CC.SIBDI.UCR - CIP/4129
Nombres:
Martínez Esquivel, Ricardo, autor y director. | Rodríguez Cascante,
Francisco, director. | Nagy-Zekmi, Silvia, prologuista.
Título:
Subjetividades orientalistas : imaginarios, cultura política y religiosidades / coordinadores Ricardo Martínez Esquivel, Francisco Rodríguez
Cascante ; prólogo por Silvia Nagy-Zekmi ; autores Ricardo Martínez
Esquivel [y otros veintidós].
Descripción:
Puntarenas, Costa Rica : Universidad de Costa Rica, Sede Regional
del Pacífico, Editorial Sede del Pacífico, 2024. | Colección Estudios
sobre las creencias y las religiosidades. Serie movimientos esotéricos
/ editores de la colección Ricardo Martínez Esquivel, Esteban Sánchez
Solano. | Contenido: Tomo I. Imaginarios – Tomo 2. Cultura política –
Tomo 3. Religiosidades.
Identificadores:
ISBN 978-9930-608-37-1 (obra completa : PDF) | ISBN 978-9930608-44-9 (Tomo I : PDF) | ISBN 978-9930-608-45-6 (Tomo II : PDF) |
ISBN 978-9930-608-46-3 (Tomo IIII : PDF)
Materias:
LEMB: Orientalismo. | Orientalismo – América Latina. | Orientalismo –
Aspectos sociales. | Orientalismo – Aspectos políticos. | Orientalismo –
Aspectos religiosos. | Orientalismo – Filosofía. | Oriente y Occidente.
Clasificación:
CDD 950 --ed. 23
® Editorial de la Sede del Pacífico, Universidad de Costa Rica.
Universidad de Costa Rica, Costa Rica, Puntarenas 2024.
Se permite la reproducción total del contenido de este documento solamente
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Dr. Oriester Abarca Hernández
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M.Sc. Baruc Chavarría Castro (filólogo en jefe)
Editor académico:
Dr. Ricardo Martínez Esquivel
Director Editorial Sede del Pacífico:
Dr. Oriester Abarca Hernández
Colección Estudios sobre las Creencias y las Religiosidades
Series Movimientos Esotéricos
Editores de la colección:
Dr. Ricardo Martínez Esquivel
Dr. Esteban Sánchez Solano
Consejo científico de la colección:
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Dr. José Ricardo Chaves
Dra. Monica Georgina Cinco Basurto
Dr. José Antonio Ferrer Benimeli
Dra. Karina Moret Miranda
Dra. Cécile Révauger
Ph.D. Guillermo de los Reyes Heredia
Dra. Ana María T. Rodriguez
Dr. Genaro Zalpa Ramírez
SUBJETIVIDADES ORIENTALISTAS:
TOMO III. RELIGIOSIDADES
SUBJETIVIDADES ORIENTALISTAS:
TOMO III. RELIGIOSIDADES
Coordinadores
Ricardo Martínez Esquivel
Francisco Rodríguez Cascante
ÍNDICE
Indice.................................................................... I
Prólogo
Silvia Nagy-Zekmi...................................................... V
Presentación
Ricardo Martínez Esquivel
Francisco Rodríguez Cascante..................................... XVII
El “orbe católico” en busca del “Oriente”:
España, la Santa Sede y su construcción del
Oriente como tierras por conquistar/civilizar,
siglos XVI y XVII
Esteban Sánchez Solano................................................................ 1
El orientalismo de la Misión China: Lecturas
sobre las religiosidades “otras” en el Confucius
Sinarum Philosophus
Ricardo Martínez Esquivel.......................................................... 35
Confúcio, um sábio materialista? interpretações
sobre o confucionismo entre pensadores
brasileiros no século XIX
André Bueno...................................................................... 75
El Gran Arquitecto del Universo y el daoísmo:
El sincretismo religioso en la migración masónica
china a México (1880-1934)
Fredy E. Cauich Carrillo.................................................. 105
La definición del místico (ṣūfī) y la mística (taṣaūf)
en Ibn Taymīyah
Julio César Cárdenas Arenas ........................................... 145
i
Poscolonialidad y religiosidad en la China
moderna: El desencanto de la soberanía
Mayfair Mei-hui Yang...................................................... 191
Sobre autores.................................................... 253
ii
CONFÚCIO, UM SÁBIO
MATERIALISTA? INTERPRETAÇÕES
SOBRE O CONFUCIONISMO ENTRE
PENSADORES BRASILEIROS
NO SÉCULO 19
André Bueno
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
orientalismo@gmail.com
ORCID: 0000-0003-4479-4407
INTRODUÇÃO
O
t exto que agora se apresenta nasceu de um incômodo e
de uma curiosidade. No período de 2018-2019 tive a grata oportunidade de atuar como bolsista pesquisador da
Fundação Biblioteca Nacional, uma das maiores e mais importantes
bibliotecas do mundo, situada na cidade do Rio de Janeiro. O tema
de minha pesquisa foi o nascimento de um projeto de Sinologia no
segundo reinado do Império do Brasil (1840-1889), analisando uma
série de trabalhos, produzidos por autores brasileiros, sobre a questão da imigração chinesa para o país. Embora essa iniciativa não tenha
sido bem sucedida pelas mais diversas razões – a principal delas, a
proclamação da República em 1889 e a modificação radical da estrutura política brasileira – , alguns textos conseguiram se tornar excelentes obras sinológicas, das quais se destaca A China e os chins, de
Henrique Lisboa, publicado em 1888. Esse livro, que acabou se tornando o centro de minhas pesquisas, foi produzido a partir dos estudos e das impressões de Lisboa, que acompanhou a primeira missão
oficial ao país realizada em 1880.
A China e os chins é um livro que apresenta relatos de viagem,
ensaios críticos e ao fim, uma dissertação sobre o crucial tema da
75
imigração chinesa, em torno da qual giravam as atenções de políticos
e intelectuais brasileiros. Contudo, como afirmei agora há pouco, algo
me chamou bastante atenção na obra de Lisboa: quando ele escreveu
sobre as “religiões chinesas”, referiu-se ao Daoísmo como “seita
da razão” e ao Confucionismo como “seita materialista”. Confesso
que, até então, nunca obser vara qualquer sinólogo utilizar esses
termos para designar as expressões do pensamento chinês. Desse
desconforto nasceu o interesse por investigar melhor a questão, e
compreender se Lisboa empregara neologismos ou se ele se baseava
em outras fontes.
A questão com o Daoísmo foi resolvida em um artigo recentemente
publicado1, que mostra como a denominação “Racionalista” fora
emprestada de um orientalismo romântico e esotérico, podendo até ser
considerada como simpática pelos pensadores brasileiros do século
19. O mesmo, porém, não pode ser dito do termo “materialista”, uma
alcunha relativamente problemática para essa mesma intelectualidade,
essencialmente cristã e europeurizada. Ser apegado ao profano e ao
material parecia algo pejorativo no imaginário religioso de grande
parte dos brasileiros; o termo fica ainda mais confuso quando Lisboa
nos informa que a doutrina de Confúcio seria uma “seita materialista”,
denominação que guarda evidente contradições e problemas. O
termo “seita” claramente não reconhecia o Confucionismo nem como
filosofia, nem como religião (já que essas noções eram balizadas pelo
teologia judaico-cristã), mas como uma forma depreciada e inferior
de religiosidade; “materialista”, porém, é um termo simplesmente
antagônico ao problema metafísico e teológico. De onde, pois, teria
Lisboa haurido essa consideração tão confusa e polêmica sobre a
Escola de Confúcio?
Um exame sobre a literatura sinológica atual não nos dá evidências
de qual seria a origem dessa classificação. Apenas para citarmos aquelas
traduzidas para a língua portuguesa, como Smith (1973), Kaltenmark
(1977), Granet (1997), Adelr (2002), Anping (2008), Cheng (2009),
1
76
André Bueno e Kamila Czepula, “Uma estranha razão: leituras sobre o Daoísmo entre pensadores brasileiros, 1879-1982”, (Prajna: Revista de Culturas Orientais I, no. 1, (2020): 53-79.
