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Confúcio, um Sábio Materialista

2024

No século 19, Henrique Lisboa iria lançar na literatura brasileira um termo estranho: Confúcio teria sido um 'sábio materialista'! O que isso significava, quais as implicações sinológicas dessa classificação? É o que veremos nesse texto.

CC.SIBDI.UCR - CIP/4129 Nombres: Martínez Esquivel, Ricardo, autor y director. | Rodríguez Cascante, Francisco, director. | Nagy-Zekmi, Silvia, prologuista. Título: Subjetividades orientalistas : imaginarios, cultura política y religiosidades / coordinadores Ricardo Martínez Esquivel, Francisco Rodríguez Cascante ; prólogo por Silvia Nagy-Zekmi ; autores Ricardo Martínez Esquivel [y otros veintidós]. Descripción: Puntarenas, Costa Rica : Universidad de Costa Rica, Sede Regional del Pacífico, Editorial Sede del Pacífico, 2024. | Colección Estudios sobre las creencias y las religiosidades. Serie movimientos esotéricos / editores de la colección Ricardo Martínez Esquivel, Esteban Sánchez Solano. | Contenido: Tomo I. Imaginarios – Tomo 2. Cultura política – Tomo 3. Religiosidades. Identificadores: ISBN 978-9930-608-37-1 (obra completa : PDF) | ISBN 978-9930608-44-9 (Tomo I : PDF) | ISBN 978-9930-608-45-6 (Tomo II : PDF) | ISBN 978-9930-608-46-3 (Tomo IIII : PDF) Materias: LEMB: Orientalismo. | Orientalismo – América Latina. | Orientalismo – Aspectos sociales. | Orientalismo – Aspectos políticos. | Orientalismo – Aspectos religiosos. | Orientalismo – Filosofía. | Oriente y Occidente. Clasificación: CDD 950 --ed. 23 ® Editorial de la Sede del Pacífico, Universidad de Costa Rica. Universidad de Costa Rica, Costa Rica, Puntarenas 2024. Se permite la reproducción total del contenido de este documento solamente para fines de investigación, abogacía y educación; siempre y cuando, no sean alterados y se asignen los créditos correspondientes a la Editorial de la Sede del Pacífico, Universidad de Costa Rica ESP-UCR. Esta publicación no puede ser reproducida para otros fines sin previa autorización por escrito de la ESP-UCR y sus autores. 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Baruc Chavarría Castro (filólogo en jefe) Editor académico: Dr. Ricardo Martínez Esquivel Director Editorial Sede del Pacífico: Dr. Oriester Abarca Hernández Colección Estudios sobre las Creencias y las Religiosidades Series Movimientos Esotéricos Editores de la colección: Dr. Ricardo Martínez Esquivel Dr. Esteban Sánchez Solano Consejo científico de la colección: Dra. Valeria Aguiar Bobet Dr. José Ricardo Chaves Dra. Monica Georgina Cinco Basurto Dr. José Antonio Ferrer Benimeli Dra. Karina Moret Miranda Dra. Cécile Révauger Ph.D. Guillermo de los Reyes Heredia Dra. Ana María T. Rodriguez Dr. Genaro Zalpa Ramírez SUBJETIVIDADES ORIENTALISTAS: TOMO III. RELIGIOSIDADES SUBJETIVIDADES ORIENTALISTAS: TOMO III. RELIGIOSIDADES Coordinadores Ricardo Martínez Esquivel Francisco Rodríguez Cascante ÍNDICE Indice.................................................................... I Prólogo Silvia Nagy-Zekmi...................................................... V Presentación Ricardo Martínez Esquivel Francisco Rodríguez Cascante..................................... XVII El “orbe católico” en busca del “Oriente”: España, la Santa Sede y su construcción del Oriente como tierras por conquistar/civilizar, siglos XVI y XVII Esteban Sánchez Solano................................................................ 1 El orientalismo de la Misión China: Lecturas sobre las religiosidades “otras” en el Confucius Sinarum Philosophus Ricardo Martínez Esquivel.......................................................... 35 Confúcio, um sábio materialista? interpretações sobre o confucionismo entre pensadores brasileiros no século XIX André Bueno...................................................................... 75 El Gran Arquitecto del Universo y el daoísmo: El sincretismo religioso en la migración masónica china a México (1880-1934) Fredy E. Cauich Carrillo.................................................. 105 La definición del místico (ṣūfī) y la mística (taṣaūf) en Ibn Taymīyah Julio César Cárdenas Arenas ........................................... 145 i Poscolonialidad y religiosidad en la China moderna: El desencanto de la soberanía Mayfair Mei-hui Yang...................................................... 191 Sobre autores.................................................... 253 ii CONFÚCIO, UM SÁBIO MATERIALISTA? INTERPRETAÇÕES SOBRE O CONFUCIONISMO ENTRE PENSADORES BRASILEIROS NO SÉCULO 19 André Bueno Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil orientalismo@gmail.com ORCID: 0000-0003-4479-4407 INTRODUÇÃO O t exto que agora se apresenta nasceu de um incômodo e de uma curiosidade. No período de 2018-2019 tive a grata oportunidade de atuar como bolsista pesquisador da Fundação Biblioteca Nacional, uma das maiores e mais importantes bibliotecas do mundo, situada na cidade do Rio de Janeiro. O tema de minha pesquisa foi o nascimento de um projeto de Sinologia no segundo reinado do Império do Brasil (1840-1889), analisando uma série de trabalhos, produzidos por autores brasileiros, sobre a questão da imigração chinesa para o país. Embora essa iniciativa não tenha sido bem sucedida pelas mais diversas razões – a principal delas, a proclamação da República em 1889 e a modificação radical da estrutura política brasileira – , alguns textos conseguiram se tornar excelentes obras sinológicas, das quais se destaca A China e os chins, de Henrique Lisboa, publicado em 1888. Esse livro, que acabou se tornando o centro de minhas pesquisas, foi produzido a partir dos estudos e das impressões de Lisboa, que acompanhou a primeira missão oficial ao país realizada em 1880. A China e os chins é um livro que apresenta relatos de viagem, ensaios críticos e ao fim, uma dissertação sobre o crucial tema da 75 imigração chinesa, em torno da qual giravam as atenções de políticos e intelectuais brasileiros. Contudo, como afirmei agora há pouco, algo me chamou bastante atenção na obra de Lisboa: quando ele escreveu sobre as “religiões chinesas”, referiu-se ao Daoísmo como “seita da razão” e ao Confucionismo como “seita materialista”. Confesso que, até então, nunca obser vara qualquer sinólogo utilizar esses termos para designar as expressões do pensamento chinês. Desse desconforto nasceu o interesse por investigar melhor a questão, e compreender se Lisboa empregara neologismos ou se ele se baseava em outras fontes. A questão com o Daoísmo foi resolvida em um artigo recentemente publicado1, que mostra como a denominação “Racionalista” fora emprestada de um orientalismo romântico e esotérico, podendo até ser considerada como simpática pelos pensadores brasileiros do século 19. O mesmo, porém, não pode ser dito do termo “materialista”, uma alcunha relativamente problemática para essa mesma intelectualidade, essencialmente cristã e europeurizada. Ser apegado ao profano e ao material parecia algo pejorativo no imaginário religioso de grande parte dos brasileiros; o termo fica ainda mais confuso quando Lisboa nos informa que a doutrina de Confúcio seria uma “seita materialista”, denominação que guarda evidente contradições e problemas. O termo “seita” claramente não reconhecia o Confucionismo nem como filosofia, nem como religião (já que essas noções eram balizadas pelo teologia judaico-cristã), mas como uma forma depreciada e inferior de religiosidade; “materialista”, porém, é um termo simplesmente antagônico ao problema metafísico e teológico. De onde, pois, teria Lisboa haurido essa consideração tão confusa e polêmica sobre a Escola de