ORIENTALISMOS
E BRASIL
André Bueno [org.]
Reitora
Gulnar Azevedo e Silva
Vice-reitor
Bruno Rêgo Deusdará Rodrigues
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto
Orientalismo, Proj. Extens. UERJ Reg.
6876, coordenado pelo Prof. André Bueno
[Dept. História]
Conselho Editorial
Bony Schachter ● Edgard Leite ● Emiliano
Unzer ● Gerald Cipriani ● Giorgio Sinedino
● Jana Rosker ● Julio Gralha ● Lia R. de
La Veja ● Paulo André Leira Parente ●
Qiao Jianzhen (Ana Qiao) ● Xulio Rios
Rede
www.orientalismo.net
Seção Brasil
https://aladaainternacional.com/aladaabrasil/
Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 24: Orientalismos e Brasil. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj. Orientalismo/UERJ,
2024.
ISBN: 978-65-01-27037-1
Estudos Asiáticos; Orientalismo; Brasil; Ásia; Oriente.
Apresentação
Oriente 24 é a nova coleção de livros dedicada aos estudos
orientais no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 8º
Simpósio internacional de Estudos Orientais, organizado pelo
Projeto Orientalismo da UERJ, Oriente 24 é formada de maneira
interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas
experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente
próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem
multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias
decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e
dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis,
procurando compreender suas características originais e sua
recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse
sentido, a coleção Oriente 24 é formada por uma série de volumes
que compreendem cada uma dessas dimensões espaçogeográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova
perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes
intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural
brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos,
que tentam apreender a variedade das expressões das culturas
asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja
bem-vindo a nossa coleção!
Volumes de Oriente 24:
Orientalismos: Pensamento e Literatura
Orientalismos: Mídias e Arte
Orientalismos e Brasil
Estudos sobre Próximo Oriente
Estudos Chineses
Estudos Japoneses
Estudos Coreanos
Estudos Asioindianos
SUMÁRIO
TRÊS BRASILEIROS NA MACAU COLONIAL
André Bueno
9
VISÕES SOBRE O JAPÃO E JAPONÊS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO
XX NO BRASIL: ENTRE PRECONCEITO E EXOTISMO
Douglas Tacone Pastrello
21
HALLYU, CONSUMO E REPRESENTAÇÕES: PRÁTICAS DE APROPRIAÇÃO
DENTRO DAS COMUNIDADES DE FÃS BRASILEIROS DE CULTURA POP
SUL-COREANA
Hannah Soares do Amaral
30
CASOS DE BNCC ENSINO RELIGIOSO: "ELES SÃO BEM MAIS
MARAVILHOSOS, NÉ, PROFE?": UM RELATO SOBRE EXOTISMO E
FASCÍNIO COM O ORIENTE EXTREMO
Jander Fernandes Martins e Vitória Duarte Wingert
36
DEVA MATRI - A REPRESENTAÇÃO DA DEUSA INDIANA E O IMPACTO NO
SAGRADO FEMININO NO BRASIL
Maria Helena Ferreira das Neves Peres
45
O NĀṭYAŚĀSTRA: UM PROJETO UNIVERSITÁRIO DE TRADUÇÃO PARA A
LÍNGUA PORTUGUESA
Thaisa MCS
52
8
TRÊS BRASILEIROS NA MACAU COLONIAL
André Bueno
Ao longo dos séculos XVIII e XIX, o império português foi uma entidade
dinâmica, por onde transitavam personagens das mais diversas localidades.
Era um mundo de movimento, como Russell-Wood (1998) demonstrou, em que
pessoas, mercadorias e ideias circulavam, modificando o perfil da natureza e
das culturas. Nesse sentido, o Brasil era parte fundamental de uma ampla rede
de trocas, conectando-se a África e Ásia pelas rotas que atravessavam o
Atlântico. Era bastante comum que indivíduos, desejosos de fazer carreira no
império ou de simplesmente prosperar em alguma aventura, se engajassem
nas viagens que levavam para terras mais distantes. As colônias portuguesas
na Ásia eram as que mais careciam de oficiais; e para lá, foram muitos
brasileiros – alguns, inclusive, alcançaram destaque em suas missões (Moura,
2014). Nesse nosso breve Dossiê, queremos destacar três brasileiros que não
apenas foram para o Oriente, mas que chegaram a posições de relevo em
Macau, deixando contribuições indeléveis para a história dessa cidade.
O primeiro deles foi Antônio de Albuquerque Coelho (1682 - 1745), oficial
nascido no Maranhão, cujas desventuras e histórias foram narradas no livro
Jornada, que António de Albuquerque Coelho, Governador e Capitão General
da Cidade do Nome de Deos de Macao na China, fez de Goa até chegar à dita
cidade no anno de 1718, escrito por seu auxiliar, o capitão João Guerreiro.
Nascido do casamento de um Capitão-mor português e de uma nativa da
pequena vila de Santa Cruz de Macuttá, Antônio ganharia mundo, e
conquistaria posições de destaque na Ásia.
Nosso segundo personagem é Lucas José de Alvarenga (1768-1831), natural
de Sabará, e um dos mais destacados administradores da cidade de Macau,
que combateu os piratas chineses na defesa da cidade, deixou escritas suas
memórias sobre o evento, comprou brigas inúmeras com a sociedade local e
terminaria seus dias escrevendo e traduzindo poemas no Rio de Janeiro do
Brasil independente.
Nosso terceiro personagem é José Guimarães de Aquino Freitas (1780-1835),
proveniente de Minas Gerais, e autor da primeira história da cidade de Macau.
Antes dele, os cronistas costumavam comentar sobre o enclave português na
9
Ásia, mas sempre dentro de obras maiores. José Freitas foi um ativo
participante na administração dessa cidade, integrando a restrita elite
macaense, e auxiliando no desenvolvimento do projeto de levar especiarias
asiáticas para sua terra natal.
De fato, muitos livros sobre a China foram produzidos em português desde o
século XVI, tanto por viajantes como por funcionários e missionário jesuítas.
Até então, a China permanecia uma nação pouco acessível, que fascinava os
pensadores europeus e americanos. A metrópole portuguesa concebeu
diversos projetos para integrar mais eficientemente o império, tecendo relações
profundas entre Brasil, Macau e China. Quem quiser conhecer um pouco sobre
o mundo chinês entre os séculos XVI e XIX, pode encontrar excelentes obras
no acervo digital da Biblioteca Nacional, mostrando como o mundo lusófono
produziu um substancial conhecimento sobre a Ásia. Nesse nosso breve texto,
vamos investigar uma parte peculiar dessas relações Oriente-Ocidente, que
mostram como os brasileiros já participavam dessa ampla rede de integração
mundial.
Antônio de Albuquerque Coelho (1682-1745)
As peripécias de Antônio Coelho realmente mereceram uma narrativa
biográfica. João Guerreiro, seu auxiliar direto, acompanhou-o em grande parte
de suas desventuras na Ásia, e nutria uma simpatia sincera pelo seu chefe,
motivo pelo qual escreveu Jornada... Não era para menos. Antônio começara a
vida de maneira nada fácil: seu pai, Antônio de Albuquerque Coelho de
Carvalho, servira como capitão nas forças portuguesas, ocupando cargos
importantes na administração do Brasil colônia. Ele teve um breve romance
com Ângela de Bairros, mulata maranhense, do qual nasceu o pequeno
Antônio. Filho bastardo, igualmente mulato, sofreria os preconceitos acerbos de
uma sociedade racista e discriminatória.
Mesmo assim, lutou para conquistar uma posição social; aproveitando a
possibilidade de estudar em Portugal (conseguida, talvez, por influência do
pai), destacou-se nos estudos e na carreira militar, alcançando o posto de
cavaleiro e capitão, superando as dificuldades sociais e culturais da época.
Decidiu embarcar para Macau em 1708, tentando a sorte no Oriente. Após uma
viagem trágica, que por pouco não resulta em naufrágio, chega à Macau em
agosto do mesmo ano.
Tão logo arriba na cidade, Antônio divide a sociedade local; ele se enamora da
macaense Maria de Moura, uma criança ainda, cujo dote de órfão era grande.
Uns apoiam o jovem oficial, outros o repudiam. Ele não estava sozinho na
disputa, e rapidamente conquistou inimigos. Da peleja quase mortal, feita de
armadilhas e traições, saiu sem um braço – mas casado com Maria.
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Doravante, atuaria algum tempo no Senado, chegou a Ouvidor; contudo, os
conflitos reincidentes com membros da sociedade continuaram a pôr sua vida
em risco. As disputas por poder e privilégios na pequena colônia portuguesa
eram constantes. Em 1715, muda-se para Goa, onde continuaria a atuar nas
questões locais do império.
Até que, em 1717, ele recebeu a surpreendente incumbência de retornar a
Macau para governar a cidade. Fosse por sua experiência com a região, fosse
por ter conseguido construir uma rede de amizades, o cargo o recolocava no
epicentro das disputas da sociedade local. As querelas pessoais eram tantas
que nem mesmo um navio ele conseguiu para ir até Macau: foi necessário
atravessar a Índia por terra até chegar na costa leste, onde finalmente
conseguiu embarcar depois de comprar seu próprio navio. A viagem foi terrível,
e ele quase falece. Mesmo assim, consegue, com ajuda chinesa, chegar à
cidade e assumir o cargo.
Conjugando a recomendação de alguns amigos com tato, estratégia e a
experiência adquirida in loco, Antônio evitou vinganças pessoais e altercações,
conseguindo realizar um governo admiravelmente harmônico e bem sucedido.
Superando os preconceitos contra sua pessoa, o brasileiro passou dois anos
no comando de Macau, marcando sua presença na história do império
português. Sua administração bem sucedida o levou a ser indicado para o
governo de Timor, que assumiu em 1722, conseguindo restaurar a ordem local
e por lá permanecendo até 1725.
As desventuras da Jornada... param por aí; depois disso, a vida de Antônio é
reconstituída a partir de fragmentos. Depois disso, Antônio Coelho ainda
exerceu o governo da ilha de Pate (situada na África oriental) e atuaria também
em Moçambique, mas sem tanto sucesso. As disputas locais e as
precariedades dos recursos portugueses gradualmente solaparam as
possibilidades de sucesso nessas empreitadas.
Retornando a Goa, ele cessou suas viagens, ocupando posições de
importância nesse estado até sua morte, em 1744. A vida desse personagem
revela as dificuldades de construir uma carreira bem sucedida na sociedade
colonial, onde a mobilidade social era marcada por restrições e preconceitos.
Antônio Coelho foi prova viva de uma tremenda capacidade de superação,
tanto por conta dos percalços enfrentados, quanto por sua habilidade em
governar e trazer estabilidade as possessões portuguesas. Suas diversas
experiências transculturais acabaram lhe proporcionando uma visão sutil e
cuidadosa, e lhe granjearam uma notável reputação de liderança. Foi nas mãos
desse formidável maranhense que Macau (assim como Goa e Timor)
conheceram anos de ordem e segurança, administradas por alguém que vivera
– e sabia reconhecer – a importância fundamental das diferenças étnicas e
culturais na sociedade.
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Lucas José de Alvarenga (1768-1831)
Quase um século depois da passagem de Antônio Coelho, a situação de
Macau se encontrava periclitante. A coroa portuguesa pensara várias formas
de integrar, de maneira mais efetiva, suas colônias asiáticas; mas esses planos
foram malogrados pelas mais diversas circunstâncias. No início do século XIX,
duas ameaças graves rondavam essa cidade em especial: a primeira, a
invasão inglesa da cidade de Macau, a pretexto de ‘protegê-la’ de ataques das
forças napoleônicas; a segunda, o recrudescimento das razias piratas nas
costas chinesas, que prejudicavam indefinidamente o comércio marítimo
macaense, fonte principal de renda da colônia.
Assim como já tinham feito os holandeses, os ingleses também cobiçavam as
possessões portuguesas no Oriente. Se eram aliados na Europa, fora dela, a
relação entre lusos e britânicos costumava ser de concorrência, muitas vezes
tensa. As guerras contra Napoleão forneceram um pretexto para ocupar as
colônias orientais de Portugal. Em 1802, partiu uma frota britânica para ocupar
a cidade de Macau, que não chegou a concretizar seus propósitos; avisados do
Tratado de Amiens com a França, retornam sem levar a cabo sua missão.
Mesmo assim, a comunidade macaense ficou de sobreaviso. A retomada dos
conflitos na Europa incitou novamente o projeto inglês, e a frota do almirante
Drury chegou para sitiar Macau em 1808.
A essa altura, uma negociação grave e delicada se estabeleceu com os
invasores. Os britânicos forçaram sua presença, desembarcaram e ocuparam a
cidade, elevando o pico de tensão ao máximo. Embora os macaenses não
dispusessem de recursos para se opor diretamente a força invasora, eles
invocaram suas relações com o governo chinês para forçar uma saída.
Instigando o império manchu sobre a iminência de uma agressão inglesa
generalizada na região, eles conseguiram que o imperador Jiaqing (1796-1820)
despachasse uma força militar de oitenta mil soldados para ameaçar os
britânicos. Intimidado com essa presença, e receoso por abrir um frente de
combate absolutamente desfavorável, Drury recuou, ordenou a desocupação
da cidade, e acabou sendo forçado a retornar para a Inglaterra sem alcançar os
objetivos da coroa.
Nesse momento, duas figuras foram cruciais para a resolução dessa questão: o
ouvidor Miguel de Arriaga Brum da Silveira (1776-1824) e o brasileiro Lucas
José de Alvarenga. Mas antes de contarmos sobre as ações de Lucas José em
Macau, é indispensável falar da figura do Ouvidor. Miguel Arriaga era,
definitivamente, o político mais influente na Macau dessa época. Era um
defensor incansável da cidade, que abraçara como sua ‘pequena nação’; mas
elaborava planos para renovar o domínio português na Ásia (Teixeira, 1996).
Arriaga era um dos defensores da ideia de que se deveria plantar, no Brasil, as
especiarias e o chá que os europeus vinham buscar na China e na Índia. Bom
conhecedor das elites regionais chinesas, comunicava-se habilmente com elas
no plano político, assegurando a posição de Macau perante a dinastia Qing.
Tudo isso contribuíra para construir uma imagem poderosa e carismática em
12
torno do Ouvidor, cuja palavra era respeitada no senado e em todo restante da
cidade.
