ORIENTALISMOS:
MÍDIAS E ARTES
André Bueno [org.]
Reitora
Gulnar Azevedo e Silva
Vice-reitor
Bruno Rêgo Deusdará Rodrigues
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto
Orientalismo, Proj. Extens. UERJ Reg.
6876, coordenado pelo Prof. André Bueno
[Dept. História]
Conselho Editorial
Bony Schachter ● Edgard Leite ● Emiliano
Unzer ● Gerald Cipriani ● Giorgio Sinedino
● Jana Rosker ● Julio Gralha ● Lia R. de
La Veja ● Paulo André Leira Parente ●
Qiao Jianzhen (Ana Qiao) ● Xulio Rios
Rede
www.orientalismo.net
Seção Brasil
https://aladaainternacional.com/aladaabrasil/
Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 24: Orientalismos: Mídias e Artes. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj.
Orientalismo/UERJ, 2024.
ISBN: 978-65-01-27030-2
Estudos Asiáticos; Orientalismo; Mídias; Artes
Apresentação
Oriente 24 é a nova coleção de livros dedicada aos estudos
orientais no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 8º
Simpósio internacional de Estudos Orientais, organizado pelo
Projeto Orientalismo da UERJ, Oriente 24 é formada de maneira
interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas
experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente
próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem
multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias
decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e
dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis,
procurando compreender suas características originais e sua
recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse
sentido, a coleção Oriente 24 é formada por uma série de volumes
que compreendem cada uma dessas dimensões espaçogeográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova
perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes
intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural
brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos,
que tentam apreender a variedade das expressões das culturas
asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja
bem-vindo a nossa coleção!
Volumes de Oriente 24:
Orientalismos: Pensamento e Literatura
Orientalismos: Mídias e Arte
Orientalismos e Brasil
Estudos sobre Próximo Oriente
Estudos Chineses
Estudos Japoneses
Estudos Coreanos
Estudos Asioindianos
SUMÁRIO
O TROPISMO ORIENTAL NA OBRA DO FOTÓGRAFO FRANCÊS MARC
RIBOUD (1923-2016): UMA PROPOSTA CONCEITUAL
Rogério Akiti Dezem
9
“SEJA VOCÊ MESMO, SEJA ÚNICO, SEJA MONSTRO!”: A
REPRESENTAÇÃO ORIENTALISTA DE JINAFIRE LONG NA PRIMEIRA
GERAÇÃO DE MONSTER HIGH
Alice Mikos Tigrinho
19
“O MUNDO DE ALI”: O QUE A ARTE SEQUENCIAL PODE ENSINAR SOBRE
A PANDEMIA E O NEGACIONISMO?
Álvaro Regiani
31
UMA HISTÓRIA, MUITAS HISTÓRIAS: A IMPORTÂNCIA DA HISTÓRIA ORAL
NO ENSINO DO CASO DAS “MULHERES DE CONFORTO” E A UTILIZAÇÃO
DO CURTA HER STORY COMO SUPORTE PEDAGÓGICO
Camilly Evelyn Oliveira Maciel
44
GEUM-JA, O CORPO MÓVEL EM CONTRADIÇÃO: UMA ESTÉTICA DO
APRISIONAMENTO EM LADY VENGEANCE (친절한 금자씨) [2006]
Fernando de Barros Honda
53
CONTORNANDO A INVISIBILIDADE DOS MANGÁS PARA MULHERES: UM
BREVE PANORAMA HISTÓRICO E A IMPORTÂNCIA DOS MANGÁS JOSEI
(女性マンガ)
Gabriela Foscarini Strassburger
59
UMA DRAGON LADY EM TWIN PEAKS: A OBJETIFICAÇÃO DA
PERSONAGEM CHINESA JOSIE PACKARD
Gabriele Maia
66
DA ALTERIDADE À IDENTIDADE: REPRESENTAÇÕES DO ATÔMICO NOS
MANGÁS E NA CULTURA POP JAPONESA
Lucas Ciamariconi Munhóz
72
A ONDA COREANA E A CRESCENTE ROMANTIZAÇÃO, FETICHIZAÇÃO E
ESTEREOTIPIZAÇÃO DOS SUL-COREANOS
Suelen Cecília Vieira Silva
79
AS DIFICULDADES METODOLÓGICAS NA PESQUISA DE ARTE CHINESA
NO BRASIL
Thiago Wang
87
JIT PHUMISAK E A POPULARIZAÇÃO DO MARXISMO NA TAILÂNDIA
ATRAVÉS DAS ARTES (1950-1976)
Tiago Ferreira
93
8
O TROPISMO ORIENTAL NA OBRA DO FOTÓGRAFO
FRANCÊS MARC RIBOUD (1923-2016): UMA
PROPOSTA CONCEITUAL
Rogério Akiti Dezem
Nesta breve apresentação, gostaria de propor um conceito relativo aos estudos
sobre o espaço nocional e imagético que se costuma denominar “Oriente”, o
mesmo que terá como eixo simbólico a fotografia produzida por não-asiáticos
durante as décadas de 1950-1970. O termo inédito aqui introduzido, receberá a
denominação de “Tropismo Oriental”. Historicamente, a partir de uma vasta
literatura de viagem e uma produção iconográfica rica e complexa, o espaço
imaginado que geograficamente começa ainda em terras africanas, no Egito e
segue para o leste em direção ao nascer do sol – muitas vezes guiado pelo
apotegma latino Ex oriente lux -, até chegar ao arquipélago japonês, foi visto a
partir de diversos prismas. Não necessariamente buscando o domínio de A
sobre B, mas também movido pelo conhecimento de novas tecnologias e
diferentes elementos estéticos na arquitetura, música e nas artes, como afirma
o historiador da Universidade de Lancaster e crítico da teoria saidiana, John M.
Mackenzie (1995, p.210):
“[...] a ‘obsessão Oriental’ é um fenômeno em transformação contínuo e
constante, repetidamente adaptado as necessidades da época e na busca por
inovação.”[Tradução nossa]
Desse modo, para além da dominação e invenção[Said, 1978], exotização
[Segalen, 1955] ou idealização [Reis, 1999] presente nos discursos ocidentais
sobre o Oriente, haveria também momentos de reinvenção e sublimação das
narrativas em diferentes contextos históricos. Acredito que a palavra admiração
pelo ‘outro’ oriental – na forma de um “Orientalismo relacional” [Monserrati,
2020] - represente uma parcela importante do imaginário sobre o Oriente que
se materializou, principalmente através do aparato fotográfico. No segundo
milênio, podemos considerar a afirmação do sociólogo português Boaventura
de Souza Santos, o “ Oriente é, antes de mais nada, a civilização alternativa ao
Ocidente”[Santos, 2002 apud Bueno, 2021, p.10] como um ponto de chegada
para refletirmos sobre a atração pelas coisas do Oriente ao longo do século
9
passado.
Considero que as décadas de 1940-1970, seriam um momento
histórico específico, no qual se conformou um olhar particular sobre o Oriente
em processo de reinvenção que vou denominar como “Tropismo Oriental”.
1. O Tropismo Oriental
As décadas imediatas após 1945, representam um momento histórico
convulsivo em terras orientais a partir dos movimentos de descolonização e de
independência. Como por exemplo as independências do Marrocos, Argélia,
Indochina, Índia, Paquistão, Indonésia ou da consolidação do Estado de Israel
(1948), de mudanças políticas (Revolução Chinesa), de conflitos regionais
(Guerra da Coréia e Guerra do Vietnã), da recuperação socioeconômica
espetacular como o Japão nos anos de 1957-1968. Esses movimentos
ocorridos no contexto da Guerra-Fria (1947-1991) contribuíram para que os
olhares sobre estas nações - algumas nascentes - fossem repensados,
reescritos e reconfigurados em muitos aspectos. A atração pelo ‘outro’ oriental
nunca cessou e o seu dinamismo, principalmente no campo da representação
fotográfica, desde meados do século 19, tem produzido um corpus documental
que democratizou o acesso a representação do ‘outro ‘oriental a partir de uma
“fotografia Orientalista”. Fotografia definida pelo pesquisador e professor de
estudos pós-coloniais da UCLA Ali Behdad [2013, p. 11] como:
“[...] uma construção imaginária, embora sempre histórica e esteticamente
contingente; marcada por fraturas icônicas e fissuras ideológicas, entretanto,
regulada por um regime visual que naturaliza o seu modo particular de
representação. ” [Tradução nossa]
Partindo dessa definição, as décadas de 1940-1970 representariam uma
espécie de fratura exposta de um imaginário sobre o Oriente, produto de uma
reinvenção dos olhares europeus e estadunidenses sobre o ‘outro’ oriental.
Olhares, em muitos casos, alimentados pelo binômio fascinação/atração por
um universo não (tão) mais distante, menos misterioso e em convulsão. Foi a
partir de narrativas visuais produzidas pela fotojornalismo (revistas Life, Look,
National Geographic, Paris Match) e pelas narrativas de viajantes (ou
residentes) não-asiáticos como Nicolas Bouvier, Paul Theroux, Donald Richie
entre outros, que novos discursos, fora dos espaços acadêmicos e
“orientalistas” por tradição, se materializaram.
Defino como “Tropismo Oriental” a atração para além das terras do Levante,
gestada ainda na década de 1940 e que capturou os olhares (e almas) de
escritores, jornalistas, intelectuais e fotógrafos de diferentes nacionalidades
como Fosco Maraini [Dezem, 2021], Werner Bischoff, Ed van der Elsken,
Eugene W. Smith e Marc Riboud. O termo “tropismo” pode ser definido como
um fenômeno foto-sensorial presente no campo das ciências biológicas de
“atração pela luz” que pode ocorrer também a partir de estímulos físicos ou
químicos. Nesse caso, o Oriente seria um estímulo - principalmente imagético para os autores/fotógrafos citados anteriormente. Fotógrafos que se deixaram
guiar não por uma “missão civilizatória e libertadora” como preconizada na
10
ocupação estadunidense do Japão (1945-1952), mas direcionando seus
olhares (e imaginação) com o objetivo de capturar uma miríade de fenômenos
– sociais, sensoriais, estéticos, culturais - em um vasto território que sofria os
efeitos da Guerra-Fria. Aqui o papel da Fotografia é ímpar. Algumas imagens
se tornaram icônicas como a “Reunião de Fotógrafos em Kuruizawa (1958) de
Marc Riboud e “Tomoko Uemura em seu banho” (1971) de W. Eugene Smith
ao serem veiculadas em jornais, revistas ilustradas e fotolivros na época.
Muitas dessas imagens fizeram parte de documentários que rodaram o mundo
antes da hegemonia da linguagem televisiva, abrindo espaços para novas
narrativas de cunho pós-orientalista de forma pioneira.
Como poderíamos caracterizar esses “tropistas orientais”? No caso de nossa
proposta de um conceito, partimos da escolha de fotógrafos estrangeiros que
transitaram por terras chinesas e japonesas nas décadas de 1950-1970, ou
seja, que vivenciaram esse universo em transformação, (re)criando a partir da
fotografia discursos imagéticos pós-orientalistas e dessa forma, contribuindo
para reinvenção dos discursos sobre o ‘Outro’ chinês e japonês.
Nosso objetivo aqui, seria apresentar de forma sucinta alguns elementos que a
priori definiriam a figura humana que personificaria o “tropista oriental”:
“Olhar
tropista”:
Oriente
como
espaço
voltado
para
atração/contemplação;
Viajantes experientes;
Voltaram mais vezes ao país (identificação);
Comparação com o país de origem de forma crítica;
Criaram uma “identidade” com o país (esteticamente e culturalmente);
São reconhecidos (publicações/exposições) e respeitados pelo país que
visitaram;
Atração pelo feminino;
Não necessariamente eram especialistas ou profissionais (i.e.
acadêmicos) no universo estrangeiro que estavam inseridos;
A Fotografia, o Fotojornalismo e a Literatura de viagem se tornaram as
principais referências sobre os seus trabalhos;
Os principais canais disseminadores dessas narrativas foram diários de
viagem, periódicos ilustrados de grande circulação, fotolivros e
exposições.
2.Olhares sobre o ‘Outro’ Oriental em transformação:
(1940-1970)
Japão e China
Uma parcela considerável desses escritores e fotógrafos “tropistas orientais”,
buscava alternativas para uma Europa castigada pela guerra ou para uma
América que se tornava “um poema triste” [Kerouac, 1959, apud Frank, 2008]
nas palavras do escritor Jack Kerouac na Introdução do seminal fotolivro “Os
Americanos” (1958) do fotógrafo suíço Robert Frank. Por exemplo, no caso
estadunidense, após 1945 o Oriente passou a ter uma importância estratégica,
diplomática, acadêmica e econômica nunca antes vista. Este interesse
11
multifacetado na forma de “poder”, segundo a professora de Literatura
Comparada do MIT, Christina Klein, “[...] não ocorreu de forma tranquila e
incontestável” [Klein, 2003, p.5] ao coincidir com o processo de
descolonização. Os discursos pós-orientalistas produzidos a partir dessa nova
geopolítica asiática (pós-1945), se desenvolvem a partir de paradigmas
diferentes daqueles produzidos a partir na segunda metade do século 19 por
europeus, principalmente britânicos, franceses e alemães. Segundo Klein
[2003, p.11]:
“Enquanto muitas representações da Ásia produzidas pelos americanos antes
da Segunda Guerra se encaixam muito bem na concepção saidiana de
Orientalismo, muitas representações do pós-guerra sobre a Ásia nãocomunista não mais, embora elas não se contradigam inteiramente. A razão
para isso se encontra na evolução da capacidade dos americanos
compreenderem o conceito de raça”. [Tradução nossa]
O conceito de “raça” foi por muito tempo a base do pensamento racialista
científico europeu do século 19, criticado e desmantelado pelo do antropólogo
germano-americano Franz Boas e sua teoria sobre o relativismo cultural no
início do século 20. Foi a partir desse novo paradigma que surgiram obras
seminais no pós-guerra como o livro O Crisântemo e a Espada -Padrões da
Cultura Japonesa (1946) da antropóloga estadunidense Ruth Benedict ex-aluna
de Franz Boas na Universidade de Columbia.
Para além das (novas) pesquisas acadêmicas sobre ‘outro’ oriental, existem as
narrativas produzidas por não especialistas. Pessoas “comuns’, ávidas
observadoras in loco, sensíveis ao transitório contexto histórico e
questionadoras da possibilidade de reinvenção das narrativas sobre o Japão e
os japoneses por exemplo. Como foi o caso do relato da escritora Lucy
Herndon Crockett, na época (1945-46) voluntária da Cruz Vermelha norteamericana em terras japonesas sobre a ocupação estadunidense:
“Antes de Pearl Harbor o americano médio, eu inclusive, imaginava o Japão em
termos do monte Fuji, Madame Butterfly, cerejeiras, e aquela figura decorativa
e levemente silenciosa, a gueixa. Durante os tempos de guerra, sobrepuseramse a isso a noção de uma nação traiçoeira, com homens-macaco cometendo
atrocidades, como monstros na selva de olhos puxados e uma faca entre os
dentes. Hoje, ouvimos que os japoneses sinceramente lamentam tudo isso,
que eles amam o General MacArthur e todos os americanos, e estão aderindo
alegremente com todo coração a “democracia”. Desde o meu retorno do
Oriente, eu constantemente me pergunto: “Como realmente é o povo japonês?
“A democracia realmente funcionou? ” Os japoneses (no original em inglês:
Japs) estariam jogando um jogo de espera (no original em inglês: playing a
waiting game)? ” e “Você pode confiar neles?””. [Crockett, 1949, p. IX-X,
Tradução nossa]
No caso chinês, a escritora estadunidense e prêmio Nobel de Literatura (1938),
Pearl S. Buck publicou a obra The Good Earth (1931) que veio a ser a mais
12
influente representação da China na época [Klein, 2003, p. 4]. Livro que vendeu
mais de dois milhões de cópias, vindo a se tornar uma peça na Broadway e
depois, filme de grande sucesso de bilheteria em 1937. A imagem simpática de
uma bucólica, tenaz e nacionalista China, que resistia ao imperialismo japonês,
também era propagandeada pela revista ilustrada Life para o público
estadunidense.
A partir do início da década de 1950, os discursos acerca do Japão e China
em terras yankees tomam outros rumos. No caso japonês - uma nação
derrotada e ocupada (1945-1952) - as narrativas baseadas em referências que
remetem ao exotismo da segunda metade do século 19, foram reformatadas e
novamente veiculadas a partir de revistas ilustradas, artigos e imagens.
Enquanto que a China comunista, passou a ser vista de forma hostil como uma
ameaça militar e ideológica por boa parte da opinião pública estadunidense
[Littlewood, 1996, p. 74].
Por seu turno, historicamente as relações francesas com o Japão tiveram um
tom diferente daquelas com outras nações orientais, apesar de ser uma nação
imperialista diretamente envolvida com o processo de descolonização na
guerra com a Indochina (1946-1954) na época. Logo após o processo de
reabertura do Japão ao Ocidente (1850-1860) e a difusão do Japonismo (1872)
a partir da França, as relações entre as duas nações tiveram como leitmotiv
principalmente, aspectos culturais e estéticos. E três momentos distintos
podem ser distinguidos ao longo do século 20 [Sabre,2012, p. 83]: o primeiro
deles vai até os anos de 1960, quando o Japão ainda era visto como uma
nação distante e misteriosa pela maioria dos franceses, mas que fascinava,
como notamos na obra o Império dos Signos (1970) do filósofo Roland Barthes.
Foi a partir dos anos de 1970 que os olhares franceses sobre o Japão [Sabre,
2012, p. 84] assinalaram para um caminho de competição e desconfiança.
Muito graças a concorrência comercial dos baratos produtos “Made in Japan”,
mas que se mantiveram positivos em relação ao universo estético e cultural
japonês.
Com relação a China, as relações franco-chinesas seguiram um roteiro
diferente das relações com o vizinho japonês ao longo do século 20. Por um
longo período, movidas muito mais por desconfiança mútua e tensões
geopolíticas, principalmente na região da ex-Indochina francesa e da ascensão
do regime comunista na China a partir de 1949. Fatores que esfriaram as
relações sino-francesas, levando ao não reconhecimento do governo da
República Popular da China pelos franceses por cerca de 15 anos.
3.Marc Riboud (1923-2016): um tropista oriental par excellence
Em abril de 2023, como parte das celebrações dos 60 anos de amizade francochinesa (1964-2024), em visita de Estado à China o presidente francês
Emmanuel Macron presenteou o presidente chinês Xi Jinping com duas
13
fotografias icônicas do fotógrafo francês Marc Riboud: “Rua Dashalan vista de
uma loja de antiguidades” (1965) (Figura 1) tirada em Pequim e “Duas
Baguettes, Paris” (1953), presentes que simbolizariam a amizade entre as duas
nações. A França representaria a matriarca e pioneira da Sinologia no Ocidente
e a China, por seu turno, uma civilização axial [Eisenstadt, 1986], milenar
referência no Oriente, mas muitas vezes incompreendida.
Figura 1
Fonte: Riboud, 2019, p. 86-87
A escolha de duas fotografias produzidas por Riboud como símbolos de
amizade e diálogo sino-francês, podem ser consideradas para além de um ato
diplomático, mas também como uma celebração estética e transcultural do
olhar tropista oriental de um fotógrafo que entre 1957 e 2010, viajou dezenas
de vezes para a China e testemunhou com suas lentes – enamoradas e
impressionadas pelo ‘outro’ chinês - um universo em transição. Suas palavras
no prefácio do fotolivro Chines (2019) podem ser consideradas como uma
espécie de cânone tropista oriental:
“Sou fotógrafo, não sou sinólogo. Na China andei muito, observei muito,
fotografei muito. Também tomei muito chá enquanto ouvia as longas
apresentações que seguiam sempre o protocolo da época. Li livros, ouvi as
histórias dos viajantes, compartilhei seus entusiasmos, suas decepções, suas
dúvidas. Deveríamos acrescentar mais palavras a todas aquelas que foram
escritas por pessoas mais competentes do que eu? [...] A melhor maneira de
descobrir a China não é olhando para ela? A observação diligente dos detalhes
14
e do momento pode, aqui ainda mais do que qualquer outro lugar, ajudar-nos a
conhecer e compreender. [...] Em todos os lugares vi, amei, a beleza dos
rostos, a pátina das ferramentas a imensidão e a estranheza das paisagens e
em todos os lugares uma certa dignidade que, para quase um povo inteiro
substituiu a humilhação. ” [2019, p. 11. Tradução nossa] Segundo o fotógrafo e
curador britânico Martin Parr, Riboud seria “um dos poucos fotógrafos cuja obra
reúne os mundos da fotojornalismo e da arte” [Jones, 2023. Tradução nossa].
Marc Riboud nasceu em 1923 em Saint-Genis-Laval, perto de Lyon no seio de
uma família burguesa de seis irmãos. Em 1937, na Exposition Universelle de
Paris, o jovem tímido e quieto fez suas primeiras fotos, usando uma pequena
Kodak Vest Pocket que o pai – um homem erudito, viajado e entusiasta da
fotografia - lhe deu em seu aniversário de 14 anos. Segundo o próprio Riboud,
seu pai lhe teria dito: “Marc, você não sabe falar, talvez saiba olhar ...”. [Riboud,
2012, p. 11. Tradução nossa]
Durante a segunda guerra, ele aderiu à resistência francesa. Estudou
engenharia na Ecole Centrale de Lyon e começou a trabalhar como
engenheiro. No entanto, três anos após formado (1951), ele decidiu abandonar
o emprego e se tornar um fotógrafo freelance. Decisão tomada após ter contato
com os fundadores da agência Magnum Photos, Henry Cartier-Bresson, Robert
Capa e David ‘Chim’ Seymour em Paris.
Em 1953, sua fotografia “Zazou, o pintor na Torre Eiffel” foi vendida por Robert
Capa e publicada na revista ilustrada Life e logo depois, Riboud foi indicado por
Cartier-Bresson e Capa para juntar-se à agência Magnum, tornando-se
membro efetivo em 1955.
No mesmo ano, tem início a formação do seu olhar tropista, quando Riboud
viajou por estradas através do Oriente Médio, do Afeganistão até a Índia, onde
permaneceu por um ano. Em 1957, ele viajou de Calcutá para a China – sendo
um dos primeiros fotógrafos ocidentais a viajar para o país após 1949 - fazendo
a primeira de muitas viagens. Seu périplo oriental terminou no Japão, onde ele
encontrou um dos seus temas favoritos, que se tornará seu primeiro livro,
Mulheres do Japão (1959).
Muitas vezes, munido de sua Leica e fotografando para “si mesmo”, como um
andarilho silencioso por estradas, vilarejos, cidades chinesas sob o impacto da
Revolução Chinesa (1949) e depois da Revolução Cultural (1966), o fotógrafo
francês documentava de forma precisa, mas ao mesmo tempo poética e
intimista, realidades em transformação.
