2 - A cidade dos sábios_cap01

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Dados Intemacionais de Catalogação na Publicação(CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Baptista, Luas Antonio


A cidade dos sábios/ Leis Antonio dos SantosBaptista--
São Paulo : Summus, 1999

Bibliografia.
ISBN 85-323-06764

1. Cidadania 2. Psicologia social 3 Urbanismo


Aspectossociais 1. Título.

99-1409 CDD-302

Índices para catálogo sistemático


1. Psicologia social 302

s uininu '0
'\
A CIDADE DOS SÁBIOS
Repelões sobre a dinâmica social tws grandes cidades
Copyright © 1999 by Luís Antonio dosSantos Baptista

Capa:
Teresa Yamashita

Editoração etetrânka e fotolitos


JOIN Editoração Eletrõnica

Aos meuspais.
Proibida a reprodução total ou parcial Mana de Lourdes e Waldemiro
deste livro, por qualquer meio e sistema, a Clea e Beto
sem o prévio consentimento da Editora.

Direitos reservados por Agradeço aos amigos que, direta ou indiretamente,


SUMMUS EDITORIAL LTDA.
Rua Cardoso de Almeida, 1287 participaram da história desta publicação, e em
05013-001 São Paulo,SP especial a Julio Groppa Aquino.
Telefone(O11) 3872-3322
Caixa Postal62.505 CEP 01214-970
http://www.summus.com.br
e mail: editor@summus.com.br

Impresso no Brasil
Sumário

Apresen ração 9

A Escuta Surda 13

A Escuta Clínica Escuta a Respiração Presa nas Situações


de Terror . 13
A Escuta Clínica Vai ao Cinema? 14
A Escuta Clínica Escuta o Som do Dedo Decepado? 16
A Escuta Clínica Prefere Arte Culta ou Arte Popular? 19
A Escuta Clínica Escuta o Ar Contaminado? 24
A Escuta Clínica Escuta a Voz do Trapezista?. . 27
O Que a Escuta Clínica Não Escuta? . 29

A Solidão e a Inércia dos Discursos Psl 33

A Atroz, o Padre e a Psicanalista -- os Amoladores


de Facas . 45

A Cidade dos Sábios 51

O Tempo dos Anjos Gordos 52


A Revolução das Almas 59
O Encontro dos Reis . 67

histórias do Lixo Urbano 97

A Reforma Psiquiátrica e a Presença da Cidade 115

Bibliogra$a 129

7
Apresentação
Falam por mim os abandonados de justiça, os simples de coração
os páúas, os falidos, os mutilados, os de$cientes, os recalcados,
os oprimidos, os solitários, os indecisos, os tÍdcos, os cismarentos
os irresponsáveis,os pueris, os cariciosas, os !oücos e os patéticos.
Cardos Drummond de Andrade
:Cantoao Homem do Povo Charlie Chaplin'

Estes, de diferentes maneiras, são ensaios sobre a cidade e tudo


o que nela vive e mesmo escondendo-se se descobre; tudo o que nela
vibra e dela faz parte, mesmo quando recusado pelos olhares dos
bem-nascidos; tudo o que nela deixa marca: o suor e o trabalho, o
desespero e a lágrima, a tragédia e o sangue. Mesmo que ninguém
saiba ou queira saber: uma negra velha e um contador de histórias,
J
uma nordestinae uma escritora, em algum lugar se encontram na
cidade. Esses encontros e palavras, ignorados por seus protagonistas,
reafirmam a força da desordem viva e oculta, que ordem alguma,
alheia a ela, pode sufocar. Uma cidade que se pretendedeâlnidae
disposta segundo as linhas e o compasso da ciência e do poder,
revela, na precariedade do cotidiano, a teimosia das existênciasque a
racionalidade capitalista preferiria ignorar ou negar. A tenacidade
com que voltam a aparecer desagrada à ordem burguesa que deve
manter organizado o espaço público.
A proposta original desse livro é o olhar psicológico despido da
indiferença com que se habituou ou se mascarou através das lentes
neutras da ciência. Estes ensaios desejam despertar o desatento psicó-
logo. Revelam facas e as mãos (que se querem inocentes e cheias de
boa vontade) atrás das facas. Diz Luis Antonio:

O fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos, possui


alguns aliados, agentes sem rosto que preparam o solo para estes
sinistros alas. Sem cara ou personalidadepodem ser encontrados
em discursos, textos, falas, modos de viver, modos de pensar que
circulam entre famílias, jornalistas, prefeitos, artistas, padres,
psicanalistas etc. Destituídos de aparente crueldade, tais aliados

