ESTUDOS
COREANOS
André Bueno [org.]
Reitora
Gulnar Azevedo e Silva
Vice-reitor
Bruno Rêgo Deusdará Rodrigues
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto
Orientalismo, Proj. Extens. UERJ Reg.
6876, coordenado pelo Prof. André Bueno
[Dept. História]
Conselho Editorial
Bony Schachter ● Edgard Leite ● Emiliano
Unzer ● Gerald Cipriani ● Giorgio Sinedino
● Jana Rosker ● Julio Gralha ● Lia R. de
La Veja ● Paulo André Leira Parente ●
Qiao Jianzhen (Ana Qiao) ● Xulio Rios
Rede
www.orientalismo.net
Seção Brasil
https://aladaainternacional.com/aladaabrasil/
Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 24: Estudos Coreanos 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/UERJ, 2024. p.
ISBN: 978-65-01-27032-6
Estudos Asiáticos; Orientalismo; Coreia; Estudos Coreanos
Apresentação
Oriente 24 é a nova coleção de livros dedicada aos estudos
orientais no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 8º
Simpósio internacional de Estudos Orientais, organizado pelo
Projeto Orientalismo da UERJ, Oriente 24 é formada de maneira
interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas
experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente
próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem
multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias
decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e
dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis,
procurando compreender suas características originais e sua
recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse
sentido, a coleção Oriente 24 é formada por uma série de volumes
que compreendem cada uma dessas dimensões espaçogeográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova
perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes
intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural
brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos,
que tentam apreender a variedade das expressões das culturas
asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja
bem-vindo a nossa coleção!
Volumes de Oriente 24:
Orientalismos: Pensamento e Literatura
Orientalismos: Mídias e Arte
Orientalismos e Brasil
Estudos sobre Próximo Oriente
Estudos Chineses
Estudos Japoneses
Estudos Coreanos
Estudos Asioindianos
SUMÁRIO
MULHERES DE CONFORTO: UMA ANÁLISE ATRAVÉS DO CURTAMETRAGEM DE ANIMAÇÃO ‘HER STORY’ DIRIGIDA POR KIM JUN-KI
(2011)
Camilly Evelyn Oliveira Maciel
9
A PERDA DA IDENTIDADE CULTURAL COREANA EM ‘PACHINKO’, DE MIN
JIN LEE
Gabrielly Fernanda Spizamilio Silva
19
A REI SEONDEOK: REPRESENTAÇÃO DA PRIMEIRA RAINHA DE SILLANO
SAMGUK YUSA
Isabelly de Oliveira Ribeiro
28
A RESISTÊNCIA CULTURAL COREANA ATRAVÉS DA ALIMENTAÇÃO
DURANTE A DOMINAÇÃO JAPONESA (1910-1945)
Maria Aparecida Stelzer Lozório
35
O ACORDO DAS MULHERES DE CONFORTO DE 2015 ENTRE COREIA
DOSUL E JAPÃO: UMA TRAJETÓRIA DE INSUFICIÊNCIAS E RUPTURAS
Maurício Luiz Borges Ramos Dias
43
DO NORTE AO SUL: UMA ANÁLISE DOS FLUXOS MIGRATÓRIOS DE
DESERTORES NORTE COREANOS
Natália Silva e Vitória Georgia
52
DESISTÊNCIA COMO FORMA DE RESISTÊNCIA: DISCUTINDO A
GERAÇÃO N-PO POR MEIO DO FILME ‘MICROHABITAT’ (2017)
Suéllen Gentil e Clara Moraes
57
“TRAIN TO BUSAN” E A SOCIEDADE SUL-COREANA: UMA BREVE
ANÁLISE
Vitória Ferreira Doretto
65
8
MULHERES DE CONFORTO: UMA ANÁLISE ATRAVÉS
DO CURTA-METRAGEM DE ANIMAÇÃO HER STORY
DIRIGIDA POR KIM JUN-KI (2011)
Camilly Evelyn Oliveira Maciel
Quem foram as “mulheres de conforto”?
O termo “mulheres de conforto” é usado para se referir, de maneira eufêmica,
às mulheres que foram submetidas à escravidão sexual pelo Exército Imperial
Japonês durante a Segunda Guerra Mundial. Estima-se que, em média, 80 mil
a 200 mil mulheres foram levadas pelo sistema a servir como escravas sexuais,
entretanto, esse número não é exato, uma vez que a maioria dos documentos
relacionados a essas mulheres foram queimados pelos soldados ao final da
guerra (Min, 2003).
Mulheres de diversos países foram mobilizadas pelo sistema: chinesas,
japonesas, filipinas e tailandesas. Entretanto, a maior parte (cerca de 80% a
90%) era coreana — tendo em vista que, após longas disputas, o Japão
conseguiu ocupar a Coréia em 1910, fazendo-a sua colônia (Soh, 1996). Essas
mulheres eram forçadas a entrar no sistema de diversas formas: sequestradas,
recrutadas à força ou enganadas por meio de falsas promessas de trabalho.
Uma vez capturadas, eram mantidas em bordéis militares, nomeados de "casas
de conforto", onde eram obrigadas a fornecer serviços sexuais aos soldados
japoneses (Sikka, 2009).
Moldura do curta
Her story é um curta-metragem de animação cujo título original é So-nyeo-i-yagi ou 소녀이야기 e pode ser traduzido para o português como “a história dela”.
Dirigido e produzido, em 2011, pelo diretor sul-coreano Kim Jun-Ki, o curta foi
apoiado pelo SBA (Seoul Animation Center) — um museu de animação
especializado em desenho animado, localizado em Seul, capital da Coréia do
Sul — pela ChungKang College of Cultural Industries — uma faculdade privada
com foco nas indústrias culturais, localizada na cidade de Icheon, província de
Gyeonggi, Coreia do Sul — e pela Korean Council for the women drafted for
military sexual slavery by Japan — uma organização não-governamental
9
coreana que defende os direitos das “mulheres de conforto” e apoia a luta por
justiça, pressionando o governo japonês no que tange ao reconhecimento do
caso das “mulheres de conforto” como um crime de guerra e a um pedido de
desculpas oficial do governo.
Figura 8: Pôster do curta-metragem de animação Her Story.
Fonte: imdb.com.
Em 2012, a animação recebeu o maior prêmio no 서울국제노인영화제 Seoul
International Senior Film Festival (5º Festival Internacional de Cinema Sênior
de Seul). O curta-metragem possui dez minutos e 55 segundos de duração e é
narrado pela voz da protagonista, Chung Seo-Woon.
O curta-metragem foi traduzido para a língua inglesa pela organização “Justice
for Comfort Women” — administrado por quatro alunos que lutam para que a
história das “mulheres de conforto” se torne mais conhecida — e traduzido para
a língua portuguesa pelo “Coletivo Perseguidas” — um grupo feminista
brasileiro, centrado em vozes de mulheres não-brancas.
A protagonista do curta
Chung Seo-Woon (1924-2004) nasceu em uma família abastada em Hadong,
sudoeste da Coréia, no período em que seu país estava sob domínio japonês.
O seu pai, por ser contrário à colonização japonesa, desobedecia algumas
ordens impostas pelo governo do Japão às suas colônias — como, por
exemplo, utilizar um nome japonês em vez do nome coreano — em uma
determinada ocasião ele foi denunciado por enterrar utensílios que as
autoridades japonesas queriam confiscar e devido a isso foi levado à prisão
(Viddsee, 2017; The Research Team of the War & Women’s Human Rights
10
Center; The Korean Council for the Women Drafted for Military Sexual Slavery
by Japan, 2020).
Pretendendo tirar o seu pai da cadeia, Seo-Woon acreditou no que o chefe de
sua aldeia disse: que a única maneira de libertar o seu pai era que ela fosse
trabalhar em uma fábrica de tecidos no Japão, por esse motivo ela concordou
em ir. Chegando a Pusan (atual Busan, Coréia do Sul) ela e outras meninas
foram mantidas em um armazém por 15 dias — onde permaneceram isoladas
e obrigadas a seguir ordens contra sua vontade: Chung relatou que durante
esse período seu cabelo foi cortado sem sua permissão. Depois de dias presas
no armazém, Seo-Woon conta que ela e as outras jovens foram levadas em um
navio de Pusan até Jacarta, na Indonésia. Lá as meninas foram esterilizadas e
enviadas para diversos lugares no Pacífico Sul (The Research Team of the War
& Women’s Human Rights Center; The Korean Council for the Women Drafted
for Military Sexual Slavery by Japan, 2020).
Figura 9: Mapa apresentando a rota feita por Chung Seo-Woon.
Fonte: The Research Team of the War & Women’s Human Rights Center; The
Korean Council for the Women Drafted for Military Sexual Slavery by Japan,
2020.
Em seu posto de conforto, Seo-Woon foi obrigada a utilizar um nome japonês,
Kukuko (菊子), proibida de falar em coreano e obrigada a atender, em média,
50 soldados por dia — número que dobrava nos finais de semana. Em seu
relato, Seo-Woon conta um pouco da sua experiência dentro das estações de
conforto: ao tentar resistir, no primeiro dia, foi espancada e esfaqueada, o que
deixou diversas cicatrizes em todo o corpo. (The Research Team of the War &
Women’s Human Rights Center; The Korean Council for the Women Drafted for
Military Sexual Slavery by Japan, 2020).
11
Ainda em seu testemunho, ela conta que havia quatorze mulheres em sua
estação, sendo ela a mais nova. Das quatorze meninas, duas foram
espancadas até a morte. Em sua estação, alega que os quartos eram
pequenos, onde havia apenas “uma cama e nada mais”. Além disso, também
relata que nenhuma das mulheres tinha permissão para sair da estação e que
não havia como fugir do local, principalmente por ser um país diferente e
distante da Coréia. (The Research Team of the War & Women’s Human Rights
Center; The Korean Council for the Women Drafted for Military Sexual Slavery
by Japan, 2020).
Em relação ao fim da guerra, conta que as “mulheres de conforto" da sua
estação não foram notificadas de que o Japão havia perdido a guerra e quando
ela foi liberta, voltou para casa após um ano. Órfã, se livrou do vício em ópio e
mais tarde, casou-se com o viúvo e criou dois enterrados, uma vez que não
pôde ter filhos devido às consequências de ter sido uma vítima do sistema de
conforto. Em 1995, representou as sobreviventes na Quarta Conferência
Mundial Sobre as “Mulheres de Conforto” que aconteceu em Pequim, China.
Por anos, lutou a favor do reconhecimento do caso das “mulheres de conforto”
e faleceu em 2004, aos 81 anos, sem ouvir um pedido de desculpas oficial do
Japão. (The Research Team of the War & Women’s Human Rights Center; The
Korean Council for the Women Drafted for Military Sexual Slavery by Japan,
2020).
Segundo Seo-Woon, a coisa mais difícil foi “suportar os estupros contínuos” —
ela inclusive relata que só vestia uma peça de roupa (uma vez que, devido a
quantidade de soldados para serem atendidos “não havia tempo para usar
calcinha”) — e que o que a manteve viva foi a crença de que deveria sobreviver
para voltar para o seu pai, já que ela era filha única. Chung Seo-Woon tinha
dezoito anos de idade, e foi apenas uma das mais de 200 mil mulheres que
foram obrigadas a servir como “mulher de conforto” pelo Exército Japonês.
(The Research Team of the War & Women’s Human Rights Center; The Korean
Council for the Women Drafted for Military Sexual Slavery by Japan, 2020).
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Figura 10: Chung Seo-Woon, a protagonista do curta-metragem Her Story.
Fonte: womenandwar.net
A história contada: análise do conteúdo
A animação começa com Chung Seo-Woon já na terceira idade comentando
sobre como ela possuía uma vida confortável vivendo com seus familiares.
Entretanto, a protagonista explica que seu pai, assim como muitos coreanos,
não aceitava de forma alguma a situação em que a Coréia estava passando
mediante a colonização e controle japonês. Por conta dessa situação, o pai de
Seo-Woon se recusa a entregar os materiais pedidos pela polícia japonesa —
“na última etapa da colonização, entre 1937 e 1945, o governo japonês utilizouse da Coréia principalmente como fornecedora de alimentos, minerais e
materiais de guerra.” (Okamoto, 2013, p. 95) — e, junto com outros, enterra
todos os utensílios no campo de arroz, durante a noite (Viddsee, 2017).
Após alguém deletar à polícia o que estava acontecendo, o pai da protagonista
foi enviado para a prisão e, poucos dias depois, o responsável pela
administração da cidade foi a casa da família Chung e a convenceu de que ela
deveria trabalhar em uma fábrica japonesa por alguns anos, explicando que em
troca disso, o seu pai seria liberado da prisão (Viddsee, 2017). Assim, Chung
Seo-woon foi recrutada para o sistema de conforto através de uma falsa
promessa de trabalho pelo chefe de sua cidade. De acordo com Howard (1995,
p. 19), “O método mais utilizado era tentar as mulheres com falsas promessas
de emprego no Japão. Os civis foram os principais responsáveis aqui, mas
também registámos casos que envolveram a cumplicidade de pessoas com
autoridade, tais como chefes de aldeia, oficiais comunitários, soldados e
funcionários civis”.
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Ainda sem saber que seu destino não era uma fábrica japonesa, Seo-Woon foi
levada, junto com outras treze garotas, para Semarang, na Indonésia. Ao
desembarcar, ela percebeu que não estava no Japão, “mas em outro país mais
distante”. Logo na primeira noite, ela conta que um oficial bastante bêbado
entrou em seu quarto e a abusou, em suas palavras declara: “tão assustada
que eu estava tremendo de medo [...] foi assim que tudo começou” (Viddsee,
2017).
Devido a sua resistência — chutando e empurrando os soldados
constantemente — Seo-Woon conta que os homens da estação de conforto
injetaram ópio em seu corpo para “acalmá-la” e devido ao uso constante, ela se
tornou viciada na droga, a utilizando para aguentar o sofrimento pelo qual
passava (Viddsee, 2017). Chung não foi a única “mulher de conforto” a recorrer
ao ópio para aliviar a angústia, em seu trabalho, Hicks (1997), traz a história de
Kaneda Kimiko — a primeira mulher a falar sobre seu passado como “mulher
de conforto” — que também utilizou o ópio durante seu período dentro do
sistema.
Figura 11: Trechos do cura que mostram soldados injetando ópio em Chung
Seo-Woon
Fonte: Viddsee.com
Ao continuar a narrar sua história, a protagonista explica sobre a quantidade de
soldados que as meninas-mulheres tinham que atender: “Não consigo nem
contar quantos soldados entravam, principalmente nos finais de semana,
fazendo fila, ainda uniformizados” (Viddsee, 2017). O número de soldados que
as “mulheres de conforto” tinham que atender diariamente variava de estação
para estação e também de dia para dia — os diversos testemunhos de
sobreviventes relatam que o número de soldados aumentava durante os finais
de semana, chegando a duplicar o número (Hicks, 1997). De acordo com Ariel
(2022, p. 91), as “mulheres de conforto” “eram obrigadas a manter relações
sexuais com soldados japoneses, sendo em média de 10 a 30 vezes por dia,
mas em certos casos podendo chegar a até 60”.
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Figura 12: Trecho do curta que exibe uma fila de soldados ao lado de fora da
casa de conforto.
Fonte: Viddsee.com
Chung Seo-Woon também relata ao longo do curta sobre os maus tratos
praticados pelos soldados: em sua estação de conforto duas das treze meninas
morreram e “foram enterradas como cães”. Esse episódio demonstra a falta de
humanidade que os soldados tinham com as mulheres, tratando-as de forma
degradante (Viddsee, 2017).
Infelizmente, muitas mulheres não conseguiram resistir as torturas diárias e
acabaram tentando ou cometendo suicídio. Em seu trabalho Hicks cita, entre
outros exemplos, uma estação de conforto que teve que aumentar a rigidez de
sua guarda após casos de suicídios (Hicks, 1997). Seo-Woon foi uma delas: o
curta de animação apresenta o episódio em que Chung ingeriu, em uma só
noite, 40 pílulas contra a malária com o intuito de cometer suicídio. Após tomar
os medicamentos em grande quantidade, a protagonista passa mal, sangrando
pelo nariz e pelos ouvidos, e acredita que conseguiu obter êxito na tentativa,
porém, os soldados e administradores da estação encontram Chung e a
resgatam. Ela passou três dias desacordada (Viddsee, 2017).
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Figura 13: Trechos do curta que demonstram a tentativa de suicídio por
overdose.
Fonte: Viddsee.com
Ao longo do curta-metragem de animação, podemos analisar as meninasmulheres da estação de Chung Seo-Woon, sendo levadas a um hospital fora
da estação — como anteriormente mencionado no trabalho, as “mulheres de
conforto” passavam por check-ups médicos, para prevenir gestações e
infecções sexualmente transmissíveis — durante a saída do carro com as
mulheres, é possível observar a organização da estação, com cercas e
soldados em vigia cercando o lugar — o que nos possibilita compreender o
quão difícil, ou impossível, se dava qualquer tentativa de fuga das “mulheres de
conforto” (Sikka, 2009; Viddsee, 2017).
Já no final do curta, mostrando o período em que se estava próximo ao final da
guerra, Chung Seo-Woon conta que na sua estação as mulheres não foram
informadas sobre as derrotas do Eixo e a rendição final do Japão. Assim, a
animação apresenta as mulheres vendo os soldados incinerando documentos e
outras provas e após isso, Chung Seo-Woon relata que os soldados levaram
três ou quatro meninas para o abrigo e as mataram (Viddsee, 2017).
Segundo Sarah Soh (2008, p 177), “muitas mulheres de conforto coreanas
foram simplesmente abandonadas e foi relatado que, em alguns casos
extremos, o exército japonês em retirada matou as mulheres levando-as para
trincheiras ou cavernas onde as bombardearam, queimaram ou atiraram nelas,
criando valas comuns no local.” (tradução nossa).