Confúcio? Um exame sobre a literatura sinológica atual não nos dá evidências de qual seria a origem dessa classificação. Apenas para citarmos aquelas traduzidas para a língua portuguesa, como Smith (1973), Kaltenmark (1977), Granet (1997), Adelr (2002), Anping (2008), Cheng (2009), 1 76 André Bueno e Kamila Czepula, “Uma estranha razão: leituras sobre o Daoísmo entre pensadores brasileiros, 1879-1982”, (Prajna: Revista de Culturas Orientais I, no. 1, (2020): 53-79. Lai (2009), Norden (2018) e Pocenski (2018)2, nenhuma delas sequer toca na questão. As traduções de Confúcio, como a de Yutang (1958), Ferreira (1968), Cheng (1983), Guerra (1984), Lau (2009) e Sinedino (2012) também não comentam minimamente sobre o assunto.3 Em algum momento essa ideia desapareceu das discussões da área, e somente um exame sobre as próprias fontes que Lisboa teria utilizado podem nos fornecer uma pista sobre como surgiu essa pouco usual classificação. Mas quem era Confúcio? Antes de seguirmos, é interessante saber um pouco mais sobre como os intelectuais brasileiros entendiam a figura de Confúcio. Havia um fascínio orientalista e idealizado pela figura do antigo sábio chinês. O jornal Opinião Liberal, por exemplo, possuía uma coluna chamada “jornal de Confúcio” (publicada na década de 1860), usada para criticar a política brasileira a partir da “recriação” estereotipada de um ponto de vista “chinês”. O mesmo foi feito pelo jornal A Mocidade na década de 1870, que publicava debates entre “sábios da antiguidade” (na verdade, redatores que usavam pseudônimos como Demócrito ou Confúcio) para igualmente atacar e debater as questões públicas do império brasileiro. Essas citações pitorescas revelam que Confúcio não era desconhecido do público letrado, e seu personagem habitava de alguma forma o imaginário do mesmo. O filósofo chinês fora apresentado ao público principalmente por meio das obras jesuítas, que emitiram pareceres favoráveis a esse personagem. Dono de uma moral profunda, e defensor de uma ética de reciprocidade que 2 3 David Smith, Religiões Chinesas (Lisboa: Arcadia, 1973); Max Kaltenmark, Filosofia Chinesa (Lisboa: Ed.70, 1977); Marcel Granet, O Pensamento Chinês (Rio de Janeiro: Contraponto, 1997); Joseph Adler, As Religiões da China (Lisboa: Ed.70, 2002); Annping Ching, O autêntico Confúcio (São Paulo: JCB, 2008); Anne Cheng, História do pensamento chinês (Petrópolis: Vozes, 2009); Karin Lai, Introdução a filosofia chinesa (São Paulo: Madras, 2009); Brian Norden, Introdução a filosofia chinesa clássica (Petrópolis: Vozes, 2018); Mario Poceski, Introdução as religiões chinesas (São Paulo: Unesp, 2018). Lin Yutang, A sabedoria de Confúcio (Rio de Janeiro: José Olympio, 1958); Múcio Ferreira, A doutrina de Confúcio (São Paulo: Cultrix, 1968); Anne Cheng, Diálogos de Confúcio (São Paulo: Ibrasa, 1983); Joaquim Guerra, O Quadrivolume de Confúcio (Macau: JM, 1984); D.C. Lau, Analectos (Porto Alegre: LP&M, 2009) e Giorgio Sinedino, Analectos (São Paulo: Ed.UNESP, 2012). 77 se aproximava do Cristianismo, Confúcio fora escolhido como a via de acesso à conversão da China, pois sua doutrina proporcionaria a abertura necessária ao diálogo entre culturas.4 Um deles, por exemplo, foi Francisco Almeida, cientista, astrônomo e intelectual que viajou até o Japão em 1879, e que nos forneceu uma descrição bastante interessante de Confúcio, revelando o quão poderosa essa figura o era em seu imaginário. No livro Viagem da França ao Japão5, um relato etnográfico das regiões por onde sua expedição passou, ele dedicou dois capítulos à China (VI e VII), praticamente voltados para criticá-la nas mais variadas formas e aspectos. Seu relato ácido sobre a sociedade, a política e os costumes chineses só realmente encontrou alívio em um único momento, quando fala de Confúcio: A superstição lavra na China nas classes inferiores, do mesmo modo que o fanatismo nos povos de raça latina, e por isso, vemos que quando aparece qualquer epidemia ou calamidade que aflija o país, em lugar de cuidarem de remover as causas do mal, quando é possível; os chins tornam-se inativos e desanimados, e limitam-se em rogar a proteção dos seus ídolos. Contudo, a nenhum indivíduo supersticioso, é confiado os empregos do Estado, e, em geral, os homens políticos da China, seguem a doutrina de Confúcio, verdadeiramente filosófica, e humanitária por excelência.6 Essa visão lisonjeira destoa do restante de sua obra, mas era compartilhada por figuras ilustres da política brasileira. Para citarmos outro exemplo, em 1878, em um discurso proferido em defesa da imigração chinesa para o Brasil, o Ministro e deputado Moreira de Barros afirmou que: 4 5 6 78 Ver Thierry Meynard, The Jesuit Reading of Confucius: The First Complete Translation of the Lunyu (1687) Published in the West (Leiden: Brill, 2015) 1-88; Lionel Jansen, Manufacturing Confucianism. (Durham: Duke University Press, 1998). Francisco Antonio de Almeida, Da França ao Japão: Narração de viagem e descrição histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros países da Ásia (Rio de Janeiro: Typ. Do Apostolo e Imperial Lithographia de A. Speltz),1879. Francisco Almeida, Da França ao Japão, 98. Além disto, todos sabem que os chins formam uma nação que existe politicamente há milhares de anos e não é uma raça tão corrupta, tão pervertida, como se quer fazer crer. Pode ter uma civilização diferente da nossa, mas é uma civilização própria e bem adiantada. Um país que teve um filósofo como Confúcio, até hoje respeitado, um país que tem governo regular há centenas de anos, quando tribos da América ainda não o tem, como pode ser chamado país degradado, aviltado, rebaixado, cujos filhos podem vir barbarizar-nos?7 Fica evidente, por esses dois fragmentos, que Confúcio era entendido como uma autoridade moral, um dos grandes personagens do passado e um artífice do Estado Chinês e de sua ideologia política; e essa leitura provavelmente era influenciada pelos relatos dos jesuítas. De fato, qualquer um que morasse no Rio de Janeiro (a capital do império) e quisesse aprender um pouco mais sobre a China só precisava ir até Biblioteca Nacional, onde mais de uma centena de obras sobre o tema, em português e em outras línguas, estavam disponíveis ao público. No entanto, esses materiais eram, em sua quase total maioria, produzidas pelos religiosos que missionaram no país, e estavam francamente desatualizadas, além de compartilharem uma visão voltada para a conversão. Isso significava que, para acompanhar os debates sobre imigração chinesa que vigoravam nas câmaras e nos periódicos, era necessário explorar outras fontes e autores, e analisar os relatos, experiências e materiais produzidos por um novo tipo de especialista – os sinólogos – que começaram a surgir nas academias europeias e dos Estados Unidos propondo uma visão alternativa, e mais científica, da civilização chinesa. 7 Anais do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro v.1, 1878 (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988), 194. 