NEMO - O Que é o Ocidente-20-29
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O Contributo Romano:
o Direito Privado, o Humanismo
O direito romano, tal como foi produzido por este longo processo,
possuía um meio mais eficaz do que qualquer dos outros anteriormente
encontrados para definir a propriedade privada. O direito honorário tinha
forjado, pouco a pouco, o que poderíamos chamar instrumentos
intelectuais de precisão, que permitiam manter o registo, de uma forma
não ambígua, do que tinha sucedido ao meu e ao teu no decurso dos
acontecimentos da vida. Por exemplo, depois de duas pessoas se terem
casado, tido filhos, se terem associado a alguém, um dos associados ter
contratado créditos ou contraído dívidas, terem hipotecado ou resgatado
bens, os seus filhos terem herdado delas, os filhos se terem casado, e
depois divorciado, tido filhos legítimos, naturais ou adoptados, o seu
património ter sido roubado e depois restituído na sequência de uma
decisão judicial, etc., depois de todas estas modificações, os instrumentos
intelectuais forjados pelo direito romano permitem proceder de modo a
que o meu e o teu permaneçam rigorosamente delimitados. Cada um
reencontra o que lhe pertence.
Ora, se o domínio próprio de cada um está assim definido e
garantido no tempo (e mesmo, pelo direito de herança, para além da vida
humana individual), é o próprio eu que assume uma dimensão que não
tivera em nenhuma outra civilização. De facto, o que cada um é depende,
em certa medida, daquilo que tem. Portanto, aquilo que tem é e
permanece distinto do que outrem tem, o que cada um é é e permanece
distinto do que outrem é.
Consideremos três pessoas, Caio, Marco e Quinto, tendo cada qual
uma propriedade privada garantida pelo direito. Consideremos os estados
sucessivos destas propriedades em diferentes etapas t1, t2, t3, t4, tn, …,
estados que apenas fazemos variar, no esquema abaixo, para mais e para
menos (a demonstração seria mais forte se pudéssemos introduzir
variações qualitativas). Vemos então desenhar-se “itinerários de vida”
diferentes:
t1 t2 t3 t4 tn
Caio
Marco
Quinto
Notas
(1) Cf., por exemplo, Remi Brague, La voie romaine, Paris, Gallimard, 1999. O
autor atribui a Roma, na história espiritual e intelectual do Ocidente, o estatuto
de um simples intermediário que soube transmitir à Europa as duas inovações
verdadeiras e substanciais que são a Revelação cristã e a ciência grega. Esta
visão das coisas não nos parece completa. Há um contributo específico de
Roma, o direito, e este contributo é substancial. Sem ele, o Ocidente seria
diferente do que é.
(2) Retiramos as nossas informações das obras clássicas de Paul-Frédéric Girard,
Manuel élémentaire de droit romain (1895), reed. por Jean-Philippe Lévy,
Paris, Dalloz, 2003; Robert Villers, Rome et le droit prive, Paris, Albin Michel,
col. L’évolution de l’humanité, 1977; Jean Gaudemet, Les institutions de
l’Antiquité, Paris, Montchrestien, 3a ed., 1991; Michel Humbert, Institutions
politiques et sociales de 1’Antiquitê, Paris, Dalloz, 4a ed., 1991.
(3) Houve certamente influência do direito romano-bizantino sobre o direito
muçulmano no plano técnico. Todavia, a letra do Alcorão e a suna prevaleciam
substantivamente neste último direito e, para além disso, o direito romano
supunha um quadro cívico que a teocracia muçulmana não proporcionava.
(4) Cf. Cícero, Dos Deveres, I, XXX-XXXIII [Lisboa, Edições 70, 2000].
(5) Em particular, o do Vaticano, mas também os do Capitólio e do Palatino.
(6) Portanto, atribui-se erradamente a invenção do retrato aos Flamengos. Estes
foram apenas os seus reinventores. É um lugar comum relacionar esta
transformação artística dos séculos XVI e XVII com a aparição e os sucessos
sociais crescentes da “burguesia” e da economia capitalista. Mas podemos
também dizer que os Romanos eram já burgueses em algumas das suas
características e em certo grau e que a sua economia era já capitalista em alguns
aspectos (ver a este propósito Yves Renouard, Les hommes d’affaires italiens au
Moyen Age, Paris, Armand Colin, 1968; o princípio do livro é dedicado à
economia antiga).
(7) Acrescentemos, aliás, a este processo uma peça curiosa. Sabemos que os Padres
da Igreja levaram quatro séculos a construir uma cristologia e uma teologia da
Trindade. As soluções finalmente propostas - Deus é uno em três “pessoas” e
Cristo possui duas naturezas, a divina e a humana, mas é uma única “pessoa” –
foram afinal um contributo dos teólogos de língua latina. Pensamos que tal
ocorreu precisamente porque dispunham da noção de “pessoa”. Os Gregos não
dispunham senão da noção de “hipóstase”, que era problemática, porque parecia
implicar que cada hipóstase era uma substância, uma ousia: era difícil, então,
conceber três “hipóstases” divinas que não fossem, por isso mesmo, três deuses
diferentes. É verdade que o termo prosopon existia em grego como mesmo
sentido de persona, máscara-porta-voz usada pelos actores no teatro para
representar uma personagem. Mas é de crer que a palavra grega tivesse menos
densidade humana e social do que a latina. O prosopon era entendido,
precisamente, apenas como uma máscara e o uso desta palavra para designar o
Pai, o Filho e o Espírito Santo seria pois suspeito de modalismo ou de
sabelianismo (doutrina segundo a qual é o mesmo ser divino que aparece em
três “modos” diferentes, como um mesmo actor pode usar sucessivamente
diversas máscaras.) Ora, o sabelianismo fora condenado logo na origem: o Pai,
o Filho e o Espírito possuem uma individualidade irredutível. Daí o interesse da
palavra e do conceito de “pessoa” proposto na fórmula de Tertuliano, “três
Pessoas, uma só substância”, retomada pelos outros Padres latinos, Santo
Hilário de Poitiers, Vitorino e Santo Ambrósio. Sabemos que a ortodoxia
trinitária foi estabelecida, por fim, pelo Concílio de Constantinopla (381) e que
os autores das fórmulas decisivas adoptadas neste concílio foram os Padres
capadócios, gregos, portanto. Todavia, eles não terão feito mais do que dar aos
termos gregos um sentido idêntico ao do das palavras latinas utilizadas pelos
teólogos da parte ocidental do Império. Assim, sem o ego romano não há
pessoas divinas cristãs. Apesar de os cristãos pensarem ser apenas devedores à
Revelação bíblica em matéria de teologia, parece que ficam a dever a forma
acabada da teologia da Trindade às criações do direito privado romano, que,
como vimos, não tinham apenas alcance social, mas civilizacional. O Espírito
sopra onde quer.