E foi logo com essa figura importantíssima que Lucas José de Alvarenga foi
trombar ao chegar em Macau, criando uma inimizade tão séria que influenciaria
até mesmo a escrita da história local. Lucas fora nomeado governador da
cidade em 1807, e sua chegada já foi profundamente prejudicada, pois ele
aproveitara a passagem da frota de Drury pela Índia para pegar uma carona...
Sem ter uma noção clara dos propósitos ingleses, ele foi envolvido no imbróglio
da invasão, e ao descer do navio, sua posição parecia incompreensível aos
olhos dos habitantes locais. Com a imagem arranhada desde a primeira
impressão, a passagem do novo governador seria rápida – mas muito intensa –
tornando-o uma das figuras mais controversas e interessantes na história de
Macau.
Lucas José Alvarenga nascera na pequena nobreza da cidade de Sabará, no
interior de Minas Gerais. Como muitos jovens de sua época que tinham alguma
posse e muitos projetos, foi para Coimbra, formou-se em Direito, e voltou ao
Brasil. Em Minas, associou-se ao governo regional de Bernardo José de
Lorena, futuramente o quinto Conde de Sarzedas. Ele nem poderia imaginar
que, mais a frente, o Conde seria nomeado vice-rei da Índia portuguesa, e o
levaria junto para o Oriente. Ao chegarem em Goa, o novo vice-rei decidiu
escolher alguém de confiança para o governo de Macau (nessa época, a
nomeação desse cargo era incumbência sua), e designou Lucas para essa
missão. A indicação, surpreendente, causou grande mal estar, pois ele ainda
não havia ocupado qualquer cargo importante em sua carreira.
Mesmo assim, Lucas José não recuou da empreitada, e tentou inteirar-se de
tudo que passava em Macau. Estudou livros, documentos e relatórios,
preparando-se, do jeito que podia, para cumprir sua tarefa. Obviamente, ficou
sabendo das relações políticas locais, e do papel de Miguel Arriaga. Suas
escolhas, porém, acabariam por revelar certa falta de habilidade diplomática. A
primeira delas, de embarcar com a frota inglesa, pode ter sido uma atitude mal
calculada de sua parte, para impressionar a sociedade macaense. O vice-rei
Bernardo de Lorena já imaginara que as relações com os ingleses poderiam
desandar, e a inclusão de Lucas na frota seria, assim, um meio de
contemporizar interesses e atitudes. De qualquer maneira, é difícil saber o
quanto Lucas José conseguiu ou não influenciar os planos de Drury. O
subsequente desembarque das forças britânicas deixou o novo governador em
maus lençóis, gerando a forte impressão de que ele estaria associado aos
inimigos. Sem mesmo conseguir assumir o cargo de imediato, suas primeiras
ações na cidade foram, de fato, acompanhar o movimento de resistência
empreendido por Miguel Arriaga, que terminou bem sucedido. A essa altura,
Lucas percebera que o Ouvidor representava, de fato, o personagem político
mais poderoso da sociedade local, o que poderia prejudicar o desenvolvimento
de seu governo. E opor-se a Arriaga se tornaria sua segunda escolha difícil.
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Isso ficou evidente quando, após a saída dos ingleses, os piratas chineses
voltaram a ser o principal algoz de Macau. Lucas buscou reunir população e
envidar esforços para combater a armada chinesa, liderada por Zhang Baozai
(Cam pau sai, em cantonês) e Zhengshi, pirata mulher que aterrorizava os
mares do sul da China. Organizando uma pequena frota, Lucas José conseguiu
dar combate aos piratas na Batalha da Boca do Tigre (entre 15 de Fevereiro de
1809 a 21 de Janeiro de 1810), uma série de enfrentamentos que conseguiram,
gradualmente, afastá-los da região. A guerra terminou num entendimento entre
Macau, o império chinês e os chefes piratas, que deram fim a sua frota. Arriaga
teria igualmente intermediado e tecido o acordo das três partes, aumentando
ainda mais seu prestígio. Detalhe peculiar: Zhang Baozai viraria mandarim e a
líder Zhengshi pirata acabaria se aposentando, vivendo depois, tranquilamente,
como dona de um cassino em Macau.
Esse raro momento de solidariedade entre Lucas José e Miguel de Arriaga (se
de fato houve) não arrefeceu o conflito entre a elite macaense e o governador.
Seus enfrentamentos com o Ouvidor não contribuíram para aumentar seu
poder ou fama, e ao fim de dois anos (em 1810), Lucas José seria chamado a
retornar para Goa, sem cumprir inteiramente seu mandato. Por trás disso, as
maquinações de Miguel Arriaga foram efetivas em pintar uma imagem bastante
negativa do governador brasileiro. Lucas José saiu do cargo, mas veio direto
para o Rio de Janeiro, onde a corte estava instalada. Buscava o favor de Dom
João VI, e uma nova posição na administração do império.
Lucas José foi vivendo sua vida como podia. Dedicou-se as Letras, escrevendo
alguns poemas, traduzindo outros, e tentava a sorte constantemente na
cerimônia do beija-mão do soberano. Como Arriaga era considerado um fiel de
Dom João, como qual se correspondia regularmente, é possível que a imagem
de Lucas permanecesse arranhada. Em 1817 chegou a ser cogitado
novamente para assumir o governo de Macau, mas nunca chegou a tomar
posse do cargo. Sem perspectivas de mudança na sua situação, ele decide
ficar no Brasil, e acompanha a independência em 1822. Contudo, em 1824, um
livro lançado em Macau iria revoltar nosso personagem: Ignácio Andrade
publicou Memória dos feitos macaenses contra os piratas da China e da
entrada violenta dos ingleses na cidade de Macao, no qual afirmava que Miguel
Arriaga havia sido o grande artífice da expulsão dos ingleses e da vitória sobre
os piratas chineses. E Lucas José? Fora absolutamente excluído da narrativa,
aparecendo somente numa breve citação como indolente e incompetente. Sua
irritação chegara ao ápice, e o nobre letrado brasileiro decidiu responder na
mesma moeda: correu a redigir e publicar sua própria versão dos fatos, no livro
Memória sobre a expedição do governo de Macao em 1809, e 1810 em
soccorro ao império da china contra os insurgentes piratas chinezes,
principiada, e concluída em seiz mezes pelo governador, e capitão geral
daquella cidade, Lucas José d’Alvarenga, authenticada com documentos
justificativos, que viria a prensa em 1828 (1828a). Obviamente, Lucas José
escrevera uma memória laudatória, mas queria que seu nome fosse lembrado,
e sua fama, justificada. Sua apresentação difere bastante do livro de Andrade:
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enquanto o primeiro construía uma narrativa livre, ele elaborou uma memória
referenciada em documentos, com o qual buscava subsidiar suas afirmações.
Notavelmente, sua obra não foi tão bem recebida, dividindo opiniões;
historiadores e literatos portugueses e macaeneses simplesmente optaram por
ignorar algumas das evidências de sua obra, e tornaram Ignácio Andrade sua
referência fundamental sobre o episódio.1 Em resposta a saraivada de críticas
que recebeu, ele ainda escreveria mais dois livros complementares sobre o
episódio: Artigo addicional à memória. (1828b) e Observaçoens à memória de
Lucas Jose d’alvarenga com as suas notas e hum resumo da sua vida (1830).
Seja qual for a verdade nos episódios da invasão inglesa e da ameaça pirata,
ela provavelmente está no meio do caminho entre as versões de Andrade e
Alvarenga. E qual a razão de Lucas José buscar tão avidamente, afinal, o
reconhecimento? Anita Correia Almeida (2007 e 2009) analisou a questão,
buscando reconstruir as ideias que iriam movê-lo a produzir essas importantes
obras sobre a história de Macau, mesmo já morando em um Brasil
independente. Como muitos que provinham da baixa nobreza, Lucas José
alimentava a ideia de que sua cultura letrada poderia lhe proporcionar um novo
posto na administração do país, resgatando seu prestígio e posição econômica.
Por essa razão, ele não apenas publicou suas memórias sobre Macau, mas
também, seu volume Poezias (1830), com obras autorais e traduções. Mostrar
erudição era um dos caminhos possíveis para superar as barreiras de
mobilidade social; mas dependia, igualmente, tanto das redes pessoais quanto
do beneplácito dos monarcas. Aparentemente, Lucas José Alvarenga não tinha
nenhuma das duas coisas, e terminou seus dias com o humilde salário de
capitão.
Cumpre salientar, porém, que o tempo lhe faria justiça. Não se pode mais
menosprezar suas contribuições para a história de Macau, e hoje, suas obras
são consideradas referências obrigatórias sobre esse período – ainda que,
eventualmente, um ou outro historiador mais conservador persista na defesa da
Memória... de Ignácio Andrade. Os livros de Lucas José, com seu retrato sobre
a cidade, sua riqueza de detalhes e informações formam um quadro precioso
sobre a ex-colônia portuguesa no início do século XIX, cujas contribuições
cruciais seriam completadas por outra obra inédita e original, igualmente escrita
por um brasileiro. É o que veremos a seguir.
José Guimarães de Aquino Freitas (1780-1835)
Em 1815, aportava em Macau José Guimarães de Aquino Freitas, oficial de
artilharia, proveniente de Minas Gerais, para servir no corpo militar da colônia.
Havia corrido apenas cinco anos da malfada experiência de governo de Lucas
Para termos uma ideia disso, Luis Gonzaga Gomes (1907-1976), um dos grandes sinólogos
de Macau, fez um resumo da história de Macau (republicado em 2015), no qual despreza
absolutamente a obra de Lucas José Alvarenga (Gomes, 2015).
1
15
José, e o prestígio de Miguel Arriaga estava em alta na cidade. Para o jovem
oficial brasileiro, essa informação era importante: ele estava pisando em um
terreno delicado, numa sociedade envolvida em disputas, recentemente
ameaçada por invasões e cercada pela onipresença chinesa. Provavelmente,
ele não demorou muito para se inteirar da situação local, bem como das brigas
que haviam envolvido Lucas José e Arriaga.
José de Aquino também viera de Minas Gerais, assim como seu compatriota,
mas de origem mais humilde. Não são muitas as informações que dispomos
sobre sua vida; diferente de Lucas José, ele não se preocuparia em escrever
suas próprias memórias. Também não se dedicara as Letras, mas galgara
rapidamente o oficialato no exército. Serviu durante algum tempo em Angola,
antes de seguir para Macau, onde iria encontrar uma nova vocação que iria
mudar seu papel na história da cidade.
Provavelmente, por força do exercício da profissão, José de Aquino pôs-se
cordatamente sob as ordens das forças locais. No entanto, não demorou muito,
e uma admiração legítima por Miguel de Arriaga se desenvolveu no oficial. É
fácil dizer que ele seria simplesmente um áulico e bajulador, mas isso seria
subestimar suas capacidades. Lembremos que Arriaga era uma figura basilar
na comunidade local, e tinha relações profícuas com a corte portuguesa e com
os chineses. Contrariá-lo estava longe de ser uma boa ideia, como a
experiência com Lucas José mostrou. Em sentido contrário, José de Aquino
começou a travar interessantes diálogos com o Ouvidor, no qual ficara
conhecendo seus planos para o império português. Essa foi a pedra de toque
para que ele gestasse a ideia de uma nova publicação, até então nunca
realizada antes.
Em geral, Macau era costumeiramente citada nas crônicas portuguesas sobre
a Ásia. Contudo, até o século XIX – incrivelmente – nenhum autor havia se
dedicado de forma específica a história da cidade. Foi nos diálogos com
Arriaga que José de Aquino (como ele mesmo afirma) imaginou escrever, pela
primeira vez, uma obra desse gênero. Seu objetivo era claro: preservar a
memória da cidade, descrevê-la, e revelar sua importância crucial na
continuidade do império. Foi assim que começou a nascer Memoria sobre
Macau, livro que se tornaria uma referência fundamental para a história da
Cidade.
Não sabemos ao certo quando, ou quanto tempo, José de Aquino se demorou
para construir o livro. Uma situação constrangedora se impôs no curso da
carreira deste oficial; Arriaga teve seu prestígio abalado pelas perseguições da
Revolução do Porto em 1820 (para o triunfo temporário de seus adversários),
chegando a se exilar em Cantão em 1823. Ele conseguiria refutar todas as
acusações, retornando a Macau e sendo aclamado pela população da cidade.
Apesar de ter recuperado seus prestígio, Miguel de Arriaga estava fragilizado, e
não conseguiria desfrutar por muito tempo desse período de retorno. Em 1822,
a independência do Brasil solapava em definitivo muitos dos seus planos para
16
o império. Em 1824, ele viria a falecer, deixando um vácuo no poder político em
Macau e enfraquecendo as redes políticas portuguesas na Ásia.2
Por essa razão, o primeiro livro que conhecemos de José de Aquino é Elogio
do sr. Miguel de Arriaga Brum da Silveira, publicado dois anos depois do
falecimento do Ouvidor (1826). A obra é um elogio rasgado à memória de
Arriaga, ressaltando sua carreira, seus feitos e planos. A admiração de Aquino
por seu mentor intelectual ficava explícita. A sinceridade da obra pode ser
medida pelo fato que ele nada colhera da herança política de Arriaga, que não
designara sucessores; e ninguém se apresentara, até então, como possuindo
as mesmas qualidades de negociação e liderança. No mais, esse sucinto texto
nos orienta sobre várias ideias em curso para restaurar o domínio português na
Ásia.
José de Aquino se afinava com a permanência do império, mesmo que
ressaltasse sua origem brasileira. Talvez, em sua visão das coisas, o mundo
luso-afro-asiático abria possibilidades amplas e enriquecedoras, ao qual seu
país de origem dava as costas com a independência. Aquino não se tornara
macaense, não se sentia português e não deixara de ser brasileiro: queria
apenas, provavelmente, que o Brasil continuasse a ser parte do império.
Assim, o livro que ele publicaria depois, Memoria sobre Macau, concretizaria o
projeto de construir uma narrativa sobre a história da cidade e sua importância
geopolítica. Publicado em 1828, a obra era pequena e sucinta, trazendo dados
geográficos, econômicos e culturais, além de uma breve dissertação sobre as
ideias de Miguel de Arriaga sobre as relações entre Macau, Timor e Goa.
Embora seguisse um roteiro tradicional, Memoria sobre Macau era,
definitivamente, o primeiro livro de história sobre a cidade, tornando-se um
marco para a compreensão da história luso-oriental.
No entanto, desde aquela época – infelizmente – era comum conhecer e dar
mais valor ao que era publicado em outros países do que na própria terra natal.
