2 - A cidade dos sábios_cap01
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Bibliografia.
ISBN 85-323-06764
99-1409 CDD-302
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A CIDADE DOS SÁBIOS
Repelões sobre a dinâmica social tws grandes cidades
Copyright © 1999 by Luís Antonio dosSantos Baptista
Capa:
Teresa Yamashita
Aos meuspais.
Proibida a reprodução total ou parcial Mana de Lourdes e Waldemiro
deste livro, por qualquer meio e sistema, a Clea e Beto
sem o prévio consentimento da Editora.
Impresso no Brasil
Sumário
Apresen ração 9
A Escuta Surda 13
Bibliogra$a 129
7
Apresentação
Falam por mim os abandonados de justiça, os simples de coração
os páúas, os falidos, os mutilados, os de$cientes, os recalcados,
os oprimidos, os solitários, os indecisos, os tÍdcos, os cismarentos
os irresponsáveis,os pueris, os cariciosas, os !oücos e os patéticos.
Cardos Drummond de Andrade
:Cantoao Homem do Povo Charlie Chaplin'
9
amolam a faca e enfraquecem a vítima, reduzindo-a a pobre cialista? Não será necessário recorrer a outros saberes, situar a cidade
coitado, cúmplice do ato, carentede cuidado, fraco e estranho a e os homens que a habitam, contar histórias no escorrer lento da
nós, estranho a uma condição humana plenamenteviva. História, incluir os homens no mapa mais geral do Tempo, datar-lhes
as circunstâncias? Pode a psicologia desinteressar-sedos enigmas
E sobre as vítimas que os ensaios vão falar longamente. Recu- que habitam a filosofia? Não há o que aprendercom a antropologiae
sando-se a transfomlá-las em números, dentro de secas estatísticas a riqueza cultural que seus Outros nos desvendam? A palavra de Luis
urbanas, Luas Antonio escolhe a palavra, o mais humano de todos os Antonio nos leva a esses encontros, demonstra sua importância deci-
artifícios, para devolver-lhes de pleno direito o seu lugar no mundo siva. Na companhia de todos é mais fácil habitar o nosso tempo, criar
da cidade e da História. E ele sabe usar essa palavra como um instru- nossos conhecimentos, pesquisar nossa gente.
mento de precisão. Mas é na literatura e no cinema que Luis Antonio descobre seus
Há perguntasrondando o tempo todo, espreitandodetrás dos pares. Os artistas, sensíveis às nuances da alma, oferecem respostas
olhos do autor, cobrando respostas que nos aproximem do Outro. mais humanas e mais radicais. A arte é mais arguta do que algumas
Podemos ainda fazer esforço para escuta-las e entender sobre o que teorias psicológicas. Descobrimos estranhasafinidades, como cor-
estão falando? rentezas profundas, que carregam o sentido entre o artista e os seres
Será possível olhar as pessoas, sentir o cheiro das gentes, mo- desprezados pelo mundo da riqueza, da mercadoria e do consumo:
lhar-se com as águas da pobreza das ruas e ainda assim estar falando escravos modernos, crianças de rua, loucos. A ciência circunscreve a
de psicologia? sua anomtalidade, define-os, enquadra-os na diferença. Explica como
Será possível levantar os olhos e ver/saberquem está à nossa e por que não são como deveriam ser. A ciência, sem o desdar, dá
frente? Podemos, num ato voluntário de reconhecimento,aproxi armas aos amoladoresde facas. A arte, ao contrário, acolhe-osem
mania-nos da humanidade que procura se furtar aos olhares cane- seu regaço, oferece-lhes agasalho, conforta suas tristezas e entorna
lados de desprezo ou indiferença? sobre eles a luz da beleza para que os ilumine um instante,precisan-
Com quem habitamos as praças e as largas avenidas da cidade, do seus contomos.
mas também seus becos e ruas? Quem são, como são os nossos Luis Antonio propõe que essa seja também uma tarefa para a
companheiros de jornada? psicologia, "descoisificar a diferença" ou, ainda, "desmanchar uma
E, também, não menos importante, como desvelar aos jovens dura e mítica diferença". Aproximando ciência e arte, permitindoque
que vão ser psicólogos,as armadilhasda ciência? Como ensina-losa o poder explicativo de uma revele o que a outraoculta, os ensaios
emprestaro melhor de seus ouvidos e de seus olhos ao ruído e às aprofundam temas psicológicos, invertem, muitas vezes, o sentido
fomlas que nos vêm da vida? Como ensina-los a capturar o gesto e o gasto dos conceitos, revifica-os.
sentido do gesto do Outro à sua frente? Como mantê-los aptos a O livro tambémpode ser um conviteao esquecidovalor da
enfrentar a indiferença que parece o fruto final da fomlação especia- simplicidade. Por que não sentar à beira-mar, na praia escurecida dos
lizada, transfomlado-acriativamente?Será possível, como sugere limites da cidade, e aprenderouvindo a velha escrava?Será que as
Luis Antonio, citandoBasaglia: suas histórias de homens e mulheres, da cidade e da servidão, não
nos ajudam a encontrar o bom caminho?
[...] positivar e politizar a criatividade, ressaltando estratégiasde
enfrentamentoao silêncio e à indiferença por meio da interven Svtvia Laser de Metia
ção aparentemente banal? Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
10 11
A Escuta Surda
Lutero venceu ejetivamente a sewidão pela devoção, porque
a substituiupela servidão da convicção. Acabou com a fé na
autoridade, porque restaurou a autoridade da jé. Converteu
sacerdotes em leigos, porque tinha conveNido leigos em sa-
cerdotes. Libertou o Homem da religiosidade extemm,porque
instituiu a religiosidade no interior do Homem. Emancipou o
corpo de cadeias porque carregou de cadeias o coração.
