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ESTUDOS CHINESES

2024

ESTUDOS CHINESES André Bueno [org.] Reitora Gulnar Azevedo e Silva Vice-reitor Bruno Rêgo Deusdará Rodrigues Produção Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo, Proj. Extens. UERJ Reg. 6876, coordenado pelo Prof. André Bueno [Dept. História] Conselho Editorial Bony Schachter ● Edgard Leite ● Emiliano Unzer ● Gerald Cipriani ● Giorgio Sinedino ● Jana Rosker ● Julio Gralha ● Lia R. de La Veja ● Paulo André Leira Parente ● Qiao Jianzhen (Ana Qiao) ● Xulio Rios Rede www.orientalismo.net Seção Brasil https://aladaainternacional.com/aladaabrasil/ Ficha Catalográfica Bueno, André [organizador] Oriente 24: Estudos Chineses. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/UERJ, 2024. ISBN: 978-65-01-27029-6 Estudos Asiáticos; Orientalismo; China; Sinologia Apresentação Oriente 24 é a nova coleção de livros dedicada aos estudos orientais no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 8º Simpósio internacional de Estudos Orientais, organizado pelo Projeto Orientalismo da UERJ, Oriente 24 é formada de maneira interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis, procurando compreender suas características originais e sua recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse sentido, a coleção Oriente 24 é formada por uma série de volumes que compreendem cada uma dessas dimensões espaçogeográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos, que tentam apreender a variedade das expressões das culturas asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja bem-vindo a nossa coleção! Volumes de Oriente 24:         Orientalismos: Pensamento e Literatura Orientalismos: Mídias e Arte Orientalismos e Brasil Estudos sobre Próximo Oriente Estudos Chineses Estudos Japoneses Estudos Coreanos Estudos Asioindianos SUMÁRIO PODE UM HISTORIADOR PREVER O FUTURO? UMA LEITURA SOBRE A VIDÊNCIA EM SIMA QIAN André Bueno 9 “A RAINHA CRUEL E AMANTE DO PRAZER”: UMA ANÁLISE DOS CONTRASTES ENTRE AS REPRESENTAÇÕES DA IMPERATRIZ WU ZETIAN E O FESTIVAL DAS FILHAS DE GUANGYUAN Elisa Alves Silva Ruiz e Maria Eduarda Siqueira Leite 15 A QUEDA DA ÚLTIMA UTOPIA: IMAGINAÇÕES DE FUTURO E TECNOLOGIA NO ROMANCE VAGABONDS (2016) DE HAO JINGFANG Giovana do Nascimento Bruno 22 MULHERES DE CONFORTO CHINESAS: SILENCIAMENTOS, VOZES E RESISTÊNCIAS DE CORPOS SUBALTERNOS (1931-1945) Isabella Padula 29 DE UM IMPÉRIO A OUTRO: AS FUGAS DE CATIVOS DE MACAU PARA A CHINA CONTINENTAL [1720-1722] Luis Fernando Masiero 37 LÓNG [龙]: UM EFÊMERO PASSEIO PELA FIGURA DO DRAGÃO CHINÊS Renata Ary 44 IMAGEM E HISTÓRIA: UMA ANÁLISE SOBRE A IMAGEM DE MAO E A REVOLUÇÃO CULTURAL Robson Lins Souza Damasio de Oliveira 50 8 PODE UM HISTORIADOR PREVER O FUTURO? UMA LEITURA SOBRE A VIDÊNCIA EM SIMA QIAN André Bueno No Shiji de Sima Qian, há uma passagem que adoro citar. É retirada da biografia de Zhang Liang [Shiji, 55], um dos grandes heróis que lutou contra Qinshi Huangdi e ajudou a fundar a dinastia Han. Ela nos conta que Zhang era um espécie de ‘predestinado’ a ajudar na elevação de Liu Bang [primeiro imperador de Han] ao poder, e a revelação de seu potencial se dá em um encontro de contornos místicos, que reproduzo nessa longa passagem adaptada: “Um jovem nobre decadente, chamado Zhang Liang, andava perdido pela China, pensando num meio de acabar com o imperador Qinshi Huangdi. Ele já havia realizado uma tentativa anterior, inteiramente fracassada, e estava totalmente desolado. Qinshi parecia ser inexpugnável, e nada indicava que a situação pudesse mudar. Foi então que, num belo dia, depois de muito vagar, Zhang Liang foi atravessar uma ponte, e deparou-se com um velho, que havia deixado cair seu sapato no rio. Zhang, educadamente, prontificou-se a buscálo. Quando trouxe o sapato, o velho chutou-o pra longe e pediu novamente Zhang para pegar. Zhang ficou irritado, mas controlou-se e foi atrás do sapato de novo. Quando o trouxe, o velho simplesmente fez voar o calçado para ainda mais longe, e insistiu que Zhang fosse atrás do dito. Numa história normal, Zhang, ou qualquer outra pessoa, achariam que aquele senhor estava fazendo uma brincadeira de mau gosto ou debochando de sua cara. Mas, como Zhang era um predestinado, de características especiais – e contra a lógica usual destas situações – ele foi atrás do sapato do velhinho, pegou-o e o trouxe de volta. Ele estava de cabeça quente, mas controlado; foi o que permitiu que ele reparasse que o velho estava com uma aura estranha de autoridade, um brilho incomum, e de pronto modificou sua atitude. O ancião agradeceu a gentileza, e disse a Zhang que ele era uma pessoa especial. Pediu que dali a cinco dias o encontrasse num lugar convencionado, para dar-lhe um presente. Zhang ficou atiçado e curioso, e foi ao encontro do senhor dias depois. Quando lá chegou, o velho o esperava e gritou com ele: “Porque se atrasou tanto? Você é um grosseiro mal educado. Deixou um velho esperando! Volte daqui a cinco dias!” Zhang quase saiu do esquadro de novo, mas segurou-se. Voltou cinco dias depois, bem mais cedo do que antes, e encontrou o velho lá apenas para 9 ganhar outra bronca e ouvir: “volte daqui a cinco dias!”. Devem ser nestes momentos que os heróis mostram sua obstinação. Talvez por curiosidade, ou por que não tinha nada melhor, Zhang decidiu fazer diferente. Foi quase um dia antes no lugar marcado e ficou esperando. O velho chegou, sorriu-lhe e disse: “paciência e disciplina, agora sim. Este é o caminho”. Deu-lhe um livro e continuou: “Você será o mestre do novo imperador daqui a dez anos. Daqui a treze anos, nos encontraremos de novo perto da margem norte do rio Chi. No pé do monte Guqian haverá uma pedra amarela: serei eu”, e desapareceu. Ele nunca mais foi visto. Quando terminou este encontro estranhíssimo, Zhang Liang olhou o livro que havia ganhado, e percebeu que se tratava de um tratado militar desconhecido. O livro parecia ser simples, e aparentemente combinava os textos de Taigong com os de Sunzi e de outros autores. Ele dividia-se em três partes apenas: as estratégias superiores, medianas e inferiores. Por causa disso, ele acabaria sendo chamado de ‘As três estratégias’, e para evitar confusões, a tradição chinesa o salvou como As três estratégias do duque da pedra amarela” [Bueno, 2011: 111-113]. No melhor estilo Ariano Suassuna - “não sei como foi, só sei que foi assim” Sima Qian nos conta toda essa história sem enfatizar qualquer crença especial em sua veracidade. Como historiador, ele reproduzia uma narrativa conhecida; afinal, Zhang foi um personagem real, e se não foi ele a difundir essa lorota, não fez nada para desmenti-la. Mas ao mesmo tempo, Sima precisava defender – até certo ponto – que os especialistas no passado conseguiam, de alguma maneira, explicar o presente e determinar o futuro por meio do seu conhecimento. Isso implicava dizer que os historiadores tinham que lidar com a ideia de que algumas pessoas eram especiais, dotadas de uma tendência, propensão ou destino que lhes garantiria um papel especial na história. Ao mesmo tempo, os especialistas em história deveriam saber ler essas tendências e inferir o desfecho de certos acontecimentos. Não é preciso muito para entender que sustentar essa ideia sempre foi um problema. Como explicar, por exemplo, que Qinshi Huangdi era uma pessoa especial, se seu governo foi marcado pela crueldade? E como ainda explicar que a natureza [Tian, o Céu] o entronizou? Do mesmo modo, Liu Bang, o futuro fundador de Han, se destacava por qualidades bastante peculiares. Ele olhava torto, era displicente com a aparência, andava mal ajambrado, mas tinha uma barba bonita, nariz a testa grande, e setenta e duas verrugas na perna. Dava esmolas e tinha a mente aberta. Quando ia pra taverna, ela enchia de gente, todos ficavam felizes e pararam de cobrar fiado dele. Depois que casou, durante um ano inteiro, todos os dias, ele procurava sua esposa, e a fazia ter orgasmos antes de sair pra beber. Essas eram algumas de suas qualidades notáveis. Sim, isso tudo está na biografia de Liu Bang [Shiji, 8] descrita por Sima Qian. Seguem-se uma série de sinais auspiciosos como voos de dragão, emanações de energia, entre outras coisas fantásticas. Como inferir que Liu Bang era um predestinado, senão por sinais celestes misteriosos, que só seriam compreendidos depois? Obviamente, isso é a reprodução de uma narrativa do passado. Contudo, como dissemos, os historiadores chineses antigos tinham que opinar sobre as 10 tendências do mundo, sobre os acontecimentos e as questões de governança. Ainda que essas descrições fossem esvaziadas de uma carga de realidade [algo como ‘acredite se quiser’], por outro lado, elas serviam de escopo para comprovar a autoridade daqueles que alcançaram o poder [quer dizer, às vezes seria preciso acreditar nelas...]. Zhang Huawei [2017], em um instigante ensaio sobre a visão de destino em Sima Qian, mostra como esse conceito tornou-se objeto de uma complexa discussão acerca do papel previdente do historiador. Em retrospectiva, a ideia de ‘destino’ [Tianming 天命, empregada aqui de forma sinonímica com a nomeação imperial cosmoecológica dos soberanos chineses antigos] foi eventualmente usada para justificar as impressões do passado, bem como de seus personagens. Isso poderia significar que haveria algum tipo de justiça deontológica, uma ordenação natural das coisas ou ainda, uma fundamentação moral para a existência de uma trajetória de vida previamente definida. Os chineses, no entanto, sempre buscaram escapar de uma visão pré-fixada das coisas. Existiam três razões para supor isso: A primeira estava fundamentada no ciclo da mutação, apresentada no Yijing [o Tratado das Mutações], o primeiro livro de ciências da história chinesa. O Yijing explicava simbolicamente o ciclo perene da natureza e suas tendências, e por essa razão, tornou-se também [no imaginário chinês] um oráculo capaz de predizer, sugerir ou aconselhar sobre o desfecho das coisas. Mas - e justamente por isso - os chineses acreditavam que se o livro podia oferecer explicações sobre o curso de determinados acontecimentos, então, eles não seriam fatais, e consequentemente, poderiam ser modificados. A predição do Yijing indicava se algo era favorável ou não; então, o consulente poderia mudar de opinião e investir em uma atitude ou conduta diferente, alterando o curso da situação. De forma paradigmática o Yijing, portanto, tornou-se o primeiro oráculo do mundo que apenas aconselhava, mas que também deixava claro que o desfecho do futuro cabia ao indivíduo [Bueno, 2015]. Veremos que isso será crucial na interpretação de Sima Qian. O segundo aspecto é a genealogia da cultura, proposta por Confúcio desde o Lunyu [Diálogos]. Em uma de suas passagens, ele afirma que ‘Shang sucedeu Xia, assim como Zhou sucedeu Shang. Sabemos o que se perdeu e o que foi acrescido. Quem suceder Zhou fará o mesmo, já sabemos como será’. A partir desse ponto de vista, o movimento de sucessão das coisas na mutação seria gerido por regras éticas e históricas, ligadas a reprodução e transformação da cultura. Visto assim, haveria algo que se preserva [essencial] e o que se transforma diante das necessidades do tempo [Bueno, 2011b]. É aqui que Sima Qian insere um terceiro elemento, a razão ecológica. Em sua visão, os movimentos sociais e políticos acompanhavam a ciclo da mutação em suas variações e movimentos naturais - como anteriormente apregoado pelo Yijing e por Confúcio - mas reinterpretado pela teoria dos cinco elementos, associação essa defendida por seu mestre Dong Zhongshu. Assim, ‘Xia foi madeira; Shang foi metal; Zhou foi fogo; Qin foi água; Han é terra’. As 11 transformações do mundo seguiriam o movimento Wuxing, e por conseguinte, poderiam ser previstas em escala macrocósmica. Isso atendia ao seu propósito de ‘estudar a relação entre o céu e o homem, e compreender as mudanças nos tempos antigos e modernos’ [Shiji 130]. Assim, os movimentos da natureza - e de forma correlata, da humanidade - poderiam ser previstos e determinados em suas tendências fundamentais. A articulação desses elementos na formulação de uma teoria de presciência revela o quão problemática era a tarefa de Sima Qian. A redação do Shiji estava envolta em compromissos políticos e ideológicos, com os quais ele teve que lidar amargamente ao longo da vida. Embora estivesse claro que sua proposta era valorizar a trajetória histórica de sua civilização, Sima era obrigado também a lidar com as tensões da escrita que envolvia as disputas de poder e as vaidades da corte [Jiang, 2018]. Nesse sentido, é possível que os personagens notáveis do passado possam ter sido moldados, na escrita das narrativas, para serem figuras prescientes; mas admitir isso significava, igualmente, reconhecer a possibilidade da previsão histórica no presente. Isso deslizava para outro problema: a relação entre os tempos antigos e hodiernos. Li Bo [2014] analisa como Sima Qian estava plenamente ciente de que era um autor do presente falando sobre o passado, e reinterpretando-o dentro das possibilidades das fontes e das orientações ideológicas de sua época. Segundo Li, Sima fazia história do tempo presente, mas desejava entender e reconstruir as camadas da civilização chinesa em uma genealogia, fundando sua cultura no passado. Neste sentido, a presciência seria uma faculdade inviável de ser realizada, já que só poderia ser inferida a posteriori. Após listar uma série de exemplos pinçados do Shiji, Zhang Huawei, afirma que ‘Resumindo, os pensamentos de Sima Qian sobre o destino incluem tanto a sua crença no destino como as suas dúvidas sobre a justiça do destino. Sima Qian duvidou da justiça do destino, mas não negou a sua existência. Quanto aos acontecimentos que podem ser explicados pela ação pessoal, Sima Qian também atribuiu grande importância ao papel do pessoal e opôs-se a confundir destino com pessoal. Estes estão de acordo com a intenção criativa de Sima Qian de "estudar a relação entre o céu e o homem" sob diferentes aspectos e refletem a sua crença no destino’. Essa conclusão aponta opiniões, mas parece ficar em cima do muro. Ou seja; Sima Qian não deixara de acreditar que poderia haver predestinados ou prescientes; e por tabela, não desejava abrir mão da faculdade de poder ‘inferir o futuro’ por meio dos estudos eruditos, mas precisava lidar com os perigos de errar as predições e conselhos. Melhor seria deixar isso nas mãos dos oráculos; mas esses mesmos oráculos, assim como as pessoas, podiam mudar de opinião! Uma leitura que pode nos ajudar a compreender as intrincadas reflexões sobre esse problema é o seminal texto de François Jullien sobre ‘situação e tendência na história’ [Jullien, 2017]. Na interpretação de Jullien – alicerçada por comentaristas chineses – a questão central é como a situação ou contexto de uma narrativa são determinadas por suas ‘tendências’, ou seja, pelas forças 12 que atuam para o andamento do episódio em questão. Isso significa que a predição sobre um acontecimento pode ser aferida, em um complexo jogo de espelhos teóricos, a partir de ressignificação de um evento histórico, de acordo com alguma das grades de leitura filosóficas defendidas pelo historiador. Posto de outro modo: um confucionista pode defender que um dado episódio foi bem sucedido pela presença de agentes morais que conduziram as coisas á um desfecho adequado – e nesse caso, a presciência invoca o uso da tradição como guia para afastar-se dos erros. Já um legalista poderia arguir que o mesmo episódio não teria sido bem sucedido, já que uma decisão calcada no passado pode simplesmente não ser adequada para os dias de hoje. Teremos um então uma infindável diatribe de exemplos e contraexemplos que irão colocar em julgamento se alguém era predestinado ou não, e se o historiador foi capaz de perceber isso ou não. A história, assim, não é conclusiva. Talvez por isso Sima Qian tomasse cuidado em defender a vidência histórica como uma condição sine qua nomen do historiador. Perturbados constantemente pelas ingerências de figuras do poder, e agenciados com fundos imperiais, os historiadores chineses viviam na delicada corda bamba entre falar a verdade, aconselhar com juízo, e correr o risco de perderem suas cabeças se não atendessem as vontades de seus financiadores. Visto assim, a escolha de personagens especiais do passado poderia ser tão arbitrária [e seus atributos tão fantasiosos] quanto às inferências sobre o futuro poderiam ser carregadas de erros estratégicos quando o historiador estava cerceado de sua liberdade de pensamento. Esse conflito iria fazer com que uma rica tradição de histórias privadas [ou, histórias alternativas aos discursos estabelecidos pela agência imperial] surgisse, provendo a China de uma valiosíssima e diversa tradição historiográfica [Richter, 1987; Beja,1997]. Quanto aos historiadores chineses, esses aprenderiam a duras penas [depois de observarem a indigna condenação de Sima Qian] que se eles podiam prever algo, deviam primeiro observar a própria sorte, antes de emitirem juízos sobre o passado, o presente e inferir algo sobre o futuro. Referências André Bueno é Prof. Ass. História Oriental da UERJ. Os textos do Lunyu e Shiji foram retirados do livro Textos da China Antiga. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2023. Essas fontes estão disponíveis em: https://chines-classico.blogspot.com/p/biblioteca-textos-da-chinaantiga.html Beja, Flora B. 'El precio de la rectitud. El intelectual como crítico en la China tradicional' in Los intelectuales y el poder en China / Taciana Fisac (comp.), Madrid: Trotta, 1997: 27-44. Bueno, André. A arte da guerra chinesa. Projeto Orientalismo, 2011a:111-113. 13 Bueno, André. 'Não invento, apenas transmito': Re-interpretando a escrita historiográfica de Confúcio. In: X Semana de História Política da UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, 2015. v. 1. p. 251-261. Bueno, André. 'O tempo das dinastias' in Ensaios de Oito Partes. Projeto Orientalismo, 2011b:23-25. Jiang Tianyue 姜天越. 《司马迁政治思想探究》. 神州·中旬刊, n.12, 2018. Jullien, François. A propensão das coisas: por uma história da eficácia na China. São Paulo: UNESP, 2017: 223-281. Li Bo李波. 《司马迁的古今观》. 渭南师范学院学报n.6, 2014. Richter, Ursula. 'La tradition de l'antitraditionalisme dans l'historiographie chinoise'. In: Extrême-Orient, Extrême-Occident, 1987, n°9. La référence à l'histoire. pp. 55-89. Zhang Huawei张华伟. 《浅议司马迁的天命观》. 青年文学家 n.9, 2017. 14 “A RAINHA CRUEL E AMANTE DO PRAZER”: UMA ANÁLISE DOS CONTRASTES ENTRE AS REPRESENTAÇÕES DA IMPERATRIZ WU ZETIAN E O FESTIVAL DAS FILHAS DE GUANGYUAN Elisa Alves Silva Ruiz e Maria Eduarda Siqueira Leite “Como alguém pode escrever sobre sua avó, especialmente se ela era uma prostituta?” é o questionamento que abre a obra Lady Wu, de autoria do escritor chinês Lín Yǔtáng 林語堂 [1965, p. 15]. Apesar de datar do século XX, a obra se propõe a ser um reconto ficcional da história de Wǔ Zétiān 武則天, a primeira e única imperatriz a comandar a China sozinha, a partir do ponto de vista de um de seus netos. Embora a imperatriz tenha estado em uma posição de destaque na política, o que comumente se encontra em representações literárias — como a de Yǔtáng, que a descreveu na sinopse como “a rainha cruel e amante do prazer” — , audiovisuais e históricas acerca de sua figura são descrições que a colocam como uma prostituta sem escrúpulos para ascender ao poder, uma governante escandalosa e depravada, sempre enfatizando sua vida sexual e seu emprego da violência. Nascida em 624 na província de Lìzhōu 利州区, a imperatriz vinha de uma família com conexões importantes dentro da dinastia Táng 唐, que liderava a China na época. Assim, aos treze anos, uma jovem Wǔ Zétiān adentrava o palácio na posição de concubina do imperador Tàizōng 太宗. Sua primeira estadia na corte não teve uma longa duração: aos vinte e cinco anos, após a morte de Tàizōng, Wǔ foi enviada para um monastério, como ditava a tradição da dinastia, tornando-se uma monja budista. Segundo Woo [2008, p. 44], enquanto as concubinas de um imperador morto que tivessem dado à luz filhos podiam permanecer em seus aposentos, as que não o fizessem deveriam ser enviadas para um convento, como foi o caso de Wǔ Zétiān. Contudo, sua boa reputação pelo palácio, que se devia ao fato de que Wǔ repassava informações sobre as demais concubinas para o imperador, a colocou sob o olhar afetuoso do filho deste, Gāozōng 高宗, que frequentemente ia ao monastério para visitála após a morte do pai. Em meio a tal relação, a imperatriz Wáng 王 viu em Wǔ Zétiān a possibilidade de retirar a atenção do marido de uma das concubinas que se apresentava como ameaça para ela, Xiāo 蕭. 15 Foram tais fatos que a levaram de volta ao palácio quatro anos depois, desta vez como concubina do agora imperador Gāozōng e mãe de seu filho, gerado quando Wǔ ainda estava afastada de sua posição. Cada vez mais segura de seu lugar dentro da corte Táng, Wǔ deu à luz outros filhos do imperador e viu o apreço por si crescer enormemente, de maneira que ele a nomeou sua imperatriz. Aqui, inicia-se a trajetória no poder de uma mulher que escandalizou o imaginário popular e a própria historiografia ao subverter normas tão fixas em tempos anteriores. Em 660, a saúde do imperador Gāozōng encontrava-se em frangalhos, principalmente após este contrair malária. A imperatriz Wǔ Zétiān foi inserida, então, nas discussões e decisões de governo a fim de ajudar o marido. Com a piora de Gāozōng, a situação de governo se tornou insustentável ao ponto deste desejar abdicar e deixar o trono para a esposa [Woo, 2008, p. 79]. Foi em 683 que o imperador se despediu, nomeando Wǔ como regente de seu filho, Zhōngzōng 中宗. Entretanto, seis semanas depois, quando as primeiras faíscas de discórdia entre a Imperatriz Viúva e Zhōngzōng apareceram, Wǔ o depôs e colocou outro de seus filhos, Ruìzōng 睿宗, no trono [Hinsch, 2020, p. 50]. Atuando novamente como regente, a imperatriz fez questão de governar no lugar do filho, deixando-o no pano de fundo do império. Assim, em 690, a viúva se autoproclamou como Shèngshén Huángdì 聖神皇帝, o “Santo e Divino Imperador” de uma nova dinastia, nomeada Zhōu 周 [Ferla, 2021, p. 114]. Finalmente, Wǔ Zétiān deixava de ser uma substituta para imperadores fragilizados e tomava o controle do império que ajudou a desenvolver durante seus anos ao lado do marido e dos filhos. Cabe frisar que Wǔ possuía plena capacidade de comandar o império: se o obstáculo para tal fosse a diferença na educação de homens e mulheres, a imperatriz já havia tido contato com um “currículo estereotipicamente masculino de trabalhos sérios dirigidos a homens ambiciosos” antes mesmo de tornar-se concubina de Tàizōng, o que fez com que ela “demonstrasse familiaridade sem esforço com história, religião e ideologia política” [Hinsch, 2020. p. 48]. Caso restassem dúvidas de sua competência, Wǔ Zétiān as desmantelou na implementação de políticas inovadoras que perduraram após seu reinado [Hinsch, 2020, p. 48]. Wǔ Zétiān foi uma imperatriz de grande nível, sabendo não só governar e tomar decisões para seu império com destreza e prudência, como também sendo uma jogadora astuta no xadrez político que a enredava, utilizando-se da ênfase na ideologia e religião para legitimar-se em face do constante perigo de adversários que não a viam como digna do trono, principalmente por ser mulher. Todavia, isso não foi suficiente para impedir que sua imagem fosse violada através dos séculos. Inteligente, ambiciosa e astuta — não é essa a imperatriz 16 que chegou até o grande público. Por muitos anos, Wǔ Zétiān teve sua imagem esboçada de diversas maneiras, e nenhuma delas era exatamente favorável. Em primeiro lugar, o que se destaca na figura de Wǔ para a grande maioria das produções acerca desta é o elemento sexual, uma vez que sua entrada no palácio se deu por meio do concubinato. Sob tal ótica, vista na obra citada nos parágrafos iniciais, Wǔ utiliza-se de sua beleza e da prostituição para ascender ao poder, mas também se afasta de todas as virtudes esperadas de uma mulher na época ao manter concubinos como imperatriz. Para Song [2010], “no mercado cultural contemporâneo em que o sexo vende, a sexualidade e as atividades sexuais de Wǔ Zétiān são totalmente exploradas por biógrafos homens que atendem a tal mercado” [p. 373]. Junto a isso, observa-se uma tendência de pintar a imperatriz como cruel e violenta de uma maneira que beira a insanidade. Obviamente, estamos cientes da violência e dos ardis empregados por Wǔ não só durante seu reinado, mas ainda como consorte de Gāozōng. Contudo, gostaríamos de notar o fato de que por muitas vezes Wǔ Zétiān cometeu as mesmas espécies de atrocidades que seus colegas homens para sobreviver em um cenário que não lhe era nada amigável como mulher ou governante, e nem por isso estes deixaram de ser eternizados como grandes e sagazes sujeitos. Mas a julgar por algumas das produções mais famosas acerca de tal figura, como Lady Wu de Yǔtáng ou Wu Zetian [2000] de Yeling Yiren, não há perdão para a memória da imperatriz, cravada na história como demoníaca e cruel. Após o governo de Wǔ, também foi feito de tudo para apagar sua história. Isso se inicia logo depois de sua morte, pois quando seu filho Zhōngzōng se tornou imperador, ela foi enterrada ao lado do marido como uma mera esposa, sem receber o sepultamento dedicado aos imperadores [Hinsch, p. 51, 2020]. Outro exemplo de seu apagamento é como a dinastia Sòng 宋 [960 - 1279] não a reconheceu como uma líder legítima, e fez de tudo para impedir que outras mulheres ascendessem ao poder como ela. Nesse período, os chineses passaram a chamar apenas mulheres de classes mais baixas para cumprir o papel de imperatriz, receosos de que se fossem de elites poderiam fazer o mesmo que Wǔ. Na própria dinastia Táng, as mulheres também perderam algumas liberdades alcançadas anteriormente e qualquer sinal de ambição nas mulheres passou a ser condenado intensamente e retratado de forma negativa. Atualmente, existe apenas um templo dedicado a Wǔ em toda a China, em Guǎngyuán 廣元. Veremos agora como essa cidade foi na contramão da narrativa oficial e conta a história da imperatriz de uma maneira diferente. O Festival das Filhas e a valorização feminina em Guǎngyuán A cidade de Guǎngyuán conta com quatro condados e três distritos e com uma população de 2,3 milhões de habitantes. É também o local de nascimento de Wǔ Zétiān, anteriormente chamado de Lìzhōu, onde em todo primeiro de 17 setembro é celebrado o “Dia da Imperatriz”, também chamado de “Festival das Filhas”, ponto central de nossa análise. O festival vem de uma tradição da dinastia Táng, que consistia em mulheres dançando no rio no dia 23 do primeiro mês lunar. A cerimônia ficou perdida por muitos anos, sendo retornada pelo governo de Guǎngyuán em 1988. As maiores fontes que temos sobre ele vem da TopBrand Union [Beijing] Consulting Company, a qual é uma empresa de marketing, ou seja, as descrições das atividades são por vezes tendenciosas, por serem muito exageradas, já que a sua intenção é trazer mais turistas a cidade. Contudo, ainda podemos retirar informações de como o evento ocorre dessa fonte. Outra questão que chama atenção é a condição de destaque da mulher no festival, uma vez que apesar desta nem sempre ser tão positiva na China quanto a propaganda estabelece, a participação feminina é muito relevante neste evento. Sobre o Nǚ'ér Jié 女儿節, “Festival das Filhas”, é importante destacar que ele tem a função de valorizar a herança da Wǔ Zétiān na cidade e sua importância como imperatriz. Sendo assim, teve seu início no ano de 2023 no templo Huángzé 皇泽, o único dedicado a ela e que contém uma escultura em sua homenagem. Nesse momento, podemos observar a junção do presente com o passado na intenção de honrar tanto a história de Wǔ, como também recontar o presente da China, o que será discutido no próximo ponto. Uma parte interessante do festival é o protagonismo feminino, pois nele são as mulheres que conduzem. O evento recebe esse nome para homenagear as “filhas de Guǎngyuán”. O espetáculo é repleto de danças e músicas tradicionais do período Táng, além de contar com a clássica corrida de barcos, na qual somente as mulheres são permitidas a competir. A corrida recebe o nome de “Corrida de barcos da Fênix”, estando ligada a esse animal mitológico, do chinês fènghuáng 鳳凰, que é representado atualmente como feminino e está atrelado à ideia de graça e virtude, demonstrando quais são as características valorizadas nas mulheres. Ao longo do dia a rua é infestada com carros alegóricos que valorizam a cultura e história dos condados e distritos, como por exemplo, uma apresentação musical com gongo e tambor, tradição iniciada no condado de Qīngchuān 青川. A dinastia Táng é relembrada ao longo de todo a comemoração, contando com um flashmob no qual se dançam músicas tradicionais daquele período. Uma característica que o festival quer destacar é a mistura entre o passado e presente, fechando a noite com uma apresentação tecnológica de drones. No ano de 2023, o título desta foi “Cidade natal da imperatriz”. Wǔ Zétiān, como a atração principal, abriu e fechou o evento, como no ano de 2024, com um barco a representando. 