Por alguma razão desconhecida, o trabalho original de José de Aquino passou
despercebido. Não temos ideia do quanto a obra circulou, e se o fim do
‘período Arriaga’ determinou a obsolescência ou o ostracismo do livro. Seja
como for, em 1836, o autor sueco Anders Ljungstedt publicou A Historical
sketch of the Portuguese settlements in China and of Roman Catholic Churches
and Missions in China, obra que seria considerada por anos como a ‘primeira
história oficial de Macau’. José de Aquino não testemunhou essa
incomensurável injustiça; em torno de 1835, ele já se mudara para Portugal e
exercia a prefeitura em Coimbra, quando veio a falecer.
Ivo Carneiro de Sousa (2007) analisou a obra de José de Aquino, mostrando
como o apoio do governo português na tradução e divulgação do livro de
Ljungstedt contribuiu sensivelmente para eclipsar a originalidade de Memoria
Miguel de Arriaga segue, porém, sendo considerado uma das figuras fundamentais da história
macaense, e sua memória é usualmente louvada nos textos de divulgação.
2
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sobre Macau. O texto do autor sueco estabelecia uma narrativa que valorizava
a autonomia portuguesa frente aos chineses; o livro de José de Aquino era
objetivo, resumido, direto e não necessariamente elegante. Havia pontos
sensíveis no texto; as críticas ao abandono das colônias asiáticas, a
reestruturação da exploração das mesmas, o comércio de ópio como uma
opção lucrativa, entre outras coisas. Nada disso chocava seus contemporâneos
no século XIX, mas o livro não se circunscrevia a ser um trabalho de história,
sugerindo teorias e soluções, o que pode ter diversificado e/ou limitado o
interesse dos leitores pelo mesmo.
Com o tempo, como aconteceu com Lucas José Alvarenga, José de Aquino
acabou recebendo o devido reconhecimento sobre o ineditismo de seu livro,
angariando a simpatia do público e o interesse dos pesquisadores. E mais uma
vez, um brasileiro legava uma importante contribuição para a história de
Macau, mostrando que desde aquela época Brasil e China estavam bem mais
próximos do que muitas vezes sabemos.
Referências
André Bueno é Prof. Ass. História Oriental da UERJ.
Almeida, Anita Correia de Lima. Um ilustrado mineiro no governo de Macau. In:
Andréa Doré; Antônio Cesar de Almeida Santos. (Org.). Temas setecentistas:
governos e populações no império português. Curitiba: UFPR, 2009, p. 135142.
Almeida, Anita Correia de Lima. Um ilustrado mineiro no governo de Macau
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Teixeira, Pe. Manuel. Miguel de Arriaga. Macau: Imprensa Nacional, 1996.
20
VISÕES SOBRE O JAPÃO E JAPONÊS NA PRIMEIRA
METADE DO SÉCULO XX NO BRASIL: ENTRE
PRECONCEITO E EXOTISMO.
Douglas Tacone Pastrello
Nos jornais e revistas da primeira metade do século XX, os japoneses eram
vistos de três principais modos. Um povo trabalhador que tornou sua nação
potência rapidamente e um povo oriental de costumes exóticos. Por outro lado,
críticas também estampavam manchetes, artigos de jornais e revistas, sobre a
incompatibilidade da raça “brasileira-europeia” com o a japonesa. A partir da
década de 1930 e a eclosão da conquista japonesa na China, os japoneses se
tornam uma ameaça militar, o “perigo amarelo”.
Nas primeiras décadas da imigração nipo-brasileira, os japoneses aparecem
nas páginas de jornais como o “Correio Paulistano” oferecendo serviços
urbanos ou por meio da venda de utensílios domésticos, como “louças
japonesas”, “pratos japoneses” ou “vestes japonesas”. De todo modo, o
exotismo japonês é visto como arte e objeto de desejo para a classe média que
consome a imprensa do momento.
A revista “Fon-Fon”(Rio de Janeiro) é uma das que mais se destaca nesse
exotismo comercial japonês. Em 1909, veiculou a seguinte publicidade sobre o
Bazar Japão:
21
A imagem apresenta o então presidente da república Afonso Penna, o ministro
da guerra Hermes da Fonseca (e futuro presidente), o ministro de relações do
exterior Barão do Rio Branco e o ministro da indústria Miguel Calmon Almeida.
Todos trajados de quimonos japoneses enquanto discutem sobre o chá, jiu-jitsu
e pasta de dentes. A utilização de figuras públicas importantes do momento
destaca o apelo da propaganda cultural para a venda, se até o presidente
estaria interessado, por que não um cidadão comum?
Outro detalhe relevante da peça é a menção a arte marcial japonesa. Os
recentes êxitos militares do Japão sobre outras potências, em especial ao
Império Russo, destacam aspectos positivos ao povo japonês. O suposto
treinamento militar brasileiro a partir do jiu-jitsu demonstra a eficiência da arte e
a grandeza da cultura japonesa. O poder bélico japonês neste início do século
XX ainda servia de inspiração, pois o fato de uma pequena ilha da Ásia ter
derrotado um massivo império europeu – a Rússia – era digno de aplausos. O
Japão era visto como eficiente nos campos da educação, do poder bélico e da
cultura. Na parte iconográfica, a imagem apresenta as autoridades brasileiras
com feições orientais e baixa estatura, assim como os povos japoneses eram
descritos. Evidentemente, o principal objetivo é a promoção do Bazar ilustrado,
mas isso não significa que a escolha artística aplicada não carregue outros
detalhes em suas entrelinhas.
22
Já na edição 43 do ano 1922 dedicou uma página inteira a seguinte
propaganda:
As gueixas estavam entre as coisas que mais chamavam a atenção ao
exotismo japonês, vide a representação de dois manequins de gueixa em uma
vitrine no centro comercial da capital. Buscava-se vender esse ideário como
luxo, necessidade e experimentação. Em edição anterior do mesmo ano, a de
nº 39, publicaram a mesma foto usada na edição 43 com os dizeres “De todos
os pavilhões estrangeiros da Exposição, o que mais tem sido alvo da
curiosidade publica é,sem duvida, o japonez”(FON-FON, 1922. N.39. p.58). Em
23
sequência afirmam que “Vitrines luxuosas, caprichosamente ornamentadas e
encerrando inestimaveis objectos, que só a paciência infinita dos nipônicos
poderia conceber[...](Ibid). Encomendada ou não, a matéria assinala o
comércio da cultura japonesa, representando este lado do desejo ao exótico.
Entretanto, vale salientar que esta admiração exótica não se exclui de uma
interpretação preconceituosa, pois coloca a cultura nipônica como objeto de
admiração circense apenas. Segundo Maria Luiza Carneiro (2010), essa busca
pela moda japonesa é consequência da redescoberta do Japão no século XIX
pelo ocidente e pela solidificação do Japão como potência global no alvorecer
do século XX. Essa idealização cultural abusa de estereótipos como forma de
promover admiração, algo que, para a autora, desperta desejo na elite
brasileira. Carneiro aponta a seguinte peça, também de 1909, para ilustrar esse
desejo elitista ao exótico japonês:
Na imagem lê-se “A senhorita Maria da Glória, filha do Dr. Antonio Pagliano,
trajada à moda das súbditas do Mikado”. Portando um leque, sombrinha,
sapatos japoneses, o penteado das gueixas, um quimono e com Copacabana
no horizonte, a moça “fornece a ilusão de estar diante de uma representação
24
convincente de uma mussumê”[moça ou filha] (CARNEIRO, 2010. p.33).
Portanto, o exotismo japonês representa essa ambiguidade em relação ao
“amarelo”, por um lado é um povo delicado, culturalmente forte e inteligente,
mas é, também, um povo belicoso e de “falsos sorrisos”.
Em outro periódico, “O malho”(RJ), os traços culturais japoneses foram
destaque em um artigo de 19363 chamado “O Beijo no país das cerejeiras”. O
artigo já se inicia relembrando o estereótipo da delicadeza e destacando que o
povo japonês desconhece o beijo, tanto fraterno quando de amor. Em
sequência, associa-se o Hara-Kiri[forma como o suicídio pela honra, seppuku,
ficou conhecido no ocidente] com a frustração amorosa, propondo a solução
por meio do kissu, o beijo. A concepção deste artigo evidência, mais uma vez,
o exotismo cultural do Japão, baseado em estereótipos que mais se
assemelham ao mal gosto de um hotel com temática egípcia do que uma
admiração propriamente dita. Em suma, o desconhecimento do seppuku
enquanto uma prática relacionada a moral e a honra, assim como a idealização
do amor ocidental na cultura nipônica deixam evidentes como o Japão é visto
como uma obra de arte em museu e não uma cultura viva.
Na mesma linha de raciocínio é publicado a matéria “Os milagres do
Shintoismo”, na edição 236 de 1937. A publicação trazia paralelos do sucesso
japonês, especialmente nos seus avanços militares, à cultura religiosa vigente
no país. A revista faz menção as orações públicas do primeiro-ministro Ito
Hirobumi. Na matéria vincula-se o xintoísmo japonês ao ocultismo,
descrevendo as “características telepáticas da religião”, assim como “intensivo
treinamento para telepatas”. O “furo” jornalístico vai além e afirma que durante
a guerra russo-japonesa a telepatia serviu para o envio de ordens e estratégias
militares e como o relato de um “padre shintoista” que teria salvado três
pescadores a 13 milhas de distância do mar, com sua telepatia. O artigo,
assinado por Demetrio de Toledo, diretor da revista Sombra e Luz, definida
como espiritismo científico e ocultismo, pode não expressar uma ideia
exclusiva da revista “O malho”, mas aborda esse exotismo e mistério que cerca
a cultura japonesa. A decisão de publicar tal escrito, independentemente da
posição da revista sobre o suposto ocultismo japonês, evidência essa
característica paisagística da cultura japonesa na imprensa.
Para além do exotismo, houve imensa admiração pelo crescimento do Japão
que passou a servir de modelo para a recente república brasileira. A imprensa
carioca, paulista e até paranaense frequentemente emitiam artigos louvando a
educação japonesa, o senso de conduta do país e os colocando como exemplo
para brasileiros, tidos como analfabetos e/ou preguiçosos.
Em extenso artigo, nomeado “A instrução no Japão”, Amandio Sobral disserta
sobre a distribuição e forma do ensino japonês em 1908 no jornal Correio
Paulistano. No artigo disserta-se sobre a grandiosidade numérica e material do
ensino japonês, argumentando que o cidadão ideal deve possuir boas
3
Edição 152, página 14.
25
faculdades mentais e físicas. Em tom de reverência, o autor aponta como a
leitura no Japão é amplamente ensinada, demonstrando os altos números de
periódicos, livros e jornais do Império nipônico. Considerando o nível
educacional e contexto brasileiro do momento, não é difícil imaginar como
estes dados chamariam atenção, ilustrando o crescimento até o nível de
potência do Japão. Por fim, o artigo descreve a equidade de homens e
mulheres no ensino e como a imprensa possui um papel fundamental nesse
Japão letrado.
Esse artigo pode ser compreendido não somente como um esforço de
contextualização da geopolítica global, mas como uma ode ao ensino japonês.
As transformações da nação japonesa não passavam imperceptíveis para as
mentes do Brasil. Como afirmado em capítulos anteriores, o Império japonês
neste momento é visto como exemplo para um país subalterno como o Brasil.
O desafio colocado pelas tropas japonesas as nações “ocidentais” foi algo
nunca visto anteriormente, uma vez que a Europa sempre era considerada o
centro do mundo ocidental e era tida como a “conquistadora do mundo”.
Em 1930, na edição 47 do Jornal do Commercio(RJ), Mario Pinto Serva
assinou um artigo intitulado “O dever dos intellectuaes brasileiros”. O artigo
aponta um problema na educação brasileira, que segundo o autor, encontra
problemas de “organização”, transparecendo uma crítica velada a cultura
brasileira:
“Por isso é que entendemos que o problema da educação no Brasil não é um
problema de methodos, mas sim de organização. O essencial é em cada um
dos 21 Estados uma organização que leve aos cérebros de todos os brasileiros
sem excepção o mínimo de luz com a qual eles possam aperfeiçoar-se por si
mesmos. (JORNAL DO COMMERCIO, 1930. Edição 47. p.11)”
O artigo segue a ideologia do auto sacrifício japonês promovido pela cultura da
honra nipônica. Serva, aponta que a nossa cultura no momento é incapaz de
produzir ideias e que “nossos patrícios não possuem nenhuma luz intelectual”.
Parte disso, para o autor, reside no fato de os “povos latinos” educarem
somente suas classes superiores. Para corrigir o problema sugere-se a
ampliação da leitura, criação de bibliotecas e o nivelamento educacional entre
as classes sociais. A idealização nipônica é promovida deliberadamente,
afirmando que o Brasil, caso fosse dominado pelo povo japonês, em meras
décadas já não se reconheceria.
Pinto Serva exalta, por meio da escrita, a necessidade da organização nacional
em prol da educação do povo, uma educação deliberada e generalizada como
ocorreu no Japão. O embasamento de Serva para tal conclusão reside nas
estatísticas militares do período, em que as maiores potências são aquelas
mais educadas. De fato, o Japão era uma potência educacional, possuindo o
maior aporte literário do globo em 1930: mais jornais, mais livros publicados e
menor índice de analfabetismo entre as potências. O preconceito ao “cabloco”
26
ignorante e brasileiro foi respaldado pelo próprio brasileiro, que via no japonês
um cidadão ideal e invejável.
Obviamente, está é uma visão da classe média que estava habituada ao
estudo, a leitura e ao consumo de jornais. Logo, o artigo de Pinto tem como
público-alvo aqueles que já possuem o “dom intelectual”, tendo sido
previamente endereçado para essa elite, algo enfatizado pelas citações em
francês e latim do artigo. Distante de outras correntes eugenistas do momento,
o artigo expressa uma opinião que ressonaria até os dias de hoje no senso
comum. A citação de países do extremo oriente, como Japão, Coréia do Sul e
Cingapura, como exemplos de crescimento por meio da educação pública é
algo que ainda é recorrente na cultura brasileira.
A elite intelectual brasileira muito habituada ao estudo fora do país na primeira
metade do século XX sempre buscou modelos para o Brasil. Entretanto, o
artigo foge do padrão ao enaltecer uma nação não ocidental neste aspecto. E
de fato, a educação japonesa teve um papel importante nesse novo Império
japonês. A educação compulsória e um estrito código moral vigente para os
cidadãos exprimem o desejo de sucesso de Serva Pinto na citação Qui leges
sime moribus?, do latim “que leis estão prosperando na moral?” Os problemas
organizacionais apontados pelo autor podem, também, serem entendidos como
essa falta de controle moral da população brasileira.