Karl Man, .4 questão jzidalca
13
mais calmo e sem as armas, ele consegue expor suas reivindicações. toma-se tenso, as mãos e o corpo parecem pesar; gata feito um lobo
Mas eis que dois homens que estavam atrás do cenário entram em cena e tenta se aproximar da porta de casa. A mulher escuta os gritos e
e o seguram violentamente. O homem negro sai de cena diretamente entra em pânico. Reconhece os gritos de lobo do marido e tenta se
para a prisão. Aliviados, os comentaristasdespedem-se.Entram os defender das pedras jogadas por ele, em seu estranho transe. Apavo-
comerciais, e termina o episódio. rada, fecha a porta e a pequenajanela. Lá fora, ele corre em volta da
Essa cena, que durou alguns minutos, fez com que os telespecta- casa feito fera acuada. Transtomado, grita muito, tendocomo cenário
dores e participantes do estúdio da 'rv Cultura de Santa Catarina, em a noite misteriosa nas montanhasda ilha italiana.
1986, assistissem à invasão de um personagem desesperado que pedia A noite vai passando e chega a manhã. Ela, sem dormir, nervosa
para falar. e perplexa, espera por explicações. Ele, cansado e sangrando na
No dia seguinte, os jomais noticiaram o seguinte: um policial, testa, parece profundamenteabatido. A bola de prata trouxera-lhe
aparentementebêbado e desequilibrado, invadiu um programa de es- mais um problema. A lua cheia trouxera uma grande surpresa para a
portesde TV. A cena, vista por milhõesde telespectadorescom a primeira noite da noiva da pequena aldeia. Nervosa, colocou o xale e
respiração presa, foi traduzida em um ato desesperado de um indiví- nem esperou pelas explicações. Correu, sem olhar para trás, em
duo mentalmenteenfermo. Fabricou-se o indivíduo. direção à aldeia.
Na aldeia, uma única praça, circular, semelhanteà lua. As casas,
A ESCUTA CÉNICA VAI AO CINEMA? dispostas em círculo, são cortadas por uma única entrada. Passados
alguns dias, sozinho, cansado de esperar e envergonhado, resolve
explicar o seu segredo.
Um casal de camponeses recém-casados parte da pequena aldeia
Sai de casa pela manhãe inicia a caminhada. Quando chega a
nas montanhaspara a nova casa de pedras. A casa possui um grande poucos metros da única entrada que dá na praça, todas as janelas e
salão onde a cama do casal e uma mesa estão dispostas. Não possui portas se fecham. Seu rosto fica mais triste ainda, mas sente-seforta-
quartos. SÓ o grande espaço e a cozinha. Chegam pela manhã, após lecido pela disposição de confessar seu segredo. Quer reconquistar a
trilharamuma boa caminhada.Ao chegar, ele se dirige ao quintal mu[her e a confiança da a]deia. Já na praça, olha para os lados e
para cortar lenha, e ela começa a varrer o chão. O tempo vai pas- constata que está completamente só. Ilusão. Ele sabe que a praça tem
sando e a noite se aproxima. O casamento não parece trazer muitas olhos e ouvidos, e sabe também que todos esperam por explicações.
alegrias à mulher. Apaixonada pelo primo, teve seus encontros amo- A comunidade da pequena ilha incrustada nas montanhas, atenta e
rosos proibidospela família. A mãe arrumou-lheum bom partido, e curiosa, espera desvendar o mistério do casamento interrompido pela
o casamento realizou-se. Aborrecida e riste, varre rapidamente a lua cheia.
casa. O marido parece preocupado,e observa a noite que cai. Há Parado no centro da praça, ele pede para que todos o escutem.
algumas horas demonstrava estar feliz cortando lenha. A noite, porém, Percebe-se no ar um clima de julgamento. Nesse momento, uma porta
parece-lhetrazer mistérios. se abre e alguém entrega-lheuma cadeira, para que ele se sente e
A beleza da bola de prata sobre a montanha não o encanta. Ele fale. Sentado no centro da praça, sozinho, observado pelos olhares
pressente, pegando os troncos que cortou, que a noite de núpcias terá curiosos e sentindo a respiração que sai dos quatro cantos, começa a
a companhia de uma perigosa feiticeira, a lua cheia. contar uma curiosa história.
A lua cheia da primeira noite ilumina a pequena casa de pedra. A mãe do marido abandonadoe suspeitode ser lobisomemtra-
Nesse momento, o camponês começa a sentir coisas estranhas e se balhava no campo colhendo frutas. Todos os dias saía bem cedo para
contorce; sente que alguma coisa está para acontecer. o trabalho, levando em uma cesta seu filho de poucos meses. En-
A noite cai por inteira. O homem rola convulsivamente no chão, quanto trabalhava na colheita, o filho a esperava na cesta, rodeado de
contorce-se e grita sons estranhos e não humanos. Seu rosto muda, árvores, olhando para o céu. Certo dia, a mãe trabalhou tanto que se
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esqueceu das horas e do filho. A noite caiu, mas continuou trabalhan- cadas e muita miséria. Lá, localiza-se uma fábrica que produz tubos,
do. Segundo o relato do marido abandonado,a lua aproximou-se dele operários sem dedos e surdos.'
e o enfeitiçou. Deitado na cama de palha, de frente para a grande bola A fábrica possui 260 operários, que produzem tubos de diferen-
de prata, foi encantadopor ela e nunca mais conseguiu libertar-se do tes tamanhos e larguras. Esses tubos são feitos com chapas de espes-
seu feitiço. suras variadas. Mesquita, município de Nova lguaçu, é um baixo
Temlinada a história, uma porta se abre e surge a sogra. Satisfeita violento, e dentro da fábrica não é muito diferente.
com o relato, a comunidade o absolve, e as portas e janelas se abrem.