Na introdução do fotolivro de Riboud Olhares da China (1980), o historiador
estadunidense e diretor do Centro de Relações EUA-China da Asian Society,
Orville Schell define o que vem a ser um dos pilares da obra riboudiana:
15
“Riboud mostrou as inconsistências e os pontos de tensão da Revolução
Chinesa, não para manchá-la, mas para restaurar a humanidade extirpada pela
longa monotonia da propaganda política” [Jones, 2023. Tradução nossa]
Em 1960, após uma estada de três meses na URSS, cobriu as lutas pela
independência na Argélia e na África Subsaariana. Entre 1968 e 1969 ele
fotografou no Vietnã do Sul e do Norte, um dos raros fotógrafos autorizados a
entrar essas regiões em conflito.
Em 2010, aos 87 anos fez sua última viagem à China (Xangai) para uma
exposição sua e aproveitou para fotografar pela última vez em terras chinesas.
Marc Riboud faleceu em Paris, aos 93 anos, no dia 30 de agosto de 2016. O
núcleo do seu arquivo foi doado ao Museu Nacional de Artes Asiáticas Guimet,
Paris, em 2019.
Palavras finais
As leituras da realidade chinesa ao longo de 50 anos, através de imagens
produzidas pelo tropista oriental Marc Riboud são admiradas não só na Europa,
mas na própria China. Por exemplo, com várias homenagens e exposições ao
longo dos anos, - a mais recente (2024/2025) “O Ocidente Encontra o Oriente”
– Exposição Retrospectiva de Marc Riboud no Museu de Hunan
(https://www.hnmuseum.com/en/content/west-meets-eastretrospectiveexhibition-marc-riboud%E2%80%99s-photography ) - podem ser consideradas
obras mediadoras do olhar entre culturas diversas, complexas, mas
historicamente interligadas e que dialogam. Nesta breve apresentação, minha
proposta de um conceito (“Tropismo Oriental”), a partir de um contexto histórico
especifico (1940-1970) e de uma produção iconográfica, cuja matriz foi a
fotografia Orientalista, produzida entre meados do século 19 e início do 20,
objetiva repensar a dualidade “nós x eles” preconizada por E. Said (1978). A
obra fotojornalística e de fotografia de rua de Riboud como a de outros
fotógrafos, escritores e viajantes contribuiu para redefinir os olhares sobre o
Oriente ao escapar do estigma monolítico do “fotojornalista ocidental que
retratou o Oriente”, a partir de olhares que subjugam, estereotipam ou
depreciam o ‘outro’ oriental, seja ele chinês, japonês, vietnamita, afegão, turco,
entre outras nações orientais.
Referências
Rogério Akiti Dezem é Historiador e Professor de Cultura e História do Brasil no
Departamento de Estudos Luso-Brasileiros da Universidade de Osaka (Japão).
Autor das obras Shindô-Renmei: Terrorismo e Repressão (AESP, 2000),
Matizes do Amarelo. A gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil 18781908 (Humanitas-USP/FAPESP, 2005) e de mais de duas dezenas de artigos
relacionados à História da Imigração Japonesa no Brasil. Desde 2015 se
dedica a pesquisar aspectos culturais e sociais da História Contemporânea
Japonesa (1868-1968) a partir da iconografia e fotografia sobre o
16
Japão/japoneses produzida por olhares nativos e estrangeiros. É membro do
GEFJK (Grupo de Estudos de Fotografia Japonesa Kaigen). Email:
dezemsensei@gmail.com.
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Book/André Deutsch, 1959.
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(Edited by). Photography’s Orientalism. New Essays on Colonial
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JINAFIRE LONG NA PRIMEIRA GERAÇÃO DE
MONSTER HIGH
Alice Mikos Tigrinho
Monster High é uma franquia criada pela Mattel em 2010, focada em bonecas e
outros produtos inspirados em personagens adolescentes que, no contexto da
narrativa, são filhos e filhas de monstros clássicos do cinema e da literatura,
como Drácula, Frankenstein, a Múmia, entre outros. A ideia da franquia era
tentar trazer personagens que celebrassem a diversidade e a aceitação das
diferenças, abordando temas como amizade, identidade, e confiança em si
mesmo.
A linha foi criada por Garrett Sander e lançada inicialmente como uma série de
bonecas e uma websérie de animação, acompanhada de livros escritos por Lisi
Harrison, ambos com o intuito de provocar a popularização das bonecas no seu
público alvo. A proposta original era explorar um universo onde monstros e
humanos coexistem, mostrando adolescentes em um ambiente escolar que
vivem dilemas comuns a essa idade, mas com uma estética gótica e elementos
leves de terror.
Além das cinco personagens principais, o universo inclui muitos outros
personagens inspirados em diversas mitologias e lendas, abrangendo um
elenco de mais de cento e quarenta e cinco personagens, divididos entre os
pais das criaturas, tutores e alunos da escola (SILVA, 2018, p.42).
Além das bonecas e webséries, Monster High se expandiu para filmes, jogos,
roupas, e outros produtos de merchandising. A Mattel lançou vários filmes
animados diretamente em DVD e serviços de streaming.
Em 2016, a Mattel fez um reboot da série, reformulando o visual das
personagens e ajustando o tom das histórias para um público mais jovem. No
entanto, essa mudança teve reações mistas dos fãs, e as vendas caíram, o que
levou a franquia a ficar em hiato por um tempo. Em 2022, Monster High
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retornou com um novo reboot, incluindo uma série live-action e um filme
produzido pela Nickelodeon, trazendo os personagens clássicos com novas
interpretações e mantendo o foco na diversidade.
Neste trabalho, utilizaremos a primeira geração de bonecas e animação,
entendendo que foi essa etapa do produto cultural que construiu e apresentou
o mundo e os personagens da série.
Monster High é de extrema importância no movimento de representação
feminina dentro de desenhos voltados para crianças, já que, segundo Juliana
do Canto e Mercês Ghazzi (2016), a animação representa uma mudança na
visão da feminilidade, refletindo figuras femininas diversas, com voz própria e
igualdade em relação aos homens em temas como identidade, profissão e
relacionamentos. Suas personagens oferecem novos modelos de identificação
feminina sem perder a essência da feminilidade, acompanhando demandas
sociais por diversidade. Porém, a franquia ainda reforça outros estereótipos
como o formato do corpo, dado que, todas as personagens são muito magras.
A representação de outras etnias e culturas também é explorada nos produtos
produzidos. Contudo, ao tentar implementar elementos culturais não ocidentais
ou culturalmente brancos, os personagens se tornaram estereótipos ocidentais
de sua cultura, como a Jinafire Long.
Segundo o site Monster High Wiki, ela foi introduzida em 2012, sendo uma
aluna transferida para Monster High e filha de um dragão chinês. Ela possui
escamas douradas, cabelo verde com listras pretas e olhos jade. Seu visual
inclui um vestido tradicional manchú, ou Chángshān 長衫, roxo com padrões de
escamas e saltos vermelhos com solas douradas, inspirados no design de
dragões.
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Fonte: https://static.wikia.nocookie.net/monster-high/images/8/88/Profile_art__Jinafire_Long.png/revision/latest?cb=20160203232935&path-prefix=pt-br
Segundo sua própria descrição:
Nascida e criada em Fanghai, China, com seus sete irmãos mais velhos,
Jinafire escolheu viver por conta própria para variar. Ela partiu sozinha depois
de fazer amizade com as colegas designers de moda Clawdeen Wolf e Skelita
Calaveras em Scaris e viajou para os Boonighted States de Scaremerica para
compartilhar aulas com as duas. (Monster High Wiki)
A personagem seria a primeira de um mito não ocidental a ser inserida tanto na
série de bonecas quanto na série animada. Porém, como dito anteriormente, a
figura tem uma representação bem desrespeitosa em ambas.
Em “Orientalismo”, Edward Said (2007) nos leva a refletir sobre como o “outro”
oriental é representado por uma perspectiva ocidental específica. Seu objetivo
não é confrontar essas imagens, mas entender por que enxergamos o Oriente
da forma que enxergamos, utilizando uma análise da literatura dos “cânones
ocidentais” que foram historicamente vistos como verdadeiros portadores do
conhecimento humano. Essa visão constrói o Oriente como o oposto do
Ocidente, criando uma dicotomia: de um lado, o Ocidente com valores
“universais”; de outro, o Oriente, que representa tudo o que o Ocidente não é.
Embora Said foque na representação do Oriente Médio, sua teoria se aplica
amplamente, revelando uma estrutura institucional de saber sobre o “outro” que
persiste até hoje. Essa abordagem teve origem na exploração da França e da
Grã-Bretanha no Oriente, justificando o imperialismo nos séculos XIX e XX.
Com a mudança nos fluxos de poder global, esse “lugar de fala” passou da
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Europa para os Estados Unidos, que reproduzem a lógica orientalista com
novos focos, como a China (ARAÚJO, 2022, p.55).
Said (2007) identifica o orientalismo em três níveis: como campo acadêmico
que estuda o Oriente; como pensamento que separa Oriente e Ocidente em
categorias opostas, como "bárbaro" versus "civilizado"; e como instituição que
perpetua visões estereotipadas sobre o Oriente. Esse sistema molda discursos
que apresentam o Oriente como o oposto do Ocidente.
Desta forma, o orientalismo não é apenas uma “falsidade”, mas um sistema de
poder, fundamentado em laços políticos e socioeconômicos. Nos Estados
Unidos, a China se tornou o novo foco orientalista, especialmente com o
crescimento econômico chinês, que desafia a hegemonia americana. A
"ameaça chinesa" é retratada como um agente disruptivo para o sistema
internacional, reforçando o senso de superioridade ocidental (ARAÚJO, 2022,
p.56)
Assim, Vukovich (2012) sugere que o novo orientalismo, voltado para a China,
representa um projeto imperialista contemporâneo, em que o Ocidente espera
ver a China "ocidentalizada". Essa visão permite que o Ocidente continue
utilizando a sinologia não só para obter conhecimento, mas também para
exercer controle econômico e político.
A construção da China como o “outro”, justifica o monitoramento e policiamento
que os Estados Unidos têm com o país oriental para garantir que ela nunca os
ultrapasse no cenário mundial. Desta maneira, ao utilizar a ficção audiovisual,
que tem o poder de influenciar a percepção política dos indivíduos (ARAÚJO,
2022, p.52) os povos oriundos da China, foram retratados como bárbaros,
brutais, corruptos e pouco civilizados. Segundo a autora (2022), os
personagens eram construídos a partir dos seus traços étnicos, os quais foram
vinculados a outras populações amarelas diaspóricas dentro dos EUA, sendo
vistas como espertas, ardilosas, insensíveis e arrogantes.
As mulheres entram nessa construção, sendo colocadas como perigosas,
sensuais, amorais e que despertam o desejo sexual do homem branco (Idem,
p.62). As dragon ladies, como ficaram conhecidas, reforçam a noção de
mulheres amarelas como sensuais e eróticas, objetificando os seus corpos e as
transformando em meros objetos de desejo. Elas podem até ser vistas como
personagens fortes, mas sua função narrativa sempre é ancorada ao
personagem ocidental branco.
O estereótipo do asiático calado é um exemplo de como certos traços culturais
são simplificados e generalizados de maneira que distorce e limita a
compreensão das identidades asiáticas. Esse estereótipo retrata pessoas de
origem asiática como passivas, introspectivas ou excessivamente reservadas,
o que reduz a personalidade complexa de um indivíduo a uma característica
única e unidimensional.
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Esse estereótipo está enraizado em uma visão ocidental que percebe a
expressão emocional e a assertividade como sinais de autenticidade, enquanto
interpreta a reserva ou o silêncio como uma ausência de expressão (ARAÚJO,
2022, p.67). Em muitas culturas asiáticas, no entanto, o respeito, a harmonia e
a autocontenção são valores importantes, o que leva a um comportamento
mais moderado ou reservado, especialmente em situações sociais. Jinafire se
encaixa nesse estereótipo, já que “ela é retratada nos webisódios e no especial
de TV Scaris: A Cidade Sem Luz, como inteligente, paciente quando não é
diretamente afetada pela situação e focada em seu trabalho.” (WIKI MONSTER
HIGH).
Na mídia ocidental, segundo a autora (ARAÚJO, 2022), essa representação
reforça o conceito de "minoria modelo", onde asiáticos são vistos como quietos,
disciplinados e obedientes, atributos que os tornam "invisíveis" ou "não
problemáticos".
Desta forma, quando a imagem de uma China assustadora se torna
economicamente inviável, dado que o mercado chines se torna um grande alvo
dessas empresas de audiovisual, a representação passa para um plano
imaginário: misticismo, guerreiros, kung fu e tradições antigas. Esse imaginário,
moldado por valores estadunidenses, usa figuras e cenários chineses,
reforçando o orientalismo ao privar a China de autonomia para se representar.
Assim, a China é reduzida a um cenário decorativo de paisagens exóticas e
cultura milenar, servindo a histórias que sustentam valores ocidentais.
Conseguimos ver essa representação mística em Jinafire Long. Embora a série
seja voltada para o misticismo, este é retratado de forma errônea, cometendo
erros de representação da criatura que foi utilizada.
Os dragões asiáticos, especialmente os das tradições chinesa, japonesa e
coreana, são muito diferentes dos dragões ocidentais. Enquanto os dragões
europeus geralmente simbolizam destruição e perigo, os dragões asiáticos são
representações de força, sabedoria, prosperidade e proteção. Eles possuem
corpos longos e serpentinos, com quatro patas, sem asas, e são uma fusão de
diferentes animais: têm corpo de serpente, escamas de peixe, garras de águia,
chifres de cervo e longos bigodes.
Na tradição chinesa, os dragões estão fortemente ligados à água e aos
fenômenos naturais como tempestades, rios e mares, sendo vistos como
controladores da chuva e, portanto, associados à fertilidade e ao crescimento
agrícola. Enquanto Jinafire, como seu próprio nome diz, é ligada ao fogo.
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Fonte: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/0/0e/NineDragon_Screen-1.JPG/800px-Nine-Dragon_Screen-1.JPG
Em seu perfil no site Monster High Wiki, ela é descrita como filha do dragão
chines. Por sua pele ser amarela/dourada, ela poderia ser filha do dragão
amarelo, ou Huáng Lóng (黃龍),que na tradição chinesa, é uma das figuras
mais reverenciadas na mitologia e simboliza poder, prosperidade, sabedoria e
força espiritual.
24
Fonte: https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fmonsterhigh.fandom.com%2Fpt-br%2Fwiki%2FJinafire_Long&psig=AOvVaw0d7YAnAVKmpghV3c3OpG&ust=1731370867857000&source=images&cd=vfe&opi=8997844
9&ved=0CBQQjRxqFwoTCPCfyaGB04kDFQAAAAAdAAAAABAJ
Porém, o site Wiki Monster High, da uma “explicação” para a cor de sua pele:
"Jinafire" é uma brincadeira com o nome "Jennifer", com "jin" ("金") sendo o
caractere para "ouro" ou "dinheiro" em vários idiomas asiáticos, incluindo
chinês, que se liga à cor da pele de Jinafire e "fogo", já que Jinafire é um
dragão (embora os dragões chineses estejam associados à água e não ao
fogo). "Long" é baseado em "lóng", a palavra chinesa para "dragão", enquanto
a palavra vietnamita é algo semelhante que é "rồng" ou "con rồng". (WIKI
MONSTER HIGH)
Isso evidencia que nem mesmo uma das figuras mais importantes do folclore
chinês foi integrada na construção da origem da personagem, o que revela
uma carência de pesquisa mais aprofundada e específica sobre o contexto
cultural do local que, em teoria, seria homenageado.
Sua cor também é alvo de críticas pela comunidade, embora haja a explicação
como vimos anteriormente, em algumas representações audiovisuais sua pele
se torna amarela. A opção por retratar uma personagem chinesa como
"amarela" pode ter conotações raciais questionáveis, dado que é um
estereótipo muito trabalho dentro do mundo cinematográfico e propagandista,
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reforçando a ligação
representações.
e
marginalização
desses
grupos
por
essas
Nas imagens abaixo, podemos ver as representações dentro da animação.
Fonte: https://static.wikia.nocookie.net/all-worldsalliance/images/f/f2/Jinafire102.jpg/revision/latest?cb=20190412020950
Fonte:
https://i.pinimg.com/564x/df/13/0d/df130de3ed5c6e2983e7f09e5e414425.jpg
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Como podemos ver, os estilos de animação mudam, a animação em 3D mostra
a personagem com sua pele dourada meio amarelada, enquanto a 2D é
claramente amarela. Poderia ser apenas um erro na coloração devido a
mudança de técnicas. Porém, em outro episódio, onde Draculaura, uma das
personagens principais, vai fazer um intercâmbio no Japão, os personagens
secundários que aparecem tem uma coloração amarela em diferentes tons,
demonstrado no exemplo abaixo:
Fonte:
https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Ftwitter.com%2FGyaru
OfTheDay%2Fstatus%2F1280049993802489856&psig=AOvVaw3PcFEzOXyzI
VMReZo7qvj&ust=1731369226472000&source=images&cd=vfe&opi=89978449&ved=
0CBQQjRxqFwoTCOCI9pD70okDFQAAAAAdAAAAABAX
Outra crítica dos consumidores asiáticos da série, é a música de fundo que
toca quando Jinafire entra em cena, por ser uma personagem secundária ela
aparece em alguns episódios, tornando-se bem memorável aos
telespectadores. É uma música instrumental calma, que podemos associar com
a cultura Leste Asiática. Importante ressaltar, que isso não acontece apenas
com ela, todas as personagens têm suas músicas de fundo, mas apenas a de
Jinafire é característica.
Desta forma, não apenas as personagens apresentadas na foto, quanto Jinafire
sofrem de algum tipo de má interpretação dentro da série. Personagens como
Abbey Bominable, uma yeti vinda da cordilheiras do himalaia que possui um
sotaque russo em sua dublagem e Isi Dawndancer, que é um espírito de veado
vinda de Boo Hexico, sendo considerada maior polêmica de Monster High, seu
intuito era representar os povos indígenas americanos, o que de fato ela fez,
assimilando diversas representações étnicas e culturais ameríndia em apenas
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uma boneca, além de distorcer símbolos religiosos e divindades dessas
culturas. Essas são apenas algumas das problematizações da primeira
geração de bonecas e animação de Monster High.
Concluímos, portanto, que Monster High, ao longo de sua primeira geração,
embora tenha se proposto a celebrar a diversidade e promover a aceitação das
diferenças, acabou por reforçar estereótipos culturais e étnicos em várias de
suas representações. Personagens como Jinafire Long e outras, que deveriam
prestar uma homenagem à riqueza cultural de diferentes tradições,
frequentemente caíram em estereótipos simplistas ou incorretos. Isso evidencia
uma abordagem orientalista, onde culturas não ocidentais são reduzidas a
elementos exóticos ou decorativos que servem mais para reforçar a narrativa
ocidental do que para explorar as complexidades culturais desses povos.
Embora a franquia tenha alcançado um impacto positivo ao oferecer novas
figuras de identificação feminina e ao abordar a diversidade de forma
inovadora, falhou ao abordar culturas de fora do ocidente com o cuidado e
respeito necessários. Esses estereótipos acabam reforçando visões limitantes,
que transformam culturas inteiras em caricaturas e privam esses grupos de
uma voz autêntica.
Vale ressaltar, que a terceira geração de Monster High vem reescrevendo a
história de diversos personagens e trazendo novos tipos de representações.
Seja com diferentes tipos de biotipos, ou com a adição de personagens
neurodivergentes, com deficiências físicas e mentais. A própria Jinafire, que
permaneceu com o mesmo nome dado a familiaridade do público, teve todo
seu design e história refeitos, representando com precisão e respeito a
mitologia chinesa.
Fonte:
https://static.wikia.nocookie.net/monsterhigh/images/b/b7/JinafireG3Render.png
/revision/latest?cb=20240402010629
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Sua pele ganhou um tom azulado com escamas douradas, enquanto seu
cabelo é preto com mechas roxas e azuis na parte de trás, enquanto suas
roupas apenas remetem à cultura chinesa com estampas e cores relacionadas.
Seus poderes também mudaram, agora ligados à água, aludem a sua
verdadeira inspiração.
Além disso, outros tipos de inclusão foram feitas fora das telas. Todos os
personagens são interpretados por pessoas de suas nacionalidades ou culturas
específicas, como Bunny Earickson, que é a primeira personagem de Monster
High com Síndrome de Down, sendo interpretada pela atriz Sofia Sanchez que
também tem a síndrome.
Com essas iniciativas, a marca Monster High, vem se aproximando do seu
intuito original, trazendo personagens que celebram a diversidade e a
aceitação das diferenças.
REFERÊNCIAS
Alice Tigrinho é Graduanda em História pela Universidade Federal do Paraná.
Bibliografia
ARAÚJO, Mayara. ORIENTALISMO NA INDÚSTRIA CULTURAL OCIDENTAL.
Contemporanea: Revista de Comunicação e Cultura, v. 20, n. 3, 2022.
BROGLIO, Ana Júlia; ECHEVERRE, Mariana Magalhães Camacho; BAILONI,
Vitória Xavier. Solis: o design digital em defesa da representatividade nos
brinquedos. 2021.
CANTO, Juliana Speguen do; GHAZZI, Mercês Sant’Anna. Monster High e o
modelo de feminilidade na atualidade. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 36, n.
3, p. 625-636, 2016.
PINTO, Samayra da Silva. “Você pode ser tudo que quiser” x “Seja você
mesmo, seja único, seja monstro!”: as diferenças simbólicas entre as bonecas
Barbie e Monster High. 2018. 90 f. Monografia (Graduação em Design-Moda) Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2018.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
VUKOVICH, Daniel. China and Orientalism: Western knowledge production and
R.P.C. London: Routledge, 2012.
29
Sites
Jinafire Long. Wiki Monster High. Disponível em:
https://monsterhigh.fandom.com/pt-br/wiki/Jinafire_Long.
Jinafire Long. Monster High Wiki. Disponível em: https://monsterhigh.fandom.com/pt-br/wiki/Jinafire_Long.
Significado de Dragão oriental. Significados. Disponível em:
https://www.significados.com.br/dragaooriental/#:~:text=O%20drag%C3%A3o%20oriental%20%C3%A9%20um,os%20
rios%2C%20lagos%20e%20mares.
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“O MUNDO DE ALI”:O QUE A ARTE SEQUENCIAL
PODE ENSINAR SOBRE A PANDEMIA E O
NEGACIONISMO?
Álvaro Regiani
Introdução
O objetivo desta comunicação é interpretar algumas lógicas discursivas do
negacionismo por meio da análise da História em Quadrinhos (HQ) “O mundo
de Ali” que compõe o Graphic Novel “Até aqui tudo ia bem…” (2022) do
quadrinista turco Ersin Karabulut. Procurou-se sobrepor os temas escritos e
desenhados por Karabulut com as consequências da pandemia Covid-19 para
refletir sobre os usos dos quadrinhos no ensino de história como meio para
compreender fenômenos mundiais. Assim, interessa a essa pesquisa tornar
inteligível a pandemia a partir do olhar artístico para estabelecer parâmetros
políticos e, desse modo, posicionar-se criticamente para o enfrentamento do
negacionismo.