Também, no ano de 1930, o Jornal do Commercio(RJ) publicou a matéria
“Aspectos do Japão”, sobre a viagem do professor Juliano Moreira ao Japão.
Semelhante a matéria de 1908 do correio paulistano, o artigo faz uma
genealogia do ensino universal japonês, voltando as raízes do século XIX,
memorando o ensino a ambos os sexos, os números de leitores e publicações.
Este detalhe é importante, pois como mencionado anteriormente o número de
publicações em vigor no Japão durante o século XX era maior que as grandes
potências ocidentais. Os detalhes do avanço japonês na educação e nos
conflitos militares eram coisas tidas como inesperadas de um povo, primeiro
não europeu, segundo não branco. A reverência ao sucesso japonês é
evidente em diversos periódicos e períodos por intelectuais brasileiros, sendo
reconhecido pela imprensa de modo geral.
Entretanto, apesar de descrições positivas em relação ao Japão, sua cultura e
ensino – principalmente – há um claro distanciamento para com o povo
japonês. A cultura é digna de admiração, mas exótica, apreciada em justas
medidas. Enquanto o ensino é louvável, mas extremamente vinculado ao “gene
japonês”, como se tais ideias fossem impossíveis de serem alcançadas por
outros povos, tal como o brasileiro.
Em síntese, pode-se explicar este fenômeno por meio da geografia humanista
de Yi-Fu Tuan(1980). Na “teoria de centro” do autor, uma cultura tende a
personificar seu centro cultural como padrão e correto, enquanto a medida que
nos distanciamos geograficamente deste centro passamos a pensar as culturas
distantes como bizarras, anormais e não identificáveis. O Brasil, por sua vez,
27
apesar de sua miscigenação com povos africanos, indígenas e europeus, tinha
como centro cultural o branco europeu. Logo, a identificação cultural brasileira,
especialmente da classe média letrada, era ainda com povos da Europa. Além
disso, o desejo de branqueamento da população por meio da imigração
representava essa visão da elite. Aos olhos da classe política e da elite o Brasil
era em seu núcleo branco e europeu, devendo assim permanecer.
Quando dividimos o mundo entre “Ocidente” e “Oriente”, já pressupomos uma
diferenciação binária que categoriza totalmente povos e culturas de maneira
arbitrária. A Australia, por exemplo, é mais próxima das longitudes do Japão do
que da Inglaterra, entretanto é considerada ocidente. A cultura brasileira pouca
coisa se parece com a cultura parisiense, mas ambos se categorizam como
ocidente. O fenótipo do Oriente Médio possui pouquíssimas paridades com o
nipônico e ambos são vistos como orientais. Assim sendo, percebe-se que
essa divisão binária não possui relação com fenótipos e/ou distância
geográfica, é uma decisão arbitrária baseada em uma suposta identificação
cultural. Logo, essa identificação brasileira do momento com a cultura branca e
europeia resulta neste cuidado técnico e distanciado ao tratar da cultura
japonesa. A centralização cultural brasileira no padrão europeu deixa visível
que eventualmente o japonês seria visto como um problema.
Deste modo, a cultura japonesa conforme vista nos documentos acima, sobre
uma visão paradoxal ao ser confrontada com a realidade dos núcleos
japoneses em solo brasileiro que possuíam, também, características próprias e
japonesas, mas parecem praticamente ignorados em grande parte, a exceção
da política. Na política nacional, especialmente na década de 1930 há um
grande esforço pela proibição do não europeu, com o japonês incluso. Nesta
visão eugenistas, creditasse aos não caucasianos uma genética não digna e
nociva. Logo, denota-se como as visões em torno do japonês pela elite e
classe média de maneira geral no Brasil, mesmo quando positivas, recaem
sobre um preconceito racial e exotismo que dificilmente encontrariam um
respaldo real ao serem confrontados com a realidade.
Referências
Ms. Douglas Pastrello atualmente é doutorando no programa de História
Política da Universidade Estadual de Maringá, possuindo pesquisa com ênfase
no Japão contemporâneo do século XX e uso do cinema enquanto fonte
histórica.
Luiza. A biotipia do imigrante ideal: Nem negro, nem Semita, nem Japonês. In:
Imigrantes japoneses no Brasil: trajetória, imaginário e memória. São Paulo:
Edusp. 2010. p.63-96.
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http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364356046_ARQUIVO_An
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TUAN,Yi-fu. Topofilia. São Paulo: Difel. 1980.
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Correio Paulistano, 1908. Edição 16233.
Jornal do Commercio, 1930. Edição 47.
Jornal do Commercio, 1930. Edição 190.
Jornal do Commercio, 1930. Edição 47.
Jornal do Commercio, 1930. Edição 190.
Revista Fon-Fon, 1909. n.12.
Revista Fon-Fon, 1909. n.46.
Revista Fon-Fon, 1922. Edição 39.
Revista Fon-Fon, 1922. Edição 43.
O malho, 1932. Edição 1523.
O malho, 1936. n.152.
O malho, 1937. n.236.
29
HALLYU, CONSUMO E REPRESENTAÇÕES: PRÁTICAS
DE APROPRIAÇÃO DENTRO DAS COMUNIDADES DE
FÃS BRASILEIROS DE CULTURA POP SUL-COREANA
Hannah Soares do Amaral
Introdução
A popularização dos diversos segmentos do entretenimento sul-coreano, através
da produção e exportação de suas músicas e produções televisivas pelas
plataformas de streaming e redes sociais vem conquistando cada vez mais
admiradores e fãs ao redor do mundo que consomem estes produtos, modificamos e utilizam-os para transformar sua realidade social.
As relações vivenciadas pelo público em função do contato com estes conteúdos
dependem dos significados e atribuições que estes indivíduos fazem de si
mesmos ao imprimir neles seus valores sociais e propagá-los em função de seus
próprios interesses. Adiante, serão mostradas como a lógica do ``ser fã´´ se
insere dentro das relações obtidas com o advento da internet e os serviços de
compartilhamento e acesso a informação cada vez mais disponíveis ao consumo
midiático e como ser fã ganha aspectos cada vez mais ativos à medida em que o
envolvimento com seus respectivos objetos dá margem para a criação e
compartilhamento de ideias e produção de serviços que intensifiquem a
experiência de ser fã.
Somos todos fãs
Gostar de alguma coisa é natural do ser humano. Todos gostamos de algo, desde
a comida até programas de TV, todos possuímos coisas que nos agradam e nos
dão sensação de prazer e satisfação ao poder interagir com elas e uns com os
outros sobre elas. Assistir uma série de TV, por exemplo, pode ser tanto um
momento de lazer sem qualquer relação com os gostos pessoais do indivíduo ou
do grupo quanto uma oportunidade de compartilhar com mais pessoas de
interesses semelhantes sobre aquilo que gostamos e depois, poder conversar e
interagir em cima disso.
A cultura é um prato cheio para isso: estamos sempre procurando coisas que nos
chamem a atenção para consumir, conversar e até produzir sobre elas. Estes
indivíduos são chamados de `fãs´ e seus grupos são chamados de `fandom´
30
(junção das palavras em inglês ``fan´´ e ``kingdom´´, seria algo como ``reino de
fãs´´) e estes são integrantes de uma cultura que gira em torno da participação
individual e coletiva na construção de atividades relacionadas ao objeto de
interesse, ou objeto de fã que, de acordo com Blanar e Glazer (2018) são:
``Esses pontos focais comuns são conhecidos como objetos de fã — uma
celebridade, marca, organização, passatempo ou mídia, como um filme, livro ou
música que funciona como um nexo de emoção e atividades. Eles são um núcleo
importante, um centro de gravidade que puxa um grupo de pessoas e lhes dá algo
compartilhado para se unirem.´´ (BLANAR, GLAZER, cap. 1).
Com o advento da internet, o fandom ganha mais poder de interação e as
possibilidades de participação se multiplicam. No contexto da Web 2.0 (termo
cunhado em meados da década de 2000 por Tim O'Reilly para descrever a
segunda geração de serviços online) onde torna-se possível obter uma maior
participação ao passo que, o acesso à informação e a interação entre os usuários
também aumenta com a disponibilização de serviços como de download de
músicas, blogs e redes sociais (PRIMO, 2007). Segundo Jenkins (2015), as
comunidades de fãs são as primeiras a experimentarem estes serviços em prol da
própria experiência de interação entre fãs e da possibilidade de trocas sociais e
culturais. Isso acontece de maneira perceptível entre os fãs de música, estes
podem, através da internet fazer o download de suas músicas preferidas ou
simplesmente comentar nos videoclipes que são postados no Youtube. À medida
que mais serviços tornam-se disponíveis para os usuários, as interações e formas
de engajamento também vão se modificando e novas são criadas e
ressignificadas a partir das necessidades dos fãs. A globalização é a grande
culpada disso, hoje é possível encontrar informações advindas de praticamente
qualquer lugar do globo terrestre como, por exemplo, se uma pessoa (ou fã) do
Chile quiser ouvir uma música tailandesa, ela poderá fazer com apenas um clique,
esta mesma atividade, anos atrás, não seria tão fácil.
Hallyu: porque a cultura coreana?
Se você pesquisar na internet as palavras ``k-pop´´ ou ``k-drama´´, vai se deparar
com milhares de resultados envolvendo essas duas palavras e, se você tem
mesmo que um pouco, de presença nas redes sociais já deve ter se deparado
com alguma postagem relacionada a essas palavras. A popularidade delas não é
por acaso: as palavras ``k-pop´´ e ``k-drama´´ descrevem a música pop sulcoreana e as séries de TV sul-coreana, respectivamente, e o sucesso delas é
fruto de um investimento pesado do governo de seu país de origem para projetar
sua imagem internacionalmente através de dispositivos de mídia que incluem
entre outros, música, séries de TV, cinema, produtos de beleza, moda e também
a culinária.
A onda Hallyu ou Onda Coreana é o termo usado para descrever este fenômeno.
O termo foi popularizado pela mídia chinesa ao descrever o sucesso das
produções televisivas (os k-dramas — ``korean dramas´´ — dramas coreanos,
em tradução livre), dos restaurantes coreanos e da indústria automobilística
31
tornando-se um termo de conotação nacionalista (YOON; KANG, 2017). Mas não
se deve somente a isso, pois o boom coreano emerge diretamente da história sulcoreana como um todo, a partir do período de redemocratização ocorrido entre as
décadas de 1980 e 1990 onde novos conteúdos estrangeiros passaram a adentrar
na sociedade e influenciaram na produção cultural (SOUZA, 2015). A crise
econômica de 1997 fez com que o país ponderasse sobre a reconstrução de sua
economia e aplicasse seu investimento em políticas públicas centradas no
fortalecimento da indústria do entretenimento e, com políticas protecionistas
contra a influência de culturas estrangeiras (principalmente do Japão pelo
passado de dominação colonial, e dos EUA pela presença durante a guerra da
Coreia e introdução dos estilos musicais norte-americanos), tais investimentos
contribuíram para o crescimento da indústria audiovisual (SILVA; FARIAS, 2021),
sendo visto na forte aceitação que recebeu da audiência chinesa e japonesa.
Ainda na década de 1990 vemos o cenário da indústria musical sul-coreana
projetando-se da forma como veio a se constituir posteriormente como é
conhecida atualmente. Através da influência e mistura de diversos ritmos musicais
estrangeiros como o pop, hip-hop, rap, dance, entre outro;, a música e a indústria
musical foi ganhando novos contornos principalmente, com a adoção do sistema
de treinamento de idols (ídolos, em inglês) característico do mercado musical
japonês, uso de coreografias e forte apelo visual visto nos videoclipes, conhecidos
pela sigla ``MVs´´ (do termo em inglês, music video que significa vídeo musical).
Apesar de ter dado seus primeiros passos na década de 1990, levou cerca de
vinte anos para o k-pop chegar aos ouvidos de um público massivo fora de seu
país de origem. Foi através do sucesso conquistado pela música Gangnam Style
do rapper Psy em 2012, que muitas pessoas tiveram contato pela primeira vez
com o k-pop e a música tornou-se um fenômeno global. O sucesso alcançado
pela música e a visibilidade conquistada para o K-pop ajudou no reconhecimento
da indústria sul-coreana de entretenimento e contribuiu para uma maior produção
de entretenimento coreano além de ajudar na afirmação da identidade nacional
para a população de seu país de origem através da propagação dessas mídias.
Quanto aos k-dramas, sua projeção para o mercado internacional se deu primeiro
dentro do continente asiático para depois, conquistar o mundo. O primeiro caso
registrado do sucesso de uma produção televisiva sul-coreana em escala
internacional ocorreu com o k-drama Winter Sonata de 2002 no Japão, seguido
pelo k-drama Dae Jang Gem (2003-2004) que foi febre em vários países do
sudeste asiático, além de ter sido vendido para cerca de 120 países (YOON,
KANG, 2017). O caso dos k-dramas em escala global é um fenômeno mais
recente, e está atrelado a disseminação dos serviços de streaming,
principalmente da Netflix que possui em seu catálogo títulos de origem sulcoreana e investe em produções originais.
Com um investimento massivo não só na produção, mas também na exportação
de sua própria cultura, não é de se estranhar que o entretenimento sul-coreano
esteja fazendo sucesso e conquistando adeptos de todos os lugares do globo.
Com suas próprias características que a diferem da mídia ocidental, a Indústria
32
Cultural sul-coreana apresenta novos formatos em seus produtos
comercializados, seja na indústria da música com o sistema de treinamento de
idols ou os ideais românticos retratados em seus k-dramas.
Fandoms transculturais: os adeptos da Hallyu no Brasil
A estratégia utilizada pelo governo da Coréia do Sul com a exportação de seus
produtos culturais é um exemplo de política de Soft power, em que um país se
utiliza de um determinado objeto para mostrar-se a outros países da forma que
quer ser visto. No caso da Coréia do Sul, o país se apresenta ao mundo através
de seus maiores produtos comerciais — o k-pop, os k-dramas e a indústria da
beleza — a fim de ser lembrada pelo seu bom trabalho com os tais.
Estes produtos, pensados numa primeira vista para as demandas do mercado
interno e depois para o mercado externo, são recebidos por ambos de maneiras
bastante distintas e não param no público consumidor mas, continuam sendo
consumidos e reelaborados conforme os interesses dos fãs. Para exemplificar,
vejamos o caso do k-pop como um produto advindo de uma cultura
geograficamente e culturalmente distante mas que possui um forte apelo de
consumo.
