NEMO - O Que é o Ocidente-20-29

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CAPÍTULO 2

O Contributo Romano:
o Direito Privado, o Humanismo

Os Gregos inventaram o “governo pela lei”, todavia, não levaram


muito longe a elaboração do direito. Nas pequenas cidades gregas,
formadas por comunidades etnicamente homogéneas, o direito era
maioritariamente não escrito (razão por que conhecemos muito mal o
direito grego). Ora, se o direito deve tornar possível a cooperação
pacífica e fecunda entre os homens, ao delimitar as fronteiras entre o meu
e o teu, é evidente que terá um papel tão mais eficaz quanto souber
definir com maior rigor estas fronteiras. Será este aperfeiçoamento que
os magistrados e jurisconsultos romanos irão realizar, constituindo um
processo tão “miraculoso”, num certo sentido, quanto o “milagre grego”,
embora tenha sido menos analisado e se lhe tenha feito justiça com
menor frequência(1). Em poucos séculos, constituíram um sistema de
direito privado muito elaborado e sem qualquer equivalente nas
civilizações anteriores. Iremos ver que, ao realizar esta tarefa, os
Romanos alteraram completamente a concepção que se tinha até aí
acerca do homem e da pessoa humana(2).

1. A invenção de um direito universal no Estado romano


multiétnico

Roma tinha-se tornado um Estado cosmopolita (multiétnico,


diríamos hoje) devido às suas conquistas. O Estado romano estava
obrigado a fazer conviver em boa harmonia homens de proveniências
diferentes, que, no melting-pot romano, tinham múltiplas oportunidades
para choques e litígios.
Para resolver estes litígios, não era possível aplicar o direito da
comunidade romana, o “direito dos Quirites” (o direito civil e a Lei das
Doze Tábuas de 451 a. C., conjunto comparável ao direito grego
arcaico). De facto, este direito, embora representasse já uma inovação e
uma conquista política da plebe relativamente ao antigo direito das
gentes - que era apenas consuetudinário e oral e interpretado unicamente
pelos patrícios - só podia ser administrado num contexto quase ritual.
Não apenas pressupunha a adesão ideológica aos ritos da religião romana
e aos mitos que estavam na sua base, mas também o conhecimento literal
das fórmulas com que era aplicado. O Digesto relata o exemplo de um
processo perdido unicamente por causa deste formalismo rígido,
impenetrável aos que estavam sujeitos à sua jurisdição e não pertenciam
à etnia dos “Quirites”. Os estrangeiros, aliás, não tinham acesso a ele.
Perdiam sempre nos seus litígios com os Romanos, por tal razão. Quanto
aos litígios que ocorriam entre estrangeiros, era ainda menos razoável
esperar que pudessem ser solucionados com os procedimentos deste
direito autóctone.
O magistrado encarregado de aplicar a justiça em Roma, durante a
República, é o pretor. Ora, em 242 a. C., quer dizer, no momento em que
Roma tinha conquistado a Itália e iniciava a sua expansão para fora dela
durante a Primeira Guerra Púnica, os Romanos criam um praetor
peregrinus, um “pretor dos estrangeiros”, para além do pretor “urbano”
clássico. O pretor dos estrangeiros tem o mandato de resolver os litígios
que não podem ser abrangidos pelo direito civil tradicional (mais tarde,
haverá diversos pretores, quer urbanos, quer peregrinos).
É razoável supor que o cargo de pretor peregrino não fosse, de
início, especialmente cobiçado (era atribuído por sorteio entre os pretores
eleitos) e não propiciasse uma reputação elevada ao seu detentor: no fim
de contas, tratava-se apenas de dirimir os assuntos entre cidadãos de
segunda categoria. No entanto, isto constituiu ocasião para inovações
fundamentais. De facto, dado que os que estavam sujeitos à sua
jurisdição não conheciam as fórmulas tradicionais, o pretor peregrino foi
autorizado a qualificar os crimes e delitos segundo termos e conceitos
que não figuravam literalmente no direito civil existente e que eram
escolhidos de tal modo que os interessados os compreendessem sem
ambiguidade. Era necessário usar, portanto, palavras comuns e fórmulas
destituídas de referências a religiões ou instituições étnicas particulares.
Isso exerceu uma pressão favorável à criação de um vocabulário jurídico
cada vez mais abstracto.