18 A intencionalidade narrativa do Festival das Filhas De modo geral, a festividade conta com músicas, apresentações e venda de comidas tradicionais. O turismo também foi muito ampliado desde sua criação, com milhares de pessoas viajando para ver o Festival das Filhas ao longo dos seus 36 anos de existência. Contudo, o que chama atenção na cerimônia é mais do apenas a questão turística, saltando à luz o âmbito da memória chinesa. Para compreender a relação do evento com esta, necessitamos explorar o contexto de criação do “Dia da Imperatriz” a partir de um apanhado geral da historiografia recente da China. Após a revolução de 1949, parte do governo de Mao Zedong se apoiou na ideia de que o país estava renascendo, dessa vez baseado na causa de um povo unificado que não iria mais tolerar injustiças [Denton, 2014, p. 31]. Portanto, para que essa concepção prosperasse, era preciso que a China se distanciasse de todo seu passado, incluindo o imperial. Com a morte de Mao, Dèng Xiǎopíng ascendeu ao poder, instaurando diversas mudanças. Houve uma grande abertura ao comércio exterior, e essas reformas foram chamadas de “socialismo com algumas características chinesas” [MacFarquhar, 1987, p. 38]. Por meio dessa abertura, surge um nacionalismo que busca entender o local da China no mundo. Para Denton [2014, p. 22], esse local se funda nas memórias do passado dinástico e da filosofia confucionista. Desse modo, os historiadores do Partido Comunista da China [PCC] se preocupam em recuperar o passado das mais diversas formas, por exemplo, na arqueologia e na criação de museus, a fim de inspirar o paralelismo entre a grandiosidade imperial e a que estaria sendo recobrada. Então, podemos questionar se não há uma dose de intencionalidade narrativa na retomada da tradição relacionada ao Festival das Filhas, um evento que busca homenagear a única imperatriz que a China já teve, justamente no ano de 1988, em meio a um arranjo histórico e político que necessitava firmar-se no passado imperial do país. Isto posto, notamos que, para além de gerar um evento grande que movimenta o comércio da região de Guǎngyuán, o festival tem a função de sustentar a narrativa que valoriza um período dado como grandioso pelos novos historiadores do país. Dessa forma, a figura de Wǔ Zétiān e o próprio festival tornam-se ferramentas narrativas e discursais, corroborando a nova lógica historiográfica que se instaurava e revivendo a chama da memória dinástica da China. Novas interpretações sobre a memória da imperatriz Portanto, o evento surge como uma estratégia de aumentar o turismo na região como também de recuperar positivamente o passado imperial após seu apagamento [Denton, 2014, p. 31]. Apesar da evidência de tal questão, gostaríamos de destacar que, ao confrontar essa fonte com outras citadas, como Lady Wu, percebemos que é possível retratar a imagem de Wǔ Zétiān em uma luz favorável, lembrando de sua história através de seus feitos positivos e evitando a demonização e a sexualização em excesso da imperatriz. Também notamos que embora grande parte de suas 19 representações sejam atravessadas por um caráter negativo, algo que inclina a população chinesa a odiá-la, a própria existência do Nǚ'ér Jié, o Festival das Filhas, é um indício de que sua memória sobrevive de outras maneiras na atualidade. Recentemente, tanto na literatura — por meio de obras como Impératrice [2003], de Shan Sa, que se propõe a contar a história de Wǔ a partir do ponto de vista da própria imperatriz, e Viúva de Ferro [2021] de Xiran Jay Zhao, uma distopia inspirada pela trajetória de Wǔ com toques de ficção científica — como na pesquisa historiográfica, a exemplo dos trabalhos de Song [2010] e Ferla [2021], observamos uma tendência de reformular as narrativas acerca dessa figura tão singular na história chinesa. Assim, esperamos que a partir deste movimento de produções sob uma nova ótica, o imaginário popular acerca de Wǔ Zétiān apresente um caráter mais humanizado, sem os tons de misoginia e sensacionalismo observados anteriormente. Referências Elisa Ruiz [elisaa.ruiz12@gmail.com] é graduanda em História pela UFPR e bolsista do Programa de Educação Tutorial [PET História UFPR]. Maria Eduarda Siqueira Leite [mariaesleite@gmail.com] é graduanda em História pela UFPR e bolsista do Programa de Educação Tutorial [PET História UFPR]. Realiza pesquisa de iniciação científica na área de Estudos de Gênero e História Antiga. Fontes Happier than Spring Festival - 2023 China [Guangyuan] Daughter's Festival is coming, 2023. Disponível em: https://today.line.me/hk/v2/article/j7rrEw3 Sichuan Guangyuan Daughter's Festival Shines with Excitement as Visitors from Around the World Join the Celebration, 2024. Disponível em: https://www.openpr.com/news/3642920/sichuan-guangyuan-daughter-s-festivalshines-with-excitement Bibliografia FERLA, Hannah. “From Concubine to Ruler: The Lives of Emperor Wu Zetian and Empress Dowager” in History in the Making, v. 14, 2021, p. 103-134. HINSCH, Bret. Women in Tang China. Londres: Rowman & Littlefield, 2020. DENTON, Kirk A. Exhibiting the past: historical memory and the politics of museums in postsocialist China. 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Putnam's Sons, 1965. 21 A QUEDA DA ÚLTIMA UTOPIA: IMAGINAÇÕES DE FUTURO E TECNOLOGIA NO ROMANCE VAGABONDS (2016) DE HAO JINGFANG Giovana do Nascimento Bruno Este texto medeia as perspectivas de futuro e tecnologia no cenário literáriointeletual chinês, elegendo Hao Jingfang, em hipótese ainda a ser explorada no decurso do mestrado da presente autora, de que sua trajetória acadêmica e ficcional nos permite uma observação do cenário contemporâneo na China, no que tange às percepções, que se entrelaçam, entre tempo e técnica; futuro e tecnologia. A abordagem proposta se fundamenta na ideia de "circulação cultural", que concebe a cultura como uma entidade dinâmica, na qual seus produtos são ativados pela mesma força sociocultural. Essa energia cultural, que flui através de textos gerados canônicos e de "textos menores", literários e não literários de uma determinada época, é o motor que impulsiona as complexas relações de poder nas sociedades modernas (GALLAGHER; GREENBLATT, 2001). Logo, a ênfase não está em encontrar um ponto de ancoragem externo à obra de arte para garantir uma interpretação literária, mas em situar a obra em relação a outras práticas de representação que operam na cultura em um determinado momento de sua história (GREENBLATT, 1991). Nesse sentido, é importante buscar compreender como a perspectiva de um Novo Historicismo pode ser repensada na China do século XXI. Como Andrea Riemenschnitter (2015) apontou, o desafio da compreensão das narrativas chinesas não passa tão somente pela leitura calcada no uso do instrumental teórico ocidental, mas, também, de como essa intervenção requisita entender os usos e adaptações realizadas pelos chineses em um movimento de hibridização de suas leituras canônicas em diálogo com distintas perspectivas geoculturais. Isto posto, é necessário apresentarmos brevemente autora e obra, para enfim tratarmos de hipóteses levantadas por essa pesquisa, e suas conclusões preliminares. Hao Jingfang é uma das mais bem-sucedidas escritoras chinesas da atualidade. Nasceu em 1987 na cidade de Tianjin — uma das principais metrópoles da China continental — e graduou-se em Física na Universidade Tsinghua, onde, em 2013, obteve seu doutorado em Economia. Entre 2013 e 2018, desempenhou a função de Diretora Adjunta do Departamento de 22 Pesquisa I na Fundação Chinesa para o Desenvolvimento (CDRF). Atuou como pesquisadora no Instituto Berggruen em 2019 e 2020, estudando as formas que o desenvolvimento tecnológico impacta a cognição coletiva. Sua carreira de escritora se divide e é inspirada pela sua atuação profissional: embora seus interesses se espraiem para a área de Educação e empreendimentos privados, é sua trajetória acadêmica que Han salienta ter forte influência em sua escrita (LI, 2019). Após a publicação de alguns contos em revistas especializadas, em 2014 lançou sua primeira novela, intitulada Folding Beijing. Em 2016, o livro, através da tradução de Ken Liu para o Inglês, foi laureado na categoria de Melhor Novela no Prêmio Hugo (Hugo Awards) — a mais distinta premiação do gênero de ficção-científica mundial. Hao tornou-se, então, a primeira mulher chinesa a ganhar o prêmio. Em 2016, publicou seu primeiro romance, Vagabonds, traduzido para a língua inglesa (2020), também por Ken Liu. A narrativa de Vagabonds inicia no ano de 2190 na Terra, no ano 40 em Marte; 30 anos após uma violenta guerra de independência que tornou Marte, antes colônia terráquea, em um autônomo governo comunista, que se opõe frontalmente às estruturas capitalistas da Terra. Luoying Sloan, a protagonista, é neta do cônsul marciano, Hans Sloan e, aos 13 anos, foi selecionada para integrar o Grupo Mercúrio, o qual reuniu os jovens de mais destaque de Marte para que estes passem seus anos de formação na Terra — gesto de aproximação diplomática entre os dois planetas. Acompanhando o retorno de Luoying após cinco anos na Terra, observamos o desencantamento com o que seria a utopia marciana, e suas dificuldades em conciliar os modos de vida que conheceu na Terra àqueles de Marte. Suas tentativas de promover reformas em seu planeta natal e, ao mesmo tempo, formular uma nova identidade, tornam Luoying uma figura perpetuamente à margem, errante; incapaz, por fatores endógenos e exógenos, de conciliar as distintas noções de temporalidade e individualidade que vivenciou em ambos os planetas. Tanto quanto no caso de outros/as autores não europeus, a recepção dos livros de Hao é ambivalente. Enquanto as obras de Hao são lidas como 'sinofuturistas' no ocidente (Cixin, 2006), parte da crítica chinesa localiza estes novos autores em uma “New Wave” da ficção-científica. Segundo Gabriele de Seta (2021), o primeiro uso do termo ‘sinofuturista’ se encontra no ensaio de 2003 Fei ch'ien rinse out: Sino-futurist under-currency, escrito pelo músico e teórico cultural Steve Goodman. Inspirado pelo movimento Afrofuturista, Goodman combinou referências tradicionais chinesas, sindicatos do crime organizado e redes de comércio clandestino com a popularização da cibernética e da informática, pressupondo uma turbulenta ascensão da Ásia Oriental (ibid.). No entanto, argumenta Virginia L. Conn (2021), há uma dualidade observável neste projeto. Ao passo que a narrativa sino-orientalista é reconhecida, e, em função disso, encontra recusa por parte de certos autores a dialogarem com a categoria sinofuturista, outros utilizam dessa popularidade instrumentalizando-a, com propósito de expandir a visão de mundo e projeções de futuro chinesas. 23 Xia Jia (2016), intelectual e autora de ficção, afirma que as ponderações contemporâneas de autores chineses se situam em um longo debate, acadêmico e político, sobre uma perspectiva de fracasso do comunismo e uma crise capitalista, acompanhado do processo de globalização e novas formas de sociabilidade no cotidiano chinês. Não obstante, Xia argumenta que as relações sino-ocidentais se materializam nas leituras e assimilações de arquétipos e temas comuns à ficção científica produzidos no Ocidente. Há, em sua leitura, um desejo de operar nessas fronteiras entre China e Ocidente; fronteiras entre conhecido e desconhecido, eu e outro, Oriente e Ocidente. Esta pesquisa parte do princípio de que a autora analisada, Hao Jingfang, localizase nessa “fronteira”, uma vez que a narrativa de seus livros explicita uma crítica às circunstâncias internas à sociedade chinesa, enquanto, simultaneamente, emprega leitmotive em diálogo com seu público global, especificamente em Vagabonds, após a repercussão de Folding Beijing em países como Estados Unidos e Inglaterra. A questão da temporalidade, central ao nosso problema, tem como cerne categorias interpretativas de futuro, utopia e distopia. Fátima Vieira (2010) alega que utopia tem sido definida, historicamente, a partir de quatro características: a) os elementos da sociedade imaginada; b) a forma literária na qual a imaginação utópica se cristaliza; c) a função da utopia; d) o desejo por uma vida melhor, causado por um descontentamento pela sociedade na qual se vive. Essa última característica, na percepção de Vieira, seria a mais importante, uma vez que a autora entende utopia como uma questão de atitude, uma reação a um presente indesejável e aspiração por possíveis alternativas — em concordância com Ernst Bloch, que via a esperança como principal energia da utopia. No caso da distopia, a imaginação de outras realidades se subsidia, parcialmente, em pessimismo e uma possível “irreversibilidade quanto à direção histórica” (Silva, 2016) dos aspectos mais prejudiciais da sociedade. No entanto, de acordo com Vieira (2010), as representações de futuros distópicos frequentemente são encaradas como cenários a serem prevenidos. Elas servem como um meio de conscientização das questões prementes, com o propósito de estimular melhorias nos âmbitos político e social. O gênero da ficção científica — que usualmente discute configurações utópicas e distópicas — foi introduzido a leitores chineses no início do século XX, primeiramente através de traduções de romances baseadas em traduções japonesas. O intelectual e político reformista Liang Qichao cunhou o termo kexue xiaoshu (ficção científica) pela primeira vez na história do idioma. Esta seria a primeira “era de ouro” da ficção científica chinesa, a qual durou cerca de dez anos, entre 1902 e 1911, com a produção de inúmeros romances e novelas que conjugavam temas como fantasia científica, utopias políticas e otimismo tecnológico (Song, 2015). Pode ser dito, à vista disso, que desde os fins da Dinastia Qing, a ficção científica chinesa “foi instituída principalmente como uma narrativa utópica que projetou o desejo político de reforma da China num mundo idealizado e tecnologicamente mais avançado” (ibid). Lu Xun, entretanto, ainda que principal tradutor de Júlio Verne, eventualmente optou 24 por investir em um gênero literário realista, capaz de expor os perigos do confucionismo para a sociedade. Logo, durante grande parte do século XX, a ficção científica permaneceu à margem da literatura moderna chinesa (Song, 2018). A renascença do gênero atribui-se à publicação do romance China 2185 de Liu Cixin em 1989. Desde então, para além de Liu Cixin, figuras como Han Song, Chen Qiufan, Fei Dao e Hao Jingfang têm se destacado no movimento nomeado “New Wave”. Apreende-se, portanto, que uma das características distintivas da ficção científica na China é sua estreita relação, poética e política, com os projetos de futuro do país. No contexto contemporâneo, sublinha-se que o declínio relativo da hegemonia estadunidense no âmbito geopolítico alterou as relações externas de diversos países, em especial a China, que vem tendo a oportunidade de estabelecer-se como uma grande potência emergente. Desde 2013, Xi Jinping tem adotado uma política externa proativa, e, neste mesmo ano, estabeleceu novos objetivos para a nação, que denominou de “o sonho da China” (Carriço, 2013), ligado a uma iniciativa de alterar o comportamento padrão do país; na esfera diplomática, o desígnio é expandir o sonho e o mundo chinês, pela defesa do “desenvolvimento pacífico, cooperação e benefício mútuo” (Benjamin; Pennaforte; Schierholt; 2021). Song atribui a esses empreendimentos políticoculturais um avivamento das literaturas utópicas e distópicas na China (Song, 2021). Assim, as mais recentes produções dessa “New Wave” — incluindo os livros de Hao — dialogam e, sobretudo, confrontam o “sonho da China”, propondo um debate sobre a ambiguidade de dilemas morais pertinentes a este projeto e sofisticadas representações do poder da tecnologia ou das tecnologias de poder (Song, 2018). Assim, debates concernentes à tecnologia, sejam eles literários, acadêmicos etc, se manifestam com propósitos interculturais, questionando