Lai (2009), Norden (2018) e Pocenski (2018)2, nenhuma delas sequer
toca na questão. As traduções de Confúcio, como a de Yutang (1958),
Ferreira (1968), Cheng (1983), Guerra (1984), Lau (2009) e Sinedino
(2012) também não comentam minimamente sobre o assunto.3 Em
algum momento essa ideia desapareceu das discussões da área, e
somente um exame sobre as próprias fontes que Lisboa teria utilizado
podem nos fornecer uma pista sobre como surgiu essa pouco usual
classificação.
Mas quem era Confúcio?
Antes de seguirmos, é interessante saber um pouco mais sobre
como os intelectuais brasileiros entendiam a figura de Confúcio.
Havia um fascínio orientalista e idealizado pela figura do antigo sábio
chinês. O jornal Opinião Liberal, por exemplo, possuía uma coluna
chamada “jornal de Confúcio” (publicada na década de 1860), usada
para criticar a política brasileira a partir da “recriação” estereotipada
de um ponto de vista “chinês”. O mesmo foi feito pelo jornal A
Mocidade na década de 1870, que publicava debates entre “sábios da
antiguidade” (na verdade, redatores que usavam pseudônimos como
Demócrito ou Confúcio) para igualmente atacar e debater as questões
públicas do império brasileiro. Essas citações pitorescas revelam que
Confúcio não era desconhecido do público letrado, e seu personagem
habitava de alguma forma o imaginário do mesmo. O filósofo chinês
fora apresentado ao público principalmente por meio das obras
jesuítas, que emitiram pareceres favoráveis a esse personagem. Dono
de uma moral profunda, e defensor de uma ética de reciprocidade que
2
3
David Smith, Religiões Chinesas (Lisboa: Arcadia, 1973); Max Kaltenmark, Filosofia Chinesa (Lisboa:
Ed.70, 1977); Marcel Granet, O Pensamento Chinês (Rio de Janeiro: Contraponto, 1997); Joseph Adler,
As Religiões da China (Lisboa: Ed.70, 2002); Annping Ching, O autêntico Confúcio (São Paulo: JCB,
2008); Anne Cheng, História do pensamento chinês (Petrópolis: Vozes, 2009); Karin Lai, Introdução
a filosofia chinesa (São Paulo: Madras, 2009); Brian Norden, Introdução a filosofia chinesa clássica
(Petrópolis: Vozes, 2018); Mario Poceski, Introdução as religiões chinesas (São Paulo: Unesp, 2018).
Lin Yutang, A sabedoria de Confúcio (Rio de Janeiro: José Olympio, 1958); Múcio Ferreira, A doutrina
de Confúcio (São Paulo: Cultrix, 1968); Anne Cheng, Diálogos de Confúcio (São Paulo: Ibrasa, 1983);
Joaquim Guerra, O Quadrivolume de Confúcio (Macau: JM, 1984); D.C. Lau, Analectos (Porto Alegre:
LP&M, 2009) e Giorgio Sinedino, Analectos (São Paulo: Ed.UNESP, 2012).
77
se aproximava do Cristianismo, Confúcio fora escolhido como a via
de acesso à conversão da China, pois sua doutrina proporcionaria a
abertura necessária ao diálogo entre culturas.4
Um deles, por exemplo, foi Francisco Almeida, cientista, astrônomo
e intelectual que viajou até o Japão em 1879, e que nos forneceu
uma descrição bastante interessante de Confúcio, revelando o quão
poderosa essa figura o era em seu imaginário. No livro Viagem da
França ao Japão5, um relato etnográfico das regiões por onde sua
expedição passou, ele dedicou dois capítulos à China (VI e VII),
praticamente voltados para criticá-la nas mais variadas formas e
aspectos. Seu relato ácido sobre a sociedade, a política e os costumes
chineses só realmente encontrou alívio em um único momento,
quando fala de Confúcio:
A superstição lavra na China nas classes inferiores, do mesmo
modo que o fanatismo nos povos de raça latina, e por isso, vemos
que quando aparece qualquer epidemia ou calamidade que aflija o
país, em lugar de cuidarem de remover as causas do mal, quando é
possível; os chins tornam-se inativos e desanimados, e limitam-se
em rogar a proteção dos seus ídolos. Contudo, a nenhum indivíduo
supersticioso, é confiado os empregos do Estado, e, em geral, os
homens políticos da China, seguem a doutrina de Confúcio, verdadeiramente filosófica, e humanitária por excelência.6
Essa visão lisonjeira destoa do restante de sua obra, mas era
compartilhada por figuras ilustres da política brasileira. Para citarmos
outro exemplo, em 1878, em um discurso proferido em defesa da
imigração chinesa para o Brasil, o Ministro e deputado Moreira de
Barros afirmou que:
4
5
6
78
Ver Thierry Meynard, The Jesuit Reading of Confucius: The First Complete Translation of the Lunyu
(1687) Published in the West (Leiden: Brill, 2015) 1-88; Lionel Jansen, Manufacturing Confucianism.
(Durham: Duke University Press, 1998).
Francisco Antonio de Almeida, Da França ao Japão: Narração de viagem e descrição histórica, usos e
costumes dos habitantes da China, do Japão e de outros países da Ásia (Rio de Janeiro: Typ. Do Apostolo e Imperial Lithographia de A. Speltz),1879.
Francisco Almeida, Da França ao Japão, 98.
Além disto, todos sabem que os chins formam uma nação que existe
politicamente há milhares de anos e não é uma raça tão corrupta,
tão pervertida, como se quer fazer crer. Pode ter uma civilização diferente da nossa, mas é uma civilização própria e bem adiantada. Um
país que teve um filósofo como Confúcio, até hoje respeitado, um
país que tem governo regular há centenas de anos, quando tribos da
América ainda não o tem, como pode ser chamado país degradado,
aviltado, rebaixado, cujos filhos podem vir barbarizar-nos?7
Fica evidente, por esses dois fragmentos, que Confúcio era
entendido como uma autoridade moral, um dos grandes personagens
do passado e um artífice do Estado Chinês e de sua ideologia
política; e essa leitura provavelmente era influenciada pelos relatos
dos jesuítas. De fato, qualquer um que morasse no Rio de Janeiro (a
capital do império) e quisesse aprender um pouco mais sobre a China
só precisava ir até Biblioteca Nacional, onde mais de uma centena
de obras sobre o tema, em português e em outras línguas, estavam
disponíveis ao público. No entanto, esses materiais eram, em sua quase
total maioria, produzidas pelos religiosos que missionaram no país, e
estavam francamente desatualizadas, além de compartilharem uma
visão voltada para a conversão. Isso significava que, para acompanhar
os debates sobre imigração chinesa que vigoravam nas câmaras e nos
periódicos, era necessário explorar outras fontes e autores, e analisar
os relatos, experiências e materiais produzidos por um novo tipo de
especialista – os sinólogos – que começaram a surgir nas academias
europeias e dos Estados Unidos propondo uma visão alternativa, e
mais científica, da civilização chinesa.
7
Anais do Congresso Agrícola do Rio de Janeiro v.1, 1878 (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988), 194.
