pelos preceitos inerentes aos direitos,
liberdades e garantias fundamentais, tal como se pode depreender no nº 1 do Art. 28º da CRA.

A ser assim, podemos definir o princípio da presunção da inocência como sendo o princípio que
confere a cada pessoa a prerrogativa de ser reputado inocente, ainda que sobre esta pessoa se
forme uma clara e indubitável evidencia do cometimento de um crime, até que esta pessoa seja
julgada e condenada por uma instância jurisdicional competente, cuja a decisão condenatória
penal esteja transitada em julgado 222, firmando-se como um princípio ao serviço dos direitos do
suposto criminoso fora e dentro do processo

Pois perante uma sociedade como a nossa, onde vislumbramos várias concepções de fazer
justiça, em que em muitos casos não tem importado a dimensão da dignidade da pessoa humana,
o princípio da presunção da inocência enquanto uma garantia Constitucional penal, vista além do
processo penal, pode ser um veículo para a defesa dos direitos, liberdades e garantias
fundamentais do suposto criminoso no sentido de que este princípio apela à consciência de quem

218
Germano Marques da SILVA. Curso de Processo Penal, Vol. II, Ed. Verbo, Lisboa, 1993, Págs. 89-90.
219
Ibdem. Pág. 91
220
Germano Marques da Silva. Direito Processual Penal Português. Noções gerais. Sujeitos Processuais e Objecto
Vol. I, Universidade Católica Editora, 2013, Pág. 50
221
Benja Satula. Reflexo da presunção da inocência da jurisprudência em Africa, in: Guardiã, revista do Tribunal
Constitucional de Angola, nº 1, 2023, Pág. 120
222
Adiante faremos uma abordagem mais pormenorizado sobre o caso julgado.
tem cede de fazer justiça, que tal intento só é possível perante um Tribunal do Estado,
competente para julgar em matérias crimes, fazendo com que a medida da pena seja conforme os
pressupostos e limites estabelecidos por lei.

Dentro do processo penal, este princípio configura a garantia de um tratamento humanizado


diante do poder punitivo do Estado, na certeza de que se vai julgar o acto criminoso e não a
pessoa presumivelmente criminosa, assegurando um tratamento especial ao arguido, isto é,
podendo ser tratado como inocente no decurso de todo processo223

I.2 Gênese histórico

O princípio da presunção de inocência reputamo-lo como sendo uma garantia constitucional


penal para a salvaguarda do direitos e liberdades fundamentais a luz do nº 2 do Artigo 67º da
CRA, pertencendo ao âmbito dos direitos e liberdades fundamentais, 224 sendo que Estado, não
obstante ao facto de reconhece-los, propõe-se igualmente a criar condições políticas,
econômicas, sociais, culturais, de paz e estabilidade que Garantam a sua efetivação e protecção,
nos termos da Constituição e da lei, cujo o dever de respeitar e de garantir o seu livre exercício
incumbe a todas autoridades do poder público225.

Pelo que ao falarmos da gênese histórica do princípio da presunção de inocência, urge a


necessidade de reconduzi-lo ao âmbito histórico dos próprios Direitos, liberdades e garantias
fundamentais para posteriormente, de uma forma exclusiva se faça uma abordagem histórica ao
princípio em causa.

A ser assim começamos por dizer que a proto-história, é caracterizada por uma relativa cegueira
em relação aos direitos do homem e temos uma outra caracterizada pela inclusão destes direitos
em alguns documentos declarativos de direitos, liberdades e garantias, dando-se com isto a era
da positivação constitucional dos direitos do homem em documentos constitucionais.226

O processo histórico não é linear encontrando apenas referências nos principais momentos
considerados de consciencialização do problema dos direitos do homem

223
Germano Marques da Silva. Direito Processual Penal Português. Noções gerais. Sujeitos Processuais e Objecto,
Vol. I, Universidade Católica Editora, 2023, Pág. 54
224
Consta como epigrafe da secção II do capítulo II, consagrado aos direitos, liberdades e garantias fundamentais
da CRA.
225
Extrato que se pode depreender na CRA no Artigo 56º, com a epígrafe de garantia geral do Estado.
226
José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora Coimbra,
Coimbra, 1997, Pág. 378.
Temos assim o momento que de acordo o asseverado por Gomes Canotilho, da luta pelo
reconhecimento da igualdade material e o do “nomo” unitário e a “recta ratio,” isto, é na
antiguidade clássica.