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amolam a faca e enfraquecem a vítima, reduzindo-a a pobre cialista? Não será necessário recorrer a outros saberes, situar a cidade
coitado, cúmplice do ato, carentede cuidado, fraco e estranho a e os homens que a habitam, contar histórias no escorrer lento da
nós, estranho a uma condição humana plenamenteviva. História, incluir os homens no mapa mais geral do Tempo, datar-lhes
as circunstâncias? Pode a psicologia desinteressar-sedos enigmas
E sobre as vítimas que os ensaios vão falar longamente. Recu- que habitam a filosofia? Não há o que aprendercom a antropologiae
sando-se a transfomlá-las em números, dentro de secas estatísticas a riqueza cultural que seus Outros nos desvendam? A palavra de Luis
urbanas, Luas Antonio escolhe a palavra, o mais humano de todos os Antonio nos leva a esses encontros, demonstra sua importância deci-
artifícios, para devolver-lhes de pleno direito o seu lugar no mundo siva. Na companhia de todos é mais fácil habitar o nosso tempo, criar
da cidade e da História. E ele sabe usar essa palavra como um instru- nossos conhecimentos, pesquisar nossa gente.
mento de precisão. Mas é na literatura e no cinema que Luis Antonio descobre seus
Há perguntasrondando o tempo todo, espreitandodetrás dos pares. Os artistas, sensíveis às nuances da alma, oferecem respostas
olhos do autor, cobrando respostas que nos aproximem do Outro. mais humanas e mais radicais. A arte é mais arguta do que algumas
Podemos ainda fazer esforço para escuta-las e entender sobre o que teorias psicológicas. Descobrimos estranhasafinidades, como cor-
estão falando? rentezas profundas, que carregam o sentido entre o artista e os seres
Será possível olhar as pessoas, sentir o cheiro das gentes, mo- desprezados pelo mundo da riqueza, da mercadoria e do consumo:
lhar-se com as águas da pobreza das ruas e ainda assim estar falando escravos modernos, crianças de rua, loucos. A ciência circunscreve a
de psicologia? sua anomtalidade, define-os, enquadra-os na diferença. Explica como
Será possível levantar os olhos e ver/saberquem está à nossa e por que não são como deveriam ser. A ciência, sem o desdar, dá
frente? Podemos, num ato voluntário de reconhecimento,aproxi armas aos amoladoresde facas. A arte, ao contrário, acolhe-osem
mania-nos da humanidade que procura se furtar aos olhares cane- seu regaço, oferece-lhes agasalho, conforta suas tristezas e entorna
lados de desprezo ou indiferença? sobre eles a luz da beleza para que os ilumine um instante,precisan-
Com quem habitamos as praças e as largas avenidas da cidade, do seus contomos.
mas também seus becos e ruas? Quem são, como são os nossos Luis Antonio propõe que essa seja também uma tarefa para a
companheiros de jornada? psicologia, "descoisificar a diferença" ou, ainda, "desmanchar uma
E, também, não menos importante, como desvelar aos jovens dura e mítica diferença". Aproximando ciência e arte, permitindoque
que vão ser psicólogos,as armadilhasda ciência? Como ensina-losa o poder explicativo de uma revele o que a outraoculta, os ensaios
emprestaro melhor de seus ouvidos e de seus olhos ao ruído e às aprofundam temas psicológicos, invertem, muitas vezes, o sentido
fomlas que nos vêm da vida? Como ensina-los a capturar o gesto e o gasto dos conceitos, revifica-os.
sentido do gesto do Outro à sua frente? Como mantê-los aptos a O livro tambémpode ser um conviteao esquecidovalor da
enfrentar a indiferença que parece o fruto final da fomlação especia- simplicidade. Por que não sentar à beira-mar, na praia escurecida dos
lizada, transfomlado-acriativamente?Será possível, como sugere limites da cidade, e aprenderouvindo a velha escrava?Será que as
Luis Antonio, citandoBasaglia: suas histórias de homens e mulheres, da cidade e da servidão, não
nos ajudam a encontrar o bom caminho?
[...] positivar e politizar a criatividade, ressaltando estratégiasde
enfrentamentoao silêncio e à indiferença por meio da interven Svtvia Laser de Metia
ção aparentemente banal? Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Como a psicologia tem respondido, tradicionalmente, a tantas


perguntas e desafios? Não será necessário romper a solidão do espe

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A Escuta Surda
Lutero venceu ejetivamente a sewidão pela devoção, porque
a substituiupela servidão da convicção. Acabou com a fé na
autoridade, porque restaurou a autoridade da jé. Converteu
sacerdotes em leigos, porque tinha conveNido leigos em sa-
cerdotes. Libertou o Homem da religiosidade extemm,porque
instituiu a religiosidade no interior do Homem. Emancipou o
corpo de cadeias porque carregou de cadeias o coração.
Karl Man, .4 questão jzidalca

Em Psicologia do Trabalho a itttewençãoé mais direta. Com


o cliente é diferente, existe a escuta clínica. Você escuta para
depois intervir... O psicólogo é um intelectual, na medida em
que ete está tentando entender o indivíduo...
Estagiáriado curso de Psicologia, 1987

A ESCUTA CÉNICA ESCUTA A RESPIRAÇÃO PRESA


NAS SITUAÇÕES DE TERROR

Um homem negro, de uns trinta e poucos anos, vestindo unifor-


me policial, apontauma arma para o grupo de comentaristasde 'rv,
enquanto encosta a outra arma em sua orelha. Em prantos e desespe-
rado, segurando nervosamente as ambas, acusa as autoridades gover-
namentais de não cumprimento do aumento salarial. Os comentaristas,
perplexos, tentam acalma-lo. Ameaçando disparar as armas, pede
para falar. Seus olhos transmitemmedo e ódio. Apavorados, os co-
mentaristasnão sabem para onde olhar, o que fazer. Olham para a
câmera e para o homem pedindocalma. O policial, com voz trêmula,
grita para os técnicos que não tirem a transmissão do ar. O revólver
continua encostado à orelha, e a ameaça de assassinato e suicídio
mistura-se ao clima de pavor e perplexidade dentro do estúdio. Cho-
rando convulsivamente,o homem fala dos filhos, da mulher e do
salário que não dá para pagar as despesas. Depois de alguns longos
minutos, os comentaristas conseguem acalma-lo. Sentado em frente
às câmeras, junto dos apresentadores de um programa esportivo, já