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Figura 14: Trechos do curta que mostram o abrigo onde os soldados levaram
algumas das “mulheres de conforto” para serem mortas a tiros.
Fonte: Viddsee.com
A protagonista ainda comenta que, se não tivesse sido por um soldado coreano
convocado pelo serviço militar japonês que servia na sua estação — que
escreveu uma carta pedindo ajuda às forças aliadas através de um indonésio
local que buscava as roupas dos oficiais para lavar — todas as mulheres teriam
sido mortas naquele abrigo. Graças a esse soldado, as forças aliadas
encontraram a estação de conforto e as meninas e mulheres foram libertas
(Viddsee, 2017).
Nos últimos momentos do curta, vemos a protagonista conseguindo voltar para
casa e para sua família apenas para descobrir que todos tinham falecido.
Sozinha em uma casa abandonada, Chung Seo-Woon teve que lidar por conta
própria com os traumas e lutar contra o vício do ópio. Finalizando sua história,
a protagonista explica de onde tirou forças para enfrentar todas essas
situações sem ninguém para apoiá-la: “Continuei dizendo a mim mesmo que só
precisava permanecer vivo, eles podem ter matado meu corpo, mas não meu
espírito. Foi assim que sobrevivi.” (Viddsee, 2017).
Her Story apresenta uma excelente combinação entre o sonoro e o visual,
trazendo a voz da protagonista para narrar sua história enquanto o curta
demonstra os fatos por meio de uma animação. Entretanto, o curta vai para
além do relato de Chung Seo-Woon e, através do visual, traz mais fatos
relacionados ao caso do sistema de conforto. Mostrando, por exemplo, (1) a
idade das meninas — a maioria das “mulheres de conforto” estava na faixa dos
14 aos 18 anos de idade, algumas até mesmo menores que 14 anos (Okamoto,
2013); (2) as emoções sentidas pelos personagens nas diversas situações —
como o constante medo na face das meninas-mulheres; (3) as péssimas
condições das casas onde as mulheres ficavam, com quartos pequenos que
possuíam apenas uma cama — “as jovens ficavam confinadas em quartos
minúsculos, de cerca de 1,85 m” (Ariel, 2022, p. 89); (4) os designs das
estações-prisões onde essas jovens eram obrigadas a permanecer. E, além
disso, (5) a dor da protagonista mesmo após a libertação, apresentando o
cansaço, não só na voz, mas na expressão da halmoni (termo utilizado para se
referir às “mulheres de conforto” na Coreia do Sul) ao continuar falando sobre o
trauma que a tirou parte da vida, mas também mostrando a perseverança em
17
continuar lutando pelos seus direitos, e de todas as sobreviventes, mesmo
após anos.
Referências
Camilly Evelyn Oliveira Maciel é Licenciada em História pela Universidade
Federal do Maranhão (UFMA).
Crushed Her Body But Not Her Soul // Viddsee.com. 2017. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=eXu_0in6_lM.Acesso em 13/09/2022.
HER STORY. Imdb.com. Disponível em: https://m.imdb.com/title/tt2087946/.
Acesso em: 12/07/2024.
HICKS, George. The comfort women: Japan’s brutal regime of enforced
prostitution in the Second World War. WW Norton & Company, 1997.
HOWARD, Keith. True stories of the Korean comfort women. 1995.
MIN, Pyong Gap. Korean “Comfort Women”the intersection of colonial power,
gender, and class”. Gender & Society, v. 17, n. 6, p. 938-957, 2003.
OKAMOTO, Julia Yuri. As Mulheres de Conforto na Guerra do Pacífico. Revista
de Iniciação Científica de Relações Internacionais, v. 1, n. 1, 2013.
PARRILHA, Ariel da Silva. As “mulheres de conforto” coreanas e a violência
sexual estratégica: uma análise. Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2022.
Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/236504>.
RESEARCH TEAM OF THE WAR & WOMEN’S HUMAN RIGHTS CENTER;
THE KOREAN COUNCIL FOR THE WOMEN DRAFTED FOR MILITARY
SEXUAL SLAVERY BY JAPAN. Stories that Make History: The Experience and
Memories of the Japanese Military› Comfort Girls-Women‹. De Gruyter, 2020.
SIKKA, Nisha. The official marginalization of comfort women. Honours Thesis.
Communications 498. Simon Fraser University. December 11, 2009. (33 fls.)
[Disponível em: http://summit.sfu.ca/item/15225].
SOH, Chunghee Sarah. “The Korean ‘comfort women’: Movement for redress”.
Asian Survey, v. 36, n. 12, dec. 1996, pp. 1226-1240.
SOH, Chunghee Sarah. The comfort women: sexual violence ad postcolonial
memory in Korea and Japan. Chicago: The University of Chicago Press, 2008.
18
A PERDA DA IDENTIDADE CULTURAL COREANA EM
PACHINKO, DE MIN JIN LEE.
Gabrielly Fernanda Spizamilio Silva
É inegável o fato de que em todas as nações mundiais as decorrências de
conflitos armados, especialmente os ocorridos no século XX, foram imensas e
desumanas; sem dúvida esses conflitos afetaram significativamente o cotidiano
de toda a sociedade mundial. Entretanto, a península coreana foi, literalmente,
cercada e retalhada por esses atritos. Entre 1904 e 1905 houve a Guerra
Russo-Japonesa, um conflito armado entre o Império Japonês e o Império
Russo cuja intenção era disputar os territórios da Coreia e da Manchúria. O
Japão vence essa contenda conquistando o Império Coreano que passa a ser
protetorado japonês. Contudo, apenas cinco anos depois, a anexação da
Coreia como colônia do Japão é oficialmente firmada. A partir desse momento,
em 1910, inicia-se a Ocupação Colonial Japonesa na Coreia. Essa ocupação
foi especialmente cruel com os coreanos, que eram desumanizados de várias
formas: impedidos de utilizar o Hangul (sistema de escrita coreano), a moeda
passou a ser japonesa, nomes coreanos não eram permitidos, muitos trabalhos
eram análogos à escravidão e, obviamente, todos os coreanos deveriam adotar
a cultura de seu colonizador. Ou seja, a identidade cultural coreana foi
confiscada e sua cultura reprimida. Além disso, outros eventos históricos
influenciaram no comprometimento da identidade cultural coreana.
A derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial abriu espaço para uma nova
disputa de poder na península coreana. A União Soviética tomou o controle da
parte norte da península e, enquanto isso, o exército estadunidense
desembarcava na parte sul, para evitar que toda a Coreia fosse governada pelo
exército vermelho. Ambas as potências definiram, em 1948, a sua zona de
influência, separadas por uma linha divisória próxima ao paralelo 38. Contudo,
isso não agradou a todos. Logo, inicia-se outro confronto pela disputa de
território e, inclusive, pela disputa de ideologias. A Rússia já possuía interesses
territoriais na península coreana.
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Portanto, o país inicia as suas tentativas de abarcar todo o território coreano,
porém os Estados Unidos acaba interferindo e, então, tem-se início a Guerra
da Coréia (1950-1953) dividindo de vez a península entre Coreia do Norte e
Coréia do Sul, divisão mantida até os dias atuais. Todos esses conflitos e
muitos outros são abordados no livro Pachinko, de Min Jin Lee. Publicado pela
primeira vez em 2017, o romance se constitui de um olhar reflexivo dos
acontecimentos pela perspectiva de pessoas comuns. Logo, esses eventos não
são abordados somente sob uma perspectiva histórica, mas sim sob uma
perspectiva humana: no livro temos quatro gerações coreanas cujas histórias
estão expostas entre os anos de 1910 e 1989.
A divisão temporal em Pachinko ocorre por meio de três seções, ou três livros:
Livro I
Gohyang/ Cidade Natal
1910-1933
Livro II
Pátria - Mãe
1939-1962
Livro III
Pachinko
1962-1989
Apesar da divisão histórica, o livro não possui uma narrativa linear, entretanto
isso não atrapalha a pesquisa. Descobrimos ao longo da leitura que Sunja se
apaixona por Hansu, um coreano pró-japônes. Ao descobrir sobre a gravidez
de Sunja, Hansu diz não poder se casar pois já tem esposa e filhas no Japão.
Sunja, desolada, decide criar a criança sozinha, porém sabe que seu filho
sofrerá com essa decisão. Sabendo sobre a situação o pastor Isak, vindo de
Pyongyang, oferece casamento à garota, porém eles terão de viver no Japão
onde Isak foi designado para difundir a religião cristã.
Inicia-se assim a vida de ambos como Zainichi, coreanos que nasceram e
cresceram sob a ocupação colonial japonesa na Coreia e que agora irão criar
os seus filhos sob o mesmo domínio no Japão. A esperança de uma vida
melhor para os seus descendentes os motiva, contudo as dificuldades serão
grandes, especialmente para os seus filhos, ou seja, para a geração coreana
nascida no Japão durante esse período.
Pachinko não é apenas um simples romance que relata a vida de uma família
imigrante, mas sim um tributo à memória de todos os imigrantes coreanos que
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tiveram boa parte de sua identidade cultural confiscada pelo imperialismo
japonês e que, mesmo assim, reuniram coragem para buscar uma qualidade
de vida mais digna para a sua família. Ao longo da obra, vemos como os
coreanos sobreviveram e prosperaram mesmo sob as garras do Japão, sem se
importarem com o arco histórico que os envolveu. Tanto, que isso é
mencionado na primeira frase do livro “A história falhou conosco, mas não
importa” (LEE, 2018, p.11).
O livro 1 corresponde aos acontecimentos históricos mencionados em
Pachinko entre os anos de 1910 até 1933, sendo os mais importantes para a
pesquisa: A Ocupação Colonial Japonesa (1910-1945), o Movimento Samil
(1919), a Grande Depressão (1929) e a Invasão da Manchúria pelo Japão
(1931).
Ao longo de Pachinko observamos as dificuldades e esperanças de cada
geração ao desejar uma melhoria de vida para os seus descendentes.
Infelizmente, essa melhora acontece apenas para a última geração
mencionada no livro e, só ocorre após duras penas.
No primeiro livro, Gohyang/Cidade Natal (1910-1933), observamos o início da
ocupação colonial japonesa na Coreia. O governo japonês cobra impostos
altíssimos e, por esse motivo, diversos coreanos vendem ou cedem as suas
terras para pagá-los. Neste ponto do livro temos a história de um casal que
possui uma pensão, eles são os donos do negócio, mas não do lugar. Com a
ocupação colonial o aluguel sobe e o casal passa a dormir no vestíbulo para
aumentar o número de hóspedes. A vida dos civis vai se tornando cada vez
mais difícil, como podemos observar no seguinte trecho:
“...como acontece sempre que um país sofre um golpe dos seus rivais ou da
natureza, os fracos (os velhos, as viúvas e os órfãos) estavam mais
desesperados do que nunca na península colonizada. Para cada lar que podia
alimentar mais uma pessoa, havia multidões dispostas a trabalhar um dia
inteiro em troca de uma tigela de grãos de cevada” (LEE, 2020, p. 13).
Esse período foi de grande importância para a história coreana, pois é uma
época em que as dificuldades de vida do povo se elevaram a níveis
catastróficos.
Além disso, a identidade cultural e, consequentemente, a identidade individual
coreana sofreu diversos impactos. Chegou ao ponto do povo coreano não
poder utilizar nomes em hangul em seus registros, sendo permitido apenas
nomes japoneses. Como vemos no seguinte trecho:
21
“Devido às exigências do governo colonial, era normal que os coreanos
tivessem dois ou três sobrenomes, mas na Coreia ela [Sunja] praticamente não
usava o tsumei japonês que aparecia em seus documentos de identidade
(Junko Kaneda), porque não frequentava a escola e não tinha nenhuma
relação com instituições oficiais. O sobrenome de nascimento de Sunja era
Kim, mas no Japão, onde as mulheres adotavam o nome de família do marido,
ela era Sunja Baek, que se traduzia como Sunja Boku, e em seus documentos
de identidade seu tsumei agora era Junko Bando. Quando os coreanos tiveram
que escolher um sobrenome japonês, o pai de Isak escolheu Bando porque
soava como a palavra coreana ban-deh, que significa “objeção”, o que tornava
seu sobrenome japonês obrigatório uma espécie de piada [...]” (LEE, 2020,
142, acréscimo nosso).
As consequências dos atritos mencionados em Pachinko a respeito dessa
identidade cultural, principalmente em relação à ocupação japonesa, são
mantidas por gerações. Ao retirar o nome de origem coreana, os japoneses
deram a cartada final na negação de uma identidade cultural propriamente
centrada neste grupo. Como as identidades também estão vinculadas às
condições sociais e materiais, o fato de os coreanos terem sido obrigados a
utilizar outro nome não foi de grande ajuda em relação a essas condições.
Afinal, esse grupo étnico continuou a passar por discriminações: sob a
perspectiva das condições materiais, os coreanos e seus descendentes eram
impossibilitados de ter passaporte japonês, comprar imóveis e, até mesmo,
conseguir um emprego, isso perdurou até por volta dos anos 1989. Assim: “A
identidade está vinculada também a condições sociais e materiais. Se um
grupo é simbolicamente marcado como o inimigo ou como tabu, isso terá
efeitos reais porque o grupo será socialmente excluído e terá desvantagens
materiais [...]” (SILVA, 2000, p. 14).
Mesmo quando os coreanos não podiam opinar ou se manifestar contra essa
prática, vemos em Pachinko que alguns coreanos escolheram sobrenomes que
zombavam da imposição japonesa. Não era muito, mas essa pequena
resistência já demonstrava certo grau de insatisfação do povo em relação ao
imperialismo japonês.
Devemos lembrar que em meio a esses acontecimentos históricos importantes
para a sociedade coreana e asiática de modo geral, ocorreram de modo
paralelo, eventos de importância global. Como a Primeira Guerra Mundial
(1914-1918) que não é mencionada diretamente no livro, mas indiretamente
também afetou o cotidiano do povo. Durante a primeira grande guerra, o Japão
se manteve do lado dos aliados e foi um importante protetor das rotas
marítimas asiáticas. Justamente por esses motivos a fama japonesa no
ocidente crescia aos poucos.
22
Enquanto isso, os coreanos estavam cada vez mais revoltados com os
tratamentos de submissão que eram forçados a exercer perante os japoneses
e com as boas graças que os nipônicos recebiam do ocidente. Assim, em 1919,
logo após o término da Primeira Guerra Mundial, explode na Coreia o
Movimento Samil, ou Movimento Primeiro de Março. Esse movimento foi
basicamente uma grande manifestação nacionalista contra o imperialismo
japonês que ocorreu na Praça Pagoda na capital coreana, durante a
manifestação houve a participação de líderes religiosos cristãos, cheondoistas
e budistas. Logo: “Enquanto o imperialismo ampliava a sua abrangência e
profundidade, a resistência nas próprias colônias também crescia” (SAID, 1995,
p. 281).
Durante a manifestação foi lida a Declaração de Independência, escrita pelo
poeta Choe Nam-Seon, essa declaração ainda é uma grande referência para o
nacionalismo coreano. O movimento ecoou pela Coreia e mais rebeliões foram
acontecendo, das quais foram consideradas subversivas pelo Japão.
Infelizmente, as consequências do Movimento Samil foram catastróficas:
“Dias depois, as manifestações pelo país ganharam ares violentos, e as
autoridades japonesas resolveram agir de maneira brutal. Mobilizando a
polícia, o kenpeitai e o exército, foram usados rifles e espadas durante
semanas contra os considerados subversivos. Ao todo, cerca de 7500 pessoas
morreram, 15 mil feridos e mais de 46 mil presas e torturadas. Centenas de
casas, igrejas e escolas foram incendiadas. Em 15 de abril, a população de
uma aldeia perto de Suwon foi massacrada dentro de uma igreja local pelas
autoridades japonesas. As notícias aterradoras, no entanto, não chegaram a
impactar na imprensa internacional, pois muitos países ocidentais não
assumiram posição crítica diante de um aliado nos esforços da Primeira Guerra
Mundial, o Japão.” (MACEDO, 2018, p. 158)
Em virtude dos fatos apresentados podemos afirmar que o tratamento dado
para os coreanos pelos japonês foi extremamente cruel. Durante esse período,
em todos os assuntos referentes à independência coreana, nenhum governo
externo ocidental se manifestou ou tomou partido da situação coreana.
Obviamente, como é dito no trecho acima, isso se deve ao fato de que esses
países estavam em uma posição crítica em relação a um dos aliados durante a
Primeira Guerra Mundial, o Japão.
Cerca de dez anos após o Movimento Samil, em 1929, surge a Grande
Depressão que apesar de ter ocorrido nos EUA oscilou a economia mundial. O
Japão estava envolvido com projetos globais que buscavam uma modernidade
cada vez maior, devido a essa crise na bolsa de valores a economia japonesa
23
foi agravada. Como consequência os japoneses passaram a defender o
fascismo militar e a expansão para a China.
Desde que o governo japonês matou o senhor da guerra da Manchúria, em
1928, o exército japonês passou a expandir a sua dominação sobre esse país.
Enfim, em 1931, eclode a invasão da Manchúria pelo Japão. Nesse momento
histórico os coreanos continuam sofrendo com as altas taxas dos impostos,
com a guerra ao lado do seu território e com as decisões tomadas pela
metrópole japonesa. As coreanas sofrem ainda mais, pois é nesse momento
que os japoneses levam as mulheres da colônia para se tornarem mulheres de
consolo do exército japonês durante a guerra. No trecho abaixo podemos ver
como tanto a Grande Depressão quanto a Invasão da Manchúria prejudicaram
o povo coreano:
“O inverno que sucedeu a invasão da Manchúria pelo Japão foi difícil. Rajadas
de vento cortante atravessavam a pequena pensão, e as mulheres precisaram
enfiar algodão entre as camadas de roupa. Durante as refeições, os hóspedes,
repetindo o que ouviam no mercado dos homens que sabiam ler os jornais,
diziam que aquilo se chamava Depressão e estava assolando o mundo inteiro.