problemáticas etnocêntricas e pensando alternativas discursivas no escopo de seus objetivos. O filósofo Yuk Hui (2020) elabora o conceito de tecnodiversidade como resposta à narrativa dominante na história e filosofia das ciências, as quais, muitas vezes, se concentram no desenvolvimento tecnológico ocidental e ignoram histórias e práticas tecnológicas de culturas não-ocidentais, desconsiderando, inclusive, o papel chinês como um centro de produção de tecnologias na era pré-republicana (Needham, 1968). A tecnodiversidade questiona, portanto, a supremacia das abordagens ocidentais, apontando para novas possibilidades que surgem do encontro entre a tecnologia e culturas anteriormente colonizadas. Isso promove um diálogo intercultural que amplia nossa compreensão da natureza multifacetada da tecnologia e suas potenciais trajetórias de desenvolvimento. O conceito é fundamental para nós uma vez que expõe as possibilidades de diferentes entendimentos de técnica, tal qual retratado no romance na relação entre natureza, ferramenta e intervenção ecológica nas sociedades de Terra e Marte. Retomando, então, ao procedimento anteriormente iniciado, chamando atenção ao artigo intitulado Interpreting Socialism and Capitalism in China: A Dialectic of Utopia and Dystopia, escrito por Roland Boer e Zhixiong Li. Em suas observações, os autores introduzem a ideia de uma dialética entre utopia e distopia, conectada 25 às tensões entre capitalismo e comunismo na China pós-socialista; em suas palavras, “a distopia pode surgir da utopia, e a própria definição de utopia requer uma presença distópica ou, pelo menos, a sua ameaça”. A utopia crítica incorporada por Hao se circumscrenve, portanto, na relação inerente entre distintas imaginações de futuro; e, particularmente em seu caso, o seu atrelamento ao desenvolvimento tecnológico observado nas últimas décadas, e suas ameaças ao ecossistema político e natural do mundo. Na perspectiva do crítico Lyu Guangzhou, Vagabonds tem seu êxito enquanto utopia crítica ao criar uma “negação da negação”, um processo infinito de transformação. Ele compara a história de Luoying à jornada de Shevek em Os Despossuídos, de Ursula K. Le Guin, e sugere que os debates entre socialismo e capitalismo, entre ordem e liberdade, são como um ciclo interminável, representado por um laço de Möbius. Essa dinâmica reflete tensões entre utopia e distopia, mas também aponta para a esperança de um futuro além do pós-socialismo, uma nova alternativa que supere os dilemas dos sistemas atuais. De acordo com Lyu, “A própria utopia, de fato, despertou a esperança por uma alternativa e por um mundo supostamente melhor para os esquerdistas na Terra. Mas é também uma utopia ambígua, aberta a desafios e reflexões. Assim, ela evoca sua própria esperança no sentido blochiano de 'ainda-não'." Referências Giovana Bruno é Mestranda em História Social da Cultura (PUC-Rio) Orientador: Prof.º Dr.º Henrique Estrada (Dept. de História-PUC-Rio) Co-orientador: Prof.º Dr.º Pedro Silveira (FFLCH-USP) Corpus Documental HAO, Jingfang. Vagabonds. Londres: Head of Zeus, 2020. Referências bibliográficas ABENSOUR, Miguel. Os dois caminhos da conversão utópica: a epoché ou a imagem dialética. In: NOVAES, Adauto (org). Mutações: o novo espírito utópico. São Paulo: Edições SESC, 2016. BENJAMIN, Henrique; PENNAFORTE, Charles; SCHIERHOLT, Kássia. A Era Xi Jinping e as várias faces do projeto geopolítico chinês no Sistema Mundo: algumas percepções. 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Naquele momento, a Manchúria possuía 90 por cento do petróleo da China, 70 por cento do seu ferro e 55 por cento do seu ouro [Paine, 2012, p.15], logo, a invasão japonesa era estrategicamente localizada. Dentro do contexto desse expansionismo imperial japonês, o termo “Mulheres de conforto” – traduzido do japonês 慰安婦 [Ianfu], ou do inglês Comfort Women – passou a ser utilizado para se referir às mulheres asiáticas, que possuíam entre 14 a 30 anos, em sua maioria, as quais foram submetidas à situação de escravidão sexual pelos membros do exército de países reconhecidamente pertencentes ao Eixo, no caso desse estudo pelos membros do exército imperial japonês. Durante os anos 1930 e 1940, o exército imperial japonês instalou “estações de conforto”, ou “estações de conforto militares” – traduzidos do japonês 慰安所 [Ianjo] e 従軍慰 安婦 [Jugun ianfu] – foram espalhados pela maioria dos países com regiões dominadas pelo Japão, como Coreia do Sul, China, Taiwan, Filipinas e outros. Ademais, muitas estações de conforto eram “móveis”, acompanhando os soldados na linha de frente. Esses lugares eram utilizados pelos soldados e pela marinha para manter as meninas e mulheres, onde pudessem visitá-las quando fosse de sua vontade e onde essas mulheres ficariam isoladas da sua comunidade. Muitas vezes, as mulheres eram levadas de seus países para servirem os soldados nas linhas de frente, por isso, diversos prédios que foram desocupados durante as expedições militares eram usados como estações e pontos de conforto [Tanaka, 2003, p. 10]. 29 Tendo este contexto em mente, o presente projeto propõe analisar os testemunhos de doze mulheres chinesas – a saber, Lei Guiying, Zhou Fenying, Zhu Qiaomei, Lu Xiuzhen, Yuan Zhulin, Tan Yuhua, Yin Yulin, Wan Aihua, Huang Youliang, Chen Yabian, Lin Yajin, e Li Lianchun – como fontes primárias. Essas mulheres foram as poucas sobreviventes que decidiram se pronunciar sobre as violências sofridas durante o período de funcionamento do Estado Fantoche japonês na região da Manchúria, na China, o Manchukuo, e durante os ataques em Xangai, conhecidos como o primeiro e segundo “Shanghai Incident”, na época um importante centro comercial da China [Paine, 2012, p. 15]. Desses ataques, muitas mulheres foram levadas para o mercado de mulheres de conforto, destinadas a servir ao exército imperial com seus corpos e sua integridade. Atitudes como essas foram justificadas na época como uma forma de evitar futuros ataques às mulheres civis, conforme a intenção do General Okamura Yasuji, Vice-Chefe do Estado-Maior do Exército Expedicionário de Xangai, ao implementar estações de conforto para a marinha japonesa em 1936 - uma ação que não tem fundamento comprovado [Tanaka, 2003, p. 10]. A presente pesquisa utilizará os testemunhos presentes na obra “Chinese Comfort Women Testimonies from Imperial Japan’s Sex Slaves”, dos pesquisadores Peipei Qiu, Su Zhiliang e Chen Lifei, e terá o livro como uma das bibliografias essenciais. Esta é uma importante obra para as pesquisas do tema, uma vez que foi o primeiro livro publicado em inglês a reunir pesquisas e relatos sobre as mulheres chinesas, especificamente, que foram submetidas à posição de “mulher de conforto”. O livro trata dos assuntos envoltos no período da dominação imperial japonesa na China e em outros países do Leste Asiático, como também dos movimentos de reparação histórica que foram fomentados por feministas coreanas, durante os anos 1990, em defesa das exmulheres de conforto. Os pesquisadores trazem na obra imagens e testemunhos, redigidos entre 1998 e 2008, de ex-mulheres de conforto como uma estratégia para destacar a gravidade do problema, que permanece sem solução. Dessa forma, ao trazer à tona esses relatos, os pesquisadores buscam enfatizar que a violação da moral e integridade dessas mulheres permanece e não foram restituídas, especialmente por um abandono pelo Estado e sociedade chineses. Entre as doze mulheres entrevistadas, a maioria delas era do meio rural e foi retirada de suas famílias forçosamente. Algumas relatam a participação, própria, de amigos e/ou familiares no Partido Comunista Chinês, o que tornava sua experiência como “mulher de conforto” ainda mais violenta – além dos abusos sexuais, eram também submetidas à tortura. Entretanto, a maioria delas não relatou interesse por política, não foi alfabetizada e em toda sua vida foi coagida a manter o silêncio sobre suas experiências – para não ser excluída de uma sociedade com rígidos padrões de pureza e submissão, como a corrente neoconfucionista idealizava. Para uma análise profunda dos padrões morais que moldaram a inserção social das mulheres de conforto, é imprescindível examinar alguns aspectos 30 que envolvem o Confucionismo e o Neoconfucionismo e suas origens, tendo em vista a sua importância nas bases ideológicas e culturais que influenciaram a percepção e o tratamento de mulheres na sociedade chinesa. Confúcio [ou 孔子 Kong Zi] foi um pensador chinês que viveu entre 551 AEC. e 479 AEC., e apesar de ter tido uma influência considerável e ter os Grandes Clássicos chineses atribuídos a seus discípulos, não necessariamente é a figura central desta tradição filosófica. Esta ideia pode ser resultado de uma tradução incorreta do termo 儒 [Ru], trazida ao Ocidente por jesuítas do século XVIII [Rosenlee, p. 5, 2006], sendo, na verdade, um complexo conjunto de ideias e ensinamentos de Anciãos que surgiram antes mesmo de Confúcio. Entendendo a problematização acerca do termo Confucionismo, será usado ao longo do projeto o termo 儒, ou 新儒 [xin ru], referente ao Neoconfucionismo, a fim de evitar um possível orientalismo epistemologicamente limitante. A conjuntura filosófica foi oficializada na China e se tornou dominante em países do Leste Asiático, com os quais estabeleceu relações a partir da Dinastia Han [de 206 AEC. até 220 EC.], havendo modificações ao longo da Dinastia Song [960 EC. até 1279 EC.] e Qing [1644 EC. a 1912 EC.]. Neste último período, a repressão contra a mulher chinesa, baseada nos pensamentos dessa filosofia, se tornaram mais opressivos – como a retomada do costume de enfaixar os pés, objetivando a redução da liberdade da mulher, e a prática da castidade entre as viúvas [Ebrey, 2003, p. 21] – talvez por uma aproximação epistemológica com a definição do feminino. Por muito tempo, na língua chinesa não havia uma palavra que definisse a mulher da forma que é entendida hoje: um indivíduo do gênero feminino; o que haviam eram palavras relacionadas à feminilidade ou ao papel social do feminino, como 妇女 [fu’nu], em tradução literal “esposa” e “filha” [Rosenlee, p. 46, 2006]. Hoje o caractere 女 ainda é utilizado para identificar as mulheres, porém, é imprescindível que se entenda como a evolução da linguagem pode impactar na existência e opressão da feminilidade, pois uma vez que não há um termo que designe a individualidade de alguém, isso por si pode fazer parte da opressão, justamente pela falta de reconhecimento deste como um ser independente e como um indivíduo. Em continuidade, entendendo a pluralidade de 儒, entre os pensadores e estudiosos da Dinastia Han, Ban Zhao [班昭], se destacou ao escrever livros – em especial, Os Mandamentos Femininos [em chinês, 女誡, nujie] – que determinavam os padrões ideais de comportamento para uma mulher, seja dentro de casa, com sua família, ou mesmo em relações sociais externas. Esses ideais serão discutidos no decorrer deste texto com mais profundidade, sendo importantes arcabouços teóricos e sociais para entender o papel feminino segundo o olhar geracional chinês. As idealizações sobre o comportamento feminino foram retomadas durante a Dinastia Qing como forma de racionalizar e controlar os movimentos de emancipação feminina, fomentados por mulheres ativistas – como a anarcofeminista He-Yin Zhen. 31 Os principais debates sobre a sistematização do sistema de mulheres de conforto, e a negação do Japão quanto às responsabilidades de Estado sobre o sistema, se concentram em comunidades acadêmicas da Coreia do Sul e Japão, porém se estendem a outros países asiáticos e alguns na América do Norte. Eles se diferenciam, especialmente, na divisão entre aqueles com uma ideologia marxista em contraponto com aqueles de ideologia ultranacionalista – essencialmente escritores japoneses [Norma, 2018, p. 45]. Os primeiros buscam, ideologicamente, analisar a violência e degradação humana durante o período de guerra. Assim, sustentam a narrativa contada por estudiosos humanistas e relatada pelas próprias mulheres, que foram submetidas ao sistema de conforto. Os segundos sustentam uma narrativa de nãoresponsabilidade do Estado Imperial japonês na implementação de um sistema de conforto, que teria sido supostamente privado e sem o financiamento do Estado. Defendem, portanto, não ser responsabilidade do Governo Japonês reparar os danos causados no período da guerra. Seja pela dificuldade em averiguar a situação dessas mulheres, devido à extensa queima de documentos no momento de derrota japonesa, ou pela falta de denúncia pelo Governo Chinês, as violências às mulheres de conforto não foram consideradas crimes de guerra pelo Women’s International War Crimes Tribunal [Totani, Tokyo War Crimes Trial, 185 apud Qiu et al., 2014, p. 165], o que denuncia a urgência de dar voz às mulheres chinesas oprimidas durante as ações imperialistas japonesas. A partir dessa temática, a presente pesquisa se justifica por pretender explorar os depoimentos dessas doze mulheres como fonte primária e prova essencial de violência institucionalizada, perpetrada pelo exército militar japonês. Assim como visa resgatar as vozes que foram oprimidas pelo discurso de moralidade do 儒, o qual as torna cúmplices da própria violência. A pesquisa busca desmistificar os estereótipos de gênero acerca das experiências femininas das mulheres de conforto, para um público brasileiro pouco familiarizado com as experiências não epistemologicamente ocidentais e ocidentalizadas. Além disso, pretende ter um impacto positivo no meio acadêmico brasileiro ao trazer a discussão sobre as mulheres de conforto do Império Japonês ao Brasil, oferecendo uma perspectiva alternativa para tratar os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial – entendendo o sistema de conforto como um aspecto do fascismo japonês – e, ampliando o campo de pesquisa das relações Brasil e China, que nas últimas décadas encontra-se numa expansão econômica e cultural. Pretende também explorar o impacto devastador da guerra sobre as mulheres, visando oferecer uma análise mais abrangente do conflito Sino-Japonês e destacando como o regime fascista japonês afetou parte da Ásia de maneira sistemática e brutal. Consoante ao arcabouço teórico-metodológico, para além das contribuições de Peipei Qiu, Su Zhiliang e Chen Lifei, a pesquisa utilizará os estudos sobre história da mulher. Ao levar em consideração a especificidade do sujeito mulher e das vivências femininas no contexto chinês, os escritos de He-Yin Zhen e Ban Zhao serão o norte desta pesquisa. Por outro lado, será utilizada a 32 formulação de subordinação do corpo feminino de Gayatri Chakravorty Spivak e outros conceitos fundamentais discutidos no influente ensaio “Pode o Subalterno Falar?”, que serão aplicados para oferecer uma análise mais abrangente das mulheres de conforto chinesas, não apenas como sujeitos femininos subalternos, mas igualmente como símbolos da dominação imperial japonesa sobre a China e suas fraquezas. Primeiramente, para utilizar um olhar anarcofeminista recente sobre o problema das mulheres de conforto, os conceitos abordados por He-Yin Zhen, 何殷震, [1884 a 1920], uma proeminente teórica feminista e editora fundadora da revista Natural Justice, serão utilizados. O periódico anarcofeminista, Natural Justice, ativo em meados do século XX, reivindicava direitos das mulheres chinesas e questionava as aparentes liberdades concedidas pelos homens às mulheres chinesas – como o fim da tradição de enfaixar os pés, ou o acesso à escolarização – que teriam como fundamento uma autoafirmação masculina em torno da europeização do homem chinês, uma “civilização” deste [Liu et al., 2013, p. 2]. Os escritos de He-Yin Zhen exploram não apenas a opressão das mulheres na China, seja no passado imperial quanto no seu presente – período de decadência da dinastia Qing – mas, explora também as condições de vida das mulheres no Japão industrializado e faz uma análise geral das lutas anarquistas e socialistas em todo o mundo. A anarquista também indagava sobre a importância da reputação da mulher – esta que havia sido reafirmada pela historiadora Ban Zhao, apresentada a seguir – e criticou seus contemporâneos autodenominados progressistas, mas que sustentavam as teses de Ban Zhao em torno da estima de uma moça para sua comunidade. Mesmo que esta fosse algo externo à mulher, uma vez que dependeria do meio social em que ela vivia e o quão moralistas seriam as pessoas ao seu redor. Assim, as análises dela, conforme traduzidas e discutidas no livro The Birth of Chinese Feminism, de Lydia H. Liu, Rebecca E. Karl e Dorothy Ko, auxiliarão a desenvolver um olhar que considera o contexto na China, das mulheres que viveram naquele período e naquele meio histórico-social específico de seu tempo e localidade. Em segundo plano, a pesquisa terá como base teórica os fundamentos da função social da mulher reiterados e redefinidos por Ban Zhao, a primeira historiadora mulher da China, presente entre os importantes pensadores da Dinastia Han [206 AEC. até 220 EC.]