O k-pop é considerado um fenômeno global à medida que arrasta uma gama de
fãs apaixonados e que são, sobretudo, internacionais ou seja, fora dos limites de
seu país de origem. Apesar de parecer ser apenas música, vai muito além disso e
engloba videoclipes (MVs), álbuns, shows, produtos licenciados, etc. Além de
consumi-los, os fãs podem produzir em cima do que lhes é acessado e criar
novos produtos e formas de interagir com seus artistas e músicas favoritas. Neste
processo, os fãs deixam de ter uma posição de receptáculo para interferir
ativamente sobre seus respectivos objetos de interesse. Para Jenkins (2015) essa
é também umas das razões de ser do fandom à medida que dá abertura para que
outros venham a integrar a comunidade (JENKINS, 2015).
Os fãs internacionais podem encontrar dificuldade em interagir com seus objetos
de fã por diferentes motivos: por estar em idioma estrangeiro, pela dificuldade de
acesso a conteúdo, pela qualidade com que esse conteúdo é disponibilizado, etc.
Neste processo é que se insere um serviço muito difundido entre os fãs da Hallyu
principalmente no contexto dos k-dramas no Brasil, que é a prática de fansubbing
(legendas feitas por fãs), prática esta que consiste em disponibilizar conteúdos
que por meios oficiais dificilmente chegariam as comunidades de fãs; a prática,
que recorre a pirataria e não possui fins lucrativos, tem por principal argumento
ser um serviço feito “de fã para fã” cujo objetivo é democratizar o acesso a tais
conteúdos quando se encontram indisponíveis.
No Brasil, esta prática se popularizou através dos k-dramas e animes japoneses.
Se hoje é possível acessar um vasto catálogo nas plataformas de streaming para
assistir a uma produção asiática, ou para ouvir o seu artista favorito, isso se deve
em alguma proporção, graças ao público que acessava os fansubs e a visibilidade
alcançada para estes conteúdos.
33
Assim como no caso dos fansubs, os fandoms brasileiros tiveram de se colocar
como criadores e mediadores dentro da lógica do consumo midiático de seus
respectivos objetos de fã. Tanto pela distância cultural quanto pela aproximação
trazida pela internet, os fãs brasileiros da Hallyu estão a todo momento se
transformando e modificando suas atividades para melhorar suas experiências de
fã.
Fandom e apropriações
O historiador Peter Burke, ao se referir a países com facilidade de assimilar
elementos culturais de fora, afirma existirem países com "tradição de apropriação"
sendo favoráveis à troca cultural (BURKE, 2003), da mesma forma dentro dos
fandoms multiculturais essas trocas culturais acontecem mutuamente em favor de
seus interesses em comum visando uma melhor experiência coletiva e individual.
Para quem faz parte do fandom não se trata apenas de produtos que os fãs
compram, não é apenas um CD, não se trata apenas de uma série ou de um filme
interessante; mas concede a estes fãs uma oportunidade de adentrar a cultura
coreana através desses objetos: seja ao colecionar pôsteres, aderir a um estilo de
se vestir influenciado por seus artistas favoritos ou até mesmo aprender o idioma
para poder cantar as músicas ou quem sabe, viajar até a Coréia do Sul e
conhecer as locações dos k-dramas e MVs favoritos — as possibilidades são
muitas. Segundo Silva e Farias (2021) estes produtos “proporcionam uma
vivência emocional com os seus consumidores, como forma de experimentação
do contato com a cultura coreana" (SILVA; FARIAS, 2021, p. 598) ao interagir
com os produtos é como se os fãs estivessem deixando de ser espectadores e
assumindo voz ativa sobre seus objetos de interesse. Consumi-los significa se
inserir dentro da cultura e compor as representações de mundo que estes
possuem sendo determinadas pelos interesses em grupos (CHARTIER, 2003) ou
nesse caso, do fandom. É imprimir um sentido de pertencimento a uma cultura
mesmo estando a milhões de quilômetros de distância.
Referências
Hannah Soares do Amaral é graduada em Licenciatura em História pela
Universidade Federal da Paraíba.
BLANAR, Zoe Fraade, GLAZER, Aaron M. Superfandom: como nossas
obsessões estão mudando o que compramos e quem somos. Rio de Janeiro:
Anfiteatro, 2018.
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CHARTIER, Roger. A história cultural-entre práticas e representações. Algés:
Difel, 2002.
34
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SILVA, M. P. A. FARIAS, A. C. . A TRANSGRESSÃO DA CULTURA POPULAR
SUL -COREANA: A HALLYU E SUA INFLUÊNCIA NO CONSUMO DE
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10.51891/rease.v7i5.1215.
Disponível
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ECO-Pós, [S. l.], v. 6, n. 1, 2009. DOI: 10.29146/eco-pós.v6i1.1144 Disponível em:
https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/114 . Acesso em: 24 nov.
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SOUZA, M. A. V. Os novos fluxos midiáticos da cultura pop coreana. Galáxia (São
Paulo, Online), n. 29, p. 297-300, jun. 2015. Acesso em: 24 nov. 2024.
35
CASOS DE BNCC ENSINO RELIGIOSO: "ELES SÃO
BEM MAIS MARAVILHOSOS, NÉ, PROFE?": UM
RELATO SOBRE EXOTISMO E FASCÍNIO COM O
ORIENTE EXTREMO
Jander Fernandes Martins e Vitória Duarte Wingert
Introdução
O presente trabalho objetiva relatar práticas pedagógicas, com turmas de
ensino fundamental de anos iniciais, realizadas em aulas de ensino religioso, a
qual faz parte dos componentes curriculares desta etapa de educação básica.
Focando exclusivamente nas seriações de 4º e 5º ano do ensino fundamental,
percebeu-se que, na abordagem das “unidades temáticas” e “objetos de
conhecimento” (narrativos, lendas, mitos, imagens e símbolos) referentes às
distintas manifestações religiosas orientais, os alunos demonstraram no
decorrer do trimestre de 2024 engajamento, participação e boa recepção nas
propostas desenvolvidas. E, contrariamente, quando das temáticas
relacionadas às manifestações religiosas africanas e afro-brasileiras,
demonstrando resistência e falta de engajamento. Apesar de ser um exemplo
concreto de intolerância religiosa e racismo, nosso objetivo aqui, é levantar
reflexões e indagações acerca de quais as possíveis motivações de se
perceber “boa recepção” acerca das religiões orientais.
Em nossa hipótese, a prática de sala de aula, a boa recepção dos alunos às
manifestações religiosas orientais pode ser explicada, em parte, por esse olhar
orientalista, que atribui ao Oriente um caráter exótico e fascinante. Assim,
entendemos que tal imagem se deve às representações midiáticas e culturais
ocidentais inclinadas a enxergar essas tradições como algo "curioso" e
"distante", sem o mesmo peso histórico e sociopolítico que associa as religiões
africanas e afro-brasileiras a questões de racismo e marginalização social.
(Said, 2007)
Para tanto, nosso texto parte de sucintas retomadas acerca do Documento
Oficial, seguido de uma rápida abordagem acerca da BNCC de Ensino
Religioso, perpassando alguns exemplos de práticas pedagógicas realizadas
antes de finalizar o texto com nossas hipóteses reflexivas enquanto, ponto de
36
partida para discussões acerca desta área do componente curricular,
historicamente, um terreno contestado.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
A BNCC surgiu com o propósito de promover um alinhamento no sistema
educacional brasileiro. Santos e Diniz-Pereira (2017, p. 282) destacam que, em
diversas nações, inclusive no Brasil, há um movimento crescente de
padronização dos currículos da educação básica. Essa padronização, de
caráter federativo, abrange tanto as instituições públicas quanto privadas,
assegurando que o processo de aprendizagem seja consolidado nos diferentes
níveis da educação básica.
A BNCC, como documento normativo, estabelece o conjunto essencial de
aprendizagens que todos os estudantes devem desenvolver durante as etapas
da Educação Básica. O objetivo é garantir os direitos de aprendizagem e
desenvolvimento, em conformidade com o Plano Nacional de Educação (PNE)
(BRASIL, 2016, p. 17; FONAPER, 1996).
O Ensino Religioso na BNCC
No contexto do Ensino Religioso, atualmente existem três modelos principais: o
catequético, o teológico e o baseado nas Ciências da Religião. O modelo
catequético é voltado para a doutrinação, buscando expandir a fé; o modelo
teológico foca na cosmovisão religiosa e no diálogo entre diferentes tradições,
promovendo a formação moral e religiosa dos cidadãos. Por outro lado, o
modelo das Ciências da Religião propõe uma abordagem que rompe com o
viés doutrinário, utilizando métodos e bases epistemológicas mais amplas
(BNCC, 2017, p. 128; BRASIL, 2016, p. 17; FONAPER, 1996).
A Constituição Federal de 1988 assegura o direito ao Ensino Religioso nas
escolas públicas, conforme o artigo 210, §1º: “O ensino religioso, de matrícula
facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de
ensino fundamental”. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN) n° 9394/96, em seu artigo 33, reforça esse direito, destacando a
necessidade de respeito à diversidade cultural e religiosa e proibindo qualquer
forma de proselitismo (LDB, 1996). O proselitismo, caracterizado pela
imposição de uma crença como verdade absoluta, foi predominante no período
colonial e imperial, quando o Estado e a Igreja mantinham relações estreitas.
(BNCC, 2016)
A inclusão do Ensino Religioso como área de conhecimento foi oficializada pela
Resolução CEB/CNE nº 2/1998 e confirmada pelas Resoluções CNE/CEB nº
4/2010 e nº 7/2010, que mantêm o Ensino Religioso como uma das cinco áreas
de conhecimento do Ensino Fundamental.
Dentre seus principais objetivos, tem-se:
1.
“Conhecer
os
aspectos
estruturantes
das
diferentes
tradições/movimentos religiosos e filosofias de vida, a partir de pressupostos
científicos, filosóficos, estéticos e éticos.
37
2.
Compreender, valorizar e respeitar as manifestações religiosas e
filosofias de vida, suas experiências e saberes, em diferentes tempos, espaços
e territórios.
3.
Reconhecer e cuidar de si, do outro, da coletividade e da natureza,
enquanto expressão de valor da vida.
4.
4. Conviver com a diversidade de crenças, pensamentos, convicções,
modos de ser e viver.
5.
Analisar as relações entre as tradições religiosas e os campos da
cultura, da política, da economia, da saúde, da ciência, da tecnologia e do meio
ambiente.
6.
Debater, problematizar e posicionar-se frente aos discursos e práticas de
intolerância, discriminação e violência de cunho religioso, de modo a assegurar
os direitos humanos no constante exercício da cidadania e da cultura de paz”.
(BRASIL, BNCC, 2016)
Esses objetivos possibilitam ao indivíduo perceber-se como um ser de
imanência (dimensão concreta) e transcendência (dimensão simbólica). O
reconhecimento das diferenças (alteridade) possibilita a construção de
identidades através de relações mediadas por símbolos e valores. BRASIL,
2016; FONAPER, 1996)
Temas e Abordagens no Ensino Religioso
A temática de “Identidades e Alteridades” é trabalhada ao longo do Ensino
Fundamental, principalmente nos anos iniciais, e aborda a interação entre o
“eu” e o “outro” em um contexto mediado por saberes, crenças e valores. A
transcendência, central nas experiências religiosas, surge da necessidade
humana de atribuir significado à vida e à morte, conferindo caráter sagrado a
diversos elementos da realidade. (BRASIL, 2016; FONAPER, 1996)
A transcendência é expressa por símbolos, mitos e ritos, sendo que os
símbolos possuem significados complementares. A experiência religiosa é
construída por práticas espirituais e rituais, como celebrações e peregrinações,
que, em conjunto, narram histórias e acontecimentos religiosos. Os ritos, por
sua vez, também apontam para realidades além do concreto. (BRASIL, BNCC,
2016)
Os rituais religiosos geralmente ocorrem em espaços sagrados, como templos
e santuários, onde os praticantes constroem e vivenciam suas identidades
religiosas. Esses elementos são abordados na unidade temática
“Manifestações Religiosas”, que promove o respeito e a compreensão das
diferentes expressões religiosas. (BRASIL, BNCC, 2016)
Na unidade temática “Crenças Religiosas e Filosofias de Vida”, os alunos são
introduzidos a aspectos como mitos, crenças, divindades e tradições orais e
escritas. As crenças, estruturantes de uma tradição religiosa, fornecem
respostas teológicas aos mistérios da vida e da morte e influenciam as práticas
rituais e sociais. (BRASIL, BNCC, 2016)
38
Além disso, as doutrinas religiosas, formadas a partir de princípios e dogmas,
orientam a relação dos indivíduos com o sagrado. Já as filosofias de vida, por
sua vez, se baseiam em princípios éticos e morais, não necessariamente de
origem religiosa, mas fundamentados na razão e na ciência, compartilhando
valores como o respeito à vida, à dignidade humana e à liberdade de crença.
(BRASIL, BNCC, 2016).
O contexto e o material utilizado
As práticas pedagógicas foram realizadas em uma escola pública de ensino
fundamental de uma cidade da região metropolitana de Porto Alegre- RS, a
qual funciona em regime de educação em tempo integral. Nesta, há turmas de
1º a 5º ano, com um total de 140 alunos matriculados. Dentre essas seriações,
destacamos as turmas de 4º e 5º ano como objeto de análise, uma vez que,
nosso critério principal de escolha, foram as “unidades temáticas e objetos de
conhecimento”.
As práticas concentraram-se, sistematicamente, em 1hora/aula por semana,
totalizando 12 encontros, os quais constituíram o período de um trimestre. Nas
seis primeiras aulas, realizou-se atividades a partir da obra de contos indianos.
Da sétima aula até a décima segunda, o material utilizado foi os contos
budistas. Didaticamente, em cada aula, organizou-se pequenos grupos de até
4 membros, cada grupo recebeu uma cópia dos contos de cada livro, somando
um total de 6 títulos diferentes para cada grupo ao final da temática em pauta.
A partir da leitura, análise e debate sobre as narrativas, em mãos, cada grupo
necessariamente deveria produzir materiais, objetos, textos, dramatização
sobre seu texto e apresentar aos demais colegas, em sala de aula.
Esse roteiro didático, como dito, nortearam-se a partir de duas obras literárias
de Ilan Brenman com ilustrações de Ionit Zilberman, quais sejam: "As 14
Pérolas da Índia" e "As 14 Pérolas Budistas", ambas as quais fazem parte
de uma série de livros que buscam compartilhar diferentes tradições de
sabedoria espiritual para crianças.