Os americanos pobres passavam tanta fome quanto os russos pobres e os
chineses pobres. Em nome do imperador, até os japoneses estavam
enfrentando privações. Os prudentes e fortes, não havia dúvida, sobreviveriam
àquele inverno, mas as notícias vergonhosas eram frequentes demais: crianças
que iam dormir e não acordavam, meninas que vendiam sua inocência por uma
tigela de macarrão e idosos que se recolhiam para morrer sozinhos a fim de
que os mais novos pudessem comer.” (LEE, 2018, p. 19)
Todos os trechos acima retirados de Pachinko, apesar de constituírem um
romance de ficção, são baseados em fatos históricos e explicitam de modo
claro como os eventos mencionados até o momento foram catastróficos para a
população coreana. Sabemos que a Primeira Guerra Mundial e a Grande
Depressão tiveram consequências negativas para o mundo, porém para os
coreanos a situação foi ainda pior. Afinal, esse povo já estava sofrendo com as
políticas japonesas em meio a ocupação colonial. Foi, principalmente, durante
esse período que a identidade cultural coreana foi fortemente reprimida pelos
japoneses.
É necessário mencionar que Sunja cresce na Coreia em meio a ocupação
colonial japonesa, portanto, como vimos em trechos anteriores, até mesmo o
seu nome é confiscado. Logo, é um fato que todos os coreanos nascidos e
crescidos no mesmo período histórico que Sunja também tiveram seus nomes
24
modificados para serem aceitos no padrão japonês. Essa questão é de grande
relevância para a perda da identidade cultural dos coreanos.
Em 1933, Sunja vai para o Japão com o marido Isak, ambos buscam uma vida
melhor para a família, pois com a Coreia sendo colônia japonesa, os coreanos
não possuem oportunidades dignas de estudo ou trabalho. A partir de então a
família se torna Zainichi, termo que define os coreanos que vivem e trabalham
no Japão. Infelizmente, a situação dos coreanos na metrópole japonesa é tão
ruim quanto na Coreia. Além disso, outros acontecimentos históricos surgem
para desestabilizar o imperialismo nipônico.
Ao longo das outras seções do romance, também é abordado eventos
históricos conflituosos que nos conduzem a outras reflexões sobre as diversas
trocas culturais, essencialmente impostas, que ocorreram na Coreia devido aos
eventos mencionados no quadro acima. Temos no romance um trecho
referente à Segunda Guerra Sino-Japonesa e vemos claramente a perspectiva
social em relação a essa contenda:
“No entanto, todos os coreanos que conhecia consideravam absurda a guerra
que o Japão tinha deflagrado na Ásia. A China não era a Coreia; a China não
era Taiwan; a China podia perder um milhão de habitantes e seguir em frente.
Algumas regiões podiam cair, mas era uma nação incomensuravelmente vasta,
capaz de resistir apenas pela determinação e pelos números. Os coreanos
queriam que o Japão ganhasse a guerra? Claro que não, mas o que
aconteceria com eles se os inimigos do Japão vencessem? Será que os
coreanos conseguiriam se salvar? Não parecia provável. Então salve sua
própria pele: era nisso que os coreanos acreditavam intimamente. Salve sua
família. Encha sua barriga. Fique atento e seja cético em relação às pessoas
que estão no comando. Se os nacionalistas coreanos não conseguirem
recuperar seu país, deixe que seus filhos aprendam japonês e tente seguir
adiante. Adapte-se. Não era simples assim? Para cada patriota lutando por
uma Coreia livre, ou para cada coreano desgraçado lutando em nome do
Japão, havia dez mil compatriotas no país e em outros lugares que estavam
apenas tentando colocar um prato de comida na mesa. No fim das contas, o
estômago era seu imperador.” (LEE, 2018, p. 194-195, grifos nossos)
É inegável o fato de que a maior preocupação das camadas mais baixas da
sociedade não era a conquista pela independência coreana ou a liberdade do
domínio japonês, mas sim a luta pela sobrevivência. Com as guerras, tanto as
mundiais quanto as do continente asiático, a primeira preocupação do povo era
o bem estar da família e a última preocupação dos governantes era o povo.
Um dado importante é o fato de que a Segunda Guerra Mundial, a Segunda
Guerra Sino-Japonesa e a Ocupação Colonial Japonesa na Coreia terminaram
25
em 1945. Obviamente isso não é uma coincidência, o Japão sofreu com a alta
demanda de homens enviados para o auxílio no controle colonial, para a
Guerra Sino-Japonesa e para a Guerra Mundial. Logo, durante esse período,
as forças japonesas estavam se enfraquecendo cada vez mais e, como
consequência, os cofres também.
Portanto, após a rendição do imperador japonês Hirohito para as forças
aliadas, o Japão perde a sua influência e o seu poder. A Coreia pode enfim
começar a aspirar a sua tão sonhada independência. Assim, o governadorgeral japonês na Coreia, Endo Ryusaku (1886- 1963), entra em contato com
forças nacionalistas coreanas. Devemos lembrar que os movimentos
nacionalistas coreanos nunca pararam totalmente, mesmo com a forte
repressão japonesa.
A força do Japão durante esse período histórico denotava, para a sociedade
asiática da época, uma soberania desse povo. Assim, quando essa suposta
soberania cai por terra após as perdas durante as guerras mencionadas do
livro II de Pachinko, os japoneses expressam sua frustração nos imigrantes que
passam a ser ainda mais maltratados.
Portanto, podemos verificar que os episódios históricos que perpassaram a
sociedade coreana foram de fundamental importância para o seu hibridismo
cultural atual, influenciando em todos os aspectos sociais e culturais dessa
nação. E, infelizmente, comprometendo boa parte de sua cultura tradicional.
Referências
Gabrielly Fernanda Spizamilio Silva,
Mestranda em Estudos Literários pelo PPGL- UNESP.
Pesquisadora financiada pela CNPq.
Licenciada em letras com habilitação português-francês pela UNESP
(Universidade Estadual Paulista) "Júlio de Mesquita Filho". Câmpus de São
José do Rio Preto/SP (IBILCE-Instituto de Biociências, Letras e Ciências
Exatas).
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26
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TEIXEIRA, Francieli Alves. Coreia do Sul: a Criação do Hangul como Objeto
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Disponível em: http://dspace.unila.edu.br/123456789/6743. Acesso em: 18 jul.
2023.
27
A REI SEONDEOK: REPRESENTAÇÃO DA PRIMEIRA
RAINHA DE SILLA NO SAMGUK YUSA
Isabelly de Oliveira Ribeiro
Introdução
O Samguk Yusa [三國遺事 Lenda dos Três Reinos] é uma importante obra de
literatura budista coreana. Trata-se de uma coleção de lendas, anedotas e
histórias dos Três Reinos [57 AEC-668 EC]. O documento compila histórias
budistas e seculares dos reinos de Koguryo, Baekje, Silla e dinastias
posteriores como Silla Unifica e Goryeo. O reino de Silla destaca-se na obra
pelo protagonismo na unificação dos Estados coreanos. Na compilação da
narrativa foram utilizadas diversas fontes: tradições orais, registros dos Três
Reinos e documentos chineses são exemplos. O período de produção e
publicação do Samguk Yusa foi amplamente discutido até o século XX, quando
foi atribuído a Ilyon [1206-1289], mestre budista, a compilação do documento
durante a dinastia Goryeo [935-1392]. O Samguk Yusa consagra-se a partir da
sua datação como um dos registros escritos mais antigos da Península
Coreana.
A obra inicia como uma tabela das dinastias chinesas, seus governantes e o
período de reinado, correlacionando com os três reinos, Silla Unificada e os
Três Reinos Tardios [Silla, Goguryeo Tardio e Baekje Tardio]. A primeira seção
é composta por narrativas dos fundadores mitológicos dos reinos, como
também relatos acerca dos governos dos Reinos Tardios, o capítulo de mesmo
nome segue com a narração dos reis e rainhas de Silla Unificada até a criação
da dinastia Joseon. As seções três e quatro relatam a introdução e
desenvolvimento do budismo na península. Finalizando a obra, a seção cinco
traz um conjunto de histórias relacionadas às questões religiosas e morais.
Os registros sobre o período dos Três Reinos documentam a presença
feminina em diversos espaços, sobretudo no reino de Silla. A narrativa acerca o
reino de Silla no Samguk Yusa representa rainhas desde seu mito de fundação,
sendo o único dos três reinos coreanos com registros de governos femininos. A
primeira rainha a ascender ao trono na Península Coreana foi Seondeok, filha
do rei Jinpyeong, governou por dezesseis anos [632 EC a 647 EC],
permanecendo no trono até sua morte. A rainha Seondeok é descrita no
Samguk Yusa como uma governante inteligente e virtuosa, destacando-se
principalmente por sua sabedoria.
28
Foram atribuídas à Seondeok três profecias, que se cumprindo a colocaram
como detentora de uma sabedoria divina [Hahn, 2017]. O governo de
Seondeok é um caso específico no reino de Silla, tendo em vista que após a
sua ascensão apenas duas governantes são nomeadas Yeowang [여 왕],
termo que pode ser traduzido como “rei feminino” e que é específico para uma
rainha reinante. A partir disso, podemos pensar por que somente em Silla
encontramos registro de rainhas e que fatores possibilitaram seu poder.
O Samguk Yusa retrata as monarcas de Silla a partir dos relatos de governo de
seus maridos e filhos, salvo as narrativas específicas de rainhas assuntas ao
trono como governantes. As referências às rainhas de Silla no Samguk Yusa
abordam, sobretudo, questões de linhagem, ligação com o sobrenatural,
virtudes e defeitos.
Contexto de compilação do Samguk Yusa
A construção do Samguk Yusa ocorreu a partir da reunião de documentos
escritos e tradições orais sobre o período dos Três Reinos, compreendido
como Antiguidade coreana. O Samguk Yusa foi compilado no contexto das
investidas mongóis sobre Goryeo, ocasião em que foram queimados
importantes registros históricos da antiguidade coreana, como templos,
pagodes e documentos oficiais. Considerando o contexto de produção, é
possível estabelecer uma ligação entre a estrutura do documento e a
recuperação da antiguidade e suas tradições. O título do documento destaca
seu objetivo de narrar as maravilhas da Antiguidade Coreana, tendo em vista
que a palavra Yusa remete à ideia de lenda.
A autoria do Samguk Yusa é atribuída ao monge budista Ilyon e seu discípulo
Mugeuk [1250-1322]. Ilyon é considerado principal compilador da obra baseado
no cabeçalho da quinta seção do Samguk Yusa. A periodização da compilação
e publicação do documento é debatida, sendo tradicionalmente atribuída à
dinastia Goryeo, no século XIII, a compilação e à dinastia Joseon [1392-1897],
no século XVI, a publicação da obra. Esta edição Imshin, considerada a mais
antiga e completa, foi escrita em suporte de madeira a partir da técnica de
xilogravura, utilizando o hanja [漢字/한자], escrita sino-coreana baseada nos
caracteres chineses. O Samguk Yusa é organizado a partir da estrutura
proposta pela edição de Choe Nam Son [1927] composta por dois livros, cinco
volumes e nove capítulos:
29
Fonte: Elaboração própria
O Samguk Yusa foi escrito no final do século XIII, durante a dinastia Goryeo,
sendo necessário situar o contexto político e cultural do período de produção. A
política neste período é marcada por conflitos internos entre a aristocracia
letrada e militar, bem como pelas sucessivas invasões mongóis. Além disso,
Goryeo passou por uma grande mudança cultural, sobretudo no que diz
respeito ao budismo e suas vertentes Gyeo e Seon. A sociedade de Goryeo foi
dividida em três grandes grupos, a aristocracia, os plebeus, normalmente
pequenos fazendeiros e os escravizados, podendo pertencer a instituições
públicas ou a elite.
A primeira invasão mongol ocorreu em 1231, como retaliação a interrupção
dos pagamentos de tributos e assassinatos dos enviados mongóis. A retida dos
mongóis de Goryeo aconteceu em 1232, com a aceitação estatal da posição de
tributário e a presença de representantes mongóis para supervisionar a coleta
de tributos. Após a primeira invasão, o governo militar ordenou o recuo da
capital de Gaesong para Ilha de Ganghwa, declarando a partir dessa mudança
resistência total às investidas mongóis.
A mudança mostrou-se eficaz frente as invasões, tendo em vista que a
aristocracia militar resistiu por quatro décadas, apesar do abandono do campo.
O resultado da incapacidade de Goryeo em proteger o campo foi devastador,
com o saque e destruição de muitos locais e obras históricas de Goryeo e dos
reinos anteriores. No decorrer de 1233 a 1241 foram promovidas novas
investidas a Goryeo seguidas por uma trégua de seis anos, apesar disso o
reino continuou a recusa a enviar tributos, como retaliação as invasões
voltaram a ocorrer entre 1247-1248. As invasões mais destrutivas ocorreram a
partir de 1254, com grupos de guerreiros enviados para devastar o campo com
objetivo de cortar os suprimentos da corte. Em 1258, um novo governo foi
30
estabelecido, negociando o fim das invasões e chegando a um acordo da retida
imediata das forças mongóis em troca da lealdade política e militar. Assim, em
1270 o poder do rei foi restaurado com a assistência mongol e restabelecida a
capital, marcando o início do domínio mongol sob Goryeo.
A conjuntura na qual o Samguk Yusa foi produzido possibilita a interpretação
que motivação de preservar tradições da antiguidade coreana estava ligada a
destruição de registros históricos pelas investidas mongóis. A partir do contexto
de produção da obra é possível compreender o objetivo expresso pelo autor
de: “descrever todas as maravilhas que acompanharam o nascimento dos
fundadores de Estados.” [Samguk Yusa, 2016, p. 17]
Lideranças femininas e tradições xamânicas do reino de Silla
O relato acerca da primeira governante de Silla explicita em seu título, “As
Três Profecias da Rainha Seondeok”, o cerne da narrativa. Dessa forma, o
autor apresenta a Seondeok a partir de uma perspectiva sobrenatural, em que
a rainha possui atributos ideais a um governante, além de uma ligação com o
divino. As circunstâncias conhecidas pela historiografia sobre Silla destacam a
ligação desse reino com práticas e tradições xamânicas, que possuíam, em
geral, lideranças femininas [2017].
No presente estudo compreendo xamanismo enquanto:
“[...] fenômeno religioso tradicional intimamente ligado à natureza e ao mundo
ao redor, no qual um praticante dotado da habilidade especial de entrar em um
estado de transe-possessão pode se comunicar com seres sobrenaturais. Este
poder transcendental permite ao praticante, o xamã, satisfazer os anseios
humanos por explicação, compreensão e profecia” [Kim apud Nelson, 2016. p.
1. Tradução nossa]
A ligação entre o feminino e os costumes xamânicos em Silla foi um grande
aliado à ascensão de Seondeok ao trono, tendo em vista a familiaridade da
sociedade de Silla com lideranças femininas. Último dos três reinos a adotar o
budismo como religião estatal, Silla o aderiu principalmente por sua capacidade
de absorver as crenças xamanísticas nativas. Neste sentido, Sarah Nelson
[2016] apresenta uma relação entre as rainhas de Silla e as tradições
xamânicas locais, evidenciando o uso de símbolos religiosos na legitimação do
poder real.
A sociedade de Silla organizava-se em torno do sistema de classes
determinado pela linguagem sanguínea, conhecido como Golpum
(classificação de ossos), no qual o songgol (osso sagrado) era o nível mais
elevada e única elegível ao trono. A classificação da aristocracia e do povo
dependia da aproximação hereditária com a família real, essas categorias
sociais regiam vestimentas, moradias, direitos matrimoniais e cargos na corte
[2017. p. 11]. Hann [2017] compreende o sistema Golpum como parte
essencial na ascensão de Seondeok, considerando a hierarquia aristocrática
do reino um fator mais relevante na sucessão que o gênero do governante.
31
As Três Profecias da Rainha Seondeok
A primeira referência ao título rei feminino no Samguk Yusa ocorreu no relato
do governo da rainha Seondeok, da mesma forma foi utilizado em menção das
rainhas Jindeok e Jinseong. A nomenclatura usada no Samguk Yusa em
referência a governantes de Silla é modificada conforme o período, sendo
gradualmente introduzidos títulos semelhantes aos chineses. Os termos
utilizados ao fazer referência às rainhas de Silla Antiga são variados, podendo
referir-se a diferentes categorias de rainhas. Nesse contexto, pode-se destacar
o uso do título yeowang [여 왕], derivado do termo do hanja 女王, exclusivo
para uma mulher governante.
A cunhagem do termo yeowang [rei feminino] para referenciar a rainha
Seondeok possibilita a reflexão acerca do apagamento de governantes
femininas no Samguk Yusa. Nesse sentido, Nelson [2013] compreende que
rainhas podem ter ascendido ao trono antes de Seondeok, apesar na ausência
destas na documentação.
Foram atribuídas à rainha três profecias, que se cumprindo colocaram
Seondeok como detentora de uma sabedoria divina. A primeira das profecias
ocorreu quando Seondeok afirmou que as peônias enviadas pelo imperador
Tai-tsung da dinastia Tang não teriam perfume. Ao ser questionada a rainha
expôs sua interpretação:
“Durante a sua vida, os cortesãos perguntaram à Rainha como é que ela tinha
sido capaz de fazer estas profecias. Ela respondeu: ‘No quadro havia flores,
mas não borboletas, o que indica que as peônias não têm cheiro’. Este era o
Imperador de Tang zombando da minha falta de parceiro” [Samguk Yusa,
2016, p. 51]
Na narrativa de Seondeok no Samguk Yusa não há menções a um marido,
apesar o registro do consorte da rainha em outras obras como o Samguk Sagi.
Podemos notar um destaque a figura da rainha, tendo em vista a menção de
muitas rainhas consorte nas narrativas de reis.