A praça respira aliviada e as pessoasvoltam a circular. A sogra chama Quando a tesoura corta a chapa, faz um barulho esüidente e
o marido abandonadopara conversarem.Ninguém mais o teme. Ob- ensurdecedor. O operador e o ajudante ficam junto dela. Seus
servado pela mulher, ainda desconfiada, os três conversam e discu- ouvidos são para que ela funcione regularmente, e sem estragar
tem a melhor maneira de resolver o problema. O "Male de Luna' o material.Por isso, junto da lâmina,é só por meio de sinais
será agora de todos. manuais que o ajudante consegue indicar ao operador para au-
A mulher, com a ajuda do primo e da mãe, terá a esperada oportu- mentar ou reduzir a velocidade da máquina.
nidade nas noites de lua cheia. Ela será sua cúmplice. Enquanto o Na tesouranão há só ruído ensurdecedor.O trabalho mais pesa-
marido estiver gritando e se contorcendono quintal, ela e o primo do é o do servente.Ele desentortaa pontada chapapara ela
terão a farta cama. A mulher conta nervosa os minutos para a chegada passar na navalha. Para isso, dá entre dez e quinze marretadas
da noite. Mas, em uma dessas noites, o primo não consegue concreti-
nessa ponta. A marreta pesa oito quilos. Se forem dez bobinas,
zar o amor proibido. A lua cheia tambémo enlíistece e o leva para
serão, no mínimo, 150 marretadas por dia, ou 5.400 por mês. Há
junto do marido traído. A mulher se imita, enquanto a mãe tenta
recuperar-se da noite de terror presenciada. Amanhece o dia. O cam-
alguns anos e]e exerce esse traba]ho. [...] Chama a atenção o fato
ponês lenhador treme ainda, batendo a cabeça em uma pedra. O de o médico da empresa pedir o afastamento dele daquele traba-
primo, solidário, abraça-o e tenta protegê-lo com a mão. Limpa o lho, por apresentar problemas cardíacos, ineversíveis. Em condi-
sanguede sua testa e som com cal.anhopara o amigo. O sol surge ções ambientais de trabalho agressivas, danosas e lesivas, esse
mais brilhantedo que nunca. O primo desistedos namoros escondi- servente tem sua força de trabalho desqualiíicada e desvaloriza-
dos, im.tando ainda mais a noiva assanhada. O "Mala de Luna" enfei- da. Ele passa a maior parte de seu tempotrabalhandoao lado da
tiçou a todos. A solidariedade dos personagens do filme .K2zos*encantou tesoura,junto a um dos mais altos índices de ruído de toda a
a atenta platéia naquela tarde de inverno. Na ilha incrustada nas fábrica e sem qua]quer proteção auricu]ar. [...]2
montanhas, a lua e os homens apresentavam ao público o encanta-
mento da solidariedade. O "Male de Luna" não fabricou o indivíduo. Para alívio dos trabalhadores,existe o ambulatóriona fábrica.
Parentes, amigos e vizinhos o freqüentam. A fábrica abre suas portas
para a comunidade.A populaçãode Mesquita, cujo atendimentode
A ESCUTA CÉNICA ESCUTA O SOM DO DEDO DECEPADO? saúde é quase inexistente, tem no patemal ambulatório sua saída. E
de graça. Mas apesar do caridoso atendimento, os operários não vêem
O baixo de Mesquitabica na Baixada Fluminense,local onde com bons olhos o ambulatório. A medicina fabril pode afasta-los da
centenas de pessoas foram assassinadas pela polícia do Rio de Ja- produçãopor causa da máquina. tJlceras, dores de ouvido, tremores
neiro, entre março e maio de 1987, segundo dados de uma revista nas mãos, tudo isso é levado para casa para evitar o desemprego. O
semanal. Mesquita é um baço pobre, com muitas valas, ruas esbura- paternal ambulatório vigia, faz caridade, cuida da saúde da fábrica,
mas não é conülável para alguns de seus clientes em potencial. Falando
+ Filme dos irmãos Tavianni, baseadoem contos de Luigi Pirandello. em doença, um operador descreve o temor em trabalhar na coniíicação:
16 17
Tem fantasma aí dentro. Eu não venho aqui para esses lados da garante-lhesa vida por meio de capacetes,luvas etc. A fábrica preo-
conificação. E onde morreu aquele cara, de coração. Tem uma cupa-se com as individualidades no trabalho. Mas sem responsabilidade,
moça que anda aí dentro. E um vulto que aparece de repente. não há proteção. O trabalhadortem de assinar um documentoque
Passa assim perto da gente, e logo desaparece. O pessoal já viu aüuma que recebeu o material dos Epi, e que é de sua inteira respon-
ela andando numa porção de lugar aí dentro da fábrica, numa sabilidade a proteção contra acidentes. Lutero talvez freqüente a Bai-
xada Fluminense.
porção de seção. [...]3
A morte ronda a Baixada. O fantasma amedrontamas que as tesou- A tecnologia empregada nas indústrias no Brasil, sda a proUetada
ras. Transformar interiores em exteriores,fazer do imaginário algo aqui ou a importada -- talvez mais esta do que a outra --, costuma
real sem a mediação do pensamento, são os passos pilhados pela deixar, sempre, em segundo plano -- ou em plano nenhum -- os
medicina fabril. Atenta à caridade, cria fantasmas. Aliás, antigos e componentes técnicos que, se fossem incorporados à máquina,
eficientes fantasmas. Antigas também são as peças que utilizam. En- protegeriam mais o corpo do trabalhador, deixando-o menos ex-
gatilhadas e caindo aos pedaços, o capital solicita-lhe criatividade. posto às agressões da máquina. Isso explica por que é dada tão
Além da família que penetra no ambulatório, propiciando um clima grande importância aos EPI. Cabe aqui, então, a pergunta: em vez
íntimo, a relação homem-máquina estimula o espírito familiar. Cada de obrigar o trabalhadora usar um desconfortávele incomodo
operário conhece os truques de seus instrumentos. A intimidade per- protetor de ouvido, por que não colocar um abafador de ruído na
mite-lhes esquecer que estão trabalhando, até o momento em que máquina? E se a telha cair na cabeça do trabalhador, ou se ele
surge a mutilação. Nesses casos, o ambulatório presta-lhes ajuda. A perder um dedo na serra, mas estiver usando capaceteou luva? E
fábrica também produz solidariedade. Os mais antigos ensinam aos se no registro -- ou CA estiver escrito que à hora do acidente
mais novos o que lhes interessa, os ossos e truques do ofício: ele estava com os Epl? Nesse caso, a empresa está juridicamente
correta, ou, noutros tentos, o trabalhador é que foi descuidado.
