O dilúvio e sua universalidade, uma abordagem transcultural
La riuada i la seva universalitat, un enfocament transcultural
El diluvio y su universalidad, un enfoque transcultural
The flood and its universality, a transcultural approach
André BUENO1
José Maria Gomes de Souza NETO2
Abstract: A transcultural analysis of mythography’s about universal floods in ancient
civilizations reveals important narrative splits, which make explicit the problem of trying
to unify them. In our text, we will seek to present and discuss some issues related to
flood/deluge myths in civilizations from the Levant, passing through India and reaching
China, an important counterpoint to Western narratives. This comparison allows us to
understand the different epistemes from which these myths have been worked and
disseminated, and the challenges for a heterotopic claim of narrative fusion.
Keywords: Mythology – Mythography – Deluge – Universal Flood – Near East – India
– China.
Resumen: Un análisis transcultural de las mitologías sobre inundaciones universales en
civilizaciones antiguas revela importantes divisiones narrativas, que hacen explícito el
problema de intentar unificarlas. En nuestro texto, buscaremos presentar y discutir
algunas cuestiones relacionadas con los mitos de inundaciones/diluvios en civilizaciones
del Levante, pasando por la India y llegando a China, un contrapunto importante a las
narrativas occidentales. Esta comparación nos permite comprender las diferentes
epistemes a partir de las cuales se han elaborado y difundido estos mitos, y los desafíos a
una pretensión heterotópica de fusión narrativa.
Palabras clave: Mitología – Mitografía – Inundación – Diluvio Universal – Próximo
Oriente – India – China.
1
Prof. Associado de História Oriental do Departamento de História da UERJ e do Programa de Pósgraduação em História da UERJ. E-mail: andre.bueno@uerj.br.
2
Prof. Adjunto de História Antiga do Departamento de História da UPE, campus Mata Norte e do
Programa de Pós-graduação em História da UFRPE. E-mail: zemariat@uol.com.br.
Humberto Schubert COELHO (org.). Mirabilia Journal 39 (2024/2)
The Kingdom of the Spirit. The Transcendent, from the Ancient World to the Renaissance
El Regne de l’Esperit. El Transcendent, del Món Antic al Renaixement
El Reino del Espíritu. Lo Trascendente, del Mundo Antiguo al Renacimiento
O Reino do Espírito. O Transcendente, do Mundo Antigo ao Renascimento
Jun-Dic 2024
ISSN 1676-5818
ENVIADO: 10.10.2024
ACEPTADO: 13.11.2024
***
I. No Início...
Quando se fala em épicos do cinema, aqueles filmes grandiosos que retrataram a
Antiguidade, é muito comum se ater a títulos dos anos 1950 e 1960, tais como Quo
Vadis (1951) ou Cleópatra (1963). Menos citados, mas nem por isso menos
importantes, estão clássicos do cinema mudo, como Intolerância (1916) e,
principalmente, o italiano Cabíria (1914), considerado o fundador do gênero.3
Imagem 1
Uma das cenas finais de The Deluge (1909) em que é possível observar o tamanho do
cenário construído. Após o dilúvio, Noé e sua família se prepararam para o sacrifício a
Jeová.
Uma obra clássica – ainda que não trate das películas citadas – é a de CARNES, Mark C. (org.).
Passado Imperfeito. A História no Cinema. Rio de Janeiro: Record, 1997.
3
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Antes de todos eles, contudo, houve um épico norte-americano com uma enorme
potencialidade para a compreensão histórica: The Deluge (1911)4, uma das primeiras
produções com temática bíblica, e que explora um conceito fundamental para o
cinema épico: o do espetáculo.5
Todos esses elementos estão claramente presentes em The Deluge: uma grande arca
construída em cenário (e num formato retangular, incomum para a visão que se tinha
na época da embarcação), muitos animais (elefantes inclusive6), muitos figurantes, um
vilão característico com um final terrível e um Noé paradigmático, com longas barbas
brancas. Trata-se, portanto, de um épico no apagar das luzes do Período Inicial, ou seja,
as primeiras duas décadas de existência dessa arte, quando tudo estava sendo criado e
que muitos dos elementos que marcarão a representação da Antiguidade ao longo de
mais de um século estavam se estabelecendo.
Neste momento específico, contudo, buscamos nos deter num aspecto específico
desse filme: embora tenha duração de apenas dezesseis minutos, The Deluge, de 1911,
dedica mais de um minuto destes a um extenso introito:
4
The Deluge (1911). EUA, Vitagraph Company of America.
David Shepherd afirma que esse elemento está disseminado no gênero de várias maneiras, dentre
as quais “...a escala (tamanho do elenco, arquitetura cênica, duração da projeção), a opulência
(esplendor dos figurinos, tecidos, etc., os presentes e oferendas, etc.), a indulgência (como manifesta
nas ‘festas/orgias’ com suas demonstrações de apetites físicos, culinários e sexuais), a destruição
(especialmente os imensos desabamentos cênicos) e o miraculoso (por exemplo, atos de Deus como
a abertura do Mar Vermelho.” – SHEPHERD, D. J. The Bible on Silent Film: Spectacle, Story and Scripture
in the Early Cinema. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, p. 5.
6
A presença desses paquidermes em tantos filmes norte-americanos não é gratuita: segundo um
relatório da Animals and Society Institute publicado em 2007, “nos Estados Unidos do século XX, os
elefantes eram uma sensação comparável aos bambolês e a Harry Potter” (p. 5). A exposição regular
desses animais ganhou força em meados do século XIX, quando eram apresentados em circos
itinerantes, uma importante forma de entretenimento que o cinema importou para si. Especialmente
nos filmes sobre a arca de Noé, sua participação chega a ser inevitável.
5
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Relatos do dilúvio podem ser encontrados nas tradições de quase todas as raças,
incluindo os polinésios e os astecas. Os livros sagrados da Índia, o Brâmana e o Purana
(SIC) mencionam a arca, os pares de animais e as sementes salvas das águas. Dr. George
Smith, quando decifrava tabuinhas de barro das ruínas de Nínive, quase desmaiou de
alegria quando encontrou esta inscrição “soltei uma pomba; ela voou, mas como não
encontrou lugar para pousar, voltou”. Muitos têm tentado limitar o Dilúvio a meras
cheias localizadas, mas atualmente pesquisadores da mitologia, da arqueologia e da
geologia tendem a estabelecer os fundamentos da história como relatada na Bíblia.