Seondeok profetiza novamente em resposta a angústia do povo, que a
questiona sobre a grande número de rãs coaxando durante o inverno, época
que normalmente hibernam:
“O povo e os cortesãos espantaram-se, e perguntaram a Rainha qual seria seu
significado. Ela ordenou imediatamente a dois generais, Alch'on e P'ilt'an, para
liderarem duas mil tropas de elite para o Vale da Raiz da Mulher na periferia
oeste de Kyongju para procurar e matar as tropas inimigas escondidas na
floresta. [...] Os soldados de Silla cercaram e mataram a todos.” [Samguk Yusa,
2016, p. 52]
Ilyon descreveu a rainha como uma monarca virtuosa, que se importa com o
povo e suas aflições. Além disso, foi demostrada a autoridade de Seondeok
32
sobre os militares, considerando que a compilação do documento ocorreu no
período de governos militares.
O final do relato de Seondeok é dedicado memória de seus feitos após sua
morte, destacando seus atributos ligados ao divino:
“Cerca de 10 anos depois, o Rei Munho fundou o Templo Sacheonwangsa sob
o túmulo do rei. Como as escrituras budistas dizem que existe um Céu Tori
acima dos Quatro Reis Celestiais, só então foi possível compreender a
natureza divina e a sacralidade do Grande Rei” [Samguk Yusa, 2016, p. 52]
Considerações finais
O contexto de produção do Samguk Yusa é essencial para interpretação das
narrativas inseridas no documento. Assim podemos compreender que as
investidas mongóis a Goryeo influenciam na compilação do documento, tendo
em vista que a escolha de estruturas narrativas que visam conservar o passado
são não neutras. Desse modo, entendo que o relato de Seondeok está inserido
na obra com propósitos narrativos específicos.
A ausência de referências ao consorte de Seondeok é um dos elementos de
destaque no seu relato, considerando a presença de rainhas consorte nas
narrativas de reis. Assim, o relato é sustentado pela representação dos feitos e
virtudes da rainha. A cunhagem de um termo específico para governantes
femininas evidencia uma diferença nas atribuições associada a rainha yeowang
[rei feminina], além de salientar a legitimidade do seu governo.
A representação da primeira governante de Silla como profeta pode ser
analisada sob a perspectiva das tradições xamânicas do reino, marcadas por
lideranças femininas, além da relação das profecias com esta prática religiosa.
Neste sentido, o poder de Seondeok é representado a partir da sua posição
real e sua ligação com o divino. Assim, a primeira rainha é descrita no Samguk
Yusa por sua relação com o poder oficial, através da sua linguagem, e
simbólico, por meio de suas profecias. Desse modo, o autor relaciona a
narrativa de Seondeok com valorização do passado coreano de maneira geral
através de suas profecias, construindo a imagem de uma governante
divinamente sábia.
Referências
Isabelly de Oliveira Ribeiro é graduanda do curso de bacharelado em História
da Universidade Federal de Pernambuco [UFPE] e membro do Laboratório de
Estudos de Outros Medievos [LEOM]. Orientada pelo prof. Dr. Bruno Uchoa
Borgongino. [isabelly.oribeiro@ufpe.br]
Fonte
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34
A RESISTÊNCIA CULTURAL COREANA ATRAVÉS DA ALIMENTAÇÃO
DURANTE A DOMINAÇÃO JAPONESA (1910-1945)
Maria Aparecida Stelzer Lozório
Entre 1910 e 1945, a Coreia esteve sob domínio japonês, um período marcado
pela tentativa de erradicação sistemática da identidade cultural coreana. Essa
ocupação, mais do que política ou econômica, visava desmantelar os pilares
culturais da Coreia e substituí-los por uma identidade nipônica. A imposição do
idioma japonês nas escolas, a proibição de roupas tradicionais, a
obrigatoriedade de adotar nomes japoneses para os coreanos que fossem
trabalhar no Japão e o confisco do arroz para exportação exemplificam a
profundidade dessa repressão e tentativa de niponização.
Mas a culinária coreana resistiu como um espaço de preservação cultural e
identidade. Diante de um cenário de total repressão a elementos da cultura
coreana, o interior das casas e o ambiente familiar se revelaram como locais de
resistência cultual, já que dentro das casas a língua coreana continuava a ser
utilizada, e nas cozinhas as práticas ancestrais continuaram a ser transmitidas
para as novas gerações.
Mesmo com toda dificuldade em conseguir os alimentos básicos, durante a
ocupação japonesa, e a alimentação coreana afetada por políticas de
exploração e escassez de alimentos, a culinária tradicional coreana continuou a
ser produzida, como o kimchi.
Este artigo investiga como a alimentação funcionou como um bastião de
resistência cultural durante a ocupação japonesa. Como metodologia elegemos
a Análise de Conteúdo elaborada por Laurence Bardin (2016). A análise
destaca o papel central da alimentação na cultura coreana, e demonstra como
a cozinha das casas coreanas se tornou um espaço subversivo e de resistência
silenciosa.
A cozinha como local de resistência à dominação japonesa
A Coreia do Sul como conhecemos hoje, territorialmente, traz na sua história
uma formação complexa que se entrelaça a história de diversos países da
Ásia, principalmente da China, da Mongólia e do Japão. Segundo Im Yun Jung,
professora da Universidade Estadual de São Paulo (USP), no território
35
coreano, por volta de 6.000 anos AEC, já há registro de potes de barro,
artefatos de pedra e osso para a obtenção e o manuseio de alimentos, o que já
indicava um certo “tratamento da comida”.
Ainda segundo Im o registro histórico em texto, mais antigo que registra o povo
coreano, se encontra no Records of the Three Kingdons, texto em chinês
datando do século III, que cobre a história entre os anos 184 e 220, relatando o
final da Dinastia Han e o período dos três reinos: Wei, Shu e Wu. O texto
chinês é dividido em três livro, cada um trazendo a história de cada um dos
referidos reinos.
No chamado Book de Wei (2004), que relata a história do reino de Wei, há uma
menção aos povos do leste, que gostavam de comer, beber, cantar e dançar,
esses povos atualmente são chamados de coreanos. Para Im a comida sempre
esteve no dia a dia dos coreanos como parte integrante da identidade desse
povo.
A culinária coreana evoluiu ao longo de séculos, sendo moldada por fatores
geográficos, culturais, políticos e econômicos. A Coreia, localizada entre a
China e o Japão, foi influenciada por esses dois países, além de desenvolver
suas próprias tradições culinárias. A china teve grande influência na culinária
coreana, quer seja pela proximidade geográfica e cultural, como também por
relações comerciais e políticas tecidas ao longo dos séculos. Para Chon (2008)
a China trouxe os métodos de cozimento, técnicas de refogar, cozinhar no
vapor, fritar, além do molho de soja, o chá e sua etiqueta, introduzidos pelo
confucionismo.
O Budismo para Chon (2008) a culinária coreana é profundamente enraizada
em filosofias como o budismo e o confucionismo, que moldaram seus hábitos
alimentares ao longo dos séculos. O budismo, introduzido na Coreia durante o
período dos Três Reinos (57 a.C – 668 d.C.), influenciou a culinária ao enfatizar
práticas vegetarianas e a simplicidade nos pratos e evitando o consumo de
carne. Muitos pratos tradicionais coreanos, como sopas de vegetais e
acompanhamentos fermentados, refletem essa herança.
O confucionismo, por sua vez, consolidou a comida como um elemento central
nas interações sociais e nos rituais familiares. Durante a Dinastia Joseon
(1392-1897), as refeições eram cuidadosamente preparadas e servidas como
parte de cerimônias que honravam os ancestrais, refletindo valores como o
respeito e a harmonia. Esse legado filosófico reforçou a importância simbólica
da cozinha, tornando-a um espaço sagrado de preservação cultural.
Ainda segundo Chon (2008) durante a dominação japonesa, a alimentação
tradicional coreana foi altamente afetada por imposições e proibições
japonesas. Havia uma escassez de alimentos, principalmente de arroz, que era
a base da alimentação coreana. Os recursos agrícolas da Coreia foram alvo de
exploração intensiva da política econômica colonial que impactou diretamente a
culinária.
36
A anexação da Coreia pelo Japão foi formalizada pelo Tratado de 1910, que
marcou o início de um regime colonial autoritário, transferindo a soberania
coreana para o imperador japonês, e durando até 1945, com a derrota do
Japão na Segunda Guerra Mundial. O objetivo japonês era integrar a península
coreana à esfera cultural e econômica do Japão, apagando qualquer traço de
autonomia e identidade cultural. Neste período há diversas proibições da
cultura coreana e a imposição de elementos da cultura japonesa.
Medidas repressivas foram impostas para concretizar essa agenda. Em 1911, o
Decreto Nº 41 regulamentou o sistema educacional, exigindo o uso exclusivo
do japonês nas escolas e marginalizando o hangul, o alfabeto coreano. Roupas
tradicionais, como o hanbok, foram desencorajadas, enquanto o uso de nomes
japoneses tornou-se obrigatório por meio do Decreto de Mudança de Nome
(1939). Na relação de colonização e dominação Japão -Coreia os discursos
hegemônicos justificavam a inferioridade corana frente ao Japão. Essas ações
tinham o objetivo de desmantelar os símbolos visíveis da identidade coreana,
mas encontraram resistência nos espaços domésticos, especialmente na
alimentação.
A política colonial japonesa na Coreia foi além da exploração econômica; ela
buscava desarticular os alicerces da identidade coreana. O sistema
educacional foi reconfigurado para excluir o coreano como idioma de instrução,
substituído pelo japonês, enquanto os rituais e tradições eram proibidos por
decretos rigorosos. As vestimentas tradicionais, como o hanbok também foram
suprimidas.
Elias e Scotson (2000) abordam o conceito de identidade dentro do contexto
das relações de poder e dinâmica social entre grupos. Caracterizam a
identidade como sendo formada e reforçada pelas relações que um grupo
estabelece com outros grupos, sendo resultado de um processo contínuo de
diferenciação e exclusão. Assim, a identidade individual e coletiva é moldada
pelas estruturas de poder, pela aceitação ou rejeição social, e pelas relações
de interdependência entre os grupos.
Na Coreia dominada, essa narrativa se manifestou em discursos que
retratavam a cultura coreana como inferior, reforçando a necessidade de
assimilação. Durante a ocupação japonesa, os coreanos se tornaram os
"outsiders" enquanto os japoneses assumiram a posição dos "estabelecidos".
O Japão, como potência ocupante, tentou impor sua cultura, língua e valores
aos coreanos, desvalorizando e reprimindo elementos culturais coreanos. Essa
dominação tinha como objetivo não só o controle político e econômico, mas
também a assimilação cultural, de modo que os coreanos perdessem sua
identidade própria e se tornassem submissos ao domínio japonês.
Nesse sentido, a resistência coreana, que incluiu a preservação da língua, dos
costumes e da culinária (muitas vezes de forma privada e oculta), foi uma
forma de manter e reforçar sua identidade contra a tentativa de assimilação dos
"estabelecidos".
37
Michel de Certeau (1996), destaca que práticas do dia a dia, como cozinhar,
podem se tornar atos subversivos em contextos de repressão, pois permite aos
indivíduos a não cumprirem imposições externas. Na Coreia, as cozinhas
domésticas foram transformadas em espaços de resistência, onde as
mulheres, principais responsáveis pelo preparo dos alimentos, preservavam
receitas e técnicas transmitidas por gerações.
A cozinha, enquanto espaço do cotidiano, é um lugar onde se reproduzem
tradições, valores e costumes que fazem parte da identidade cultural. O ato de
cozinhar, com suas técnicas, receitas e ingredientes específicos, é uma prática
que conecta o presente ao passado e reforça as tradições de um grupo.
Mesmo em períodos de repressão ou dominação cultural, como foi o caso dos
coreanos durante a ocupação japonesa, a cozinha permanece um espaço
íntimo e privado onde as práticas culturais podem ser preservadas e
transmitidas entre gerações.
No contexto coreano, apesar das tentativas do Japão de suprimir a identidade
cultural coreana, muitas tradições culinárias foram mantidas e transmitidas
dentro dos lares. A cozinha se tornou um espaço de resistência, onde a
identidade cultural coreana pôde sobreviver e se fortalecer. Isso se alinha às
ideias de Certeau (1996), que enfatiza a importância das práticas cotidianas
como formas de resistência e invenção cultural, revelando como a cultura é
mantida viva através das pequenas ações e do dia a dia das pessoas.
O cozinhar transforma ingredientes brutos em pratos elaborados, e essa
transformação é um ato que conecta o passado (receitas transmitidas), o
presente (a preparação em si) e o futuro (a refeição compartilhada). Assim, a
prática de cozinhar no interior das casas contribui significativamente para a
manutenção da identidade cultural de um povo, funcionando como um espaço
de resistência e preservação em meio às transformações e pressões externas.
Pierre Bourdieu (1989), argumenta que práticas culturais carregam significados
profundos, funcionando como marcadores de identidade e arenas de poder e
resistência, como o preparo de alimentos, não são neutras, mas carregadas de
significados sociais e políticos. No contexto coreano, o ato de preparar pratos
tradicionais, mesmo com ingredientes escassos, reafirmava a cultura nacional
em oposição à imposição japonesa.
Massimo Montanari, em Comida como Cultura (2008), argumenta que a comida
não é apenas um meio de subsistência, mas também uma forma de expressão
cultural, transcendendo a função biológica. Na Coreia, a continuidade dessas
tradições alimentares durante a ocupação japonesa demonstrou a resiliência
de uma cultura que, mesmo sob ataque, permaneceu fiel às suas raízes.
Um exemplo emblemático dessa resistência é o kimchi, um prato icônico da
Coreia. Feito a partir de vegetais fermentados, ele é simultaneamente um
alimento básico e uma expressão cultural. Durante a ocupação, o kimchi
simbolizou a resiliência coreana, pois sua preparação exigia técnicas
38
específicas e um senso de comunidade. Famílias e vizinhos se reuniam para
preparar grandes quantidades de kimchi, fortalecendo os laços sociais e
preservando tradições em um período de adversidade.
O kimchi não só oferece uma solução nutritiva em tempos de privação, mas
também preserva técnicas culinárias ancestrais. O preparo do kimchi envolve
práticas comunitárias, com famílias e vizinhos reunidos para fazer grandes
quantidades que durariam meses. Esse ato não era apenas uma necessidade
alimentar, mas também um ritual que fortalecia os laços comunitários e a
identidade cultural
O Eumsikdimibang: primeiro livro de receitas escrito em coreano
O primeiro livro de receitas escrito em hangul, a língua coreana, escrito por
volta de 1677, o Eumsikodimibang, por Jang Gye-hyang, filha de um nobre, é
considerado também o primeiro livro de receitas escrito por uma mulher na
Ásia. Ao nos debruçarmos sobre essa fonte, poderemos analisar receitas
antigas que quase se perderam. Entretanto, este livro também denota sua
importância não apenas pelo fato que trazer 146 receitas, entre preparação de
alimentos e bebidas alcoólicas, mas também traz formas de armazenamento
de frutas, legumes e carne seca.
O livro traz receitas de como cozinhar legumes que estão fora de época, o que
tem levado a pesquisadores como o professor Yi Seong-Wu (2024),
especialista em história da alimentação coreana, a levantar a hipótese de que
havia estufas para plantio de legumes. O livro faz menção a utensílios e louças
usadas na cozinha da época.
O Eumsikdimibang é uma obra pioneira na história da culinária coreana. Este
livro documenta receitas e técnicas culinárias coletadas em aldeias rurais,
destacando a diversidade e a riqueza da alimentação coreana. As receitas
coletadas trazem pratos do dia a dia, preparados nas pequenas cozinhas, com
práticas que passavam de geração a geração, mantendo essa identidade da
cozinha coreana.
A análise do Eumsikodimibang e suas receitas nos apontam para uma arte da
cozinha já bem demarcada em Joseon – nome do território coreano anterior a
dominação japonesa – o que pode ter favorecido a permanência e resistência
da alimentação como fator e identidade coreana frente as determinações do
império japonês.
A transmissão intergeracional da cultura alimentar
A escassez de arroz durante a ocupação japonesa levou as famílias coreanas
a buscarem alternativas, como cevada, batata-doce e milho. Essa adaptação
forçada ilustra o que Michel de Certeau (1996) chama de "bricolagem cultural"
– a habilidade de reinventar tradições com os recursos disponíveis subvertendo
assim estruturas opressoras. A cozinha tornou-se um espaço onde a
39
criatividade e a memória coletiva mantiveram viva a cultura coreana, mesmo
sob condições adversas.
Apesar das mudanças nos ingredientes, a estrutura das refeições coreanas
permaneceu intacta. Pratos como sopas, guisados e acompanhamentos
fermentados continuaram a ser preparados, preservando os sabores e os
significados culturais associados à culinária coreana. Essa resiliência
demonstra como a alimentação pode ser um meio de resistência e um
marcador de identidade em tempos de repressão.
Pierre Bourdieu (1989) argumenta que práticas culturais como a alimentação
carregam um "habitus" – disposições internalizadas que moldam o
comportamento. No contexto coreano, o habitus alimentar foi fundamental para
resistir às tentativas de assimilação japonesa, reforçando a identidade nacional
mesmo em circunstâncias adversas.
Além de preservar a identidade cultural no presente, a culinária coreana
também funcionou como um meio de transmissão intergeracional. As receitas e
técnicas culinárias eram ensinadas às crianças, garantindo que a próxima
geração permanecesse conectada às suas raízes culturais.
Essa transmissão intergeracional é particularmente significativa no contexto da
ocupação japonesa, pois os jovens eram expostos a uma educação que
buscava aliená-los de sua cultura de origem. Dentro das cozinhas, no entanto,
aprendiam valores e tradições que reforçavam sua identidade coreana.
As mulheres desempenharam um papel central na preservação da cultura
alimentar coreana. Como guardiãs das receitas e práticas culinárias, foram elas
que, dentro de suas cozinhas, garantiram a continuidade das tradições.