Um encan'egado, durante uma manutenção, dizia a um operador Noutros termos ainda: e]e que se cuidei [...]s
para cuidar-se, pois a peça que tinha nas mãos poderia machucá-
lo. Entretanto, a um outro operador também presente, e que o As máquinas continuam velhas e perigosas. O excesso de tubos
havia ajudado na retirada da mesma peça, ele não disse nada. E no pátio ameaça o desemprego. Entre dedos mutilados e relações
este último não tinha o dedo indicador, amputado por causa de mutiladas, a responsabilidade protege o trabalhador. A fábrica lute
um acidente de trabalho. [...]4 una, que substitui a servidão pela devoção, acredita e defende as
individualidades.A fábrica de Mesquita produz tubos e, funda-
A saúde fabril, contraditória e violenta, tem uma aliada: a pre- mentalmente, operário-indivíduo.
venção de acidentes de trabalho. Essa prevenção é feita por meio dos
EPI (Equipamentos de Produção Individual).
Segundo órgãos govemamentais, após a implantação dos EPI, os A ESCUTA CLÍNICA PREFERE ARTE CULTA
índices de acidente de trabalho baixaram. A ciência chegou à Baixa- 0U ARTE POPutAK?
da Fluminense. A morte agora é domiciliar.
Os operários de Mesquita, apesar das mutilações físicas, da im- Após algumas horas de entrevistas, o cansaço tomou conta do
potência sexual, dos tremores, da úlcera e de outras doenças, devem corpo. O café com creme no s/zoppi/zgcenfer ao lado do Departamento
ser gratos aos empresários. Eles têm psicólogo, ambulatório grátis de Psicologia era uma boa opção. Chegando lá, alucinações e sur-
para a família e para os vizinhos; ganham um litro de leite, quando presas aconteceram.O néon colorido cruzava lembranças sérias de
produzemmais em detemlinadasseções, e, aindapor cima, a fábrica depoimentospsí. A estagiária reclamava da instituição; falava que o
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pacientedo Serviço de Profilaxia Aplicado (SPA) era fadado ao fra- maneira particular de ter senfimenfoshumanos sentimentos
casso, passando de mão em mão, que o tempo era curto para o aten- de piedade, de frfsreza e/c.[...]6
dimento,e que era um desrespeitoao indivíduo, uma falta de
sensibilidade. Essas frases dançavam no sãoppi/zg entre cores invasi- Febvre nos ilustra que de suscetibilidades
passamosa infe-
vas, mas em certo momento a última palavra chamou-me a atenção: rioridades, do ser moral ao ser psicológico; tendo em seus antepas-
sensibilidade.Essa palavra manteve-seimóvel como se fosse um sados a sensação -- perceptível e transparente-- a sensibilidade no
defeito na proUeçãode um filme. Entre lojas e letreiros, alucinei. Por século xvm diluiu-se em invisíveis intimismos. Mas neste século
alguns segundos vi essa palavra que, mesmo não dita nos depoimen- encontramos outra importante singularidade:
tos psí, impõe-se em climas e gestos, escrita em néon. Colorida e
forte. Pensei ser o nome de uma loja, mas logo percebi o equívoco Antes, a linguagemfilosófica e a linguagemcomum indicavam
provocado pelo excesso de trabalho. Ledo engano; a alucinação ten- tudo isso mediante a palavra "autoconsciência". SÓ é indivíduo
tava me dizer alguma coisa. Dizia que eu ainda trabalhava no s/zo- aquele que se diferencia a si mesmo dos interesses e pontos de
pping. Um trabalho psicótico que, impossibilitado de simbolizar, crê vista dos outros, faz-se substância de si mesmo, estabelececomo
na potência dos fragmentos de seus sonhos. Dizem os psicanalistas norma a auto preservação e o desenvolvimento próprio. E não é
que, ao simbolizar, o psicótico está a um passo da cura. O trabalho no mero acidente fortuito que só por volta do século xvm a palavra
s/zoppí/zgrealizava uma pré-cura, ou um processo de trabalho não "indivíduo" tenha passado a designar o homem singular, e que a
preocupado em curar-se. Os fragmentos não queriam dizer nada por própria coisa não sda muito mais antiga do que a palavra, dado
alguém,diziam apenasque possuíamalguma coisa a ser vista. A que só começou a existir nos alvores do Renascimento.'