. A historiadora traz, em seu livro 女诫 ou Os Mandamentos Femininos [em tradução livre], uma moralidade através de uma releitura do clássico The Mother of Mencius, trazendo ideais comportamentais sobre a reputação de uma mulher e como sua reputação poderia trazer à ruína de sua família. Nesse contexto, determina em seus escritos três pontos cruciais para a boa reputação de uma mulher: humildade, diligência e sacrifícios contínuos. A humildade estaria associada a não comentar sobre seus feitos, colocando sempre o outro – seu pai, marido ou filho – em primeiro lugar, deixando a si 33 mesmo em segundo plano, aceitando insultos e suportando maus-tratos. A diligência, por sua vez, indica que uma boa mulher nunca deveria recusar-se a assumir o trabalho doméstico e deve completar tudo o que precisa ser feito de forma organizada e cuidadosa. Enquanto os sacrifícios, em consonância, implicam uma relação servil de uma esposa a seu marido, incondicionalmente e incontestavelmente, colocando a mulher em uma posição sempre secundária em sua vida, reforçando como a submissão é construída socialmente desde a infância até sua vida adulta. Apesar de escritos séculos antes das experiências aqui trabalhadas, esses três fundamentos, reafirmados por Ban Zhao, ajudam a compreender a falta de denúncia de muitas das mulheres chinesas, vítimas do sistema de conforto, devido à importância social da reputação de uma mulher e como ela impacta a conquista de um marido e família. O impacto dos escritos de Ban Zhao permaneceu na sociedade chinesa por séculos, tendo influência de certa forma até hoje [Jin W; Zhao H, 2007, p. 3]. Nesse sentido, impactou a forma como a sociedade chinesa entendeu o problema das mulheres de conforto e como elas mesmas procuraram se inserir na sociedade, a fim de poder exercer ao máximo seu papel como mulher. Como já mencionado, as análises de Spivak serão de grande importância neste estudo, considerando que aborda em seu trabalho seminal as questões de vozes e da representação do subalterno, destacando como os grupos marginalizados frequentemente são silenciados e suas vozes não são plenamente ouvidas nos discursos dominantes. Aplicando essa perspectiva, a pesquisa busca entender as mulheres de conforto como vítimas duplamente silenciadas: primeiro, pela opressão patriarcal interna [tardiamente reforçada por um esforço de Estado, que buscava associá-las a inimigos de Estado] e, segundo, pela violência imperialista externa. Spivak ensaia uma discussão presente em análises Marxistas de discursos de desejo, poder e opressão: o sujeito oprimido tem um desejo intrínseco de tornar-se o sujeito opressor uma vez que busca tornar-se o sujeito dominante [SPIVAK, 2010, p.44]. Dessa forma, pode-se ponderar o Estado Chinês apropriando-se desse desejo do povo chinês, oprimido pelos esforços militares japoneses, e utilizando-se da opressão contra a mulher de conforto transformando-a em um inimigo de Estado. Deste modo, a mulher subjugada e violentada anteriormente pelos soldados japoneses [a ideologia imperialista externa], é novamente subjugada e abandonada pelo Estado Chinês, reforçando os ideais trazidos por 儒, de que o silêncio como esquecimento seria uma solução mais adequada do que a denúncia como caminho para reparação, pois o silêncio preservaria a mulher e sua reputação, assim como a reputação de sua família. Em outro aspecto, é importante entender a dominação sobre os corpos femininos como uma manifestação da dominação imperial japonesa, refletindo não apenas o controle físico e psicológico sobre as mulheres, mas também a imposição de um poder imperial sobre a nação chinesa. A subjugação das 34 mulheres de conforto não foi apenas um ato de violência de gênero, mas também uma extensão da estratégia de dominação imperial, que visava humilhar e subjugar a China de forma mais ampla. É nesse aspecto que os argumentos de Spivak se encaixam bem neste projeto. Ao perceber a partir das ideias de Althusser sobre o “terceiro Reich” alemão, que a violência, em uma instância específica, tem intenção em si, não sendo exclusivamente uma consequência de uma construção estrutural violenta. Deste modo, as violências causadas pelos soldados japoneses, realmente, derivaram-se de um ciclo de violência construído pelos traumas sofridos no ato de matar ou ser morto, nas linhas de frente; mas ao mesmo tempo, os soldados tiveram um desejo, que poderia ser evitado, de causar o mal às mulheres de conforto e este desejo era fomentado pelo Império japonês como uma estratégia de dominação e humilhação da soberania chinesa em seu território [ALTHUSSER, 1983, p.215 apud SPIVAK, 1942, p.28]. Portanto, os conceitos de Spivak ajudarão a revelar como a opressão das mulheres de conforto é indissociável das dinâmicas de desejo, poder e dominação; não sendo apenas uma violência individual, mas algo coletivo e internacionalizado contra a soberania chinesa. Esta abordagem oferece um olhar mais amplo: o sistema de conforto foi uma estratégia política intencionalizada pelo expansionismo japonês, assim como o abandono das mulheres, no momento do pós-guerra, foi uma ação pensada pelo Estado chinês como uma ferramenta de unificação de narrativas nacionais contra o inimigo externo japonês. Com essa relação é possível traçar como as mulheres de conforto foram duplamente oprimidas, primeiro pelo imperialismo japonês e depois pelo patriarcalismo chinês sustentado pela narrativa do 新儒. Referências O texto trata-se de uma apresentação do projeto de Iniciação Científica, idealizado pela graduanda em história pela Universidade Estadual de Campinas, Isabella Padula, que busca estudar o sistema de dominação imperial sobre as “mulheres de conforto”. Como colaboradora e orientadora do projeto, a Dra. Rozely Menezes Vigas Oliveira, professora e pesquisadora de pós-doutorado em História da Ásia no IFCH-UNICAMP, membro do Projeto Temático “Direitos de propriedades e ocupação territorial: as sesmarias do Rio de Janeiro entre os séculos XVI e XIX”, coordenado pela Prof. Dr. Marina Machado (UERJ), e da comissão organizadora da Rede de Pesquisadores Visões da Ásia. EBREY, Patricia. Women and the Family in Chinese History, 2003. Disponível em: https://www.taylorfrancis.com/books/9781134442935. Acesso em: 15 ago. 2024. JIN, Wen; ZHAO, Hui-ying. 重评班昭《女诫》的女性伦理观, 2007. Disponível em: 35 https://mqikan.cqvip.com/Article/ArticleDetail?id=26155388&from=Article_index. Acesso em: 17 ago. 2024. LIU, Lydia He; KARL, Rebecca E.; KO, Dorothy. The birth of Chinese feminism: essential texts in transnational theory. New York: Columbia University Press, 2013. NORMA, Caroline. Comfort Women and Post-Occupation Corporate Japan, 2018. Disponível em: https://www.taylorfrancis.com/books/9781351185264. 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London: Taylor & Francis e-Library, 2003. 36 DE UM IMPÉRIO A OUTRO: AS FUGAS DE CATIVOS DE MACAU PARA A CHINA CONTINENTAL [1720-1722] Luis Fernando Masiero No ano de 1720, cuja data precisa não fora registrada nos arquivos do Senado local, alguns escravizados que pertenciam a um certo Nicolau Fiume decidiram deixar as instalações de seu senhor, em Macau, para tentar um recomeço de vida na China Continental, provavelmente nos arredores de Guangzhou. A fuga, como em outros casos bem sucedidos de abandono do cativeiro na cidade, passaria desapercebida pelas autoridades da Câmara se, junto com ela, não ocorresse um evento agravante: em algum momento do deslocamento fortuito, os cativos anônimos de Fiume acabaram assassinando um “tanka”, expressão pejorativa que designava indivíduos que viviam em barcos nas regiões costeiras de Guangdong. A morte de um homem chinês e, portanto, súdito do imperador, ainda que marginalizado pela sociedade local, causou grande insatisfação na burocracia de Cantão. Através de memorandos e documentos conhecidos como “chapas”, os mandarins da província começaram a pressionar o Senado de Macau pela entrega dos cativos ou, na falta deles, de seu amo e responsável. A pressão dos funcionários levou os portugueses a deliberar sobre o ocorrido e a encontrar uma solução comum para o problema, situação que gerou as atas que permitiram a sobrevivência desse notável registro de um ato de resistência ao cativeiro na cidade [Arquivos de Macau, 1964, p. 336]. Todavia, para além de revelar elementos da agência escrava em prol da autonomia, os documentos analisados neste artigo suscitam uma pergunta central ao tema da soberania em Macau. Dito de outra forma, como a circulação de escravizados pelas fronteiras com a China continental afetou o relacionamento luso-chinês e pôs em xeque, eventualmente, a presença dos portugueses no território? Minha hipótese consiste no argumento de que a busca dos cativos pela liberdade e outras formas de autodeterminação foram fontes constantes de conflitos, desentendimentos e negociações entre as autoridades chinesas e o Senado de Macau. Com base em um debate historiográfico consolidado, é possível afirmar que em situações de disputa ou pendências entre os mandarins e os portugueses, estes últimos, devido à fragilidade de sua presença no leste asiático, acabavam por ceder às vontades 37 dos anfitriões ou a conseguir os seus objetivos através de práticas ilícitas como o suborno. Desde que se instalara definitivamente no delta do Rio das Pérolas, em meados da década de 1550, a comunidade lusitana de comerciantes privados teve de se submeter, parcial ou integralmente, à administração chinesa. De acordo com George Bryan de Souza [1991, p. 49], os estados das dinastias Ming e Qing empregavam diversos mecanismos de controle em relação aos estrangeiros assentados em Macau, sendo o principal deles o fornecimento integral dos gêneros alimentícios à cidade, o que deixava a península em total dependência do continente. Além disso, seus mercadores estavam autorizados a realizar apenas duas viagens anuais às feiras de Guangzhou, embora as estadias por lá durassem meses [Souza, 1991, p 231]. Charles Boxer foi outro historiador que notou a condição limitada dos portugueses no sul da China. Segundo o autor [1965, p. 51], para além do pagamento anual do foro de chão às autoridades locais, os estrangeiros se viam obrigados a arcar como taxas de ancoragem dos navios que atracavam em seu porto. De 1688 a 1849, a burocracia Qing manteve na cidade uma alfândega que cuidava da tributação do comércio exterior da península. Como se essas medidas não fossem suficientes, o território de Macau ainda estava sob a jurisdição do mandarim da Casa Branca, responsável pela administração do distrito vizinho de Qianshan. Diante do poder institucional do estado chinês, a comunidade mercantil portuguesa se organizou para contrabalancear as ordens imperiais e ter a chance de exercer algum controle, ainda que relativo, sobre o território cedido. Para tanto, o Senado da cidade foi a principal fonte de poder dos estrangeiros na península. De acordo com Boxer [1965, p. 49], era a Câmara a responsável pela gestão da parte portuguesa do assentamento, pela coleta de impostos das embarcações dos moradores e, principalmente, pela negociação e trato como os mandarins de Guangdong através da figura de seu procurador. Embora a cidade contasse com um Governador e Capitão Geral, delegado geralmente pela oficialidade do Estado da Índia, este se limitava ao controle das fortalezas de guerra e das guarnições em serviço. Nota-se, portanto, que o relacionamento luso-chinês era mediado, quase em sua totalidade, pelo Senado de Macau. Tal intermediação se dava não apenas para garantir o fluxo sadio das atividades comerciais entre as partes, mas também para resolver conflitos e pendências promovidas pela tensa relação entre os chineses e a comunidade estrangeira na região. Conforme observado por George Bryan de Souza [1991, p. 233], uma das fontes constantes da degradação das relações entre as autoridades Ming e os mercadores portugueses fora o comércio de escravizados, em especial a venda crianças chinesas do continente que eram traficadas de forma ilegal até Macau e deste porto para as redes mais amplas do Oceano Índico, sendo as Filipinas dos espanhóis um destino recorrente. O fenômeno do tráfico de cativos a partir de Macau apenas recentemente ganhou a atenção da historiografia lusófona. Conforme aponta Ivo de Sousa [2010, p. 79], os portugueses se valiam das condições de miséria e pobreza extrema que 38 afetavam vários grupos sociais do sul da China para adquirir jovens chinesas, especialmente meninas. Muitas dessas crianças eram vendidas por suas próprias famílias em situação de necessidade, mas outras eram vítimas de engano ou sequestro por traficantes locais. Estes, por sua vez, as vendiam clandestinamente aos portugueses nas ilhas que circundavam Macau ou em locais ermos nas proximidades de Cantão. Uma vez em posse dos estrangeiros, quando não eram destinadas à exportação, tais meninas eram utilizadas como escravas, criadas, esposas e até concubinas de seus senhores, tornando-se uma parte fundamental do mercado matrimonial da cidade, tendo em vista a ausência de mulheres europeias no território [Sousa, 2010, p. 83]. Uma característica marcante do tráfico de escravizados no diverso mundo do Oceano Índico, conforme ressaltado por Patrícia Souza de Faria [2023, p. 98], reside no fato de que este comércio era multidirecional. Na prática, isso significa dizer que as cidades e portos envolvidas nas transações de seres humanos eram tanto exportadoras quanto importadoras de cativos, o que demonstra a dinamicidade do mercado e o número de atores envolvidos. Como exemplos, a autora ressalta as possessões portuguesas no subcontinente indiano que, ao mesmo tempo em que recebiam escravos vindos da África Oriental, também enviavam para lá, através de embarcações anuais, algumas “peças” indianas para serem revendidas em Moçambique. Embora a participação de cada localidade neste comércio seja desigual quanto às proporções de escravizados que partiam e chegavam de seus portos, a multidirecionalidade do tráfico contribuiu para a formação de cativeiros multiétnicos. Segundo Faria [2023, p. 98] “os escravos provenientes do Índico que foram transportados nas naus da Carreira da Índia provinham de diversas localidades, que englobavam a costa oriental africana, Índia, Ceilão, Japão, China, Malaca, Java, Pegu e seus arredores”. Nesse contexto, Macau não era exceção à regra. Como entreposto português mais avançado do leste asiático, de seu porto saíam, todos os anos, navios com significativos carregamentos humanos que abasteciam as redes do tráfico em destinos como Goa, Malaca, Manila e, a partir de meados do século XVII, a Batávia holandesa. Ao mesmo tempo, as naus do comércio oficial da Índia que aportavam anualmente no sul da China traziam para a revenda alguns escravizados do subcontinente indiano e da África Oriental, sendo que estes últimos eram ordinariamente conhecidos como cafres. Todavia, durante todo o século XVIII, o principal parceiro comercial e fornecedor de cativos em Macau era a colônia portuguesa do Timor, ilha ao sul do arquipélago indonésio que, além de escravos (principalmente mulheres), abastecia a cidade de sândalo, madeira muito valorizada na China por suas propriedades aromáticas [Souza, 2006, p. 187]. No que toca à postura dos funcionários chineses a respeito do tráfico de escravizados feito pelos portugueses, a posição era ambígua. Oficialmente, o comércio de cidadãos chineses era proibido pelas dinastias Ming e Qing, especialmente no que diz respeito a venda de tais sujeitos para estrangeiros. 39 Contudo, como demonstrou Claude Chevaleyre [2022, p. 167-168], a prática era amplamente tolerada pelas autoridades provinciais, que viam o comércio de mulheres e crianças por parte de seus familiares como uma estratégia econômica viável para garantir a sobrevivência dos envolvidos. No entanto, essas transações deveriam ser regularizadas por contratos fixos e a pessoa vendida não poderia deixar a província onde nascera, tampouco evadir as fronteiras do estado chinês. Em suma, para a burocracia imperial, o problema não era o comércio de seres humanos, mas o tráfico ilegal em si, atividade em que a comunidade portuguesa de Macau estava amplamente envolvida. Conforme observado anteriormente, o comércio ilegítimo de crianças e mulheres da China Continental para Macau era uma fonte constante de distúrbios entre os funcionários Ming/Qing e os estrangeiros da península. Embora não fosse raro que alguns mandarins estivessem envolvidos, direta ou indiretamente, nas transações ilícitas de pessoas, tal comércio só foi amplamente tolerado pelas autoridades sínicas por conta da prática disseminada do suborno e da corrupção da máquina pública chinesa, tanto pelos traficantes locais como pelos mercadores portugueses. De acordo com Charles Boxer [1965, p. 52-53], diante das inúmeras dificuldades e exigências que os mandarins de Cantão impunham à população de Macau, desde a concessão de licenças para a construção civil até a resolução de pendências administrativas maiores, era comum que o Senado da cidade intervisse em prol da sua comunidade através do suborno dos funcionários chineses. Para tanto, a figura do Procurador desempenhava um papel central, uma vez que era ele quem acertava os valores da compra do interesse junto aos mandarins, cabendo ao Senado angariar os recursos para efetuar o pagamento. Não obstante, para além do incômodo que o tráfico gerava nos arredores de Guangzhou, um outro conjunto de problemas a ser resolvido pelas autoridades sínicas provinha da circulação de cativos dos portugueses pela área, especialmente quando estes transgrediam as fronteiras de Macau procurando fugir de seus amos. Como uma das estratégias mais eficazes e recorrentes na luta contra a dominação senhorial, o abandono do cativeiro pode ser entendido como o recurso derradeiro do escravo em sua busca por autonomia, uma vez que as pequenas liberdades que eventualmente desfrutava eram insuficientes aos seus anseios e os maus tratos sofridos, intoleráveis. Estes episódios revelam a agência histórica dos cativos em prol de seus interesses e o desafio que representavam, em algumas ocasiões, à ordem senhorial. Para além disso, as fugas, sejam elas individuais ou coletivas, são entendidas pela historiografia como atos de resistência que, por seu turno, geram consequências políticas para as partes envolvidas. Foi o que aconteceu em 16 de março de 1721, em Macau, cujo caso fora apresentado no início deste artigo. Nesta ocasião, o então vereador do mês, Francisco Xavier Doutel, convocou os “homens bons” da cidade e demais autoridades à Casa da Câmara “[...] para lhes fazer presente a caria movida já o ano passado dos Moços, que fugiram a Nicolau Fiume, aos quais imputaram a morte de um tanca na água funda” [Arquivos de Macau, 1964, p. 336]. 40 Segundo consta no termo de assento da reunião, as autoridades chinesas, através de notificações escritas e do envio de um mandarim à cidade, estavam cobrando da comunidade portuguesa a entrega dos cativos para que estes fossem julgados criminalmente pela morte do cidadão chinês nos tribunais de Guangzhou. De acordo com o documento, contudo, os escravos mencionados ainda estavam desaparecidos, o que sugere que a fuga foi bem sucedida. Na falta destes, os funcionários chineses solicitavam a apresentação do seu senhor e responsável, Nicolau Fiume – que esteve presente na reunião e assinou a ata do dia –, para responder judicialmente pelo crime ocorrido. Visando proteger Fiume do julgamento em Cantão e evitar que o assunto continuasse a ser pauta de cobrança das autoridades chinesas, o Senado de Macau, através de seu Procurador, “[...] mandou por via dos Chinas desta Cidade compor a dita caria, de sorte que não se falasse mais nela, e o fizeram em trezentos taéis com o Mandarim Taiá de Hiam-xan” [Arquivos de Macau, 1964, p. 336]. Temos, portanto, o registro oficial de uma prática de suborno, cujo valor a ser pago foi negociado diretamente com o seu beneficiário, o funcionário do distrito de Qianshan, também conhecido como Mandarim da Casa Branca. Ainda de acordo com o documento, quem teve de arcar com a despesa dos trezentos taéis fora o próprio Senado, “[...] por o dono dos ditos Moços não intervir em nada nesse malefício, e assim deve ser para todos daqui em diante, todas as vezes que os Amos não forem culpados nos malefícios de seus escravos. [...]. [Arquivos de Macau, 1964, p. 336]. Apesar dos esforços do Senado para abafar o caso do assassinato junto às autoridades chinesas, a quantia gasta para comprar o silêncio dos funcionários de Cantão parece não ter sido suficiente. Isso porque em 1722, dois anos após a morte do tanca, continuavam a chegar de Guangzhou chapas e memorandos em Macau, cujo teor de cobrança era não somente sobre a morte do mencionado chinês em 1720, mas de uma outra, ocorrida há mais de duas décadas, que teve por cenário o campo de São Francisco, uma das freguesias de Macau. De acordo com o registro da ata do dia 31 de março de 1722, o renovado interesse na resolução de tais crimes pela burocracia chinesa se explica, ao menos em parte, pela troca do mandarim de Qianshan, tendo em vista que os cargos ocupados pelos funcionários do estado chinês eram rotativos. O documento ainda revela que os antigos escravizados de Nicolau Fiume continuavam foragidos. Para resolver esta e outras pendências como o novo funcionário, o Senado de Macau assentou conjuntamente que se pagasse uma nova propina ao sobredito, “[...] porém cobrando dele dito Mandarim quitação, para nunca mais repetir chapas sobre tal matéria” [Arquivos de Macau, 1964, p. 358]. Dessa vez, todavia, o preço acordado do suborno não foi registrado. Analisando o caso descrito acima, é possível inferir que a circulação de escravizados pelas fronteiras com o Império Qing poderia ocasionar, para Macau, problemas e tensões com as autoridades chinesas. No caso estudado brevemente neste artigo, verificou-se que, mediante uma situação de fuga de cativos dos portugueses para o continente e o incidente do assassinato de um 41 súdito local por parte dos escravizados, os funcionários de Cantão passaram a pressionar a administração portuguesa da cidade a colaborar com as investigações e a auxiliar na resolução do crime. O não cumprimento, por parte dos estrangeiros, das exigências oficiais chinesas poderia acarretar em castigos severos para a população de Macau, como o corte no fornecimento de alimentos à península ou a interdição da presença de seus mercadores no comércio em Guangzhou. Buscando evitar que medidas extremas fossem tomadas pela burocracia sínica, o Senado recorreu à diplomacia e ao pragmatismo político para pôr fim à pendência, utilizando-se da prática do suborno dos mandarins locais para que estes deixassem de questionar a Câmara sobre o ocorrido. Tal ação, ao mesmo tempo que denuncia a corruptibilidade da burocracia Qing no sul da China, demonstra o quanto os portugueses eram dependentes do estado chinês para a própria sobrevivência no território. No que toca aos escravizados de Macau, alheios ou pouco preocupados com o problema da soberania da cidade, os objetivos de suas ações eram outros. Na busca constante por melhores condições de vida e níveis mais altos de autodeterminação, tais cativos não se intimidaram com o espaço estreito da península, com a dupla vigilância de autoridades portuguesas e chinesas, com as condições limitadas de fuga ou com os possíveis castigos que poderiam sofrer caso fossem pegos. Para muitos deles, o desejo de liberdade falou mais alto e motivou o abandono do cativeiro. Os sonhos e a possibilidade de um recomeço, iniciados no convés de navios estrangeiros ou nas terras ermas dos mandarins, eram mais dignos do que a precária vida que levavam sob o jugo de seus senhores. Referências Luis Fernando Masiero é mestrando em História pela Universidade Federal do Paraná. Tem como projeto de pesquisa a escravidão no Estado da Índia entre os séculos XVII e XVIII, com ênfase no assentamento português de Macau. A investigação, amparada nos preceitos teóricos da história global, procura retomar a circulação de escravizados através de diferentes rotas comerciais espalhadas pelo Oceano Índico, bem como entender o impacto social e político da presença de uma comunidade pluriétnica de cativos no sul da China. Fontes ARQUIVO HISTÓRICO DE MACAU. Arquivos de Macau, 3ª s. v. 2, nº 6. Macau: Imprensa Nacional, 1964. 42 Bibliografia BOXER, Charles R. Portuguese Society in the Tropics: the municipal councils of Goa, Macao, Bahia, and Luanda (1510-1800). Madison and Milwaukee: The University of Winsconsin Press, 1965. CHEVALEYRE, Claude. Human Trafficking in Late Imperial China. In: ALLEN, Richard B. (ed.) Slavery and Bonded Labor in Asia, 1290-1900. Leiden-Boston: Brill, 2022. FARIA, Patrícia Souza de. Escravos trazidos do Índico: estudos de caso de presenças efêmeras na América Portuguesa (séculos XVII e XVIII). Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol. 16, n. 2, jul.-dez., 2023, pp. 94-115. SOUZA, George Bryan. A Sobrevivência do Império: os portugueses na China (1630-1754). Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991. SOUZA, Ivo Carneiro de. Cativas e Bichas, Meninas e Moças: a subalternidade social feminina e a formação do mercado matrimonial de Macau (1590-1725). Campus Social, 2006-2007, n. 3-4, pp. 173-196. ______. População e Sistema Demográfico em Macau (Séculos XVI-XVIII). Revista de Cultura, n. 33, Ed. Internacional, 2010, pp. 75-98. 43 LÓNG [龙]: UM EFÊMERO PASSEIO PELA FIGURA DO DRAGÃO CHINÊS Renata Ary 1 – A figura do Dragão As experiências de um dragão contornam ciclos infinitos. Ele vivenciou eras e mais eras, seja no Oriente ou no Ocidente. A figura do dragão, cujos olhos simbolizam proteção, é tão longínqua, que por vezes ela é retratada como um animal simbólico, alegórico, uma lenda que habita o imaginário das pessoas. Por outras, é definida como uma criatura observável na realidade. O fato é que, a figura do dragão é tão antiga, tão dispersa que, além de despertar interesse, não se permite precisar a sua origem, pois “a humanidade toda participou do processo de molda-la”. [Smith, 1919] Smith [1919] aponta que “o dragão evoluiu junto com a própria civilização. A busca para o elixir da vida, para retroceder os anos da velhice e conferir o dádiva da imortalidade, tem sido a grande força motriz que compeliu homens para construir o tecido material e intelectual da civilização”. Para Smith [1919]: “a lenda do dragão é a história dessa busca que preservou a tradição popular: cresceu e acompanhou o ritmo de luta constante para compreender a meta inatingível dos desejos dos homens”. No imaginário das pessoas, a figura do dragão conta com variantes e simbologias diferentes. Num estudo conduzido por Chen Dezhang [2000]: “a maioria dos chineses gosta do dragão e acredita que ele representa auspiciosidade [26%], dignidade [18%] e poder [10%], enquanto que a maioria dos falantes de inglês tem más associações com relação à ele: ardente [18%], mistério [16%], medo [8%] e ferocidade [8%]” [Qianxu, 2021]. No ocidente, etimologicamente, a palavra dragão deriva do latim dracō, e do grego drákōn. O prefixo drak-, significa “ver claramente” ou “fitar” e está relacionado à expressão olho de drako, sobretudo nas narrativas em que os dragões desempenham a função de guardião e mantém sob vigilância os tesouros. Ele é o delegado da ferocidade, do mal e evoca grande aversão. 