Montanari (2008) destaca que as práticas alimentares são, muitas vezes,
transmitidas oralmente, perpetuando-se como uma memória viva. No contexto
coreano, as mulheres representaram uma resistência ativa, utilizando a cozinha
como um espaço de reafirmação cultural.
Certeau (1996) enfatiza o papel da cozinha como um espaço de trabalho
doméstico que envolve a organização do tempo e dos recursos disponíveis.
Esse espaço, apesar de aparentemente banal, revela relações de poder,
gênero e cultura. Tradicionalmente associado ao feminino, o trabalho na
cozinha também representa um campo de resistência contra a
homogeneização da cultura e a padronização alimentar, mantendo vivas as
particularidades culturais através de receitas e práticas locais.
Considerações Finais
A ocupação japonesa na Coreia demonstrou uma tentativa deliberada de
apagar a identidade cultural do país, mas encontrou resistência em espaços
inesperados, como a cozinha doméstica. A alimentação, carregada de
significados simbólicos e sociais, emergiu como um dos principais fatores de
40
preservação cultural durante esse período, desempenhou um papel crucial na
resistência cultural coreana. Apesar das políticas de assimilação e repressão, a
cozinha tornou-se um espaço de preservação da identidade, onde práticas
ancestrais, influenciadas por valores budistas e confucianos, foram mantidas.
Diante de um cenário de total repressão a elementos da cultura coreana, o
interior das casas e o ambiente familiar se revelaram como locais de
resistência cultual, já que dentro de casa a língua coreana continuava a ser
utilizada e mesmo com toda dificuldade em conseguir os alimentos básicos,
pois durante a ocupação japonesa, a alimentação coreana foi profundamente
afetada por políticas de exploração e escassez de alimentos.
Apesar da escassez de alimentos durante a dominação coreana pelo Japão e
mesmo com toda a censura, proibição e vigilância japonesa no cumprimento
dos seus decretos que tinham como objetivo o isolamento e o esquecimento da
cultura do povo, ainda assim a alimentação/culinária foi o fator principal que
manteve a identidade cultural coreana. Pois a cozinhar sempre foi elemento
familiar, que compôs ao longo dos séculos o cotidiano de cada família, desta
forma dentro de cada casa, na intimidade de cada lar os elementos identitários
continuaram a ser exércitos e passados de geração para geração.
Apesar dessas dificuldades, os coreanos preservaram muitos aspectos de sua
cultura alimentar tradicional, usando a culinária como uma forma de resistência
à dominação estrangeira. A comida continuou a ser um símbolo poderoso da
identidade nacional coreana, mesmo em tempos de opressão.
Em tempos de globalização, a cozinha coreana continua a ser uma expressão
vibrante de sua cultura, um testemunho da resiliência de um povo que, mesmo
diante de adversidades extremas, manteve vivas suas tradições e valores. A
narrativa histórica da ocupação japonesa é, portanto, também a narrativa da
força cultural da alimentação como símbolo da identidade coreana.
Referências
Maria Aparecida Stelzer Lozório - Mestre em História - PPGHIS Ufes
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42
O ACORDO DAS MULHERES DE CONFORTO DE 2015
ENTRE COREIA DO SUL E JAPÃO: UMA TRAJETÓRIA
DE INSUFICIÊNCIAS E RUPTURAS
Maurício Luiz Borges Ramos Dias
INTRODUÇÃO
Ao longo da colonização da Coreia pelo Império do Japão, entre 1910 e 1945,
em diferentes conjunturas históricas deste período, a população sofreu com
tentativas de assimilação cultural, cerceamento da liberdade de imprensa,
alastramento da fome, obrigatoriedade de utilização de nomes japoneses,
trabalhos forçados em fábricas, bem como outras atividades de dominação e
violência (Dias, 2022; Cumings, 2005; Caprio, 2009). Dentre elas, destaca-se a
aplicação do abominável “sistema de conforto”, entre 1932 a 1945, no qual, nos
diversos territórios asiáticos ocupados, o império japonês promoveu a
escravização sexual militar de cerca de 200.000 jovens e mulheres, sendo
estimado que 80% eram de origem coreana (Norma, 2016; Min, 2003).
Comumente, as vítimas desse sistema brutal são chamadas, eufemisticamente,
de “mulheres de conforto”. No entanto, neste trabalho, em respeito à forma
como a população sul-coreana, carinhosa e respeitosamente, as denomina, me
referenciarei a esse termo como Halmoni – “Avó”, em coreano – no singular e
Halmonis quando no plural.
Apesar dessa violência ter ocorrido durante a colonização, somente em 1991,
em meio à democratização da Coreia do Sul e de maiores debates sobre a
escravização sexual militar, a Halmoni Kim Hak-sun foi a responsável por
quebrar um ciclo de silenciamento estrutural, fortalecido tanto pela vergonha e
estigmatização das mulheres vitimadas quanto pela memória traumática, ao
expor nacionalmente na televisão as suas vivências dolorosas perpetradas
pelos soldados japoneses. A partir de Kim Hak-sun, outras Halmonis,
doméstica e internacionalmente, relataram sobre suas experiências,
fortalecendo o chamado por justiça de frente ao Japão. Além disso, na Coreia
do Sul, em 1992, iniciaram-se as Demonstrações de Quarta-feira, em que, toda
semana, manifestações em frente à Embaixada do Japão em Seul são
realizadas até hoje, exigindo, por exemplo, pedidos de desculpas, reparações
às mulheres vitimadas, o reconhecimento da escravização sexual militar como
um crime de guerra e a memorialização dos atos perpetrados para que nunca
mais se repitam na história.
43
Em um tema riquíssimo em detalhes e que permeia a contemporaneidade, é
interessante refletirmos pontos, tais como, de qual forma corpos idosos
possuem agência política e podem liderar processos de reparação? Como a
colonização japonesa afeta a relação do Japão com a Coreia do Sul e também
com outras nações? De que maneira é possível estabelecer uma reconciliação
bilateral sólida quando parte das vítimas, com o passar do tempo, não se
encontram mais em vida? Como a diplomacia pode dialogar com as
bibliografias sobre política das emoções em temáticas permeadas pelo
ressentimento e luto? Enfim, pontos para debate e futuras pesquisas não
faltam. Para esse curto trabalho, buscarei responder o seguinte
questionamento: como o chamado Acordo das Mulheres de Conforto de 2015
foi alcançado e quais são as suas limitações na solução do caso das
Halmonis?
A INTENSIFICAÇÃO DO DEBATE SOBRE AS HALMONIS A PARTIR DE
2011
Ainda que essa questão continuasse permeando a relação bilateral nipo-sulcoreana em diferentes intensidades, somente em 2011 que se fortaleceu uma
nova guinada por exigências por reparações às senhoras vitimadas pela
escravização sexual militar perpetrada pelo Império do Japão. Afinal, no dia 30
de agosto daquele ano, a Corte Constitucional da Coreia do Sul determinou: 1)
a inadequação da sessão 1 do artigo 2º do Acordo sobre a resolução de
problemas relativos à propriedade e reivindicações e em cooperação
econômica, que sem um debate sobre o passado colonial, determinou que os
nacionais de ambas as partes tinham suas reivindicações solucionadas
completamente no momento de sua assinatura em 1965; 2) e que a inação do
governo sul-coreano em requerer, com sucesso, compensações japonesas aos
danos causados às Halmonis poderia se configurar como um ato
inconstitucional (Coreia do Sul, 2011).
Dentre os desdobramentos dessa decisão, ressaltam-se os protestos
realizados na milésima semana da Demonstração de Quarta-feira, no dia 14 de
dezembro de 2011, no qual uma estátua de bronze imponente, representando
uma menina vitimada pela escravização sexual militar nipônica, foi posicionada
em frente à embaixada do Japão em Seul. Como Dwyer e Alderman (2008)
ressaltam, em uma intersecção mutuamente constitutiva entre memória e
paisagem, o passado pode ser materializado em determinados espaços e
implicar no direcionamento de construção de futuros alternativos, mediante
memoriais, performances e o ato de dar voz a quem ou a assuntos que foram
silenciados no passado.
Nessa perspectiva, essa estátua, em sua simbologia e materialidade itinerante
entre o passado, o presente e o futuro, substancializou, diariamente, um olhar
reivindicador ao Japão (Ching, 2019) e convidou o público geral a relembrar e,
ao mesmo tempo, a jamais esquecer as violências perpetradas a essas garotas
e mulheres, bem como trouxe à tona o papel da sociedade em refletir sobre
44
formas de continuar os legados das Halmonis para as próximas gerações (Son,
2018).
Já no âmbito estatal, o presidente em exercício, Lee Myung-bak (2008-2013),
abarcou o debate sobre o passado colonial em sua política externa, inclusive
como maneira de instrumentalizar o nacionalismo sul-coreano a favor de sua
gestão que sofreu instabilidades diante de crises, tais como, por exemplo,
casos de corrupção. Dessa forma, em sua investida, em 2012, Lee visitou as
ilhas Dokdo/Takeshima, cuja soberanias são contestadas bilateralmente, e
declarou que o imperador japonês não seria bem-vindo à Coreia do Sul
enquanto não se desculpasse às Halmonis (Tatsumi, 2020), alimentando
ressentimentos e distanciamentos bilaterais, como foi possível verificar na
impossibilidade de avanços nas negociações do Acordo Geral de Segurança
de Informações Militares com o Japão.
O CAMINHO PARA O ACORDO DAS MULHERES DE CONFORTO
Manter um olhar nas relações exteriores entre Seul e Tóquio se torna
necessário, pois, anos mais tarde, em 2015, elas contribuíram para o falido
Acordo das Mulheres de Conforto. Nesse sentido, continuando a discussão,
destaca-se que o impasse bilateral com raízes coloniais também foi aguçado
pela presidente Park Geun-hye (2013-2017), desde o período das eleições
presidenciais até parte de sua gestão na Coreia do Sul. Afinal, a mídia sulcoreana considerava o governo do primeiro-ministro japonês Shinzō Abe
(2007-2008/2012-2020) como ultraconservador (Nishino, 2014) e Park
acompanhava as suas medidas políticas com atenção, devido ao receio de
uma possível reencarnação do ultranacionalismo do Japão (Sohn, 2019), em
meio a um governo nipônico empenhado, inclusive, em impulsionar suas
capacidades militares (Dias; Carletti, 2020). Por intermédio das contribuições
acadêmicas da pesquisadora Minseon Ku (2016), compreende-se esse cenário
como o Japão evocando na identidade sul-coreana uma noção de insegurança
ontológica, na qual disputas contemporâneas permeadas pela colonização
japonesa e o período pré-colonial, por vezes, têm a capacidade de definir a
identidade nipônica como militarista, agressiva e, ou, imperialista.
Nesse encaminhamento, o posicionamento de Park Geun-hye foi de que a
identidade sul-coreana aplicada em sua política externa teria o anticolonialismo
frente ao Japão como um pilar, determinando que as relações bilaterais não
seriam desenvolvidas sem o reconhecimento japonês dos efeitos do passado
colonial (Snyder, 2016). De outro lado, Shinzō Abe trabalhou para tentar
renovar a identidade nacional do Japão em direção a uma suposta recuperação
da dignidade da história japonesa, que estaria manchada pelos
reconhecimentos prévios e julgamentos, tais como o Tribunal de Tóquio (19461948), relacionados ao passado imperialista do país (Shibata, 2018). Em um
movimento revisionista e, portanto, de redefinição da memória oficial da Terra
do Sol Nascente, entre 2013 e 2014, Abe e Suga Yoshihide, que se tornaria
primeiro-ministro em 2020, inclusive, justificaram a necessidade de estudos
serem levados a cabo para corroborar se, de fato, os testemunhos das ex-
45
mulheres de conforto eram verídicos, contestando, assim, a legitimidade da
Declaração Kōno de 1993, que reconheceu a participação militar no sistema de
escravização sexual militar e na qual o Estado japonês se desculpou às
mulheres vitimadas por suas ações.
Consequentemente, afastamentos entre Coreia do Sul e Japão foram
propiciados, sendo exemplificados pela falta de avanços significativos em
cooperações desde bilaterais a regionais e pela inexistência de encontros
oficiais entre Park e Abe até novembro de 2015. Essa conjuntura se
transformou mediante a atuação de Barack Obama (2008-2017), presidente
dos Estados Unidos, que, preocupado em como essa fricção interferiria em
seus interesses na Ásia e possibilitaria o fortalecimento chinês, pressionou os
seus dois aliados asiáticos a superarem suas controvérsias históricas.
A partir disso, no dia 28 de dezembro de 2015, Seul e Tóquio celebraram o
Acordo das Mulheres de Conforto, no qual: 1) Fumio Kishida, ministro das
Relações Exteriores na época, realizou um pedido de desculpas, em nome do
primeiro-ministro, direcionado às vítimas, levando em consideração suas
imensuráveis e incuráveis feridas psicológicas e físicas perpetradas pelo
Império do Japão; 2) mais uma vez, foi reconhecida a participação do exército
imperial nas atividades sexuais compulsórias; 3) relatou-se que o Estado
japonês financiaria a criação de uma fundação de amparo às vítimas na Coreia
do Sul; 4) ambas nações comprometeram-se a não se criticarem sobre essa
temática na comunidade internacional; 5) e, por fim, a irreversibilidade desse
acordo e o encerramento oficial da questão das mulheres de conforto (Japão,
2015).
Embora possa parecer uma conquista, o Acordo das Mulheres de Conforto é
altamente contestável e não foi bem recebido pelas Halmonis, ativistas e
parcela da população sul-coreana. A partir de Chun (2019) e de Dolan (2022),
pode-se problematizar essa resolução pelos seguintes motivos: 1) nenhuma
Halmoni foi contatada durante os processos de negociação, negando a essas
senhoras suas capacidades de autonomia e agência política; 2) o Estado
japonês não assumiu responsabilidades legais, tendo, até mesmo, reforçado
que o fundo para a construção da instituição de amparo, que se chamaria no
futuro Fundação de Reconciliação e Cura, não era uma compensação legal; 3)
a ausência de compromissos futuros que deveriam ser adotados pelo Japão,
tais como discutir o passado colonial em suas escolas; 4) e a percepção, diante
dessas debilidades apresentadas, de que a declaração foi apenas um
movimento pragmático de política internacional benéfico somente para os
Estados envolvidos. Ainda, a credibilidade do Acordo das Mulheres de
Conforto, sem uma abordagem orientada às senhoras vitimadas, torna-se
diminuta, perante sua tentativa de silenciamento de qualquer contestação
sobre suas decisões.
Como efeito imediato, a Demonstração de Quarta-feira, no dia 30 de dezembro
de 2015, foi maior que o usual. De acordo com Elizabeth Son (2018), com
cerca de 1000 manifestantes, esse protesto em frente à Embaixada do Japão
46
em Seul foi marcado pelo exercício de relembrar as nove Halmonis que haviam
falecido naquele ano e pelo Acordo das Mulheres de Conforto extremamente
reprovável a parcela da população e, principalmente, às senhoras vitimadas.
Para uma decisão que finalizaria essa discussão de forma permanente, era
necessária a aplicação de medidas atentas a como suavizar, minimamente, as
dores, traumas e perdas das Halmonis.
Ao invés de construir um rumo para a superação das feridas do passado
traumático da escravização sexual militar perpetrada pelo Japão, o Acordo das
Mulheres de Conforto ensejou a mobilização sul-coreana e o luto como luta
política para que as demandas das Halmonis fossem, de fato, atendidas. Em
dezembro de 2016, por exemplo, uma nova estátua foi erguida em frente ao
Consulado do Japão em Busan. Nessa ocorrência, as fricções diplomáticas
chegaram ao ponto de, momentaneamente, o Embaixador em Seul e o Cônsul
em Busan terem retornado ao Estado japonês. Em meio aos protestos contra a
gestão de Park Geun-hye e seu impeachment de 2017 motivado por tráfico de
influência, nenhum avanço significativo por parte do executivo sul-coreano foi
verificado na pauta das Halmonis.
A INVALIDEZ DO ACORDO DAS MULHERES DE CONFORTO
Iniciando o seu mandato em maio de 2017, o presidente Moon Jae-in (20172022) estruturou a sua gestão atento a promover uma imagem de governo
transparente com as necessidades da população. Como postura tradicional da
ala progressista sul-coreana de ser crítica ao Japão em temáticas vinculadas
ao passado colonial, rapidamente a pauta das Halmonis foi incorporada por
Moon. Dessa forma, no final de julho, foi inaugurado o Grupo de Trabalho
sobre a Revisão do Acordo Coreia-Japão sobre a Questão das “Mulheres de
Conforto” Vitimadas.
Dentre seus resultados publicados no dia 27 de dezembro do mesmo ano, o
Grupo de Trabalho concluiu que: 1) as negociações e o documento final do
Acordo das Mulheres de Conforto de 2015 tiveram uma abordagem
insuficientemente centrada nas vítimas; 2) era necessário que a diplomacia sulcoreana tivesse levado em consideração as opiniões da população para aplicálas nas conversas bilaterais; 3) a política externa de Park Geun-hye ao desejar,
repentina e precipitadamente, não ter mais reveses com o Japão, acabou
exacerbando as relações bilaterais de forma confusa e sem considerar os
impactos que aspectos coloniais podem causar; 4) e, por último, uma atuação
apropriada no caso foi comprometida mediante a falta de comunicação entre
Park, negociadores e integrantes do Ministério das Relações Exteriores (Coreia
do Sul, 2017).
De prontidão, no mesmo dia, o governo japonês atestou que se a Coreia do
Sul, baseada nesse relatório, tentasse alterar o acordo que já havia sido
implementado, as relações bilaterais se tornariam intratáveis, ao passo que era
inaceitável não finalizar essa pauta final e irreversivelmente, como outrora
havia se concertado (Japão, 2017). Se de um lado Moon Jae-in manter-se-ia
47
firme no diagnóstico das debilidades do Acordo das Mulheres de Conforto que
deveria ser revisado e daria cabo ao fechamento da Fundação de
Reconciliação e Cura, do outro, Shinzō Abe adotaria uma postura
resolutamente contrária a quaisquer demandas pelo passado colonial e, junto
aos governantes japoneses, consideraria a Coreia do Sul como incapaz de
adotar uma diplomacia orientada para o futuro (Tamaki, 2019).