79 Trabalhadores Asiáticos, de Salvador Mendonça (1879) Ao longo da década de 1860, diversos autores brasileiros escreveram sobre a questão da imigração chinesa8; contudo, em 1879, Salvador Mendonça (1841-1913), cônsul do Brasil nos Estados Unidos, foi incumbido de produzir um estudo específico sobre a civilização chinesa e a questão da viabilidade da migração chinesa a partir da experiência norte-americana, que se transformou no livro Trabalhadores Asiáticos.9 Mendonça estava ciente de que precisava buscar fontes atualizadas, dentro da perspectiva de uma nova sinologia universitária, que se distanciasse da abordagem tradicionalmente religiosa. Como ele mesmo afirma: As instituições Chinesas foram, até bem pouco, estudadas através do véu enganador de uma certa ordem de escritores. Jesuítas, Dominicanos, Franciscanos, Lazaristas e outros padres Católicos Romanos foram os primeiros que se apresentaram nessa arena, desde que, há mais de três séculos, empreenderam a conversão desse povo ao Cristianismo. Os escritores Franceses e Alemães, que se lhes seguiram, limitaram-se quase exclusivamente a copiar-lhes as narrativas extensas e minuciosas, e das suas premissas só podiam tirar conclusões semelhantes. Quais podiam ser as premissas dos escritores eclesiásticos é fácil conhecer, sabendo-se quanto a sua Igreja odiou sempre a liberdade do povo: “Nenhum meio se deve poupar”, disse o Papa Clemente XIII, “para exterminar a peste fatal que tantos livros propagam. Sabemos quanto Gregório XVI incentivou a peste dentre todas mais temível em um Estado - a liberdade desenfreada de opinião, a nunca assaz execrada e detestável liberdade de imprensa”. Os princípios, as tendências e os interesses desses escritores ensinaram-nos a ampliar a majestade, a autoridade, a riqueza e a extensão do poder imperial. Tomaram o grande Império desconhecido e descreveram-no à feição de seu ideal, para mostrar para Europa que só uma nação de servos podia atingir tão vastas proporções. A estes escritores, que tinham seu plano político, seguiram-se os Ingleses, viajantes ou missionários, que têm também 8 9 80 André Bueno. “Sinology in the Brazilian Empire”, Academia Letters, 2021, https://doi.org/10.20935/AL2565) Salvador Mendonça. Trabalhadores Asiáticos. (New York: Typographia do Novo Mundo, 1879). motivo de suspeição. A consciência nacional na Inglaterra, no que diz respeito à China, está totalmente pervertida pelo fato de que a Grã Bretanha suporta o seu Império da Índia, enriquece largo número de seus súditos e conserva a chave do comércio do Oriente, porque cultiva na Índia e vende anualmente à China cem mil contos de réis de ópio. Os Ingleses são lógicos em não exaltarem o merecimento do povo que conscientemente estão envenenando, apesar de não raro se contradizerem, deparando extraordinária virtude em caracteres totalmente dados ao vício. Os Norte Americanos são incontestavelmente os que têm estudado a China com maior imparcialidade, apesar de ainda assim carregarem os seus missionários as cores com que descrevem esse povo pagão, para darem depois mais brilho à obra da sua propaganda.10 Como podemos notar, Mendonça pretendia, em seu estudo, descolar-se das influências religiosas que influenciavam em demasia o estudo científico da sinologia. Mesmo assim, ele estava ciente de que esse novo campo do saber também cumpria uma agenda política, como fica claro no seu comentário sobre os ingleses e franceses. Seu entendimento favorável a sinologia norte-americana estava calcado, sem dúvida, nas fontes que consultou, na maior parte provenientes desse país, como fica evidente ao longo das citações espalhadas pela sua obra (tendo como referências fundamentais Samuel Johnson11 e William Speer12) e no catálogo de sua biblioteca particular.13 Por outro lado, Mendonça – apesar de sua pretensa imparcialidade – deixava de lado o fato de que seu estudo era, também, uma pesquisa encomendada a partir de um projeto político e governamental do império brasileiro. O que nos interessa aqui é buscar de onde teriam vindo as ideias de que Confúcio era materialista. Henrique Lisboa era amigo pessoal de Salvador Mendonça, e cita-o ao menos sete vezes, diretamente, como uma das fontes de estudo para o livro A China e os chins. Pois 10 Salvador Mendonça, Trabalhadores Asiáticos, 70-71. 11 Samuel Johnson, Oriental Religions and Their Relation to Universal Religion: China. (Boston: Hougthon, Mifflin and Co., 1877). 12 William Speer, The Oldest and the Newest Empire: China and the United States. (Pittsburgh: R.S. Davis, 1877). 13 Salvador Mendonça, Catálogo da Collecção Salvador Mendonça. (Rio de Janeiro: Typographia da Bibliotheca Nacional, 1906). 81 bem, Mendonça também analisou o Confucionismo, dedicando-lhe um rápido parágrafo sobre a questão: A religião de Confúcio é mais um código de moral do que uma seita; no entanto o princípio panteísta da adoração da natureza tem-na feito classificar como tal. É a religião do Estado e tem por chefe o imperador. Os objetos do culto são de três classes: na primeira figuram o Céu, a terra, o templo dos imperadores finados e os deuses do solo e dos cereais, padroeiros da dinastia reinante; na segunda classe contam-se o sol, a lua, os manes dos imperadores das primeiras dinastias, Confúcio, os deuses padroeiros da agricultura e da seda, do céu, da terra e do ano que corre; a terceira classe é mais ampla e abrange o padroeiro da medicina, os espíritos dos filantropos, dos estadistas e dos mártires, as nuvens, a chuva, o vento e o trovão, as cinco montanhas celebradas, os quatro mares e os quatro rios, os outeiros famosos, os grandes cursos de água, os estandartes, as encruzilhadas, o canhão, as portas das cidades.14 Mais à frente, Mendonça ainda arrematava que, em função do Confucionismo, “O nível moral do povo é na verdade muito mais elevado do que o das nações ocidentais que mais trabalharam para a civilização Europeia”.15 A análise desses trechos nos informa alguns pontos importantes: o primeiro, da discussão corrente se o Confucionismos seria, ou não, uma religião (ou “seita”, como vimos, um termo desqualificativo), e sua capacidade de influenciar eticamente o povo chinês por meio de uma doutrina “não religiosa”; essa impressão positiva reforçava a ideia – presente no livro – de que os chineses poderiam ser trabalhadores adequados para lavoura brasileira, objetivo central do livro. A segunda consideração era sobre das questões morfológicas que envolveriam a definição dessa doutrina como “Panteísta”, dificultando sua compreensão teológica e religiosa. Como podemos obser var, essas afirmações parecem contraditórias, pois o entendimento do Confucionismo oscilava ora como uma filosofia, ora como um culto de características sacras. 14 Salvador Mendonça, Trabalhadores Asiáticos, 66. 15 Salvador Mendonça, Trabalhadores Asiáticos, 70. 82 O cerne do problema estava relacionado a renovação dos estudos religiosos na época, que pretendiam construir novas conceituações para compreender melhor as religiosidades africanas e asiáticas, que estavam sendo redescobertas pela academia. Os especialistas do século 19 tentavam, de alguma forma, descolar-se das análises feitas pelos escritores católicos; no entanto, muitos deles eram igualmente religiosos, e a transição de um conhecimento “cristão” para um conhecimento “científico” não era, nem de longe, um processo fácil ou completo.16 O exemplo claro disso é justamente a questão do “Panteísmo” – ou seja, a ideia de que Deus não é uma entidade pessoal e unívoca, mas Ele é tudo, faz parte de tudo e a tudo integra. Essa ideia não era nova – considera-se que ela tenha surgido com Baruch Espinosa (1632-1677)17 – mas era repudiada tanto por católicos como pelos protestantes, que consideravam o panteísmo uma doutrina equivocada e desviante. Essa classificação foi aplicada principalmente ao Hinduísmo, e vários autores discutiram se ela poderia ser empregada, também, para as religiosidades chinesas como Daoísmo e Confucionismo. Guillaume Pauthier foi um dos defensores dessa proposta, abraçando a ideia com entusiasmo; mas sua visão sobre o panteísmo era surpreendentemente favorável, e ele a considerava uma resposta adequada para explicar as possíveis unidade no pensamento religioso “oriental”.18 Em sentido contrário, Samuel Johnson considerou que as práticas panteístas chinesas não eram necessariamente ruins, mas dificultavam uma compreensão mais profunda do Cristianismo, do mesmo modo que impunham desafios a um diálogo conceitual e intercultural.19 Em seu estudo – que demonstra muito bem os problemas da transição entre o religioso e o científico para os padrões do século 19 -, ele afirma que: 16 Para a questão do desenvolvimento da Sinologia, ver Charles Le Blanc, Profession Sinologue. Montréal: Presses de l’Université de Montréal, 2007 e Bony Schachter, “O que é a Sinologia?” em Sinologia Hoje, André Bueno (ed.) (Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2020), 13-34. 