Esta faculdade dada ao pretor peregrino de inventar “fórmulas”
jurídicas novas está provavelmente (sendo controversa, a hipótese é
correntemente utilizada) na origem do “procedimento formulário” que
substituiu definitivamente, para todos os que estavam sujeitos à
jurisdição do Estado romano e não apenas para os estrangeiros, o velho
“procedimento das acções da lei”. A partir de então, o direito civil legal
foi acompanhado, completado e corrigido por um “direito pretoriano” ou
“honorário”, constituído pelas fórmulas inventadas todos os anos pelos
magistrados.
Este processo de criação intelectual supunha a confrontação com
uma série diversificada de casos e a possibilidade de realizar muitas
tentativas de correcção. Tudo isso constituiu, precisamente, as condições
particulares em que o novo direito foi elaborado. O cargo de pretor era
anual e electivo (como todas as magistraturas republicanas). Por isso, em
cada ano, os candidatos que pretendiam ser eleitos tinham de reflectir
sobre o “édito” que iriam publicar ao entrar em funções. Este “édito do
pretor” deveria conter o conjunto de fórmulas que o magistrado se
comprometia a fazer respeitar durante o seu mandato. Bem entendido, o
novo pretor podia retomar as fórmulas dos seus predecessores sem as
alterar (pars tralaticia do édito), mas podia também impor outras (pars
nova). Ele tinha, portanto, todo o interesse em adaptar o édito em função
das lições da experiência, conservando as fórmulas que se tinham
revelado adequadas, eliminando as que continham ambiguidades e
envolviam um contencioso pesado e propondo novas que resolvessem os
problemas que tivessem surgido na prática dos processos. Assim, a
instituição judiciária romana (como, mais tarde, a instituição judiciária
inglesa, em que o juiz pode julgar de acordo com os precedentes sem
estar vinculado a um código rígido) estava dotada de um instrumento de
uma rara flexibilidade, que associava uma certa continuidade (ao retomar
em cada magistratura um mesmo corpus de fórmulas comprovadas) a
uma faculdade permanente de inovação.
Este trabalho de criação jurídica realizado pelos pretores foi
decisivamente acelerado e alterado quando Roma entrou em contacto
mais íntimo do que antes com a cultura grega, ou seja, na época do
“círculo dos Cipiões” (meados do século II a. C.). Os juristas romanos
adquiriram então algum conhecimento da filosofia grega e, em particular,
da filosofia estóica.
Sabemos que, na sequência da criação do mundo helenístico, que
amalgamou os Gregos, os Macedónios e os orientais da Pérsia, da Síria,
do Egipto, etc. (as grandes monarquias helenísticas foram já, neste
sentido, estados multiétnicos, embora numa escala menor do que a
república romana), os estóicos tinham elaborado a teoria do
cosmopolitismo. Tinham pensado que a humanidade constitui uma
comunidade única que partilha uma natureza humana idêntica e que as
regras das relações sociais no seio desta comunidade decorrem de uma
única “lei natural”, sendo as leis positivas de cada cidade apenas o
decalque e uma aproximação a esta. Recordemos a célebre apresentação
que Cícero fez desta lei natural, em A República:

Há uma lei verdadeira, que é a recta razão, conforme à natureza,


presente em todos os seres, sempre de acordo consigo mesma, que não
pode extinguir-se, que nos chama imperiosamente a desempenhar a nossa
função, nos interdita a fraude e nos desvia dela. O homem honesto nunca
é surdo aos seus mandamentos e às suas proibições, mas estes não têm
acção sobre o perverso. A esta lei nenhuma alteração é permitida, não é
lícito revogá-la nem no todo, nem em parte. Nem o Senado nem o povo
podem dispensar-nos de lhe obedecer e não é de modo nenhum
necessário procurar um Sexto Élio para a explicar ou interpretar. Esta lei
não é uma em Atenas e outra em Roma, uma hoje e outra amanhã, é uma
única e mesma lei eterna e imutável, que rege todas as nações e em todos
os tempos. Para a ensinar e prescrever existe um deus único; a
concepção, a deliberação e a entrada em vigor desta lei também a ele
pertencem. Quem não obedece a esta lei ignora-se a si mesmo e, uma vez
que ignora a natureza humana, sofrerá por isso o maior castigo, ainda que
escape aos outros suplícios (A República, In, XXII).