A pandemia da Covid-19 e o “O mundo de Ali”
Sem sombras de dúvida, o maior fenômeno mundial dos últimos anos foi a
pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2. Mas, apesar da dimensão e da
duração, este período, frequentemente, é retratado como uma continuidade de
outras epidemias menores, particularmente, a SARS-1 e a SARS-2, e sua
ocorrência é entendida como um episódio de longa duração. Dizem alguns
especialistas que num futuro próximo haverá outras emergências sanitárias
similares ou talvez piores.
Porém, um ponto que chama atenção nessas hipóteses são as percepções
entre os surtos epidêmicos, um situado em um passado que “todos” querem
esquecer e, outro, em um futuro iminente que “todos” querem adiar. Em ambos
os anseios, a experiência política não parece indicar alternativas para o
enfrentamento dessas crises ou mesmo que a política pode ser negada, tal
qual escreveu o filósofo francês Alain Badiou: “a lição a ser tirada disso é clara:
a epidemia em andamento não terá, como epidemia, nenhuma consequência
digna de nota” (Badiou, 2020, p. 79)..
Contrário a negação da política, o quadrinista turco Ersin Karabulut utiliza a
ironia e a sátira para roteirizar e desenhar a história sequencial “O mundo de
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Ali”, em que uma patologia desconhecida provoca “mudanças inexplicáveis no
rosto” das pessoas, tornando-as semelhantes a um único indivíduo:
[Karabulut, 2020, p. 47]
Chamada de “Alificação”, a patologia era facilmente transmissível e,
rapidamente, tornou-se pandêmica afetando homens e mulheres de idades
variadas e em todos os países. Um dos criadores da “doença de Ali”, um
biólogo finlandes, explicou porque a disseminou: “Quando você faz compras
32
deixa de lado as maçãs podres e compra, as mais bonitas, não é mesmo? Do
mesmo modo, é ridículo fingir que não há na população gente “podre”. Não
importa o que a gente faça, sempre haverá uma maioria imbecil e não
educada, essas pessoas não entendem nada, mas controlam o futuro de todos
pela quantidade. O planeta está morrendo e não temos recursos suficientes
para todo mundo. Pra humanidade sobreviver, essa gente tem que morrer.
Podem nos tratar como criminosos se quiserem… Mas nós sabemos que
seremos lembrados como salvadores do gênero humano” [Karabulut, 2020, p.
48].
As sentenças acima implica uma motivação e uma finalidade moralista, pois a
“coisa” que “eles tinham criado liberava uma enzima no cérebro das pessoas
ditas conservadoras, religiosas, extremistas e de todos aqueles que, em suas
próprias palavras, eram incapazes de compreender a vida, o universo e tudo o
que nos cerca” [Karabulut, 2020, p. 49]. De modo ficcional, Ersin Karabulut
inverte as circunstâncias de circulação dos vírus na contemporaneidade, ao
colocar as condições morais como determinantes para uma ameaça a ordem
social ao invés da “interseção sociedade-natureza”, como formulou Alain
Badiou sobre a provável origem do vírus Covid–19, disseminada “em mercados
mal conservados que seguiram costumes mais antigos” da China e com “uma
difusão planetária deste ponto de origem sustentado pelo mercado mundial
capitalista e sua dependência de mobilidade rápida e incessante” [Badiu, 2020,
p. 74].
Na história em quadrinhos, não foram as consequências intencionais e não
intencionais da expansão do capitalismo e da mundialização que propiciaram a
circulação do vírus, mas os efeitos morais desse modelo. O que transfere o
leitor da HQ para outra tensão do período, a rivalidade político-ideológica entre
grupos “conservadores” e “progressistas”. Porém, o que é ser um conservador?
Ou ser um progressista? E o que os diferencia?
Mesmo ao sobrepor temas como os dilemas sanitários com as circularidade
das ideias políticas, Ersin Karabulut deixa ambíguo os limites entre os
fundamentos e as motivações das ações desses grupos. O papel
desempenhado pelo criador da “doença de Ali”, por exemplo, a despeito da
finalidade niilista, assemelha-se às perspectivas malthusianas, contudo,
ressignificada ao contexto da história em quadrinhos. À semelhança do que
defendia o filósofo britânico Thomas Malthus, o crescimento populacional é
mais rápido do que a produção de alimentos e ações voltadas para o controle e
a diminuição demográfica, acreditava, solucionaria a questão.
Esta ideia, contemporaneamente, está bem difundida e aceita entre
conservadores, religiosos e extremistas, mas ressignificada e adequada às
motivações de cada grupo. Servindo como um instrumento para o controle
populacional, especialmente, em países em desenvolvimento. Porém, segundo
os dados da Organização das Nações Unidas, “o mundo produz alimento
suficiente para alimentar toda população humana” [ONU, 2021].
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A fome ainda existe pela conservação de uma lógica econômica que
enfraquece a ação política, bem como a distribuição e o acesso a renda a
população mais pobre. Enquanto as transações econômicas operam em escala
mundial, a política ainda está escalonada às amarras da soberania nacional e
estatal. Por isso, ancorar um conjunto de ações em uma teoria do século XVIII
que não mais corresponde às condições de produção hodiernas põe luz ao
debate sobre a permanência das ideias malthusianas como fundamentação
para certos discursos políticos, ou seja, a necropolítica.
Antes mesmo da pandemia, “em nosso mundo contemporâneo”, tal qual
explica o filósofo camaronês Achille Mbembe, “as armas de fogo são dispostas
com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos
de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas
populações são submetidas a condição de vida que lhes conferem o estatuto
de “mortos-vivos” [Mbembe, 2018, p. 71]. O curso não interrompido pela
pandemia da expansão global do capitalismo neoliberal projeta uma divisão
entre ‘vivos’ e ‘mortos’ por meio de um controle para a distribuição da espécie
humana em grupos e subgrupos, ideologicamente, estruturados no racismo
[Mbembe, 2018, p. 16]. Satiricamente, representado por Ersin Karabulut:
[Karabulut, 2020, p. 53]
Tal qual na vida, a ficção indica que uns são mais iguais do que os outros e
que um certo tipo identitarismo instrumentaliza violentamente a
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homogeneização da sociedade. O que contraria a frase “estamos todos no
mesmo barco”, dito por vários intelectuais ao longo da pandemia da Covid e
aqui representada nos escritos do filósofo esloveno Slavoj Zizek. Ele fez coro à
uma suposta democratização do vírus, mas quando escreveu aquela frase, ele
não tinha como saber sobre o prolongamento da emergência sanitária. Mesmo
assim, igual a muitos, acreditou nos pressupostos básicos da ciência médica
na construção de um tipo de solidariedade.
Entretanto, muitos não significam todos, a contraposição às restrições
sanitárias impostas para conter a crise não foi um consenso nem mesmo entre
intelectuais. Infelizmente, o debate desse período não se pautou somente por
discussões médicas e/ou científicas porque um conjunto de discursos
negacionistas, exaustivamente, circularam durante a pandemia da Covid-19.
Comumente, o negacionismo caracterizava-se por falas que supostamente
representavam demandas de todas as classes sociais e dos respectivos
estratos ideológicos e orientações político-religiosas.
O filósofo italiano Giorgio Agamben, certo de suas convicções, publicou uma
teoria de convergência entre o crescente uso do estado de exceção e a
emergência sanitária para refutação das medidas restritivas: “Parece que,
tendo esgotado o terrorismo como causa das medidas excepcionais, a
invenção de uma epidemia pode oferecer o pretexto ideal para a sua extensão
para além de todos os limites” [Agamben, 2020, p. 21]. Este exemplo,
equidistante dos discursos conservadores e fanáticos, ilustra a capilaridade do
negacionismo na atualidade.
As reflexões em torno dos usos do dispositivo do estado de exceção pela
governança global, conhecido no Brasil pelo decreto de estado de sítio feito
pelos militares em 1964, impõe restrições severas à sociedade dada às
situações extremas como guerras que demandam ações que não possam ser
restringidas pelas leis. A análise sobre o uso crescente deste dispositivo
constitucional tornou Giorgio Agamben conhecido mundialmente, mas,
infelizmente, o seu negacionismo durante a pandemia também.
Como exemplificado acima, o negacionismo não está relacionado apenas às
classes menos instruídas ou muito menos restrita às orientações políticoideológicas. Este fenômeno deve ser entendido em camadas relacionais, um
filósofo como Giorgio Agamben, por exemplo, se situa em alas ditas
progressistas, mas também se encontra em tantas outras conservadoras. Isto,
representa o dilema político contemporâneo que, oportunamente, foi descrito
pelo narrador de “O mundo de Ali”:
35
[Karabulut, 2020, p. 51]
Entre aceitar e recusar o negacionismo há vários caminhos, sobre o primeiro,
deve-se considerar os aspectos da fabricação de uma verdade e de sua
circulação nos meios de comunicação contemporâneos. Bem como, o sentido
impositivo desse discurso que remonta a uma tradicional percepção sobre a
política, a divisão social. De Maquiavel à Carl Schmitt, passando pelos
contratualistas, liberais e até Marx, a fórmula se mantém: nós contra eles.
Ou seja, se estabelece um primado político no conflito entre os amigos e os
inimigos para estruturar um imaginário político segregacionista. Nos piores
casos e a nível individual produz ações extremistas e terroristas e em sua
dimensão nacional e internacional gesta uma governança fascista ou totalitária,
respectivamente, representada na sequência a seguir:
36
[Karabulut, 2020, p. 52]
[Karabulut, 2020, p. 54]
Mas, ações extremistas gestadas no negacionismo somente atingem grupos
conservadores? A resposta é não! Segundo a historiadora brasileira Marta
Rovai: “O negacionismo tem a pretensão de calar, silenciar e fazer esquecer
acontecimentos que exijam o enfrentamento histórico e responsabilizações,
37
assim como negar conhecimentos da ciência relacionados à saúde pública,
como a importância das vacinas e as consequências do aquecimento global; ou
ainda, a fatos que há séculos pensávamos estar incorporados ao senso
comum, como a concepção científica de que a terra seja redonda” [Rovai,
2020, p. 13]. Tal qual ilustrado na HQ, o narrador da história observa a
Alificação se manifestar em seu pai, depois em sua mãe e por fim nele mesmo,
apesar de se considerar um progressista:
A oposição a alificação e, igualmente, ao negacionismo passa pelo constante
processo de ensino-aprendizagem a partir de uma reflexão crítica acerca do
mundo e das pessoas. O conjunto dessas compreensões começa com um
“Estado de suspensão”, definida pelo historiador brasileiro Rafael Saddi, como
um: “estado de ruptura, de revolução da consciência”. Embora essa apreensão
teórica seja aplicada para a didática da história, esta também serve para a
refutação do negacionismo de modo geral, dado que, “não se trata de um
conhecimento que cresce a partir das ideias já estabelecidas. Não se trata de
acúmulo de conhecimento e de sentido. Mas, efetivamente, de
transformação radical do modo de sentir e de pensar a si mesmo e o mundo
que nos cerca” [Saddi, 2016, pp. 121-122]:
38
[Karabulut, 2020, p. 52]
Nos termos da didática da história proposta pelo historiador alemão Jörn
Rüsen, o pensamento crítico desempenha um papel central na modulação dos
níveis de consciência histórica [Cf. Rüsen, 2015]. O desenvolvimento das
competências históricas com a passagem dos níveis de consciência histórica
pela modulação crítica oportuniza a aprendizagem histórica. Assim, as
competências cognitivas estariam em consonância com o “Estado de
suspensão” em sua tarefa crítica para suprimir a carência de orientação e
evidenciaria as diferenças com o presente, bem como destacaria as
proximidades e distâncias entre indivíduos culturalmente distintos:
39
[Karabulut, 2020, p. 53]
Como visto até aqui o conservador e o progressista partilham de uma estrutura
de pensamento em comum, o que os diferenciam é a abertura para a diferença,
entendendo-a como parte que nos constitui enquanto sujeitos, não como algo
estranho a nós. O problema reside nos “fazedores de história”, como bem
descreveu a filósofa judia-alemã Hannah Arendt, no qual grupos de interesse
objetivam impor uma ideologia que supostamente se realiza na história para
que os mesmos alcancem ou permaneçam no poder. No caso, as reflexões de
Arendt ainda podem trazer luz a temas recentes, uma vez que a “mentalidade
imperialista” inflama e patrocina o negacionismo para projetar uma sociedade
homogênea e atomista que antagoniza com “a condição humana e os limites
do globo” porque “a sede de poder só podia ser saciada pela destruição” e isto
“não podia parar nem estabilizar-se e que, por outro lado, só podia provocar
uma série de catástrofes destruidoras, quando atingisse esses limites” [Arendt,
2009, p. 173]:
40
[Karabulut, 2020, p. 54]
Assim, por mais que o negacionismo tenha causado centenas de milhares de
mortes diretas e indiretas ao longo da pandemia de 2020-22 e, ainda hoje,
impõe severas restrições à circulação de ideias, solidariedades e afetos. A
compreensão de suas lógicas discursivas e, igualmente, a sua contraposição
pode indicar novos caminhos, um desses se constitui pela imaginação. O que a
arte, em particular, a arte sequencial, nos ensina é a possibilidade de criação e
destruição de mundos, muito mais do que as interpretações das linguagens
metafóricas, ela se conecta a concepções de conhecimento de mundos e
questiona o seu próprio fundamento.
A relação artística entre a semelhança e a diferença permite uma experiência
estética relativa às faculdades do juízo que em certos casos produz uma
41
convergência com a política, respectivamente, juízos estéticos e juízos
políticos. Neste específico aspecto, a imaginação artística e, igualmente, a
política quando constituídas a partir de obstáculos assumem formas inovadoras
para identificar ou resolver certos problemas. Estes dois juízos, mesmo sem
ser intercalados, servem como parâmetros para uma orientação e como balizas
para a consciência histórica na contraposição à “alificação”.
Considerações finais
Ao analisar a História em quadrinhos “O mundo de ali”, posicionando-a como
fonte histórica e, principalmente, como um prisma para compreender aspectos
de um fenômeno social como a pandemia de Covid-19 e a circulação de ideias
negacionistas, procurou-se dar centralidade a compreensão particular de um
artista turco. O objetivo era demonstrar como uma obra midiática escrita e
produzida
no
“oriente”
pode
instrumentalizar,
teoricamente
e
epistemologicamente, discussões filosóficas e historiográficas no “ocidente”,
tanto sobre o passado quanto questões contemporâneas. Por fim, foi intuito
apresentar meios para se propor um conjunto de discussões voltados à didática
da história e demonstrar a importância da orientação histórica e de uma história
posicionada.
Orientar-se historicamente a partir da consciência de si e do mundo que nos
cerca possibilita um conjunto de reflexões críticas sobre o passado e de como
atuar politicamente no presente. Tomando, novamente de empréstimo as
palavras de Marta Rovai, a pretensão “foi mostrar que em democracia não se
trata de desqualificar pessoas quando da ausência de argumentos, mas
trabalhar para construí-los, dialogicamente, para que se possa ponderar de
forma ética e responsável sobre os eventos e saberes” [Rovai, 2020, p. 14].
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Dr. Álvaro Regiani é professor de História das Américas e das Áfricas na
Universidade Estadual de Goiás - Câmpus Nordeste e agradece ao seu irmão,
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Buenos Aires-Argentina, 2020.
43
UMA HISTÓRIA, MUITAS HISTÓRIAS: A
IMPORTÂNCIA DA HISTÓRIA ORAL NO ENSINO DO
CASO DAS “MULHERES DE CONFORTO” E A
UTILIZAÇÃO DO CURTA HER STORY COMO
SUPORTE PEDAGÓGICO
Camilly Evelyn Oliveira Maciel
Quem foram as “mulheres de conforto”?
O termo "mulheres de conforto" é um eufemismo usado para designar as
mulheres que foram submetidas à escravidão sexual pelo Exército Imperial
Japonês durante a Segunda Guerra Mundial. Estima-se que entre 80 mil e 200
mil mulheres foram forçadas a servir como escravas sexuais, embora o número
exato seja incerto, já que a maioria dos documentos relacionados foi destruída
pelos soldados ao final da guerra (Min, 2003).
Mulheres de várias nacionalidades foram forçadas a entrar nesse sistema:
chinesas, japonesas, filipinas e tailandesas. Contudo, a maior parte delas
(cerca de 80% a 90%) era coreana, pois o Japão, após anos de conflito,
ocupou a Coreia em 1910 e a transformou em sua colônia (Soh, 1996). Essas
mulheres eram capturadas de diferentes formas: sequestradas, recrutadas à
força ou enganadas por falsas promessas de emprego. Uma vez aprisionadas,
eram confinadas em bordéis militares, chamados de "casas de conforto", onde
eram forçadas a prestar serviços sexuais aos soldados japoneses (Sikka,
2009).
Chung Seo-Woon e a representatividade de tantas outras “mulheres de
conforto”
Chung Seo-Woon foi uma das diversas mulheres que foram levadas a servir
como “mulher de conforto”, aos dezoito anos de idade. Apenas na terceira
idade conseguiu falar sobre os traumas que passou durante a Guerra. Em
1995, representou as sobreviventes na Quarta Conferência Mundial Sobre as
“Mulheres de Conforto” que aconteceu em Pequim, China. Por anos, lutou a
favor do reconhecimento do caso das “mulheres de conforto” e faleceu em
2004, aos 81 anos, sem ouvir um pedido de desculpas oficial do Japão. Através
44
dos seus testemunhos conseguimos compreender um pouco mais sobre as
vivências e violências sofridas por essas mulheres.
Após a derrota do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) na Segunda Guerra Mundial,
os japoneses eliminaram o máximo de evidências relacionadas a escravidão
sexual, queimando registros militares e até mesmo matando muitas das
“mulheres de conforto”. Entretanto, apesar dos esforços desses militares para
apagar esse fato, as sobreviventes, os ex-soldados e outras pessoas que
estiveram envolvidas ou viram de perto o sistema de conforto, através de suas
memórias, foram capazes de relatar suas vivências e o modo como algumas
estações funcionavam.
Infelizmente, devido a pouca quantidade de registro que foram preservados e a
morte de muitas “mulheres de conforto”, é impossível saber alguns fatos, como
por exemplo, o número de meninas/mulheres que foram recrutadas para fazer
parte do sistema de conforto, porém, graças aos diversos estudos e relatos,
pesquisadores conseguiram analisar melhor esse lado esquecido da história.
Para
Howard (1995, p. 24-25): “Muitos dos detalhes relativos ao
funcionamento do sistema de mulheres de conforto, incluindo a sua escala
global, ainda não foram descobertos. No entanto, conseguimos descobrir uma
série de factos sobre as mulheres de conforto militares japonesas a partir de
documentos militares, dos testemunhos de antigos soldados e através de
um exame minucioso dos relatos das próprias ex-escravas sexuais.”
De acordo com Carlos Fico (2012, p. 47), após as duas guerras mundiais, temse a introdução dos relatos testemunhais como “um dado essencial para a
compreensão daqueles conflitos”. Ou seja, houve-se a necessidade da
utilização de fontes orais para o entendimento de certos períodos,
principalmente aqueles ligados a eventos traumáticos, onde, geralmente, os
relatos são das próprias vítimas — que possuem como intuito evitar o
esquecimento (Fico, 2012) — e, no caso das “mulheres de conforto”, lutar por
justiça.
Assim, através do testemunho das sobreviventes podemos entender, em um
contexto geral, o que passaram as diversas “mulheres de conforto”,
organizando e estudando as similaridades e diferenças das vivências dessas
mulheres dentro de cada estação. O curta-metragem foi feito utilizando o relado
de Chung Seo-Woon, que durante sua trajetória de vida, deu diversas
entrevistas e depoimentos sobre seu tempo como “mulher de conforto”, apesar
das constantes dificuldades em reviver os traumas do passado.
O testemunho de Seo-Woon está presente, por exemplo, no livro “Stories that
Make History: The Experience and Memories of the Japanese Military› Comfort
Girls-Women”, editado pelo Research Team of the War & Women’s Human
Rights Center e pelo The Korean Council for the Women Drafted for Military
Sexual Slavery by Japan, que traz o depoimento de 12 vítimas do sistema de
conforto do exército japonês. Esse livro foi escrito como “uma resposta a um
vazio nessas histórias publicadas em outros idiomas além do coreano” (The
45
Research Team of the War & Women’s Human Rights Center; The Korean
Council for the Women Drafted for Military Sexual Slavery by Japan, 2020, p. 7)
e traz um importante debate — uma questão estudada pelos próprios
historiadores — sobre os testemunhos das sobreviventes e a subjetividade
presente neles.
Segundo o Time de Pesquisa War & Women’s Human Rights Center e a
Korean Council (2020, p. 31): “as histórias orais das vítimas sobreviventes do
conforto militar japonês, meninas-mulheres, têm sido a evidência mais atraente
para trazer à luz o conforto problema das meninas-mulheres como uma
questão social no nosso tempo e ao pedir ao Japão que assuma a
responsabilidade pelas suas ações. É crucial incluir as vozes dos sobreviventes
no ativismo para resolver a questão do conforto militar japonês meninasmulheres.
Há um debate ainda presente dentro da comunidade acadêmica sobre a
utilização de fontes orais, no que diz respeito à credibilidade dessas fontes,
uma vez que algumas podem apresentar distorções — o próprio caso da
história da Chung Seo-Woon é um exemplo: em alguns relatos, como no
próprio curta-metragem aqui utilizado, Chung diz que foi levada aos quinze
anos de idade, entretanto, em uma entrevista feita em 1995, ela alegou ter sido
enganada aos dezoito anos de idade. Os pesquisadores consideraram as
declarações da entrevista de 1995 verdadeiras uma vez que, “o Japão ocupou
a Indonésia em Dezembro de 1941” (The Research Team of the War &
Women’s Human Rights Center; The Korean Council for the Women Drafted for
Military Sexual Slavery by Japan, 2020, p. 66).
Entretanto, é de fundamental importância entender que dentro da história dos
excluídos/marginalizados da História, os defensores da fonte oral ressaltam a
importância dessas “memórias subterrâneas” (Pollak, 1989). Para Marieta
Moraes, essas distorções ou faltas de veracidade presentes nos depoimentos,
podem (e devem) ser encaradas como uma fonte adicional para a pesquisa,
não como uma característica negativa da História Oral, ou seja, é necessário
reconhecer a subjetividade dentro desses relatos (Moraes, 2002).
Apresentando a mesma opinião de Moraes, a equipe do The Research Team of
The War & Women’s Human Rights Center e da Korean Council (2020, p. XIII),
comenta que, “ambivalência, no entanto, é a principal característica das
histórias das doze meninas-mulheres de conforto deste livro. [...] a equipe de
pesquisa se esforçou ao máximo para compilar histórias coerentes. Espera-se
que essas meninas-mulheres de conforto esqueçam alguns detalhes de seu
recrutamento, transporte e vida em um posto de conforto e de seu retorno para
casa [...]”.