79
Trabalhadores Asiáticos, de Salvador Mendonça (1879)
Ao longo da década de 1860, diversos autores brasileiros escreveram
sobre a questão da imigração chinesa8; contudo, em 1879, Salvador
Mendonça (1841-1913), cônsul do Brasil nos Estados Unidos, foi
incumbido de produzir um estudo específico sobre a civilização chinesa
e a questão da viabilidade da migração chinesa a partir da experiência
norte-americana, que se transformou no livro Trabalhadores Asiáticos.9
Mendonça estava ciente de que precisava buscar fontes atualizadas,
dentro da perspectiva de uma nova sinologia universitária, que se
distanciasse da abordagem tradicionalmente religiosa. Como ele
mesmo afirma:
As instituições Chinesas foram, até bem pouco, estudadas através
do véu enganador de uma certa ordem de escritores. Jesuítas, Dominicanos, Franciscanos, Lazaristas e outros padres Católicos Romanos foram os primeiros que se apresentaram nessa arena, desde que, há mais de três séculos, empreenderam a conversão desse
povo ao Cristianismo. Os escritores Franceses e Alemães, que se
lhes seguiram, limitaram-se quase exclusivamente a copiar-lhes as
narrativas extensas e minuciosas, e das suas premissas só podiam
tirar conclusões semelhantes. Quais podiam ser as premissas dos
escritores eclesiásticos é fácil conhecer, sabendo-se quanto a sua
Igreja odiou sempre a liberdade do povo: “Nenhum meio se deve
poupar”, disse o Papa Clemente XIII, “para exterminar a peste fatal
que tantos livros propagam. Sabemos quanto Gregório XVI incentivou a peste dentre todas mais temível em um Estado - a liberdade
desenfreada de opinião, a nunca assaz execrada e detestável liberdade de imprensa”. Os princípios, as tendências e os interesses desses escritores ensinaram-nos a ampliar a majestade, a autoridade, a
riqueza e a extensão do poder imperial. Tomaram o grande Império
desconhecido e descreveram-no à feição de seu ideal, para mostrar
para Europa que só uma nação de servos podia atingir tão vastas
proporções. A estes escritores, que tinham seu plano político, seguiram-se os Ingleses, viajantes ou missionários, que têm também
8
9
80
André Bueno. “Sinology in the Brazilian Empire”, Academia Letters, 2021, https://doi.org/10.20935/AL2565)
Salvador Mendonça. Trabalhadores Asiáticos. (New York: Typographia do Novo Mundo, 1879).
motivo de suspeição. A consciência nacional na Inglaterra, no que
diz respeito à China, está totalmente pervertida pelo fato de que a
Grã Bretanha suporta o seu Império da Índia, enriquece largo número de seus súditos e conserva a chave do comércio do Oriente,
porque cultiva na Índia e vende anualmente à China cem mil contos
de réis de ópio. Os Ingleses são lógicos em não exaltarem o merecimento do povo que conscientemente estão envenenando, apesar
de não raro se contradizerem, deparando extraordinária virtude em
caracteres totalmente dados ao vício. Os Norte Americanos são incontestavelmente os que têm estudado a China com maior imparcialidade, apesar de ainda assim carregarem os seus missionários as
cores com que descrevem esse povo pagão, para darem depois mais
brilho à obra da sua propaganda.10
Como podemos notar, Mendonça pretendia, em seu estudo,
descolar-se das influências religiosas que influenciavam em demasia
o estudo científico da sinologia. Mesmo assim, ele estava ciente de
que esse novo campo do saber também cumpria uma agenda política,
como fica claro no seu comentário sobre os ingleses e franceses. Seu
entendimento favorável a sinologia norte-americana estava calcado,
sem dúvida, nas fontes que consultou, na maior parte provenientes
desse país, como fica evidente ao longo das citações espalhadas pela
sua obra (tendo como referências fundamentais Samuel Johnson11 e
William Speer12) e no catálogo de sua biblioteca particular.13 Por outro
lado, Mendonça – apesar de sua pretensa imparcialidade – deixava de
lado o fato de que seu estudo era, também, uma pesquisa encomendada
a partir de um projeto político e governamental do império brasileiro.
O que nos interessa aqui é buscar de onde teriam vindo as ideias
de que Confúcio era materialista. Henrique Lisboa era amigo pessoal
de Salvador Mendonça, e cita-o ao menos sete vezes, diretamente,
como uma das fontes de estudo para o livro A China e os chins. Pois
10 Salvador Mendonça, Trabalhadores Asiáticos, 70-71.
11 Samuel Johnson, Oriental Religions and Their Relation to Universal Religion: China. (Boston: Hougthon, Mifflin and Co., 1877).
12 William Speer, The Oldest and the Newest Empire: China and the United States. (Pittsburgh: R.S. Davis, 1877).
13 Salvador Mendonça, Catálogo da Collecção Salvador Mendonça. (Rio de Janeiro: Typographia da Bibliotheca Nacional, 1906).
81
bem, Mendonça também analisou o Confucionismo, dedicando-lhe
um rápido parágrafo sobre a questão:
A religião de Confúcio é mais um código de moral do que uma seita;
no entanto o princípio panteísta da adoração da natureza tem-na feito
classificar como tal. É a religião do Estado e tem por chefe o imperador. Os objetos do culto são de três classes: na primeira figuram
o Céu, a terra, o templo dos imperadores finados e os deuses do
solo e dos cereais, padroeiros da dinastia reinante; na segunda classe contam-se o sol, a lua, os manes dos imperadores das primeiras
dinastias, Confúcio, os deuses padroeiros da agricultura e da seda,
do céu, da terra e do ano que corre; a terceira classe é mais ampla
e abrange o padroeiro da medicina, os espíritos dos filantropos, dos
estadistas e dos mártires, as nuvens, a chuva, o vento e o trovão,
as cinco montanhas celebradas, os quatro mares e os quatro rios,
os outeiros famosos, os grandes cursos de água, os estandartes, as
encruzilhadas, o canhão, as portas das cidades.14
Mais à frente, Mendonça ainda arrematava que, em função do
Confucionismo, “O nível moral do povo é na verdade muito mais
elevado do que o das nações ocidentais que mais trabalharam para
a civilização Europeia”.15 A análise desses trechos nos informa
alguns pontos importantes: o primeiro, da discussão corrente se
o Confucionismos seria, ou não, uma religião (ou “seita”, como
vimos, um termo desqualificativo), e sua capacidade de influenciar
eticamente o povo chinês por meio de uma doutrina “não religiosa”;
essa impressão positiva reforçava a ideia – presente no livro – de
que os chineses poderiam ser trabalhadores adequados para lavoura
brasileira, objetivo central do livro. A segunda consideração era
sobre das questões morfológicas que envolveriam a definição dessa
doutrina como “Panteísta”, dificultando sua compreensão teológica
e religiosa. Como podemos obser var, essas afirmações parecem
contraditórias, pois o entendimento do Confucionismo oscilava ora
como uma filosofia, ora como um culto de características sacras.
14 Salvador Mendonça, Trabalhadores Asiáticos, 66.
15 Salvador Mendonça, Trabalhadores Asiáticos, 70.
82
O cerne do problema estava relacionado a renovação dos estudos
religiosos na época, que pretendiam construir novas conceituações
para compreender melhor as religiosidades africanas e asiáticas,
que estavam sendo redescobertas pela academia. Os especialistas
do século 19 tentavam, de alguma forma, descolar-se das análises
feitas pelos escritores católicos; no entanto, muitos deles eram
igualmente religiosos, e a transição de um conhecimento “cristão”
para um conhecimento “científico” não era, nem de longe, um
processo fácil ou completo.16 O exemplo claro disso é justamente a
questão do “Panteísmo” – ou seja, a ideia de que Deus não é uma
entidade pessoal e unívoca, mas Ele é tudo, faz parte de tudo e a tudo
integra. Essa ideia não era nova – considera-se que ela tenha surgido
com Baruch Espinosa (1632-1677)17 – mas era repudiada tanto por
católicos como pelos protestantes, que consideravam o panteísmo
uma doutrina equivocada e desviante. Essa classificação foi aplicada
principalmente ao Hinduísmo, e vários autores discutiram se ela
poderia ser empregada, também, para as religiosidades chinesas
como Daoísmo e Confucionismo. Guillaume Pauthier foi um dos
defensores dessa proposta, abraçando a ideia com entusiasmo; mas
sua visão sobre o panteísmo era surpreendentemente favorável, e
ele a considerava uma resposta adequada para explicar as possíveis
unidade no pensamento religioso “oriental”.18 Em sentido contrário,
Samuel Johnson considerou que as práticas panteístas chinesas não
eram necessariamente ruins, mas dificultavam uma compreensão
mais profunda do Cristianismo, do mesmo modo que impunham
desafios a um diálogo conceitual e intercultural.19 Em seu estudo –
que demonstra muito bem os problemas da transição entre o religioso
e o científico para os padrões do século 19 -, ele afirma que:
16 Para a questão do desenvolvimento da Sinologia, ver Charles Le Blanc, Profession Sinologue. Montréal:
Presses de l’Université de Montréal, 2007 e Bony Schachter, “O que é a Sinologia?” em Sinologia Hoje,
André Bueno (ed.) (Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2020), 13-34.