Se esta lei está de facto inscrita no coração de todo o ser humano, a


consequência é clara: quando se encontram homens de cidades
diferentes, se não puderem ser postos de acordo segundo os códigos
positivos das suas cidades respectivas, poderão sê-lo por referência à lei
natural que” lhes é comum. A tarefa que consiste em buscar os princípios
de justiça segundo os quais habitantes de cidades diferentes podem
chegar a acordo, desde que estejam de boa fé, pode decerto realizar-se.
É o reconhecimento da existência desta lei comum a todos os
homens e acessível à “consciência” de todo o homem honesto que
permite que a tarefa dos pretores romanos se consolide e torne mais
sistemática, quando, de início, ela era puramente pragmática e, sem
dúvida, errática. O direito que almejavam e que devia ser comum a
homens de gentes diferentes era apenas a lei natural postulada pelos
filósofos. O que justificava a “fórmula” imaginada pelo pretor era o facto
de ser susceptível de se ajustar melhor a este direito subjacente. Desde
logo, importava pouco que ela se afastasse da letra do direito civil
ritualizado. A fonte do direito já não residia no mito nem no costume, e
menos ainda numa revelação religiosa, mas na natureza humana
objectiva. Sendo esta universal e cognoscível pela razão e pela
consciência, também a fórmula do pretor tinha tendência para se tornar
universalmente aceite.
Assim orientada, a tarefa de criação jurídica dos magistrados
romanos prosseguiu desde o século III a. C. até ao fim do século I d. C.:
foram três séculos e meio de invenção contínua, emanando de centenas
de bons espíritos. Durante o Império, como já não havia pretores
independentes, o património do direito pretoriano foi reduzido a escrito
sob a forma de um “édito perpétuo” que recolhia toda a matéria dos
éditos pretorianos. No decurso do Império, o direito terá origem
sobretudo nos imperadores e nos seus juristas titulares, autores das
“constituições imperiais”, procedimento que era mais artificial e menos
criativo do que o procedimento formulário. Mas, pelo menos, o Império
irá continuar o trabalho de codificação do direito, que culminará no
Corpus Júris Civilis de Justiniano, no século VI.
O balanço destes desenvolvimentos é imenso: é em Roma que
vemos emergir o direito civil que constitui ainda hoje a base de todos os
direitos ocidentais modernos.
Basta consultar o índice de um manual de direito romano para
tomarmos consciência, não só da imensidão do trabalho realizado pelos
magistrados e os jurisconsultos, mas também do seu extraordinário
alcance histórico. Nele encontramos, com efeito, as categorias que nos
são hoje familiares, quer se trate do direito das pessoas (menoridade,
incapacidade, tutela, curadoria, família, casamento, herança, adopção,
legitimação, noção de pessoa moral, etc.), quer do direito das coisas
(propriedade, posse, servidões, coisas corpóreas e incorpóreas, móveis e
imóveis, prescrição, nua propriedade, usufruto, compropriedade,
indivisão, locação, etc.), quer do direito das obrigações (contrato,
depósito, garantia, hipoteca, caução, mandato, sociedade, compra, venda,
pacto sinalagmático, dolo, fraude, testamento, legado, etc.). Estas noções
fundamentais, assim como o formalismo jurídico que obriga a utilizar
rigorosamente estes instrumentos, etapa após etapa, sem nos deixarmos
seduzir pela pressa, a paixão ou as preocupações de eficácia
administrativa, foram-nos transmitidas pelos Romanos por tradição
directa (mesmo se não é contínua) e exclusiva, uma vez que só o
Ocidente, até uma data recente, a herdou(3).
Em suma, as sociedades que foram formadas pelo direito romano,
depois de o terem sido pelo modelo grego de cidade, efectuaram deste
modo um segundo “salto” na evolução cultural da humanidade.