Assim, como historiadores e/ou pesquisadores é de fundamental importância
entender que “precisamos [...] ouvir as histórias incoerentes, ouvindo tanto o
que é contado como o que não é dito” (The Research Team of the War &
Women’s Human Rights Center; The Korean Council for the Women Drafted for
46
Military Sexual Slavery by Japan, 2020, p. XV). Uma vez que as experiências
subjetivas que essas histórias trazem são de fundamental importância no
estudo da História Contemporânea.
Além disso, precisa-se levar em consideração que muitas histórias são
carregadas de traumas, como é o caso das “mulheres de conforto”. De acordo
com Pollak (1989), em “uma análise de conteúdos” de, em média, quarenta
relatos de mulheres sobreviventes do campo de concentração de Auschwitz
Birkenau, revelam que ao mesmo tempo que essas mulheres tinham vontade
de testemunhar sua história, elas também queriam esquecer esse passado e
ter uma vida “normal”.
Mark Roseman (2000), em seu paper “Memória sobrevivente: verdade e
inexatidão nos depoimentos sobre o Holocausto”, nos apresenta sua
experiencia ao escrever a biografia de Marianne Ellenbogen — uma
sobrevivene do holocausto nazista — onde percebeu que as lembranças de
Marianne, e de outros sobreviventes, eram “imprecisas e mudaram com o
passar do tempo”. (Roseman, 2000, p. 123). O pesquisador afirma que “na
essência, as lembranças de Marianne são quase totalmente confirmadas por
outras fontes” e que a existência da imprecisão das lembranças de Marianne,
de modo algum ameaçou seu depoimento, Segundo ele, “em vez disso,
mostram como a memória vagueia em torno de um núcleo incontrolável,
tentando manter experiências traumáticas sob alguma espécie de controle.
(Roseman, 2000, p. 130-131).
Para a equipe do The Research Team of The War & Women’s Human Rights
Center e da Korean Council (2020, p. XV; p.3-6), é preciso estar atento “sobre
como a escravidão sexual altera a vida de uma pessoa para sempre e
inevitavelmente” Segundo eles, “para muitas das meninas-mulheres de
conforto sobreviventes, o seu passado continuou a ser uma experiência
vergonhosa que deveriam manter escondida nos seus corações até à sua
morte. Muitas vezes culpavam-se e sentiam-se culpadas por viverem uma vida
enganosa, escondendo o segredo dos maridos e dos filhos. Essa ansiedade
interna, mesmo hoje, cerca de sessenta anos depois da experiência, ainda se
manifesta em pesadelos ou doenças mentais como a esquizofrenia”. Assim, o
time de pesquisa precisou estudar formas de abordar um assunto tão delicado
para as vítimas e organizar o enredo da entrevista de acordo com cada
entrevistada, organizando da melhor maneira as memórias dessas
sobreviventes
Dentro do caso das “mulheres de conforto” também é preciso considerar a
idade que essas sobreviventes tinham quando a história veio à tona e foi
necessário o testemunho delas. Já na terceira idade, carregando doenças tanto
físicas quanto mentais — Chung Seo-Woon, por exemplo, possuia
Woolhwabyung, um distúrbio mental/emocional resultante de raiva ou estresse
reprimido — a própria memória dessas mulheres estava comprometida pelo
tempo e por doenças. Comentando sobre a entrevista que teve com a
sobrevivente, o entrevistador diz: “pude encontrar na história de Chung Seo-un
47
um cansaço em relação a um passado sobre o qual ela odiava a menor
lembrança” (The Research Team of the War & Women’s Human Rights Center;
The Korean Council for the Women Drafted for Military Sexual Slavery by
Japan, 2020, p.79- 82).
O curta de animação Her Story utilizado como meio para ensinar sobre o
caso das “mulheres de conforto”.
Her Story é um curta-metragem de animação, cujo título original é So-nyeo-iya-gi (소녀이야기), que pode ser traduzido como “a história dela”. Dirigido e
produzido em 2011 pelo cineasta sul-coreano Kim Jun-Ki, o curta contou com o
apoio do Seoul Animation Center, da ChungKang College of Cultural Industries
e do Korean Council for the Women Drafted for Military Sexual Slavery by
Japan.
A Segunda Guerra Mundial é um dos assuntos que mais despertam interesse
entre os jovens estudantes, entretanto, pouco se estuda sobre alguns crimes
de guerra que aconteceram nesse período, além do Holocausto. Estudar sobre
o caso das “mulheres de conforto” auxilia no estudo de diversos temas de
extrema importância para a nossa sociedade. Segundo Margaret D. Stetz
(2003, p. 18), em seu artigo Teaching ‘Comfort Women’ Issues in Women's
Studies Courses “ensinar a história das “mulheres de conforto” e dos esforços
de organização que cresceram em torno delas pode ajudar a expressar
solidariedade com as mulheres que merecem apoio; fazer com que uma nova
geração de academicos leve a sério as suas experiências de violência sexual é
o mínimo que estas mulheres merecem.
Para além dos motivos voltados para o suporte à essas vítimas — como o
reconhecimento e apoio a suas lutas e reivindicações — ensinar sobre o caso
das “mulheres de conforto” é necessário para entender as complexas relações
entre o Japão e seus países vizinhos, além de também auxiliar na
compreensão das dinâmicas de poder e militarismo presentes na História
Contemporânea.
Na atualidade, com a crescente onda de conservadorismo, militarismo e
fascínio por conflitos, é necessário educar os jovens sobre assuntos como
violências praticadas durante períodos de instabilidades sociopolíticas, como
as guerras. É importante que os alunos possuam conhecimentos sobre os
horrores da guerra, principalmente no que tange aos direitos e segurança das
mulheres. Segundo Stetz (2003, p. 18), é preciso ensinar que “tanto o processo
de militarização como os seus resultados finais são prejudiciais para a vida das
mulheres em todo o mundo” e, desse modo, desconstruir narrativas militaristas
que glorificam a guerra.
Com a história das “mulheres de conforto” também é possível educar os jovens
sobre a importância dos Direitos Humanos e sobre a promoção e apoio ao
direito das mulheres — o que os leva a combater a desigualdade de gênero, a
48
misógina e a violência sexual. Assim, produzimos uma educação que
sensibiliza os alunos e eleva seu senso crítico.
Por trazer uma história com tantos recursos audiovisuais — com a animação
percorrendo a história enquanto a protagonista narra sua vida — o curta Her
Story pode ser utilizado como uma excelente ferramenta didática para ensinar
sobre o caso das “mulheres de conforto”. De acordo com Pollak (1989, p.11),
“ainda que seja tecnicamente difícil ou impossível captar todas essas
lembranças em objetos de memória confeccionados hoje, o filme é o melhor
suporte para fazê-Io: de onde seu papel crescente na formação e
reorganização, e portanto no enquadramento da memória. Ele se dirige não
apenas às capacidades cognitivas, mas capta as emoções”.
Os filmes de curta-metragem se mostram eficientes como recursos didáticos ao
entregarem uma história com uma duração de tempo curta — o que os tornam
excelentes para serem usados em sala de aula. Her Story, com apenas 10
minutos e 55 segundos, consegue introduzir de forma sucinta, a história dessas
vítimas.
Desse modo, esse filme pode ser utilizado como recurso tanto no Ensino
Básico como no Superior, em aulas cujos temas tratem, por exemplo, da
Segunda Guerra Mundial, dos Direitos Humanos, da violência contra a mulher,
da utilização do audiovisual na educação, entre outros temas alinhados a esses
eixos. Assim, é notório como o ensino sobre o caso das mulheres de conforto
pode ser utilizado em outros campos além da história, como a sociologia, a
filosofia e a comunicação social.
Em um primeiro momento, o professor deve buscar por conhecimentos prévios
dos alunos — como, por exemplo, o que eles sabem sobre a história do
Extremo Oriente durante o período da Segunda Guerra Mundial; sobre as
relações instáveis entre o Japão e outros países vizinhos, como as duas
Coréias, devido ao imperialismo japonês ou se eles já tinham visto o caso das
“mulheres de conforto” em outro local. (Krishna, 2021).
Logo depois, o professor pode dar uma introdução a respeito da história das
“mulheres de conforto”, explicando aos alunos como funcionava o sistema de
conforto japonês durante a Guerra e o que aconteceu com as mulheres vítimas
do sistema no pós guerra.
Após a exibição do curta-metragem de animação Her Story, é importante que o
professor abra espaço para questionamentos e debates sobre o conteúdo do
curta. Uma vez que, é importante que os alunos reflitam sobre o caso e
exercitem seu senso crítico. Assim, o professor conseguirá trabalhar temas que
estão relacionados às “mulheres de conforto” — o uso da violência sexual
como arma de guerra, por exemplo — além de poder trabalhar emoções como
empatia e respeito.
49
Desse modo, ao trazer a sensível história dessas mulheres através de um
curta, narrado por uma das poucas vítimas que conseguiu sobreviver a essa
violência, esse documento consegue transmitir diversas emoções no
espectador — trazendo a história para uma dimensão afetiva. Para Michèle
Lagny (2012), os efeitos emocionais de um documento audiovisual podem
oferecer muito a História do tempo presente.
Como objeto de apoio para professores que se interessem em ensinar sobre o
tema das “mulheres de conforto” através do curta metragem de animação Her
Story, trazemos um plano de aula que pode ser usado do 1° ao 3° ano do
Ensino Médio.
Tabela 1: Plano de aula desenvolvido para o ensino do caso das “mulheres de
conforto”.
PLANO DE AULA
ASSUNTO/TEMA: O caso das “mulheres de conforto” na Segunda Guerra
Mundial.
ENSINO: ( ) FUNDAMENTAL ( X ) MÉDIO ANO: 1º ao 3º ano do Ensino
Médio
CARGA HORÁRIA: duas aulas de 50 min.
OBJETIVOS
Geral:
● Estimular a interpretação e o senso crítico dos alunos através do
documentos curta-metragem;
● Ensinar sobre o caso das “mulheres de conforto” na Segunda
Guerra Mundial
Específicos:
● Investigar a história das “mulheres de conforto” e seu contexto
histórico;
● Refletir sobre os direitos humanos em tempos de guerra
● Debater sobre casos de violência sexual contra mulheres durante
períodos de guerras;
● Formar a capacidade de analisar e julgar eventos históricos.
Procedimentos Metodológicos
Primeira aula:
● Introdução (10 minutos)
Apresentar brevemente a história das “mulheres de conforto”: quem foram,
o que aconteceu com elas durante o período de guerra conhecido como
Segunda Guerra Mundial, a luta por justiça na atualidade.
● Exibição do curta-metragem de animação Her Story (11 minutos)
● Contextualização e perguntas sobre o curta (15 minutos)
● Organização de grupos para debate na aula seguinte (10 minutos)
Segunda aula:
● Revisão da aula anterior, recapitulando a história das “mulheres de
conforto” (10 minutos)
● Debates em grupo (40 minutos): cada grupo apresentará sobre os
seguintes tópicos que foram divididos na aula anterior:
50
-Discussão sobre a história das “mulheres de conforto”
-Discussão sobre Direitos Humanos e Direito das Mulheres através da
história das “mulheres de conforto”
- Discussão sobre a utilização de práticas de violência sexual durante
épocas de conflitos e/ou instabilidades.
Recursos
● Projetor/ Datashow
● Slide com informações sobre o caso
● Documento: curta metragem de animação Her Story
Avaliação
● Participação do debate feito em sala de aula.
● Entrega de um texto que deve conter o que os alunos aprenderam
em sala de aula e qual a opinião deles sobre o caso das “mulheres
de conforto”
Roteiro de discussão
● Sugestão de questões a serem propostas:
1. Quem é o diretor do curta-metragem? Em que ano foi lançado esse
curta?
2. Você conhecia o caso das “mulheres de conforto” apresentado no
curta de animação?
3. Você acredita que seja importante estudar sobre esse caso? Por
quê?
4. O que mais te chamou a atenção durante o filme? Por quê?
● Sugestão de textos complementares:
- HQ “Grama” de Keum Suk Gendry-Kim
- “Herdeiras do Mar” de Mary Lynn Bracht
Referências
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SIKKA, Nisha. The official marginalization of comfort women. Honours Thesis.
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STETZ, Margaret D. Teaching" Comfort Women" Issues in Women's Studies
Courses. Radical Teacher, n. 66, p. 17, 2003.
52
GEUM-JA, O CORPO MÓVEL EM CONTRADIÇÃO: UMA
ESTÉTICA DO APRISIONAMENTO EM LADY
VENGEANCE (친절한 금자씨) [2006]
Fernando de Barros Honda
Último filme da trilogia Vingança do realizador Park Chan-Wook, Lady
Vengeance (também conhecido por Sympathy for Lady Vengeance) apresenta
Lee Geum-Ja encarcerada do convívio social por um crime que lhe foi
imputado. Ao ser libertada da prisão, segue o rastro de Baek, aquele que a
chantageou para aceitar a clausura em seu lugar, enquanto, independente
deste ato, sequestra a sua única filha. Entre o comedimento e a disrupção, este
seria o ambiente do embate entre a câmera e a montagem que movimentam a
imagem e a personagem feminina. Utilizo como análise três momentos distintos
do longa-metragem que são retratados em frames, são eles: a mulher fatal, a
mãe santificada e a vingadora aprisionada. Eles dizem respeito ao objetivo
principal que é elencar a estética do aprisionamento. Laura Mulvey realiza uma
análise social da figura do feminino (aqui dito como mulher) em filmes de
direção masculina e seus espectadores. Já Gilles Deleuze trabalha o fluxo da
narrativa da Imagem-movimento a partir dos corpos que se movem na cena.
Por meio desses autores, ainda que contida pelo olhar da lente e do
enquadrado, Geum-Ja permanece no limite da libertação sexualizada da
câmera masculinizada.
No contexto sul coreano do período histórico e social próximos a trama do
longa, de acordo com Kyung Moon Hwang [2017] apenas nos anos de 1990 os
direitos conquistados pelas mulheres garantiam o registro de crianças e vínculo
materno, independente se ocorreu ou não divórcio do cônjuge, prole fora da
institucionalização do casamento etc., essas mudanças vislumbravam uma
maior equidade frente aos homens, embora não garantisse uma reforma social
imediata. Em contrapartida, avançando para os anos 2000, Hwang [2017]
detalha que no período a mulher coreana era majoritariamente retratada pelos
veículos de mídia e do entretenimento, leia-se aqui principalmente nos Kdramas, voltados aos retratos de interesses materiais, amenidades e uma vida
de consumo. Embora retratada de maneira diferente do que usualmente o
papel feminino era observado na Coréia do Sul dos anos 2000, Lady
Vengeance não chega a ser revolucionário na medida em que o
53
embelezamento de uma protagonista num contexto de violência e exercendo o
seu papel de mãe (mais do que genitora) tomam conta da estética transmitida
pela direção artística, concordando indiretamente com a pesquisa social de
Hwang.
Em complemento, Mulvey afirma que na experiência do cinema narrativo
haveria a construção do prazer visual que é direcionado a partir do papel do
masculino cinematográfico. Isto é, a sexualização da figura do feminino já
estaria incutida na necessidade de prazer do homem socialmente construído:
“A mulher, desta forma, existe na cultura patriarcal como o significante do outro
masculino, presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir
suas fantasias e obsessões.” [MULVEY, 2021, p. 356]. É neste contexto que a
narrativa se molda na apresentação da vingança de Lee Geum-Ja, utilizando o
enquadramento aprisionador da câmera, a montagem dinâmica
(temporalmente fragmentada), e a mise-en-scène (arranjo das roupas de
Geum-Ja, da maquiagem, das cores vívidas e escolha artística dos móveis no
apartamento da protagonista). Tudo isso traz a seguinte pergunta: até que
ponto haveria a sua liberdade enquanto figura feminina ao caminhar do
encarceramento a concretização da vingança contra Baek?
Estereótipo da mulher fatal
A percepção do feminino no dormitório hub aponta a contradição que há na
sociedade coreana presente na trama:
Fonte: Lady Vengeance (2006)
O seu apartamento (quarto), é uma espécie de Hub temporal, em que a
experimentação da montagem acontece. Do presente ao passado, tanto a
personalidade quanto as emoções figuradamente femininas de Geum-Ja são
exploradas pelas cores vibrantes voltadas para os tons quentes, com
predominância no vermelho que remete ao sangue que será derramado, a
intensidade dos sentimentos da protagonista contra Baek e a visceralidade de
gerar a sua filha, agora afastada: “A presença da mulher é um elemento
indispensável para o espetáculo num filme narrativo comum, todavia sua
presença visual tende a funcionar em sentido oposto ao desenvolvimento de
uma história, tende a congelar o fluxo da ação em momentos de contemplação
erótica.” [MULVEY, 2021, p. 361]. O momento de pausa na narrativa para a
contemplação estética da personagem enquadrada desloca a intenção de
urgência da protagonista para um lugar de pensamento, isto molda a sua
54
imagem em contradição com a intensidade das cores. O olhar vago, a posição
da mão na cama e os dedos levemente repousos no queixo procuram uma
pose pensada para compor a fotografia do ambiente. Aqui encontra-se o início
do embate apresentado ao longo do longa-metragem, o espaço restrito da sua
moradia em consonância com a sexualização da protagonista. Os
enquadramentos fechados e no extremo da caracterização entre a beleza
puramente estética da “mulher fatal” e “a mãe santa” predominam na limitação
da liberdade de Geum-Ja.
Estereótipo da mãe santificada
A percepção do que é ser mãe é reforçado reforçados em contradição com a
vingança que ela procura:
Fonte: Lady Vengeance (2006)
O que é ser santa? O trânsito abrupto entre as qualidades de uma vingadora e
uma mãe que deseja se reencontrar com a filha aparecem nessa tensão entre
a cor branca de um vestido longo e a forte caracterização de uma mulher com
vestimenta curta e maquiagem em tons quentes. O enquadramento fecha a
protagonista em posição fetal na medida em que se debruça sobre o chão.
Uma posição de humildade e descanso frente a um poder maior que diz
respeito a cultura cristã. A estagnação em um enquadramento da imagem que
deveria estar em movimento diz respeito aos limites de Geum-Ja em seu papel
estabelecido de mãe vingativa: “A tecnologia fotográfica [...] e os movimentos
de câmera (motivados pela ação dos protagonistas), combinados com a
montagem invisível (exigida pelo realismo), tudo isto tende a confundir os
limites do espaço da tela. O protagonista masculino fica solto no comando do
palco, um palco de ilusão espacial no qual ele articula o olhar e cria a ação.”
[MULVEY, 2021, p. 363]. O papel fixo da personagem perpassa o olhar
masculino, seja ele derivado da construção social embutida no realizador, ou
do que cruza toda uma montagem do que é ser mulher. Na mulher fatal que
poderia também ser mãe santa há um abismo imagético, visto que a câmera
prefere ser colocada de cima para baixo e não na altura da protagonista como
nos momentos de vingança. Essa característica diz respeito ao que Mulvey se
refere sobre a estagnação narrativa e do “protagonista masculino estar solto no
palco”, pois enquanto ela se encontra constantemente limitada pelos papéis
enquanto a câmera formaliza isso (disparidade entre uma personalidade e
outra), Baek não está ali e Geum-Ja nem em movimento estaria. Assim, a
câmera mimetiza o homem e o masculino.
Por outro lado, Deleuze estabelece o que seria a Imagem-movimento quando
afirma que “[...] se perguntamos como se constituiu a Imagem-movimento, ou
como o movimento se emancipou das pessoas e das coisas, constatamos que
55
isto se deu sob duas formas diferentes [...] da mobilidade da câmera e por meio
do raccord.” [DELEUZE, 2018, p. 48]. Deleuze remonta ao cinema de atrações,
ou mesmo a montagem de atrações o momento em que a posição da câmera
era estática e registrava os personagens caminhando pelo palco (mesmo do
teatro) e isso trazia o movimento que não estava na imagem em si. Após isso,
com a mobilidade da câmera e o raccord (noção de continuidade de movimento
a partir da montagem, ou corte de cena) a imagem de fato ganha movimento.
Mesmo munido de montagem, os trechos de Geum-Ja são limitados 1) pelo
papel pré-estabelecido do que é ser mulher para 2) limitá-la em
enquadramentos onde o antagonista Baek não está presente. Ela não está em
movimento, a única forma de sair da prisão seria pelo pensamento, algo
amplamente observado naqueles momentos de contemplação estético-erótica
da personagem. “O próprio da imagem-movimento cinematográfica é extrair
dos veículos ou dos corpos móveis o movimento que é sua substância comum,
ou extrair dos movimentos a mobilidade que é a sua essência. “[DELEUZE,
2018, p 45].
Embora Deleuze [2018] institua a Imagem-movimento – as noções de narrativa,
de causa e efeito, de tempo aprisionado – para alcançar a Imagem-tempo –
destituição do tempo e do espaço para a imagem, sendo ela o pensamento – a
sua noção de corpos móveis explica como a fluidez da movimentação poderia
ocorrer sem a montagem cinematográfica, o que poria o peso do andamento da
narrativa nos personagens: “O que acontecia no tempo da câmera fixa? [...] o
movimento não é, assim, liberado por si mesmo e permanece preso aos
elementos, personagens e coisas que lhe servem de móvel ou de veículo.”
[DELEUZE, 2018, p. 47]. Nisso estamos apontando para uma noção que pode
ser referida como a “metaprisão” de Geum-Já em Lady Vengeance, pois as
escolhas aparentes de direção (mesmo que não intencionais), prendem a
personagem em seu papel social opositor de mãe/mulher, seja na trama, seja
na fotografia. O papel do feminino observado em Hwang [2017] nos indica que
as muitas conquistas de emancipação da figura do homem em território sul
coreano só puderam ser almejadas no período dos anos de 1990, o que
aproxima uma obra vista puramente como ficção de uma situação do cotidiano.
Sim, a câmera movimenta-se, há os cortes de cena e o raccord, no entanto a
movimentação ocorre em direção a um único homem: Baek. Enquanto este
detém os papéis dados à protagonista. Isto quer dizer que mesmo na resolução
do conflito entre os dois, ela guia o próprio corpo até ele, em um
enquadramento fixo, e não o contrário.
O corpo móvel frente a uma câmera fixa
O aprisionamento de Baek na cadeira não garante a liberdade de Geum-Ja,
pois os seus papéis já estão definidos desde o início do enredo:
56
Fonte: Lady Vengeance (2006)
As cores não são claras nem vibrantes, o vermelho vinho está presente nas
cortinas, a iluminação segue a proposta do sequestro e da seriedade do
processo de tortura que o antagonista sofre (também pelos pais de outras
crianças, vítimas do personagem). O ponto crucial é a fotografia da resolução
da vingança, no encontro entre Geum-Ja e Baek há o movimento da
protagonista em direção a ele, o que é oposto aos momentos de estagnação e
contemplação vividas por ela ao mesmo tempo em que a câmera repousa e
fixa-se, assim como nos momentos supracitados. Ao final, a vingança torna-se
coletiva e toda a narrativa prende-se ao homem, ao masculino.