Nossa proposta foi, a partir destas obras, introduzir crianças à cultura indiana e
budista por meio de contos acessíveis, uma vez que o currículo BNCC de
Ensino Religioso, como visto acima, contempla a possibilidade de introduzir a
tem
Nesse sentido, enquanto a obra "As 14 Pérolas da Índia" apresenta 14 contos
que mergulham o leitor nas tradições, religiões e mitos da Índia. As histórias
são baseadas na oralidade, trazendo ensinamentos filosóficos e morais
acessíveis ao público infantil, principalmente crianças de 6 a 12 anos. As
ilustrações complementam a narrativa ao mostrar as vestimentas tradicionais,
paisagens regionais e divindades indianas, criando uma conexão visual com a
cultura. O que pode ser vista em alguns dos trabalhos realizados pelas
crianças de 1º e 2º ano, abaixo:
39
Fonte: arquivo pessoal dos autores (2024)
Já a obra "As 14 Pérolas Budistas", segue uma linha semelhante, explorando
os ensinamentos do budismo por meio de contos que refletem sobre a vida e a
espiritualidade. A narrativa busca transmitir conceitos de serenidade, sabedoria
e compaixão, que são centrais na filosofia budista, de maneira compreensível
para o público infantil. As ilustrações ajudam a criar um ambiente imersivo que
complementa o texto, guiando as crianças em uma jornada de descobertas
culturais e espirituais.
Neste primeiro momento, nosso objetivo não foi analisar o conteúdo das obras,
e sim, o impacto e o modo como reverberou em aula, nos discursos, nas
40
representações, e dinâmicas de socialidade e ambiência afetiva dos estudantes
participantes. Tal proposta fica evidenciada nos trabalhos realizados, pelas
turmas de 4º e 5º ano:
Fonte: arquivo pessoal dos autores (2024)
Algumas Considerações Analíticas acerca do trabalho desenvolvido
Assim sendo, após discorrermos sobre o Documento Oficial que norteia e
fundamenta as práticas pedagógicas em território nacional, especialmente em
escola pública. Avançando para elementos centrais da BNCC Ensino Religioso.
Contextualizando o local das práticas pedagógicas e como se sistematizou as
aulas. Percebeu-se, comparativamente, a mudança de posturas,
comprometimento, engajamento, práticas e discursos diante as mudanças de
temáticas relacionadas à diversidade de matrizes e manifestações religiosas.
Em especial, a ocorrência de uma recepção assertiva às matrizes orientais e
uma relutância e resistência para com matrizes africanas e afro-brasileiras.
Diante disso, retomamos às reflexões, a partir de Edward Said, que em sua
obra Orientalismo, (2007) explora como o Ocidente construiu uma imagem
estereotipada e exótica do Oriente, visto como um "outro" distante e misterioso.
Essa construção está profundamente enraizada no colonialismo e no desejo de
poder sobre esses territórios. Para o autor, o Oriente é, muitas vezes,
romantizado e reduzido a uma série de estereótipos que atendem ao
imaginário ocidental, sendo retratado como um lugar de misticismo,
espiritualidade e exotismo, distante das realidades culturais e políticas
complexas que realmente o constituem. (Said, 2007)
Na prática de sala de aula, a boa recepção dos alunos às manifestações
religiosas orientais, parece-nos ser explicada, em parte, por esse olhar
orientalista, que atribui ao Oriente um caráter exótico e fascinante. Desde tenra
41
idade, alunos acabam por serem influenciadas por representações midiáticas e
culturais ocidentais e assim, se demonstrarem mais inclinadas a enxergar
essas tradições como algo "curioso" e "distante", sem o mesmo peso histórico
e sociopolítico que associa as religiões africanas e afro-brasileiras,
caracterizadas por questões de racismo e marginalização social. (Cunha, 2016;
2018; Da Costa Ferreira; Brandenburg, 2019; Said, 2007)
Essa visão orientalista confere um ar de "fantasia" às religiões e mitos
orientais, tornando-os mais atraentes aos olhos dos alunos, enquanto as
religiões africanas e afro-brasileiras são, muitas vezes, alvo de preconceito por
estarem inseridas em um contexto mais próximo e historicamente carregado de
estigmatização. Portanto, a recepção positiva em relação às tradições orientais
pode ser entendida não apenas como um interesse legítimo, mas também
como uma consequência da construção imaginária exotizante que caracteriza o
pensamento orientalista. (Junqueira; Silveira, 2020; Ribeiro, 2021; Said, 2007)
Essa perspectiva ajuda a justificar por que as crianças demonstram fascínio
pelo "exótico" Oriente, mas resistem às tradições religiosas africanas, que
enfrentam uma realidade de preconceitos enraizados no imaginário social
ocidental. (Junqueira; Silveira, 2020; Ribeiro, 2021; Said, 2007)
Em outras palavras, o exotismo e a fascinação pelo Oriente, comum na cultura
ocidental, não são formas neutras de admiração, mas representam uma forma
sutil de racismo e intolerância religiosa, em nossa perspectiva a partir do
trabalho realizado. Conforme argumentado por Edward Said (2007), o Ocidente
constrói uma imagem distorcida do Oriente como algo hegemônico e
colonialista. Algo a ser levado em consideração no currículo de Ensino religioso
(Silva, 2018; Silva, 2021).
O contexto sócio-histórico e antropológico dos sujeitos envolvidos neste estudo
revelam dinâmicas complexas de resistência à diversidade cultural e religiosa.
Em um município de origem germânica, estudos anteriores já identificaram uma
resistência escolar na inclusão de temas relacionados à pluralidade religiosa,
frequentemente manifestando atitudes de racismo e intolerância religiosa.
(Cunha, 2016; 2018; Junqueira; Silveira, 2020)
No entanto, um fenômeno adicional merece destaque: o tratamento do 'outro'
oriental sob uma lente orientalista, tal como descrita por Said (2007), que o
reduz a estereótipos de exotismo, exuberância e comicidade. Esse imaginário
orientalista projeta o Oriente como algo essencialmente diferente e inferior,
retratando suas práticas e manifestações religiosas de forma estigmatizada.
Aqui, indagamos: o exotismo e a estereotipização não seriam formas
mascaradas de racismo e intolerância religiosa, subjacentes ao currículo?
Ao tratar tradições orientais sob a ótica do exótico e do cômico, incorremos em
uma visão etnocêntrica e eurocêntrica que, ao invés de promover a
compreensão, perpetua a inferiorização dessas culturas, contribuindo para a
manutenção de hierarquias culturais e religiosas. Esse aprimoramento reforça
42
que o exotismo, ao invés de uma simples admiração, pode ser uma maneira de
marginalizar e subalternizar culturas orientais, o que, em essência, constitui
racismo e intolerância. (Cunha, 2016; 2018; Da Costa Ferreira; Brandenburg,
2019; Junqueira, 2002; Junqueira; Silveira, 2020; Ribeiro, 2021; Said, 2007;
Silva, 2018; Silva, 2021)
De todo modo, nossas reflexões oriundas de trabalhos realizados em sala de
aula de escola pública, em uma região metropolitana de POA-RS, de origem
germânica, revelam e convidam a mais pesquisas e diálogos acerca desta
temática oriental, o qual, está longe de se esgotar.
Referências Biográficas
JANDER FERNANDES MARTINS. Doutor em Processos e Manifestações
Culturais (Universidade FEEVALE). Pedagogo (UFSM). Professor concursado
no município de Campo Bom-RS. E-mail: martinsjander@yahoo.com.br
VITÓRIA DUARTE WINGERT. Mestra em Processos e Manifestações Culturais
(Universidade FEEVALE). Licenciada em História (Universidade FEEVALE).
Doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social (Universidade
FEEVALE). Professora concursada no município de Campo Bom-RS. E-mail:
vitoriawingert@hotmail.com.
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44
DEVA MATRI - A REPRESENTAÇÃO DA DEUSA
INDIANA E O IMPACTO NO SAGRADO FEMININO NO
BRASIL
Maria Helena Ferreira das Neves Peres
Introdução
Ao retratar a vasta história do culto ao sagrado feminino na índia, deve levar
em conta a extensão histórica da religião Indiana com características milenares
e ancestrais rica em diversidade culturais e possibilidades representativas de
divindade femininas que remete ao sagrado feminino, que encontramos tanto
na índia como em regiões que se desenvolvem sob influência cultural. A
religião hinduísta tem característica de ser politeísta, podendo dar origens a
diversas vertentes independentes com divindades centrais, que assumem
protagonismo de acordo com a fé dos fiéis. O Shakatismo conhecido como
uma vertente espiritual independente tem como divindade primordial as
manifestações femininas como Durga, Kali, Saraswati compondo a trindade
central do culto ao sagrado feminino indiano.
Na busca pela compreensão dos variados segmentos de sagrado feminino que
vigora no Brasil, o Shakatismo carrega sua história de devoção a
representações femininas a relações com o “empoderamento do corpo”
vinculado a tradição do Yoga e tantra. Para entender melhor a representação
ligadas as divindades femininas hindus, faremos uma reflexão inicial sobre o
desenvolvimento da vertente na Índia e como essa vertente religiosa oriental
ganha espaço no Brasil.
As representações ligadas a Grande Deusa da Índia, também recebe influência
dos moldes pré-estabelecidos do ocidente, mas através da subjetividade dos
praticantes podemos entender os reais motivos que levam mulheres ocidentais
a seguir uma vertente de cunho orientalista. A partir das discussões feitas no
referido capítulo, iremos analisar as representações da Deusa Indiana através
do Texto sagrado Devi Mahatmayam que conta os mitos da divindade, e
manifesta seus feitos e poder, com a intenção de identificar padrões ligados ao
poder feminino, como também, esses padrões podem influenciar mulheres a
conectar com empoderamento/ feminismo.
45
Orientalismo religioso
Por se tratar de uma vertente religiosa oriental compreende-se as relações ter
ocidente e oriente. A análise de maior relevância quando se trata de
orientalismo em seu contexto bipolar em relação ao ocidente é desenvolvido
pelo pensador Edward Said, publicado em 1978. Edward Said defende em sua
análise que “com a percepção de que a cultura ocidental está passando por
uma fase importante, cuja característica principal é a crise que lhe foi imposta
por ameaças como a barbárie, as preocupações técnicas estreitas, a aridez
moral, o nacionalismo estridente, e assim por diante” (SAID, 1990, p. 263).
Em primeiro momento, o orientalismo é analisado por uma óptica
baseada em um distinção ontológica e epistemológica feita entre o Oriente e
Ocidente. Em outro sentido se apresenta como uma construção histórica
materialmente e culturalmente definido, designado pelo qual se negocia o
Oriente como objeto de uma instituição organizada. noção de Oriente como
invenção do Ocidente implica em uma construção ideológica do outro com o
fim de legitimação de uma dominação, não só política e econômica, mas
cultural, pois o Oriente é retratado como “primitivo”, “infantil”, “atrasado”; ou
seja, como um povo a ser tutelado para seu progresso e educação nos
moldes idealizados e privilegiados pelo Ocidente, mais especificamente
pela Europa.
Said retrata que o orientalismo, portanto, não é uma fantasia da Europa sobre o
Oriente mas um corpo criado de teoria e prática em que houve, por muitas
gerações, um considerável investimento material. A forma como a cultura
ocidental representa o Oriente, seja na religião, arte ou outras formas culturais,
perpetua estereótipos e visões reducionistas.
Como se trata do universo religioso as influências do fenômeno de
orientalização do universo religioso ocidental vem acompanhado da valorização
das culturas alternativas fortemente influenciadas por imigrações ocorridas no
fim do século XVIII no início do século XIX, que difundiram as práticas
religiosas no Brasil.
Ao longo da história brasileira ocorreram inevitáveis hibridizações que
refletiram também no campo religioso, além da presença de movimentos de
interação cultura que formou novas vertentes, como os movimentos de
contracultura e o movimento Nova Era, que surgem na década de 60,
inspirados pelas causas sociais da época, a busca por liberdade, movimentos
feminista. Reunindo grupos altamente heterogêneos.
O Movimento da Nova Era, influenciado por diversos movimentos espirituais,
representa uma abordagem pós-moderna e eclética em busca da
transformação espiritual e pessoal dos adeptos. Com ênfase na
individualidade, liberdade e cura, ele incorpora uma ampla gama de práticas e
crenças em uma busca pela autorrealização e bem-estar espiritual, refletindo a
diversidade e a evolução constantes deste movimento. Heelas (1996, p. 23) a
afirmar, a respeito da religiosidade pré-moderna da Nova Era, que "(...) seria
46
possível realizar estudos (...) a respeito das muitas maneiras diferentes como
diversos domínios do passado vêm sendo explorados, em particular a
espiritualidade oriental ".
Campbell (1997, p. 13) afirma que "um processo de orientalização não tem que
depender simplesmente de uma importação de ideias exóticas, mas pode ser
entendido como facilitado pela presença de uma tradição cultural nativa ao
ocidente. (...) Aqui, a teodiceia que dominou o ocidente por dois mil anos é
rejeitada não a partir de uma "virada para o oriente" ou mesmo por um apelo a
alguma tendência inerentemente oriental que essa tradição pudesse conter em
si, mas sim, ao contrário, por uma "volta" mais radical às tradições religiosas
que o ocidente derrotou".
Religião da Deusa Indiana
Religiões de cunho oriental e com uma perspectiva hinduísta encontraram
espaço nesses movimentos para se desenvolver e permanecer no ocidente. A
religião da Grande Deusa Indiana no Brasil teve seu fortalecimento no curso
dos movimentos sociais e religiosos a partir da década de 60 e vigora no
presente, influenciada principalmente pelos veículos digitais que facilitam a
informação e encurtam distâncias.
Uma das formas de acesso a alegoria filosófica da história da Deusa Indiana
circula por meio de textos e livros digitais. Um importante texto traduzido do
inglês para o português por Jorge Farias, feito em 1997. O texto conhecido
como Devi Mahatmaya escrito que retrata os feitos da Deusa indiana e
fundamenta a religiosidade feminina compreendida como Shakatismo.