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mais calmo e sem as armas, ele consegue expor suas reivindicações. toma-se tenso, as mãos e o corpo parecem pesar; gata feito um lobo
Mas eis que dois homens que estavam atrás do cenário entram em cena e tenta se aproximar da porta de casa. A mulher escuta os gritos e
e o seguram violentamente. O homem negro sai de cena diretamente entra em pânico. Reconhece os gritos de lobo do marido e tenta se
para a prisão. Aliviados, os comentaristasdespedem-se.Entram os defender das pedras jogadas por ele, em seu estranho transe. Apavo-
comerciais, e termina o episódio. rada, fecha a porta e a pequenajanela. Lá fora, ele corre em volta da
Essa cena, que durou alguns minutos, fez com que os telespecta- casa feito fera acuada. Transtomado, grita muito, tendocomo cenário
dores e participantes do estúdio da 'rv Cultura de Santa Catarina, em a noite misteriosa nas montanhasda ilha italiana.
1986, assistissem à invasão de um personagem desesperado que pedia A noite vai passando e chega a manhã. Ela, sem dormir, nervosa
para falar. e perplexa, espera por explicações. Ele, cansado e sangrando na
No dia seguinte, os jomais noticiaram o seguinte: um policial, testa, parece profundamenteabatido. A bola de prata trouxera-lhe
aparentementebêbado e desequilibrado, invadiu um programa de es- mais um problema. A lua cheia trouxera uma grande surpresa para a
portesde TV. A cena, vista por milhõesde telespectadorescom a primeira noite da noiva da pequena aldeia. Nervosa, colocou o xale e
respiração presa, foi traduzida em um ato desesperado de um indiví- nem esperou pelas explicações. Correu, sem olhar para trás, em
duo mentalmenteenfermo. Fabricou-se o indivíduo. direção à aldeia.
Na aldeia, uma única praça, circular, semelhanteà lua. As casas,
A ESCUTA CÉNICA VAI AO CINEMA? dispostas em círculo, são cortadas por uma única entrada. Passados
alguns dias, sozinho, cansado de esperar e envergonhado, resolve
explicar o seu segredo.
Um casal de camponeses recém-casados parte da pequena aldeia
Sai de casa pela manhãe inicia a caminhada. Quando chega a
nas montanhaspara a nova casa de pedras. A casa possui um grande poucos metros da única entrada que dá na praça, todas as janelas e
salão onde a cama do casal e uma mesa estão dispostas. Não possui portas se fecham. Seu rosto fica mais triste ainda, mas sente-seforta-
quartos. SÓ o grande espaço e a cozinha. Chegam pela manhã, após lecido pela disposição de confessar seu segredo. Quer reconquistar a
trilharamuma boa caminhada.Ao chegar, ele se dirige ao quintal mu[her e a confiança da a]deia. Já na praça, olha para os lados e
para cortar lenha, e ela começa a varrer o chão. O tempo vai pas- constata que está completamente só. Ilusão. Ele sabe que a praça tem
sando e a noite se aproxima. O casamento não parece trazer muitas olhos e ouvidos, e sabe também que todos esperam por explicações.
alegrias à mulher. Apaixonada pelo primo, teve seus encontros amo- A comunidade da pequena ilha incrustada nas montanhas, atenta e
rosos proibidospela família. A mãe arrumou-lheum bom partido, e curiosa, espera desvendar o mistério do casamento interrompido pela
o casamento realizou-se. Aborrecida e riste, varre rapidamente a lua cheia.
casa. O marido parece preocupado,e observa a noite que cai. Há Parado no centro da praça, ele pede para que todos o escutem.
algumas horas demonstrava estar feliz cortando lenha. A noite, porém, Percebe-se no ar um clima de julgamento. Nesse momento, uma porta
parece-lhetrazer mistérios. se abre e alguém entrega-lheuma cadeira, para que ele se sente e
A beleza da bola de prata sobre a montanha não o encanta. Ele fale. Sentado no centro da praça, sozinho, observado pelos olhares
pressente, pegando os troncos que cortou, que a noite de núpcias terá curiosos e sentindo a respiração que sai dos quatro cantos, começa a
a companhia de uma perigosa feiticeira, a lua cheia. contar uma curiosa história.
A lua cheia da primeira noite ilumina a pequena casa de pedra. A mãe do marido abandonadoe suspeitode ser lobisomemtra-
Nesse momento, o camponês começa a sentir coisas estranhas e se balhava no campo colhendo frutas. Todos os dias saía bem cedo para
contorce; sente que alguma coisa está para acontecer. o trabalho, levando em uma cesta seu filho de poucos meses. En-
A noite cai por inteira. O homem rola convulsivamente no chão, quanto trabalhava na colheita, o filho a esperava na cesta, rodeado de
contorce-se e grita sons estranhos e não humanos. Seu rosto muda, árvores, olhando para o céu. Certo dia, a mãe trabalhou tanto que se
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esqueceu das horas e do filho. A noite caiu, mas continuou trabalhan- cadas e muita miséria. Lá, localiza-se uma fábrica que produz tubos,
do. Segundo o relato do marido abandonado,a lua aproximou-se dele operários sem dedos e surdos.'
e o enfeitiçou. Deitado na cama de palha, de frente para a grande bola A fábrica possui 260 operários, que produzem tubos de diferen-
de prata, foi encantadopor ela e nunca mais conseguiu libertar-se do tes tamanhos e larguras. Esses tubos são feitos com chapas de espes-
seu feitiço. suras variadas. Mesquita, município de Nova lguaçu, é um baixo
Temlinada a história, uma porta se abre e surge a sogra. Satisfeita violento, e dentro da fábrica não é muito diferente.
com o relato, a comunidade o absolve, e as portas e janelas se abrem.
A praça respira aliviada e as pessoasvoltam a circular. A sogra chama Quando a tesoura corta a chapa, faz um barulho esüidente e
o marido abandonadopara conversarem.Ninguém mais o teme. Ob- ensurdecedor. O operador e o ajudante ficam junto dela. Seus
servado pela mulher, ainda desconfiada, os três conversam e discu- ouvidos são para que ela funcione regularmente, e sem estragar
tem a melhor maneira de resolver o problema. O "Male de Luna' o material.Por isso, junto da lâmina,é só por meio de sinais
será agora de todos. manuais que o ajudante consegue indicar ao operador para au-
A mulher, com a ajuda do primo e da mãe, terá a esperada oportu- mentar ou reduzir a velocidade da máquina.
nidade nas noites de lua cheia. Ela será sua cúmplice. Enquanto o Na tesouranão há só ruído ensurdecedor.O trabalho mais pesa-
marido estiver gritando e se contorcendono quintal, ela e o primo do é o do servente.Ele desentortaa pontada chapapara ela
terão a farta cama. A mulher conta nervosa os minutos para a chegada passar na navalha. Para isso, dá entre dez e quinze marretadas
da noite. Mas, em uma dessas noites, o primo não consegue concreti-
nessa ponta. A marreta pesa oito quilos. Se forem dez bobinas,
zar o amor proibido. A lua cheia tambémo enlíistece e o leva para
serão, no mínimo, 150 marretadas por dia, ou 5.400 por mês. Há
junto do marido traído. A mulher se imita, enquanto a mãe tenta
recuperar-se da noite de terror presenciada. Amanhece o dia. O cam-
alguns anos e]e exerce esse traba]ho. [...] Chama a atenção o fato
ponês lenhador treme ainda, batendo a cabeça em uma pedra. O de o médico da empresa pedir o afastamento dele daquele traba-
primo, solidário, abraça-o e tenta protegê-lo com a mão. Limpa o lho, por apresentar problemas cardíacos, ineversíveis. Em condi-
sanguede sua testa e som com cal.anhopara o amigo. O sol surge ções ambientais de trabalho agressivas, danosas e lesivas, esse
mais brilhantedo que nunca. O primo desistedos namoros escondi- servente tem sua força de trabalho desqualiíicada e desvaloriza-
dos, im.tando ainda mais a noiva assanhada. O "Mala de Luna" enfei- da. Ele passa a maior parte de seu tempotrabalhandoao lado da
tiçou a todos. A solidariedade dos personagens do filme .K2zos*encantou tesoura,junto a um dos mais altos índices de ruído de toda a
a atenta platéia naquela tarde de inverno. Na ilha incrustada nas fábrica e sem qua]quer proteção auricu]ar. [...]2
montanhas, a lua e os homens apresentavam ao público o encanta-
mento da solidariedade. O "Male de Luna" não fabricou o indivíduo. Para alívio dos trabalhadores,existe o ambulatóriona fábrica.
Parentes, amigos e vizinhos o freqüentam. A fábrica abre suas portas
para a comunidade.A populaçãode Mesquita, cujo atendimentode
A ESCUTA CÉNICA ESCUTA O SOM DO DEDO DECEPADO? saúde é quase inexistente, tem no patemal ambulatório sua saída. E
de graça. Mas apesar do caridoso atendimento, os operários não vêem
O baixo de Mesquitabica na Baixada Fluminense,local onde com bons olhos o ambulatório. A medicina fabril pode afasta-los da
centenas de pessoas foram assassinadas pela polícia do Rio de Ja- produçãopor causa da máquina. tJlceras, dores de ouvido, tremores
neiro, entre março e maio de 1987, segundo dados de uma revista nas mãos, tudo isso é levado para casa para evitar o desemprego. O
semanal. Mesquita é um baço pobre, com muitas valas, ruas esbura- paternal ambulatório vigia, faz caridade, cuida da saúde da fábrica,
mas não é conülável para alguns de seus clientes em potencial. Falando
+ Filme dos irmãos Tavianni, baseadoem contos de Luigi Pirandello. em doença, um operador descreve o temor em trabalhar na coniíicação:

16 17
Tem fantasma aí dentro. Eu não venho aqui para esses lados da garante-lhesa vida por meio de capacetes,luvas etc. A fábrica preo-
conificação. E onde morreu aquele cara, de coração. Tem uma cupa-se com as individualidades no trabalho. Mas sem responsabilidade,
moça que anda aí dentro. E um vulto que aparece de repente. não há proteção. O trabalhadortem de assinar um documentoque
Passa assim perto da gente, e logo desaparece. O pessoal já viu aüuma que recebeu o material dos Epi, e que é de sua inteira respon-
ela andando numa porção de lugar aí dentro da fábrica, numa sabilidade a proteção contra acidentes. Lutero talvez freqüente a Bai-
xada Fluminense.
porção de seção. [...]3

A morte ronda a Baixada. O fantasma amedrontamas que as tesou- A tecnologia empregada nas indústrias no Brasil, sda a proUetada
ras. Transformar interiores em exteriores,fazer do imaginário algo aqui ou a importada -- talvez mais esta do que a outra --, costuma
real sem a mediação do pensamento, são os passos pilhados pela deixar, sempre, em segundo plano -- ou em plano nenhum -- os
medicina fabril. Atenta à caridade, cria fantasmas. Aliás, antigos e componentes técnicos que, se fossem incorporados à máquina,
eficientes fantasmas. Antigas também são as peças que utilizam. En- protegeriam mais o corpo do trabalhador, deixando-o menos ex-
gatilhadas e caindo aos pedaços, o capital solicita-lhe criatividade. posto às agressões da máquina. Isso explica por que é dada tão
Além da família que penetra no ambulatório, propiciando um clima grande importância aos EPI. Cabe aqui, então, a pergunta: em vez
íntimo, a relação homem-máquina estimula o espírito familiar. Cada de obrigar o trabalhadora usar um desconfortávele incomodo
operário conhece os truques de seus instrumentos. A intimidade per- protetor de ouvido, por que não colocar um abafador de ruído na
mite-lhes esquecer que estão trabalhando, até o momento em que máquina? E se a telha cair na cabeça do trabalhador, ou se ele
surge a mutilação. Nesses casos, o ambulatório presta-lhes ajuda. A perder um dedo na serra, mas estiver usando capaceteou luva? E
fábrica também produz solidariedade. Os mais antigos ensinam aos se no registro -- ou CA estiver escrito que à hora do acidente
mais novos o que lhes interessa, os ossos e truques do ofício: ele estava com os Epl? Nesse caso, a empresa está juridicamente
correta, ou, noutros tentos, o trabalhador é que foi descuidado.
Um encan'egado, durante uma manutenção, dizia a um operador Noutros termos ainda: e]e que se cuidei [...]s
para cuidar-se, pois a peça que tinha nas mãos poderia machucá-
lo. Entretanto, a um outro operador também presente, e que o As máquinas continuam velhas e perigosas. O excesso de tubos
havia ajudado na retirada da mesma peça, ele não disse nada. E no pátio ameaça o desemprego. Entre dedos mutilados e relações
este último não tinha o dedo indicador, amputado por causa de mutiladas, a responsabilidade protege o trabalhador. A fábrica lute
um acidente de trabalho. [...]4 una, que substitui a servidão pela devoção, acredita e defende as
individualidades.A fábrica de Mesquita produz tubos e, funda-
A saúde fabril, contraditória e violenta, tem uma aliada: a pre- mentalmente, operário-indivíduo.
venção de acidentes de trabalho. Essa prevenção é feita por meio dos
EPI (Equipamentos de Produção Individual).
Segundo órgãos govemamentais, após a implantação dos EPI, os A ESCUTA CLÍNICA PREFERE ARTE CULTA
índices de acidente de trabalho baixaram. A ciência chegou à Baixa- 0U ARTE POPutAK?
da Fluminense. A morte agora é domiciliar.
Os operários de Mesquita, apesar das mutilações físicas, da im- Após algumas horas de entrevistas, o cansaço tomou conta do
potência sexual, dos tremores, da úlcera e de outras doenças, devem corpo. O café com creme no s/zoppi/zgcenfer ao lado do Departamento
ser gratos aos empresários. Eles têm psicólogo, ambulatório grátis de Psicologia era uma boa opção. Chegando lá, alucinações e sur-
para a família e para os vizinhos; ganham um litro de leite, quando presas aconteceram.O néon colorido cruzava lembranças sérias de
produzemmais em detemlinadasseções, e, aindapor cima, a fábrica depoimentospsí. A estagiária reclamava da instituição; falava que o