44 No dicionário Michaelis [2019], o dragão é definido como um “ser fabuloso, semelhante a um grande lagarto alado e representado com cauda de serpente e garras enormes, geralmente dotado da capacidade de expelir fogo pela boca”. Já o Houaiss [2009] o define como “animal fabuloso, representado como serpente ou sáurio com corpo coberto de escamas, dotado de garras, asas e uma grande boca que expele fogo”. Antes da era comum, entre os gregos, por exemplo, a figura do dragão tinha duplo significado: ele era o inimigo a ser abatido e ao mesmo tempo, o caminho para o tesouro. Klautau [2020] exemplifica que na Teogonia, de Hesíodo, Tífon, monstro-serpente gerado por Gaia e Tártaro, foi o último desafio para Zeus assumir como rei dos deuses. No jardim das Hespérides, o dragão, guardião dos pomos de ouro, foi morto por Hércules. Na era comum, a figura do dragão foi retratada por períodos: o dragão-mito da antiguidade, o dragão-lenda da Idade Média e até o dragão-personagem na era contemporânea. O dragão-mito está associado ao metafísico, ao divino. O dragão-lenda, é o algoz da sociedade. Ele é o inimigo, o selvagem e só poderá ser derrotado por grandes heróis. Após a derrota, o caminho para o tesouro é certo. O dragão-personagem, é apresentado em cinco fases que iniciam-se no final do século XIX. A primeira caracterização do dragão-personagem [do final do século XIX e início do século XX], é mau, maligno e dotado de fala. O do século XX, não é bom, mas também não é mau. Ele se permite ajudar alguns humanos selecionados. O dragão do final do século XX e início do século XXI é denominado de dragão-montaria, ele é domado, usado para fins e objetivos humanos. O atual, dragão do século XXI, é considerado um dragão-pet, protegido por crianças e precisa de ajuda dos humanos para sobreviver. Durante a pré-história, por volta do século IV AEC, os dragões apenas rastejaram para dentro de uma história natural, porém na Idade Média eles ganharam asas e saíram voando. [Chinelato, 2017] Nas tradições orientais, como as da China, Coreias e Japão, a relação com os dragões é mais harmoniosa. Ele é apresentado como um dragão-natureza, cuja figura é mais gentil e menos hostil. É simbolizado como uma força superior que deve ser respeitada e reverenciada. Para Chuang Tzu [1998], um dos grandes expoentes do Taoísmo Chines do século IV AEC, o dragão representa o ritmo da vida, a fecundidade e a destruição. Comumente, ele é símbolo de nobreza, boa sorte e é representado com uma bela imagem que memora um sentido de respeito. Nenhuma criatura mítica é mais familiar à arte e à arte do Extremo Oriente como o dragão. De acordo com Visser [1918] “é interessante observar que há três tipos diferentes de dragões, originários da Índia, China e Japão que encontram-se lado a lado. Para o superficial observador, todos eles pertencem a uma mesma classe de chuvas, trovões e tempestades que despertam os deuses da água, mas um exame cuidadoso nos ensina que eles são diferentes”. 45 2 – Lóng [龙]: o dragão chinês O dragão chinês tem natureza divina. É venerado e respeitado pelo Chineses. Ele tem sete qualidades supremas: a primeira refere-se à sua natureza aquática, considerada a mais importante, pois o dragão chinês, que adora águas, tem o poder de controla-las. Ele é capaz de fazer chover, de criar nuvens, trovões ou raios e de gerir as quatro estações do tempo. A segunda e terceira naturezas, representam o elo de ligação do dragão com o céu e a terra, pois ele têm a habilidade de voar e de acessar à abóbada celeste. As outras naturezas referem-se a capacidade de mudanças, sobretudo de tamanho de corpo, a demonstração de espiritualidade, insígnia de bons presságios e o seu aspeto feroz, é sinal de azar. [Jin, 2000] Como símbolo de boa-sorte e bons presságios, narra a história que o nascimento de grandes sábios e imperadores foi precedido pelo aparecimento de dragões e fênix. Na noite do nascimento de Confúcio [551, AEC], por exemplo, dois dragões azuis desceram do céu e foram até a casa de sua mãe. Ela os viu em seu sonho e deu à luz ao grande sábio. No mesmo sentido, diz a biografia do Imperador Hiao Wu, da dinastia Han [140-87 AEC] que, antes do seu nascimento, seu pai, o Rei Imperador, sonhou que um porco vermelho descia das nuvens e entrava diretamente no Ch'ing fang koh [Corredor de Fragrâncias Exaltadas]. No dia seguinte, avistou-se no corredor, um dragão vermelho girando por entre as vigas.[Vessir, 1918, p. 57] Durante o reinado de Kwang Wu [25-57], os dragões foram vistos à noite espalhando uma luz brilhante por todo o céu. A aparição noturna iluminou o palácio de Kung Sun-shuh que considerou isso um presságio de boa sorte e se autoproclamou Imperador de Shu, além de mudar o seu nome para Lung-Hing, "Ascensão do Dragão", Imperador Branco. [Vessir, 1918] O rei Shan Hai o descreveu como o deus do Monte Chung e o iluminador das trevas, pois ao abrir os olhos, o dragão cria a luz do dia e ao fechar, da noite. Ao soprar, ele faz o inverno, ao expirar, o verão. Ele não come, não bebe e não descansa. A sua respiração causa o vento e o seu comprimento é de mil milhas. Ele está no leste de Wu-k'i e o seu corpo é o de um cobra de cor vermelha. [Vessir, 1918] Acreditava-se que quando os dragões brigavam, no ar ou no mar, era sinal de mal presságio, pois haveriam tempestades e inundações. As nuvens e as fumaças eram o seu hálito e os trovões eram enviados pelos céus com o objetivo de apaziguar o combate. Por séculos, nos tempos antigos, grandes inundações, tempestades e trovoadas foram atribuídas aos dragões. As tempestades, muitas vezes severas, costumavam causar muitos danos e calamidades, sobretudo na china antiga, sociedade essencialmente agrária e, apesar de serem bem-vindas em tempos de seca, em circunstâncias normais os exércitos ameaçadores no céu eram vistos com grande medo. Além das calamidades que as grandes tempestades causavam, as lutas entre os dragões 46 eram consideradas maus presságios para o futuro, como desordens, guerras e até a queda da dinastia. [Vessir, 1918, p. 60] Por eras, a figura do dragão tem sido retratada em obras literárias, desde os cinco clássicos da literatura chinesa antiga [Yih king, Shu king. Li ki. Cheu li e Ili], datados de mais de 2000 anos, até os dias atuais. Durante a Dinastia Song [960 – 1279] passando pela Han até à Qing [1636-1912], o dragão foi representado sem muitas variações: com três juntas, divididas da cabeça aos ombros, dos ombros ao peito, do peito à cauda e com as nove semelhanças: os chifres lembravam os de um cervo, a cabeça é a de um camelo, os olhos são os de um demônio, o pescoço é semelhante ao de uma cobra, a barriga é a de um molusco [shen], as escamas são as de uma carpa, as garras são as de uma águia, a solas são as de um tigre, as orelhas são as de uma vaca. Em sua cabeça ele tem chifres grandes [ch'ih muh], sem eles um dragão não poderá ascender ao céu. [Vessir, 1918] Diante das suas características divinas, os imperadores feudais recorriam ao culto do dragão para exteriorizar a autoridade suprema da monarquia e o direito divino dos imperadores. Citar a majestosidade do dragão era uma estratégia de governança que auxiliava na defesa da dignidade da monarquia, a deificar os monarcas e a consolidar o poder absoluto. Na obra “os Apontamentos do Escrivão [shǐjì], a mãe do Imperador Gaozu de Han, sonhou com divindades enquanto descansava no campo e deu à luz ao seu filho pela telepatia. Era um dia com trovões e muitos relâmpagos. Quando o pai de Gaozu dirigiu-se ao encontro de sua esposa, ele avistou um dragão dobrandose sobre o corpo dela. Na Dinastia Tang [618 – 907], o dragão chinês evoluiu para o símbolo do imperador. Nesse período, a figura do dragão, que representava o poder imperial, atingiu o seu ápice. O dragão chinês transformou-se em “dragão imperial”. O uso da figura do dragão passou a ser restrito do imperador, tornando-se suprema e autocrata. Suas imagens e desenhos eram estampados nos palácios, nos tronos do imperador, nas vestimentas, bandeiras, selos e vasos. Ao longo das dinastias Ming e Qing, a imagem do dragão imperial consolidou-se. Após um longo período de glórias, a figura do dragão desapareceu, simultaneamente com a queda da Dinastia Qing. [Qianxu, 2021] Os dragões chineses podem ser fêmeas ou machos. A diferença é que o chifre do dragão macho é ondulado, côncavo, íngreme, forte no topo e fino abaixo. A fêmea tem o nariz reto, crina redonda, escamas finas e cauda forte. Suas espécies podem variar entre os ying-lung [fruto de um quadrúpede chamado mao-tuh], os kiao-lung [dragão pulmão, são fruto de um peixe chamado kiai-lin], os sien-lung [fruto de uma fera chamada kiai-t'an] e o k'üh-lung [produzidos por uma planta marinha chamada hai-lü]. Suas cores, a depender da sua origem e evolução, passeiam entre o branco, azul, vermelho, preto e amarelo. Estes últimos, são considerados a quintessência de shen e o chefe dos quatro dragões. [Vessir, 1918] 47 No fung-shui ["vento e água"], sistema geomântico, predominante em toda a China desde os tempos antigos até os dias de hoje, o tigre e o dragão, deuses do vento e da água, são as pedras angulares. Da mesma forma, o dragão encontra-se na quinta posição do Zodíaco Chinês. Ele representa o mistério, a vitalidade e o próprio universo. De acordo com Wu [2005]: “Astuto e entusiasmado, o Dragão é o signo com maior poder e influência. Ao contrário dos outros animais, o Dragão é uma criatura mítica e signo de boa sorte e saúde vital”. Atualmente, esse magestoso e mítico animal, além de ser um dos protagonistas do folclore chinês, é simbolo de poder auspicioso. 3 – Referências Renata Ary é doutora em educação, mestre em direitos difusos e coletivos e pós graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [PUC-SP]. É docente universitária em direito processual civil e direito civil da Universidade São Francisco [USF] - SP. CHINELLATO. Giovana. Reflexos nos olhos do dragão: uma saga da relação homen-natureza a partir das narrativas do dragão. Campinas: Dissertação de Mestrado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 2017. DICIONÁRIO MICHAELIS. Comunicação. Michaelis On-line. 2019. HOUAISS, Antonio. VILLAR, Mauro; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 2009. KLAUTAU, Diego. A pandemia, o dragão e o apocalipse. Disponível em https://tolkienista.com/2020/11/20/a-pandemia-o-dragao-e-o-apocalipse/. 2020. Acesso em 20.11.2024. PATRÃO. Ana Carolina Simões. Ilustração do dragão oriental: aspetos funcionais e morfológicos. Lisboa: Trabalho de Projeto de Mestrado pela Universidade de Lisboa. 2018 QIANXU, Chen. Análise Comparativa da Figura do Dragão no Imaginário Ocidental e Chinês. Dissertação de mestrado defendida pela Universidade do Minho Instituto de Letras e Ciências Humanas. 2021. SMITH. G. Elliot. The evolution of the dragon. Manchester: the university press.1919. TZU. Chuang. Ensinamentos essenciais. Traduzido do chinês e organizado por Sam Hamill e J. P. Seaton. Tradução: Eduardo Pereira e Ferreira. São Paulo: Editora Cultrix. 1998. 48 VISSER, Marinus Willem de. The dragon in china and japan. Charles William Wason collection china and the chinese. New York: Garnell University Dibeaxt Sthara. 1918. WU, Shelly. Chinese Astrology Exploring the Eastern Zodiac. New Jersey: New Page Books. 2005. 49 IMAGEM E HISTÓRIA: UMA ANÁLISE SOBRE A IMAGEM DE MAO E A REVOLUÇÃO CULTURAL Robson Lins Souza Damasio de Oliveira 1.Introdução No presente artigo analiso a importância da figura de Mao Zedong para a cultura e política chinesa durante a Revolução Cultural, movimento iniciado em 1966 e que se configurou em um período marcado pelo uso intensivo das imagens como forma de doutrinação política e, segundo muitos autores, pelo culto à personalidade de Mao. De fato, a centralidade de sua figura pode ser percebida pelo fato de parte significativa dos autores que estudam o período atribuírem o final da Revolução Cultural ao ano de 1976, mesmo ano da morte de Mao, ao invés de 1969, momento no qual Mao havia recuado de suas propostas mais radicais e dissolvido a Guarda Vermelha. Mais precisamente, minha proposta é analisar uma foto em específico, na qual Mao é retratado nadando no Rio Yangtzé. Tal foto foi reproduzida em jornais, posteres e cartazes e se tornou um dos principais ícones do chamado período maoísta e, mais diretamente da Revolução Cultural. Discutir a importância política e imagética de Mao durante um dos períodos mais turbulentos da história chinesa nos leva também a refletir sobre a importância social das imagens, principalmente a fotografia, e seu uso político – nesse sentido, mais do que formas de arte ou registro, as imagens são passíveis de servir a outros fins, como a denúncia social ou a doutrinação política. Em muitos casos tais processos se dão em conjunto, pois a presença ubíqua da imagem de um líder pode servir de dispositivo para construção de sua figura como “pai da nação” ou outros títulos que conformem a história nacional com a biografia de um grande líder. Destaca-se, assim, o uso de imagens como mecanismo para vincular trajetórias de vida individuais à história coletiva de um povo ou nação. Nesse sentido, o período denominado de Revolução Cultural representa um caso interessante, pois conjuga o culto à personalidade com o extenso uso de imagens. De fato, ainda hoje é possível se notar a presença de fotos de Mao por toda China, principalmente em edifícios oficiais. Da mesma forma, a 50 centralidade política e histórica de Mao transcendeu o tempo no qual viveu. Conforme se verá mais adiante, parte significativa das obras sobre a história chinesa retrata o período posterior à Revolução de 1949 fazendo referências diretas à figura de Mao Zedong – como na ideia de “Era Maoísta”, cujo final coincidira com a morte de Mao em 1976, conforme já mencionado. O presente artigo está dividido em duas partes, além desta breve introdução. Na primeira parte farei uma breve apresentação histórica da Revolução Cultural, visando acentuar os principais elementos do período, bem como salientando os impasses pelos quais a China passava. Na segunda parte discutirei a emblemática fotografia de Mao nadando no rio Yangtzé em 1966, ano de início da Revolução Cultural. De fato, a figura pública de Mao encontrava-se desgastada após as crises que se acentuaram no final dos anos 1950 e começo dos anos 1960, de modo que tal fotografia foi utilizada por seus defensores como um registro do vigor físico e político do septuagenário líder. 