17 James Allanson Picton. Pantheism: its story and significance. (Chicago: Archibald Constable & Company, 1905).
18 Ideia defendida nos livros Guillaume Pauthier, Les livres sacrés de l’orient. (Paris: Firmin Didot, 1840)
e Mémoire sur l’origine et la propagation de la doctrine du Tao, fondée par Lao-Tseu, traduit du chinois,
et accompagné d’un commentaire tiré des livres sanscrits et du Tao-Te-King de Lao-Tseu, établissant la
conformité de certaines opinions philosophiques de la Chine et de l’Inde, orné d’un dessin chinois, suivi de
deux «oupanichads» des Védas, avec le texte sanskrit et persan. (Paris: Imprimerie Dondey Dupré, 1831).
19 Samuel Johnson. Oriental Religions and Their Relation to Universal Religion: China. (Boston: Hougthon, Mifflin and Co., 1877) 705, (tradução do autor).
83
As dificuldades desta questão afligem os projetistas de uma tradução da Bíblia por todos os lados. Um caminho (Shin 神 [essência
espiritual]) está nas rachaduras do panteísmo; do outro lado (Tian
天[“Céu”]) os abismos do materialismo. Isso causou uma divisão
desesperada nas sociedades bíblicas e, até onde eu sei, a solução é
tão remota como sempre. E isso obviamente pelas melhores razões.
Enquanto a pergunta: “Quem é Deus na China?” parece ter sido finalmente decidida claramente em favor de Shangdi 上帝 (“Senhor
do Alto”), a dificuldade prática é, afinal, que nenhum nome se adequa à concepção cristã, nem a transmite à mente chinesa. Podemos
ir mais longe e acrescentar que, por admissão dos principais defensores de ambos os lados, a língua chinesa não tem nenhuma palavra
capaz de prestar o serviço requerido para o “Deus da Bíblia”.20
Como podemos observar claramente, Johnson continuava a reproduzir
a preocupação com a conversão dos chineses, o que é compreensível, já
que ele era um pastor norte-americano. Notável, contudo, é que sua obra
tenho sido apreciada como um estudo especializado sobre as religiões
chinesas, e que deveria se distanciar das obras produzidas pelos
missionários católicos. Nesse pequeno fragmento, podemos observar
que a questão do panteísmo estava sendo utilizada para classificar as
religiosidades chinesas, gerando inclusive as dificuldades de tradução
conceitual. Johnson atenta igualmente ao problema de uma visão
“materialista” das crenças chinesas – a questão do “Céu”. Desde a época
dos jesuítas, debatia-se se o “Céu” era uma compreensão incompleta
da ideia de “Paraíso” cristão ou se o termo era usado diretamente para
designar Deus; no entanto, aos poucos foi-se percebendo que o “Céu”
designava algo mais parecido com “Natureza” (ou, modernamente,
“Ecologia”) do que uma entidade pessoal e criadora.21 Isso que fez com
que se buscassem alternativas, como foi o caso do termo Shangdi (o
“Senhor do Alto”, entidade do panteão chinês) para designar “Deus”.
Johnson concluiu o seguinte sobre o assunto:
20 Samuel Johnson, Oriental Religions, 726, (tradução do autor).
21 Ver Luiz Felipe Urbieta Rego, “O Tianzhu Shiyi, ou o verdadeiro significado do senhor do céu: comentários sobre sua natureza e impacto” in Vários Orientes, André Bueno et alli (ed.) (Rio de Janeiro/
União da Vitória; Edições Sobre Ontens/LAPHIS, 2017), 317-324; Yu-Ming Shaw, “A Cultura Chinesa
na visão do Ocidente” in Boff, Leornardo (org.) China e Cristianismo (Petrópolis: Vozes, 1979) 6-25;
Wang Bin, “Deus e Tian, paradoxo de representação do que está para além da representação” (Revista de
Cultura do Instituto Cultural de Macau, 26, 1994) 93-106.
84
É curioso notar quantos escritores cristãos sobre filosofia chinesa
falharam em ver que a inerência da essência na manifestação em
nenhum sentido implica materialismo; ou apenas implica naquele
sentido elevado que dignifica o mundo concreto como a atividade
real de todas as ideias, verdades e poderes. Vimos que em todas as
principais obras de especulação e educação prática chinesas o imaterial é feito precedente ao material. A mesma terminologia perpassa
todo esse desenvolvimento das Eras.22; Se por “materialismo” entendemos o que considero ser seu significado real, a saber, que a mente
é o produto Humano das formas mais baixas de existência, então
a filosofia chinesa, como demonstrada por suas principais escolas,
não é em nenhum sentido materialista.23
Johnson entendia, portanto, que o panteísmo chinês, como uma
interpretação sobre os dogmas cristãos, não atingia plenamente sua
estrutura teológica de funcionamento, mas era capaz de alcançar
algumas ideias fundamentais e proporcionar uma ordem moral
suficiente. Note-se que, ao longo de sua análise, ele não conectou o
Confucionismo diretamente com a questão do “materialismo”. Como
podemos ver, é aqui que o problema do Confucionismo ser ou não
uma religião se bifurca; pois se o “Céu” fosse interpretado pela teoria
panteísta, então, ele poderia ser uma forma de religiosidade. Se o
“Céu” fosse tomado pela natureza, porém, ele daria azo a existência
uma doutrina materialista sobre o mundo (e o Confucionismo poderia
ser, teoricamente, sua mais clara expressão).
Mendonça seguiu a linha de Johnson e também não relacionou
o “materialismo” com o Confucionismo - e até aqui, seguimos sem
uma indicação mais precisa sobre isso. Sabemos que Henrique Lisboa
lera tanto o trabalho de seu amigo como as fontes que ele indicara,
mas para compreendermos como Confúcio se transformou em um
“materialista”, precisamos ir em outra direção.
22 Samuel Johnson. Oriental Religions and Their Relation to Universal Religion: China. (Boston: Hougthon, Mifflin and Co., 1877), 940, (tradução do autor).