17 James Allanson Picton. Pantheism: its story and significance. (Chicago: Archibald Constable & Company, 1905). 18 Ideia defendida nos livros Guillaume Pauthier, Les livres sacrés de l’orient. (Paris: Firmin Didot, 1840) e Mémoire sur l’origine et la propagation de la doctrine du Tao, fondée par Lao-Tseu, traduit du chinois, et accompagné d’un commentaire tiré des livres sanscrits et du Tao-Te-King de Lao-Tseu, établissant la conformité de certaines opinions philosophiques de la Chine et de l’Inde, orné d’un dessin chinois, suivi de deux «oupanichads» des Védas, avec le texte sanskrit et persan. (Paris: Imprimerie Dondey Dupré, 1831). 19 Samuel Johnson. Oriental Religions and Their Relation to Universal Religion: China. (Boston: Hougthon, Mifflin and Co., 1877) 705, (tradução do autor). 83 As dificuldades desta questão afligem os projetistas de uma tradução da Bíblia por todos os lados. Um caminho (Shin 神 [essência espiritual]) está nas rachaduras do panteísmo; do outro lado (Tian 天[“Céu”]) os abismos do materialismo. Isso causou uma divisão desesperada nas sociedades bíblicas e, até onde eu sei, a solução é tão remota como sempre. E isso obviamente pelas melhores razões. Enquanto a pergunta: “Quem é Deus na China?” parece ter sido finalmente decidida claramente em favor de Shangdi 上帝 (“Senhor do Alto”), a dificuldade prática é, afinal, que nenhum nome se adequa à concepção cristã, nem a transmite à mente chinesa. Podemos ir mais longe e acrescentar que, por admissão dos principais defensores de ambos os lados, a língua chinesa não tem nenhuma palavra capaz de prestar o serviço requerido para o “Deus da Bíblia”.20 Como podemos observar claramente, Johnson continuava a reproduzir a preocupação com a conversão dos chineses, o que é compreensível, já que ele era um pastor norte-americano. Notável, contudo, é que sua obra tenho sido apreciada como um estudo especializado sobre as religiões chinesas, e que deveria se distanciar das obras produzidas pelos missionários católicos. Nesse pequeno fragmento, podemos observar que a questão do panteísmo estava sendo utilizada para classificar as religiosidades chinesas, gerando inclusive as dificuldades de tradução conceitual. Johnson atenta igualmente ao problema de uma visão “materialista” das crenças chinesas – a questão do “Céu”. Desde a época dos jesuítas, debatia-se se o “Céu” era uma compreensão incompleta da ideia de “Paraíso” cristão ou se o termo era usado diretamente para designar Deus; no entanto, aos poucos foi-se percebendo que o “Céu” designava algo mais parecido com “Natureza” (ou, modernamente, “Ecologia”) do que uma entidade pessoal e criadora.21 Isso que fez com que se buscassem alternativas, como foi o caso do termo Shangdi (o “Senhor do Alto”, entidade do panteão chinês) para designar “Deus”. Johnson concluiu o seguinte sobre o assunto: 20 Samuel Johnson, Oriental Religions, 726, (tradução do autor). 21 Ver Luiz Felipe Urbieta Rego, “O Tianzhu Shiyi, ou o verdadeiro significado do senhor do céu: comentários sobre sua natureza e impacto” in Vários Orientes, André Bueno et alli (ed.) (Rio de Janeiro/ União da Vitória; Edições Sobre Ontens/LAPHIS, 2017), 317-324; Yu-Ming Shaw, “A Cultura Chinesa na visão do Ocidente” in Boff, Leornardo (org.) China e Cristianismo (Petrópolis: Vozes, 1979) 6-25; Wang Bin, “Deus e Tian, paradoxo de representação do que está para além da representação” (Revista de Cultura do Instituto Cultural de Macau, 26, 1994) 93-106. 84 É curioso notar quantos escritores cristãos sobre filosofia chinesa falharam em ver que a inerência da essência na manifestação em nenhum sentido implica materialismo; ou apenas implica naquele sentido elevado que dignifica o mundo concreto como a atividade real de todas as ideias, verdades e poderes. Vimos que em todas as principais obras de especulação e educação prática chinesas o imaterial é feito precedente ao material. A mesma terminologia perpassa todo esse desenvolvimento das Eras.22; Se por “materialismo” entendemos o que considero ser seu significado real, a saber, que a mente é o produto Humano das formas mais baixas de existência, então a filosofia chinesa, como demonstrada por suas principais escolas, não é em nenhum sentido materialista.23 Johnson entendia, portanto, que o panteísmo chinês, como uma interpretação sobre os dogmas cristãos, não atingia plenamente sua estrutura teológica de funcionamento, mas era capaz de alcançar algumas ideias fundamentais e proporcionar uma ordem moral suficiente. Note-se que, ao longo de sua análise, ele não conectou o Confucionismo diretamente com a questão do “materialismo”. Como podemos ver, é aqui que o problema do Confucionismo ser ou não uma religião se bifurca; pois se o “Céu” fosse interpretado pela teoria panteísta, então, ele poderia ser uma forma de religiosidade. Se o “Céu” fosse tomado pela natureza, porém, ele daria azo a existência uma doutrina materialista sobre o mundo (e o Confucionismo poderia ser, teoricamente, sua mais clara expressão). Mendonça seguiu a linha de Johnson e também não relacionou o “materialismo” com o Confucionismo - e até aqui, seguimos sem uma indicação mais precisa sobre isso. Sabemos que Henrique Lisboa lera tanto o trabalho de seu amigo como as fontes que ele indicara, mas para compreendermos como Confúcio se transformou em um “materialista”, precisamos ir em outra direção. 22 Samuel Johnson. Oriental Religions and Their Relation to Universal Religion: China. (Boston: Hougthon, Mifflin and Co., 1877), 940, (tradução do autor). 23 Samuel Johnson, Oriental religions, 94, (tradução do autor). 85 Confúcio, o “materialista chinês” Como havíamos comentando antes, o livro A China e os chins foi escrito a partir da experiência que Henrique Lisboa teve ao viajar para a China em 1880, haurindo um conhecimento direto sobre essa civilização, e produzindo aquele que podemos considerar como o primeiro trabalho sinológico brasileiro de facto. Lisboa estava na França quando a missão brasileira passou na Europa para incorporálo; junto com ele estava Arnold Vissière 91858-1930), que embarcou como intérprete e o iniciou nos estudos da língua chinesa. Lisboa aproveitou o tempo disponível para aprender o quanto podia antes de chegar na China, e seu livro é um conjunto de suas experiências in loco com as leituras que desenvolveu. Isso fica perceptível quando analisamos seus ensaios sobre Daoísmo e Confucionismo no capítulo VI. No caso do Daoísmo, não ficam dúvidas que suas fontes principais foram Mendonça e Pauthier24; mas no caso do Confucionismo, a questão torna-se mais complicada. A opinião de Lisboa sobre essa escola destoava das interpretações de outros sinólogos da mesma época. Vamos acompanhar a descrição do autor sobre as religiosidades chinesas e o Confucionismo; é um trecho relativamente longo, mas conectado, que nos permitirá fazer várias inferências. Ele inicia falando sobre o Culto imperial: O imperador é o supremo pontífice dessa religião e os mandarins, como representantes da autoridade imperial, são os seus únicos sacerdotes. As cerimônias, reguladas pelo Liji 禮記, livro dos ritos, e dirigidas por um ministério especial, são praticadas na capital e nas províncias nas épocas do ano consagradas a cada um desses cultos parciais. (...) Alguns autores católicos pretendem qualificar de politeísta esse antigo culto chinês, cujas formas externas não apresentam, entretanto, mais aparências de idolatria do que as do próprio cristianismo. Tian, espírito invisível e irreproduzível, é ali representado pelo seu sinal da língua escrita, no mesmo lugar ocupado nas nossas igrejas pelo símbolo da providência; à imagem de Jesus Cristo, que colocamos no altar maior, corresponde a do patrono do tem24 André Bueno e Kamila Czepula. “Uma estranha razão: leituras sobre o Daoísmo entre pensadores brasileiros, 1879-1982” (Prajna: Revista de Culturas Orientais I, n. 1 (2020): 63-65. 