2. O direito privado romano, fonte do humanismo ocidental

O direito romano, tal como foi produzido por este longo processo,
possuía um meio mais eficaz do que qualquer dos outros anteriormente
encontrados para definir a propriedade privada. O direito honorário tinha
forjado, pouco a pouco, o que poderíamos chamar instrumentos
intelectuais de precisão, que permitiam manter o registo, de uma forma
não ambígua, do que tinha sucedido ao meu e ao teu no decurso dos
acontecimentos da vida. Por exemplo, depois de duas pessoas se terem
casado, tido filhos, se terem associado a alguém, um dos associados ter
contratado créditos ou contraído dívidas, terem hipotecado ou resgatado
bens, os seus filhos terem herdado delas, os filhos se terem casado, e
depois divorciado, tido filhos legítimos, naturais ou adoptados, o seu
património ter sido roubado e depois restituído na sequência de uma
decisão judicial, etc., depois de todas estas modificações, os instrumentos
intelectuais forjados pelo direito romano permitem proceder de modo a
que o meu e o teu permaneçam rigorosamente delimitados. Cada um
reencontra o que lhe pertence.
Ora, se o domínio próprio de cada um está assim definido e
garantido no tempo (e mesmo, pelo direito de herança, para além da vida
humana individual), é o próprio eu que assume uma dimensão que não
tivera em nenhuma outra civilização. De facto, o que cada um é depende,
em certa medida, daquilo que tem. Portanto, aquilo que tem é e
permanece distinto do que outrem tem, o que cada um é é e permanece
distinto do que outrem é.
Consideremos três pessoas, Caio, Marco e Quinto, tendo cada qual
uma propriedade privada garantida pelo direito. Consideremos os estados
sucessivos destas propriedades em diferentes etapas t1, t2, t3, t4, tn, …,
estados que apenas fazemos variar, no esquema abaixo, para mais e para
menos (a demonstração seria mais forte se pudéssemos introduzir
variações qualitativas). Vemos então desenhar-se “itinerários de vida”
diferentes:

t1 t2 t3 t4 tn

Caio

Marco

Quinto

Estas linhas tomam rapidamente uma forma absolutamente


singular, sendo cada vez menos sobreponíveis entre si, o que significa
que os “eus” se diferenciam cada vez mais. O processo é cumulativo,
dado que cada porção singular de vida vivida dá ao “eu” a ideia e os
recursos que lhe permitem conceber projectos de vida ulteriores que
outros não poderão conceber, precisamente porque tiveram um passado
diferente.
As vidas individuais deixam então de se fundir no oceano do
colectivo, não apenas no sentido da fusão no seio do grupo tribal arcaico,
mas mesmo no sentido da solidariedade ainda bastante próxima que
reinava na pequena Cidade grega. O direito romano, apesar da aparência
de prosaísmo, ganha de súbito uma dimensão moral inesperada. Podemos
defender que, tendo inventado o direito privado, os Romanos inventaram
a pessoa humana individual, livre, tendo uma vida interior, um destino
absolutamente singular, não redutível a nenhum outro, ou seja, um ego.
O direito romano é, por isso, a fonte do humanismo ocidental.
Parece que foi Cícero quem teve a ideia de aplicar ao ser humano
em geral a palavra persona, que designava originalmente, como
sabemos, as personagens do teatro. Usou esta metáfora quando discutia,
no Dos Deveres, ideias morais do estóico grego Panécio(4). Todo o
homem possui a natureza humana que é comum a todos, mas, para além
disso, cada homem possui uma natureza que lhe é própria, em virtude da
qual tem um papel singular a desempenhar na vida, da mesma maneira
que as personagens do teatro têm um papel singular a desempenhar na
peça. Neste sentido, o homem individual merece, portanto, o nome
persona que é dado aos actores. E tal como a peça de teatro não teria
nenhum sentido sem a articulação das acções e dos sentimentos
diferenciados das personagens, também a República não existiria se os
cidadãos deixassem de ser eles mesmos, se, devido a algum rito ou a
alguma febre colectiva que fizesse desaparecer as garantias do direito,
ela se tornasse um “grupo em fusão”, uma comunidade solidária e
unânime, onde o carácter próprio da personalidade de cada um fosse
apagado.
Pensamos que Cícero só pôde acrescentar este elemento decisivo do
personalismo à teoria grega da natureza humana universal porque o
direito romano tinha previamente criado as condições de um
reconhecimento social e institucional dos direitos, das liberdades e da
perenidade da pessoa.