Essa introdução representa um extraordinário ponto de análise, um momento em que
podemos pensar como o cinema incorporou a Antiguidade, quais os princípios
norteadores dessa incorporação, e como o cinema, um operador da dominação
imperialista do mundo, puro entretenimento voltado para as massas, surgido justo
quando elas eram atingidas pelo entusiasmo do projeto imperialista7, contribuiu como
educação fora da escola para ensinar o conceito de História Universal linear e
eurocêntrica que marcou nossa formação. Embora a cultura material ocidental fosse
“naturalmente superior”, criações notáveis dos “outros” poderiam ser apropriadas,
desde que as ligações com a origem não-ocidental fossem suprimidas, processo esse
descrito por Barbara Kirshenblatt-Gimblett: o Ocidente “rompe os laços entre as
formas e suas origens, converte essas formas em influências, leva tais influências ao
centro, deixa as origens às margens e se parabeniza por ser tão cosmopolita”.8
Um texto desse tamanho logo no início do filme possui uma importante razão de ser:
é um intertítulo (ou cartão de título) com função narrativa sumária9, destinada a
rotular eventos, esclarecer ações e, eventualmente, “dirigir-nos no sentido da
interpretação correta de uma dada cena” (ou no caso em tela, do filme inteiro). As
informações que traz, embora não constem da ação do filme, são fundamentais à sua
compreensão, e nessa situação específica o espectador precisa saber que: (a) quase
7
SHOHAT, E.; STAM, R. Crítica da imagem eurocêntrica. Multiculturalismo e representação. São Paulo:
Cosacnaify, 2006, p. 142.
8
Apud SHOHAT, E.; STAM, R. Crítica da imagem eurocêntrica. Multiculturalismo e representação, op. cit., p.
22.
9
CHISHOLM, B. Reading Intertitles, Journal of Popular Film and Television, 15:3, 1987, p. 140.
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todas as culturas (“raças”) do mundo possuem histórias do dilúvio, inclusive algumas
destas narrativas estão registradas em antigos livros sagrados; (b) que boa parte delas
conta com os mesmos elementos do dilúvio bíblico, o mais conhecido no ocidente;
(c) que um pesquisador do Museu Britânico quase desmaiou ao encontrar um indício
da enchente universal numa fonte extrabíblica; e finalmente (d) as ciências modernas
estão confirmando a narrativa bíblica. É muita pretensão para um filme
primordialmente feito para atrair grandes plateias e cujo diretor (ou roteirista) nem
sequer é conhecido.
Começando de trás pra frente, o intertítulo convoca a ciência para conferir a si
mesmo cientificidade, como quem fiz “vocês estão prestes a ver algo que foi
comprovado por pesquisas modernas que seguem rigorosos padrões de análise” e a
veracidade da enchente universal era, de fato, algo bastante discutido na ciência:
exatos vinte anos após o filme, quando escavava a antiga cidade de Ur e encontrou
uma camada de limo grossa sob a qual havia artefatos, o arqueólogo britânico Sir
Leonard Wooley enviou uma mensagem telegráfica “para o mundo [com] a mais
extraordinária notícia que ouvidos humanos já ouviram: ‘descobrimos o dilúvio!’ A
tremenda descoberta realizada em Ur ocupou as manchetes da imprensa dos Estados
Unidos e da Inglaterra”.10
O cinema, este grande apresentador das culturas exóticas e/ou antigas, fazia crer ao
seu público que quase todas as culturas possuíam não um dilúvio qualquer, mas O
dilúvio, aquele aprendido nas escolas dominicais e nas catequeses e que estava prestes
a ser vislumbrado em toda sua grandiosidade na tela do cinema. O que o texto omite
(aliás, uma “falha” comum dos pregadores religiosos quando lançam mão do
argumento da “universalidade”) é que as muitas versões das grandes enchentes têm
pouco ou nada a ver com o patriarca que constrói uma barca e a enche de animais. As
culturas citadas pelo intertítulo tiveram, sim, seus dilúvios, mas eles não eram nada do
que as audiências dos anos 1900 esperavam. E a partir daqui, torna-se necessária uma
10
KELLER, W. E a Bíblia tinha razão… São Paulo: Melhoramentos, 1990, p. 42.
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leitura transcultural11 e variada de algumas das mitografias diluvianas existentes pelo
mundo.
Os astecas, por exemplo, não conheciam o descontentamento de um deus único com
o povo que havia criado; antes, entendiam a existência como uma sucessão de eras
cosmogônicas, a chamada “Lenda dos Sóis”, em que houvera quatro eras anteriores à
atual, cada uma delas presidida por um sol: na primeira, o mundo era povoado por
gigantes que foram devorados por jaguares; na segunda, a destruição veio por
intermédio de furacões; na terceira choveu, sim, mas fogo.12 Só então veio a era do
dilúvio d’água:
Os deuses criaram o quarto sol. A deusa Chalchiuhtlicue, “a das saias de jade”, deusa da
água, se converteu em sol por ordem de Quetzalcoalt. Nessa idade os homens se
alimentavam de uma semente parecida com o milho, chamada Cincocopi. Este sol
terminou com um grande dilúvio que inundou a terra, convertendo em peixes todos os
seres humanos e fazendo com que o céu colapsasse sobre a superfície terrestre. Tudo
isso ocorreu no dia quatro água.13
O sentido desse dilúvio tem muito mais proximidade com o original mesopotâmico
do que com o bíblico, posto que cada sol abre novos horizontes em relação a um
tempo passado, no qual a natureza dita a trajetória do planeta e a vida dos seus
habitantes.14 Nada dessa sofisticada cultura calendárica foi compreendida pelos
religiosos espanhóis que conquistaram o Império Asteca e divulgaram a história... para
Como proposto por CANEVACCI, M. “Transculturalidade, interculturalidade e sincretismo /
Transculturality, interculturality and sincretism”. In: Revista Concinnitas, 1(14), 2020, p. 137-141.
12
MONTORO, G. C. “O dilúvio universal e a América: relações entre as cosmovisões indígena e
cristã no Códice Telleriano Remensis”. In: Revista Tempo, vol. 19, n. 35, Jul.-Dez., 2013, p. 155.
13
DÍAZ, L. P. M. Estudio comparativo del mito cosmogónico en las culturas azteca y griega – Analogías entre la
cultura azteca y la cultura griega en los mitos de los cinco soles y el mito de las edades. Trabajo de grado
presentado como requisito para optar al título de licenciatura en español y literatura. Universidad
Tecnológica de Pereira, 2009, p. 62-63.
14
DÍAZ, L. P. M. Estudio comparativo del mito cosmogónico en las culturas azteca y griega – Analogías entre la
cultura azteca y la cultura griega en los mitos de los cinco soles y el mito de las edades., op. cit., p. 63.
11
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eles interessava apenas a passagem sobre o suposto “fim apocalíptico causado pela
água”15 por sua aparente coincidência com o que a Bíblia narrava. A memória dessa
compreensão está presente neste filme de 1909.