23 Samuel Johnson, Oriental religions, 94, (tradução do autor).
85
Confúcio, o “materialista chinês”
Como havíamos comentando antes, o livro A China e os chins foi
escrito a partir da experiência que Henrique Lisboa teve ao viajar
para a China em 1880, haurindo um conhecimento direto sobre
essa civilização, e produzindo aquele que podemos considerar como
o primeiro trabalho sinológico brasileiro de facto. Lisboa estava na
França quando a missão brasileira passou na Europa para incorporálo; junto com ele estava Arnold Vissière 91858-1930), que embarcou
como intérprete e o iniciou nos estudos da língua chinesa. Lisboa
aproveitou o tempo disponível para aprender o quanto podia antes
de chegar na China, e seu livro é um conjunto de suas experiências
in loco com as leituras que desenvolveu. Isso fica perceptível quando
analisamos seus ensaios sobre Daoísmo e Confucionismo no capítulo
VI. No caso do Daoísmo, não ficam dúvidas que suas fontes principais
foram Mendonça e Pauthier24; mas no caso do Confucionismo, a
questão torna-se mais complicada. A opinião de Lisboa sobre essa
escola destoava das interpretações de outros sinólogos da mesma
época. Vamos acompanhar a descrição do autor sobre as religiosidades
chinesas e o Confucionismo; é um trecho relativamente longo, mas
conectado, que nos permitirá fazer várias inferências. Ele inicia
falando sobre o Culto imperial:
O imperador é o supremo pontífice dessa religião e os mandarins,
como representantes da autoridade imperial, são os seus únicos sacerdotes. As cerimônias, reguladas pelo Liji 禮記, livro dos ritos, e
dirigidas por um ministério especial, são praticadas na capital e nas
províncias nas épocas do ano consagradas a cada um desses cultos
parciais. (...) Alguns autores católicos pretendem qualificar de politeísta esse antigo culto chinês, cujas formas externas não apresentam, entretanto, mais aparências de idolatria do que as do próprio
cristianismo. Tian, espírito invisível e irreproduzível, é ali representado pelo seu sinal da língua escrita, no mesmo lugar ocupado nas
nossas igrejas pelo símbolo da providência; à imagem de Jesus Cristo, que colocamos no altar maior, corresponde a do patrono do tem24 André Bueno e Kamila Czepula. “Uma estranha razão: leituras sobre o Daoísmo entre pensadores brasileiros, 1879-1982” (Prajna: Revista de Culturas Orientais I, n. 1 (2020): 63-65.
86
plo, e a virgem e os santos são substituídos pelos atributos inferiores
de Tian. Causa impressão ao viajante essa semelhança do aspecto
interior de templos de religiões tão diferentes. Prescindindo do cunho arquitetônico ou de ornamentação especial a cada raça e a cada
civilização, veem-se em uns e outros os mesmos altares subidos em
estrados entapetados, ostentando idênticos círios e vasos de flores
artificiais; do teto caem suspensos iguais incensórios ou lâmpadas
de metal, parecendo, enfim, copiados muitos outros detalhes. Nas
igrejas católicas da China ainda mais se nota essa semelhança, pela
conveniência que encontrou a propaganda em submeter ao gosto
chinês a ornamentação, as vestimentas e o próprio penteado dos sacerdotes. Mas, se o materialismo que predomina nesse velho culto e
o ceticismo dos seus adeptos oficiais ainda o conservam inominado
entre as religiões do mundo, outro tanto não sucede com as seitas
filosóficas dele nascidas, que representam na história religiosa da
China papel não menos importante do que as reformas de Jesus
Cristo, Maomé ou Lutero na das sociedades em que atuaram.25
Nesse primeiro trecho podemos identificar o diálogo de Lisboa
com as ideias de Mendonça, Johnson e Pauthier, buscando identificar
em Tian (o “Céu”) a figura central da religiosidade chinesa. Tomando
como ponto de partida o problema de definir se Tian é ou não uma
entidade pessoal ou um “espírito invisível e irreproduzível”, Lisboa
parece, por fim, concebê-lo como um objeto panteísta (embora não
use esse termo), que se exprime pelo “materialismo que predomina
nesse velho culto e o ceticismo dos seus adeptos oficiais (que) ainda o
conser vam inominado entre as religiões do mundo”. Pierre Laffite26, um
dos mais importantes autores positivistas, e cuja obra fora consultada
por Lisboa, defendia que “as extravagâncias panteístas são uma forma
confusa, mas certa, dessa disposição espontânea das mentes cultivada
para o fetichismo. (...) A partir disso, compreenderemos a importância
do estudo da civilização chinesa, uma civilização essencialmente
fetichista”, ou seja, uma cultura baseada em uma concepção teológica
25 Henrique Lisboa. A China e os Chins. Recordações de viagem do Ex. Secretário da Missão Especial do
Brasil a China. (Montevideo: Typ. a vapor de A Gobel, 1888), 116-117.
26 Pierre Laffitte. Considérations générales sur l’ensemble de la civilisation chinoise. (Paris: Chez Dunod,
1861), 21.
87
que nem mesmo alcançara o politeísmo ou o monoteísmo, estando
ainda muito aquém do conhecimento metafísico ou positivo - e por isso
mesmo, atada aos liames do material e do “sobrenatural”. O uso do
termo “materialismo” no fragmento de Lisboa é crucial, pois associa
as teorias dos cultos oficiais do império chinês a questão levantada
por Johnson, o “Céu” como o “abismo do materialismo” – ou seja,
a interpretação de Tian como a estrutura sistêmica da Natureza,
sem uma personalidade individual. Do mesmo modo, ele realiza
as pontuais e sempre presentes comparações com o Cristianismo
católico, de modo a informar o público brasileiro das semelhanças e
diferenças entre eles e os chineses. No final do trecho, ele nos informa
que irá introduzir suas apreciações sobre as “seitas filosóficas”, isto
é, Daoísmo e Confucionismo, e seu papel na história chinesa. Iremos
nos deter na segunda. Após ter feito uma apresentação da “seita dos
racionalistas”27, Lisboa introduz a “seita dos materialistas”, como ele
mesmo descreve:
Mas, estas severas teorias, tão opostas ao espírito positivo daquela
raça, não podiam manter-se por muito tempo em sua ingênua pureza.
Os apóstolos da Razão acharam mais conveniente acrescentar-lhes
práticas maravilhosas e imbuídas de superstições que afagavam
mais as inclinações da camada inferior da população, única em que o
culto de Laozi pôde encontrar favor, depois da aparição do seu poderoso contemporâneo Kongfuzi (Confúcio). Com efeito, as doutrinas
materialistas deste filósofo obtiveram, desde logo, grande aceitação
na classe governante do império e dos feudos em que se achava repartido o seu território, na época em que foi iniciada essa propaganda, 520 anos antes de Cristo. Encontrando já estabelecida a doutrina
da Razão (Daoísmo), a propaganda de Confúcio ressente-se no seu
princípio do desejo de transigir e não chocar com certa popularidade
que tinham alcançado os sectários de Laozi. Entre os seus primeiros
preceitos, nota-se claramente essa tendência; pregava, por exemplo,
que a meditação era indispensável para chegar-se ao conhecimento
de si mesmo, base da perfeição. Mas, à medida que se sentia mais
forte, ia libertando-se pouco a pouco daquela influência, para passar
27 Henrique Lisboa. A China e os Chins, 116-117.
88
a um terreno mais prático. Facilmente se reconhece essa transição
pelo estudo comparativo da máxima que citei e da posterior, em que
fazia consistir a verdadeira sabedoria na iluminação das inspirações
interiores, a fim de que os povos pudessem guiar-se pelo bom exemplo e as admoestações no caminho da Virtude (De 德), traçada pela
Razão (Dao 道). Já aparece neste último preceito um objetivo prático da meditação ascética, aconselhada no primeiro; ainda conserva,
todavia, o predomínio da Razão, talvez como simples homenagem
a Laozi. Mais tarde, começa Confúcio a insinuar no seu sistema o
materialismo, que não tardou em absorvê-lo, pregando, por exemplo, que a felicidade depende da tranquilidade de consciência, sem a
qual o homem que olha não vê, o que escuta não ouve e o que come
não toma o gosto dos alimentos.28
Nesse fragmento, Lisboa reproduz uma ideia corrente entre os
sinólogos da época: Confúcio fora discípulo de Laozi, e iniciara sua
carreira como pensador reproduzindo conceitos próprios do Daoísmo;
no entanto, ele se desviaria da “seita da razão”, investindo em um
novo discurso voltado para a moralidade do cotidiano, dedicando-se
aos aspectos materiais da vida e a conser vação dos ritos. Visando uma
ética da vida prática, Confúcio teria se preocupado em exercitar os
sentidos, sentimentos e sua relação com os valores humanos. Segundo
Lisboa, a questão é que Confúcio se preocupou em promover uma
aproximação com os governantes, buscando instaurar uma reforma
na ordem social:
Depois que obteve a proteção dos poderosos príncipes de Qi e Lu
desembaraçou-se completamente o filósofo das peias que ainda
lhe impunham as doutrinas do seu predecessor. Na sua constante
confusão da política com a religião, aconselha aos governantes um
exercício justo e moderado do poder que lhes delega o Céu para a
direção dos povos; a estes uma submissão ao príncipe igual à que
deve votar o filho ao pai, a mulher ao marido. Compara o imperador
a uma mãe que abraça carinhosamente o filho das suas entranhas e
deve, ansiosa, adivinhar as suas menores necessidades, apenas ma-
28 Henrique Lisboa, A China e os chins, 118.
89
nifestadas por gestos ou lágrimas. Ensina que não se deve fazer aos
inferiores o que se censura nos superiores, e vice-versa; ou que é
agravo injustificado feito à Razão elevar os perversos às dignidades
ou não derrubá-los, para exaltar em seu lugar os bons e meritórios.