fantasia tinha autonomia. Sensibilidade era néon. Material de forte
apelo visual, marcante, mas frágil como oljeto. Quebra fácil. Intri- Entretanto, os alvores do Renascimento criaram também o novo
gante coincidência. Com voz trêmula e emocionada, a estudante de artista e, principalmente, a arte laica. O indivíduo e a nova arte flo-
psicologia inadiava néon quando sentia pena do paciente.O que resceram em cúmplice aliança:
aprendiacom os textosclínicos era eleüicidade.A formação a fazia
brilhar.Mas com o néon. No Renascimento, a imagem do poder individualiza-se, laicizan-
Sentado,tomandocafé com creme, o livro de Lucien Febvre. do-se. O poder abstrato transforma-se no Príncipe. O retrato de
lido nos intervalosdos goles, quebrouo vidro e mostrouos cacos. A Lourenço de Média, ou de algum duque veneziano, mostra-nos o
história mais uma vez quebrou objetos e cortou ilusões. Dizia ele indivíduo, personalizado, que se converteu em poder. E o indiví-
no livro:
duo que encama a virtude... A partir do Renascimento,onde o
que predomina como gênero de pintura é o retrato, o poder é
Sensibilidade é uma palavra bastante antiga. Existe na língua, representado por símbolos e alegorias... A burguesia instala na
pelo menos, desde o começo do século xlv; o seu adjetivo, sen sociedade um poder político bastanteinstável para etemizar seu
cível, como acontece habitualmente,tinha-a precedido um pouco. poderio económico. A arte perde seus últimos vínculos com o
Ao longo de sua vida, como também acontece. sensibilidade sagrado. Toma-se cada vez mais individual e laica.8
carregou-se de diversos sentidos. Há os que são escritos, há os
mais latos e que, em certa medida, se podem localizar no tempo. Artistas e psicólogos têm na sensibilidade o motor de suas práti-
E assim que no século xvii a palavra parece designar sobretudo cas e identidades. A sensibilidade como dom individual apropria-se
uma certa suscetibilidade de ser humano às impressões de ordem de técnicas e teorias ofuscando sua materialidade.Ao incluí-la na
moral: fala-se entãomuito de sensibilidadeao verdadeiro.ao História, temos a oportunidadede desconfiarmos de sua pureza e
bem, ao prazer etc. No séctllo XVlll a palavra designa üma certa universalidade detectando seus agenciamentos. A materialidade desse
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conceito perante-nos retirar de cena corações e mentes protagonizan- Entretanto. a arte laica não se resume somente ao culto do indi-
do práticas e identidades. Remetendo-o à História, percebemos seu víduo. Com o advento do capitalismo, a arte perde o caráter sagrado
movimento entre homens, suas necessidades antagónicas e relações ao sacralizar o saber. A hegemonia política burguesa faz do conheci-
de poder. O artista, calicaturado em ser sensível, acima do bem e do mento artístico virtude e disciplina. A arte não tem mais a função figu-
mal, é desmontado por Pedrosa: rativa de reconhecimentoou de persuasão,mas de contemplaçãoa
um saber superior, ao qual só têm acesso os iniciados. Esses inicia-
A partir do Renascimento, a burguesianascentevai se transformando dos são os libertos da servidão do trabalho, o que marca, dessa forma,
na principal compradora de arte até que, em nosso século, toma- a divisão socioeconómica da arte em erudita ou popular, delimitando
se a única consumidorade uma arte nova que só os iniciados as relações de poder entre as classes. . .
sabem "apreciar". Ser iniciado, por outro lado, implica uma pra- Das ruas, praças e igrejas, passamos para outro espaço. O lugar
xis que requer um tempo do qual dispõem aqueles que estão sagrado da arte como disciplina agora é o museu. A virtude e os
liberados da servidão do trabalho e podem desfrutar da ociosida- intimismos fazem desse espaço o etemizador e guardião do universal
de... O Renascimento, como se sabe, criou as belas-artes burguês. A arte passa a ser a expressão da alma; e a sensibilidade, seu
pintura, escultura, arquitetura-- e as separou das artes que pas- instrumento. O 'artista tem prestígio por meio de sua sensibilidade.
saram a ser consideradas "menores". Áqz#elasera/?zo apanágio fundadaem interiorese criada por uma Razão invisível e potente:
dos grandescriadores, com direito a grandes biogra$as e à
convivência dos príncipes e dos nobres, sendo elevados à cate- O autoritarismo das elites vem, pela primeira vez, localizar-se
goria de membrosdas pro$ssões /íberais, os Da Vinci, os Mi- em um ponto preciso, graças ao qual se exerce "legitimamen-
te": localiza-se no saber... Sua invisibilidade nasce quando, em
chelangelo,os Rafael etc. e os outros, simples cortesãos, plebeus
das artes mecânicas. Essa separação social marcou a história da lugar de empregarem os recursos imediatos da dominação,
arte burguesa desde o Renascimento [...].9 passam a empregaro recurso sutil do prestígio do conheci-
mento [...].''
O artista, entre ares menores e belas-artes, perde sua pureza.
Entre divisões e alianças, é definido e reconhecido. O autor citado A invisibilidade citada por Chaui aproxima-se dos passos tra-
analisa a história da arte tendo como método o materialismo históri- çados por Pedrosa, quando este aponta para a encarnação .do poder
co. Pedrosa nos esclarece que nas sociedades pré-capitalistasas artes em virtude, ou prestígio, do conhecimento. Isto é, o poder tomando-
também defendiam os interesses dos dominantes. Da época dos egíp- se abstrato, destituído de um contexto em que possa ser reconhecido,
cios até fins da idade Média, os símbolos do poder estavam presentes estaria presente nas ideologias que justificam o Estado como elemen-
nas produções artísticas, de forma clara e transparente para serem to moderador ou neuualizador das contradições de classe. Com isso,
entendidos por toda a população, na medida em que centralizavam o lega a arte um instrumentos imbuído de uma racionalidade que allir-
poder e persuadiam a população à obediência e ao reconhecimento. ma e mantém um sistema, no qual o Estado transcende e se coloca à
parte, bem como o a].tintae a própria arte.
Desde a época egípcia até üms da Idade Média, as figuras aparecem O néon das lojas populares e sofisticadas dos shopp1ltgstem o
representadasem tamanhos diferentes, numa escala hierárquica, mesmo brilho. Durante' o dia, percebemos as diferenças. As sensibili-
que é uma forma simbólicade representara autoridadee de trans- dades psí são notumas e brilham, mas a noite nem sempre é edema.
mitir ao povo a idéia de poder. Vejam-se os retratos dos faraós, dos O sol. como a razão bélica, denuncia as diferenças e possui um brilho
funcionários da Suméria ou dos reis de Assur, ou da imagem de muito mais promissor. O brilho de néon aquece, mas não transforma.