O intertítulo cita também os dilúvios da cultura indiana, supostamente assemelhados
ao noaico e igualmente registrados em livros sagrados, mas essa semelhança nada mais
é que aparência. O “Brâmana” a que se refere é, possivelmente, o Śata-patha-brāhmaṇa,
um texto religioso associado ao Yajurveda, e que contém uma passagem sobre um
dilúvio, mas só nas Puranas, um gênero literário hindu antigo que dentre vários
assuntos aborda particularmente lendas e folclore, é que essa história será mais bem
trabalhada e detalhada – mas até que ponto ela se parece com o trecho bíblico
referente a Noé? Vejamos:
Um peixinho nadou para as mãos de Manu buscando proteção enquanto ele tomava seu
banho matinal. Manu primeiro o pôs num jarro, depois num lago e, quando estava
crescido por completo, o soltou no mar. O peixe avisou a Manu do dilúvio que se
aproximava, e o aconselhou a preparar um barco e entrar nele no tempo devido. Assim
fez Manu, e quando o dilúvio finalmente aconteceu, o peixe apareceu novamente e
puxou o barco de Manu até as montanhas do norte. Quando as águas recuaram, foi dito
a Manu que desembarcasse e descesse da montanha, cuja encosta é chamada
Manoravatāraṇam, “a descida de Manu”. Ele foi o único ser humano salvo, e com ele a
humanidade teve um novo começo.16
Nada de animais, nada de deus único. Como na versão mesopotâmica (a qual, não
custa lembrar, é a base para a versão bíblica), uma divindade avisa a um homem justo,
e mesmo assim por motivos diversos: Ea entendeu que os deuses precisariam dos
humanos e encontrou um jeito de alertar Uta-napišti, enquanto Vishnu, em seu avatarpeixe Matsya (matsyavatara), devolveu a bondade que recebera de Manu, avisou-o a
MONTORO, G. C. “O dilúvio universal e a América: relações entre as cosmovisões indígena e
cristã no Códice Telleriano Remensis”, op. cit., p. 156.
16
KLOSTERMAIER, K. K. A Survey of Hinduism. Albany: State University of New York Press,
2007.
15
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construir o barco e, durante a enchente, rebocou-o até o um porto seguro. Toda
semelhança que o intertítulo de The Deluge dá a entender nada mais é que falsificação.
A partir dessa versão original, muitas outras surgiram na vastíssima literatura indiana,
inclusive uma “recontada na Bhaviṣya-purāna, falsificando (como de costume nessa
Purana) a história de Noé sob o disfarce de Nyūha, termo de ocasião com etimologia
sânscrita!”.17 Para melhor visualizar as semelhanças e diferenças entre os mitos indiano
e acadiano, Paolo Magnone18 organizou um quadro, que compartilhamos abaixo, com
os principais elementos mitológicos das narrativas, mostrando assim as especificidades
e coincidências entre ambos:
O Śata-patha-brāhmaṇa
Elementos comuns
Um homem bom (Manu) salva um
peixinho. Gradualmente, o peixinho
passa por uma milagrosa
metamorfose e se transforma em um
monstro marinho.
O mito acadiano
A humanidade incorre na
cólera divina.
O deus supremo (Enlil)
decide exterminar a raça
humana.
O peixe recompensa
o homem
Um protetor
divino (Ea)
ajuda um
homem bom
avisando do dilúvio que se aproxima e
mandando construir um barco.
O homem carrega o barco
com bens e criaturas.
O homem desvia a
MAGNONE, Paolo. “Floodlighting the Deluge: Traditions in Comparison”. In:
BALCEROWICZ, Piotr; MEJOR, Marek (orgs.). Essays in Indian Philosophy, Religion and Literature.
Delhi: Motilal Banarsidass, 2004, p. 139.
18
MAGNONE, Paolo. “Floodlighting the Deluge: Traditions in Comparison”, op. cit., p. 140.
17
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curiosidade dos vizinhos
com desculpas.
O peixe vem em socorro.
O homem amarra o barco ao chifre
do peixe, que o reboca.
Acontece o dilúvio.
Os deuses menores estão
aterrorizados e culpam
Enlil.
O dilúvio termina e o barco encalha
em cima de uma montanha.
O homem manda pássaros
para explorar o mundo.
O homem desembarca e oferece
sacrifício.
Os deuses se reúnem
“como moscas” junto ao
sacrifício e novamente
censuram Enlil.
Enlil fica furioso ao ver os
sobreviventes. Ea o acalma
e Enlil abençoa os
sobreviventes.
O homem produz descendência com
uma mulher surgida do sacrifício.
A simples observação do quadro produzido por Paolo Magnone deixa claro que “as
duas estruturas [narrativas] divergem quase que inteiramente”19, e as diferenças que ele
aponta entre o mito indiano e o semita são válidas também para a versão bíblica (a
qual, já vimos, é uma variante deste último), e a partir daí o autor analisa em detalhes
as duas estruturas mitográficas, às quais acrescentaremos os elementos relativos a
Noé. A motivação dos dilúvios semitas é ética (uma divindade, seja Enlil/Anu ou
Jeová, infeliz com os rumos que a humanidade tomou), enquanto o relato indiano se
baseia em um “antecedente de natureza folclórica”, qual seja, a ajuda de Manu ao
peixinho.
19
MAGNONE, Paolo. “Floodlighting the Deluge: Traditions in Comparison”, op. cit., p. 141.
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A decisão divina é diferente nos três casos: no mesopotâmico, não só há um
juramento entre os deuses como o dissenso surge quase que imediatamente; na
hebraica, em sendo um deus único, Jeová é o total responsável pela destruição do
mundo (o que lhe causa, inclusive, certo arrependimento)20 – nada disso está presente
na versão indiana.
Terceiro, nas versões semíticas há a necessidade de salvar exemplares das criaturas: o
tropo bíblico mais primitivo ecoa a tradição mesopotâmica de preservação da vida,
vista no Épico de Atrahasis21 – ou seja, os casais; já o mais recente privilegia as
obrigações litúrgicas, compartimentando-os em termos utilitaristas: “puros” (aptos às
oferendas e ao consumo humano, e por isso mesmo sendo embarcados em grupos de
sete) e “impuros”, necessários à recriação. Através de um exercício de zoologia
especulativa e invocando-se dois outros livros, Levítico e Deuteronômio, podemos
imaginar quais animais Noé teria embarcado. Entre os puros, principalmente aqueles
com casco fendido em número par e ruminam22, como vários da família bovidae (boi,
cordeiro, cabrito, búfalo, bode silvestre, o antílope dishon, boi silvestre, cabra montês) e
dois da cervidae (cervo, veado); também alguns insetos23, como a locusta, o gafanhoto,
o grilo e o grilo estridente, os quais andam “sobre quatro patas, tem pernas por cima
dos pés para saltar com elas sobre a terra”.