86 plo, e a virgem e os santos são substituídos pelos atributos inferiores de Tian. Causa impressão ao viajante essa semelhança do aspecto interior de templos de religiões tão diferentes. Prescindindo do cunho arquitetônico ou de ornamentação especial a cada raça e a cada civilização, veem-se em uns e outros os mesmos altares subidos em estrados entapetados, ostentando idênticos círios e vasos de flores artificiais; do teto caem suspensos iguais incensórios ou lâmpadas de metal, parecendo, enfim, copiados muitos outros detalhes. Nas igrejas católicas da China ainda mais se nota essa semelhança, pela conveniência que encontrou a propaganda em submeter ao gosto chinês a ornamentação, as vestimentas e o próprio penteado dos sacerdotes. Mas, se o materialismo que predomina nesse velho culto e o ceticismo dos seus adeptos oficiais ainda o conservam inominado entre as religiões do mundo, outro tanto não sucede com as seitas filosóficas dele nascidas, que representam na história religiosa da China papel não menos importante do que as reformas de Jesus Cristo, Maomé ou Lutero na das sociedades em que atuaram.25 Nesse primeiro trecho podemos identificar o diálogo de Lisboa com as ideias de Mendonça, Johnson e Pauthier, buscando identificar em Tian (o “Céu”) a figura central da religiosidade chinesa. Tomando como ponto de partida o problema de definir se Tian é ou não uma entidade pessoal ou um “espírito invisível e irreproduzível”, Lisboa parece, por fim, concebê-lo como um objeto panteísta (embora não use esse termo), que se exprime pelo “materialismo que predomina nesse velho culto e o ceticismo dos seus adeptos oficiais (que) ainda o conser vam inominado entre as religiões do mundo”. Pierre Laffite26, um dos mais importantes autores positivistas, e cuja obra fora consultada por Lisboa, defendia que “as extravagâncias panteístas são uma forma confusa, mas certa, dessa disposição espontânea das mentes cultivada para o fetichismo. (...) A partir disso, compreenderemos a importância do estudo da civilização chinesa, uma civilização essencialmente fetichista”, ou seja, uma cultura baseada em uma concepção teológica 25 Henrique Lisboa. A China e os Chins. Recordações de viagem do Ex. Secretário da Missão Especial do Brasil a China. (Montevideo: Typ. a vapor de A Gobel, 1888), 116-117. 26 Pierre Laffitte. Considérations générales sur l’ensemble de la civilisation chinoise. (Paris: Chez Dunod, 1861), 21. 87 que nem mesmo alcançara o politeísmo ou o monoteísmo, estando ainda muito aquém do conhecimento metafísico ou positivo - e por isso mesmo, atada aos liames do material e do “sobrenatural”. O uso do termo “materialismo” no fragmento de Lisboa é crucial, pois associa as teorias dos cultos oficiais do império chinês a questão levantada por Johnson, o “Céu” como o “abismo do materialismo” – ou seja, a interpretação de Tian como a estrutura sistêmica da Natureza, sem uma personalidade individual. Do mesmo modo, ele realiza as pontuais e sempre presentes comparações com o Cristianismo católico, de modo a informar o público brasileiro das semelhanças e diferenças entre eles e os chineses. No final do trecho, ele nos informa que irá introduzir suas apreciações sobre as “seitas filosóficas”, isto é, Daoísmo e Confucionismo, e seu papel na história chinesa. Iremos nos deter na segunda. Após ter feito uma apresentação da “seita dos racionalistas”27, Lisboa introduz a “seita dos materialistas”, como ele mesmo descreve: Mas, estas severas teorias, tão opostas ao espírito positivo daquela raça, não podiam manter-se por muito tempo em sua ingênua pureza. Os apóstolos da Razão acharam mais conveniente acrescentar-lhes práticas maravilhosas e imbuídas de superstições que afagavam mais as inclinações da camada inferior da população, única em que o culto de Laozi pôde encontrar favor, depois da aparição do seu poderoso contemporâneo Kongfuzi (Confúcio). Com efeito, as doutrinas materialistas deste filósofo obtiveram, desde logo, grande aceitação na classe governante do império e dos feudos em que se achava repartido o seu território, na época em que foi iniciada essa propaganda, 520 anos antes de Cristo. Encontrando já estabelecida a doutrina da Razão (Daoísmo), a propaganda de Confúcio ressente-se no seu princípio do desejo de transigir e não chocar com certa popularidade que tinham alcançado os sectários de Laozi. Entre os seus primeiros preceitos, nota-se claramente essa tendência; pregava, por exemplo, que a meditação era indispensável para chegar-se ao conhecimento de si mesmo, base da perfeição. Mas, à medida que se sentia mais forte, ia libertando-se pouco a pouco daquela influência, para passar 27 Henrique Lisboa. A China e os Chins, 116-117. 88 a um terreno mais prático. Facilmente se reconhece essa transição pelo estudo comparativo da máxima que citei e da posterior, em que fazia consistir a verdadeira sabedoria na iluminação das inspirações interiores, a fim de que os povos pudessem guiar-se pelo bom exemplo e as admoestações no caminho da Virtude (De 德), traçada pela Razão (Dao 道). Já aparece neste último preceito um objetivo prático da meditação ascética, aconselhada no primeiro; ainda conserva, todavia, o predomínio da Razão, talvez como simples homenagem a Laozi. Mais tarde, começa Confúcio a insinuar no seu sistema o materialismo, que não tardou em absorvê-lo, pregando, por exemplo, que a felicidade depende da tranquilidade de consciência, sem a qual o homem que olha não vê, o que escuta não ouve e o que come não toma o gosto dos alimentos.28 Nesse fragmento, Lisboa reproduz uma ideia corrente entre os sinólogos da época: Confúcio fora discípulo de Laozi, e iniciara sua carreira como pensador reproduzindo conceitos próprios do Daoísmo; no entanto, ele se desviaria da “seita da razão”, investindo em um novo discurso voltado para a moralidade do cotidiano, dedicando-se aos aspectos materiais da vida e a conser vação dos ritos. Visando uma ética da vida prática, Confúcio teria se preocupado em exercitar os sentidos, sentimentos e sua relação com os valores humanos. Segundo Lisboa, a questão é que Confúcio se preocupou em promover uma aproximação com os governantes, buscando instaurar uma reforma na ordem social: Depois que obteve a proteção dos poderosos príncipes de Qi e Lu desembaraçou-se completamente o filósofo das peias que ainda lhe impunham as doutrinas do seu predecessor. Na sua constante confusão da política com a religião, aconselha aos governantes um exercício justo e moderado do poder que lhes delega o Céu para a direção dos povos; a estes uma submissão ao príncipe igual à que deve votar o filho ao pai, a mulher ao marido. Compara o imperador a uma mãe que abraça carinhosamente o filho das suas entranhas e deve, ansiosa, adivinhar as suas menores necessidades, apenas ma- 28 Henrique Lisboa, A China e os chins, 118. 