2. Revolução Cultural: contexto e importância A fotografia de Mao Zedong nadando no rio Yangtzé representou o início de um dos momentos mais turbulentos da história recente da China. De fato, conforme veremos, tal fotografia marcou o retorno de Mao ao cenário político do país, anunciando o movimento que seria conhecido como Revolução Cultural chinesa (1966-1969/76). Mas antes de discutir a fotografia, suas interpretações possíveis, bem como seus desdobramentos políticos, apresentarei alguns aspectos históricos, de modo a fornecer elementos que permitam a compreensão contextual. A revolução capitaneada pelo Partido Comunista Chinês (PCC) foi vitoriosa em 1949, após um ciclo de conflitos armados iniciados com a derrubada da monarquia e o estabelecimento da república nos anos de 1910 e 1911, respectivamente. O papel exercido por Mao foi vital, pois foi graças a seu gênio estratégico que o PCC se afastou dos preceitos soviéticos que defendiam que a base revolucionária fosse o proletariado urbano. Com efeito, entendendo a realidade chinesa, Mao pleiteou que a revolução fosse feita alicerçada à maioria camponesa da população. Alcançado o poder em 1949, restava ao PCC reorganizar o país, que havia sido devastado durante as muitas guerras ocorridas na primeira metade do século XX. Um dos elementos que levou à vitória do PCC fora justamente sua organização fortemente centralizada e coordenada, fator que seria de grande importância na fase de reconstrução do país (XIE, 2017). Todavia, as necessidades de rápida industrialização tornaram-se cada vez mais prementes, principalmente em um contexto de Guerra Fria agravado pela Guerra da Coreia, iniciada em 1950, um ano após a vitória revolucionária na China. Dessa forma, a reconstrução e o desenvolvimento do país não visavam 51 somente a garantia de melhor qualidade de vida à população, mas também a própria sobrevivência do regime recém instaurado. Após as tentativas iniciais, representadas nos planos de reforma agrária e posterior formação de cooperativas agrícolas, Mao encabeça uma a luta pelo desenvolvimento acelerado por meio do Grande Salto Adiante. Iniciado em 1958, tal plano buscou a mobilização em massa da população chinesa, que serviria de mão-de-obra para a rápida expansão agrícola e industrial. No campo, constituiu-se um grande número de pequenas indústrias locais que visariam suprir a demanda de bens necessários ao avanço do processo de modernização (ROUX; XIAO-PLANES, 2018). O plano resultou em um completo fracasso e foi abandonado em 1960, mas seus resultados negativos ficaram conhecidos como a Grande Fome, que duraria de 1958 a 1961. No plano pessoal, o fracasso das políticas radicalizadas de Mao resultou em seu lento ostracismo e alijamento do poder. Para muitos, seu retorno triunfante se daria com o estalar da Revolução Cultural em 1966 (WU, 2014). A perda de prestígio fustigou a imagem pública de Mao, redundando em seu afastamento do poder, simbólica e fisicamente. Com efeito, Mao abandonara o cargo de presidente em 1959 e em 1965 se retirou da capital Beijing, instalando-se em Hangzhou. No ano seguinte, contando com 72 anos, realiza uma demonstração de força que marcaria seu retorno ao centro do poder. Tal demonstração de vigor físico foi registrada em uma fotografia que se tornaria célebre, não obstante o que se veja na imagem, a figura de Mao boiando no rio Yangtzé, seja distante de uma demonstração explicita de poder. De toda forma, a partir de 1966 Mao voltaria a ser a figura principal no aparato político chinês (GAO, 2008). Foi nesse ano que se iniciou a Revolução Cultural chinesa. Seus impactos foram estrondosos. Mao organizou parte da juventude sob a Guarda Vermelha, apostando na mobilização das massas para revolucionar a cultura chinesa, bem como atacar os próprios quadros do Partido Comunista Chinês (YANG, 2017). Um dos alvos principais foram as universidades e os intelectuais, encarados como veículos da cultura burguesa em detrimento da cultura camponesa e popular. Assim, por mais que o término da Revolução Cultural possa ser estabelecido em 1969, com a dissolução da Guarda Vermelha, seus impactos se fizeram sentir por muitas gerações, principalmente pela transferência de milhões de jovens das cidades para o campo. 52 3. A foto de Mao e os rios de história Chairman Mao Swins in the Yangtzé (Unkown, 1966). Disponível em http://100photos.time.com/photos/charman-mao-swims-yangtze (acessado em 20/01/2021). Da mesma forma como não é possível se banhar duas vezes em um mesmo rio, dado o caráter efêmero de suas águas, o gesto captado pela fotografia também se esvai, sendo impossível de ser repetido. Um gesto esboçado para as lentes de uma câmera é único, embora sua representação e reprodução possam se dar de maneira quase infinita. Nesse sentido, pode-se concordar com André Bazin (2018, p.28) ao afirmar que “o retrato nos permitiria salvar o modelo retratado de uma segunda morte espiritual”. De maneira análoga, poderíamos notar a importância da fotografia como uma maneira de se registrar os eventos históricos, permitindo e fomentando a construção da memória – e salvando o evento de uma segunda morte representacional. Neste caso, poderíamos falar da fotografia-documento que, segundo André Rouillé (2009, p.97), teria como uma de suas funções “erigir um novo inventário do real”. Nota-se, desta forma, a importante relação entre história e fotografia. De fato, a fotografia estabeleceu-se como um marco do desenvolvimento tecnológico do século XIX e da sociedade industrial nascente, destacadamente por seu caráter de “imagem-máquina” (ROUILLÉ, 2009, p.31). Philippe Dubois (1992, p.23) aponta como, diferentemente da aura artística da pintura, a fotografia se consolida por sua função documental, sendo bastante utilizada em registros científicos. 53 A credibilidade dada à fotografia também permitiu que seu uso se estendesse para o campo da propaganda político-ideológica. Conforme nota Boris Kossoy (1999, p.22), a possibilidade da manipulação da opinião pública por meio das imagens fotográficas tornou-se possível graças a credibilidade das massas de que seu registro funcionava como um espelho da realidade. Mas para além da importância da história da fotografia, é necessário notar também a importância da fotografia na história. Conforme afirma Michel-Rolph Trouillot (2015), o próprio conceito de história poderia ser observado sob dois aspectos. Por um lado, a história pode ser concebida a partir da ação dos agentes, encarada como um processo, calcada na materialidade dos fatos sociais. Por outro, a história pode ser entendida como narrativa, vale dizer a forma como tais fatos são organizados posteriormente por meio de narrativas e teorias. A história responde, assim, a um duplo processo, ambos sujeitos a todas as formas de poder e silenciamento. Pensar a relação entre fotografia e história, nesse sentido, transcende a mera ideia de registro. A fotografia faz a história em seus dois momentos. O registro fotográfico é realizado de maneira coeva ao acontecimento histórico, está ligado à “materialidade dos fatos sociais”. Todavia, tal registro permite também conformar uma das bases possíveis para a construção da história em seu segundo momento, a narração dos fatos. A fotografia poderia tanto servir de base documental para o texto escrito, como ela própria apresentar elementos narrativos. Entretanto, a relevância da fotografia de Mao transcendeu o seu uso político imediato, servindo também como importante elemento para a construção da história como narrativa, servindo de registro para as discussões futuras sobre a figura de Mao e o processo que se desenrolou durante a Revolução Cultural. A utilização da fotografia como elemento para a construção de narrativas não deve se confundir, entretanto, com a própria ideia da fotografia como forma de narrativa. É de se notar, nesse sentido, que capacidade narrativa da fotografia parece ter sido negada por Roland Barthes. O autor (1984, p.49) estabelece uma divisão clara entre as possibilidades da fotografia vis-à-vis o texto escrito: “Como a Fotografia é contingência pura e só pode ser isso (é sempre alguma coisa que é representada) – ao contrário do texto que, pela ação repentina de uma única palavra, pode fazer uma frase passar de descrição à reflexão -, ela fornece de imediato esses ‘detalhes’ que constituem o próprio material do saber etnológico” A citação de Barthes nos permite avançar sobre dois pontos importantes em relação ao tema em discussão. Mao costumava expressar-se por meio de discursos, cujas coletâneas somam dezenas de volumes, em um tom que oscilava entre o programático e o acusatório. A agressividade de muitos de seus textos, marcadamente os do período da Revolução Cultural, fazem uma espécie de contraponto à serenidade expressada na célebre fotografia. 54 Mais que demonstrar seu esforço, com músculos retesados e dentes cerrados, Mao aparece na imagem nadando tranquilamente em um rio – aparentemente também tranquilo no momento da fotografia. De fato, suas representações imagéticas usuais representam muito mais uma posição de liderança serena que a bravura de um herói – o que contraria em grande parte o tom de seus discursos. Ademais, podemos notar a quase ausência de detalhes na foto, o que como vimos na citação de Barthes, “constituem o próprio material do saber etnológico”. Pouco se pode saber sobre o contexto da foto e nada há que identifique tratar-se do rio Yangtzé. Da mesma forma, faltam elementos que nos permitam saber da posição social das pessoas representadas na foto. O que acaba sendo ressaltado de tal momento representado é a capacidade física de Mao. A importância do vigor físico já fora objeto de reflexão de Mao em um texto de 1917, A Study of Physycal Education. Neste ensaio, Mao lamenta a condição física e o fraco espírito militar da população chinesa do período, além de sinalizar a importância da educação física como um elemento fundamental para, conjuntamente com o estudo intelectual conformarem um povo forte. Conforme aponta Lu Shihan (2023), seria esse texto de Mao o primeiro documento chinês a discutir o esporte, de forma prática e teórica, sob os parâmetros da ciência moderna e do materialismo dialético. Mais que isso, Mao relaciona diretamente elementos corporais a elementos intelectuais, transcendendo a separação entre corpo e mente. Nas palavras de Mao [tradução nossa]: “Ouve-se dizer frequentemente que a mente e o corpo não podem ser perfeitos ao mesmo tempo, que aqueles que usam a mente são deficientes na saúde física e aqueles com um corpo robusto são geralmente deficientes nas capacidades mentais. Este tipo de argumentação também é absurda e aplica-se apenas àqueles que são fracos na vontade e fracos na ação, o que geralmente não é o caso dos homens superiores.” A teoria esboçada por Mao pode, em parte, explicar a origem da foto, principalmente por defender a relação entre um corpo saudável e uma mente saudável. Todavia, no contexto no qual o registro fotográfico foi feito, Mao necessitava comprovar que ainda mantinha o vigor físico necessário para retornar ao poder. De fato, como aponta Shuk-Wah Poon (2019, p.1452) tal imagem foi veiculada por toda a China, buscando atestar o vigor de Mao, tanto no plano físico quando no político-simbólico. Nas palavras de Poon [tradução nossa]: “[...] a natação vigorosa foi suficiente para dissipar os rumores sobre a saúde debilitada de Mao e mostrar a sua resistência física e política. Este espetáculo desportivo transmitiu a mensagem de que Mao tinha controle total tanto do seu “corpo natural” como do “corpo político” da China: com o seu corpo robusto, espírito indomável e apoio público de massa, Mao emergiria sempre vitorioso sobre qualquer desafio. seja natural ou político.” Os usos políticos da foto, embora não se saiba se ela foi feita exclusivamente com tal objetivo, podem ser notados nas inúmeras reproduções da foto em si, 55 como nos cartazes nela inspirados. Além disso, a cobertura da imprensa oficial também contribuiu para tal espírito. O feito e a fotografia de Mao foram apresentados na Beijing Review (ou Peking Review) como uma espécie de atestado de boa saúde do Grande Timoneiro, representando um momento importante não só para a população chinesa, mas para os revolucionários do mundo: “Nosso respeitado e amado líder Presidente Mao Zedong mais uma vez deu um mergulho no rio Yangtse, abrindo caminho através das ondas ondulantes; ele ficou na água por uma hora e cinco minutos e percorreu uma distância de quase 15 quilômetros […]. O facto de o Presidente gozar de tão boa saúde e transbordar de tanta energia é motivo de grande felicidade para todo o povo chinês. E é uma questão de grande felicidade para os povos revolucionários de todo o mundo.” [tradução nossa] O artigo da revista não só utiliza a foto como uma comprovação do feito de Mao, que por sua vez atestaria sua saúde inquebrantável, mas também explora a ideia de “travessia do rio” como uma metáfora para o processo revolucionário e a necessidade de enfrentamento das adversidades. “O que o presidente Mao mais gosta é de nadar em grandes rios e mares com ondas. Ele sempre incentiva as pessoas a se prepararem nadando nos rios, lagos ou mares para desenvolverem seus físicos, força de vontade e coragem e lutarem contra os elementos. Liderando o povo chinês na luta revolucionária, o Presidente Mao sempre apelou ao povo chinês para que fosse resoluto e não tivesse medo do sacrifício e superasse todas as dificuldades para obter a vitória. A revolução exige um espírito militante destemido.” [tradução nossa] A importância histórica do feito e da fotografia de Mao pode ser percebida também nas muitas reproduções feitas por meio de cartazes que visavam ao mesmo tempo celebrar o aniversário do feito e insuflar mensagens de combate e otimismo na população - alguns exemplos dos mencionados cartazes estão disponíveis em https://chineseposters.net/themes/mao-swims. Nesse sentido, tal fotografia documentaria mais do que um acontecimento ou um evento histórico. A foto de Mao não só registraria, mas seria ela própria, uma metáfora. A ausência de detalhes, mais do que problemática quanto à função documental, possibilitaria sua compreensão no plano simbólico. Observando-se os eventos posteriores à travessia do Yangtzé, podemos apontar que tal fotografia foi eficaz em seu intento de representar o vigor físico e político de Mao, servindo de marco para seu retorno ao centro do poder na China. Mas sua eficácia instrumental deve-se a sua eficácia como fotografia enquanto tal. Nas palavras de John Berger (2017, p.40): “A fotografia é eficaz quando o momento escolhido para ser registrado contém um quantum de verdade que é aplicável de modo geral, quando revela tanto o que está ausente como o que está presente. A natureza desse quantum de verdade e os modos pelos quais ele pode ser discernido variam muito. Podem ser encontrados numa expressão, numa ação, numa justaposição, numa ambiguidade visual, numa configuração.” 56 Desse modo, analisar a fotografia de Mao vis-à-vis a história chinesa, permite atestar a importância social da imagem. Retomando Trouillot, é possível encarar a fotografia como um elemento importante nos dois sentidos de história apontados pelo autor. Seu uso pode se dar tanto no sentido de conformar ações no momento imediato, quanto servir no processo de construção de narrativas. Ademais, reforça-se a percepção de que a fotografia pode ter seus efeitos dilatados no tempo, pois ao mesmo tempo que captura um presente, que rapidamente se torna passado após o registro, seus efeitos podem gerar impactos no futuro. Hoje, a fotografia de Mao, que à sua época representava o vigor e a capacidade física e mental de Mao, representa um momento radical da história chinesa, podendo ser elevada à condição de emblema da Revolução Cultural. Referências Robson Lins Souza Damasio de Oliveira é doutorando no programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BAZIN, André. Ontologia da imagem fotográfica. In: BAZIN, André. O que é o cinema? São Paulo: Ubu Editora, 2018, pp. 27-36. BERGER, John. Para entender uma fotografia. In: BERGER, John. Para entender uma fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, pp. 26-43. BOURDIEU, Pierre. “L’illusion biographique”. 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