As referências aos animais impuros são bem mais detalhadas: Dt 14: 7,8 e Lv 11:13-19
e 11:29:30 citam mamíferos herbívoros, mas que não possuem casco fendido em
número par ou ruminam (o camelo e o porco; o hírax, a lebre, o coelho, o rato e o
porco-espinho), três carnívoros (a toupeira, a doninha e o morcego – este
mencionado junto aos pássaros).
20
Gn 8:21.
The Epic of Atrahasis. (trad.: R. Foster).
22
Dt 14:4-6.
23
Lv 11:21.
21
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As aves puras não haviam sido declinadas, logo as impuras foram citadas
nominalmente: rapineiras (a águia, o abutre quebrantosso, a águia do mar, o milhano,
o abutre, o açor, a coruja, o gavião e o mocho), carnívoras (“todo corvo”, gaivota,
pelicano, o corvo marinho), as pernaltas (cegonha, garça, íbis, frango d'água), além do
avestruz e da poupa. Há também alguns répteis e anfíbios (sapo, crocodilo da terra,
lagartixa) e um invertebrado (a lesma). Inversamente, nos mitos indianos, argumenta
Magnone, muito embora versões posteriores até tenham incorporado esse aspecto, a
questão central é a das sementes, cujas implicações “vão se tornando cada vez mais
caracteristicamente indianas conforme o tempo avança”.24
Por fim, num exercício ginzburguiano, “é necessário examinar os pormenores mais
negligenciáveis e menos influenciados”, ou seja, o método indiciário25: os “particulares
marginais” das histórias não convergem em nada. Por exemplo, como já vimos, Utanapišti soltou três pássaros (uma pomba, uma andorinha e finalmente um corvo) e
Noé apenas dois (um corvo e uma pomba). Não há o menor indício desse particular
na história de Manu.
Ou seja, todo aquele longo introito destinado a informar a audiência sobre a
unanimidade da história do dilúvio baseia-se, de fato, em meias-verdades e, muito
frequentemente, em rematadas mentiras, que inclusive continuam a ser repetidas.
Certos grupos fundamentalistas, como as Testemunhas de Jeová, permanecem
afirmando que o Gênesis constitui o “reservatório original, cristalino, do qual se
originaram os conceitos básicos a respeito do começo do homem e da adoração,
encontrados em várias religiões do mundo”26, incluindo o dilúvio, e que todos os
detalhes dissonantes nada mais são que acréscimos inverossímeis e folclóricos a um
fato que, como narrado da Bíblia, seria perfeitamente lógico, impecável e factível.
MAGNONE, Paolo. “Floodlighting the Deluge: Traditions in Comparison”, op. cit., p. 142.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 144.
26
Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados. O homem em Busca de Deus. São Paulo, 1990, p. 40.
24
25
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A introdução de The Deluge precisa ser entendida à luz de um elemento fundamental, o
alinhamento dos fatos históricos relevantes na narrativa linear do progresso humano
então celebrada como História Universal: a história bíblica fora incorporada às origens
europeias, então seja como mito, seja como fato, era ela a versão padrão a ser utilizada.
E vale salientar que um dos elementos mais fundamentais a essa noção era a ideia de
raças inferiores e superiores – não à toa, portanto, o introito menciona que “relatos do
dilúvio podem ser encontrados nas tradições de quase todas as raças” (mesmo aquelas
que consideramos inferiores, seria possível adicionar).
O fato de simplesmente incorporar tradições mitológicas não-europeias à narrativa
sem sequer se dar ao trabalho de reconhecer seus elementos particulares mostra como
as populações não-brancas (subalternizadas e dominadas) nada mais são que notas de
rodapé para o grande fluxo histórico, no qual a Europa era eixo e apogeu da evolução
humana.
Por fim, e num tom mais anedótico, o introito informa que “Dr. George Smith,
quando decifrava tabuinhas de barro das ruínas de Nínive, quase desmaiou de alegria”.
George Smith foi, de fato, um dos grandes pioneiros da assiriologia, dotado de “um
tino notável para identificar juntas entre os fragmentos partidos das tabuinhas e um
verdadeiro gênio na compreensão de inscrições cuneiformes”.27 Foi esse homem
relativamente jovem, tinha trinta e dois anos, que após muito esforço conseguiu ler as
primeiras linhas da história do dilúvio na Epopeia de Gilgamesh, e após fazê-lo “pôs
na mesa a tabuinha, deu pulos e correu pelo cômodo num estado de enorme excitação
e, para assombro dos presentes começou a se despir”.28 Para as audiências dos
cinemas do começo do século XX, esse detalhe era, com certeza, picante demais e
precisou ser atenuado.
27
28
FINKEL, I. The Ark before Noah: decoding the story of the Flood. Doubleday, 2014, p. 1.
FINKEL, I. The Ark before Noah: decoding the story of the Flood, op. cit., p. 3.
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II. E na China?
Uma comparação dos mitos diluvianos do Levante e da Índia com a lenda das
inundações chinesas nos traz perspectivas bastante diferentes. De início, os chineses
tinham uma noção muito clara de que estavam vivenciando uma enchente dos seus
principais rios, e não um aumento das águas em escala universal. Não há dilúvio, há
inundação [Hongshui 洪水]; e o evento foi chamado historicamente de ‘governo das
águas’ [Zhishui 治水], revelando desde o início que se trata de uma passagem
eminentemente ligada à ação humana.
O primeiro fragmento que possuímos sobre o problema das inundações surge no
Shujing 書經 [Livro dos Escritos, ou Livro das Histórias], oficialmente o texto mais antigo
de história da China. Durante o governo de Yao 尧 [2356-2255? AEC], as cheias
constantes do rio Amarelo黄河 estavam afetando a vida das pessoas, dificultando a
produção agrícola e causando transtornos sazonais as cidades:
As águas da enchente são destruidoras no seu transbordar. Na sua vasta extensão,
abarcam os montes e sobem além das grandes alturas; ameaçam os Céus com a
inundação, que o povo até resmunga e murmureja! Haverá um homem capaz a quem eu
possa encarregar de corrigir essa calamidade?29
Yao estava reunido com seus ministros para buscar uma solução, e eles indicam Gun
鯀 para realizar as obras necessárias ao controle das águas. Yao não gostou da
indicação, afirmando que Gun “é perverso! Desobediente às ordens, procura
prejudicar os seus pares”30, mas acatou as sugestões e o convocou para o cargo.
29
Shujing, 堯典, 3.
30
Ibid, 堯典, 3.