89 nifestadas por gestos ou lágrimas. Ensina que não se deve fazer aos inferiores o que se censura nos superiores, e vice-versa; ou que é agravo injustificado feito à Razão elevar os perversos às dignidades ou não derrubá-los, para exaltar em seu lugar os bons e meritórios. Aconselhando a virtude e o amor ao trabalho como simples bases para a boa marcha das sociedades, pouco se preocupou Confúcio com as formas do culto religioso, limitando-se a admitir a teologia e o cerimonial que encontrou estabelecidos.29 Esse outro fragmento é bastante esclarecedor: Confúcio “confunde política com religião”, “delega ao Céu a direção dos povos” e “pouco se preocupou com as formas do culto religioso”. Essas afirmações encaixam a doutrina de Confúcio com uma reinterpretação filosófica materialista das noções religiosas panteístas, manifestas pelo culto imperial. Devemos notar que Lisboa aproxima nitidamente o panteísmo do materialismo na interpretação do Confucionismo, por compreender que a dissolução do conceito de divindade na figura do “Céu” e a importância fundamental dada ao exercício das virtudes na sociedade e na política na vida mundana afastavam essa “seita” do que se concebia serem as verdadeiras “ideias religiosas” – ou, judaico-cristãs. Isso fica ainda mais evidente quando Lisboa comenta a indiferença do pensamento de Confúcio sobre as questões da morte e da vida espiritual: Não estão, mesmo, de acordo os seus comentadores se aceitou ou não a teoria da imortalidade da alma, inovada por Laozi; é possível que a adotasse enquanto teve de transigir com as doutrinas daquele mestre, mas que, depois de encaminhado francamente no materialismo puro do seu sistema, não se preocupasse da vida futura e repudiasse mesmo todas as ideias a esse respeito.30 E dentro da lógica sempre presente de comparar o pensamento chinês com o cristão, Lisboa arremata: 29 Henrique Lisboa, A China e os chins, 119. 30 Henrique Lisboa, A China e os chins, 119. 90 Esse indiferentismo por um dos princípios fundamentais da moral cristã e alguns poucos erros próprios da época e do meio em que vivia Confúcio, foram os únicos pontos fracos que os missionários puderam opor à sua filosofia, comparando-a com a de Jesus Cristo, que, a muitos respeitos, parece calcada sobre aquela.31 Essa aproximação e o fascínio que uniram Confucionismo e Cristianismo na visão dos primeiros missionários parecem ser o principal ponto de equívoco nas avaliações ocidentais iniciais sobre a cultura chinesa e, notadamente, sobre a doutrina de Confúcio, de acordo com o entendimento de Lisboa. Confúcio era um sábio materialista, preocupado com as questões do mundo material, da vida pública e do poder político, e sua escola não teria se preocupado fundamentalmente com as questões de ordem teológica e metafísica. Suas teorias teriam conseguido, porém, organizar um corpo de valores morais que foram capazes de impor ordem ao mundo chinês, e ‘já alcançaram os chins a meta a que ainda procuram chegar os europeus modernos, isto é: “deixar de lado as disputas e as questões especulativas para só cuidar do positivo, e fazer da religião um elemento de civilização e da filosofia a arte de viver em paz, a arte de saber mandar e obedecer’”.32 A valorização do imanente em detrimento do transcendente tornou a disseminação do Cristianismo um desafio notável, pois “Não podiam lutar as teorias abstratas, relativas a uma vida futura, contra uma filosofia prática, que tanto favorecia a constante preocupação dessa numerosa raça, sempre acabrunhada pelas mais urgentes necessidades da vida presente”.33 Contudo, Lisboa comete um equívoco ao acreditar que as teorias confucionistas só obtiveram sucesso definitivo e foram incorporadas ao Culto Imperial em 1150, após Zhuxi 朱熹 reorganizar a Escola Acadêmica (Rujia 儒家) e formar o cânone da doutrina.34 Essas ideias parecem originais frente aos outros trabalhos já citados pontualmente por Lisboa. Embora fosse comum entre os escritores 31 32 33 34 Henrique Lisboa, A China e os chins, 119. Henrique Lisboa, A China e os chins, 120. Henrique Lisboa, A China e os chins, 120. Henrique Lisboa, A China e os chins, 121. 91 do século 19 reproduzirem trechos de outros autores em seus próprios livros, apenas ocasionalmente as fontes eram citadas, e as relações bibliográficas ao final não eram norma geral. Por essa razão, analisar de onde Lisboa recolheu suas informações e opiniões acaba sendo um árduo trabalho de comparar frases e trechos que possam surgir em outras fontes, como é o caso específico do “materialismo confucionista”. Após um amplo trabalho de pesquisa, a chave para compreender essa ideia sobre Confúcio surgiu em um livro pouco conhecido entre os sinólogos atuais, e que iremos analisar agora. Confucius. Essai historique par un missionnaire, de Felix Gennevoise Na época em que Henrique Lisboa estava na França, antes de seu embarque com a missão brasileira, uma série de obras sobre a China estavam sendo publicadas no país, com uma recepção bastante variável. Havia uma nascente concorrência entre os sinólogos, que pretendiam publicar um conhecimento mais acadêmico, com os relatos dos missionários, que continuavam a publicar sobre suas experiências chinesas. As antes comentadas obras de Pauthier e Laffite alcançaram renome, e se tornaram referências; contudo, uma série de ensaios sobre a China chamou bastante atenção dos franceses, por situar-se numa posição bastante singular. Sob o pseudônimo de “Um Missionário”, o padre André Félix Chr ysostome Joseph Gennevoise (1835-1901) publicou diversas monografias sobre a China e sua cultura, fazendo análises críticas que se diferenciavam das obras correntes. Gennevoise atuou como missionário na China por anos e quase foi assassinado duas vezes (em 1869 e 1870), após o que retornou para Roma, onde começou a escrever suas impressões sobre esse país.35 Sua obra destaca-se por tecer uma profunda crítica a cultura e ao pensamento chinês, distinguindo-se dos seus colegas religiosos (principalmente os trabalhos jesuítas), que nutriam simpatia por essa civilização e buscavam meios para viabilizar o trabalho de conversão. 35 A biografia de Félix Gennevoise – ou ‘F. G.’, como igualmente assinava, pode ser vista em: https://www. irfa.paris/fr/notices/notices-biographiques/gennevoise Acessado em 29-08-2021. 92 Gennevoise não fazia concessões, e realizou um exame teológico e histórico sobre as crenças chinesas, aproximando-se bastante de uma abordagem acadêmica; contudo, apesar das duras críticas, ele mantinha as preocupações inerentes ao trabalho missionário cristão, pensando as possibilidades para tal mister. Assim, seus trabalhos atraíram atenção de estudiosos e dos leitores em geral por não serem nem entusiastas da China, nem excessivamente acadêmicas, e responderem aos interesses do público católico francês sobre as questões envolvendo as religiosidades chinesas. A conclusão geral de suas obras não costumava ser muito entusiasmante sobre a tarefa de converter a China; e Confúcio foi objeto de um exame detalhado em seu livro Confucius, Essai historique par un missionnaire36, publicado em 1874. Essa obra se opõe frontalmente aos discursos simpáticos sobre o Confucionismo escritos pelos missionários anteriores. Gennevoise lançou duras críticas a doutrina de Confúcio, contestando suas principais ideias e valores e propondo que, até então, houvera uma leitura equivocada sobre esse pensador e sua filosofia. Ele estava consciente dos debates sobre panteísmo e materialismo, mas em seu ponto de vista – fundado nos dogmas teológicos cristãos – ambos os termos eram sinonímicos em termos de pensamento chinês, pois lidavam com a questão da adoração da natureza e do desinteresse pela vida espiritual e futura. É no livro de Gennevoise, finalmente, que encontramos de forma clara a acusação de que Confúcio seria um sábio materialista. Ele afirmava que: Materialismo e Panteísmo: Quando alguém lê completamente as obras de Confúcio, é tomado por uma profunda tristeza; em vão buscamos, em meio a suas frases enfáticas ou lacônicas, algum dogma consolador; encontra-se sob esta casca enganosa apenas um materialismo grosseiro misturado com panteísmo. Aos olhos desse filósofo chinês, tudo é Deus menos o próprio Deus, e se ele venera, ou melhor, se adora os ancestrais, é porque eles fazem parte de uma região etérea cujos elementos são mais sutis. Seus discípulos inter36 Félix Gennevoise. Confucius: essai historique par un missionnaire. (Roma: Imprimerie Polyglotte de la S. C. de la Propagande, 1874). 