“Num mundo governado por um desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi
dividido entre ativo/masculino e passivo/feminino. O olhar masculino
determinante projeta sua fantasia na figura feminina, estilizada de acordo com
essa fantasia.” [Mulvey, 2021, p. 361]. O olhar do masculino permeia Geum-Ja,
a aprisionando em enquadramentos fixos e fechados, em suas camadas
separadas e delimitadas entre mulher fatal e mãe santificada, para desembocar
na vingadora. Uma forma de estilização condizente com a visão do masculino.
Baek manipulou toda uma vida da personagem feminina e ao final o embate da
vingadora ocorre dentro dos limites que ele impõe, visto que Geum-Ja não o
executa.
A estética do aprisionamento de Geum-Ja se mostra na utilização de
enquadramentos restringidos dos momentos de intimidade da personagem,
dicotomizando a visão do que seria a mulher fatal e a mãe santificada. As
raízes sociais do olhar masculino frente a uma sociedade em transformação
permeiam a realização do longa, apontando a câmera como masculina, ditando
o enredo e limitando a ação da própria personagem que finaliza a própria
vingança a partir de outras vítimas de Baek. Enquanto a execução do
masculino possa ocorrer, a movimentação de Geum-Ja em direção ao
antagonista encontra-se no limite da liberdade, o que mesmo com a câmera
fixa, não apresenta movimento. Seria a contradição do corpo móvel feminino
em Geum-Ja, no qual a fluidez dos movimentos a guia para uma única figura, a
do olhar do masculino.
Referências
Fernando de Barros Honda é doutorando em Filosofia pela PUCPR, mestre em
Comunicação e Linguagens com bolsa PROSUP do PPGCom da Universidade
57
Tuiuti do Paraná. Graduado em fotografia. Pesquisa espectatorialidade no
audiovisual e estética asiática. Tem interesse em história e filosofia da estética.
Contato: ferhonda@icloud.com.
DELEUZE, Gilles. Imagem-tempo. Tradução: Stella Senra. São Paulo: Editora
34, 2018.
HWANG, Kyung Moon. A history of Korea: an episodic narrative. England:
Palgrave, 2017. p. 235-245.
MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail. A
experiência do cinema (antologia). Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra,
2021.
LADY vingança. Direção: Park Chan-Wook. Produção: Videolar s. a. São
Paulo: Platina Filmes/Golden Filmes, 2006. 1 DVD. 116 min. NTSC, color.
58
CONTORNANDO A INVISIBILIDADE DOS MANGÁS
PARA MULHERES: UM BREVE PANORAMA
HISTÓRICO E A IMPORTÂNCIA DOS MANGÁS JOSEI
(女性マンガ)
Gabriela Foscarini Strassburger
Com o maior mercado de quadrinhos do mundo, equivalente a 43% do
mercado mundial, o Japão também se destaca por ser o único país com uma
sólida divisão do mercado dedicado ao público feminino de histórias em
quadrinhos, com mulheres em ambos os lados das páginas dos mangás, ou
seja, como leitoras e como quadrinistas [Turrin, 2021; Fujino, 1997]. Um fator
ao qual pode ser creditada essa alta participação feminina é a
compartimentação mercadológica do mercado editorial japonês, característica
essa que o distingue de outros mercados de quadrinhos ao redor do mundo.
No Japão, os mangás recebem classificações de acordo com o gênero e faixa
etária do público alvo ao qual são direcionados: shōjo (para meninas), shōnen
(para meninos), josei (para mulheres), seinen (para homens). Essa
classificação depende da revista antológica em que os capítulos dos mangás
são pré-publicados antes de serem recompilados em volumes, físicos ou
digitais, para a venda. Essas classificações são comumente chamadas pelo
público de “demografias” e nesta comunicação serão referidos como
demografias ou categorias editoriais. As mulheres quadrinistas japonesas,
mangakás, concentram-se na autoria de mangás shōjo e mangás josei, o que
leva a outra característica do mercado japonês: essas autoras importam-se
com suas leitoras, e não em agradar ao público masculino com suas obras
[Silva, 2016; Thompson, 2007].
No Brasil, o primeiro mangá foi publicado em 1988 e desde então centenas de
títulos chegaram traduzidos ao país [Goto, 2024]. Entretanto, existe uma
discrepância na quantidade de mangás por categoria editorial publicados no
país. Em uma pesquisa rápida no site Biblioteca Brasileira de Mangás, que
possui uma lista com todos os mangás já publicados no país, pode-se obter os
números de mangás publicados no Brasil dentro das categorias editoriais
japonesas e os resultados mostram um forte descaso com as obras
direcionadas ao público feminino. Em uma rápida pesquisa no site, tem-se os
seguintes resultados, em números aproximados: 370 mangás shōnen, 390
mangás seinen, 120 mangás shōjo e 30 mangás josei [BBM, 2024]. Percebe-
59
se, assim, que quantitativamente, os mangás voltados para o público feminino
são negligenciados e os mangás para o público feminino adulto, mangás josei,
ocupando um local de quase invisibilidade dentro das licenças que chegam ao
Brasil. Importante ressaltar que o fenômeno de diminuição e subcategorização
não é restrito ao Brasil, muito menos aos mangás [Thompson, 2007]. Tendo
isso em vista, essa comunicação se propõe a explorar a história dos mangás
feitos para mulheres, os mangás josei, na intenção de demonstrar a
importância da existência dessa categoria de mangás, como ela se
desenvolveu apesar da existência do preconceito com a literatura feminina, e
busca fomentar o interesse de leitoras, e leitores, de mangás para conhecer
essa categoria editorial que possui um vasto repertório de gêneros, temas e
narrativas abordadas em suas páginas.
A entrada das mulheres no mercado de mangás e a revolução dos anos
1970
Antes de abordar o surgimento dos mangás para mulheres, é preciso discorrer
brevemente sobre os mangás para meninas, os mangás shōjo, e a “revolução”
que ocorreu com essa categoria de mangás nos anos 1970. Até a década de
1970, os mangás shōjo eram majoritariamente escritos por mangaká homens.
Alguns nomes femininos pioneiros, como Machiko Satonaka, Masako
Watanabe, Maki Miyako, Hideko Mizuno, adentraram o mercado de mangás
ainda na década de 1960 e pavimentaram o caminho para outras mulheres
dentro do mangá shōjo. Foi então que, na década de 1970, dois importantes
fatores confluíram para que mais mulheres adentrassem o mercado. Por um
lado, o crescimento do mercado de mangás e o surgimentos dos mangás
seinen fez com que muitos quadrinistas homens abandonassem o mangá shōjo
para dedicarem-se às categorias voltadas ao público masculino, criando assim
a necessidade de que essa lacuna fosse preenchida. E por outro lado, mais
mulheres buscavam a carreira de mangaká, seja porque acreditavam que
poderiam se conectar mais ao público e contar histórias com a qual as leitoras
pudessem se relacionar com mais facilidade, seja pela possibilidade de quase
igualdade oferecida pela profissão [Silva, 2016; Taylor, 2016].
Foi assim que um grupo de mulheres mangaká, posteriormente intitulado
Grupo do Ano 24 (24年組, nijūyo-nen gumi) por pesquisadoras e críticas,
chegou ao mangá shōjo e o revolucionou. O grupo não possui uma
conformação fixa, mas Keiko Takemiya, Moto Hagio, Riyoko Ikeda são três
nomes que aparecem sempre que o Grupo do Ano 24 é mencionado. Essas
autoras buscaram transformar os mangás numa forma de auto expressão e
trouxeram características artísticas e narrativas novas para o mangá shōjo, ao
mesmo tempo que sedimentaram e expandiram características já existentes.
Temas como política e sexualidade começaram a ser mais presentes nas
obras, o psicológico das personagens era explorado por meio dos textos e da
arte, havendo uma preocupação por parte das mangaká em apresentar os
conflitos internos e os pensamentos das personagens. Os sentimentos
tornaram-se um fio condutor e característica central no mangá shōjo [Silva,
2016; Taylor, 2016].
60
De acordo com Silva [2016], a publicação de “Rosa de Versalhes”
(ベルサイユのばら, Berusaiyu no Bara), de Ryoko Ikeda, em 1972 seria o ponto de
virada do mangá shōjo, uma vez que a “revolução” feita pelo Grupo do Ano 24
também ocorreu no sentido de iniciar um movimento de mudança da percepção
do público em relação aos mangás shōjo, que eram vistos como inferiores. Nas
palavras de Ryoko Ikeda: “‘Rosa de Versalhes’ se tornou a primeira obra que
fez o público refletir se valia a pena colecionar e tê-la em sua biblioteca. Deste
ponto de vista, é um mangá que mudou completamente a percepção deste
gênero pelo grande público e esta é uma coisa que me deixa extremamente
orgulhosa.” [Silva, 2016, p.102]. Foi assim que, a partir da década de 1970,
pode-se observar o surgimento dos mangás para meninas com as
características que observamos nos mangás hoje em dia.
O surgimento dos mangás para mulheres
Foi a publicação da revista antológica de mangás BE LOVE que marcou o
ponto de partida para uma nova categoria de mangá, conhecida inicialmente
como ladies’ comics (レディースコミック, Rediisu Comikku), ou também
chamado de redikomi. Publicada pela editora Kodansha em 1980, a revista
tinha como público alvo mulheres na faixa etária dos 25 aos 30 anos. De
acordo com Kinko Ito, por um lado, as leitoras que cresceram com mangás
shōjo estavam agora entrando em uma nova fase de sua vida. Elas estavam se
tornando adultas e havia o desejo de ler histórias que contemplassem sua nova
realidade, que retratassem esses ambientes novos, agora frequentados por
elas, e que elas também abordassem suas novas experiências, principalmente
a descoberta de sua sexualidade. Por outro lado, as autoras de mangás shōjo,
que comumente se aposentavam por volta dos seus trinta anos, ao casarem e
terem filhos, continuaram a escrever e desenhar mangás devido a essa nova
demanda, podendo incorporar elementos agora também vividos por elas. [Ito,
2002; Ito, 2011; Ogi, 2003]
Apesar de surgir enquanto categoria separada, a ideia de mangás voltados
para o público feminino adulto não era exatamente nova na época. Desde os
anos 1960, Maki Miyako não só já tinha a visão de que deveria haver a
publicação de mangás que tivessem como público-alvo mulheres adultas, mas
também, de acordo com Toku [2015], já publicava mangás pensando nessa
audiência. Com o estabelecimento do redikomi, a autora dedicou-se mais XXX,
tornando-se uma das mangaká que mais contribuiu para enriquecer as
narrativas e sedimentar os mangás para mulheres enquanto categoria. Masako
Watanabe também se juntou ao grupo de autoras que começaram a publicar
seus mangás nessa nova categoria [Toku, 2015].
Os temas abordados nesses mangás são amplos e abordam diversas áreas da
vida das mulheres adultas. De acordo com Ito [2002], um traço característico
marcante do redikomi na época de seu surgimento foi a liberdade sexual. Em
sua análise, a autora ainda o divide em categorias. Nos mangás publicados por
grandes editoras, prevaleciam o drama, romance e fantasia, e eles focavam
“more on the reality of everyday life experienced by modern housewives, office
workers, and college students—love, romance, female friendship, careers, life-
61
styles, mother-child relations, PTA, social problems, sexism, divorce, domestic
violence, injustice, relationship with the in-laws, abortion, etc.” [Ito, 2002, p.70].
Enquanto mangás publicados por editoras menores possuíam uma conotação
erótica mais explícita, onde uma das mensagens a serem transmitidas nas
histórias seria a de que as mulheres poderiam e deveriam explorar seus corpos
e que o prazer não era algo a ser temido.
Segundo Fusami Ogi [2003], o redikomi teve dois papeis enquanto uma nova
categoria voltada para o público feminino: mostrar os desejos das mulheres
que não são mais meninas e oferecer modelos alternativos para essas
mulheres. O mangás redikomi possibilitaria um espaço para que mulheres
pudessem se divertir, ao mesmo tempo que as dificuldades da realidade delas
enquanto mulheres não são ignoradas. Observando-se os números das
publicações, pode-se considerar que as revistas e mangás redikomi
encontraram seu público e criaram uma identificação com suas leitoras. Em
1980, existiam apenas duas revistas da categoria, enquanto que em 1991, o
número subiu para 48. Para Ogi [2003], esse poderia ser um reflexo de um
aumento da preocupação das mulheres consigo mesmas e de uma
conscientização delas em relação a sua posição dentro e fora de casa.
Tanto Ogi [2003], quanto Ito [2011] apontam as mudanças sociais e,
principalmente, o estabelecimento da lei de igualdade de oportunidade de
emprego entre homens e mulheres, instituída na metade dos anos 1980 como
um fator a ser levado em consideração. A instituição da lei não resultou em
uma mudança radical na vida das mulheres japonesas, não as encorajava a
perseguir carreiras longas e o trabalho doméstico ainda era responsabilidade
feminina, mas serviu como um marco inicial a partir do qual muitas jovens
começaram a priorizar sua carreira e educação, uma nova geração “of
independent women, [...] they delayed marriage, but were sexually active” [Ito,
2011, p.178]. Essas mudanças sociais estavam em harmonia com a ascensão
do redikomi.
Para Ogi [2003, p.783], “Ladies’ comics has become a genre which reflects the
contemporary difficulties of women’s lives and their pleasures” e disso teria
derivado boa parte da popularidade desses mangás. O redikomi traz uma
representação da vida diária, possibilita suas leitoras serem vistas e, mais para
o final da década de 1980, começa a incluir problemas sociais em suas
páginas. No que diz respeito ao prazer e sexualidade, este era um tema difícil
de ser abordado nos mangás shōjo, que pode ser observado pelo surgimento
do shounen’ai e o uso de relacionamentos homossexuais em quadrinhos para
meninas para introduzir o tema. Assim, o redikomi, com suas personagens
adultas, pode fazer uso do tema e representar a sexualidade de maneira
positiva. Dessa forma, as mulheres puderam tornar-se sujeito dentro da
representação sexual, podendo reconhecer sua sexualidade e aceitá-la [Ogi,
2003].
É necessário reforçar que, apesar dos pontos levantados até o momento, os
mangás não estão livres das amarras da sociedade. Não é incomum que as
62
protagonistas, apesar de buscar liberdade de independência, reproduzam e
reforcem estereótipos e papeis de gênero. Muitos dilemas se centram na
necessidade de escolha entre o lar e o trabalho, além de que o casamento e a
formação de uma família, aos moldes tradicionais, são colocados como objetivo
final para as protagonistas. Mesmo assim, a diversidade de temas, narrativas,
ambientações e personagens presentes nas histórias servem de refúgio, e até
mesmo modelo, para as leitoras, as apresentando a situações que nunca
poderiam viver ou até mesmo trazendo ensinamentos de situações que
poderiam acontecer em suas vidas [Ito, 2011].
Com o passar do tempo, o termo redikomi começou a ter seu uso mais limitado
aos mangás que tivessem uma conotação erótica. Em 2003, Ogi [2003] aponta
o surgimento do termo “mangá josei” e a tentativa de substituir o uso de
redikomi. Segundo Thompson [2007] e Clopton [2011], foi na segunda metade
dos anos 2000 que haveria ocorrido a mudança definitiva. Redikomi teria
começado a ser utilizado apenas para classificar os mangás que possuem uma
forte conotação sexual e erótica, enquanto mangá josei seriam aqueles
direcionados ao público feminino adulto no geral. Thompson. Hoje, é possível
observar em livrarias online como Comic Seymour [2024], BookLive [2024] e
BookWalker [2024] a utilização de “女性マンガ雑誌” para classificar as revistas
antológicas em que ocorrem as pré-publicações dos capítulos dos mangás e
“女性マンガ” para classificar os volumes dos mangás. A editora Shogakukan,
uma das grandes editoras de manga do Japão, identifica os mangás para
mulheres pelo selo alfa (α) na capa de seus volumes que pertencem à divisão
Flowers Comics.
Considerações finais
Como demonstrado nesta comunicação, a história dos mangás voltados para o
público feminino é, além de único, uma vez que houve um envolvimento ativo
das leitoras e das mangaká na estruturação de ambas as categorias, mangás
shōjo e mangás josei, já que, mesmo que houvesse o espaço para que as
mudanças fossem acontecendo, estas não teriam ocorrido sem o envolvimento
proativo de ambas as partes, também é muito importante de se ter
conhecimento sobre os fatos e sobre aquelas que fizeram e fazem parte dessa
história. Não se sabe para onde os mangás para meninas teriam ido sem a
inserção numérica de mangaká mulheres na década de 1970 e não haveriam
mangás para mulheres se essas mesmas mangaká não tivessem inspirado
suas leitoras a manterem seu interesse, e posteriormente, demandarem a
existência de uma nova categoria editorial que as atendesse. É necessário
destacar, entretanto, que existe uma linha tênue entre mangás shōjo e mangás
josei, e que apenas mais recentemente o termo mangá josei tem sido mais
amplamente utilizado, principalmente fora do Japão, onde o termo ainda nem
sempre é empregado.
Os mangás josei, anteriormente redikomi, ocupam um espaço importante: eles
dão visibilidade para mulheres adultas. Eles contam suas histórias, e suas
páginas contém, não só as preocupações e dificuldades da vida de uma mulher
63
adulta, mas a existência do elemento da ficção, já que se tratam de obras
ficcionais, permite a existência de grandes reviravoltas, mudanças e finais
felizes, mesmo que esses não ocorram em todas as histórias. Esses mangás
podem ser vistos como passatempo, mas não deixam de ser uma forma de
expressão, tanto para quem escreve, quanto para quem lê.
Referências
Gabriela Foscarini Strassburger é graduada em Relações Internacionais pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e integra o Núcleo de Estudos
Japoneses (NEJAP) .
BBM (Biblioteca Brasileira de Mangás). Lista de mangás publicados no Brasil.
2004. Disponível em: https://blogbbm.com/manga/.
BookLive. 少女・女性マンガ. Disponível em: https://booklive.jp/index/comicf
BookWalker. 女性マンガ. Disponível em: https://bookwalker.jp/tcl71/
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https://www.cmoa.jp/girl/.
Clopton, Kay K. Coffee And Infidelity: A Feminist Close Reading of Yoshizumi
Wataru’s Cappuccino as Scanlation in The Context of New Media. Dissertação
de Mestrado. The Ohio State University. 2011
Fujino, Yoko. Narração e ruptura no texto visual do shojo mangá: o estudo das
histórias em quadrinhos para público adolescente feminino japonês.
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65
UMA DRAGON LADY EM TWIN PEAKS: A
OBJETIFICAÇÃO DA PERSONAGEM CHINESA JOSIE
PACKARD
Gabriele Maia
Twin Peaks é uma série de TV estadunidense que estreou em 1990, e é
considerada um clássico cult de suspense por ter influenciado diversos
lançamentos posteriores, como The X-Files [1993] e Lost [2004]. A trama
principal envolve a investigação do assassinato da adolescente popular Laura
Palmer, que revela uma sequência de mistérios em uma pequena região rural
do estado de Washington. Como a própria divulgação do seriado descreve,
Twin Peaks é “uma cidade onde todos se conhecem e nada é o que parece
ser” [Tradução nossa, IMDb, 2024].
Embora pioneira em abordar temas como questões psicológicas e violência
familiar, a série criada por David Lynch e Mark Frost também reflete
preconceitos enraizados no imaginário norte-americano. Entre esses, podemos
destacar a ideia de um perigo amarelo [Lee, 2007] que ameaça a pequena
cidade através da figura de Josie Packard, uma ex-prostituta de Hong Kong
que viveu uma grande ascensão social após se casar com o americano Andrew
Packard, herdando a serraria de Twin Peaks.
Dessa forma, este artigo busca explorar como o presente o viés orientalista
[Said, 1990] nas produções audiovisuais da época influenciou a trajetória da
personagem sino-descendente e quais ideias sobre esse grupo minoritário
Twin Peaks transmite enquanto entretém o público que assiste a série.
Orientalismo, perigo amarelo e o “outro”
O conceito de Orientalismo, como formulado por Edward Said [1990, pág. 50],
refere-se à forma como o Ocidente constrói a imagem de um Oriente baseada
na diferença, inferioridade e exotismo. Para que haja um senso de “nós” entre
ocidentais, é criado um “outro”. Assim, esse ser diferente, por não estar de
acordo com a organização e normas ocidentais, precisa ser julgado, estudado
e disciplinado [Tokusato, 2022].
Na virada do século XIX para o XX, a chegada de migrantes asiáticos aos
Estados Unidos, especialmente chineses e japoneses, desencadeou um
crescente sentimento de desconfiança e hostilidade por parte das populações
66
locais, resultando na consolidação do “perigo amarelo” [Lee, 2007]. Este termo
abrangia a suposta ameaça à hegemonia branca ocidental oferecida pelos
asiáticos, retratando-os como competidores desleais no mercado de trabalho e
agentes de práticas consideradas moralmente questionáveis.
Os chineses eram frequentemente descritos como “sujos” e “viciados em ópio”,
características que contribuíram para a criação de uma imagem desumanizada
e perigosa [Tokusato, 2022]. Tais estereótipos serviram para marginalizar a
comunidade e justificar políticas públicas discriminatórias. Uma dessas
medidas foi o Ato de Exclusão de Chineses sancionado em 1882, que
restringiu severamente a entrada de chineses nos Estados Unidos e dificultou a
naturalização desses, excluindo-os da vida social e econômica do país [Tchen,
1984].
A partir da metade do século XX, o “perigo amarelo” passou por uma
transformação que refletiu as mudanças no contexto político global a partir do
crescimento do comunismo no Leste Asiático. Assim, durante a Guerra Fria, os
países ocidentais se mobilizaram para moldar a percepção do Extremo Oriente
através de produtos culturais como filmes e programas de TV, retratando
asiáticos não apenas como uma ameaça racial, mas também como símbolos
do comunismo agressivo, prontos para subverter o mundo livre [Lee, 2007].
Como explica Wang [2012], essa retratação da população asiática foi
especialmente impactada pela questão de gênero: “Os filmes e os meios de
comunicação de massa ajudam a moldar a visão de mundo do público
ocidental ao definir as identidades das mulheres orientais e estabelecer seus
papéis como extremos, tanto na tela quanto fora dela. Esses estereótipos
extremos persistiram até os dias de hoje” [Tradução nossa, Wang, 2012, pág.
83].
A Dragon Lady chinesa
Os meios de comunicação têm o poder de definir diferenças, reforçar barreiras,
reproduzir ideologias e manter um status quo [Machetti, 1993]. Quando
Hollywood exibe mulheres asiáticas como objetos, desprovidas de autonomia e
narrativas próprias, isso estimula as fantasias e ansiedades do público
ocidental.