Não se firmas na antiguidade clássica a questão dos direitos do homem na dimensão conhecida
hodiernamente, tendo em consideração a contraposição de qualidade dos direitos atribuídos ao
livre e ao escravo, numa época que se considerava a condição de escravo como sendo natural,
suportada pela ideia de existirem homens com qualidades distintas que eram reconhecidas pela
aptidão que se tinha em prover encargos para com o Estado, que segundo Platão e Aristóteles,
apenas um pequeno número detinha estas aptidões, sendo que a maioria estaria na total
dependência deste pequeno número, pensamento evidenciado pela ideia da existência de três
classes ou raças de mentes: de ouro, prata e bronze na a destinação das funções da Polis.

E nesta contingência de existência de duas classes de pessoa a classe de escravo reclama a


condição de homem, e neste prisma é escravo aquele que não obstante a condição de homem,
não pertence a sí mesmo, mas a outro.227

No entanto, o período clássico não é totalmente a ideia dos direitos do homem, ou seja, dos
direitos fundamentais. A partir do pensamento sofistico exalta-se a natureza biológica comum
aos homens e a consequente ideia da igualdade natural e da humanidade. Em prol da igualdade
matéria para a pessoa humana, é curial a passagem de Alcidamas citado por Gomes Canotilho 228,
segundo a qual «Deus criou todos homens livres a nenhum fez escravo», e de Antifon,
igualmente citado por Gomes Canotilho 229, que atesta que «por natureza são todos iguais quer
sejam bárbaros ou helenos».

Ainda em cede da aspiração do princípio da igualdade encontramos o pensamento Estoico que


nos traz a ideia do “nomos” unitário, que converte todos homens em cidadãos do grande Estado
universal, de formas que os direitos das pessoas não estejam limitados ao espaço da polis ou a
uma determinada circunscrição territorial, pensamento do qual se pode depreender a ideia da
universalização e planetarização dos direitos do homem.

É pelo ideal estoico que a ideia da igualdade antropológica se destacou no campo filosófico e na
doutrina político suportada pela ideia de Cícero de igual modo citado por J J Gomes Canotilho, 230

227
IBIDEM, Pág. 379
228
IVI.
229
IVI.
230
IVI.
segundo a qual a «lei verdadeira é a razão coincidente com a natureza na qual todos participam
( ratio naturae quae est lex divina el humana)»

Em prol da fundamentação do direito de todos homens serem considerados iguais, e a


consequente ampliação dos direitos a eles inerentes igualmente a todos os homens temos as
poéticas palavras de Terêncio, que declara: « eu sou homem e nada do que é humano me é
alheio», citado por Gomes Canotilho231

No período clássico, apesar de se ter procurado afirmar a ideia da igualdade dos homens assente
na dimensão pessoal e cosmológica, tal pensamento encontrou apenas maior respaldo no plano
filosófico, não podendo sido capaz de se transformar em uma categoria jurídica e em medida
natural da comunidade social.232

Na sequência da analise da proto-história dos direitos do homem é chegado o momento de


falarmos um pouco da fase que marcou a lex natura da inspiração cristã e a secularização do
direito natural.

Pelo que estaremos propriamente nas ideias que nos sãos trazidas na época medieval, cuja maior
protagonismo é conferida às ideias do Tomismo, realçando neste sentido as concepções cristãs
medievais.

Destas nos vem a contraposição da “lex” divina e “lex” positiva que abriram caminhos para a
secularização do direito natural, tendo o direito positivo escrito sido submetido às normas
jurídicas naturais decorrentes da própria natureza humana.