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Gun trabalhou por quatro anos [durante o reinado de Yao] e mais cinco no seguinte
tentando controlar as águas, mas não obteve sucesso. No final, o soberano Yao foi
sucedido por Shun 舜 [2294-2184? AEC], que decidiu encarcerar Gun por sua
incompetência. Para continuar o combate às enchentes, ele escolheu ninguém menos
que Yu禹 [2123-2025? AEC], o filho de Gun, para continuar o empreendimento.31 O
texto não deixa claro se isso era uma punição, uma escolha baseada em valor ou
ambas as coisas; Yu passaria treze anos de sua vida trabalhando duramente para
‘governar as águas’, até finalmente ser bem-sucedido.
O sucesso de Yu se baseou em aceitar as ‘tendências naturais da água’, dentro do
pensamento cosmológico chinês: a água flui sem cessar, se infiltra, se acumula e
transborda continuamente – e onde não há água, a terra seca e a vida morre. Gun
havia feito inúmeros diques e barragens, tentando sujeitar a água pela força: com isso,
ela acabava sempre escapando, destruindo os vales, enchendo ainda mais alguns
lugares e deixando outros sem água.32 Yu fez diferente: ele investiu na construção de
canais, abriu valas de irrigação, desviou cursos de rios, abriu novos braços e fez a água
fluir até o mar, domando-a em proveito da sociedade.33
Ao compreender os princípios da harmonia que regem a natureza34, Yu qualificou-se a
assumir o trono imperial, e Shun transmitiu o trono para ele. Assim, ele se tornaria Da
Yu 大禹, o ‘Grande Yu’, e primeiro imperador da Dinastia Xia夏 [2070-1600? AEC],
que reinou durante quarenta e cinco anos antes de morrer tranquilamente de velhice.
31
Shujing, 舜典, 9.
32
Shiji 史記, 五帝本紀 ,13.
33
Shiji, 夏本紀, 3-18.
34
Shujing, 洪範, 1.
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As citações do Shujing são fragmentárias; outra seção do livro é dedicada aos seus
conselhos sábios [禹貢], e a citação ao seu nome é pontual. A história devia ser bem
conhecida quando Confúcio reeditou esse livro no século 6 AEC., mas o fato é que
nada, nessa narrativa, aponta para uma “ira divina”, ou “a punição da humanidade”. A
inundação é simplesmente tratada como um evento natural, e o esforço concentrado
da sociedade é que revela o valor do trabalho humano como o sentido fundamental da
lenda. Por essa razão, um dos atributos fundamentais do poder imperial se tornaria
‘governar as águas’35, mote repetido exaustivamente ao longo da história chinesa.
O evento seria mais bem descrito por Sima Qian 司馬遷 [145-85 AEC] no Shiji 史記
[Memórias históricas], no capítulo Anais de Xia 夏本紀. Nele, Sima conta com mais
detalhes as ações de Yu, sua dedicação incansável – ele teria passado perto de casa três
vezes ao longo dos treze anos em que trabalhou, sem nela entrar –, a sabedoria de
suas decisões e de como o evento contribui para criar a consciência de uma civilização
chinesa, estruturada a partir de um núcleo populacional originário que ele organizou
em nove territórios administrativos. O capítulo é uma longa descrição de viagens,
obras públicas e ações sociais, sem conotações religiosas ou a participação de
divindades, como veremos a seguir.
III. A figura de Yu
Quase todos os pensadores da época pré-Han [ou seja, antes de 206 AEC] citaram Yu
de forma favorável, como um modelo inspirador a ser seguido. Confúcio expressou
sua admiração de forma clara no Lunyu, quando disse que:
Em Yu, não encontro nenhum defeito. Ele bebia e comia uma refeição frugal, mas
demonstrava profunda devoção em suas oferendas aos fantasmas e aos espíritos; ele
usava roupas ordinárias, mas suas vestes litúrgicas eram magníficas: sua morada era
MENDOZA, Inty Scoss. “A China e o Governo das Águas: a administração dos rios e o
pensamento político na formação da China imperial”. In: Urutagua 10, 2016, p. 1-17.
35
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modesta, e ele despendia sua energia drenando a água das enchentes. Em Yu, não
encontro defeitos.36
Para Confúcio, um defensor convicto das tradições e da ética, o exemplo de Yu
significava uma das mais poderosas demonstrações do poder das virtudes na
condução dos negócios humanos. Apesar disso, tanto Confúcio quanto os outros
pensadores de sua época pouco fizeram para descrever a figura de Yu. Suas
capacidades são sempre ressaltadas, mas suas características em si não aparecem.
Coube justamente a Sima Qian aprofundar a descrição desse personagem, como segue
nesse trecho:
Yü era rápido, sério e diligente, não se desviando da virtude, sendo gentil e amável; sua
palavra era confiável, sua voz era musical e seu corpo, equilibrado e harmônico, moviase incansável e solene de acordo com certas conveniências. Yü fez uma divisão da terra
e, seguindo a linha das colinas, plantou árvores e determinou as características das altas
serras e dos grandes rios. Yu ficara triste porque seu pai Gun foi punido por causa de
seu trabalho ficar incompleto; então, com o corpo cansado e a mente angustiada, ele
viveu longe de sua casa por treze anos, passando pela porta de sua casa três vezes sem se
atrever a entrar. Com roupas esfarrapadas e uma dieta pobre, ele prestou devoção aos
espíritos até que sua cabana miserável caísse em ruínas na vala. Quando viajava pela
terra seca usava carruagem, na água usava barco, em lugares lamacentos um trenó,
enquanto para subir as colinas usava espigões. Se tinha a régua, também usava o
compasso e o esquadro. Trabalhou conforme as estações o permitiam, e com vistas em
abrir as nove províncias, ele tornou as estradas comunicáveis, aterrou os pântanos,
mapeou as colinas, disse a Yi e seu clã que o arrozal deveria ser plantado em locais
úmidos baixos e orientou o Lorde Painço e seu clã, quando era difícil obter comida, ou
quando a comida era escassa, para trocar seu estoque excedente em troca do que eles
não tinham, de modo a colocar todos os príncipes em pé de igualdade. Desta forma, Yu
trabalhou para a conveniência mútua dos respectivos distritos no que diz respeito à
distribuição da riqueza e dos recursos do país.37
36
Lunyu, 8:21.
37
Shiji 史記, 五帝本紀 ,4-5.
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Sima conta ainda como Yu ficou com as pernas sem pelo e manco de tanto trabalhar38
e como isso deu origem a uma dança chamada ‘Passo de Yu’ [Yubu 禹步], no qual as
pessoas arrastam um dos pés, tema ao qual voltaremos mais adiante. De qualquer
forma, notamos que Yu foi caracterizado como uma figura ativa, enérgica e sábia, cujo
corpo envelheceu rapidamente por causa da fadiga. Foi justamente isso, porém, que o
qualificou para assumir posteriormente o trono imperial. Dono de virtudes e de uma
grande determinação, Yu conseguiu ‘governar as águas’ e reinar de forma longeva até
falecer de causas naturais.