O texto de adoração a Grande Deusa é frequentemente recitado nos templos
de Durga ou por seus devotos. Uma parte da obra ganhou notoriedade
descreve os feitos da deusa Durga e sua vitória contra o demônio-búfalo
Mahisasura – a representação de diversas manifestações do mal. Nesta obra a
deusa Durga se apresenta como divindade central, por isso é um importante
texto do Shakatismo. O texto marca o nascimento da vertente como um culto
independente de adoração a deusa, um culto de princípio feminino. Bianchini
retrata:
“A teologia da deusa é cristalizada no Devi Mahatmaya, que a exalta como a
fonte de toda criação; introduz categorias filosóficas que associam a criação
com a deusa, quando ela se revela, diz-se que ela só parece ter nascido, mas
na verdade, é eterna; que ela nunca nasceu, e que ela realmente nunca
morre.” (Biachini, 2020, p.141)
A Deusa é retratada como aquela que contém qualidades infinitas, por isso
apresenta em sua alegoria a capacidade de destruir os maus da humanidade,
provocadas pelo ego. Os conflitos binários entre o bem e o mal, o feminino e
masculino, giram em torno dos ciclos religiosos. No referido texto sagrado, a
estabilidade, prosperidade de todo o universo e da humanidade é colocado em
47
jogo a beira da destruição, então a deusa aparece em sua manifestação de
Durga recebendo todas as armas dos outros deuses. A grande Deusa é
representada em sua forma final mais elevada sendo comparada na tradição
hindu ao próprio Brahma.
Figura 1: Imagem do século XVIII mostrando a deusa Durga lutando contra o
demônio-búfalo Mahiāsura. Este é um dos mais famosos episódios descritos no
Devī Māhātmyam. Disponível em: www.yogadevi.org Acesso: 07/10/2024
Analisar a figura do feminino atribuindo poder é subverter os arranjos das
dinâmicas sociais naturalizadas como “verdades” fundamentadas pelo poder da
igreja em seu processo colonial. Se a maior manifestação de poder de uma
sociedade que pode ser reconhecida como Deus, for uma representação
poderosa feminina, muitos paradigmas de opressão e submissão das mulheres
repetidas historicamente pelo patriarcado e cristianismo podem se tornar
obsoletas.
O imaginário ligado a divindades femininas permite analisar as construções e
os discursos responsáveis pelas hierarquias de gênero assumidas e
naturalizadas socialmente, o que nos permite também construir novos
entendimentos sobre o masculino e feminino. Swain (1993) afirma que no
48
imaginário marcado pelas relações entre os sexos (gêneros) e a formação de
seus papeis e representações paradigmáticos, há a construção da
predominância masculina, sobretudo nas sociedades ocidentais, forjada como
natural.
As representações religiosas ligadas ao feminino contribuem alimentando o
imaginário do que uma mulher deve ser. As religiões se beneficiam das
representações e do imaginário social e precisam de divindades como objeto
de construção das suas referências simbólicas e arquétipos que circulam nas
instituições coletivas e exerce gradualmente influências sobre os grupos
sociais. Jodelet (2001) afirma:
“De fato, representar ou se representar corresponde a um ato de pensamento
pelo qual o sujeito relaciona-se com um objeto. Este pode ser tanto uma
pessoa, uma coisa, um evento material, psíquico ou social, um fenômeno
natural, uma ideia, uma teoria etc.; pode ser tanto real quanto imaginário ou
mítico, mas sempre requer um objeto. Não há representação sem objeto.”
(Jodelet, 2001, p.5).
As representações produzem os saberes sociais, e funcionam como um modo
de interpretar a realidade, atribuindo significado. A iconografia religiosa de
Durga funciona como um modelo imaginário assim como outras divindades
religiosas que atribuem sentido. As religiões congregam as representações
latentes na sociedade através de conteúdos e comportamentos simbólicos
(Moscovici, 2003). Como forma de pensamento coletivo estão fortemente
ligadas às motivações e expectativas subjetivas daqueles que exercem ou
decidem seguir uma vertente religiosa. Para Denise Jodelet (2001, p. 17), as
representações sociais ―[...] circulam nos discursos, são carregadas pelas
palavras, veiculadas nas mensagens e imagens mediáticas, cristalizadas nas
condutas e agenciamentos materiais ou espaciais.
Apesar de uma estrutura pré-estabelecida historicamente, socialmente e
culturalmente cristã; encontrar meios de se libertar dessa rede de definições
padronizadas é olhar para sua subjetividade e conseguir construir sua própria
crença. Pensamos então, que a representação não está totalmente préestabelecida, pois é um processo cognitivo em que os sujeitos organizam e
constroem sentidos sobre símbolos e discursos sociais.
“Certamente, há representações que chegam a nós já prontas ou que
“atravessam” os indivíduos. São as que impõem uma ideologia dominante, ou
as que estão ligadas a uma condição definida no interior da estrutura social.
Mas, mesmo nesses casos, o compartilhar implica uma dinâmica social que
considera a especificidade das representações.” (Jodelet, 2001, p.14).
Para Jodelet (2002), as representações sociais são, ao mesmo tempo, produto
e processo de uma atividade de apropriação da realidade externa ao
pensamento e da elaboração psicológica e social da realidade. A
representação social mantém com seu objeto uma relação de simbolização e
49
interpretação, que lhe confere significações, o que faz da representação uma
construção e expressão do sujeito. Assim, a particularidade dos estudos de
representações é a de integrar o pertencimento e a participação sociais e
culturais do sujeito.
“ As representações, que são sempre de alguém, têm uma função expressiva.
Seu estudo permite acessar os significados que os sujeitos, individuais ou
coletivos, atribuem a um objeto localizado no seu meio social ou material, e
examinar como os significados são articulados à sua sensibilidade, seus
interesses, seus desejos, suas emoções e ao funcionamento cognitivo.”
(Jodelet, 2002, p. 697)
Essas formas de perceber o mundo são compostas, construídas e significadas
pelas representações que refletem e (re)produzem uma determinada realidade,
ou melhor, o imaginário vigente.
Hooks(2018) retrata que o feminismo é um movimento que valoriza a prática
espiritual Muito antes da existências da teoria feminista círculos de mulheres
que já existiam como a intenção de despertar o auto amor e auto aceitação,
eram fundamentais fundamentais para a realização pessoal das mulheres.
Mesmo com o sexismo das religiões dominada por homens, as mulheres
sempre encontram meios de exercer sua espiritualidade e encontrar um luar de
práticas espirituais e compartilhamento de realidades entre mulheres. Na
verdade, o feminismo ressignificou os pensamentos religiosos, sempre
encontrando uma forma de utilizar do discurso para conseguir mais espaço, de
uma maneira que as mulheres possam encontrar conexão com o sagrado e se
comprometer de forma livre pessoal com a espiritualidade.
Com frequência, a prática espiritual feminista encontrou seu reconhecimento e
aceitação em contextos terapêuticos em que mulheres procuravam se curar
das feridas provocadas por abusos patriarcais, vários dos quais aconteceram
dentro da família de origem ou em relacionamentos. E foi no contexto de
terapia feminista que várias mulheres encontraram afirmação para a busca
espiritual. Como a natureza dessa busca da alma é particular, o público, com
frequência, não tem informação sobre até que ponto as ativistas feministas hoje
reconhecem totalmente a importância de atender às necessidades do espírito –
da vida espiritual. Em movimentos feministas futuros, precisaremos de
estratégias melhores para compartilhar informações sobre espiritualidade
feminista. (HOOKS, 2018, p. 114)
Considerações finais
As religiões exercem um papel fundamental no campo das representações
sociais, pois, possibilitam trocas e interações para o estabelecimento de um
universo consensual. Para existir um novo imaginário acerca do feminino devese produzir novas representações, sendo as religiões um produto e reflexo do
pensamento de uma sociedade, gerando assim novas consciências a respeito
do papel social da mulher.
Referências Bibliográficas
50
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Universidade
Estadual
de
Montes
Claros,
FAPEMIG,
mariahelenafnp2@gmail.com
BIANCHINI, Flávia. A grande deusa da Índia: uma breve história / Flávia
Biachini – 2ª ed. São Paulo: Polo Books; Shri Yoga Devi, 2020.
CAMPBELL, C. (1997), A orientalização do ocidente: reflexões sobre uma nova
teodicéia para um novo milênio. Religião e Sociedade, V. 18, nº 1.
HEELAS, P. (1996), A nova era no encontro cultural: pré-moderno, moderno e
pós-moderno. Religião e Sociedade, 17/ 1 -2, p.15-32.
HOOKS, bell O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras / bell
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Tempos, 2018.
JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In:
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MOSCOVICI, Serge. A história e a atualidade das representações sociais. In:
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SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente.
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SWAIN, Tania Navarro. Você disse imaginário? In: História no plural. Brasília:
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Arquivos digitais:
SARASWATI, Swami Satyananda. Candi path. Tradução Kalacandra DD.
Revisão e Editoração eletrônica Sanatana – 1997. Disponível em:
www.yogadevi.org
51
O NĀṭYAŚĀSTRA: UM PROJETO UNIVERSITÁRIO DE
TRADUÇÃO PARA A LÍNGUA PORTUGUESA
Thaisa MCS
O projeto
Tudo começou com um sonho.
Em 2016, tive o meu primeiro contato com as danças clássicas indianas. Em
uma confraternização assisti uma dançarina de Odissi performando uma linda
peça e fui completamente absorvida por aquela performance. Alguns dias
depois procurei uma professora e comecei a estudar. Tudo era corporalmente
tão desafiador, uma movimentação de muito controle muscular e graciosidade
ao mesmo tempo. Em uma das aulas, a professora comentou sobre a
existência do Nāṭyaśāstra, um texto muito antigo que era o codex das artes
performáticas indianas. Quanto mais eu aprendia sobre o Nāṭyaśāstra, mais
queria saber sobre ele. Descobri que haviam algumas traduções para o inglês,
o que facilitava o acesso, mas não o suficiente para que todos os meus colegas
pudessem ler. Foi nesse momento que descobri meu propósito, queria
viabilizar uma tradução para o português do Brasil para que mais pessoas
tivessem acesso aquele material. Mas como concretizar? Indubitavelmente eu
precisaria de ajuda. Sem muita esperança, entrei em um grupo de facebook da
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e postei que
estava em busca de algum professor que trabalhasse com tradução. Para
minha surpresa, a Dra Janine Pimentel, PhD em Estudos da Tradução,
respondeu e me convidou para uma conversa. E assim, o sonho começou a
sair do papel.
O projeto iniciou em 2017, com uma equipe de nove colaboradores sendo, sete
alunos da Faculdade de Letras [UFRJ] colaboradores, uma aluna da Faculdade
de Dança [UFRJ] e uma professora [UFRJ]. Como aponta Pimentel [2020], o
projeto não teve um perfil apenas de tradução, mas também de didática da
tradução e de pesquisa acadêmica. O processo de tradução durou três anos e,
durante todo esse período, fomos contemplados com bolsas de estudos,
financiados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro através de programas
como PIBIC e PIBIAC, o que evidencia a relevância do projeto.
52
Com o material totalmente traduzido no início de 2020, as coordenadoras Dr
Janine Pimentel e Thaisa MCS passaram a trabalhar no processo de revisão
da obra. Trabalho que foi finalizado em 2021. No mesmo ano, entramos em
contato com as filhas de Adya Rangacharya, tradutor da obra escolhida para
tradução, Usha Desai and Shashi Deshpande que gentilmente nos cederam os
direitos para a publicação da tradução do trabalho da vida de seu pai. A obra
foi lançada em 2022, em evento organizado em parceria com o CEA-UFF, no
formato e-book e encontra-se disponível na Amazon.
Fig.1 Evento de lançamento da obra produzido pelo CEA-UFF em 2022. Fonte:
CEA-UFF
A Tradução
O Nāṭyaśāstra trata-se de um dos principais codex das artes performáticas
indianas. Datado entre os séculos II A.E.C. e II E.C., sua autoria é dada ao
deus Brahma e trazida à humanidade pelo sábio Bharata. A obra compila os
ensinamentos a respeito de dança, drama e música e ele é reconhecido como
um dos Śilpa Śāstra - obras relevantes para as artes e ofícios, especialmente
arquitetura e produção de esculturas [Santos, 2021].
Para nossa tradução, utilizamos o método de tradução indireta, uma vez que
utilizamos como fonte do trabalho um texto que já era uma tradução para o
inglês e não do sânscrito diretamente, como explica Pimentel [2020]
“O tipo de tradução que pretendemos preparar durante o projeto que
apresentamos aqui é uma tradução indireta, pois não traduzimos a partir do
texto fonte, escrito em sânscrito, mas sim a partir de uma das várias traduções
53
que foram feitas para o inglês. De forma muito simplista, uma tradução indireta
pode ser definida como uma tradução de uma tradução já existente [Gambier
1994]. Nas últimas décadas, com a consolidação da disciplina dos Estudos de
Tradução e do programa de pesquisa conhecido como Estudos Descritivos da
Tradução [Toury 1995], as traduções indiretas começaram a ser estudadas de
forma sistemática por pesquisadores e estudiosos” [PIMENTEL, 2020, p.87].
Mas isso afeta o conteúdo da obra? Certamente sim, pois todo processo de
tradução acarreta em um pequeno percentual de perda ou de mudança no
sentido da obra. Uma tradução indireta pode significar uma perda maior, uma
vez que ela passa por um “filtro” anterior que é o primeiro tradutor. Mas um
texto tão antigo como o Nāṭyaśāstra e que, como aponta Kavi [1956], passou
por tantos processos de reconstrução e revisão para ser compilado nos 36
capítulos que temos hoje, podemos alegar que há uma única fonte real e
verdadeira? Acreditamos que, para um primeiro passo em direção a uma
tradução latino-americana da obra, desenvolvemos um trabalho que pode
auxiliar pesquisadores e praticantes das artes performáticas indianas, falantes
da língua portuguesa, a se aproximarem da obra de maneira crítica, abrindo
novas questões investigativas.
A primeira etapa do projeto foi definir qual obra seria trabalhada, coube a Dra
Janine Pimentel essa investigação detalhada das possibilidades existentes e a
escolha da que seria mais viável e completa para nosso propósito. Assim, a
obra de Rangacharya [1984] foi escolhida, tanto pelo fato do extenso trabalho
de estudo do autor, quanto pelas contribuições nos comentários realizados pelo
mesmo. Pimentel [2020] explica:
“Adya Rangacharya foi ator e professor de sânscrito e de cultura hindu antiga.