Em 2018, os embates coloniais escalaram a um novo patamar quando a
Suprema Corte da Coreia do Sul determinou a necessidade do Japão pagar
compensações a quatro trabalhadores que requereram um processo contra o
Estado japonês por terem sido obrigados a trabalharem em fábricas no
arquipélago nipônico durante a colonização. Gradativamente, a relação bilateral
desmoronaria até o final do governo de Moon Jae-in, sendo permeada por
tensões nipo-sul-coreanas nos casos das Halmonis e dos trabalhos forçados;
disputas comerciais; ampliação do ressentimento sul-coreano ao Japão,
incluindo movimentos organizados para o boicote a produtos japoneses;
contratempos em debates securitários; e incapacidade de cooperação bilateral
até mesmo frente à pandemia de Covid-19 (Dias, 2022; Deacon, 2022). Nessa
conjuntura complexa, as reivindicações das Halmonis continuaram presentes,
porém sem a possibilidade de diálogos benéficos com o Japão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final deste trabalho, compreende-se que a trajetória do Acordo das
Mulheres de Conforto de 2015 foi um encaminhamento relacionado tanto ao
processo de escalonamento de tensões na relação bilateral nipo-sul-coreana,
prévia e posteriormente à sua assinatura, quanto uma dificuldade de Park
Geun-hye, cujo governo foi responsável pela aprovação dessa declaração, em
dialogar com as Halmonis e alcançar um acordo condizente com as dores,
memórias, traumas e reivindicações das mulheres vitimadas e de parcela da
população sul-coreana. Almejando não enfraquecer as relações bilaterais por
meio de contratempos, Park perdeu a oportunidade de barganhar com o Japão
propostas reparativas que fossem, minimamente, suficientes e em direção a
uma abordagem centrada nas Halmonis, em um contexto no qual ambas as
nações estavam sendo pressionadas pelos Estados Unidos a solucionar suas
desavenças.
Como resultado, esse acordo não foi celebrado pelas principais interessadas,
que deveriam aprová-lo, as Halmonis. Para além dessa declaração ser
insuficiente em relação às demandas das senhoras vitimadas, seu
questionamento e desejo por revisão por parte de Moon Jae-in, que estava
correto em uma perspectiva de alcançar os objetivos das vítimas, acabou
contribuindo para ocasionar a ignição de demais rupturas por vir, em diversas
escalas, na relação bilateral nipo-sul-coreana.
Ou seja, o Acordo das Mulheres de Conforto foi negativo tanto para as
Halmonis quanto para a Coreia do Sul, especialmente, e o Japão como
Estados, ao passo que a manutenção dessa ferida colonial impediu uma
48
reconciliação benéfica para ambos. No entanto, é interessante verificar que o
Estado japonês conseguiu fortalecer a narrativa conservadora de que os
pedidos de desculpa nipônicos nunca serão o suficiente para a Coreia do Sul,
sendo isso uma conquista para Shinzō Abe. A reparação estatal japonesa para
a Halmonis vivas é fundamental para que essa questão colonial seja
solucionada, porém o Acordo das Mulheres de Conforto de 2015 tornou esse
processo mais penoso e, por conseguinte, ainda mais urgente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Maurício Luiz Borges Ramos Dias é doutorando e mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESPUNICAMP-PUC/SP). É bacharel em Relações Internacionais pela Universidade
Federal do Pampa (UNIPAMPA). Integrante do Observatório de Regionalismo
(ODR), do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de
São Paulo (NUPRI USP), da Curadoria de Assuntos do Japão da
Coordenadoria de Estudos da Ásia da Universidade Federal de Pernambuco
(CEÁSIA--UFPE) e do Grupo de Estudos de Índia e Ásia Oriental -- GesIAO. Email: mauriciolbrdias@gmail.com.
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51
DO NORTE AO SUL: UMA ANÁLISE DOS FLUXOS
MIGRATÓRIOS DE DESERTORES NORTE COREANOS
Natália Silva e Vitória Georgia
Introdução
O fenômeno migratório de desertores norte-coreanos rumo à Coreia do Sul é
um dos exemplos mais marcantes das consequências de conflitos políticos e
ideológicos prolongados. Este artigo explora as origens históricas dessa
migração, seus desdobramentos e o processo de integração desses migrantes
na Coreia do Sul. A análise baseia-se no contexto da Guerra da Coreia e no
impacto das tensões geopolíticas que perpetuam as divisões entre os dois
países.
A Guerra da Coreia e a Divisão da Península
Para analisarmos os fluxos migratórios dos norte-coreanos para a Coreia do
Sul, faz-se necessária a apresentação da Guerra que culminou na separação
desses dois países. Entre 1910 e 1945, a Coreia encontrava-se sob dominação
japonesa, sendo assim, não tinha um governo próprio. Essa falta de governo
exclusivo foi um fator importante na divisão da Coreia em duas zonas de
influência. Em 1945, durante a Conferência de Potsdam, foi estabelecida a
divisão da península ao longo do Paralelo 38, com o norte sob influência
soviética e o sul sob influência estadunidense [Hobsbawm, 1995; Costa, 2017].
Essa divisão aconteceu devido à bipolarização do mundo no período pósSegunda Guerra Mundial, caracterizada pela disputa de poder entre os Estados
Unidos e a União Soviética, que culminou na Guerra Fria. Em 1948, a
ocupação Aliada no sul tentou reunificar as Coreias, mas sem sucesso,
resultando na criação de dois Estados distintos: a República da Coreia (Sul),
liderada por Syngman Rhee, e a República Popular Democrática da Coreia
(Norte), comandada por Kim Il-sung [Barcellos e Oliveira, 2018; Lee, 2016].
A Guerra da Coreia começou em 1950, quando forças norte-coreanas
atravessaram o Paralelo 38 e invadiram a Coreia do Sul, com o apoio da China
e da União Soviética, buscando unificar a península sob o regime de Kim Ilsung. O presidente dos EUA, Harry Truman, temendo a expansão do
socialismo, mobilizou o Conselho de Segurança da ONU para obter apoio
52
militar, aproveitando a ausência da União Soviética no Conselho devido a um
boicote. Esse conflito foi o quarto mais mortal do século XX, resultando em
mais de dois milhões e meio de mortes e cinco milhões de refugiados [Costa,
2017; Moreira, 2017].
A guerra terminou em 1953 com o armistício de Panmunjom, mas um acordo
de paz formal nunca foi assinado, mantendo a península em estado de tensão
até os dias atuais [Son, 2016].
Fluxos Migratórios: O Contexto dos "Desertores"
Mesmo com o fim da Guerra Fria, a dissolução da União Soviética e com a
reunificação da Alemanha, as Coreias continuam sendo os únicos países
divididos pelo Paralelo 38 e com uma zona desmilitarizada focada em conter
um país longe do outro. Como dito anteriormente, a Guerra da Coreia ocorreu
de 1950 a 1953, e é a partir de 1953 que estudos datam o começo da migração
norte coreana em direção a Coreia do Sul. De acordo com Lee et al. [2001] e
Lankov [2004] apud Barcellos e Oliveira [2018] houve um aumento significativo
nessas migrações devido às crises internas, a precariedade na saúde e
diminuição na disponibilidade de alimentos para os Norte coreanos.
Além disso, a escolha pelo país vizinho ocorre também em detrimento da
facilidade do ajuste social, visto que, em ambos os países, o idioma é o
mesmo, bem como sua origem étnica e histórica e seus costumes alimentícios
são semelhantes. Todavia, outro fator que influencia a decisão de migração
para a Coreia do Sul, é a reivindicação de cidadania automática oferecida pelo
país Sul coreano.
Dito isto, deve - se observar a definição de refugiado pelo Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados [ACNUR] sendo eles, pessoas que
deixam seus países devido às perseguições relacionadas à raça, religião,
nacionalidade, grupo social, opinião política, ou devido às violações dos direitos
humanos e conflitos armados [ACNUR, 2018]. No entanto, tanto em estudos
realizados sobre esse tema, quanto pelos próprios coreanos, a denominação
mais utilizada é “desertor”. Essa definição é aplicada, uma vez que, ambos os
países, reconhecem que vivem sob a mesma península, logo, o termo
refugiado nesse cenário para eles, se torna de certo forma, contraditório. No
entanto, para alguns países como EUA e União Europeia o termo refugiado
para os Nortes coreanos que vão para a Coreia do Sul, é reconhecido.
Já para países como China e Mongólia o termo observado por eles para essas
pessoas, são "imigrantes econômicos". Atualmente, de acordo com Moreira
[2017] em 2016 existiam mais de 29.000 norte coreanos vivendo sob a
jurisdição de Seul. Esse número crescente fez com que as autoridades Sul
coreanas, se preocupassem ainda mais com a administração pública.
Essa onda migratória, movimenta grandemente o orçamento do Ministério da
Unificação, sendo este o órgão do governo Sul coreano responsável por
53
trabalhar em prol da reunificação da Coreia, bem como em prol também dos
direitos dos “desertores”.
Obstáculos na Travessia e os Riscos Enfrentados
Observando o grande número de refugiados/desertores Norte coreanos que
estão na Coreia do Sul, à primeira vista tem-se a noção de que o trajeto entre
as duas Coreias é fácil, o que não é realidade. Entre as Coreias, existe um
local chamado zona desmilitarizada que separa os dois países. Estabelecida
pelo acordo de Armistício Coreano, essa zona possui uma região de 5km de
largura, constituída de vales e montanhas e conta com dois exércitos
protegendo os dois lados. Ou seja, essa fronteira é fortemente armada, para
que ninguém invada o território do outro. Dessa forma, aqueles que desejam
fugir da Coreia do Norte vão atrás de outros meios, extremamente perigosos
para conseguirem asilo na Coreia do Sul. Alguns desertores subornam agentes
da fronteira Coreia do Norte/China principalmente no inverno onde o Rio Yalu
fica congelado permitindo a travessia a pé. Outros se casam com chineses
para tentar ficar na China, enquanto alguns tentam chegar na Coreia do Sul
através da compra de documentos falsos, tráfico humano internacional ou
através da prostituição [Barcellos & Oliveira, 2018; Lee, 2016; Moreira, 2017].
O Processo de Integração na Coreia do Sul
Em 1999, uma instituição foi fundada pela Coreia do Sul e operada pelo
Ministério da Unificação, com o objetivo de ser um programa governamental de
apoio aos desertores/refugiados Norte coreanos, a Hanawon. Esse programa
possui um curso de reassentamento, onde os desertores/refugiados são
educados e abrigados por 12 semanas e 392 horas, antes dos mesmos serem
inseridos plenamente na sociedade. O curso possui testes psicológicos e
aconselhamento, tratamento médico e aconselhamento pós traumático, aula
sobre livre democracia e economia de mercado, experiências práticas onde os
alunos aprendem como fazer compras e visitar locais turísticos, testes de
aptidão, treinamento básico e informações sobre os serviços de acolhimento
continuado [Barcellos & Oliveira, 2018; Lee, 2016; Moreira, 2017].
Após esse curso e formados nele, são fornecidos aos desertores/refugiados o
pagamento pelo governo de habitações e um auxílio mensal pelo período de
cinco anos, visto que, o governo entende que após esse tempo os mesmos já
estarão inseridos na sociedade Sul coreana. Além disso, o governo também
disponibiliza, um funcionário público responsável por ser auxiliar de
reassentamento deles por dois anos.
Barreiras Sociais e Discriminação
De acordo com Barcellos e Oliveira [2018, p.18] “ainda há uma parcela dos Sul
coreanos que têm dificuldade em aceitar os Norte coreanos devido às suas
visíveis diferenças em níveis culturais e de comportamento, assim como, há a
dificuldade de aceitar e compreender o auxílio financeiro provido pelo governo
54
sul-coreano a estes refugiados”. Esse fato também é de conhecimento dos
refugiados/desertores, que de certa forma não conseguindo sua inserção
completa na Coreia do Sul, acabam migrando para outros países como os EUA
e a União Europeia. Além da discriminação sofrida na Coreia do Sul, existem
outros fatores que influenciam essa relocalização. Um deles é a segurança, já
que, no país Sul coreano, há o risco de ameaças por parte de espiões Norte
coreanos, bem como a não confiança plena no governo da Coreia do Sul, por
medo de terem seus novos dados divulgados por razões políticas ao regime
Norte coreano. Outro fator, são as melhores condições de vida advindas de
países desenvolvidos como os EUA, Grã-Bretanha e Canadá, além de
oportunidades de seus familiares aprenderem inglês. Além disso, há melhores
programas governamentais voltados para esse quesito, que oferecem melhores
moradias e auxílios aos desertores.
Ademais, ainda existe outro fenômeno de relocalização chamado de: os duplos
desertores. Essa relocalização ocorre quando os Norte coreanos que migram
para a Coreia do Sul, e não conseguem realizar a adaptação cultural e sofrem
preconceito, decidem retornar à Coreia do Norte. Entretanto, essa condição
não é aceita pela Coreia do Sul, que efetua a prisão daqueles que tentam
retornar ou entrar na Coreia do Norte pela zona desmilitarizada. Esse fato é
representado em vários doramas (séries Sul coreanas) como o mais conhecido
da netflix: Pousando no amor, e em filmes, deixando bem explícito que isso não
é algo que o governo Sul coreano tolera.
Segundo Taylor [2013] apud Moreira [2017], a administração pública da Coreia
do Sul afirma que nos últimos 10 anos menos de 20 refugiados coreanos
realizaram a migração de retorno a Pyongyang, apesar de fontes jornalísticas
relatarem números bem maiores – em torno de 800 indivíduos.
Considerações finais
A migração de desertores norte-coreanos para a Coreia do Sul é um reflexo
das divisões históricas e políticas que ainda marcam a península coreana.
Embora a Coreia do Sul ofereça suporte significativo por meio de programas
como o Hanawon e a Korea Hana Foundation, a integração social permanece
um desafio. A discriminação e o preconceito por parte da sociedade sulcoreana sublinham a necessidade de campanhas educativas para promover
maior aceitação e inclusão.O compromisso humanitário do governo sul-coreano
é evidente, mas os desafios relacionados à percepção pública e às barreiras
culturais indicam que ainda há um longo caminho a percorrer para garantir que
os desertores possam reconstruir suas vidas plenamente. Nesse contexto, a
questão migratória continua sendo um ponto crucial nas relações intercoreanas
e no cenário internacional.
55
Referências
Natália Silva é especialista em Relações Internacionais pela IBRA e discente
de Defesa e Gestão Estratégica Internacional pela UFRJ.
Vitória Georgia é discente em Relações Internacionais pela FURG.
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Barcellos e Oliveira. Refugiados Norte-coreanos: adaptação e realocação
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56
DESISTÊNCIA COMO FORMA DE RESISTÊNCIA:
DISCUTINDO A GERAÇÃO N-PO POR MEIO DO FILME
MICROHABITAT (2017)
Suéllen Gentil e Clara Moraes
Nas últimas décadas, a Coreia do Sul teve um declínio significativo na taxa de
natalidade (número de nascidos vivos a cada mil habitantes de um determinado
local) e atualmente possui a menor taxa de fertilidade (0.72 filhos por mulher estima o número médio de filhos que uma mulher terá ao longo da vida em
uma determinada região) pelos dados da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE). Juntamente com esse fenômeno, há um
aumento na expectativa de vida da população, aumentando, assim, o número
de idosos na Coreia do Sul. Essas duas características são cruciais para o
entendimento econômico e político da sociedade coreana na atualidade
[OCDE, 2024].
Acrescido a essas duas características, o papel da mulher na sociedade
coreana vem sofrendo algumas mudanças atreladas ao alto grau de instrução e
ao desempenho de papeis sociais que a leva a priorizar a carreira na maioria
das vezes [Choi, S. et al, 2024]. Esses três pontos são cruciais para o
entendimento de algumas mudanças socioeconômicas no país. Aumento
acirrado de exigência educacional, aumento do desemprego, aumento da
pauperização e aumento do custo de vida são algumas características que
fizeram o jovem apelidar a Coreia do Sul de “Hell Joseon” (Inferno Joseon ou
Coreia Infernal). A juventude se sente pressionada por alta performance ao
mesmo tempo que não possui estabilidade financeira e vive uma vida de
ausências. Essa instabilidade social resulta em um movimento conhecido como
Geração N-po. Esta expressão, que pode ser entendida como "geração da
desistência", refere-se aos jovens que, diante das pressões socioeconômicas
crescentes, optaram por renunciar a diversos aspectos tradicionalmente
considerados marcos da vida adulta, como casamento, filhos, casa própria e
ascensão profissional [Cho & Stark, 2016].
Apesar da denominação Geração N-po, não se trata de apenas uma geração,
mas sim de um problema transgeracional diretamente ligado à juventude,
abarcando pessoas entre os 19 e 39 anos na Coreia do Sul [Lally, 2022]. Uma
das primeiras análises dos resultados da precariedade do trabalho, do
57
neoliberalismo e do empobrecimento dos jovens sul-coreanos surge em 2007
no livro 880,000 won generation, escrito pelo sociólogo Woo Suk-hoon e expõe
a realidade material que muitos jovens enfrentavam, os levando a abrir mão de
diversos valores. Sendo assim, a juventude estava fadada a ter empregos
temporários que pagavam mal e precisavam escolher prioridades diante da
instabilidade financeira. Essa realidade se manteve e se agravou no decorrer
do tempo.