Deus no código de Hamurábi, que é ainda maior do que a do rei; É o brilho do indivíduo. A sensibilidade solar não propicia à estagiá-
o maior tamanho expressa o maior poder [-.].iu ria sensibilidadeou preocupaçãopelo indivíduo. Essa forma de sen-
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sibilidade, imanentea uma razão crítica, fará com que ela entenda organização. Diferenciando-se das práticas médicas anteriores, que ti-
sua constituição e produção. O néon encontra-se nos s/zoppings,a ener- nham como objeto a doença, essa nova ciência fabrica a saúde.
gia solar pode estar presente em algumas usinas. Esse novo objeto tem como principal ameaça os hábitos que preci-
sam ser com.gidos. O ar contaminado originado da concentração urbana
e as questões sobre a higienização fundamentam o aspecto preventivo.
A ESCUTA CLÍNICA ESCUTA O AR CONTAMINADO?
As práticas médicas, além do cuidado com a cidade, entram em
outros espaços: hospitais, cemitérios, escolas, fábricas e famílias tam-
Rio de Janeiro, 1839. Nesta data foi construído o primeiro cemi- bém recebem sua atenção.A prevenção concretiza seu objetivo: fazer
tério fora do perímetro urbano. Defendido por sábios, filósofos e da ciência uma nova ordem social e política. O Estado-Ciência é o
fundamentalmente pela medicina social, a morte agora perde o seu porta-voz do gerenciamento da felicidade burguesa. Saúde e Ordem
sentido sagrado e contaminador; toma-se laica, medicalizada e "de- têm a mesma face. Ordem e Progresso têm a mesma bandeira.
mocrática' Padres e cientistas, diante das questões da saúde, entram em cho-
que. Os primeiros defendendoo espaço sagrado para enterrar seus
Igrejas e cemitérios eram os locais de enterros. Nas igrejas, os mortos. Os segundos, por meio da fundamentação científica, preocu-
cadávereseram sepultadospor todos os lados: no pavimento, pam-se com a contaminação do ar criada pelas precárias condições
pelas paredes, debaixo dos altares, mesmo por cima deles. SÓ os dos cemitérios dos desclassificadas e pecadores. Nessa celeuma entre
católicos podiam aí ser recebidos, sendo excluídos os gentios, os o poder laico e o sagrado, ganha o primeiro. O momento político é
hereges, os excomungados, os pecadores públicos [...].i2 outro. e dessa forma a morte se "democratiza:
A diferença entre classes e credos é diluída pela ciência. Agora
Aos desclassificados e pecadores, a cova rasa, corpos amontoa- todos são iguais no etemo descanso. O cemitério fora do perímetro
dos em valas. Aos cristãos, o contato com o sagrado, a comunhão. urbano é construído. a cidade não é contaminada e cada um tem o seu
Sobre essa nítida delimitação de poder e de grupos, age a nova ciên- espaço. Para cada corpo uma cova, a morte toma-os indivíduo. E a
cia, tendo no Estado sua imanência e constituição. A lei agora é fabricação dessa morte-indivíduo necessita de um novo intelectual para
substituída pela norma. O sagrado fiscalizador representado pela sua guarda:
[greja dá [ugar à raciona]idade científica. O visíve] toma-se invisível.
Deus, reis, senhores transformam-se em condutas, padrões e indivi- Assim eliminado como local de perigo, o cemitério adquire uma
dualidades. A magia do Estado converterá religiosos em especia- função moral. Ele deve ser local onde o "ÊHósofo", sem ser repeli-
listas, não da obediência, mas do cuidado. do pelo medonho aspecto da morte, possa meditar sobre o nada
da espécie humana, onde o homem soberbo e orgulhoso, reco-
Segundo Foucault, o século xlx assistiu à invasão progressiva do nhecendo o poder de Deus, vá receber lições de moral e de religião
espaço da lei pela tecnologia da nomia. O Estado moderno pro- e, assim, deixe de maltratar os seus seme]hantes. [-.] Existindo o
curou implantar seus interessesservindo-se, predominantemente, cemitério, as recordações dos homens, mais profundamentegra-
dos equipamentosde normalização,que são sempre inventados var-se-ão nas idéias e nas gerações futuras. [.-] Local onde esteja
para solucionar urgências políticas. [...] i3 presente a finitude do homem e sua individua]idade [...].14
A Medicina Social brasileira no século xix nasce juntamente O "homem" agora é o nada e também o indivíduo. Nada, por sua
com o fortalecimento do capitalismo. Objetivando a prevenção e a finitude perante um Deus onipotenteque Ihe confere a impotência da
higiene, essa nova ciência funda uma nova Ordem Social. A grande matéria e a imortalidade das idéias. Indivíduo, porque, vivo ou mor-
concentraçãourbana necessitado apoio do saber médico para sua to, esse produto do século xlx é o guardião de seu próprio corpo,
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cabendo ao Estado sua proteção e gerenciamento: Deus sai de cena A ESCUTA CLÍNICA ESCUTA A VOZ DO TRAPEZISTA?
como pane de sua carne. A comunhão concretizada nas paredes e nos
altares é preterida em favor do túmulo com nome e vida registrados. Passo aqui para a primeira pessoa. Proponho inicialmente a des-
Os deuses e o Estado distanciam-se, o indivíduo é seu próprio poder, crição de imagens que compõem o dia de um psicólogo, neste caso
mas diante desse risco de ser senhor de sua própria vida e morte ele 'eu", propositadamente com aspas.