Aconselhando a virtude e o amor ao trabalho como simples bases
para a boa marcha das sociedades, pouco se preocupou Confúcio
com as formas do culto religioso, limitando-se a admitir a teologia e
o cerimonial que encontrou estabelecidos.29
Esse outro fragmento é bastante esclarecedor: Confúcio “confunde
política com religião”, “delega ao Céu a direção dos povos” e “pouco
se preocupou com as formas do culto religioso”. Essas afirmações
encaixam a doutrina de Confúcio com uma reinterpretação filosófica
materialista das noções religiosas panteístas, manifestas pelo
culto imperial. Devemos notar que Lisboa aproxima nitidamente o
panteísmo do materialismo na interpretação do Confucionismo, por
compreender que a dissolução do conceito de divindade na figura do
“Céu” e a importância fundamental dada ao exercício das virtudes
na sociedade e na política na vida mundana afastavam essa “seita”
do que se concebia serem as verdadeiras “ideias religiosas” – ou,
judaico-cristãs. Isso fica ainda mais evidente quando Lisboa comenta
a indiferença do pensamento de Confúcio sobre as questões da morte
e da vida espiritual:
Não estão, mesmo, de acordo os seus comentadores se aceitou ou
não a teoria da imortalidade da alma, inovada por Laozi; é possível
que a adotasse enquanto teve de transigir com as doutrinas daquele
mestre, mas que, depois de encaminhado francamente no materialismo puro do seu sistema, não se preocupasse da vida futura e repudiasse mesmo todas as ideias a esse respeito.30
E dentro da lógica sempre presente de comparar o pensamento
chinês com o cristão, Lisboa arremata:
29 Henrique Lisboa, A China e os chins, 119.
30 Henrique Lisboa, A China e os chins, 119.
90
Esse indiferentismo por um dos princípios fundamentais da moral
cristã e alguns poucos erros próprios da época e do meio em que
vivia Confúcio, foram os únicos pontos fracos que os missionários
puderam opor à sua filosofia, comparando-a com a de Jesus Cristo,
que, a muitos respeitos, parece calcada sobre aquela.31
Essa aproximação e o fascínio que uniram Confucionismo e
Cristianismo na visão dos primeiros missionários parecem ser o
principal ponto de equívoco nas avaliações ocidentais iniciais sobre
a cultura chinesa e, notadamente, sobre a doutrina de Confúcio,
de acordo com o entendimento de Lisboa. Confúcio era um sábio
materialista, preocupado com as questões do mundo material, da
vida pública e do poder político, e sua escola não teria se preocupado
fundamentalmente com as questões de ordem teológica e metafísica.
Suas teorias teriam conseguido, porém, organizar um corpo de
valores morais que foram capazes de impor ordem ao mundo chinês,
e ‘já alcançaram os chins a meta a que ainda procuram chegar os
europeus modernos, isto é: “deixar de lado as disputas e as questões
especulativas para só cuidar do positivo, e fazer da religião um
elemento de civilização e da filosofia a arte de viver em paz, a arte de
saber mandar e obedecer’”.32 A valorização do imanente em detrimento
do transcendente tornou a disseminação do Cristianismo um desafio
notável, pois “Não podiam lutar as teorias abstratas, relativas a uma
vida futura, contra uma filosofia prática, que tanto favorecia a constante
preocupação dessa numerosa raça, sempre acabrunhada pelas mais
urgentes necessidades da vida presente”.33 Contudo, Lisboa comete
um equívoco ao acreditar que as teorias confucionistas só obtiveram
sucesso definitivo e foram incorporadas ao Culto Imperial em 1150,
após Zhuxi 朱熹 reorganizar a Escola Acadêmica (Rujia 儒家) e
formar o cânone da doutrina.34
Essas ideias parecem originais frente aos outros trabalhos já citados
pontualmente por Lisboa. Embora fosse comum entre os escritores
31
32
33
34
Henrique Lisboa, A China e os chins, 119.
Henrique Lisboa, A China e os chins, 120.
Henrique Lisboa, A China e os chins, 120.
Henrique Lisboa, A China e os chins, 121.
91
do século 19 reproduzirem trechos de outros autores em seus
próprios livros, apenas ocasionalmente as fontes eram citadas, e as
relações bibliográficas ao final não eram norma geral. Por essa razão,
analisar de onde Lisboa recolheu suas informações e opiniões acaba
sendo um árduo trabalho de comparar frases e trechos que possam
surgir em outras fontes, como é o caso específico do “materialismo
confucionista”. Após um amplo trabalho de pesquisa, a chave para
compreender essa ideia sobre Confúcio surgiu em um livro pouco
conhecido entre os sinólogos atuais, e que iremos analisar agora.
Confucius. Essai historique par un missionnaire, de Felix
Gennevoise
Na época em que Henrique Lisboa estava na França, antes de
seu embarque com a missão brasileira, uma série de obras sobre a
China estavam sendo publicadas no país, com uma recepção bastante
variável. Havia uma nascente concorrência entre os sinólogos, que
pretendiam publicar um conhecimento mais acadêmico, com os
relatos dos missionários, que continuavam a publicar sobre suas
experiências chinesas. As antes comentadas obras de Pauthier e Laffite
alcançaram renome, e se tornaram referências; contudo, uma série de
ensaios sobre a China chamou bastante atenção dos franceses, por
situar-se numa posição bastante singular. Sob o pseudônimo de “Um
Missionário”, o padre André Félix Chr ysostome Joseph Gennevoise
(1835-1901) publicou diversas monografias sobre a China e sua cultura,
fazendo análises críticas que se diferenciavam das obras correntes.
Gennevoise atuou como missionário na China por anos e quase
foi assassinado duas vezes (em 1869 e 1870), após o que retornou
para Roma, onde começou a escrever suas impressões sobre esse
país.35 Sua obra destaca-se por tecer uma profunda crítica a cultura
e ao pensamento chinês, distinguindo-se dos seus colegas religiosos
(principalmente os trabalhos jesuítas), que nutriam simpatia por essa
civilização e buscavam meios para viabilizar o trabalho de conversão.
35 A biografia de Félix Gennevoise – ou ‘F. G.’, como igualmente assinava, pode ser vista em: https://www.
irfa.paris/fr/notices/notices-biographiques/gennevoise Acessado em 29-08-2021.
92
Gennevoise não fazia concessões, e realizou um exame teológico e
histórico sobre as crenças chinesas, aproximando-se bastante de
uma abordagem acadêmica; contudo, apesar das duras críticas, ele
mantinha as preocupações inerentes ao trabalho missionário cristão,
pensando as possibilidades para tal mister. Assim, seus trabalhos
atraíram atenção de estudiosos e dos leitores em geral por não
serem nem entusiastas da China, nem excessivamente acadêmicas,
e responderem aos interesses do público católico francês sobre as
questões envolvendo as religiosidades chinesas. A conclusão geral de
suas obras não costumava ser muito entusiasmante sobre a tarefa de
converter a China; e Confúcio foi objeto de um exame detalhado em
seu livro Confucius, Essai historique par un missionnaire36, publicado
em 1874.