Essa realidade é resultado das diversas crises locais e globais que interferem
na dinâmica interna do país. Dentre elas, podemos citar: Fim da colonização
japonesa na Coreia, Guerra da Coreia, Boom industrial da Coreia do sul entre
1960 e 1970, gerando um fluxo imigração na Coreia do Sul sem que o governo
conseguisse estabilizar as demandas crescentes decorrentes desse influxo;
Olimpíadas de Seul, houve um grande número de desapropriação e de
demolição de casas, além de um projeto de reurbanização inflacionada
gerando muitos desabrigados e outros em situação de insegurança
habitacional- ; crise financeira asiática em 1997 - período de recessão
econômica - e a crise financeira global de 2007. Todos esses períodos levaram
a um aumento do custo de vida, aumento da carga horária de trabalho e
aumento da instabilidade financeira.
Como consequência desses problemas estruturais, surge a “Geração Po”
[포세대] que consiste em uma geração que é forçada a desistir de inúmeras
coisas. O “N” da geração po deriva da ideia de inúmeros valores que os jovens
vão sendo obrigados a abrir mão no decorrer do tempo. Em 2011 surge a ideia
de desistir de 3 valores: namoro, filho e casamento. Por serem 3 valores, a
geração ficou conhecida como “Geração Sam-po” [삼포세대], sendo 삼 [Sam]
três em coreano. A partir desse momento, valores vão sendo acrescentados à
medida que a sociedade se sente cada vez mais sufocada. A geração Oh-po
[오포세대, 오 significa cinco em coreano] se refere a um grupo de jovens que
desistiram de 5 valores: os três acima, emprego e casa própria. A geração Chilpo [칠포세대, 칠 significa sete em coreano] se refere a um grupo de jovens que
desistiram de 7 valores: os cinco acima, relações interpessoais e esperança. A
geração Gu-po [구포세대, 구 significa nove em coreano] se refere a um grupo
de jovens que desistiram de 9 valores: os 7 acima, saúde e aparência física. E
a geração Sip-po [십포세대, 십 significa dez em coreano] se refere ao grupo de
jovens que desistem completamente de tudo, incluindo a própria vida.
Na tabela abaixo, temos essas gerações esquematizadas para ajudar a
entender melhor cada uma delas, lembrando que cada geração absorve as
demandas da geração anterior, sendo, então, cumulativas.
58
Tabela 1: As gerações e seus respectivos valores perdidos.
Todo esforço se concentra em construir bons currículos para concorrer a uma
possível vaga de trabalho efetiva, tendo como objetivo conseguir cuidar de si
mesmo. Essa individualização é algo que contrasta com a organização social
sul-coreana baseada em um coletivismo cultural, resultando em um
descolamento da realidade e, portanto, na produção de uma anomia seguindo
o conceito de Durkheim. Esse descolamento da realidade gera toda uma
desestruturação social que leva o jovem sul-coreano a perder paulatinamente a
capacidade de esperançar dias melhores. Por isso, ele se volta ao momento
atual e tenta extrair o possível para sobreviver. A intensificação neoliberal após
a crise de 1997 em nome da melhora na competitividade internacional levou à
precarização do trabalho, a demissões em massa de trabalhadores regulares e
à diminuição da qualidade de vida dos trabalhadores. Esse movimento gera
diversos problemas sociais na atualidade: aumento da pauperização social,
desemprego dos jovens e produção em massa de empregos irregulares [Shim,
2017].
A consequência de todos esses problemas sociais é uma juventude que se
desliga da sociedade, disseminando frustração e desesperança. Sendo assim,
há um aumento rápido na taxa de suicídio que é diretamente proporcional ao
desinteresse do jovem pelo mercado de trabalho [Shim, 2017]. Algumas
características dessa geração estão presentes no filme Microhabitat. E,
portanto, este trabalho se propõe a analisar como essa geração foi abordada
no filme.
Representações da Geração N-po em Microhabitat (2017)
Microhabitat (2017) é um fillme sul-coreano dirigido e escrito por Jeon Gowoon. A obra é protagonizada por Esom (이솜), no papel de Mi-so, e Ahn Jae-
59
hong (안재홍), como Han-sol. Com uma duração de 106 minutos, o longa
combina drama, comédia e romance, apresentando uma crítica social sobre a
precariedade econômica e a busca por sentido e prazer em uma sociedade
moderna. O filme foi amplamente aclamado, recebendo elogios pela crítica
especializada e diversas premiações, incluindo o Audience Award no Seoul
Independent Film Festival e o CGV Arthouse Award no Busan International Film
Festival. A trilha sonora é assinada por Kwun Hyun-jeong, e a cinematografia,
por Kim Tae-soo, traz elementos que contribuem para sua atmosfera
introspectiva e envolvente.
A narrativa acompanha Mi-so, uma mulher na casa dos trinta que trabalha
como empregada doméstica e personifica diversos aspectos desta geração.
Sua vida, aparentemente simples, é sustentada por três pilares que ela
considera essenciais: whisky, cigarros e o amor de seu namorado Han-sol, um
aspirante a escritor de webtoons. Esta escolha por uma vida minimalista,
inicialmente apresentada como uma preferência pessoal, gradualmente se
revela como uma forma de resistência silenciosa ao modelo de sucesso
imposto pela sociedade sul-coreana contemporânea.
O filme destaca-se pela sensibilidade com que retrata a precariedade
econômica e a busca por liberdade individual em uma sociedade marcada pela
competitividade extrema e pelo alto custo de vida, características que definem
o contexto da geração N-po. A direção de Jeon Go-woon e a aclamada atuação
de Esom no papel de Mi-so conseguem equilibrar momentos de comédia com
uma crítica social profunda, sustentada por uma cinematografia cuidadosa e
uma trilha sonora que amplifica o tom introspectivo da narrativa. Esta obra não
apenas retrata, mas também questiona as estruturas sociais que levam jovens
sul-coreanos a optarem pela "desistência" como forma de resistência ao
sistema.
Em um contexto mais amplo, Microhabitat se insere em uma tendência do
cinema sul-coreano contemporâneo de abordar questões sociais urgentes
através de narrativas que mesclam gêneros e tons, seguindo a tradição de
obras como Em chamas (2018) e Parasita (2019). Nesse sentido, o filme
emerge como uma obra significativa para compreender as transformações
sociais contemporâneas da Coreia do Sul, especialmente o fenômeno
conhecido como a já mencionada geração N-po. Conforme aponta Lee:
“O filme aborda a difícil sobrevivência social da geração jovem, conhecida
como geração N-po, que é ensinada e forçada a desistir de seus sonhos e
objetivos desde tenra idade. Ele retrata uma era marcada por enormes
barreiras impostas pela realidade, na qual muitos abandonam seus próprios
desejos e vozes. O longa ganha ainda mais relevância ao lidar com essas
duras realidades sociais a partir da perspectiva de Mi-so, uma protagonista
feminina socialmente marginalizada, que se torna o principal elemento de
conflito na narrativa. Por meio da figura singular de Mi-so, que aceita uma vida
de renúncias, mas preserva firmemente seus gostos e pensamentos, é possível
60
vislumbrar a afirmação de valor do diretor Jeon sobre a vida.” [Lee, 2019, p.
442, tradução própria]
No filme, quando confrontada com o aumento drástico no preço dos cigarros,
Mi-so toma uma decisão radical que espelha o próprio conceito do N-po: em
vez de abandonar seus pequenos prazeres, ela opta por abrir mão de seu
apartamento, subvertendo a hierarquia tradicional de necessidades
socialmente estabelecidas. A protagonista exemplifica de forma contundente as
características da Geração N-po através de suas escolhas e modo de vida. Um
momento especialmente significativo ocorre quando ela decide abandonar seu
apartamento devido ao aumento do aluguel, optando por manter seus
pequenos prazeres - cigarros e uísque - em detrimento de uma moradia fixa.
Esta decisão radical reflete o posicionamento da Geração N-po de renunciar a
determinados aspectos convencionais da vida adulta, demonstrando uma
forma de resistência passiva ao sistema econômico opressivo que impossibilita
a realização simultânea de todas as necessidades básicas de sobrevivência e
satisfação pessoal.
Nesse contexto, sua subsequente jornada de reencontro com antigos amigos
serve como um dispositivo narrativo que expõe o contraste entre diferentes
respostas às pressões sociais: enquanto alguns seguiram o caminho
convencional de empregos corporativos, casamento e propriedade, outros,
como ela, escolheram rotas alternativas. As visitas que Mi-so faz aos seus
antigos amigos de faculdade revelam outro aspecto crucial da Geração N-po: o
contraste entre aqueles que se renderam às pressões sociais e aqueles que
escolheram caminhos diferentes. Em cada encontro, observa-se como seus
amigos, agora casados e empregados em trabalhos convencionais,
representam a conformidade com as expectativas sociais, enquanto Mi-so
persiste em sua escolha por uma vida minimalista e não convencional. Estas
cenas evidenciam o dilema central da Geração N-po: a escolha entre
adaptação ao sistema ou a renúncia deliberada aos padrões socialmente
impostos.
A relação de Mi-so com seu trabalho como diarista também constitui um
elemento analítico relevante. Sua recusa em procurar um emprego que se
encaixe nos moldes mais tradicionais e respeitados socialmente, mesmo tendo
formação universitária, ilustra a rejeição da dessa geração às pressões por
sucesso profissional e ascensão social em detrimento de seu tempo e de seus
desejos. O filme retrata com sensibilidade como esta escolha não deriva de
preguiça ou falta de ambição, mas de uma decisão consciente de priorizar a
autonomia e a satisfação pessoal.
Ainda sobre as conexões afetivas de Mi-so, o relacionamento da protagonista
com seu namorado aspirante a quadrinista representa outro aspecto
significativo da Geração N-po: a redefinição dos relacionamentos amorosos e
da vida doméstica. A dinâmica entre o casal, que vive de forma precária mas
mantém uma relação de companheirismo e compreensão mútua, demonstra
como esta geração busca construir vínculos afetivos que não dependam
61
necessariamente de estabilidade financeira ou conformidade com os padrões
tradicionais de matrimônio e família. Além disso, assim como parte dos amigos
de Mi-so, Han-sol não consegue se sustentar enquanto quadrinista e também
termina por ceder às pressões sociais ao aceitar um emprego formal em uma
empresa da Arábia Saudita, com o objetivo de conseguir comprar uma casa
para os dois.
Outro ponto relevante é uma das cenas finais do filme, na qual a protagonista
novamente desfruta de seu uísque e cigarro, reforçando a dimensão simbólica
particular no contexto da Geração N-po. Estes pequenos luxos, aparentemente
supérfluos diante de necessidades mais básicas, representam uma forma de
resistência ao utilitarismo econômico e uma afirmação da importância do prazer
individual em uma sociedade que privilegia a produtividade e o sacrifício
pessoal. O filme demonstra como estes momentos de satisfação pessoal se
tornam atos de preservação da individualidade em um contexto social
opressivo.
A mobilidade constante de Mi-so entre as casas de seus amigos, dormindo em
sofás e espaços improvisados, reflete materialmente a condição da Geração Npo de existir nos interstícios do sistema econômico convencional. Esta situação
de nomadismo urbano, embora precária, representa uma forma de adaptação
criativa às impossibilidades impostas pelo mercado imobiliário e pelo sistema
econômico coreano, evidenciando como esta geração desenvolve estratégias
alternativas de sobrevivência que desafiam as expectativas sociais
convencionais.
Por fim, ainda nesse contexto, a cena final na qual a jornada nômade de Mi-so
resulta nela morando em um barraca de acampamento às margens do rio Han
é o símbolo marcante de expressão da geração N-Po como uma geração que
está às margens.
Considerações Finais
Este trabalho buscou analisar como o fenômeno social da Geração N-po se
manifesta através das representações cinematográficas no filme Microhabitat
(2017), estabelecendo conexões entre as escolhas e vivências da protagonista
Mi-so e as diferentes formas de renúncia adotadas pela juventude sul-coreana
contemporânea. Por meio de uma análise detalhada das principais sequências
do filme, foi possível identificar como a obra articula, através de sua narrativa e
construção estética, as complexas dimensões sociais, econômicas e afetivas
que caracterizam essa geração marcada por múltiplas desistências.
Nesse sentido, o filme consegue transcender a simples representação da
precariedade econômica para revelar formas sutis de resistência ao sistema
opressivo. Por meio da personagem Mi-so, observamos que a renúncia a
determinados aspectos da vida considerados socialmente fundamentais - como
moradia fixa e estabilidade profissional - não representa meramente uma
derrota diante das impossibilidades materiais, mas configura-se como uma
forma consciente de resistência ao modelo neoliberal imposto pela sociedade
62
sul-coreana. Suas escolhas, aparentemente contraditórias aos olhos do senso
comum, como priorizar pequenos prazeres em detrimento de necessidades
básicas, ilustram uma reconfiguração radical dos valores e prioridades que
caracteriza a Geração N-po.
Nesse contexto, buscou-se apontar como as diferentes manifestações da
Geração N-po - desde a Sam-po até a Sip-po - encontram eco nas diversas
dimensões da narrativa fílmica. A trajetória de Mi-so e seus encontros com
antigos amigos funcionam como um microcosmo que reflete as múltiplas
facetas desse fenômeno social, evidenciando tanto as formas de adaptação
quanto às estratégias de resistência desenvolvidas pelos jovens diante das
pressões socioeconômicas. Especialmente relevante é a forma como o filme
articula a tensão entre os valores tradicionais da sociedade sul-coreana e as
novas formas de existência que emergem como resposta à precarização da
vida.
Espera-se que este trabalho contribua para o aprofundamento das discussões
acerca das novas configurações sociais que emergem como resposta às
impossibilidades impostas pelo sistema capitalista contemporâneo,
particularmente no contexto sul-coreano. A análise de Microhabitat como objeto
artístico que dialoga com essas questões sociais urgentes demonstra como o
cinema pode servir não apenas como meio de representação, mas também
como ferramenta de compreensão e crítica das transformações sociais
contemporâneas, especialmente aquelas que envolvem formas de resistência
que se manifestam através da aparente desistência de valores tradicionalmente
estabelecidos.
Referências
Suéllen Gentil é mestranda no Programa de Pós-graduação em Letras na
Universidade Federal da Paraíba e pesquisadora associada na Coordenadoria
de Estudos Asiáticos, vinculada ao Centro de Estudos Avançados da
Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: suellen.gentil@gmail.com.
Clara Moraes é mestra em Engenharia de Sistemas pela Universidade de
Pernambuco e curadora da Curadoria de Estudos Coreanos, vinculada ao
Centro de Estudos Avançados da Universidade Federal de Pernambuco. Email: clarinhajv@gmail.com.
Choi, S. et al. (2024), “Women’s employment and fertility in Korea: A literature
review”, OECD Economics Department Working Papers, No. 1825, OECD
Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/ac53879e-en.
LEE, Tae-Hoon. Feminist Expression Analysis of Modern Commercial Movies
(Focusing on “Micro-habitat(2017)”). Journal of Digital Convergence, v. 17, n.
10, p. 439-446, 2019.
63
OECD (2024), OECD Economic Surveys: Korea 2024, OECD Publishing, Paris,
https://doi.org/10.1787/c243e16a-en.
Shim, JS. (2017). Voices of the 880,000 Won Generation: Precarity and
Contemporary Korean Theatre. In: Diamond, E., Varney, D., Amich, C. (eds)
Performance, Feminism and Affect in Neoliberal Times. Contemporary
Performance
InterActions.
Palgrave
Macmillan,
London.
https://doi.org/10.1057/978-1-137-59810-3_17
Cho, H. & Stark, J. South Korean youth across three decades. In: Kim, Y. (Ed.).
(2016). Routledge Handbook of Korean Culture and Society (1st ed.).
Routledge. https://doi.org/10.4324/9781315660486.
64
“TRAIN TO BUSAN” E A SOCIEDADE SUL-COREANA:
UMA BREVE ANÁLISE
Vitória Ferreira Doretto
Personagens e histórias de terror, principalmente de monstros, permeiam a
imaginação, literatura, cinema, música e televisão há muito tempo. Como
acontece com quase todos os temas que são abordados no entretenimento, os
monstros e demais seres fantásticos possuem épocas de altas e baixas — é
possível verificar isto ao notar que em certas épocas há uma proliferação de
obras literárias e televisivas sobre, por exemplo, vampiros em detrimento de
anjos — e isto se dá, se considerarmos a discussão sobre globalização,
desmodernização e retorno da figura do monstro feita por Mary Louise Pratt
[2007], em razão do sistema político-econômico vigente na sociedade, com
mercados abrindo e fechando, imigrações e naufrágios, que põem em relevo
novos (ou seriam “remasterizados”?) dramas sociais.
É o funcionamento da sociedade atual que desperta medos, novos e antigos,
ou repaginados. E estes medos ganham forma na figura dos monstros — daí
voltamos aos movimentos de alta e baixa de temas explorados na indústria do
entretenimento de forma bem-sucedida. De acordo com Texeira [2013]: “nos
últimos anos, a popularidade do filme de zumbi cresceu tanto que ele
despertou o interesse de diretores com maiores recursos e se tornou mais sutil,
mesclando-se a outros gêneros”. Percebemos este movimento ocorrer também
nas produções de entretenimento sul-coreano, notadamente em séries e filmes
que chegam ao público ocidental por plataformas de streaming como a Netflix.
Neste sentido, se olharmos as produções sul-coreanas nos últimos dez anos
podemos citar filmes, como Zombie School [2014], Mad Sad Bad [2014], Train
to Busan [Invasão Zumbi, 2016], Rampant [2018], The Odd Family: Zombie On
Sale [2019], Peninsula [Invasão Zumbi 2: Península, 2020], #Alive [2020], e
séries, como Kingdom [2019], Kingdom Season 2 [2020] e Zombie Detective
[em tradução literal, Zumbi detetive, 2020], com roteiros envolvendo zumbis em
diferentes épocas da sociedade sul-coreana e que tiveram diferentes
resultados — de bilheterias e audiência local.
Neste texto trataremos de Train to Busan [2016] e sua escalada ao sucesso de
bilheteria como um caminho duplo — por um lado, como um objeto de crítica e
65
análise de uma sociedade; por outro, como um objeto do sistema de criação de
produtos mais vendidos (star system), blockbusters, no cinema.