precisará de ajuda. Cuidadosa e humanamentedoadas pela ciência e São 7 horas da manhã. Acordo, faço as coisas de rotina, e logo
pela moral, as normas sociais e cientíülcasdarão ao "homem" a segu- após me vejo em frente ao espelho. A barba precisa ser aparada, mas
rança burguesa. O cidadão-indivíduo interioriza-se e torna-se forte. alguma coisa me impede de fazê-lo. Observo rugas perto dos olhos,
Os filósofos não só divagam sobre a morte;eles também sepul- o mau humor da manhã transforma-se em sentimentos de estranheza
tam práticas sociais e políticas. O ato do sepultamentoevidencia a e abonecimento. Constato com a nova ruga sentimentos banais. Meu
procura da eternidade; como coveiros, delimitam espaços para que as corpo objetivo, o chamado concreto, é acompanhado por um corpo visi-
idéias sejam perpetuadas,para que o "homem" seja etemo. Os Hllóso- tante e organizador, criado em uma manhã de um setembro qualquer.
fos-coveiros, funcionários públicos do Estado, etemizarão o prestígio Em questões de segundos, corto com uma tesoura afiada essa cena
do saber.is A missão desses intelectuais será a de manutenção do ho que me incomoda.
mem sem aspas e do Estado sem materialidade, ou seja, um Estado- Abro o jomal na mesa do café e encontro nas páginas policiais
idéia, sem história e sem artimanhas. um relato curioso: José não-sei-o-quê,um indivíduo de idade tal, é
Para esses "sábios", o devir, a potênciae a paixão dos gueneiros procurado pela polícia. Acho curioso o termo indivíduo. Algumas
serão substituídospelo dever e pelo heroísmo dos soldados. Serão associações são feitas rapidamente. Lembro-me do texto lido em sala
imortais sem classe social, sem contradições e sem cotidianos; mas, de aula, onde discutíamos o indivíduo, a personalidadee o sujeito.
nas academias, bibliotecas e museus, sentiremos o cheiro de suas idéias:
Respeito, cuidado, polícia são palavras que rondam e provocam mi-
um perfume adocicado misturado ao mofo. Fil(5sofos, coveiros, mé- nhas memórias nesse instante dessa densa manhã. O cotidiano veste-
dicos, policiais, religiosos, ecologistas, são as várias faces de uma se de trapézio. Um fascinante e arriscado trapézio circense.
mesma moeda daquele Rio de Janeiro de 1839. Estou agora no hospital psiquiátrico onde trabalho como super-
O momento político agora é outro; temos outra m(»da com outras visor. O dia ensolaradoe as árvoresda redondezafazem partede
faces, mas a narrativa sobre a fabricação de Saúde e da Morte aponta-nos um irónico cenário nesse espaço de morte e violência. Recompo-
alguma coisa que ainda se mantém viva neste Brasil de 1987: o gemido nha-me, e começamos a supervisão. A estagiária inicia o relato de
das valas, o sussurrar dos filósofos e o silêncio de nossas práticas: uma entrevista diagnóstica. Segundos depois de escuta-la com aten-
Enterro esbarra em cadáveres e cenas de horror. Coveiros bêba- ção, as imagens do espelho voltam à cena. Diz a estagiária que a
paciente parece ser x, sente isso ou aquilo, pode ser caracterizada
dos tentando sepultar o corpo de Célia Dias de Paula no cemité- como algo etc., e no âlnal de alguns minutos termina o relato e
rio de Bongaba, em Piabetá, acabaram por desenterraruma cabeça, solicita a minha opinião. Meio desconcertado, não acho nada, mas
ainda com bobos nos cabelos, de uma mulher sepultadasem não comunico de imediato esses sentimentos. Murmuro algumas per-
caixão, e os acompanhantesdo enterro, que já tinham sido obri- guntas para ganhar tempo. Seguro firme o trapézio à busca de equilí-
gados a passar por crânios e ossos insepultos, viram passar brio, mas a ansiedadeé maior. Digo para a estudantede Psicologia
um cachorro com a mão de uma criança na boca [...].ió que estamos frente a frente a um enorme vazio. Por algum tempo
constatamos um certo mal-estar. Pergunto: "o que foi sentido na
O século xlx preocupou-secom o social. Entre valas, ares conta- relação com a paciente?" (pergunta clássica de supervisor). O senti-
minados e desclassiÊlcados,a Prevenção fabricou filósofos-coveiros e mento, o indivíduo, a relação tomam conta da cena. A estagiária
um modemo produto, o indivíduo. disserta sobre as vivências relacionais com grande calor, mas o vazio
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persiste, um irónico e promissor vazio. O trapezista mantém-se equi- múltiplos movimentos. O nascimento desses diálogos não tem como
librado na solidão do seu trapézio. fundadora a emoção ou a verdade. A coisa tensa e viva instalada é
O indivíduo-paciente relatado remete-me ao jomal lido no café. coisa mesmo, é matéria, fabricada por várias mãos e inconscientes.
O dançarino era o mesmo; a coreografia, outra. A polícia estava tam-
De pescadores ou arqueólogos de subjetividades e de intimismos,
bém presente na sala de supervisão, mas não a víamos.
transformamo-nos em metalúrgicos ou carpinteiros.