IV. Real ou mito?
É notável perceber que os historiadores chineses tratavam Yu como um personagem
real, e escreveram narrativas factíveis sobre ele. Não há qualquer tipo de causa ou
intervenção divina no desenrolar dos acontecimentos. Contudo, ao longo dos séculos,
um efeito curioso ocorreu: o personagem de Yu foi capturado pelo imaginário
popular e se transformou no centro de várias lendas folclóricas. Numa delas, por
exemplo, ele foi ajudado por um dragão e uma tartaruga, que lhe emprestaram um
torrão de terra mágico pra ajudar a renovar as áreas inundadas – os deuses não
provocaram a enchente, mas ajudaram Yu a resolvê-la; noutra, Yidi 仪狄, uma
divindade que o auxiliava, descobriu a fabricação do vinho e ofereceu a ele, que
recusou por entender que isso atrapalharia as decisões de governo 39; por fim, ele se
transformou em um viajante de terras místicas no Shanhaijing 山海經 [Livro das
Montanhas e dos Mares, uma enciclopédia de mitos do período Han, séc. 1 EC] e o Deus
supremo do controle das águas junto com outras quatro divindades da religião daoísta.
Na cultura popular chinesa, Gun e Yu se transformaram em divindades, e a lenda
adquire conotações mágicas e religiosas profundamente diferentes da história contida
38
Shiji, 秦始皇本紀, 56.
39
Zhan Guo Ce 戰國策, 魏策, 2:1.
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no Shujing e no Shiji.40 Do ponto de vista folclórico e antropológico, Yu é uma das
figuras mais ricas e populares em histórias.
Até o fim do império chinês, em 1912, a historiografia chinesa considerou Yu uma
figura histórica, embora muitas dúvidas pairassem sobre o evento das inundações.
Embora elas não fossem incomuns – centenas ocorreram desde a antiguidade – a
aproximação com as historiografias ocidentais fez com que vários episódios da
história chinesa caíssem no terreno do ‘lendário’, entre eles a Dinastia Xia e o evento
do ‘dilúvio chinês’. A ausência de provas materiais fez com que, ao longo do século
20, muitas narrativas da antiguidade passassem por uma profunda revisão.
No entanto, a inundação de Yu estava longe de possuir os aspectos escatológicos do
dilúvio de Noé, e a interpretação chinesa sobre essa história é totalmente
antropológica. Para os intelectuais da China, os mitos de inundação são comuns nas
antigas sociedades hídricas, constituindo reinterpretações mitificadas sobre eventos de
desastres naturais:
Obviamente, a mitologia é a memória da história primitiva na mente das pessoas. O
mito do controle da água de Da Yu é um típico mito de desastre de enchente, refletindo
o momento quando os humanos encontram grandes desastres, como enchentes e secas,
e agem como deuses ou heróis do clã. [...] o controle da água por Da Yu pertence à
lenda de um herói típico do clã. Seja como um mito ou lenda, o conteúdo central do
controle da água de Dayu, assim como outros mitos do gênero, são todos iguais, e os
motivos e temas envolvidos são praticamente os mesmos. Como herói, Da Yu se tornou
o personagem mais admirado entre os povos primitivos.41
O aparecimento de variantes desse mito na China fez com que as diversas histórias
existentes – não apenas de Yu, mas de outros personagens envolvidos em mitos de
40
SUN Chian Ching e LUO Si wei. China: mitos e lendas. São Paulo: Rozita Kempf, 1984; Instituto de
línguas Estrangeiras de Pequim (ILEP). Mitologia Chinesa. São Paulo: Princípio, 1986.
41
TANG Duoxian 汤夺先e ZHANG Liman 张莉曼. 《大禹治水文化内涵的人类学解析》
中南民族大学学报 (人文社会科学版) 3, 2011, p. 10-13.
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inundação – requisitem exames cada vez mais específicos de suas características e
funções para determinar suas origens e suas implicações culturais.42 Nos ateremos,
porém, a história de Yu, o primeiro desses mitos a surgir na literatura e que nos
interessa nesse artigo.
Na China, as discussões historiográficas acerca do Mito de Yu se desenvolveram
bastante nas últimas décadas, envolvendo uma ampla pesquisa interdisciplinar.
Podem-se encontrar dezenas de artigos que examinam os problemas históricos sobre
o episódio, bem como análises comparativas entre ele e o dilúvio bíblico. Como Sun
Guojiang afirmou, o problema central na análise da narrativa de Yu é que ela passa
por três discursos, um de caráter popular-lendário, um acadêmico, que estuda sua
plausibilidade, e um oficial, que emprega a narrativa com cunhos políticos e culturais.43
Esses três discursos se confundem, seja pela apropriação de fragmentos dos estudos
acadêmicos pelo senso-comum, seja pela manipulação dos textos e da oralidade tanto
no folclore quanto nas instâncias educacionais e burocráticas. Um dos exemplos mais
recentes do ‘uso oficial’ foi a apropriação, pela estética maoísta, da figura de Yu como
um grande inspirador do trabalho humano comunal e da realização de grandes obras
públicas.44 Xia Nan defende, igualmente, que existe uma tensão na análise da lenda,
envolvendo seu caráter histórico, cultural e seus mecanismos dinâmicos de
transformação, e que a busca de sentido na narrativa responde a demandas variadas,
todas com alguma pretensão de verdade sobre o tema.45
TANG Duoxian 汤夺先e ZHANG Liman 张莉曼. 《大禹治水文化 内涵的人类学 解析》
op. cit. p. 10-11; LEWIS, Mark Edward. The flood myths of early China. Albany: State University of New
York press, 2006.
42
43
SUN Guojian 孙国江. 《大禹治水传说的历史地域化演变》天中学刊 4, 2012, p. 23-26.
CAO Yinwang 曹应旺. 《中国共产党对中华民族治水文化的传承》. 毛泽东研究, 2, 2021,
p. 33-36.
44
XIA Nan 夏楠. 《多维视野下的大禹治水传说研究》长江大学学报(社科版) 3, 2015, p. 811.
45
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Uma análise histórica do mito mostra que ele foi compreendido como um episódio
real por milênios, e a par dos desdobramentos folclóricos derivados da narrativa
principal do Shujing e do Shiji, foi debatido e analisado a luz de uma perspectiva
historiográfica.46 Ou seja, a consideração de que a narrativa sobre Yu é mítica [um
‘Shenhua’ 神话] é muito recente na China, e passa principalmente pela influência
ocidental no campo dos estudos históricos e religiosos. Um dos principais defensores
da ‘não-existência’ de Yu, da inundação e da dinastia Xia foi Gu Jiegang 顾颉刚
[1893-1980], pesquisador que ajudou a fundar a moderna arqueologia chinesa.47
Foram as descobertas mais recentes da arqueologia que retiraram a dinastia Xia do
limbo, provando sua historicidade. As escavações em curso mostram que sua
abrangência geográfica é muito similar à dos nove territórios delimitados por Yu;
detalhes sobre esse personagem ou sobre a inundação, porém, ainda são objeto de
conjecturas. Muitos autores chineses tendem a concordar que as tradições históricas e
antropológicas constituem um guia e suporte seguro para a análise do passado [e
usualmente, precisam se defender de acusações de anacronismo], mas tem-se buscado
evidências mais palpáveis, que permitam reconstruções e modelos mais seguros.