18 19
pacientedo Serviço de Profilaxia Aplicado (SPA) era fadado ao fra- maneira particular de ter senfimenfoshumanos sentimentos
casso, passando de mão em mão, que o tempo era curto para o aten- de piedade, de frfsreza e/c.[...]6
dimento,e que era um desrespeitoao indivíduo, uma falta de
sensibilidade. Essas frases dançavam no sãoppi/zg entre cores invasi- Febvre nos ilustra que de suscetibilidades
passamosa infe-
vas, mas em certo momento a última palavra chamou-me a atenção: rioridades, do ser moral ao ser psicológico; tendo em seus antepas-
sensibilidade.Essa palavra manteve-seimóvel como se fosse um sados a sensação -- perceptível e transparente-- a sensibilidade no
defeito na proUeçãode um filme. Entre lojas e letreiros, alucinei. Por século xvm diluiu-se em invisíveis intimismos. Mas neste século
alguns segundos vi essa palavra que, mesmo não dita nos depoimen- encontramos outra importante singularidade:
tos psí, impõe-se em climas e gestos, escrita em néon. Colorida e
forte. Pensei ser o nome de uma loja, mas logo percebi o equívoco Antes, a linguagemfilosófica e a linguagemcomum indicavam
provocado pelo excesso de trabalho. Ledo engano; a alucinação ten- tudo isso mediante a palavra "autoconsciência". SÓ é indivíduo
tava me dizer alguma coisa. Dizia que eu ainda trabalhava no s/zo- aquele que se diferencia a si mesmo dos interesses e pontos de
pping. Um trabalho psicótico que, impossibilitado de simbolizar, crê vista dos outros, faz-se substância de si mesmo, estabelececomo
na potência dos fragmentos de seus sonhos. Dizem os psicanalistas norma a auto preservação e o desenvolvimento próprio. E não é
que, ao simbolizar, o psicótico está a um passo da cura. O trabalho no mero acidente fortuito que só por volta do século xvm a palavra
s/zoppí/zgrealizava uma pré-cura, ou um processo de trabalho não "indivíduo" tenha passado a designar o homem singular, e que a
preocupado em curar-se. Os fragmentos não queriam dizer nada por própria coisa não sda muito mais antiga do que a palavra, dado
alguém,diziam apenasque possuíamalguma coisa a ser vista. A que só começou a existir nos alvores do Renascimento.'
fantasia tinha autonomia. Sensibilidade era néon. Material de forte
apelo visual, marcante, mas frágil como oljeto. Quebra fácil. Intri- Entretanto, os alvores do Renascimento criaram também o novo
gante coincidência. Com voz trêmula e emocionada, a estudante de artista e, principalmente, a arte laica. O indivíduo e a nova arte flo-
psicologia inadiava néon quando sentia pena do paciente.O que resceram em cúmplice aliança:
aprendiacom os textosclínicos era eleüicidade.A formação a fazia
brilhar.Mas com o néon. No Renascimento, a imagem do poder individualiza-se, laicizan-
Sentado,tomandocafé com creme, o livro de Lucien Febvre. do-se. O poder abstrato transforma-se no Príncipe. O retrato de
lido nos intervalosdos goles, quebrouo vidro e mostrouos cacos. A Lourenço de Média, ou de algum duque veneziano, mostra-nos o
história mais uma vez quebrou objetos e cortou ilusões. Dizia ele indivíduo, personalizado, que se converteu em poder. E o indiví-
no livro:
duo que encama a virtude... A partir do Renascimento,onde o
que predomina como gênero de pintura é o retrato, o poder é
Sensibilidade é uma palavra bastante antiga. Existe na língua, representado por símbolos e alegorias... A burguesia instala na
pelo menos, desde o começo do século xlv; o seu adjetivo, sen sociedade um poder político bastanteinstável para etemizar seu
cível, como acontece habitualmente,tinha-a precedido um pouco. poderio económico. A arte perde seus últimos vínculos com o
Ao longo de sua vida, como também acontece. sensibilidade sagrado. Toma-se cada vez mais individual e laica.8
carregou-se de diversos sentidos. Há os que são escritos, há os
mais latos e que, em certa medida, se podem localizar no tempo. Artistas e psicólogos têm na sensibilidade o motor de suas práti-
E assim que no século xvii a palavra parece designar sobretudo cas e identidades. A sensibilidade como dom individual apropria-se
uma certa suscetibilidade de ser humano às impressões de ordem de técnicas e teorias ofuscando sua materialidade.Ao incluí-la na
moral: fala-se entãomuito de sensibilidadeao verdadeiro.ao História, temos a oportunidadede desconfiarmos de sua pureza e
bem, ao prazer etc. No séctllo XVlll a palavra designa üma certa universalidade detectando seus agenciamentos. A materialidade desse