Essa obra se opõe frontalmente aos discursos simpáticos sobre o
Confucionismo escritos pelos missionários anteriores. Gennevoise
lançou duras críticas a doutrina de Confúcio, contestando suas
principais ideias e valores e propondo que, até então, houvera uma
leitura equivocada sobre esse pensador e sua filosofia. Ele estava
consciente dos debates sobre panteísmo e materialismo, mas em seu
ponto de vista – fundado nos dogmas teológicos cristãos – ambos
os termos eram sinonímicos em termos de pensamento chinês, pois
lidavam com a questão da adoração da natureza e do desinteresse
pela vida espiritual e futura. É no livro de Gennevoise, finalmente,
que encontramos de forma clara a acusação de que Confúcio seria um
sábio materialista. Ele afirmava que:
Materialismo e Panteísmo: Quando alguém lê completamente as
obras de Confúcio, é tomado por uma profunda tristeza; em vão buscamos, em meio a suas frases enfáticas ou lacônicas, algum dogma
consolador; encontra-se sob esta casca enganosa apenas um materialismo grosseiro misturado com panteísmo. Aos olhos desse filósofo chinês, tudo é Deus menos o próprio Deus, e se ele venera, ou
melhor, se adora os ancestrais, é porque eles fazem parte de uma
região etérea cujos elementos são mais sutis. Seus discípulos inter36 Félix Gennevoise. Confucius: essai historique par un missionnaire. (Roma: Imprimerie Polyglotte de la
S. C. de la Propagande, 1874).
93
pretaram sua doutrina tão bem no sentido panteísta que até hoje os
estudiosos, cheios de desprezo pelo budismo e indiferença à todas
as religiões, dizem que a natureza tem por si forças produtivas e que
a alma é apenas uma parte vaporosa dessa substância universal.37
Aqui começamos a perceber quem seria a principal influência de Lisboa
na escrita de sua seção sobre Confucionismo. Foi Gennevoise quem,
efetivamente, associou os dois termos e criou uma percepção bastante
específica de Confúcio, que não encontramos em outras obras do mesmo
período. Seu entendimento era a seguinte: se o sábio chinês não adorava
a Deus como os cristãos faziam, logo não ele não seria religioso no estrito
sentido do termo (embora reconhecesse alguma ideia sobre sagrado), e
caía, assim, na pecha de “materialista”. Isso ficava comprovado por suas
ações inequívocas voltadas para a materialidade do cotidiano e das coisas
mundanas. Para ele, Tian (“Céu”) era o conceito que corporificava a
adoração a natureza, e Shangdi era apenas uma de suas expressões:
É verdade que os literatos professam adorar o céu, que eles chamam de Tian, mas com isso eles se referem ao céu material e oferecem-lhe sacrifícios como oferecem aos espíritos de montanhas e
rios, isto é - digamos, às montanhas e rios próprios. A substância
superior Shangdi, que eles adoram, não é outra senão a virtude ativa
do céu material, assim como o espírito da terra é para eles a própria
terra ou a virtude natural que ela produz; assim, a natureza deificada
é a fonte de todas as coisas, a essência dos seres, o princípio eterno,
o fluido universal e a causa produtiva de todas as mudanças.38
Essas ideias rompiam com a percepção que os jesuítas desenvolveram
durante séculos sobre o Confucionismo, pretendendo transformá-lo em
uma ponte ética e filosófica para a conversão dos chineses. O projeto
jesuíta buscara nos antigos fundamentos da Escola dos Acadêmicos
(Rujia) um meio de diálogo com as teorias cristãs, retomando o passado
como ponto de partida. O próprio termo ‘Confucionismo’ foi criado por
esses missionários, em homenagem a Confúcio, e não existia no mundo
chinês. Segundo Yu-Ming Shaw,
37 Félix Gennevoise, Confucius, 38-39, (tradução do autor).
38 Félix Gennevoise, Confucius, 39, (tradução do autor).
94
julgaram os jesuítas que o Neoconfucionismo desse tempo (séc.16)
incorporara demasiadas influências budistas e taoístas, e que o
Confucionismo primitivo (isto é, o confucionismo anterior ou até o
tempo de Confúcio) continha muitas noções religiosas compatíveis
com o Cristianismo. Por isso resolveram aceitar o confucionismo
primitivo como base para desenvolver um diálogo espiritual com os
letrados chineses.39
Essa retomada do passado alijou a dinâmica histórica do
Confucionismo aos tempos antigos, tornando-o uma doutrina que pouco
evoluíra, mas que preser vava seus valores espirituais, na visão dos
missionários anteriores. Gennevoise discordava por completo disso, e
repudiou o que considerava a completa negligência de Confúcio sobre
os assuntos espirituais: “Ele mesclou com o panteísmo uma espécie
de positivismo prático que ainda hoje é a principal regra de conduta
do povo chinês”.40 A intertextualidade com o texto de Lisboa é notável,
como podemos ver nos comentários sobre o “espírito positivo do povo
chinês” (118 e 121); e Confúcio, que teria evitado a vida toda falar de
Deus e de coisas espirituais41 insuflou decisivamente as tendências
“materialistas” dos chineses, atendo-se ao problema dos costumes e
da vida prática. A negação da espiritualidade de Confúcio vinha da
intepretação literal de uma famosa passagem no Lunyu 論語, na qual
o mestre conversa com seu discípulo Zilu:
Zilu perguntou como servir aos Espíritos e aos deuses. O Mestre
disse: “Ainda não és capaz de servir aos homens, como poderias servir aos Espíritos?” Zilu disse: “Posso vos perguntar sobre a morte?”
O Mestre disse: “Ainda não conheces a vida, como poderias conhecer a morte?”42
Gennevoise tomou esse fragmento como símbolo maior do
materialismo confucionista, em um desprezo total pelas questões da
vida espiritual e futura. Ele precisou ignorar a farta literatura sobre
39
40
41
42
Yu-Ming Shaw, “A Cultura Chinesa na visão do Ocidente”, 6.
Félix Gennevoise, Confucius, 40, (tradução do autor).
Félix Gennevoise, Confucius, 40, (tradução do autor).
Confucio, Lunyu, 11:21, (tradução do autor)
95
esse problema no Liji (o Livro dos Ritos), direcionando sua crítica
ao personagem de Confúcio - e notemos, mais uma vez, que Lisboa
acompanhou seu raciocínio, ao descrever a trajetória histórica das
‘seitas’ chinesas. Ademais, Gennevoise estava trabalhando uma nova
forma de interpretar o Confucionismo a luz dos novos debates sobre
religião, mas uma de suas ideias – Confúcio como materialista – não
era absolutamente nova. Ele mesmo admitia, na página 117, que
recorria a uma fonte anterior, o livro L’Empire du Millieu, do Marquês
de Courcy (1867)43, para ajudar na construção de suas interpretações:
O Sr. de Courcy, em sua obra “O Reino do Meio”, resume a moralidade de Confúcio da seguinte maneira: à submissão absoluta do
filho à vontade do pai e, como corolário natural dessa submissão,
a obediência respeitosa do sujeito às ordens do príncipe; - a humilde subordinação da mulher ao marido, das famílias ao chefe;
- justiça e moderação, bases de qualquer relação social, regras
supremas de conduta dos príncipes que devem prestar contas de
suas ações ao céu de que são titulares sua autoridade; -a ciência
de si mesmo que aprende a conter as próprias paixões em medida
justa e prudente, fonte infalível de toda perfeição e de todo gozo;
- a felicidade do homem baseada unicamente na satisfação que a
virtude proporciona: tais são os pontos fundamentais do materialismo epicurista de Confúcio, que trata as divindades nacionais