No caso das personagens chinesas, identidade feminina é segmentada em
apenas dois arquétipos dominantes: a China Doll e a Dragon Lady [Lee, 2018].
O estereótipo da China Doll, também conhecido como “butterfly,” retrata
mulheres asiáticas como dóceis e submissas. Essas personagens são
frequentemente idealizadas como inocentes e abnegadas, sempre prontas para
servir ou sacrificar seus próprios desejos pelo bem de outros, geralmente de
homens brancos. Sua feminilidade é apresentada como uma forma de
fragilidade, e seu destino tende a ser trágico, marcado por relacionamentos
interraciais mal-sucedidos que frequentemente terminam em sua morte ou
sofrimento [Wang, 2018]. Essa caracterização reforça a ideia de que essas
67
mulheres não podem prosperar no contexto ocidental, servindo como uma
metáfora para a subjugação cultural do Oriente pelo Ocidente.
Já o estereótipo da Dragon Lady representa o oposto. Mulheres asiáticas
nessa categoria são retratadas como sedutoras, manipuladoras e perigosas.
Enquanto a China Doll é subserviente, a Dragon Lady é impiedosa e usa sua
sexualidade como arma para alcançar seus próprios objetivos, geralmente à
custa dos homens que cruzam seu caminho. Essa imagem está intimamente
ligada ao conceito do “perigo amarelo,” pois encarna a ameaça de domínio
asiático que precisa ser neutralizada para preservar a supremacia ocidental
[Lee, 2018, p. 3].
Embora contrastantes, esses dois arquétipos compartilham algo que também é
sempre sua maior característica: ser uma oriental, uma “outra”, estrangeira e
exótica [Wang, 2012, pág. 84]. Esse detalhe é essencial para suas narrativas
porque reforça a ideia de que mulheres orientais oferecem uma fantasia e um
escapismo que outras mulheres brancas não podem oferecer para o
desenvolvimento pessoal dos personagens masculinos ao seu redor.
Em O Mundo de Suzie Wong [1960], filme adaptado do romance britânico
homônimo, o personagem principal, Robert Lomax, vai até Hong Kong para
explorar sua arte desenhando jovens chinesas. Após morar em um hotelprostibulo, ele é encantado de uma forma primitiva e sexual por essas
mulheres orientais, de forma que outras conterrâneas nunca o fizeram se
sentir. Robert, então, deve enfrentar o dilema de casar-se com uma britânica
herdeira, que o garantiria um bom emprego e uma vida confortável, ou escolher
uma prostituta analfabeta, Suzie Wong, e garantir uma felicidade exótica no
Oriente [Wang, 2012, pág. 85].
Essa narrativa do filme encapsula os elementos associados aos estereótipos
femininos asiáticos, incluindo a exotização e a objetificação de mulheres
orientais para satisfazer as fantasias e dilemas morais dos homens ocidentais.
No entanto, enquanto Suzie é construída para servir como um ponto de
transformação e escolha para o protagonista branco, o arquétipo da Dragon
Lady associado à Twin Peaks opera de outra forma. A mulher oriental não é um
objeto de salvação, mas uma ameaça — independente e perigosa que usa sua
sexualidade como uma arma. Essa representação se afasta do modelo de
submissão para reafirmar o medo do “perigo amarelo” por meio da figura
feminina [Lee, 2018, pág. 4].
A partir desse ponto, concentraremos a análise no estereótipo da Dragon Lady,
explorando como ele se manifesta na personagem Josie Packard em Twin
Peaks e o que isso revela sobre os estereótipos culturais perpetuados pela
mídia ocidental.
A Dragon Lady de Twin Peaks
A personagem Josie Packard, interpretada pela atriz sino-americana Joan
Chen, foi apenas o segundo papel de mulher asiática recorrente em horário
68
nobre na TV estadunidense. Antes, apenas Anna May Wong teve esse feito em
1951, quarenta anos antes da estreia de Josie.
A escolha de uma mulher oriental para o papel não foi aleatória. Como já é de
costume do diretor David Lynch, as cenas de Twin Peaks passam uma
atmosfera de estranhamento e surrealismo, dando a sensação de que a série é
um grande sonho. Na sequência de abertura do primeiro episódio, Josie
Packard, uma ex-prostituta de Hong Kong, é a primeira pessoa que vemos,
como uma forma de desestabilizar o espectador norte-americano com o rosto
“exótico” de Joan Chen.
Fonte: https://twinpeaksblog.com/2021/02/03/twin-peaks-location-josiepackards-vanity/
Ao longo da trama, é revelado que, além de uma ex-prostituta, Josie também
era comparsa de Thomas Eckhardt, um parceiro de negócios de seu marido
Anthony Packard. A personagem conspirou com Thomas e Hank Jennings, um
delinquente local, para assassinar seu próprio marido em um acidente de barco
e herdar a serraria da cidade. Também, para evitar ser considerada uma
suspeita, Josie se envolveu romanticamente com o xerife da cidade, Harry
Truman, que foi manipulado para insistir em sua inocência.
Na segunda temporada de Twin Peaks, a personagem é rebaixada à posição
de empregada doméstica na casa de seus cunhados como punição por sua
cumplicidade na tentativa de assassinato de seu marido. No entanto,
elementos como suas longas e vistosas unhas vermelhas, que não se
adequam à figura tradicional de uma empregada, sugerem que sua
performance subverte seu status imposto. Em cena, Joan Chen, como Josie,
incorpora uma “chinesidade” tanto subserviente quanto hipersexualizada,
expondo a fantasia de feminilidade exótica.
69
Fonte: https://subplotfromanotherplace.tumblr.com/post/91914482406/103-restin-pain
Entre os outros crimes cometidos por Josie Packard, estão a tentativa de
assassinato contra o agente federal Dale Cooper, protagonista da série, e a
morte dos seus comparsas Thomas Eckhardt e Jonathan Kumagai. Ainda
assim, mesmo em momentos de aparente controle, como sua manipulação do
xerife Truman, Josie permanece uma personagem enigmática e presa a uma
narrativa que a reduz a uma representação ambivalente do “outro” exótico,
moldado tanto por expectativas de submissão quanto pela percepção de perigo
amarelo.
A morte da personagem é uma das mais enigmáticas e simbólicas da série.
Literalmente “objetificada”, sua alma é aprisionada em um puxador de madeira.
Esse desfecho interrompe qualquer possibilidade de desenvolvimento mais
profundo de sua personagem, deixando-a como uma figura misteriosa e
inconclusa. A morte inexplicável de Josie também invoca reações histéricas de
luto e desejos não realizados por parte dos homens que a amaram, como o
xerife e seu cunhado, Pete Martell, ressaltando sua permanência simbólica
como objeto de fascínio e frustração.
Considerações finais
Enquanto uma produção televisiva norte-americana da década de noventa,
Twin Peaks pode, de fato, ser considerada mais diversa que as demais.
Entretanto, embora a série continue atraindo públicos mais jovens, como os
integrantes das gerações millennial e Z, por sua mistura entre um charme de
época e temáticas atuais mais progressistas, é inegável que o perigo amarelo,
amplamente difundido pelo ideal americano no período, tenha afetado o
andamento de seus personagens.
70
Joan Chen, interpretando Josie, incorpora uma visão hipersexualizada e
unidimensional de mulheres orientais, expondo as fantasias ocidentais de
exotismo. A personagem revela como o corpo e a identidade das asiáticas são
frequentemente instrumentalizados para atender às expectativas e narrativas
construídas por outros. O destino de Josie, reduzida literalmente a um objeto
inanimado, serve como uma metáfora para a maneira como as mulheres
orientais são frequentemente desumanizadas e privadas de autonomia,
refletindo um ciclo de exotização e marginalização que perpetua a dominação
cultural ocidental.
Referências
Gabriele Maia é graduanda em Jornalismo pela UFRJ.
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https://www.academia.edu/47285858/Who_is_Josie_Packard_Joan_Chen_Luc
y_Liu_and_the_uncommon_sense_of_pleasure
71
DA ALTERIDADE À IDENTIDADE: REPRESENTAÇÕES
DO ATÔMICO NOS MANGÁS E NA CULTURA POP
JAPONESA
Lucas Ciamariconi Munhóz
Os bombardeios das cidades de Hiroshima e Nagasaki, aconteceram,
respectivamente, nos dias 6 e 9 de agosto de 1945. Hiroshima foi selecionada
como alvo da bomba Little Boy por sua relevância militar e industrial. Segundo
dados coletados pelo Museu Memorial da Paz de Hiroshima, o armamento foi
lançado pelo avião bombardeiro B-29 de codinome Enola Gay, no dia 6 de
agosto, às 8h15 da manhã, explodindo a 600 metros em relação ao solo, acima
do Hospital Shima, região central da cidade. A explosão meticulosamente
calculada em testes anteriores liberou uma energia de 16 quilotons de TNT,
criando um raio de explosão de 1,6 quilômetros, envolvendo 11 quilômetros
quadrados da cidade em chamas. Por sua vez, Nagasaki foi uma escolha de
segunda ordem, após a confirmação de que o alvo primário, Kokura, não
possuía condições climáticas que garantissem a completa efetividade do
bombardeio. A bomba Fat Man foi lançada as 11h02 da manhã do dia 9 de
agosto. Mais de cem mil pessoas morreram em decorrência da explosão direta
dos armamentos, mas também nos anos subsequentes do pós-guerra, devido
aos efeitos da exposição à radiação no corpo humano [HIROSHIMA PEACE
MEMORIAL MUSEUM, 1960].
Em resposta aos bombardeios das cidades japonesas, ao esgotamento de
suas forças militares e a invasão soviética da Manchúria em 8 de agosto de
1945, o então Imperador Hirohito assinou os termos de rendição da nação no
conflito, oficializando a Declaração de Potsdam (1945), e o final da Segunda
Guerra Mundial e das disputas na bacia do Pacífico. Como acordado pela
negociação de rendição, Hirohito obteve sucesso em garantir a permanência
do poder imperial, ao preço de desmilitarizar totalmente a nação, bem como
responder ao governo de ocupação americano e as forças aliadas, até sua
retirada oficial em 1952, estipulada pelo Tratado de Paz com o Japão, no dia
28 de abril do mesmo ano. Entretanto, mesmo após o fim da ocupação, os
temores acerca dos armamentos nucleares eram visivelmente presentes no
país, principalmente impulsionados pelos desdobramentos da Guerra Fria, e
dos conflitos entre Estados Unidos e União Soviética [IGARASHI, 2011].
72
Realizados tais apontamentos, a intenção do presente artigo parte de um dos
questionamentos feitos pelo pesquisador Toshio Miyake, professor associado
da Universidade de Veneza, e especialista em estudos asiáticos. O mesmo
indaga:
“Como foi possível chegar a um consenso hegemônico sobre as políticas de
energia nuclear no Japão do pós-guerra, quando era o único país do mundo a
ter sofrido bombardeios atômicos em suas cidades? Como foi possível
construir 54 reatores nucleares num arquipélago pequeno, densamente
povoado, e com um risco sísmico tão elevado? E por último, como foi possível
que mesmo os residentes que viviam perto das plantas nucleares os percebiam
como lugares luminosos, amigáveis e tecnológicos?” [MIYAKE, 2012, p. 71]
Como o próprio Miyake aponta, é fato que o Japão institucionaliza políticas
nucleares desde o pós-guerra nas mais diversas esferas da sociedade, da
cultura e da economia. Entretanto, buscar respostas apenas em estruturas
políticas não parece esclarecer de fato, como a sociedade japonesa se
relaciona e compreende a questão atômica. Os bombardeios das cidades de
Hiroshima e Nagasaki não foram as únicas experiências negativas que a nação
sofreu com a energia nuclear. Em março de 1954, a embarcação de pesca de
Atum, Lucky Dragon No. 5 foi exposta a um trecho de radiação na região do
Atol de Biquini, local em que os americanos realizaram testes nucleares. A
morte súbita de um dos pescadores, Aikichi Kuboyama soou como um alerta
sobre os perigos nucleares para os japoneses [MASASHI, 2011].
Em 2011, o Japão foi atingido por um terremoto grande magnitude,
ocasionando um tsunami que atingiu a usina nuclear de Fukushima, explodindo
3 de seus reatores, liberando uma grande quantidade de radiação na região.
Na ocasião, ativistas de direita, como Tamogami Toshio e Kasaka Kimindo,
defendiam que a radiação liberada na área era irrisória e que não era
necessária grande preocupação. Enfatiza-se que essas mesmas figuras, na
época, eram representantes da Associação das Vítimas das Bombas Atômicas,
e que eram politicamente controversos, negando ativamente o Massacre de
Nanquim e agressões japonesas contra nações asiáticas durante seu período
de expansionismo imperialista, principalmente durante as duas Guerras SinoJaponesas [PENNEY, 2012].
Mesmo após todos os incidentes citados, a sociedade japonesa parece ter uma
relação de ambiguidade com as bombas atômicas e com o uso de energia
nuclear, que perpassa o campo político, e se conecta com a (re)construção da
identidade japonesa no pós-guerra, com os discursos históricos construídos em
comunhão entre Japão e Estados Unidos, e com aparatos midiáticos, sociais e
culturais que os disseminaram, como é o caso da cultura pop japonesa e dos
mangás.
Durante o pós-guerra imediato, prevaleceu a imagem de que o Japão foi uma
trágica vítima dos perigos atômicos, ao mesmo passo em que a reconstrução
da nação era pautada na incorporação de códigos culturais ocidentais, na
democracia, no pacifismo e em uma economia progressista. Entretanto, esse
73
mesmo discurso era embasado em narrativas históricas negacionistas,
principalmente em relação aos crimes de guerra do Japão, e os reais efeitos
das bombas atômicas. Para que isso fosse possível, o Discurso Fundador,
nome que o historiador Yoshikuni Igarashi dá a narrativa oficial propagada,
envolveu uma transformação radical da identidade japonesa, estimulada por
um processo voluntário de ocultação das memórias e traumas de guerra da
sociedade nipônica. O autor aprofunda:
“O Japão do pós-guerra naturalizou a ausência e o silêncio do passado ao
erradicar sua própria luta para lidar com suas memórias. Pode parecer que a
sociedade do pós-guerra facilmente deixou suas experiências para trás na
busca por sucesso econômico. Entretanto, o progresso atual de esquecimento
da perda não foi fácil: isto envolveu uma luta constante para transformar as
memórias de guerra em uma forma nostálgica e benigna.” [IGARASHI, 2011, p.
40]
Com o avanço do pós-guerra e o recuo da censura, posições contrárias as
narrativas oficiais ganharam espaço, internacionalizaram-se e complexificaram
o debate acerca do papel japonês na guerra, e da questão nuclear [NETO,
2021]. Nesse sentido, a cultura midiática exerceu grande influência na
percepção dos japoneses sobre o uso da energia atômica. Amparado nesses
instrumentos, na legislação de políticas como a Lei de Energia Atômica (1955),
e na declaração dos Três Princípios Não Nucleares (1971), é que se tornou
possível a pesquisa do uso de energia atômica, resultando na construção de
usinas e reatores nucleares em diversas áreas do Japão [MIYAKE, 2012].
De acordo com Hirofumi Utsumi (2012), o que proporcionou o surgimento de
uma dupla narrativa nuclear no Japão foi exatamente a institucionalização
desses dois discursos a um nível não somente político, mas social e cultural.
Ainda explica que, esses dois universos discursivos, deveriam
fundamentalmente permanecer separados, para evitar o renascimento de
contradições históricas enraizadas pelo Discurso Fundador, e que conduziram
o Japão ao seu suposto milagre econômico e estabilidade social, sob a sombra
e a tutela dos Estados Unidos. O autor explica cada um:
“O primeiro discurso é o nuclear como alteridade, como perigo iminente, como
uma arma maligna, fonte de destruição em massa e contaminação letal. Esta
alteridade foi em grande parte removida e exorcizada projetando-a no passado
(Segunda Guerra Mundial) ou em algo de origem estrangeira, monstruosa ou
alienígena (os EUA, a URSS, e em monstros como o Godzilla). O segundo
discurso é o nuclear como identidade, como energia pacífica, segura, limpa e
boa, projetada diretamente no Japão atual, expressando a ideia de um país
pacífico, tecnológico e rico” [UTSUMI, 2012, p. 180]
A apropriação da cultura midiática para a disseminação e legitimação de
discursos como esses não é algo inaugurado no pós-guerra, vide que o próprio
Japão se utilizou muitas vezes do cinema, da fotografia, e dos mangás como
propaganda de guerra. É nesse sentido que o já citado Miyake (2012) aponta
74
que o mangá desempenhou um papel histórico e paradigmático na formação
da mídia vigente no Japão do pós-guerra, transformando a nação numa
espécie de paraíso dos quadrinhos. É durante a década de 1990 que o mangá
teve seu período de maior difusão como mídia impressa, onde suas vendas
alcançaram mais de 40% das publicações do país [SCHODT, 1996]. O
quadrinho nipônico foi e ainda é um dos principais meios da cultura popular
japonesa, fornecendo a referência original para uma cadeia de subprodutos e
adaptações de suas narrativas, em animês, filmes, jogos, Light Novels e
produtos de consumo diversos [PINK, 2007].
O alcance e a circularidade dos mangás é amplamente apropriado por diversos
grupos construtores de discursos políticos, históricos e sociais. Desse modo, a
construção dos discursos de alteridade e identidade atômica também foram
fortemente influenciados por narrativas gráficas e personagens específicos que
acabaram se tornando ícones da cultura pop japonesa. Podemos citar como
exemplo do discurso de alteridade, o mangá Gen Pés Descalços, do
quadrinista e hibakusha (sobrevivente da bomba de Hiroshima), Keiji
Nakazawa.
O mangá narra a história do protagonista Gen Nakaoka, um menino de cinco
anos que sobrevive à explosão da bomba em Hiroshima. A narrativa, apesar de
ser uma obra de ficção, apresenta memórias e testemunhos do autor, como
hibakusha. A obra conta com mais de dez milhões de cópias vendidas, foi
traduzida para mais de onze línguas, e já foi adaptada para diversos tipos de
mídia e arte. É mundialmente reconhecida, e também está presente no ensino
de história em escolas japonesas. Foi publicado pela primeira vez pela editora
Shonen Jump (MASASHI, 2011). Gen se consagrou dentro e fora do Japão
como um dos principais mangás que retratam a bomba atômica, e até hoje é
utilizado no ensino de História em escolas japonesas. De acordo com uma
pesquisa feita por Ito (2006), das 152 escolas que ele entrevistou, 90% possuía
Gen em seu acervo. A narrativa sequencial acabou se tornando um ícone da
literatura atômica no Japão.
Nakazawa buscou comunicar a seus leitores sobre as ameaças da guerra e os
perigos das armas nucleares. De mesma maneira, apresentou eventos e
memórias excluídas das narrativas oficiais, e da maioria das obras sobre armas
nucleares no período estudado. Gen Pés Descalços retrata diversas temáticas
relevantes ao pós-guerra, como por exemplo o passado imperialista japonês,
os experimentos humanos realizados pela Unidade 731, a escravidão sexual
de mulheres asiáticas institucionalizada pelos militares japoneses, o mercado
negro, e a prostituição no pós-guerra. Como indica o historiador Maxtom
Moreira Filho:
“Keiji Nakazawa se utiliza de sua arte para lutar contra a classe dominante, que
se apropria do passado, e sem preocupação com seu cortejo triunfante
soterram os derrotados da História. A rendição do Japão, para o Imperador e
as elites significou continuar no poder da nação. Para as vítimas, significou o
esquecimento e a culpa” [FILHO, 2022, p. 9]
75
Apesar do sucesso da obra e de sua incorporação em materiais de ensino, o
mangá passou por uma série de polêmicas e ataques pelo seu próprio
conteúdo. Se por um lado Gen Pés Descalços representa o sofrimento dos
hibakushas e todo o potencial de destruição atômico, por outro se constitui
como contraponto as narrativas negacionistas presentes no Japão do pósguerra, que ainda são apropriadas por grupos políticos neonacionalistas. A
crítica que Nakazawa tece sobra o imperialismo japonês e suas ações contra
nações asiáticas não passaram despercebidas, e desde suas primeiras
publicações o mangá sofreu com pressões políticas e sociais [NAKAZAWA,
2010].
Desde a implementação do Material de Ensino Para a Paz (2013), instituições
de vários locais do país foram pressionadas a retirar Gen Pés Descalços de
seus materiais didáticos. O que se sabe até o presente momento, é que em
2023 o mangá foi retirado das escolas de Hiroshima, e assim segue. A retirada
da obra foi marcada por protestos locais e pela ação de grupos que promovem
o uso do mangá no ensino da guerra, como é o caso do Barefoot Promotion
Group [SHIRASAKI, 2023]. A despeito de qualquer perseguição que o mangá
tenha sofrido, fica claro que sua narrativa não só é contrária aos discursos
negacionistas citados, mas que em certa medida, influenciou e contribuiu para
a construção da ideia do nuclear como alteridade, contra os armamentos
atômicos e contra a guerra. Toshio Miyake completa esse pensamento:
“Apesar das dificuldades iniciais em garantir a continuidade da publicação da
obra, devido ao seu realismo gráfico brutal, a aclamação crítica generalizada,
especialmente por movimentos de paz, tanto nacionais como internacionais,
marcaram a entrada do mangá como material didático nas bibliotecas
escolares. Em outras palavras, Gen Pés Descalços contribuiu para a
legitimação institucionalizada do mangá ao status de cultura ou cultura séria no
início dos anos 1980, como um meio não necessariamente redutível ao
entretenimento comercializado ou meramente esvaziado” [MIYAKE, 2012, p.
77]
Em contrapartida ao discurso de Gen Pés Descalços, outras narrativas que
surgem desde 1952 buscam construir o nuclear como identidade, com a visão
de que a energia nuclear é algo sustentável, lucrativo, bom e tecnológico, se
alinhando com a ideia de nação progressista construída no pós-guerra. É
possível citar como exemplo as Hiroshima Otome (Donzelas de Hiroshima,
Tetsuwan Atomu (Astroboy), ícones da cultura kawaii e hiper sexualizada do
Japão, e até mesmo iniciativas estatais de construir centros de lazer e
consumo dentro de plantas nucleares, com o intuito de aproximar a nação da
identidade nuclear que era necessária ser incorporada na sociedade
[MURAKAMI, 2005].