93 pretaram sua doutrina tão bem no sentido panteísta que até hoje os estudiosos, cheios de desprezo pelo budismo e indiferença à todas as religiões, dizem que a natureza tem por si forças produtivas e que a alma é apenas uma parte vaporosa dessa substância universal.37 Aqui começamos a perceber quem seria a principal influência de Lisboa na escrita de sua seção sobre Confucionismo. Foi Gennevoise quem, efetivamente, associou os dois termos e criou uma percepção bastante específica de Confúcio, que não encontramos em outras obras do mesmo período. Seu entendimento era a seguinte: se o sábio chinês não adorava a Deus como os cristãos faziam, logo não ele não seria religioso no estrito sentido do termo (embora reconhecesse alguma ideia sobre sagrado), e caía, assim, na pecha de “materialista”. Isso ficava comprovado por suas ações inequívocas voltadas para a materialidade do cotidiano e das coisas mundanas. Para ele, Tian (“Céu”) era o conceito que corporificava a adoração a natureza, e Shangdi era apenas uma de suas expressões: É verdade que os literatos professam adorar o céu, que eles chamam de Tian, mas com isso eles se referem ao céu material e oferecem-lhe sacrifícios como oferecem aos espíritos de montanhas e rios, isto é - digamos, às montanhas e rios próprios. A substância superior Shangdi, que eles adoram, não é outra senão a virtude ativa do céu material, assim como o espírito da terra é para eles a própria terra ou a virtude natural que ela produz; assim, a natureza deificada é a fonte de todas as coisas, a essência dos seres, o princípio eterno, o fluido universal e a causa produtiva de todas as mudanças.38 Essas ideias rompiam com a percepção que os jesuítas desenvolveram durante séculos sobre o Confucionismo, pretendendo transformá-lo em uma ponte ética e filosófica para a conversão dos chineses. O projeto jesuíta buscara nos antigos fundamentos da Escola dos Acadêmicos (Rujia) um meio de diálogo com as teorias cristãs, retomando o passado como ponto de partida. O próprio termo ‘Confucionismo’ foi criado por esses missionários, em homenagem a Confúcio, e não existia no mundo chinês. Segundo Yu-Ming Shaw, 37 Félix Gennevoise, Confucius, 38-39, (tradução do autor). 38 Félix Gennevoise, Confucius, 39, (tradução do autor). 94 julgaram os jesuítas que o Neoconfucionismo desse tempo (séc.16) incorporara demasiadas influências budistas e taoístas, e que o Confucionismo primitivo (isto é, o confucionismo anterior ou até o tempo de Confúcio) continha muitas noções religiosas compatíveis com o Cristianismo. Por isso resolveram aceitar o confucionismo primitivo como base para desenvolver um diálogo espiritual com os letrados chineses.39 Essa retomada do passado alijou a dinâmica histórica do Confucionismo aos tempos antigos, tornando-o uma doutrina que pouco evoluíra, mas que preser vava seus valores espirituais, na visão dos missionários anteriores. Gennevoise discordava por completo disso, e repudiou o que considerava a completa negligência de Confúcio sobre os assuntos espirituais: “Ele mesclou com o panteísmo uma espécie de positivismo prático que ainda hoje é a principal regra de conduta do povo chinês”.40 A intertextualidade com o texto de Lisboa é notável, como podemos ver nos comentários sobre o “espírito positivo do povo chinês” (118 e 121); e Confúcio, que teria evitado a vida toda falar de Deus e de coisas espirituais41 insuflou decisivamente as tendências “materialistas” dos chineses, atendo-se ao problema dos costumes e da vida prática. A negação da espiritualidade de Confúcio vinha da intepretação literal de uma famosa passagem no Lunyu 論語, na qual o mestre conversa com seu discípulo Zilu: Zilu perguntou como servir aos Espíritos e aos deuses. O Mestre disse: “Ainda não és capaz de servir aos homens, como poderias servir aos Espíritos?” Zilu disse: “Posso vos perguntar sobre a morte?” O Mestre disse: “Ainda não conheces a vida, como poderias conhecer a morte?”42 Gennevoise tomou esse fragmento como símbolo maior do materialismo confucionista, em um desprezo total pelas questões da vida espiritual e futura. Ele precisou ignorar a farta literatura sobre 39 40 41 42 Yu-Ming Shaw, “A Cultura Chinesa na visão do Ocidente”, 6. Félix Gennevoise, Confucius, 40, (tradução do autor). Félix Gennevoise, Confucius, 40, (tradução do autor). Confucio, Lunyu, 11:21, (tradução do autor) 95 esse problema no Liji (o Livro dos Ritos), direcionando sua crítica ao personagem de Confúcio - e notemos, mais uma vez, que Lisboa acompanhou seu raciocínio, ao descrever a trajetória histórica das ‘seitas’ chinesas. Ademais, Gennevoise estava trabalhando uma nova forma de interpretar o Confucionismo a luz dos novos debates sobre religião, mas uma de suas ideias – Confúcio como materialista – não era absolutamente nova. Ele mesmo admitia, na página 117, que recorria a uma fonte anterior, o livro L’Empire du Millieu, do Marquês de Courcy (1867)43, para ajudar na construção de suas interpretações: O Sr. de Courcy, em sua obra “O Reino do Meio”, resume a moralidade de Confúcio da seguinte maneira: à submissão absoluta do filho à vontade do pai e, como corolário natural dessa submissão, a obediência respeitosa do sujeito às ordens do príncipe; - a humilde subordinação da mulher ao marido, das famílias ao chefe; - justiça e moderação, bases de qualquer relação social, regras supremas de conduta dos príncipes que devem prestar contas de suas ações ao céu de que são titulares sua autoridade; -a ciência de si mesmo que aprende a conter as próprias paixões em medida justa e prudente, fonte infalível de toda perfeição e de todo gozo; - a felicidade do homem baseada unicamente na satisfação que a virtude proporciona: tais são os pontos fundamentais do materialismo epicurista de Confúcio, que trata as divindades nacionais com respeitosa indiferença e mantém silêncio absoluto sobre a vida futura”.44 Courcy improvisara uma dessas expressões que tentam conjugar ideias sem necessariamente desenvolvê-las ou articulá-las. Ao chamar Confúcio de um “materialista epicurista”, ele queria dizer que o sábio chinês se dedicara aos problemas sensuais do mundo, em detrimento da vida espiritual, criando uma doutrina de regulação, mas também, de prazer e autossatisfação. Gennevoise adotou a ideia, que para ele explicava de forma nítida como Confúcio, em sua recusa em compreender a Divindade, criara teorias presas ao mundo material, que só podiam até certo ponto auxiliar na vida política e social. Mais 43 Marquis de Courcy, L’Empire du Millieu. (Paris: Didier, 1867). 44 Félix Gennevoise, Confucius, 117; Marquis de Courcy, L’Empire du Millieu, 526, (tradução do autor). 