Train to Busan ou Busanhaeng (부산행, no Brasil: Invasão Zumbi) é um filme
sul-coreano de apocalipse zumbi, ação e suspense lançado em 2016. Seu
roteiro é de Park Joo Seok e Yeon Sang-ho, que também é o responsável pela
direção. E em seu elenco estão nomes conhecidos do público sul-coreano,
como Gong Yoo, Jung Yu-mi, Ma Dong-seok, Kim Eui Sung e Choi Woo Shik.
O filme acompanha a jornada de um executivo (Seo Suk Woo, vivido por Gong
Yoo) obcecado por trabalho e sua pequena filha (Seo Soo Ahn, interpretada
por Kim Soo An) a bordo de um trem que viaja de Seul para Busan em meio ao
surgimento de uma doença que transforma as pessoas em zumbis e se alastra
descontrolada e rapidamente.
Neste texto, optamos por chama-lo de Train to Busan em detrimento de seu
título utilizado nos cinemas e serviços de streaming disponibilizados para o
público brasileiro (Invasão Zumbi) pelo papel importante que o trem para
Busan, a segunda cidade mais populosa da Coreia do Sul, tem na trama — ele
é, afinal, o local onde majoritariamente toda ação acontece, onde os
personagens principais estão tentando sobreviver, e é também o lugar
escolhido para uma das cenas utilizadas para a divulgação do filme (conferir
Figura 1), destacando o olhar de desespero de um dos personagens — e
porque entendemos que o uso do termo “invasão” em Invasão Zumbi parece
remeter à ideia de algo que é externo entrando forçosamente em dado lugar, e
na história as pessoas dos vagões (e, de forma geral, do país) são
transformadas em zumbis pelo alastramento de uma substância descartada por
uma indústria na água de um rio, que serve de alimento para animais
silvestres, que vão ser transformados e então transmitir para os humanos com
quem têm contato direto — a substância química é sim o “estranho” invadindo
o corpo humano e provocando mudanças em sua natureza e comportamento,
mas o foco do enredo não está realmente na substância e sim nos
personagens humanos, na forma com que eles reagem à transformação de
amigos e desconhecidos durante a viagem de trem e nas ações que se
desencadeiam a partir destas reações.
66
Figura 1 – Cartaz de divulgação do filme
Fonte: Divulgação Next Entertainment World.
Dois fatos devem ser lembrados antes de analisarmos as questões propostas
sobre Train to Busan. O primeiro é que o filme estreou em 13 de maio na
Sessão da Meia-noite do Festival de Cannes de 2016 e ganhou 32 prêmios e
teve outras 39 indicações a premiações. O segundo é que em 7 de agosto ele
se tornou o primeiro filme de 2016 a ultrapassar a marca de 10 milhões de
espectadores.
Ao apresentar sete teses sobre os monstros, Cohen [2000] aponta que o
nascimento dos monstros ocorre nas “encruzilhadas metafóricas”, são
corporificações de momentos, sentimentos ou lugares específicos e incorporam
medos, desejos, anseios e fantasias de modo literal, ficando sempre na
fronteira da possibilidade do “vir-a-ser”. É esta fronteira do poder tornar-se que
é explorada em Train to Busan. Ao tratar do sucesso dos filmes de zumbi,
Corso [2013] pergunta o que este tipo de monstro pode nos dizer e afirma que:
“talvez sejam eco de recônditas questões que não nos atrevemos a pensar, e
por isso elas abrem espaço na nossa consciência via fantasia”.
Quais questões são tratadas neste filme coreano? Conforme afirma Pratt
[2007], os relatos de hoje são motivados por outro tipo de desejo e mostram os
dramas da negação, exclusão e fracasso. Ao olharmos com atenção para os
personagens, os cenários e as histórias contadas em Train to Busan, veremos
uma série destes dramas, principalmente envolvendo fracassos: o personagem
principal fracassa como pai por se dedicar rigorosamente ao trabalho e não
passar tempo com a filha, que deveria criar sozinho depois do divórcio com a
esposa; as duas senhoras idosas que conviveram a vida inteira não
67
conseguem ter um diálogo entre si sem se machucarem; os jovens estudantes
não conseguem expressar seu apreço uns pelos outros e, em especial, um
deles não demonstra gostar da garota que o segue para todos os lados etc.
Acrescenta-se a isto questões próprias da sociedade sul-coreana (que podem
também ser encontradas em outras sociedades): as pessoas se tornaram
extremamente egoístas e apenas confiam em si mesmos, já que a mídia e o
governo (ausente e responsável por encobrir a verdade na maioria das vezes)
são facilmente manipulados pelas corporações. E é justamente a
insensibilidade corporativa a culpada pelas mortes na trama — e aqui vale
lembrar que a tripulação está mais preocupada em seguir os desejos de um
empresário do que salvar os passageiros do trem.
Este detalhe sobre as corporações não é retratado por acaso: em 2014 uma
tragédia abalou a sociedade sul-coreana, 300 pessoas, em sua maioria
adolescentes, morreram afogadas quando uma balsa capotou no mar e, no
final da investigação, a polícia descobriu que a corporação proprietária da balsa
a sobrecarregou para economizar dinheiro — o que causou o acidente. O ponto
mais sofrido para a população foi que o capitão e a tripulação entraram nos
botes salva-vidas sem resgatar os passageiros e a mídia, acompanhando os
informes do governo, reportou que todos tinham sobrevivido. Esta tragédia
ficou conhecida como Naufrágio do Sewol.
Então, o filme critica a sociedade e ainda instiga a reflexão sobre sua
existência: “Esses zumbis somos nós, em uma forma lúdica e rebaixada de
filosofar sobre nosso destino” [Corso, 2013]. Mas não é apenas seu papel
como crítico da sociedade que o fez um sucesso de bilheteria. Estima-se que
um quinto da população sul-coreana tenha assistido o filme e ele quebrou
diversos recordes na indústria cinematográfica sul-coreana, incluindo o de
maior bilheteria em um único dia. Podemos apenas fazer suposições sobre a
razão de seus altos números, mas devemos começar levando em conta seu
elenco: Gong Yoo, o ator que interpreta o personagem principal, é um artista
veterano que participou de filmes e K-dramas (as novelas asiáticas) muito
conhecidos pelo público local, como Goblin [2016] e Coffee Prince [2007]; Jung
Yu-mi é uma atriz também conhecida pelo público e esteve em filmes e Kdramas de sucesso, como Manhole [2014], Reply 1994 [2013] e The School
Nurse Files [2020]; o mesmo pode ser dito de Ma Dong Seok, bastante
conhecido por suas atuações em filmes e K-dramas como The Neighbors
[2012], Nameless Gangster [2012] e Shut Up Flower Boy Band [2012], Kim Eui
Sung, premiado ator veterano que atuou em filmes e K-dramas como Six Flying
Dragons [2015-2016] e W [2016], e Choi Woo Shik, ator coreano-canadense
que também atuou no aclamado Parasita [2019] e Time to Hunt [2020] e
diversos K-dramas de sucesso, como Rooftop Prince [2012] e The Boy Next
Door [2017]; estes e demais atores são conhecidos por seus bons
desempenhos em produções, o que pode ter sido um fator que agregou
atenção e levou também seus fãs aos cinemas.
68
Além disso, ter um elenco estelar faz com que haja uma produção de artigos e
peças promocionais antecipando o filme, em manobras que aliam diversas
mídias e que demandam um grande trabalho das equipes de marketing — o
que é típico do star system.
Outro fator que pode ter lhe garantido o lugar entre os grandes lançamentos é
a quantidade de indicações a prêmios e premiações vencidas. Como
observado nos Quadros 1 e 2 apresentadas a seguir, Train to Busan teve trinta
e nove indicações a prêmios e trinta e duas premiações vencidas, totalizando
setenta e uma indicações, não só em premiações de associações asiáticas,
mas também europeias e estadunidenses — destacamos aqui também a
indicação ao Prêmio Guarani, a maior premiação crítica do cinema brasileiro,
provando sua quebra de fronteiras geográficas.
Quadro 1 – Premiações
Premiação (ano) e/ou Organização
Categoria
Baek Sang Film (2017); Baek Sang
Best New Director (Sang-ho Yeon)
Art Awards
Best Supporting Actor (Eui-sung Kim)
BloodGuts UK Horror Award (2016);
Best International Film (Sang-ho
BloodGuts UK Horror Awards
Yeon; director)
Best Technical Award (Tae-Yong
Blue Dragon Award; Popularity Award Kwak; Hyo-kyun Hwang - Special
(2016); Blue Dragon Awards
makeup effects)
Audience Choice Award
Yu Hyun-mok Film Arts Award (SangBuil Film Award (2016); Buil Film
ho Yeon)
Awards
Best Supporting Actor (Eui-sung Kim)
Chunsa Film Art Award; Audience
Most Popular Film
Choice Award (2017); Chunsa Film
Technical Award (Tae-Yong Kwak Art Awards
Special makeup effects)
Director's Cut Awards (2017);
Genre Film Award (Sang-ho Yeon)
Director's Cut Award
Audience Award; Official Jury Prize
Best Film (Sang-ho Yeon - director)
(2016); FANCINE Festival de Cine
Best Special Effects (Sang-ho Yeon Fantastico de la Universidad de
director)
Malaga
Chainsaw Award (2017); Fangoria
Best Foreign-Language Film
Chainsaw Awards
Audience Award; Cheval Noir (2016); Best Asian Feature (Sang-ho Yeon)
Fantasia Film Festival 2016
Best Film (Sang-ho Yeon)
Golden Trailer (2017); Golden Trailer Best Foreign TV Spot (Well Go USA
Awards
Entertainment; Red Circle)
iHorror Awards (2017); iHorror Award Best Foreign Horror
Asian Blockbuster Award (2016);
International Film Festival & Awards
Sang-ho Yeon
Macao
KOFRA Film Award (2017); KOFRA
Best Supporting Actor (Ma DongFilm Awards
seok_
69
Korean Association of Film Critics
Award (2016); Korean Association of
Film Critics Awards
Korean Film Actor's Association
Award (2016); New Director Awards
Festival Prize (2016); LUSCA
Fantastic Film Fest
Audience Award (2016); Molins Film
Festival
Audience Award (2016); San
Sebastián Horror and Fantasy Film
Festival
Audience Choice Award (2016);
Saskatoon Fantastic Film Festival
Official Fantàstic Competition (2016);
Sitges - Catalonian International Film
Festival
Discovery Award (Sang-ho Yeon)
Technical Award (Tae-Yong Kwak Special makeup effects)
Ten Best Films of the Year
Sang-ho Yeon
Best International Feature Film
(Dong-ha Lee - director)
Best Film (Sang-ho Yeon - director)
Best Feature (Sang-ho Yeon director)
Gold Award (Sang-ho Yeon)
Best Director (Sang-ho Yeon)
Best Special Effects (Jung Hwang-su)
Best Feature Film (Sang-ho Yeon director)
Audience Award; Special Award
Best Director (Sang-ho Yeon (2016); Toronto After Dark Film
director)
Festival
Best Horror Film (Sang-ho Yeon director)
Fonte: Elaborado pela autora com dados de IMDB (2021).
Quadro 2 – Indicações a prêmios
Premiação (ano) e/ou Organização
Categoria
Saturn Award (2017); Academy of
Best Horror Film
Science Fiction, Fantasy & Horror
Films, USA 2017
Best Actor (Gong Yoo)
Best Supporting Actor (Ma Dongseok)
Asian Film Awards (2017)
Best Editor (Jinmo Yang)
Best Visual Effects (Jung Hwang-su)
Best Costume Designer (Yu-Jin
Gweon; Seung-Hee Im)
Best Picture
NETPAC Award (2017); Asian Film
Best Screenplay (Sang-ho Yeon; JooCritics Association Awards
Suk Park)
AACTA Award (2017); Australian
Best Asian Film (Dong-ha Lee Academy of Cinema and Television
South Korea)
Arts (AACTA) Awards
Best Film
Baek Sang Film (2017); Baek Sang
Best Supporting Actor (Ma DongArt Awards
seok)
BloodGuts UK Horror Award (2016);
Best Actress in an International Film
70
BloodGuts UK Horror Awards
Blue Dragon Award (2016); Blue
Dragon Awards
Buil Film Award (2016); Buil Film
Awards
Chunsa Film Art Award (2017);
Chunsa Film Art Awards
DFCC (2016); Dublin Film Critics
Circle Awards
Chainsaw Award (2017); Fangoria
Chainsaw Awards
Fright Meter Awards (2016); Fright
Meter Award
Golden Trailer (2017); Golden Trailer
Awards
(Su-an Kim)
Best Actor in an International Film
(Gong Yoo)
Best Supporting Actress (Yu-mi Jung)
Best Film
Best Supporting Actor (Eui-sung Kim)
Best Supporting Actor (Ma Dongseok)
Best Screenplay (Sang-ho Yeon; JooSuk Park)
Best Cinematography-Lighting
(Hyung-deok Lee – cinematography;
Jeon-woo Park - lighting)
Best New Director (Sang-ho Yeon)
Best Editing (Jinmo Yang)
Best Art Direction (Mok-won Lee)
Best Film (Sang-ho Yeon)
Best Art Direction (Mok-won Lee)
Best Supporting Actress (Yu-mi Jung)
Best Cinematography (Hyung-deok
Lee)
Best Actor (Gong Yoo)
Best Supporting Actor (Ma Dongseok)
Best Supporting Actor (Eui-sung Kim)
Best Supporting Actress (Yu-mi Jung)
Best Film - Tied with Capitão
Fantástico (2016), Paterson (2016),
O Regresso (2015), O Quarto de
Jack (2015), O Filho de Saul (2015)
and A Bruxa (2015) in 6th place
Best Actor (Gong Yoo)
Best Supporting Actor (Ma Dongseok)
Best Foreign Horror Trailer (Well Go
USA Entertainment; Red Circle
Productions)
Best Actor - Horror Film (Gong Yoo)
Sang-ho Yeon
7th Runner-Up
iHorror Awards (2017); iHorror Award
Most Popular Feature Film (2016);
Melbourne International Film Festival
Jury Prize (2016); Molins Film
Best Film (Sang-ho Yeon - director)
Festival
Prêmio Guarani (2017); Academia
Best Foreign Film (Sang-ho Yeon)
Guarani de Cinema
Rondo Statuette (2016); Rondo
Best Movie
Hatton Classic Horror Awards
Fonte: Elaborado pela autora com dados de IMDB (2021).
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As premiações são, sem dúvida, formas de consagração e afirmação de valor
de qualquer tipo de produção, seja ela artística ou não, e os filmes não fogem
desta regra.
Prêmios, então, são instâncias de consagração e uma forma de ampliar ou
angariar capital simbólico e econômico para um objeto, neste caso Train to
Busan, e permite que o filme tenha uma posição dominante em relação aos
outros filmes, afinal, é comum querermos assistir filmes premiados para saber
por que ganharam as premiações (e opinar se concordamos ou não com isso)
— usamos aqui os termos capital simbólico e econômico na concepção de
Bourdieu (2018) e Thompson (2013), que a desdobra e aplica ao mundo
editorial a partir de Bourdieu, assim, de forma geral e resumida, o primeiro se
relaciona ao prestígio e status de certa produção e o segundo se relaciona aos
recursos financeiros angariados e acumulados, ou seja, aos fundos diretos
(que há em suas próprias contas) ou indiretos (que são capazes de levantar em
bancos, financiadores ou outras instituições).
Legitimado em um primeiro momento pelo elenco com bom (ou grande) capital
simbólico no campo cinematográfico sul-coreano e depois pelos vários prêmios
e recordes quebrados local e internacionalmente, Train to Busan é um exemplo
de produção fruto do sistema de produção de blockbusters — que também
podemos chamar de star system — e ao mesmo tempo em que critica aspectos
da sociedade sul-coreana, apresenta problemas globais e põe em questão a
reflexão sobre a forma como as sociedades estão vivendo.
Referências
Ms. Vitória Ferreira Doretto é doutoranda em Estudos de Literatura pela
Universidade Federal de São Carlos e cocuradora da Curadoria de Estudos
Coreanos da CEÁSIA/CEA/UFPE. E-mail: vitoriaferreirad23@gmail.com
BOURDIEU, Pierre. “Uma revolução conservadora da edição” in Política &
Sociedade, vol. 17, n. 39, 2018, p. 198-249. Disponível em:
https://doi.org/10.5007/2175-7984.2017v17n39p198
COHEN, Jeffrey Jerome. A Cultura dos Monstros: Sete Teses. In: SILVA,
Tomaz Tadeu da (org.). Pedagogia dos Monstros. Belo Horizonte: Autêntica,
2000.
CORSO, Mário. A invasão zumbi: Zumbi, você ainda vai ser um... na melhor
das hipóteses. Psicanálise na vida cotidiana, 2013. Disponível em:
www.marioedianacorso.com/a-invasao-zumbi.
HU, Elise. S. “Korea's Hit Zombie Film Is Also A Searing Critique Of Korean
Society” in Parallels - Many stories, one world, NPR, 2016. Disponível em:
www.npr.org/sections/parallels/2016/09/01/492185811/s-koreas-hit-zombie-filmis-also-searing-critique-of-korean-society
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IMDb.
Invasão
Zumbi.
Awards,
www.imdb.com/title/tt5700672/awards
2021.
Disponível
em:
PRATT, Mary Louise. “Globalización, desmodernización y el retorno de los
monstruos” in Revista de História, vol. 156, 2007, p. 13-29.
TEIXEIRA, Marcus do Rio. “Por que será que gostamos tanto dos filmes de
zumbis?” in Cogito, vol. 14, 2013, p. 12-15. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151994792013000100003&lng=pt&nrm=iso
THOMPSON, John B. Mercadores de cultura: O mercado editorial no século
XXI. Tradução de Alzira Vieira Allegro. São Paulo: Editora Unesp, 2013.
TRAIN TO BUSAN. Direção de Yeon Sang-ho. 1h58min. Coreia do Sul, 2016.
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