De acordo com Sawaragi (2005) e Igarashi (2011), o fortalecimento do
negacionismo em narrativas oficiais, e a remoção da discussão pública
relacionadas ao passado imperialista japonês e seus crimes de guerra, as
76
contradições da Constituição da Paz, o papel do Imperador na guerra, e sobre
os bombardeios atômicos causados pelos Estados Unidos, causaram uma
“espécie de condição histórica distorcida: uma cápsula vazia a-histórica
chamada Japão” [SAWARAGI, 2005]. De acordo com Miyake:
“Depois da década de 1970, toda a ansiedade, medos, traumas e sentimento
de culpa desencadeados pela Guerra do Pacífico foram removidas do campo
público, e foram deslocados e depois liberados nos campos menos controlados
das subculturas. É por isso que as culturas populares desenvolveram um estilo
visual tão completo de excessos, exageros, distorções: hiper infantilismo,
hipersexualidade, hiperviolência. Uma cultura visual explosiva alimentada pela
sua suspensão da realidade histórica e empírica. Em outras palavras, a
questão não resolvida dos bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki
tornou-se um tema ambivalente, de convenções estéticas transversais e das
plataformas de mídia japonesa das culturas populares” [MIYAKE, 2012, p. 79]
Feito tais apontamentos, concluímos que é essencial uma análise minuciosa e
aprofundada das culturas populares japonesas, em nosso caso, enfatizando a
literatura atômica produzida pelos mangás, para compreender de fato, como a
memória do pós-guerra foi construída, incorporada e comunicada pela
sociedade japonesa. O quadrinho nipônico é uma das principais mídias que
estruturam uma cadeia de adaptações, produtos e narrativas. Por essa
característica, o embate histórico, político e social também acontece pelo uso
desse dispositivo de comunicação. Para decifrar as narrativas de alteridade e
identidade nuclear é necessário olhar para aqueles que foram apagados das
narrativas oficiais, assim como compreender como os mangás e a cultura pop
japonesa influenciaram a construção de discursos, ícones e representações
que fazem parte da identidade japonesa, e do entendimento dos japoneses
sobre seu passado.
Referências
Lucas Ciamariconi Munhóz é licenciado em História e mestrando em História
Social pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Atualmente é bolsista
pela CAPES, membro do Laboratório de Pesquisa de Culturas Orientais
(LAPECO), e membro do corpo editorial do periódico semestral Prajna: Revista
de Culturas Orientais.
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77
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In: Van Lente, Dick (ed.), The nuclear age in popular media: A transnational
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78
A ONDA COREANA E A CRESCENTE ROMANTIZAÇÃO,
FETICHIZAÇÃO E ESTEREOTIPIZAÇÃO DOS SULCOREANOS
Suelen Cecília Vieira Silva
O surgimento e a crista da onda coreana
Para compreender o impacto atual da Onda Coreana, se faz necessário
entender um pouco do período em que o fenômeno se inicia, e analisar como o
mesmo evolui ao longo do tempo.
A Hallyu, ou também como é conhecida a onda coreana, é um fenômeno que
se inicia na década de 1990, e vem ganhando força e reconhecimento ao longo
dos anos. Esse evento surge em um contexto histórico no qual a Coreia do Sul
havia se libertado da colonização japonesa em 1945, e passado por uma
guerra civil, na qual no ano de 1953 foi assinado um acordo de armistício; esta
guerra tem como resultado a divisão da península em norte e sul, e nenhum
tratado de paz definitiva. Desta forma o país se encontrava devastado e na
busca de uma reconstrução interna, e também no modo que ele era visto no
cenário global.
Atualmente a Onda Coreana pode ser dividida em fases, a primeira é
relacionada a internacionalização dos dramas Sul coreanos, que aconteceu
entre os anos de 1995 e 2005. Após esse primeiro momento, se tem a
denominada Hallyu 2.0, que tem como marco a inserção do Pop sul-coreano; o
K-pop, que ganhou um papel importante nesse cenário internacional. Devido a
sua função neste cenário o pop sul-coreano recebeu muito investimento, e se
criou as Big Three, três grandes empresas que se destacam, e praticamente
dominam a cena da produção musical, são elas: SM Entertainment, JYP
Entertainment e YG Entertainment.
A terceira fase da Onda, vem acompanhada do interesse dos consumidores de
outros países, pela comida (K-food), beleza (K-beauty), e o turismo. Assim
sendo para além de meramente consumidor do conteúdo audiovisual da Coreia
do Sul, esses indivíduos se tornam pessoas que apreciam a cultura coreana
como um todo, sentem a vontade de comer as comidas que são exibidas nos
dramas, de se vestir como os personagens e os idols, de usar os mesmos
79
produtos, e conhecer de perto os lugares retratados nos dramas ou nos MVs
(music video) de K-pop.
Com toda essa magnitude e influência, a Hallyu, tem um papel fundamental
dentro do Soft Power, termo que é cunhado por Joseph Nye [2004], em seu
texto chamado “Soft Power: The Means to Success in World Politics”. Em
resumo, o soft power é uma forma de poder que ascende no pós-guerra;
período em que os países percebem que o hard power não é mais viável, e
dessa forma começam a se utilizar de uma influência e de um poder que não
vem mais das batalhas e da dominação direta, e sim de uma conquist por
meios não violento. É dessa forma que a Hallyu entra no mecanismo de soft
power sul-coreano, ao influenciar outros países por meio do audiovisual, pois
como ressaltam os autores do artigo denominado “Hallyu como instrumento de
soft power sul-coreano” [Barros, Sasaki, Vieira, et al. 2023], a Coreia conseguiu
sair de um país destruído pós-guerra, para um país reconhecido mundialmente,
citando as palavras de Nye, utilizadas no artigo: “A reputação torna-se ainda
mais importante do que no passado, e ocorrem lutas políticas sobre a criação e
destruição de credibilidade. Os governos competem por credibilidade não
apenas com outros governos, mas com uma ampla gama de alternativas,
incluindo mídia de notícias, corporações, organizações não-governamentais,
organizações intergovernamentais e redes de comunidades científicas (NYE,
2004, p.106).” [Barros, Sasaki, Vieira, et al. 2023, p. 50].
Vale ressaltar que a Hallyu é um evento que recebeu e ainda recebe apoio do
governo, e também dos Chaebols (os conglomerados de empresas sulcoreanas).Os ganhos advindos da Hallyu são palpáveis, como apontado no
artigo citado acima, apenas o BTS, um dos grupos de K-pop mais famoso da
Coreia do Sul, gera “mais de US $3,6 bilhões para a economia sul-coreana
todos os anos, o equivalente à contribuição de 26 empresas de porte médio”
[Barros, Sasaki, Vieira, et.al, 2023].
Efeitos causados por uma onda
É inegável que a Hallyu teve diversos efeitos positivos, como, a difusão da
cultura sul-coreana, o fortalecimento da economia do país e a elevação de sua
relevância global. Mas seus efeitos não são exclusivamente positivos, ao atingir
um público tão grande e diverso o K-pop e os K-dramas, podem contribuir para
a criação de estereótipos sobre a cultura sul-coreana e consequentemente
sobre os cidadãos sul-coreanos.
Como apontado pelas doutoras em ciências da comunicação, Ligia Prezia
Lemos e Mariana Marques de Lima [2024], no artigo “Fãs brasileiros de
doramas sul-coreanos e K-dramaland: distinções culturais, alteridade e
identidades”, há uma diferença entre a cultura sul-coreana de fato, e aquilo que
é ficcional criado pela indústria dos dramas, ou a K-dramaland.
Haveria então uma dualidade entre o real e as coisas que são criadas para
estarem nos K-dramas, e muitas vezes os fãs não conseguem perceber essa
diferença, e acabam tomando essas criações e romantizações como verdades.
80
Citando as palavras de Lemos e Lima: “É nítido que em comentários livres e
anônimos sobre produtos culturais sul-coreanos, os fãs brasileiros podem
inadvertidamente reforçar estereótipos racistas e preconceituosos. Isto pode
ocorrer devido a uma visão superficial e estereotipada daquela cultura,
contribuindo para o orientalismo (Min, 2021; Said, 2007)” [Lemos e Lima. 2024,
p. 66].
Um exemplo recente, foi o da reportagem que o Fantástico exibiu na data de 4
de agosto de 2024, a mesma aborda o sucesso dos K-dramas no Brasil, é
relatado a vinda do ator sul-coreano Sung Hoon para o país, e um comentário
de uma fã chama a atenção ao dizer: “Eles não são mulherengos, não são
como os brasileiros que namoram com trezentas na mesma semana”.
Esse comentário em um primeiro momento pode parecer inofensivo, e até
mesmo positivo, mas se analisado mais a fundo se pode identificar camadas
mais complexas, reforçando, por exemplo, uma construção estereotipada dos
homens sul-coreanos como os “outros” idealizados, e uma idealização que e
baseada em uma percepção construída a partir de obras de ficção, e de casos
específicos.
Walter Lippmann [2008], no livro “Opinião Pública”, trabalha a noção de como o
indivíduos cria ideias mentais para aquele evento que eles não viveram na
prática, e seria dessas ideias mentais que os estereótipos seriam criados uma
vez que eles seriam espécies de mapas mentais para entender esse cenário na
realidade do indivíduo, citando um trecho de Lippmann “A análise parte destas
limitações mais ou menos externas para a questão de como este ‘pinga-pinga’
de mensagens do exterior é afetado pelas imagens arquivadas os preconceitos
e prejuízos que interpretam, preenchem e dirigem poderosamente o transcurso
de nossa atenção e de nossa visão. Daí cabe seguir no exame de como um
padrão de estereótipos, são identificados com o interesses da pessoa à medida
que ele as sente e as concebe” [Lippmann. 2008, p.41]
Estereótipos e Orientalismo
Retomando questão sobre o outro, ela pode ser discutida na ótica de Edward
Said que aponta em seu livro “Orientalismo: o oriente como invenção do
ocidente”, a ideia de como o “oriente” e os “orientais” são criados com base em
ideias do “ocidente”.
Na atualidade esses estereótipos advém da Hallyu ao surgir do K-pop e do Kdrama, que em muitos casos romantizam os homens e mulheres sul-coreanos
os retratando como príncipes encantados ou CEOs apaixonados, mulheres
recatadas; fofas, e submissas. Esse imaginário contribui para uma
estereotipização que, embora aparentemente positiva para alguns, pode ser
prejudicial.
No prefácio da edição de 2003 Said aponta: “O fato de que essas rematadas
ficções se prestem facilmente à manipulação e à organização das paixões
coletivas nunca foi mais evidente do que em nosso tempo, quando a
81
mobilização do medo, do ódio e do asco…” [Said, 2003], na atualidade não
baseamos essas ficções e manipulações em medo, mas sim em romantizações
e idealizações, dos indivíduos sul-coreanos.
Essa romantização, ou estereotipização nos moldes que são apresentados no
artigo “O que são estereótipos” [Campos, Martins, Ramos, et.al. 2021], “pode
ser definido como crenças compartilhadas de um grupo em relação a outros,
imputando características físicas, morfológicas e/ ou psicológicas. Sendo estes
conceitos muito úteis para compreender processos de interações sociais”
[Campos, Martins, Ramos, et.al. 2021, p. 2], podem causar danos reais em
indivíduos que sofrem diariamente com essas crenças.
A exemplo, casos de brasileiras que buscam ir para a Coreia com o intuito de
encontrar esse homem perfeito, e acabam se decepcionando ao perceber que
esses homens são criados para os damas, e em sua grande maioria não
existem na vida real. Podemos ter casos até mais graves, como é o exemplo
da brasileira Jackeliny Bastos, que virou notícia em dezembro de 2023, quando
a mesma relatou em suas redes sociais as agressões que sofria do marido sulcoreano, que a expulsou e deixou a desamparada em um país estrangeiro
[Vieira, 2023].
Fetichização e Generalização
Para além de ser nocivo para os próprios fãs que criam esses estereótipos e
romantizações, tais atos também são ruins para os Asiáticos, ou pessoas que
possuem ascendência, ou até mesmo pessoas que apenas apresentam traços
do fenótipo de países da ásia. Vale ressaltar que inúmeras vezes asiáticos são
tratados como todos iguais, sem distinções entre nacionalidades, Japoneses;
chineses; tailandeses; coreanos; entre outros. Termos genéricos como “Japa”
ou “Coreia” ignoram as distinções entre diferentes culturas e nacionalidades
asiáticas.
Isabel Pires [2024], em seu artigo “Um Lótus ou um Dragão? - A orientalização
e fetichização dos corpos das mulheres asiáticas”, aborda como essas
mulheres frequentemente são fetichizadas com base em estereótipos
cotidianos e criações culturais. No texto, Pires analisa como filmes e
representações fictícias contribuem para a perpetuação desses imaginários
estereotipados. Para enriquecer sua pesquisa, a autora realizou entrevistas
com mulheres asiáticas e com aquelas que possuem apenas ascendência
asiática em Portugal. Os relatos mostram semelhanças marcantes,
evidenciando que, na maioria das vezes, a distinção entre quem é asiático ou
apenas descendente é desconsiderada. Essas percepções se baseiam
predominantemente nas aparências e nos estereótipos associados.
Muitas mulheres asiáticas são sexualizadas e objetificadas, sendo tratadas
como sonho, e fetiche dos homens. Isabel escreve: “Orientalização, portanto, o
processo pelas quais mulheres Asiáticas, das mais diversas origens da Ásia,
são estereotipadas e objetificadas. ‘O Oriente foi quase uma invenção
europeia’, seguindo a crítica iniciada por Edward Said, que no seu magnum
82
opus Orientalismo descreveu o ‘estilo ocidental para dominar, reestruturar, e ter
autoridade sobre o Oriente’. Não obstante, notou a confluência de Orientalismo
e Sexismo, onde as mulheres são representadas com sensualidade ilimitada, e
a conquista sexual das mulheres se relaciona com a conquista do próprio
território físico” [Pires, 2024, p. 6].
Para apontar esses danos na realidade do Brasil, é importante escutar
indivíduos que passam por essa fetichização no dia a dia, e para isso será
apresentado a transcrição dos relatos de dois influencers, que gravam vídeos
sobre essa temática para a rede social Tik Tok.
O primeiro é Han Byoung, @lucashanb, que publicou um relato sobre alguns
comentários que o mesmo se deparou, e que evidenciam como os homens
coreanos sofrem como essa situação, ele diz: “Cara, eu peguei só esses dois
comentários porque eles resumem bastante do que eu vou falar, que é
basicamente sobre essa bizarrice ‘eu amo asiáticos’. Mano, esses dias, faz
tempo que eu não vou na liberdade, mas esses dias eu fui lá e [..], primeiro,
pessoas ficam te olhando diferentes, tem aquelas fãs de K-pop; dorama, que
ficam botando na cabeça, sei lá, um monte de besteira, acha que a vida é um
dorama, ai fica [...] meio stalker. E cara o povo tem que acordar, perceber que
isso não é legal, [..] Se antes na minha infância, quando não tinha nada disso,
eu sofria por desrespeito, aqueles comentários xenófobos, que cês tão ligados,
agora mudou não para melhor, [...] tá ruim do mesmo jeito, na real, tem tanto
aquelas pessoas antigas, que fazem comentário tipo ‘ae sushi, Jackie Chan’,
essas coisas, tanto quanto essas pessoas malucas que ficam vivendo em
dorama, e acha que é normal é… assediar dessa forma. Então só queria falar
mesmo, que essas coisas não são legais, é simplesmente um desabafo, e que
vocês acordem e percebam que somos seres humanos normais, entendeu? [...]
Antes a Liberdade era um lugar que eu gostava de ir, sempre fui desde criança,
mas deixou de ser, porque parece que você não pode ficar confortável, à
vontade [...]” [Byoung, 2024].
Bruna Tukamoto, @bruna.tukamoto é outra criadora, que abordou como o Kpop, animes e mangás colaboram para a fetichização da mulher amarela, ela
primeiro contextualiza historicamente como a mulher amarela sofre com
abusos sexuais, principalmente em períodos de guerras, por serem usadas
como escravas sexuais, e como esse histórico fomenta os estereótipos que
essas mulheres carregam hoje em dia, sendo consideradas “submissa, quieta,
tímida, meiga”, ela diz: “E essa imagem é reforçada constantemente pela
indústria do entretenimento [...] mas também K-pop, animes, mangás. E como
isso acontece? [...] E no universo do K-pop isso não é diferente. Normalmente,
os grupos musicais femininos seguem dois conceitos: ou o ‘sexy’ ou o ‘cute’. O
‘cute’ tem um aspecto mais infantil, mais fofo, meigo como é o caso de algumas
bandas como Gfriend ou Oh My Girl [...] As integrantes usam roupas escolares,
se comportam de uma maneira mais tímida, gentil, e também se utilizam
bastante do ‘eagyo’ que significa literalmente ‘comporta-se de maneira mais
graciosa’. é como agir como uma criança né, e essa inocência é usada com
cunho sexual. Rola aí uma fetichização da pureza. O resultado disso é criar
83
esse imaginário social da fragilidade da mulher amarela. Já no conceito ‘sexy’
do K-pop as mulheres costumam ser mais velhas, elas usam batons mais
escuros, roupas mais decotadas, mais curtas. E também maquiagens mais
sensuais, como é o caso do grupo Stellaar, por exemplo. As coreografias
contam com movimentos mais sensuais […] Em uma entrevista, as integrantes
do grupo Stellar até comentaram que não gostam desse estilo sexy, mas que
elas são obrigadas a seguirem ele pra obterem sucesso [...]” [Tukamoto, 2022].
Esses dois relatos demonstram como esses estereótipos, recaem sobre as
pessoas amarelas, incluindo os sul-coreanos, tanto os homens, como as
mulheres sofrem com esse ideário criado pelos consumidores de K-pop e Kdrama, e que para muitos podem ser considerados positivos, e inofensivos,
pois de certo modo “endeusam” os indivíduos asiáticos, mas, ao mesmo tempo,
isso gera uma fetichização e generalização, na qual as pessoas possuem uma
obsessão, ou um desejo de ficar com uma pessoa asiática, apenas por essa
ser asiática ou por ter traços que se assemelham aos artistas sul-coreano.
A parcela de pessoas que demonstram esse tipo de comportamento não
representam todos os fãs das produções sul-coreanas, e podem até ser uma
parcela menor, mas de acordo com os comentários em redes sociais, ou até
mesmo em produções da TV aberta, eles existem e podem estar aumentando
de acordo com o aumento do consumo de tais produções, e causam um
incômodo significativo para as pessoas amarelas, e podem também causar
risco para si mesmos ao acreditaram cegamente nesses estereótipos.
Como aponta Lippmann [2010] os indivíduos deveriam ter contato direto com
os eventos para fugir dessa ficção, mas o mesmo aponta que isso seria
impossível ao escrever: “A alternativa ao uso de ficções e a exposição direta à
ruína e ao fluxo da sensação. E isso não é uma alternativa real, muito embora
seja refrescante enxergar de tempo em tempo com um olhar, perfeitamente
inocente, (o fato de que) a inocência em si mesma não é sabedoria, mas fonte
e a correção da sabedoria.”[Lippmann, 2010, p. 31].
Desse modo, é impossível apresentar a Coreia do Sul diretamente para todos,
mas se faz de extrema importância abordar criticamente os efeitos negativos
da Hallyu, e das estereotipizações, promovendo uma apreciação mais
consciente e respeitosa da cultura sul-coreana e asiática como um todo.
Conclusão
Este texto buscou demonstrar como que o crescente consumo de produtos
audiovisuais impulsionados pela Hallyu, que é uma ferramenta do soft power
sul-coreano apoiada pelo governo, como um projeto para impulsionar a cultura
sul-coreana para o resto do mundo, surgiu em um momento no qual o país
necessitava se reerguer, e funcionou muito bem, pois de fato fez com que o
mundo conhecesse a Coreia do Sul, e se interessasse pela cultura do país
aumentando a renda e visibilidade, a Coreia do Sul passa a ser vista como um
país moderno, e importante dentro do cenário mundial.
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Dessa forma, a onda coreana, ajudou positivamente a Coreia do Sul, e cumpriu
o seu papel como um projeto, mas ao mesmo tempo ela pode ter gerado
aspectos negativos, que ligados ao aumento do consumo do audiovisual fez
com que estereótipos, romantizações e fetichização, com base em elementos
ficcionais da K-dramaland crescesse. Isso resultou em orientalismo sob uma
nova forma, onde as pessoas amarelas deixam de ser alvo apenas de
xenofobia explícita e passam a ser idealizadas de maneira superficial. Homens
e mulheres asiáticos são frequentemente fetichizados e objetificados, reduzidos
à sua nacionalidade ou aparência, como evidenciado pelos relatos de
influenciadores citados neste texto.
Além disso, os próprios fãs também podem ser afetados, por essas
idealizações, como foi o caso da brasileira agredida pelo marido caso que
reflete a vontade de outras meninas buscam também esses relacionamentos
com sul-coreanos, baseados em idealizações criadas por essas pessoas, sem
levar em conta a realidade e as individualidades dos indivíduos sul-coreanos.
Esse fenômeno ressalta a importância de distinguir a cultura real das
representações ficcionais e de compreender os impactos negativos que as
romantizações podem causar, tanto nas pessoas que as vivenciam quanto
naquelas que as consomem.
Referências:
Suelen Cecília Vieira Silva é formada em Licenciatura em História pela
Universidade Federal de Viçosa, e atualmente é Bacharelanda em História pela
mesma instituição.
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86
AS DIFICULDADES METODOLÓGICAS NA PESQUISA
DE ARTE CHINESA NO BRASIL
Thiago Wang
No Brasil, existem instituições que possuem acervos significativos da assim
chamada “Arte Chinesa”, ou melhor, daquelas manifestações estéticas,
entendidas como originárias da China, tão apreciadas e cobiçadas. Só no Rio
de Janeiro, é possível citar a coleção da Casa Museu Eva Klabin, situada no
bairro da Lagoa, e a coleção Castro Maya, dividida entre o Museu Chácara do
Céu, em Santa Teresa, e o Museu do Açude, no alto da Boa Vista. Por mais
que exista essa presença, é notável a ausência de informações museológicas
deste acervo - como sua origem -, visto que, muitas vezes, este patrimônio se
dilui em classificações generalizadas, como “Arte Oriental” ou “Arte Asiática”.
Dito isto, o presente texto possui como incumbência listar e refletir as
dificuldades na pesquisa da arte chinesa em nosso país. Para além do cenário
introdutório, pretendemos refletir sobre uma série de outros aspectos que
interagem com o já citado e se retroalimentam, criando um ciclo de
desconhecimento e desinformação enrijecido, e que impedem o
desbravamento, análise e contemplação de tais objetos.
A raíz Orientalista e a resistência do Brasil com a China
Para aqueles que pesquisam qualquer sociedade, civilização ou cultura fora do
eixo Europa - Estados Unidos, o conceito decolonial de Orientalismo não deve
ser estranho, ou pouco conhecido. Cunhado por Edward Said, o termo se
designa diante da análise do contexto imperialista e da estética romântica
originária do século XIX. Essencial e indispensável para se tratar sobre
preconceitos resultantes de ações coloniais, Said expõe sobre a criação
fantástica e fantasiosa sobre o que existe nas “periferias do mundo”, ou o que
está fora do eixo Ocidental, em especial, o Oriente, no caso, o Oriente Médio e
a sociedade muçulmana, em que é possível expandir para o chamado Extremo
Oriente – nomenclatura que evidencia ainda mais questões de distância
geográfica, responsável por acentuar o desconhecido ou irreconhecível.