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conceito perante-nos retirar de cena corações e mentes protagonizan- Entretanto. a arte laica não se resume somente ao culto do indi-
do práticas e identidades. Remetendo-o à História, percebemos seu víduo. Com o advento do capitalismo, a arte perde o caráter sagrado
movimento entre homens, suas necessidades antagónicas e relações ao sacralizar o saber. A hegemonia política burguesa faz do conheci-
de poder. O artista, calicaturado em ser sensível, acima do bem e do mento artístico virtude e disciplina. A arte não tem mais a função figu-
mal, é desmontado por Pedrosa: rativa de reconhecimentoou de persuasão,mas de contemplaçãoa
um saber superior, ao qual só têm acesso os iniciados. Esses inicia-
A partir do Renascimento, a burguesianascentevai se transformando dos são os libertos da servidão do trabalho, o que marca, dessa forma,
na principal compradora de arte até que, em nosso século, toma- a divisão socioeconómica da arte em erudita ou popular, delimitando
se a única consumidorade uma arte nova que só os iniciados as relações de poder entre as classes. . .
sabem "apreciar". Ser iniciado, por outro lado, implica uma pra- Das ruas, praças e igrejas, passamos para outro espaço. O lugar
xis que requer um tempo do qual dispõem aqueles que estão sagrado da arte como disciplina agora é o museu. A virtude e os
liberados da servidão do trabalho e podem desfrutar da ociosida- intimismos fazem desse espaço o etemizador e guardião do universal
de... O Renascimento, como se sabe, criou as belas-artes burguês. A arte passa a ser a expressão da alma; e a sensibilidade, seu
pintura, escultura, arquitetura-- e as separou das artes que pas- instrumento. O 'artista tem prestígio por meio de sua sensibilidade.
saram a ser consideradas "menores". Áqz#elasera/?zo apanágio fundadaem interiorese criada por uma Razão invisível e potente:
dos grandescriadores, com direito a grandes biogra$as e à
convivência dos príncipes e dos nobres, sendo elevados à cate- O autoritarismo das elites vem, pela primeira vez, localizar-se
goria de membrosdas pro$ssões /íberais, os Da Vinci, os Mi- em um ponto preciso, graças ao qual se exerce "legitimamen-
te": localiza-se no saber... Sua invisibilidade nasce quando, em
chelangelo,os Rafael etc. e os outros, simples cortesãos, plebeus
das artes mecânicas. Essa separação social marcou a história da lugar de empregarem os recursos imediatos da dominação,
arte burguesa desde o Renascimento [...].9 passam a empregaro recurso sutil do prestígio do conheci-
mento [...].''
O artista, entre ares menores e belas-artes, perde sua pureza.
Entre divisões e alianças, é definido e reconhecido. O autor citado A invisibilidade citada por Chaui aproxima-se dos passos tra-
analisa a história da arte tendo como método o materialismo históri- çados por Pedrosa, quando este aponta para a encarnação .do poder
co. Pedrosa nos esclarece que nas sociedades pré-capitalistasas artes em virtude, ou prestígio, do conhecimento. Isto é, o poder tomando-
também defendiam os interesses dos dominantes. Da época dos egíp- se abstrato, destituído de um contexto em que possa ser reconhecido,
cios até fins da idade Média, os símbolos do poder estavam presentes estaria presente nas ideologias que justificam o Estado como elemen-
nas produções artísticas, de forma clara e transparente para serem to moderador ou neuualizador das contradições de classe. Com isso,
entendidos por toda a população, na medida em que centralizavam o lega a arte um instrumentos imbuído de uma racionalidade que allir-
poder e persuadiam a população à obediência e ao reconhecimento. ma e mantém um sistema, no qual o Estado transcende e se coloca à
parte, bem como o a].tintae a própria arte.
Desde a época egípcia até üms da Idade Média, as figuras aparecem O néon das lojas populares e sofisticadas dos shopp1ltgstem o
representadasem tamanhos diferentes, numa escala hierárquica, mesmo brilho. Durante' o dia, percebemos as diferenças. As sensibili-
que é uma forma simbólicade representara autoridadee de trans- dades psí são notumas e brilham, mas a noite nem sempre é edema.
mitir ao povo a idéia de poder. Vejam-se os retratos dos faraós, dos O sol. como a razão bélica, denuncia as diferenças e possui um brilho
funcionários da Suméria ou dos reis de Assur, ou da imagem de muito mais promissor. O brilho de néon aquece, mas não transforma.
Deus no código de Hamurábi, que é ainda maior do que a do rei; É o brilho do indivíduo. A sensibilidade solar não propicia à estagiá-
o maior tamanho expressa o maior poder [-.].iu ria sensibilidadeou preocupaçãopelo indivíduo. Essa forma de sen-
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22
sibilidade, imanentea uma razão crítica, fará com que ela entenda organização. Diferenciando-se das práticas médicas anteriores, que ti-
sua constituição e produção. O néon encontra-se nos s/zoppings,a ener- nham como objeto a doença, essa nova ciência fabrica a saúde.
gia solar pode estar presente em algumas usinas. Esse novo objeto tem como principal ameaça os hábitos que preci-
sam ser com.gidos. O ar contaminado originado da concentração urbana
e as questões sobre a higienização fundamentam o aspecto preventivo.
A ESCUTA CLÍNICA ESCUTA O AR CONTAMINADO?
As práticas médicas, além do cuidado com a cidade, entram em
outros espaços: hospitais, cemitérios, escolas, fábricas e famílias tam-
Rio de Janeiro, 1839. Nesta data foi construído o primeiro cemi- bém recebem sua atenção.A prevenção concretiza seu objetivo: fazer
tério fora do perímetro urbano. Defendido por sábios, filósofos e da ciência uma nova ordem social e política. O Estado-Ciência é o
fundamentalmente pela medicina social, a morte agora perde o seu porta-voz do gerenciamento da felicidade burguesa. Saúde e Ordem
sentido sagrado e contaminador; toma-se laica, medicalizada e "de- têm a mesma face. Ordem e Progresso têm a mesma bandeira.
mocrática' Padres e cientistas, diante das questões da saúde, entram em cho-
que. Os primeiros defendendoo espaço sagrado para enterrar seus
Igrejas e cemitérios eram os locais de enterros. Nas igrejas, os mortos. Os segundos, por meio da fundamentação científica, preocu-
cadávereseram sepultadospor todos os lados: no pavimento, pam-se com a contaminação do ar criada pelas precárias condições
pelas paredes, debaixo dos altares, mesmo por cima deles. SÓ os dos cemitérios dos desclassificadas e pecadores. Nessa celeuma entre
católicos podiam aí ser recebidos, sendo excluídos os gentios, os o poder laico e o sagrado, ganha o primeiro. O momento político é
hereges, os excomungados, os pecadores públicos [...].i2 outro. e dessa forma a morte se "democratiza:
A diferença entre classes e credos é diluída pela ciência. Agora
Aos desclassificados e pecadores, a cova rasa, corpos amontoa- todos são iguais no etemo descanso. O cemitério fora do perímetro
dos em valas. Aos cristãos, o contato com o sagrado, a comunhão. urbano é construído. a cidade não é contaminada e cada um tem o seu
Sobre essa nítida delimitação de poder e de grupos, age a nova ciên- espaço. Para cada corpo uma cova, a morte toma-os indivíduo. E a
cia, tendo no Estado sua imanência e constituição. A lei agora é fabricação dessa morte-indivíduo necessita de um novo intelectual para
substituída pela norma. O sagrado fiscalizador representado pela sua guarda:
[greja dá [ugar à raciona]idade científica. O visíve] toma-se invisível.
Deus, reis, senhores transformam-se em condutas, padrões e indivi- Assim eliminado como local de perigo, o cemitério adquire uma
dualidades. A magia do Estado converterá religiosos em especia- função moral. Ele deve ser local onde o "ÊHósofo", sem ser repeli-
listas, não da obediência, mas do cuidado. do pelo medonho aspecto da morte, possa meditar sobre o nada
da espécie humana, onde o homem soberbo e orgulhoso, reco-
Segundo Foucault, o século xlx assistiu à invasão progressiva do nhecendo o poder de Deus, vá receber lições de moral e de religião
espaço da lei pela tecnologia da nomia. O Estado moderno pro- e, assim, deixe de maltratar os seus seme]hantes. [-.] Existindo o
curou implantar seus interessesservindo-se, predominantemente, cemitério, as recordações dos homens, mais profundamentegra-
dos equipamentosde normalização,que são sempre inventados var-se-ão nas idéias e nas gerações futuras. [.-] Local onde esteja
para solucionar urgências políticas. [...] i3 presente a finitude do homem e sua individua]idade [...].14