Escreveu várias obras sobre teatro, entre as quais está a obra Introduction to
Bharata’s Natya Shastra, publicada em 1966, que demonstra uma pesquisa
aprofundada sobre o Natya Shastra. Entre outros assuntos, o autor chama a
atenção para a falta de pesquisa sobre o Natya Shastra, explicando que,
depois da independência da Índia, em 1947, não houve nenhum interesse
acadêmico pela obra. Na sua tradução publicada em 1984, Rangacharya
assina um prefácio e uma introdução intitulada “About the Nāṭyaśāstra”, nas
quais explica em que edições se baseou para preparar a tradução e comenta
algumas decisões que tomou enquanto tradutor” [PIMENTEL, 2020, p.91]
Em sua introdução, Rangacharya [1984] explica que a tradução palavra por
palavra da compilação dos manuscritos do Nāṭyaśāstra resultaria em uma obra
repetitiva, incoerente, e contraditória em muitos momentos. Assim, ele decidiu
consultar os principais trabalhos publicados até então e construir uma versão
que buscasse trazer os sentidos dos tópicos abordados por Bharata muni.
Rangacharya [1984] trabalhou com diversas traduções, mas sua princial fonte
foi trabalho a de Ghosh [1951, 1956], especialmente em relação aos
comentários e comparações feitas ao longo de toda obra.
54
Observando os capítulos relativo a prática da dança, IV e VIII ao XIII,
observamos que Rangacharya decidiu por somente comentar a existência dos
Nrtya Hastas, gestos de mão específicos de dança, mas não os trouxe
detalhados como seria esperado pelos interessados nas questões do
movimento, assim, incluímos na tradução indicações que possam ajudar o
pesquisador deste tópico a ir em busca da informação. Essas escolhas de
Rangacharya são documentadas por ele, seja no texto ou nos comentários, o
que auxilia o pesquisador a continuar buscando em outras fontes.
Outro ponto que gostaríamos de destacar no trabalho de Rangacharya é sua
construção em prosa e não em ślokas [versos] da obra. Compreendemos que
acadêmicos especialistas no Nāṭyaśāstra podem encarar com desconfiança e
de maneira negativa tal mudança, mas acreditamos que este tipo de
construção auxilia o interlocutor menos acostumado a lidar com a estrutura
poética. É importante ressaltar que nosso público alvo não é constituído
apenas por pesquisadores acadêmicos, mas sim praticantes das artes
performáticas. Não somente a língua mas a estrutura da escrita pode auxiliar
na aproximação da obra com o público alvo.
A segunda etapa do projeto consistiu na divisão do material para tradução
entre os alunos do projeto. É nesse sentido que o projeto adquiriu um perfil de
didática da tradução, uma vez que foram os alunos da Faculdade de Letras
[UFRJ], sob orientação da Dr Janine Pimentel, que realizaram a tradução de
toda a obra. Durante os três anos de projeto, os alunos receberam partes do
texto em que ficaram responsáveis por realizar a tradução e compartilhar com a
Dra Janine Pimentel. Mensalmente, o grupo se encontrava na Faculdade de
Letras [UFRJ] para ler o material coletivamente e discutir as traduções. Esse
processo deu a oportunidade para que os alunos desenvolvessem as
habilidades técnicas de tradução. O trabalho foi percebido como tão positivo
pelos alunos envolvidos que, ao longo de todo o processo, apenas um
voluntário precisou se desligar do projeto.
55
Fig.2 Equipe de tradutores durante Semana de Integração Acadêmica em
2018. Da esq. para dir.: Vinicius Amado, Erik Silva, Felipe Vannucci, Luiza
Longa, Janine Pimentel, Leticia Sousa, Pérola Pedro, Christian Ignácio e
Thaisa MCS. Fonte: foto da autora
Além disso, em 2018 os alunos apresentaram trabalhos na Semana de
Integração Acadêmica, evento acadêmico organizado pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro, onde os alunos falaram sobre seus trabalhos para
uma banca aleatória formada por professores da instituição. O projeto de
tradução foi contemplado com Menção Honrosa pela excelente qualidade do
trabalho. Também tivemos alunos que utilizaram a experiência no projeto como
tema para o trabalho de conclusão de curso da graduação. Pimentel [2020]
explica sobre a proposta de abordagem pedagógica.
“Muito resumidamente, a aplicação dessa abordagem pedagógica pressupõe
uma dinâmica em que os alunos aprendem a traduzir no contexto de um
projeto real que é orientado ou liderado por um professor. É fundamental, aqui,
que o professor comente as decisões tomadas pela equipa, traga a relação
entre a teoria e a prática, e avalie o desempenho de cada membro da equipa
com base na evolução da prática da tradução. O que esse modelo tem de
verdadeiramente especial é que ele assenta em visão de ensino que procura
buscar uma relação prática e imediata entre o aprender e o fazer. No caso do
projeto pedagógico aqui descrito, essa visão de ensino é colocada em prática
pela oportunidade que os alunos têm de fazer uma tradução autêntica e real”
[PIMENTEL, 2020, p.98].
A terceira etapa constituiu na revisão do material completo, realizado pelas
organizadoras Dr Janine Pimentel e Thaisa MCS. Nessa fase, foram
56
observados, capítulo a capítulo, se havia algo que poderia ser melhorado
semanticamente, principalmente para dar maior dinâmica à leitura, também as
questões voltadas à grafia das palavras em sânscrito e a correção de gênero
dessas palavras. Devido à situação pandêmica do COVID-19 foi necessário
adaptar o cronograma desta fase, que terminou em junho de 2021. Este
material foi enviado para a editora que realizou uma terceira revisão do material
completo. Entendemos que esse processo de revisão por muitas pessoas,
auxilia na qualidade do material final.
A quarta etapa, foi o processo de elaboração da capa e diagramação do
material finalizado. Para a realização da capa, uma artista plástica e uma
designer gráfica, que praticam danças clássicas indianas, foram convidadas
para desenhar o material. A proposta foi que a capa refletisse artisticamente, a
prática da dança indiana. Para a publicação da obra, fomos contemplados com
um financiamento do programa de pós-graduação em Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro para a realização do E-book, publicado em 2022.
Para a impressão física, ainda estamos em busca de parcerias.
Desafios
Em relação aos desafios enfrentados ao longo do processo de tradução
destacamos as questões de gênero das palavras como um dos que mais
precisaram de atenção e revisão pois, assim como o sânscrito e diferente do
inglês, a língua portuguesa tem regras muito específicas em relação ao
gêneros femininos, masculinos ou neutro das palavras. Como partimos do
inglês, tivemos que realizar muitas pesquisas no sânscrito para conseguir
relacionar corretamente. Como exemplo, em portugues do Brasil palavras
terminadas com ‘a’ costumam ser do gênero feminino, o que no inglês tem uma
característica neutra com o ‘the’ e no sânscrito a transliteração do ‘a’ curto
indica justamente um gênero masculino, então Kara a, Rasa, Bhāva, Śiva,
Śāstra e etc seriam traduzidos como palavras femininas, o que sabemos que
não são. Para tal.
Outro desafio foram as diferenças culturais entre o Brasil e a Índia, desde
questões simples como, por exemplo, não saber o que é Ghee, até questões
mais complexas como, por exemplo, a escolha de manter ou não os nomes
das regiões descritas no capítulo XX em sânscrito ou tentar traduzir para o
português. Nesse sentido, optamos por realizar uma tradução
estrangeirizadora, assim como feita por Rangacharya, onde não se traduz os
nomes e certas palavras chaves são mantidas no idioma de origem como
explica Pimentel [2020].
“Os conceitos de Venuti [1995] sobre tradução domesticadora [domesticating
translation, tradução que procura ser lida como se fosse um original] e tradução
estrangeirizadora [foreignizing translation, tradução que mostra os elementos
estrangeiros e estranhos da cultura fonte], bem como os conceitos de tradução
explícita [overt translation, tradução que não esconde que é tradução] e
tradução velada [covert translation, tradução que cria a ilusão no leitor de ler
57
um original] de Juliane House [2010], entre outros, têm úteis na tomada de
decisões ao longo do processo de tradução. De um modo geral, temos seguido
uma abordagem que se aproxima mais com o conceito de tradução
estrangeirizadora e de tradução explícita, pois temos mantido os termos em
sânscrito, as notas de tradução e outros elementos que não escondem que o
texto que estamos produzindo é uma tradução. Acreditamos que um público
acadêmico e especialista das artes performáticas e da dança se interessará por
esses elementos em sânscrito, notas de tradução, entre outros, e que terão
plena consciência de que o texto que lerão é uma tradução. Um público-alvo
com esse perfil terá, certamente, interesse em contatar diretamente com o
Outro, com a diferença, com os elementos estrangeiros presentes em Natya
Shastra” [PIMENTEL, 2020, p.95].
Por último, gostaríamos de apontar os desafios referente ao financiamento para
a publicação da obra. Nós acreditamos que a publicação do material traduzido,
tanto no formato de e-book quanto impresso, é fundamental para que o maior
número de pessoas tenha acesso ao trabalho. Durante esses quatro anos de
projeto tentamos financiamentos públicos através de editais, que fomos
contemplados tanto com bolsas acadêmicas quanto para a publicação do ebook, e privadas, onde ainda não tivemos sucesso. A situação pandêmica do
COVID-19 agravou, ainda mais, a dificuldade nos investimentos em produções
tão específicas como o Nāṭyaśāstra. De qualquer forma, é necessário destacar
que continuaremos em busca de investimentos para a publicação do material
impresso. Nosso objetivo é disponibilizar cópias impressas nas bibliotecas das
universidades públicas brasileiras para facilitar o acesso de pesquisadores ao
material.
A dança indiana na cena brasileira
Os estudos e práticas de danças clássicas indianas no Brasil vem crescendo
desde a década de 90, quando artistas da dança foram estudar na Índia com
renomados professores. Aos poucos, esses artistas retornaram ao Brasil e
começaram a disseminar o conhecimento adquirido. Atualmente, encontramos
artistas brasileiros de reconhecimento internacional que administram escolas
de dança como, por exemplo, Silvana Duarte, que dirige a Padmaa, e oferece
um curso de capacitação em Odissi e Susane Travassos, que dirige a Casa
Azul, com aulas regulares de Kathak, Bharatanatyam.
Outro importante movimento foi a inclusão de pesquisadores nas universidade
públicas investigando as danças indianas, destacamos a carreira da prof.a Dra
Marília Vieira Soares na Universidade Estadual de Campinas [UNICAMP] onde
produziu e orientou diversos trabalhos acadêmicos de mestrado e doutorado
especificamente de pesquisas voltadas às artes performáticas indianas.
Destacamos também a criação em 2020 do Fórum a Dança Indiana no Brasil,
coordenado pelas dançarinas e pesquisadoras Irani Cippiciani, Cassiana
Rodrigues, Krishna Sharana e Miriam Lamas Baiak. Onde uma rede de artistas,
pesquisadores e interessados em saber mais sobre as danças indianas no
58
Brasil se reúnem para debater assuntos importantes para a cena brasileira.
Assim, a tradução do Nāṭyaśāstra para a língua portuguesa do Brasil, chega
em um momento oportuno para agregar e fortalecer as muitas reflexões que
estão sendo proporcionadas por tais iniciativas.
A importância do estudo do Nāṭyaśāstra para o Brasil
Compreendemos que o estudo do Nāṭyaśāstra, associado à prática da dança
indiana, nos dá a oportunidade de rever os muitos discursos orientalistas que
foram construídos ao longo do período colonial. A obra nos auxilia a repensar
as complexas relações artísticas, filosóficas, estéticas, políticas e religiosas
partindo de uma perspectiva indiana própria. Como Said [1978] nos explica,
esses discursos orientalistas são uma construção de alteridade para fins de
manipulação e colonização ocidental. Remover o véu orientalista é questionar
os muitos discursos sobre a Índia exótica, mágica, resiliente, sagrada, dos
muitos deuses e deusas, e etc. Para isso acreditamos que seja necessário,
cada vez mais, nos voltarmos para as produções Indianas na busca por
diferentes epistemologias.
Defendemos que o Brasil, país que foi colonizado e sofreu os horrores deste
processo assim com a Índia, tem muito a trocar e agregar nessa parceria com
cultura Indiana. Os movimentos decoloniais que surgem na américa-latina
através de pensadores como Aníbal Quijano [2000], Walter Mignolo [2008,
2018] e outros, nos ajudam a refletir a importância de se criticar as
epistemologias, ontologias e hermenêuticas eurocêntricas, com o objetivo de
libertar os diversos campos do conhecimento.
A tradução do Nāṭyaśāstra para a língua portuguesa do Brasil tem um papel de
democratização ao acesso à obra, e propõe um diálogo intercultural que
viabiliza uma sensibilização e compreensão dos códigos culturais do povo
indiano, o que nos ajuda a superar abismos e estabelecer relações. Também
nos permite refletir sobre questões de alteridade e identidade uma vez que, ao
compreender e respeitar o outro, passamos a compreender e respeitar a nós
mesmos.
Conclusão
Concluímos nosso paper agradecendo a oportunidade de compartilhar o
progresso do projeto de tradução do Nāṭyaśāstra. Foram cinco anos de muito
aprendizado, descobertas e nos sentimos honrados em conseguir agregar, de
alguma forma, na expansão dos conhecimentos deixados por Bharata muni.
Agradecemos também a Universidade Federal do Rio de Janeiro que tem
proporcionado que esse sonho se torne realidade e a todos os alunos e
parceiros envolvidos no projeto.
Por fim, acreditamos que o estudo crítico e aprofundado do Nāṭyaśāstra pode
agregar na revisão dos muitos discursos que foram impostos sobre ele. Tal
como, de forma muito direta e prática, nos apresenta que tradição não é um
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sinônimo de enrijecimento ou congelamento no tempo e espaço. Também nos
mostra uma diferente perspectiva de análise do corpo em movimento, bem
como uma complexa teoria estética, e nos evidencia o importante papel das
artes no mundo, algo que parece ter sido esquecido nos dias de hoje.
Referência
Thaisa MCS [Dnt.Universidade Federal do Rio de Janeiro/University of Delhi]
GHOSH, M. The Nāṭyaśāstra: A Treatise on Hindu Dramaturgy and Histrionics
Ascribed to Bharata-Muni Vol. i. Calcutta: Asiatic Society of Bengal, 1951.
GHOSH, M. The Nāṭyaśāstra: A Treatise on Hindu Dramaturgy and Histrionics
Ascribed to Bharata-Muni Vol. ii. Calcutta: Asiatic Society of Bengal, 1956.
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significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, 34:1, 2008,
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SANTOS, Thaisa M. C. “Representações dos 108 Kara as: Construção de
discursos do passado indiano a partir do corpo, da dança e da materialidade”
dissertação de mestrado., Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2021.
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