Em 2005, por exemplo, Wu Wenxiang e Ge Quansheng realizaram uma extensa
pesquisa interdisciplinar envolvendo história, filologia, arqueologia e astronomia para
verificar as convergências possíveis entre datações, ciclos celestes e análises geológicas.
Cautelosamente, os autores afirmaram que uma série de inundações ocorridas na
bacia do rio Amarelo coincide com o evento climático 4200ap do holoceno, período
em que teria vivido Yu. Sem tentar determinar a existência de sua figura histórica, os
eventos narrados, todavia, tem grande possibilidade de terem ocorrido. Mesmo assim,
isso não prova qualquer dilúvio universal, ao contrário: se na China houve inundações,
46
47
XIANG Ye向野. 《大禹治水传说的历史演进》 巴蜀史志 5, 2020, p. 16-22.
RICHTER, Ursula. “Historical Scepticism in the New Culture Era: Gu Jiegang and the ‘Debate on
Ancient History’”. In: 近代中國史研究通訊. 23, 1994, p. 355-388.
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na Índia e no Egito se passaram graves secas, demonstrando variações ambientais
importantes.48 Noutro sentido – mas conectado a essas pesquisas – Meng Shikai49
propôs que o evento histórico de Yu estava ligado à uma série de conflitos tribais, e a
inundação faria parte dessa memória histórica.
Os estudos de Wu e Ge foram corroborados por Zhang Lei50, cujas análises
estratigráficas mostram a existência de camadas compatíveis com o assentamento de
lodo de inundações, no mesmo período analisado; essas descobertas foram feitas na
área contígua aos sítios arqueológicos Xia, como mostrou Guo Qiang51, mostrando
como esses assentamentos foram afetados pelo 4200ap. Guo Lixin e Guo Jingyu52
tentaram precisar o espaço específico onde teriam ocorridos esses eventos, buscando
consolidar uma radiografia do espaço e da cultura Xia.
Se por um lado esses trabalhos mostram o interesse em comprovar a historicidade de
Yu e o projeto de ‘governo das águas’, por outro, do ponto de vista histórico, político
e cultural, a comparação entre Yu e Noé tem sido usualmente empregada para
destacar os valores da sociedade chinesa. As comparações usualmente feitas entre essa
cultura e a “cultura ocidental” tendem a privilegiar as realizações humanas no
enfrentamento aos desastres e no controle ambiental, enfatizando o papel da
comunidade frente aos problemas existenciais. Para os chineses, a presença de uma
48
WU Wenxiang 吴文祥e GE Quansheng 葛全胜. 《夏朝前夕洪水发生的 可能性及大禹 治水
真相》 第四纪研究 6, 2005, p. 741-749.
49
50
MENG Shikai 孟世凯. 《中国历史大讲堂:夏商史话》. 中国国际广播, 2007.
ZHANG
Lei
张磊.
《大禹治水地域范围新论——以出土文献和考古发现为参照》
古代文明 1, 2015, p. 41-46.
51
52
GUO Qiang. 郭强《考古视域下的大禹治水传说》. 寻根 1, 2021, p. 14-16.
GUO Lixin 郭立新 GUO Jingyun 郭静云. 《夏处何境——大禹治水背景分析》.
广西民族大学学报:哲学社会科学版1, 2021, p. 145-155.
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divindade pessoal e unívoca que decide exterminar a sociedade humana como punição
por seus pecados construiria uma visão problemática entre os ocidentais, que
passaram a desacreditar no valor das realizações coletivas. Se o mau comportamento
gerou o fim do mundo, a postura divina estimularia ainda mais o individualismo, já
que não faria sentido ser bom se a punição for coletiva. O hedonismo egoísta e a
acumulação material seriam resultados diretos desse tipo de visão mítica.
Li Hua e Wen Shengwei propuseram uma comparação cultural entre China e Ocidente
a partir da análise de Yu e Noé. Para eles, ambos são mitos fundadores que nos
informam bastante sobre a trajetória intelectual e moral das sociedades. O mito de Yu
conclama a uma reflexão íntima, a tomada de responsabilidade social, a promoção de
uma ética de valorização da vida e do respeito mútuo, além da ênfase do papel
humano na transformação da realidade. Ademais, a história de Yu se baseia na
concepção de uma natureza regida por leis, cujas variações impactam a realidade, mas
são contornáveis pela adequação harmônica e pelo trabalho consciente.
Por fim, a história de Yu tem um pouco mais de chances de ser historicamente
provável, constituindo um ‘fato histórico’.53 O mito de Noé, por sua vez, estabeleceria
a diminuição do valor humano, a variabilidade da natureza pela ação divina e a
instituição do destino privador da vontade. Os efeitos dialéticos desse modelo, como
dito antes, seria a exacerbação do individualismo e do pessimismo frente a
inexorabilidade da morte, e a implausibilidade da ação humana transformadora. A
longo prazo, concluem eles, a história de Yu constituiria uma inspiração mais
duradoura, fortalecendo os ideais de família, comunidade e sobrevivência.
Essa mesma concepção seria reforçada por Chao Chuan Yuan e Fu Chaying, que
numa análise cultural relativa à questão da felicidade entre China e Ocidente, a história
de Da Yu ‘tem características de humanismo, enfatiza a felicidade do processo, e busca
53
LI
Hua李华
e
WEN
Shengwei文胜伟.
《从“大禹治水”
看东西方文化的差异》. 科技信息 (科学教研), 34, 2007, p. 554.
289
和
“诺亚方舟”
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o coletivo’ enquanto a história de Noé ‘enfatiza a felicidade dos resultados e tende ao
individualismo’.54
Como podemos notar, a opinião de alguns dos intelectuais chineses que se
debruçaram sobre esses mitos ainda é fortemente influenciada pelo materialismo
histórico chinês, para os quais os conceitos de coletividade, dedicação ao trabalho e
organização social e política são muito caros. O aspecto religioso do mito da Arca de
Noé, a partir de uma intervenção divina, bem como as dificuldades técnicas que
envolveriam sua consecução, são fatores contabilizados nessa análise comparativa, que
do ponto de vista chinês, estabelece o contraponto dos modelos culturais de China e
Ocidente. Essas diferenças têm sido cada vez mais ressaltadas em um movimento de
autoafirmação da cultura chinesa contemporânea, que emprega o mito de Yu como
uma de suas principais ilustrações.55
Conclusão
A análise transcultural dos mitos de inundação aqui elencados nos permite supor que
muitas dessas narrativas são paratextos construídos a partir de tradições antigas sobre
eventos catastróficos [reais ou não] e seu impacto sobre a existência humana.