3. O personalismo da literatura e da escultura latinas

Encontramos numerosos indícios desta verdadeira metamorfose de


civilização na literatura e na arte romanas.
Não há dúvida que as obras dos grandes escritores latinos têm uma
tonalidade humanista que as demarca claramente da das obras gregas um
pouco anteriores. Pensemos na diferença que existe entre o universo
social das Leis de Platão e os que são retratados na filosofia e no
pensamento político de um Cícero ou de um Séneca, na poesia de um
Virgílio ou de um Horácio, na história de um Tácito, no Satiricon, etc.
Estamos noutra civilização, bastante mais próxima da dos europeus
modernos do que a civilização grega: os autores latinos vivem num
mundo em que a pessoa humana individual dispõe de um espaço social
institucionalizado, propício ao desenvolvimento de destinos e psicologias
singulares. Nas sátiras de Horácio ou nas de Juvenal, o universo é o da
“vida privada”, o qual preenche, em geral, toda a cena. A vida pública de
Roma não está presente senão em segundo plano. A política, que era
ainda para Aristóteles o horizonte último da virtude humana, o padrão a
que o cidadão deveria referir a sua vida, tende a ser apenas um cenário
ou um contexto. O olhar incide no ego, nos projectos, nas suas relações
com os outros egos, numa interpersonalidade que não é uma fusão no
grupo, num estar-junto que, portanto, já não é de tipo colectivista, holista
ou “tribal”, mas deixa subsistir plenamente o indivíduo e a sua liberdade.
Igualmente notória é a diferença existente entre as esculturas grega
e romana. A primeira apresenta personagens arquetípicas, quase
anónimas (o kouros e a koré, o auriga de Delfos), a segunda valoriza a
singularidade absoluta de cada rosto, esculpe cabeças perfeitamente
individualizadas, reconhecíveis entre mil, com as suas perfeições, mas
também com os seus defeitos (rugas, cicatrizes, calvície, etc.). As
estátuas romanas são retratos: podemos visitar os museus romanos para
nos convencermos disso(5). Será necessário aguardar depois a pintura
flamenga do Renascimento para voltar a encontrar a arte do retrato, que
não é concebível noutro lado que não seja numa sociedade que reconheça
a existência e a plena legitimidade da vida privada dos indivíduos(6).
No desenvolvimento deste humanismo ocidental, o cristianismo
terá, por certo, um papel fundamental, mediante a valorização da pessoa
humana individual, moralmente responsável, criada e querida por Deus
na sua singularidade, conservando esta singularidade na própria
eternidade. Mas podemos pensar, precisamente, que o judeo-cristianismo
nunca teria podido conferir este valor teológico à pessoa, se esta religião
não se tivesse desenvolvido numa sociedade que já tinha valorizado o
ego(7).
Concluamos que a invenção do humanismo é originalmente
romana. Não existe humanismo sem direito privado e protecção jurídica
da propriedade. Foi este progresso trazido por Roma ao direito que fez
com que a humanidade saísse definitivamente do tribalismo. O Ocidente
fará sua esta conquista, para além da do civismo grego. O Oriente irá
ignorá-la.