A Medicina Social brasileira no século xix nasce juntamente O "homem" agora é o nada e também o indivíduo. Nada, por sua
com o fortalecimento do capitalismo. Objetivando a prevenção e a finitude perante um Deus onipotenteque Ihe confere a impotência da
higiene, essa nova ciência funda uma nova Ordem Social. A grande matéria e a imortalidade das idéias. Indivíduo, porque, vivo ou mor-
concentraçãourbana necessitado apoio do saber médico para sua to, esse produto do século xlx é o guardião de seu próprio corpo,
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cabendo ao Estado sua proteção e gerenciamento: Deus sai de cena A ESCUTA CLÍNICA ESCUTA A VOZ DO TRAPEZISTA?
como pane de sua carne. A comunhão concretizada nas paredes e nos
altares é preterida em favor do túmulo com nome e vida registrados. Passo aqui para a primeira pessoa. Proponho inicialmente a des-
Os deuses e o Estado distanciam-se, o indivíduo é seu próprio poder, crição de imagens que compõem o dia de um psicólogo, neste caso
mas diante desse risco de ser senhor de sua própria vida e morte ele 'eu", propositadamente com aspas.
precisará de ajuda. Cuidadosa e humanamentedoadas pela ciência e São 7 horas da manhã. Acordo, faço as coisas de rotina, e logo
pela moral, as normas sociais e cientíülcasdarão ao "homem" a segu- após me vejo em frente ao espelho. A barba precisa ser aparada, mas
rança burguesa. O cidadão-indivíduo interioriza-se e torna-se forte. alguma coisa me impede de fazê-lo. Observo rugas perto dos olhos,
Os filósofos não só divagam sobre a morte;eles também sepul- o mau humor da manhã transforma-se em sentimentos de estranheza
tam práticas sociais e políticas. O ato do sepultamentoevidencia a e abonecimento. Constato com a nova ruga sentimentos banais. Meu
procura da eternidade; como coveiros, delimitam espaços para que as corpo objetivo, o chamado concreto, é acompanhado por um corpo visi-
idéias sejam perpetuadas,para que o "homem" seja etemo. Os Hllóso- tante e organizador, criado em uma manhã de um setembro qualquer.
fos-coveiros, funcionários públicos do Estado, etemizarão o prestígio Em questões de segundos, corto com uma tesoura afiada essa cena
do saber.is A missão desses intelectuais será a de manutenção do ho que me incomoda.
mem sem aspas e do Estado sem materialidade, ou seja, um Estado- Abro o jomal na mesa do café e encontro nas páginas policiais
idéia, sem história e sem artimanhas. um relato curioso: José não-sei-o-quê,um indivíduo de idade tal, é
Para esses "sábios", o devir, a potênciae a paixão dos gueneiros procurado pela polícia. Acho curioso o termo indivíduo. Algumas
serão substituídospelo dever e pelo heroísmo dos soldados. Serão associações são feitas rapidamente. Lembro-me do texto lido em sala
imortais sem classe social, sem contradições e sem cotidianos; mas, de aula, onde discutíamos o indivíduo, a personalidadee o sujeito.
nas academias, bibliotecas e museus, sentiremos o cheiro de suas idéias:
Respeito, cuidado, polícia são palavras que rondam e provocam mi-
um perfume adocicado misturado ao mofo. Fil(5sofos, coveiros, mé- nhas memórias nesse instante dessa densa manhã. O cotidiano veste-
dicos, policiais, religiosos, ecologistas, são as várias faces de uma se de trapézio. Um fascinante e arriscado trapézio circense.
mesma moeda daquele Rio de Janeiro de 1839. Estou agora no hospital psiquiátrico onde trabalho como super-
O momento político agora é outro; temos outra m(»da com outras visor. O dia ensolaradoe as árvoresda redondezafazem partede
faces, mas a narrativa sobre a fabricação de Saúde e da Morte aponta-nos um irónico cenário nesse espaço de morte e violência. Recompo-
alguma coisa que ainda se mantém viva neste Brasil de 1987: o gemido nha-me, e começamos a supervisão. A estagiária inicia o relato de
das valas, o sussurrar dos filósofos e o silêncio de nossas práticas: uma entrevista diagnóstica. Segundos depois de escuta-la com aten-
Enterro esbarra em cadáveres e cenas de horror. Coveiros bêba- ção, as imagens do espelho voltam à cena. Diz a estagiária que a
paciente parece ser x, sente isso ou aquilo, pode ser caracterizada
dos tentando sepultar o corpo de Célia Dias de Paula no cemité- como algo etc., e no âlnal de alguns minutos termina o relato e
rio de Bongaba, em Piabetá, acabaram por desenterraruma cabeça, solicita a minha opinião. Meio desconcertado, não acho nada, mas
ainda com bobos nos cabelos, de uma mulher sepultadasem não comunico de imediato esses sentimentos. Murmuro algumas per-
caixão, e os acompanhantesdo enterro, que já tinham sido obri- guntas para ganhar tempo. Seguro firme o trapézio à busca de equilí-
gados a passar por crânios e ossos insepultos, viram passar brio, mas a ansiedadeé maior. Digo para a estudantede Psicologia
um cachorro com a mão de uma criança na boca [...].ió que estamos frente a frente a um enorme vazio. Por algum tempo
constatamos um certo mal-estar. Pergunto: "o que foi sentido na
O século xlx preocupou-secom o social. Entre valas, ares conta- relação com a paciente?" (pergunta clássica de supervisor). O senti-
minados e desclassiÊlcados,a Prevenção fabricou filósofos-coveiros e mento, o indivíduo, a relação tomam conta da cena. A estagiária
um modemo produto, o indivíduo. disserta sobre as vivências relacionais com grande calor, mas o vazio
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persiste, um irónico e promissor vazio. O trapezista mantém-se equi- múltiplos movimentos. O nascimento desses diálogos não tem como
librado na solidão do seu trapézio. fundadora a emoção ou a verdade. A coisa tensa e viva instalada é
O indivíduo-paciente relatado remete-me ao jomal lido no café. coisa mesmo, é matéria, fabricada por várias mãos e inconscientes.
O dançarino era o mesmo; a coreografia, outra. A polícia estava tam-
De pescadores ou arqueólogos de subjetividades e de intimismos,
bém presente na sala de supervisão, mas não a víamos.
transformamo-nos em metalúrgicos ou carpinteiros.
De surpresa,como um provocador, perguntopela cor dos olhos O trapézio e a dança sem coreografia não são símbolos nem
da paciente. Ela não se lembrava. O cheiro, o rosto, as mãos metáforas e sim possibilidades e provocações fundamentadas por uma
também esquecidos. Em alguns segundos, de um tempo cinematográ- estratégia política de vida que não acredita no solitário trabalho do
fico, várias cenas se misturaram: minhas rugas, o espelho, o jomal, profissional psí decifrador de símbolos, que nada mais é do que um
vários personagensarrombavam as portas daquilo que jurava ser mi- consumidor de matéria apodrecida pela idéia e pela inércia.
nha intimidade. O salto tira-me do solitário equilíbrio e, no espaço, As aspas propositais do início do texto ironizam a legalidade
percebo que a memória é um produto coletivo. A entrevista diagnós- deste eu confessor, intimista, protagonista das discussões psí. Cartas,
tica não se lembrava do rosto da paciente. biografias e confissões são estilos literários que marcaram épocas
Coloco minha câmera em ritmo lento e registro que o indivíduo passadas, épocas em que subjetividade e indivíduo se fundem, época
procurado no jomal com sua descrição detalhada não passava de uma
em que a loucura, o amor, entre outros, transfomlam-seem inte
grande invenção. No c/oie percebo negros, desempregados,brasi- rioridades, e a violência toma-se invisível.
leiros; percebo a História do Brasil narrada por vagabundos, loucos e As aspas propositais do início do texto ironizam também a lega-
desclassiHicados. Os autoritarismos criam sempre um ú/ligo olhar: o lidade deste eu relacional das práticas psí. Legalidade defensora e
olhar poético, o olhar clínico, o olhar feminino etc. Para cada ocasião
mantenedorado abismo entre subjetividade e política, caracterizando
ou para cada identidade, um específico olhar, que defenda temtórios, ambas como entidadesnaturalizadas,excludentes,desprovidas de his-
nomes e ordens. Cada coisa no seu devido lugar. Os autoritarismos tória. de materialidade ou, talvez, de um certo risco circense.
não gostam de cinema nem de trapézios. A entrevista diagnóstica fabricou o indivíduo.
O indivíduo, José, talvez não seja um nome, mas sim um jogo
extremamente perigoso aos olhares nomeados e sedentários. Para o
olhar e para as técnicas psí sedentárias não existe dança sem coreo- 0 QUK A ESCUTA CLÍNICA NÃ0 ESCUTAI
grafia, não existe a implicação do corpo e do espaço da bailarina. A
câmera fala por si mesma, e morde o vazio. Volto à estagiária e de Podemos ler ou usar essas seis pequenashistórias como peças
súbito alguma coisa tensa e viva se instala. Digo a ela que os instru- que podem se encaixar, ligar ou ser descartadas.Uma delas é a
mentos que utilizamos e que são vendidos no mercado para captar, peça-chave, coringa, desse jogo que tenta provocar uma certa escuta
compreender, observar, também produzem algo. Nossas técnicas são clínica. Qual?
fábricas. A entrevistadiagnósticanão se lembrava do rosto porque Grande parte dos alunos nas entrevistas mostrou preocupação pelo
fabricava corpos sem materialidadee sem lembrança. O corpo e o indivíduo. Na clínica, uns denunciaram o desrespeitoe a precariedade
rosto, que discutíamose que pensávamoscomo nosso e também da instituição para compreendê-lo. Outros, ansiosos por alternativas
narrado pela instituição, eram um empréstimocom juros altos do de intervenções voltadas ao social, tentaram integra-lo à "comunida-
manicómio, ou, em outras palavras, os fatos também são história, foto- de". A maioria definiu o intelectual que o curso produz, tendo como
grafias e não cadáveres. alvo esse objeto não identificado. Qual seria a peça-chave ou o corin-
A estagiária confessou que sentia medo da paciente. Agora co- ga do jogo das seis histórias?
meçávamos a falar, e no meu silêncio descobri que na solidão diante O lenhador saiu da casa de pedra, foi até a praça, sentou e explicou
do espelhoconvivi com vários pedaçosde grupose de corpos com aos quatro cantos seu mistério. As janelas e portas se abriram, e seu
28 29
segredo foi compartilhado por todos. A cadeira e a escuta da praça 13 COSTA, J. FKEiRE. Ordem nzédica e lzormajami/iar. Rio de Janeiro,
foram as regras. Com a sogra, o primo da esposa, a própria esposa e Graal, 1983, pp. 50-1.
os representantesda aldeia, conviveu e resolveu seu destino. O lenhador 14 MACHADO, RoBERTO ef. aJ., op. cír., p. 292.
jogou seu lance e transformou sua sina em lições de solidariedade. 15. '0 Estado capitalista arregimenta a produção da ciência que se toma
As técnicas e objetospsí, cristalizados em espaço privado, repre- assim uma ciência de Estado imbricada, em sua textura intrínseca,nos
sentam o destino de um pensamento e de uma época. Cabe-nos per- mecanismos de poder; o que é sabido, não vale tão-somentepara as
guntar se esses instrumentos produzem subjetividades que possam, chamadas 'ciências humanas'. Mais genericamente, esse Estado reparte
partindo de seus limites, ulüapassar a si mesmos gerando novas formas o trabalho intelectual por toda uma série de circuitos e redes, graças aos
de subjetividades e criando condições para que os objetos não quais ele se substitui à Igreja, submete-se e confirma o corpo de 'intelec-
identificados não impeçam a produção de uma nova sociedade. Uma tuais savalzrs', enquanto, na Idade Média, isso só existia de maneira protei-
forme. Os intelectuaiscomo corpo especializado e profissionalizado são
sociedade em que a lua cheia não paralise os enfeitiçadose assim
possamosdescobrir novas formas de solidariedade.Não a de "ir- construídos em sua funcionalização, mercenarização pelo Estado moder-
no. Esses intelectuais portadores do saber-ciência tomam-se funcionários
mãos", fundada em compactas identidades, no medo e na culpa que
(universidade, institutos, academias, diversas sociedades de estudo) do
assassinouíndios, negros e os que transgrediram a Ordem dos corpos Estado pelo próprio mecanismo que fez dos funcionários deste Estado
e dos abetos,mas uma solidariedadegeradapelas interpelaçõesdo inte[ectuais [...]". POULANTZAS, Nicos. O Esrízdo, o poder, o Sacia/esmo.
diverso e da indignação.
Rio de Janeiro, Graal, 1981, pp. 64-5.
16 Jorna/ do Brasa/,Rio de Janeiro, lg de julho de 1986.