De surpresa,como um provocador, perguntopela cor dos olhos O trapézio e a dança sem coreografia não são símbolos nem
da paciente. Ela não se lembrava. O cheiro, o rosto, as mãos metáforas e sim possibilidades e provocações fundamentadas por uma
também esquecidos. Em alguns segundos, de um tempo cinematográ- estratégia política de vida que não acredita no solitário trabalho do
fico, várias cenas se misturaram: minhas rugas, o espelho, o jomal, profissional psí decifrador de símbolos, que nada mais é do que um
vários personagensarrombavam as portas daquilo que jurava ser mi- consumidor de matéria apodrecida pela idéia e pela inércia.
nha intimidade. O salto tira-me do solitário equilíbrio e, no espaço, As aspas propositais do início do texto ironizam a legalidade
percebo que a memória é um produto coletivo. A entrevista diagnós- deste eu confessor, intimista, protagonista das discussões psí. Cartas,
tica não se lembrava do rosto da paciente. biografias e confissões são estilos literários que marcaram épocas
Coloco minha câmera em ritmo lento e registro que o indivíduo passadas, épocas em que subjetividade e indivíduo se fundem, época
procurado no jomal com sua descrição detalhada não passava de uma
em que a loucura, o amor, entre outros, transfomlam-seem inte
grande invenção. No c/oie percebo negros, desempregados,brasi- rioridades, e a violência toma-se invisível.
leiros; percebo a História do Brasil narrada por vagabundos, loucos e As aspas propositais do início do texto ironizam também a lega-
desclassiHicados. Os autoritarismos criam sempre um ú/ligo olhar: o lidade deste eu relacional das práticas psí. Legalidade defensora e
olhar poético, o olhar clínico, o olhar feminino etc. Para cada ocasião
mantenedorado abismo entre subjetividade e política, caracterizando
ou para cada identidade, um específico olhar, que defenda temtórios, ambas como entidadesnaturalizadas,excludentes,desprovidas de his-
nomes e ordens. Cada coisa no seu devido lugar. Os autoritarismos tória. de materialidade ou, talvez, de um certo risco circense.
não gostam de cinema nem de trapézios. A entrevista diagnóstica fabricou o indivíduo.
O indivíduo, José, talvez não seja um nome, mas sim um jogo
extremamente perigoso aos olhares nomeados e sedentários. Para o
olhar e para as técnicas psí sedentárias não existe dança sem coreo- 0 QUK A ESCUTA CLÍNICA NÃ0 ESCUTAI
grafia, não existe a implicação do corpo e do espaço da bailarina. A
câmera fala por si mesma, e morde o vazio. Volto à estagiária e de Podemos ler ou usar essas seis pequenashistórias como peças
súbito alguma coisa tensa e viva se instala. Digo a ela que os instru- que podem se encaixar, ligar ou ser descartadas.Uma delas é a
mentos que utilizamos e que são vendidos no mercado para captar, peça-chave, coringa, desse jogo que tenta provocar uma certa escuta
compreender, observar, também produzem algo. Nossas técnicas são clínica. Qual?
fábricas. A entrevistadiagnósticanão se lembrava do rosto porque Grande parte dos alunos nas entrevistas mostrou preocupação pelo
fabricava corpos sem materialidadee sem lembrança. O corpo e o indivíduo. Na clínica, uns denunciaram o desrespeitoe a precariedade
rosto, que discutíamose que pensávamoscomo nosso e também da instituição para compreendê-lo. Outros, ansiosos por alternativas
narrado pela instituição, eram um empréstimocom juros altos do de intervenções voltadas ao social, tentaram integra-lo à "comunida-
manicómio, ou, em outras palavras, os fatos também são história, foto- de". A maioria definiu o intelectual que o curso produz, tendo como
grafias e não cadáveres. alvo esse objeto não identificado. Qual seria a peça-chave ou o corin-
A estagiária confessou que sentia medo da paciente. Agora co- ga do jogo das seis histórias?
meçávamos a falar, e no meu silêncio descobri que na solidão diante O lenhador saiu da casa de pedra, foi até a praça, sentou e explicou
do espelhoconvivi com vários pedaçosde grupose de corpos com aos quatro cantos seu mistério. As janelas e portas se abriram, e seu
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segredo foi compartilhado por todos. A cadeira e a escuta da praça 13 COSTA, J. FKEiRE. Ordem nzédica e lzormajami/iar. Rio de Janeiro,
foram as regras. Com a sogra, o primo da esposa, a própria esposa e Graal, 1983, pp. 50-1.
os representantesda aldeia, conviveu e resolveu seu destino. O lenhador 14 MACHADO, RoBERTO ef. aJ., op. cír., p. 292.
jogou seu lance e transformou sua sina em lições de solidariedade. 15. '0 Estado capitalista arregimenta a produção da ciência que se toma
As técnicas e objetospsí, cristalizados em espaço privado, repre- assim uma ciência de Estado imbricada, em sua textura intrínseca,nos
sentam o destino de um pensamento e de uma época. Cabe-nos per- mecanismos de poder; o que é sabido, não vale tão-somentepara as
guntar se esses instrumentos produzem subjetividades que possam, chamadas 'ciências humanas'. Mais genericamente, esse Estado reparte
partindo de seus limites, ulüapassar a si mesmos gerando novas formas o trabalho intelectual por toda uma série de circuitos e redes, graças aos
de subjetividades e criando condições para que os objetos não quais ele se substitui à Igreja, submete-se e confirma o corpo de 'intelec-
identificados não impeçam a produção de uma nova sociedade. Uma tuais savalzrs', enquanto, na Idade Média, isso só existia de maneira protei-
forme. Os intelectuaiscomo corpo especializado e profissionalizado são
sociedade em que a lua cheia não paralise os enfeitiçadose assim
possamosdescobrir novas formas de solidariedade.Não a de "ir- construídos em sua funcionalização, mercenarização pelo Estado moder-
no. Esses intelectuais portadores do saber-ciência tomam-se funcionários
mãos", fundada em compactas identidades, no medo e na culpa que
(universidade, institutos, academias, diversas sociedades de estudo) do
assassinouíndios, negros e os que transgrediram a Ordem dos corpos Estado pelo próprio mecanismo que fez dos funcionários deste Estado
e dos abetos,mas uma solidariedadegeradapelas interpelaçõesdo inte[ectuais [...]". POULANTZAS, Nicos. O Esrízdo, o poder, o Sacia/esmo.
diverso e da indignação.
Rio de Janeiro, Graal, 1981, pp. 64-5.
16 Jorna/ do Brasa/,Rio de Janeiro, lg de julho de 1986.
NOTAS
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