Notas

(1) Cf., por exemplo, Remi Brague, La voie romaine, Paris, Gallimard, 1999. O
autor atribui a Roma, na história espiritual e intelectual do Ocidente, o estatuto
de um simples intermediário que soube transmitir à Europa as duas inovações
verdadeiras e substanciais que são a Revelação cristã e a ciência grega. Esta
visão das coisas não nos parece completa. Há um contributo específico de
Roma, o direito, e este contributo é substancial. Sem ele, o Ocidente seria
diferente do que é.
(2) Retiramos as nossas informações das obras clássicas de Paul-Frédéric Girard,
Manuel élémentaire de droit romain (1895), reed. por Jean-Philippe Lévy,
Paris, Dalloz, 2003; Robert Villers, Rome et le droit prive, Paris, Albin Michel,
col. L’évolution de l’humanité, 1977; Jean Gaudemet, Les institutions de
l’Antiquité, Paris, Montchrestien, 3a ed., 1991; Michel Humbert, Institutions
politiques et sociales de 1’Antiquitê, Paris, Dalloz, 4a ed., 1991.
(3) Houve certamente influência do direito romano-bizantino sobre o direito
muçulmano no plano técnico. Todavia, a letra do Alcorão e a suna prevaleciam
substantivamente neste último direito e, para além disso, o direito romano
supunha um quadro cívico que a teocracia muçulmana não proporcionava.
(4) Cf. Cícero, Dos Deveres, I, XXX-XXXIII [Lisboa, Edições 70, 2000].
(5) Em particular, o do Vaticano, mas também os do Capitólio e do Palatino.
(6) Portanto, atribui-se erradamente a invenção do retrato aos Flamengos. Estes
foram apenas os seus reinventores. É um lugar comum relacionar esta
transformação artística dos séculos XVI e XVII com a aparição e os sucessos
sociais crescentes da “burguesia” e da economia capitalista. Mas podemos
também dizer que os Romanos eram já burgueses em algumas das suas
características e em certo grau e que a sua economia era já capitalista em alguns
aspectos (ver a este propósito Yves Renouard, Les hommes d’affaires italiens au
Moyen Age, Paris, Armand Colin, 1968; o princípio do livro é dedicado à
economia antiga).
(7) Acrescentemos, aliás, a este processo uma peça curiosa. Sabemos que os Padres
da Igreja levaram quatro séculos a construir uma cristologia e uma teologia da
Trindade. As soluções finalmente propostas - Deus é uno em três “pessoas” e
Cristo possui duas naturezas, a divina e a humana, mas é uma única “pessoa” –
foram afinal um contributo dos teólogos de língua latina. Pensamos que tal
ocorreu precisamente porque dispunham da noção de “pessoa”. Os Gregos não
dispunham senão da noção de “hipóstase”, que era problemática, porque parecia
implicar que cada hipóstase era uma substância, uma ousia: era difícil, então,
conceber três “hipóstases” divinas que não fossem, por isso mesmo, três deuses
diferentes. É verdade que o termo prosopon existia em grego como mesmo
sentido de persona, máscara-porta-voz usada pelos actores no teatro para
representar uma personagem. Mas é de crer que a palavra grega tivesse menos
densidade humana e social do que a latina. O prosopon era entendido,
precisamente, apenas como uma máscara e o uso desta palavra para designar o
Pai, o Filho e o Espírito Santo seria pois suspeito de modalismo ou de
sabelianismo (doutrina segundo a qual é o mesmo ser divino que aparece em
três “modos” diferentes, como um mesmo actor pode usar sucessivamente
diversas máscaras.) Ora, o sabelianismo fora condenado logo na origem: o Pai,
o Filho e o Espírito possuem uma individualidade irredutível. Daí o interesse da
palavra e do conceito de “pessoa” proposto na fórmula de Tertuliano, “três
Pessoas, uma só substância”, retomada pelos outros Padres latinos, Santo
Hilário de Poitiers, Vitorino e Santo Ambrósio. Sabemos que a ortodoxia
trinitária foi estabelecida, por fim, pelo Concílio de Constantinopla (381) e que
os autores das fórmulas decisivas adoptadas neste concílio foram os Padres
capadócios, gregos, portanto. Todavia, eles não terão feito mais do que dar aos
termos gregos um sentido idêntico ao do das palavras latinas utilizadas pelos
teólogos da parte ocidental do Império. Assim, sem o ego romano não há
pessoas divinas cristãs. Apesar de os cristãos pensarem ser apenas devedores à
Revelação bíblica em matéria de teologia, parece que ficam a dever a forma
acabada da teologia da Trindade às criações do direito privado romano, que,
como vimos, não tinham apenas alcance social, mas civilizacional. O Espírito
sopra onde quer.

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