NOTAS

1. Essa fábrica foi estudadapor André Laino na pesquisaSaúde e 7'rapa


//zo,realizada na Escola Nacional de Saúde Pública em 1982, Rio de
Janeiro (mimeo.).
2. LAICO, ANDRÉ. OP. cf/., P. 8. (sfc)
3. . OP. cír., P. 28. (sÍc)
4. . OP. cjf., P. 24. (síc)
5. . OP. clr., P. 24. (SJC)
6. FEBVKK, LucIEN. Combates pe/a //fsróHa, Lisboa, Editorial Presença,
1985, p. 218 (grifo nosso).
7. ADORNO, THEODOR, e HoRKHEIMER, MAX. 7'amas básicos da iocfo/o-
gfa. São Paulo, Cultrix, 1978,p. 52.
8. PEDROSA, MÁRio. "Arte culta e arte popular". In: Ár/e em Revista, ng 3,
São Paulo, 1980,p. 23.
9. . op. (/r., p. 24 (grifo nosso).
lO. . OP. cíf., P. 23.
1]. CHAUÍ, MARILENA. "Cultura do povo e autoritarismodas elites". In: .4
c /r ra do povo, Odênio Vale (org.), São Paulo, Cortez/Morais, 1979.
]2. MACHADO, RonERTO er. aZ., Z)arpz)anãoda /zorlzm,Rio de Janeiro,
Graal, 1978, pp. 288-9.

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