com respeitosa indiferença e mantém silêncio absoluto sobre a
vida futura”.44
Courcy improvisara uma dessas expressões que tentam conjugar
ideias sem necessariamente desenvolvê-las ou articulá-las. Ao chamar
Confúcio de um “materialista epicurista”, ele queria dizer que o sábio
chinês se dedicara aos problemas sensuais do mundo, em detrimento
da vida espiritual, criando uma doutrina de regulação, mas também,
de prazer e autossatisfação. Gennevoise adotou a ideia, que para
ele explicava de forma nítida como Confúcio, em sua recusa em
compreender a Divindade, criara teorias presas ao mundo material,
que só podiam até certo ponto auxiliar na vida política e social. Mais
43 Marquis de Courcy, L’Empire du Millieu. (Paris: Didier, 1867).
44 Félix Gennevoise, Confucius, 117; Marquis de Courcy, L’Empire du Millieu, 526, (tradução do autor).
96
adiante, contudo, em seu ataque a Confúcio, o clérigo abandona o
epicurismo para acusar Confúcio em outro sentido:
Durante o século passado, e ainda hoje, o confucionismo foi muito exaltado por causa de suas máximas morais; ali se encontram, é
verdade, frases bastante bonitas, mas quando se estuda mais essa
teoria do meio-termo e essa virtude estóica que não se apoia em nenhum fundamento dogmático, fica-se espantado ao encontrar apenas
o vazio. Esta religião sem Deus, sem alma e sem vida futura é como
um navio sem piloto, sem velas, sem leme; e este Sábio que afirma
dirigi-lo como um mestre da raça humana, é apenas um barco sem
bússola que se abandona aos ventos.45
Notavelmente, Confúcio saiu do espectro dos epicuristas
indiferentes de Courcy para os estóicos resilientes que, sem um
amparo teológico monoteísta, se veem perdidos em uma doutrina de
incertezas. Isso parece bastante contraditório com o testemunho de
outros autores que viram o Confucionismo como uma escola capaz de
pôr certa ordem na sociedade chinesa, ainda que não recorressem a
elementos de “fundo religioso” para instituir essa ordem.
De qualquer forma, as obras de Gennevoise alcançaram certa
repercussão na época, por discordarem de uma visão comumente
generosa e idealizada para com os chineses, inserindo-os em uma
grade de leitura orientalista que atendia aos interesses imperiais e
políticos franceses, tanto como ao público católico, interessado e
preocupado em compreender, dentro do seu próprio ponto de vista, o
que uma doutrina como o Confucionismo realmente significaria.
Henrique Lisboa e seu Confúcio materialista
Como podemos notar, a obra de Gennevoise era eivada de percepções
discriminatórias próprias da época, mas conseguiu assentar-se em
45 Félix Gennevoise, Confucius, 121-122, (tradução do autor).
97
um espaço de conforto para os cristãos que estavam preocupados
em entender a China. Ademais, suas colocações sobre a relação
“panteísmo-materialismo” foram ponderadas pelos autores seguintes,
que embora compreendessem a forte carga teológica católica em
suas obser vações, entendiam também que esse era um ponto de vista
compartilhado por muitos não-especialistas em China, e que poderia
igualmente contribuir para os debates sobre estudos religiosos.
Gradualmente, porém, as ideias de Gennevoise foram repelidas pela
academia francesa, que passou a negar sistematicamente suas críticas
demasiadamente religiosas que afastariam de um entendimento
legítimo sobre a civilização chinesa. Os jesuítas retomaram seu papel
de importância da Sinologia francófila, e os trabalhos de Séraphin
Couvreur (1835-1919) e Léon Wieger (1853-1933) eclipsaram por
completo os trabalhos do “Missionário”.
No caso de Henrique Lisboa, é quase e praticamente certo que
ele tenha lido a obra de Gennevoise (ou ao menos, tenha lido trechos
do livro em resenhas ou notícias de jornal, como era comum na
época), posto que o “Confúcio materialista” é uma criação desse
autor; e algumas frases presentes no texto de Lisboa nos permitem
supor que ele tenha ao menos traduzido partes do livro Confucius, ou
entrado em contato com algum resumo da mesma. Se por um lado
Lisboa usou Pauthier e Mendonça para analisar o Daoísmo, no caso
do Confucionismo ele fez uma clara opção por um autor diferente.
As razões para isso só podem ser conjecturadas, já que Lisboa não
desenvolveu o assunto em seu livro. Apesar de crítico do trabalho
dos missionários, nem por isso ele deixou de ser cristão e católico,
embora pretendesse também se qualificar como sinólogo. Ao adotar
as ideias de Gennevoise, Lisboa pode ter apenas se encantado com
uma novidade conceitual, mas é provável também que a proposta
do padre o deixasse mais confortável em relação a sua fé particular,
proporcionando-lhe uma visão crítica e, ao mesmo tempo, religiosa.
No entanto, Lisboa fora capaz de superar muitos dos preconceitos
orientalistas da época contra a China, e ao longo de seu livro, essas
concepções polêmicas são sistematicamente contrapostas as virtudes
e qualidades do povo chinês, o que pode apontar, por fim, que Lisboa
talvez quisesse apenas deixar seu público inteirado das discussões
que envolviam o pensamento e a religiosidade chinesa. Seja como for,
98
A China e os chins é talvez o único livro fora da França que reproduziu
formalmente a ideia de Confúcio como um “sábio materialista”, o que
teria consequências interessantes na Sinologia brasileira.
CONCLUSÃO: A VIR TUDE DE SER UM “SÁBIO MATERIALISTA”
Após o lançamento do livro de Lisboa, os pensadores brasileiros
que se dedicaram a estudar algo sobre Confúcio entre o final do
século 19 e o início do 20 aceitaram e difundiram, de certa forma,
a ideia do “sábio materialista”, embora não tenham se interessado
pela origem dessa ideia (e Gennevoise nunca recebeu uma tradução
em português). Contudo, a forte influência do Positivismo no cenário
intelectual brasileiro nessa época fez com que essa ideia acabasse
sendo retrabalhada de maneira favorável, e se tornasse um ponto
“positivo” a favor do ancestral mestre chinês.
O relativo distanciamento entre cristãos e positivistas permitiu
que Confúcio se transformasse, para os intelectuais, em um sábio nos
moldes dos antigos filósofos gregos, angariando respeito e curiosidade.
Como analisei em meu artigo “Estudos sobre Confúcio no Brasil: a
gênese de um problema”46, os debates sobre a percepção religiosa
x filosófica sobre esse pensador continuaram, mas enquanto a visão
católica praticamente retrocedeu a um estágio próximo das visões
missionárias – e sua ingênua e excêntrica simpatia pelos chineses - ,
por outro lado, os pensadores brasileiros que se debruçaram sobre
Confúcio perceberam nele uma figura poderosa e fundamental para
compreender a Ásia sinocêntrica. O deslocamento do conceito de
“panteísmo” para a esfera de uma intepretação filosófica da natureza
permitiu que algumas interpretações notáveis surgissem; a mais
destacada delas, com certeza, foi a publicação do livro A Philosophia
de Confúcio por Ignácio Raposo em 193847, em que esse importante
filósofo brasileiro apresentava uma versão da obras de Confúcio (a
partir das traduções de Pauthier) que conciliavam a interpretação
46 André Bueno, “Estudos sobre Confúcio no Brasil: a gênese de um problema”, Revista Mythos, XI (2021):
12-26.
47 Ignácio Raposo, A Filosofia de Confúcio. (Rio de Janeiro: Companhia Brasil Editora, 1939).
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panteísta com a valorização, justamente, do aspecto pragmático,
realista e materialista de Confúcio, numa construção que só poder
entendida como genuinamente brasileira. Antes que Confúcio
voltasse ao domínio dos pensadores religiosos na década de 1950,
seu entrelugar conceitual – o do sábio não religioso – proporcionou
ideias bastante interessantes para pensarmos sua dimensão histórica
e filosófica dentro do mundo Ocidental.
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