96 adiante, contudo, em seu ataque a Confúcio, o clérigo abandona o epicurismo para acusar Confúcio em outro sentido: Durante o século passado, e ainda hoje, o confucionismo foi muito exaltado por causa de suas máximas morais; ali se encontram, é verdade, frases bastante bonitas, mas quando se estuda mais essa teoria do meio-termo e essa virtude estóica que não se apoia em nenhum fundamento dogmático, fica-se espantado ao encontrar apenas o vazio. Esta religião sem Deus, sem alma e sem vida futura é como um navio sem piloto, sem velas, sem leme; e este Sábio que afirma dirigi-lo como um mestre da raça humana, é apenas um barco sem bússola que se abandona aos ventos.45 Notavelmente, Confúcio saiu do espectro dos epicuristas indiferentes de Courcy para os estóicos resilientes que, sem um amparo teológico monoteísta, se veem perdidos em uma doutrina de incertezas. Isso parece bastante contraditório com o testemunho de outros autores que viram o Confucionismo como uma escola capaz de pôr certa ordem na sociedade chinesa, ainda que não recorressem a elementos de “fundo religioso” para instituir essa ordem. De qualquer forma, as obras de Gennevoise alcançaram certa repercussão na época, por discordarem de uma visão comumente generosa e idealizada para com os chineses, inserindo-os em uma grade de leitura orientalista que atendia aos interesses imperiais e políticos franceses, tanto como ao público católico, interessado e preocupado em compreender, dentro do seu próprio ponto de vista, o que uma doutrina como o Confucionismo realmente significaria. Henrique Lisboa e seu Confúcio materialista Como podemos notar, a obra de Gennevoise era eivada de percepções discriminatórias próprias da época, mas conseguiu assentar-se em 45 Félix Gennevoise, Confucius, 121-122, (tradução do autor). 97 um espaço de conforto para os cristãos que estavam preocupados em entender a China. Ademais, suas colocações sobre a relação “panteísmo-materialismo” foram ponderadas pelos autores seguintes, que embora compreendessem a forte carga teológica católica em suas obser vações, entendiam também que esse era um ponto de vista compartilhado por muitos não-especialistas em China, e que poderia igualmente contribuir para os debates sobre estudos religiosos. Gradualmente, porém, as ideias de Gennevoise foram repelidas pela academia francesa, que passou a negar sistematicamente suas críticas demasiadamente religiosas que afastariam de um entendimento legítimo sobre a civilização chinesa. Os jesuítas retomaram seu papel de importância da Sinologia francófila, e os trabalhos de Séraphin Couvreur (1835-1919) e Léon Wieger (1853-1933) eclipsaram por completo os trabalhos do “Missionário”. No caso de Henrique Lisboa, é quase e praticamente certo que ele tenha lido a obra de Gennevoise (ou ao menos, tenha lido trechos do livro em resenhas ou notícias de jornal, como era comum na época), posto que o “Confúcio materialista” é uma criação desse autor; e algumas frases presentes no texto de Lisboa nos permitem supor que ele tenha ao menos traduzido partes do livro Confucius, ou entrado em contato com algum resumo da mesma. Se por um lado Lisboa usou Pauthier e Mendonça para analisar o Daoísmo, no caso do Confucionismo ele fez uma clara opção por um autor diferente. As razões para isso só podem ser conjecturadas, já que Lisboa não desenvolveu o assunto em seu livro. Apesar de crítico do trabalho dos missionários, nem por isso ele deixou de ser cristão e católico, embora pretendesse também se qualificar como sinólogo. Ao adotar as ideias de Gennevoise, Lisboa pode ter apenas se encantado com uma novidade conceitual, mas é provável também que a proposta do padre o deixasse mais confortável em relação a sua fé particular, proporcionando-lhe uma visão crítica e, ao mesmo tempo, religiosa. No entanto, Lisboa fora capaz de superar muitos dos preconceitos orientalistas da época contra a China, e ao longo de seu livro, essas concepções polêmicas são sistematicamente contrapostas as virtudes e qualidades do povo chinês, o que pode apontar, por fim, que Lisboa talvez quisesse apenas deixar seu público inteirado das discussões que envolviam o pensamento e a religiosidade chinesa. Seja como for, 98 A China e os chins é talvez o único livro fora da França que reproduziu formalmente a ideia de Confúcio como um “sábio materialista”, o que teria consequências interessantes na Sinologia brasileira. CONCLUSÃO: A VIR TUDE DE SER UM “SÁBIO MATERIALISTA” Após o lançamento do livro de Lisboa, os pensadores brasileiros que se dedicaram a estudar algo sobre Confúcio entre o final do século 19 e o início do 20 aceitaram e difundiram, de certa forma, a ideia do “sábio materialista”, embora não tenham se interessado pela origem dessa ideia (e Gennevoise nunca recebeu uma tradução em português). Contudo, a forte influência do Positivismo no cenário intelectual brasileiro nessa época fez com que essa ideia acabasse sendo retrabalhada de maneira favorável, e se tornasse um ponto “positivo” a favor do ancestral mestre chinês. O relativo distanciamento entre cristãos e positivistas permitiu que Confúcio se transformasse, para os intelectuais, em um sábio nos moldes dos antigos filósofos gregos, angariando respeito e curiosidade. Como analisei em meu artigo “Estudos sobre Confúcio no Brasil: a gênese de um problema”46, os debates sobre a percepção religiosa x filosófica sobre esse pensador continuaram, mas enquanto a visão católica praticamente retrocedeu a um estágio próximo das visões missionárias – e sua ingênua e excêntrica simpatia pelos chineses - , por outro lado, os pensadores brasileiros que se debruçaram sobre Confúcio perceberam nele uma figura poderosa e fundamental para compreender a Ásia sinocêntrica. O deslocamento do conceito de “panteísmo” para a esfera de uma intepretação filosófica da natureza permitiu que algumas interpretações notáveis surgissem; a mais destacada delas, com certeza, foi a publicação do livro A Philosophia de Confúcio por Ignácio Raposo em 193847, em que esse importante filósofo brasileiro apresentava uma versão da obras de Confúcio (a partir das traduções de Pauthier) que conciliavam a interpretação 46 André Bueno, “Estudos sobre Confúcio no Brasil: a gênese de um problema”, Revista Mythos, XI (2021): 12-26. 47 Ignácio Raposo, A Filosofia de Confúcio. (Rio de Janeiro: Companhia Brasil Editora, 1939). 99 panteísta com a valorização, justamente, do aspecto pragmático, realista e materialista de Confúcio, numa construção que só poder entendida como genuinamente brasileira. Antes que Confúcio voltasse ao domínio dos pensadores religiosos na década de 1950, seu entrelugar conceitual – o do sábio não religioso – proporcionou ideias bastante interessantes para pensarmos sua dimensão histórica e filosófica dentro do mundo Ocidental. BIBLIOGRAFIA Adler, Joseph. As Religiões da China. Lisboa: Ed.70, 2002. Almeida, Francisco Antonio de. Da França ao Japão: Narração de viagem e descrição histórica, usos e costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros países da Ásia. Rio de Janeiro: Typ. Do Apostolo e Imperial Lithographia de A. Speltz, 1879. Anais do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro v.1, 1878. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988. Annping, Ching. O autêntico Confúcio. São Paulo: JCB, 2008. Bueno, André ‘Sinology in the Brazilian Empire’. Academia Letters, 2021, Disponível em https://doi.org/10.20935/AL2565 – e Czepula, Kamila, “Uma estranha razão: leituras sobre o Daoísmo entre pensadores brasileiros, 1879-1982”. 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