Contudo, buscar uma identidade heterotópica que transforme o dilúvio em uma
metanarrativa universalizante tornou-se uma questão exclusiva das mitografias
judaico-cristãs.
Como vimos, foram feitas várias tentativas de conectar o dilúvio semítico com
diversas outras narrativas míticas, pretendo conexões superficiais que resignificariam o
‘essencial’ do texto. Mesmo a inundação chinesa tornou-se, em certo momento, o
54
CHAO Chuan Yuan 巢传宣 e FU Chaying 付茶英. 《从"大禹治水" 与 "诺亚方舟"
管窥中西幸福观之差异》. 南昌工程学院学报, v. 38, n.139 [2], 2019, p. 40-44.
SHEN Yeming 沈叶鸣. 《大禹治水系列神话及其当代精神探析》 蚌埠学院学报 3, 2021, p.
115-119.
55
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transbordo do dilúvio de Noé; apenas para termos um exemplo, na década de 1980, o
Padre Joaquim Guerra – que realizou a única tradução completa das obras de
Confúcio para a língua portuguesa – ainda tentava provar a veracidade do evento, e
fez uma série de cálculos e malabarismos históricos para concluir que a possível data
bíblica combinava com as informações chinesas, e isso por si só bastaria como
prova!56 Da mesma forma, a passagem no Shujing na qual ‘o Céu passou o grande
plano para Yu’57 tem sido exaustivamente traduzida e compreendida por teólogos
cristãos [como o próprio Padre Guerra] como uma revelação divina, e não como a
percepção de como funcionava o organograma das leis naturais – nesse caso, o ajuste
do olhar sinológico inequivocamente está ligado às intenções do tradutor.
Faltou explicar, contudo, qual o papel de Yu na genealogia catastrófica do mundo;
pois se o ‘dilúvio chinês’ provava Noé, então onde Yu se escondeu dentro da Arca?
As inadequações conflituosas dessas passagens revelam, assim como no caso da Índia
ou dos Astecas, que essas tradições têm contornos originais, e partem de epistemes
particulares sobre o mundo, a natureza e a religiosidade.
Por outro lado, ficamos extremamente tentados a pensar nas conexões possíveis entre
Noé e Yu quando vemos, por exemplo, o caso do vinho – embora Noé tenha se
embriagado e Yu não, a questão é imaginar porque é atribuída eles essa relação
histórica especial com a bebida. Joseph Campbell igualmente resgata uma lenda
judaica que afirmava que Nóe ficara manco, assim como Yu58, o que instiga ainda mais
nossa curiosidade. Embora os paralelismos não funcionem como comprovação, eles
são capazes de provocar nossa imaginação para uma análise crítica de ambas as
narrativas. São aspectos pontuais como esses que nos tentam a associações mais
amplas (e nem sempre seguras).
56
GUERRA, Joaquim J. Escrituras Selectas. Macau: Jesuítas de Macau, 1980, p. 94-104.
57
Shujing, 洪範, 1.
CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus: mitologia oriental. São Paulo: Palas Athena, 1994, p. 306.
58
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Humberto Schubert COELHO (org.). Mirabilia Journal 39 (2024/2)
The Kingdom of the Spirit. The Transcendent, from the Ancient World to the Renaissance
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El Reino del Espíritu. Lo Trascendente, del Mundo Antiguo al Renacimiento
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ISSN 1676-5818
Retomando The Deluge, cumpre salientar que produtos midiáticos como esse
desfrutam de um amplo alcance imaginário, atingindo diversas camadas da população
formadas por não-especialistas, o que é um prato cheio para o consumo da fé. Eles
são capazes de conectar crenças e o imaginário com uma superfície de cientificidade,
criando uma perspectiva tautológica de compreensão. Tais produções, contudo, são
construídas a partir de perspectivas que se consideram ‘legítimas’ dentro de um viés
religioso. Mesmo arqueólogos experientes como George Smith se deixaram levar por
suas crenças particulares no momento de examinar as evidências históricas e
arqueológicas.
Em 1988, Alan Dundes59 produziu uma obra seminal sobre as narrativas de dilúvio,
coletadas nos mais de cem anos de pesquisa que tinham se desenvolvido sobre esses
mitos até então. Para grande surpresa e consternação, as mitografias chinesas estavam
ausentes. Chen Jianxian60 criticou abertamente o trabalho de Dundes, apontando que
as narrativas chinesas haviam sido deixadas de lado ou por desconhecimento ou por
não atenderem os requisitos necessários para serem incluídas na universalidade do
dilúvio levantino. Essa postura revela um vício de origem extremamente problemátco,
não apenas na obra de Dundes, mas de muitas outras produzidas no Ocidente. Chen
respondeu a essa ausência elaborando um livro que reunia seus mais de trinta anos de
experiência com os mitos de inundação chineses, juntando e comparando seiscentos e
oitenta e dois textos recolhidos entre os mais de quarenta grupos étnicos espalhados
pela China para construir um panorama histórico dessas narrativas e compará-las com
o de outras tradições não-chinesas.61
59
DUNDES, Alan. The Flood Myth. Berkeley: University of California Press, 1988.
60
CHEN Jianxian 陈建宪. 《中国洪水神话的类型与分布》. 中国民俗学网 Ed.8/5, 2012, p. 1.
61
CHEN
Jianxian
陈建宪.
《中国洪水再殖型神话研究:
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母题分析法的
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Esse apontamento é importante: mais recentemente, não somente o trabalho de
Chen, mas também o de Guo Lixin e Guo Jingyun (já citados)62 procura compor um
quadro mais complexo das tradições sobre inundação, comparando os mitos de várias
partes do mundo – e chegando a conclusões bastante diversas daquelas encontradas
numa literatura historiográfica ocidental mais tradicional.
Esse é um aspecto crucial que torna a leitura transcultural comparativa tão necessária.
Conhecer os mitos de inundação torna-se um ponto fundamental na formação do
historiador com vistas ao global, ao ecológico e ao antropoceno. Sem eles, o domínio
da textualidade mítica continuará a imprimir uma força significativa na compreensão
humana sobre o passado; e em admiti-la, nos restará então perguntar por qual razão a
Arca não caiu nas vazantes bordas da Terra plana... talvez porque estivesse sendo
rebocada por Matsya!
***
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