A partir das ideias cristãs, a concepção das leis justas por intermédio da consciência humana,
esta deve ser sempre reconduzida à “lex” divina para a confirmação da “lex” positivo escrita
tendo em consideração categorias do conteúdo da “lex” divina.233

Importa, ainda no que tem que ver com a secularização do direito natural, frisar a escolástica
espanhola, cujo mérito é atribuído à Francisco de Victoria, Vezquez e Suares, de cujo
pensamento centra-se na substituição da vontade divina para a razão das coisas, secularização
esta que é mais tarde apoiada por Grotius Pufendorf e Lock, desembocando na “recta ratione”
que é explicitada por Guilherme de Ockam, no século XIV, tendo mais tarde se desvinculado do

231
IVI.
232
IVI
233
IBDEM, Pág. 380
peso metafisico e nominalístico, conduzindo à ideia de direitos naturais do indivíduo e à
conceptualização dos direitos humanos universais.234

Cumpre ainda neste período medieval o dado que nos é trazido a partir da história clássica
Inglesa dos direitos fundamentais, onde temos como destaque a “Magna Charta libertatum” de
1215, que no princípio não se tratou de uma manifestação de direitos fundamentais inerentes a
todos porquanto tratava-se de afirmação dos direitos corporativos da aristocracia feudal em face
do seu suserano. Visava fundamentalmente conferir alguns direitos de predomínio ao Rei e em
troca conferia-se alguns direitos de liberdade plasmados nesta carta que também pode ser
considerada como carta de franquia que alicerça os interesses locais em face das prerrogativas
reais.235

No entanto releva-se a Magna Charta Libertetum porque deste já se pode depreender certa
abertura na transformação dos direitos aí consagrados, que nesta carta eram considerados
estamentais para direitos relativos a todos homens 236. E para o nosso caso impõe-se fazer constar
o teor do Artigo 39º documento em causa, segundo o qual «nenhum homem livre será detido ou
sujeito a prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer
modo molestado, e nós não nos procederemos, nem mandaremos contra ele, senão em
julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país», 237 onde podemos
depreender o direito de ser julgado regularmente, ou seja por um juiz legalmente instituído, aqui
firmado como um direito fundamental.

Neste número, cumpre analisar as ideias que nos são trazidos pelo contratualismo, que apesar de
a tónica das suas ideias serem consagrados à questão da justificação do Estado e com a
legislação do domínio, onde Hobbes chega ao leviatham (1651), partindo da ideia segundo a qual
os indivíduos firmam o contrato social em que alienam e abandonam os seus direitos a favor do
soberano que em contrapartida fica com o dever de protege-los. E Locke, apartirir da mesma
ideia, de contrato social, põe-se contra a ideia de atribuição do poder desmedido ao Rei ou ao
Estado, em que tal poder é exercido acompanhada com uma máquina centralizada, burocrática,
em que os nobres detém privilégios, onde a marginalizada é sempre a burguesia. Tais ideias vão
resultar em uma luta da burguesia em face da falta de liberdade política, constituindo-se em
principal incentivo para os direitos do homem.238
234
IVI.
235
IVI.
236
IBDEM, Pág. 381
237
Magna Charta Libertetum. Artigo 39º
238
José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora Coimbra,
Coimbra, 1997, Pág. 382.
As ideias de Hobbes vão nos remeter à legitimação do poder absoluto do Rei, ideias estas que
são contrariados por J. Locke no sentido de que o Rei não toma para sí todos os direitos que
poderiam pertencer aos indivíduos. Desta contraposição, é possível vislumbrar a defesa da
autonomia privada concretizada no direito à vida, à liberdade e à propriedade.

Com o individualismo possessivo que se subtrai da teoria de Locke, é possível chegar à teoria
liberal dos direitos fundamentais que protagoniza a defesa total dos direitos do homem perante o
poder do Estado, resultando na limitação do poder do Estado em invadir a esfera privada do
cidadão, em que com Rousseau chegamos à ideia de a liberdade no Estado-sociedade, em que a
esfera da liberdade encontra razões de limitações nos direitos dos outros, que para o Estado
desemboca no dever de autovinculação jurídica239

Impondo-nos analisar a história do constitucionalismo francês, é possível compulsarmos um


pendor direcionado em acabar com o Estado absolutista com a aspiração de um Estado
constitucional, ou seja, assente na democracia e no direito, isto é, a partir de 1789, por via da
revolução francesa, propondo-se destruir todas instituições da estrutura antiga.240

O princípio da presunção da inocência tem múltiplas abordagens quanto a sua origem.


Começando por uma abordagem doutrinaria, este princípio, encontra o seu prelúdio axiológico
no Direito Romano, no séc. II, com a sustentação do apotegma latino (…) presente no digesto

I.3.2. A consagração constitucional do princípio da presunção de inocência

Estado sob o prisma de o princípio da presunção de inocência ser percebido como um direito
fundamental e (ou) garantia fundamental, vamos expô-lo na perspectiva de ser um direito
jurídico-positivamente vigente numa ordem constitucional, cujo local desta positivação deste

239
IVI.
240
Jorge MIRANDA. Manual de Direito Constitucional. Preliminares o Estado e os Sistemas Constitucionais, Tomo I,
6ª ed. Ed. Coimbra editora, Coimbra, 1997, pág. 159
direito é na Constituição, remetendo-nos à sua constitucionalização e fundamentalização,
enquanto um direito e (ou) garantia fundamental.

Estamos, por assim dizer, diante da positivação dos direitos fundamentais que tem que ver com a
incorporação dos direitos do indivíduo, reputados como naturais e inalienáveis. É esta
consagração que garante o não tratamento destes direitos como algo de mera abstração retórica e
imaginária conferindo a estes direitos a protecção normativa consubstanciada em regras e
princípios de direito constitucional.241

Assevera Cruz Villalom, citado por J. J. Gomes Canotilho, 242 «onde não existir constituição não
haverá direitos fundamentais. Existirão outras coisas, seguramente mais importantes, direitos
humanos, dignidade da pessoa, existirão coisas parecidas, igualmente importantes como as
liberdades públicas francesas, os foros ou privilégios»

Com isto os direitos fundamentais são considerados como tais enquanto encontrarem cobertura
na constituição, derivando daí consequências jurídicas, deixando de ser categorias moralmente
consideradas.

Importa realçar que a positivação constitucional não implica a redução das raízes fundantes dos
direitos fundamentais, mormente: a dignidade humana, fraternidade, igualdade e liberdade. 243

A constitucionalização dos direitos fundamentais, consequentemente do princípio da presunção


de inocência, consiste na «incorporação dos direitos subjectivos do homem nas normas
formalmente básicas, subtraindo-se o seu reconhecimento e garantia à disponibilidade do
legislador ordinário».244

A constitucionalização dos direitos fundamentais vai nos remeter à questão da garantia da


protecção destes direitos pelo controlo jurisdicional da totalidade dos actos exarados
normativamente com objectivo de regular estes direitos. Ganham força vinculativa quanto ao seu
teor normativo e não como meros trechos ostentativos caracterizados nas grandes declarações de
direitos.245

241
José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª edição, Editora Coimbra,
Coimbra, 1997, Pág. 375
242
IVI
243
IVI.
244
IBDEM, Pág. 376.
245
IVI.
A consagração constitucional dos direitos fundamentais, continuando na esteira do professor J. J.
Gomes Canotilho, vai implicar a sua fundamentaliozação no sentido formal e num sentido
material, que tem que ver com a especial dignidade de protecção destes direitos.

No sentido formal, está em causa o acolhimento de forma expressa dos direitos fundamentais na
constituição, tendo consequência em quatro grandes dimensões: colocação no topo da hierarquia
normativa em toda ordem jurídica; submete-se agravamento na eventualidade das revisões
constitucionais, onde neste sentido, os direitos, liberdades e garantias fundamentais constituem
limites materiais sempre que a constituição for submetida a revisão constitucional; constituem
critério de decisão do poder público; a consagração formal dos direitos fundamentais constitui
mecanismo do controlo do poder legislativo.246

A fundamentalização no sentido material, reporta-nos na consideração do conteúdo dos direitos


fundamentais como sendo a estrutura básica do Estado e da sociedade, por este conteúdo, dá-se
abertura em outros direitos reputados como fundamentais ainda que estes não estejam previstos
de forma expressa na constituição247. É com base nestes termos que podemos compreender o que
vem preceituado no nº 1 do artigo 26 da CRA, relativo ao âmbito dos direitos fundamentais,
dando-nos a clara ideia de que o âmbito dos direitos fundamentais não é redutível ao expresso na
Constituição, podendo ser considerado outros direitos constantes em leis e regras do direito
internacional.

Com isto, o princípio da presunção da inocência, tal como já fazemos questão de aludir
anteriormente no início da nossa abordagem

246
IBDEM, Pág. 377
247
IVI.

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