Esmiuçar o Orientalismo é atuar em uma arqueologia sobre tal ideologia
racista, que desperta reflexões sobre Alteridade. Sobre como um pensamento
87
romântico, que vai desde as artes visuais, passando pela sonoridade e por
registros escritos, atestam um enorme fascínio ao observador colonizador .
Este sentimento ambíguo, que mistura a curiosidade e a vontade de conhecer
junto com a repulsa pela diferença resultou no surgimento e consolidação de
uma visão hegemônica, responsável por refletir a própria identidade ocidental e
por legitimar os interesses coloniais (SAID, 1990). O poder de narrar europeu
encara o Oriente como lar do exotismo e do notável, ajudando a definir seu
oposto colonizador pelo contraste imagético. “O Oriente expressa e representa
esse papel, cultural e até mesmo ideologicamente, como um modo de discurso
com o apoio de instituições, vocabulário, erudição, imagística, doutrina e até
burocracias e estilos coloniais.” (SAID, Edward W., 1990, p. 14).
Deve-se ter em mente que tal manifestação pode ser compreendida como
ferramenta metodológica e organizada para negociar com o Outro. Negociar de
modo tirano, a tomar enunciações próprias a seu respeito, criando opiniões
livres sobre tal, descrevendo-o, colonizando-o e governando-o. Uma
dominação que obriga a reestruturação alheia, mas que carrega toda uma rede
de interesses, que, de forma ambígua, faz valer seu prestígio, como na
indústria da moda e do estilo já entendido como chinoiserie, como em sentido
agressor, fazendo com que a identidade ocidental ganhasse força ao se
comparar com a outra, identificando práticas desconhecidas como bárbaras e
animalescas (WANG, 2020).
Dentro da ideologia discutida, o início das relações sino-brasileiras não foi
muito diferente, apresentando-se sob um contexto de tensões sociais, políticas
e raciais que marcaram o Segundo Reinado. Oliveira aponta que a imigração
chinesa surge como uma opção de mão de obra de última instância,
substituindo a escrava, uma vez abolida, e suprida pelo desinteresse do
assalariado europeu (OLIVEIRA, 2019). Destaca-se que, em um primeiro
momento, a Corte brasileira, embora defendesse a imigração europeia,
recorreu ao contrato de trabalho com imigrantes chineses, especialmente para
as plantações de chá. A presença dos chins, no entanto, esbarrou em sérias
dificuldades culturais e linguísticas, dificultando a integração dos chineses nas
atividades produtivas e criando um ambiente de desconfiança mútua.
Para muitos brasileiros da época, o processo de imigração chinesa era um
reflexo de um projeto imperialista que visava transformar a sociedade brasileira
de acordo com as ideologias de branquear a população. Todavia, a resistência
a esta imigração é evidente mesmo no círculo abolicionista. A figura de Ângelo
Agostini é um exemplo claro. O ilustrador e caricaturista produziu algumas
charges para a Revista Ilustrada, em que os chineses eram representados de
forma estereotipada e desumanizada. A figura do chin estava ligada à
criminalidade e à dependência ao ópio, resultado do imperialismo inglês. A
hipocrisia da elite brasileira chegava ao ponto de apoiar o abolicionismo e o
imperialismo concomitantemente. Retomamos Said para introduzir um segundo
aspecto a ser tratado e salientando que, a superação desta falsa moralidade só
é possível ao recusarmos o poder do colonizador, para reivindicar o direito de
narrar do nativo (SAID, 1990).
88
Por uma metodologia própria e adequada
Dito isto, é comum identificarmos, desde o século passado, estudos
comparativos. José Roberto Teixeira Leite, em A China no Brasil (1999), ou até
mesmo Gilberto Freyre, em sua antologia póstuma China Tropical (2003),
deixam claro as relações existentes entre a cultura dos dois países. Exploram a
influência chinesa nos movimentos artísticos do séc. XVIII, e deixam claro
como o Brasil pode ser entendido como originário de aspectos afro-asiáticos.
Todavia, até certo instante, são análises que consideram a China apenas como
contraponto instrumental, ou que usam conceitos de lá para aplicar aqui e viceversa. Estas duas metodologias, expostas por Bueno, mostram como se pode
usar a China como elemento externo e passivo de consulta, mas que podem
ser confundidas com o pensamento esotérico, carregado de Orientalismo, em
que a cultura “oriental” é vista como uma resposta mística para o vazio
existencial do Ocidente (BUENO, 2020).
Em compensação, a Chinesidade, conceito explorado pelo mesmo autor, mas
cunhado pelo filósofo sino-americano Tu Weiming, busca compreender a
cultura chinesa a partir de suas próprias bases, conceitos e tradições. A
distinção é por tratar a China como o ponto de partida e centro do objeto
estudado. Para elucidação, é possível pensar em um cenário oposto. Teixeira
Leite explorou bem a influência chinesa e distinta nas manifestações barrocas
de Minas Gerais e na da Bahia. Hipoteticamente, tomemos um pesquisador
chinês que decide pesquisar algum objeto deste contexto. O valor gerado por
sua pesquisa será limitado, caso decida se restringir em criar relações entre o
“aqui e acolá”. Para entender o objeto, é primordial sobretudo entender os
conceitos e o contexto em que foi criado, similar ao que Panofsky referencia à
iconologia. Afinal, o barroco por si só, se atendo ao exemplo, é um fenômeno,
antes de tudo, social e político, que teve suas diversas variações em âmbito
regional, de forma que o próprio mineiro teve suas particularidades em
comparação ao baiano.
Desta forma, a abordagem da Chinesidade não deve ser vista como única, mas
pode afastar o estudo da China de análises simplistas e incompletas e ser um
farol para novas metodologias mais adequadas. Outros pensamentos seguem
o mesmo princípio, como o desenvolvido pelo sinólogo japonês Yoshimi
Takeuchi. Ele propôs que a China, junto com outros países asiáticos, fosse
inserida como referência central em seus estudos, criando o conceito que
chamou de Ásia como Método, em referência à busca por um pan-asiatismo.
Freitas explora tal movimento como a busca pela superação do binarismo
Ocidente-Oriente e oferece novas perspectivas, evitando a visão de
superioridade de uma nação sobre outra, algo paralelo à América Invertida de
Torres Garcia, que promove a inter-referência e desafia o colonialismo
intelectual (FREITAS, 2016).
89
O problema não é novo, mas por que ainda existe?
Outros autores renomados são comumente incorporados na lista de tais
estudos metodológicos, como François Jullien. O assunto até então explorado
não é novo, mas, até certo ponto, existe uma falta de problematização do
porquê ainda não foi superado. Algo que pretendemos fazer aqui, tendo em
vista o contexto mais específico da pesquisa teórica e crítica em âmbito
artístico. Antes de tudo, é importante deixar claro, como apontam Sophia e
Bueno, que os estudos da China no Brasil ainda foram pouco explorados no
mundo acadêmico. Tirando as Relações Internacionais e a Economia,
pautadas pelo histórico de imigração, aqui brevemente explorado, as demais
áreas, como a de Teoria da Arte, ainda não obtiveram uma cultura universitária
(SOPHIA; BUENO, 2019). Desta forma, a institucionalização desse campo
mostra-se em um cenário de grandes ausências.
O problema é ainda mais fundo e complexo, quando entendemos o cenário de
ensino no Brasil. Em ambientes acadêmicos eurocentrados, é comum nos
depararmos com inúmeras disciplinas de História da Arte que giram em torno
do contexto e cronologia Ocidental, enquanto alguns poucos currículos ainda
se aventuram em explorar assuntos, chamados de Arte Oriental ou Asiática,
em disciplinas compactas de poucos meses de duração. Por mais que estes
tentem trazer à tona a problemática orientalista não conseguem dar conta da
amplitude e complexidade do assunto. Este assunto também não é novo e já
investigado pela onda pós-moderna, como por Hans Belting. Todavia, fica claro
que se alimenta um segundo estágio da problemática: se pouco se ensina,
pouco se produz. Da mesma forma que, se pouco se produz, pouco se
problematiza o que se ensina.
E qual seria a solução? Considerações finais
Há uma retroalimentação, uma espécie de ciclo, que necessita ser quebrado a
fim de superarmos as falhas e parte dos nossos traumas imperialistas.
Contudo, não podemos colocar a culpa apenas no Orientalismo, se sabemos
que existe a vontade e a movimentação para questioná-lo. Neste ponto,
apontamos duas principais questões limitadoras, o contato limitado com a
produção mundial e o medo da falha como profissional de pesquisa.
A arte chinesa possui suas limitações no Brasil, mas é muito bem pesquisada
em universidades do mundo afora, principalmente nos Estados Unidos, França
e na Inglaterra, como em Oxford, Yale, Universidade da Califórnia,
Universidade do Havaí, entre outras. A maioria desses centros universitários
possuem editoras próprias com publicações valiosíssimas quanto ao conteúdo.
Porém, existe o fator limitante de acesso, tanto físico, quanto pelo seu valor
monetário, o que já embarga o acesso de boa parte da rede de pesquisadores.
Outro ponto, pode ser entendido como o medo limitador na hora de produzir.
Muitas vezes, nota-se a insegurança de dar conta de todo um contexto para
além do objeto artístico, ainda mais para pesquisadores iniciantes ou
amadores. Se há dificuldade em acessar conteúdo sobre uma certa coisa,
90
como ter acesso também a tantas outras contextuais a fim de solidificar e
estruturar a pesquisa?
Não ter medo de errar é essencial, assim como entender o nível de maturidade
da pesquisa. O convite é de mergulho, pois como diz o antigo ditado, “é
errando, que se aprende”.
Mas, da mesma forma que a problemática se
retroalimenta, a solução também cria sua própria rede. É importante que os
sinólogos brasileiros comecem a produzir, para que possam se citar e
estruturar linhas de pesquisas e metodologias próprias. Recorrer às fontes
primárias e traduzi-las, sempre que possível, é a chave para criar termos
condizentes com a língua portuguesa, de forma a refutar traduções e tradições
estrangeiras. O caminho é árduo, mas estudar a China, pela China, podendo
explicar com termos da nossa língua enriquece e democratiza a pesquisa no
país. Acreditamos que assim, poderemos dar um passo à frente nos caminhos
ainda sinuosos, orientalistas e românticos, para desbravar o esplendor dos
acervos e acabar com o vazio dos resquícios da prática colecionista.
Referências
Thiago Wang é bacharel em História da Arte pela Escola de
Belas Artes da UFRJ, onde adquiriu o título honorário de Summa Cum Laude.
Sua pesquisa gira em torno principalmente do mandarinato da Dinastia Song.
BUENO, André. Estudando a China no Brasil. Mosaico - Revista Multidisciplinar
de Humanidades, Vassouras, v. 14, n. 3, p. 217-230, set./dez. 2023.
BUENO, André. Sinologia e Chinesidade no Brasil. In: BUENO, André (Org.).
Estudos em História Asiática e Orientalismo no Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro:
Sobre Ontens/Projeto Orientalismo, 2020. v. 1, p. 25-33.
BUENO, André; SOPHIA, Daniel C. Leituras possíveis sobre a China no
panorama museológico brasileiro: desafios à produção do conhecimento.
Memória e Informação, v. 2, p. 33-44, 2018.
FREITAS, Rosana de. Rumo a um novo ancoradouro: Ásia como método.
ARTE & ENSAIO (UFRJ), v. 1, p. 40-50, 2016.
FREYRE, Gilberto. China tropical: e outros escritos sobre a influência do
Oriente na cultura luso-brasileira. São Paulo: Global, 2011.
JULLIEN, François. Pensar a partir de um fora (a China). Revista Periferia, v. 2,
n. 1, jan.-jun., p. 1-20, 2010.
LEITE, José Roberto. A China no Brasil. Campinas: UNICAMP, 1999.
OLIVEIRA, Maria S. Contra os filhos do Império Celeste: breve análise do
imaginário brasileiro com relação ao imigrante chinês, sob a visão de Angelo
Agostini. In: XXIII Encontro Regional da ANPUH-São Paulo, 05-08 set. 2016,
91
UNESP - Assis/SP. Anais do XXIII Encontro Regional de História da ANPUHSP, v. 1, 2016.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
WANG, Thiago Paes. Cultura literati chinesa: sobre identidade, diáspora e
piedade filial. 2020. 74 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em
História da Arte) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
ZAGO, Amanda Mazzoni Marcato. Narrativas sobre a arte contemporânea
chinesa no Brasil: a exposição ChinaArteBrasil. Anais do 42º Colóquio do
Comitê Brasileiro de História da Arte: Futuros da História da Arte: 50 anos do
CBHA, São Paulo: CBHA, n. 42, p. 200-208, 2022.
92
JIT PHUMISAK E A POPULARIZAÇÃO DO MARXISMO
NA TAILÂNDIA ATRAVÉS DAS ARTES (1950-1976)
Tiago Ferreira
Apesar de ter sido peça relevante no tabuleiro da Guerra Fria na Ásia, há
reduzido interesse da academia na introdução e propagação de ideias
comunistas na Tailândia em comparação ao atrativo desperto por nações
vizinhas do sudeste asiático. Isso possivelmente se dá porque, enquanto
países como Laos, Camboja e Vietnã se tornaram comunistas, a Tailândia,
pelo contrário, serviu de base (tanto militar quanto ideológica) para operações
norte-americanas contra o avanço do comunismo na região. Com tantas
revoluções comunistas bem-sucedidas no sudeste da Ásia, a Tailândia, que
permaneceu firmemente do lado norte-americano durante a Guerra Fria, acaba
recebendo menor atenção de historiadores e estudiosos do marxismo fora da
Ásia.
Entretanto, a história do avanço dos ideais socialistas e comunistas no
pequeno reino asiático pode revelar surpresas, ajudar a preencher lacunas e
ainda possibilitar diálogos com a América Latina. Nesse sentido, Jit Phumisak
(จิตร ภูมศ
ิ ก
ั ดิ)์ (1930-66), historiador, filólogo, músico, poeta, revolucionário
tailandês e um dos maiores expoentes do marxismo na história da Tailândia,
representa um capítulo importante na história intelectual e política do sudeste
asiático, visto que ele foi, ao lado de Pridi Banomyong, o maior nome da
esquerda tailandesa no século XX.
Neste texto, pretendo introduzir o leitor à vida e ao contexto histórico de Jit
Phumisak, dando ênfase à sua produção intelectual sobre arte, possivelmente
seu maior legado, impulsionado sobretudo durante o curto período democrático
(1973-76), quando o conceito defendido por ele de “arte pela vida” se torna
dominante nos meios artísticos, intelectuais e estudantis da Tailândia.
As ondas de esquerda na Tailândia do século XX
Os ideais socialistas e ou marxistas começaram a penetrar no antigo reino do
Sião nos anos de 1920, antes do país mudar seu nome para Tailândia. Os
sino-tailandeses desempenharam um papel vital nesse processo, pois muitos
93
deles tinham contato direto com o Partido Comunista da China e do Vietnã
[KASIAN 2001, pp.18-24].
A segunda geração de movimentos contestatórios de esquerda na Tailândia se
dá entre intelectuais tailandeses e sino-tailandeses das áreas urbanas durante
os regimes autoritários de Phibun (1948-57) e Sarit (1958-63). Jit faz parte
dessa geração, tendo escrito livros muito influentes, especialmente Chomna
Sakdina Thai (โฉมหน้าศักดินาไทย, “A Face do Feudalismo Tailandês” em
่ วต
português) e Sila Pheua Chiwit Sila Pheua Prachachon (ศิลปะเพือชี
ิ
่
ศิลปะเพือประชาชน, “Arte pela vida, Arte pelo povo”), ambos de 1957. [FLOOD
1975, pp.58-59].
Morto em 1966, Jit não veria a terceira onda de esquerda, dominada pelos
estudantes universitários dos anos de 1970. Entretanto, se não estava presente
fisicamente, suas ideias foram mais do que presentes, foram a inspiração dos
revolucionários de 73 [RUENRUTHAI 2000, p.100], convertendo-o num dos
grandes ícones políticos da história tailandesa.
A breve vida de Jit
Jit nasceu em 25 de setembro de 1930 na província de Prachinburi, na
Tailândia, mas passou parte da sua infância no Camboja, onde sua família
trabalhou para o governo tailandês que ocupava a porção oeste do país. Sabese pouco sobre o seu pai. Aparentemente ele abandonou a família depois que
voltaram do Camboja em 1946. A mãe de Jit, que passou a criar os filhos
sozinha, levou o rapaz e sua irmã para Bangkok onde poderiam continuar os
estudos [REYNOLDS 1987, pp 18-19]. Jit, um aluno brilhante, seria aceito na
Universidade Chulalongkorn em 1950, passando a estudar línguas e história
[PIYADA 2018, p.105].
Apesar da fama de aluno indisciplinado, o talento de Jit rapidamente se fez
conhecido nos círculos literários e eruditos de Bangkok. Mesmo antes de
ingressar na universidade, já escrevia artigos para jornais estudantis e
demonstrava talento para a filologia e a história. Um de seus artigos publicado
em 1950 chamou a atenção de um linguista estadunidense radicado na
Tailândia, William Gedney, que escreveu para Jit para elogiar seu trabalho. Jit
passou a trabalhar para Gedney, auxiliando o norte-americano com a língua e
os estudos tailandeses, bem como com traduções do/para o inglês.
[REYNOLDS 1987, p.22].
É incerto em que exato momento Jit se tornou comunista. É provável que sua
conversão tenha ocorrido gradualmente, ao longo de um processo de estudo e
leitura de livros e textos a que teve acesso. Entretanto, é certo que Jit já era um
completo marxista em meados dos anos 50, o que leva a crer que os anos na
universidade foram decisivos nessa transformação, apesar do conservadorismo
da Universidade Chulalongkorn [PIYADA 2018, p.108].
94
Em 1953, Jit foi eleito editor do anuário da universidade, e embora admirado
por seu domínio da língua tailandesa, causava desconforto no campus porque
expunha em publicações universitárias suas posições críticas, que eram
entendidas como subversão política. Ao longo do ano acadêmico de 1953, Jit
trabalhou duro no anuário, reuniu diversos poemas e escritos, dentre os quais
dois chamaram atenção — um poema sobre a maternidade; o outro, uma
crítica materialista histórica do budismo — e os enviou para a publicação
[REYNOLDS 1987, p.31].
As autoridades universitárias, lideradas sobretudo pelo professor anticomunista
Sumonnachat Sawatdikun, reagiram censurando o anuário e exigindo a
renúncia de Jit do papel de editor. Foi designada uma espécie de audiência
pública no dia 28 de outubro onde seria explicado o motivo do banimento do
anuário. Jit acabaria sendo acusado de comunismo e convocado ao palco do
evento para se explicar. A eloquência de Jit, entretanto, mudou a opinião geral
a seu favor. Ele alegou que apenas queria romper com a tradição e produzir
um anuário mais atraente. Foi então que estudantes de Engenharia
(conhecidos como nakleng, algo como “valentões” em português), os mais
conservadores da universidade, invadiram o palco, agarraram Jit e o
arremessaram contra o chão, fazendo-o perder a consciência. O episódio é tão
marcante que é referido em tailandês como korani yonbok (O incidente do
arremesso contra o chão) [REYNOLDS 1987, p.31].
É possível entender toda essa histeria se levarmos em conta o contexto
histórico. Um ano antes, o ditador do país, Plaek Phibunsongkhram (ou
somente Phibun) havia iniciado uma caça às bruxas contra o comunismo,
numa aliança entre os militares tailandeses e o governo dos Estados Unidos
[SUWANNTHAT-PIAN, pp.273-291]. O expurgo de 1952, desencadeado pela
Revolta da Paz (um movimento de protesto contra a participação tailandesa na
Guerra da Coreia) inaugurou uma práxis “macarthista” na Tailândia,
simbolizada pela promulgação do Estatuto Anticomunista de 13 de novembro
de 1952. Qualquer menção à monarquia ou ao budismo de maneira nãoortodoxa poderia ser facilmente enquadrada nesse dispositivo legal [PIYADA
2018, p.105].
Gedney, que ironicamente era conhecido por ajudar as autoridades
estadunidenses na confecção de propagandas anticomunistas, deu uma
entrevista defendendo Jit das acusações, o que só piorou a situação. A histeria
passou a incluir também Gedney, que foi acusado pelos conservadores
tailandeses de ser um comunista disfarçado que estaria doutrinando jovens
tailandeses inocentes como Jit. A situação escalou a tal ponto que o primeiroministro Phibun emitiu uma declaração dizendo que o assunto estava nas mãos
da polícia [REYNOLDS 1987, p.32].
O que dava mais substância à teoria conspiratória era o fato da embaixada
norte-americana ter pedido para Gedney traduzir O manifesto comunista para o
tailandês. O objetivo não era, obviamente, promover o marxismo, mas sim
“assustar” as autoridades tailandesas para que tomassem medidas enérgicas
95
contra o comunismo. A questão é que Gedney não se sentia seguro em
traduzir a obra sozinho e contratou Jit para ajudá-lo, coisa que ele já tinha feito
antes em diversas ocasiões. Entretanto, o que era apenas uma coincidência se
tornou evidência para os detratores de Gedney e Jit. [REYNOLDS 1987, p.32].
O desfecho desse imbróglio foi o banimento de Gedney em janeiro de 54, e o
ostracismo de Jit, obrigado a abandonar os estudos temporariamente e a
reportar-se para a polícia regularmente [REYNOLDS 1987, p.31]. Jit foi
trabalhar numa escola como professor e também no jornal Traimai. Retornaria
à universidade em 55 e se formaria dois anos depois.
Nos próximos anos ele continuará exercendo trabalhos nas áreas de ensino e
jornalismo. Em 1957 lança seu livro mais importante sobre arte, que serviria de
base para o movimento Arte para a Vida nos anos 70, o ensaio Sila Pheua
Chiwit Sila Pheua Prachachon (Arte pela vida, Arte pelo povo). Ainda em 1957,
Jit é convidado a escrever um texto de história para o anuário da Faculdade de
Direito da Universidade Thammasat e publica Chomna Sakdina Thai (A Face
do Feudalismo Tailandês), hoje um marco na historiografia tailandesa. Ele tinha
apenas 27 anos e ainda se preparava para ingressar no mestrado em
Educação. [REYNOLDS 1987, pp.32-34].
A queda do ditador Phibun e a ascensão em outubro de 58 de outro militar
mais repressor e sanguinário, o general Sarit Thanarat, se mostraria um
grande desastre para os intelectuais progressistas do país. Grande parte deles,
incluindo Jit, acabariam presos sem direito a julgamento [REYNOLDS 1987,
p.36; PIYADA 2018, p.106]. Durante os seis anos na prisão, Jit escreveria
prolificamente, desde ensaios e estudos etnológicos, até canções e poemas.
[PIYADA 2018, p.115].
Seria solto em dezembro de 1964 e, meses depois, decide se dirigir às selvas
do interior, onde o Partido Comunista da Tailândia (PCT) liderava uma
insurgência contra o governo. Era novembro de 1965 quando Jit partiu. Em 5
de maio de 1966 seria morto a tiros na província de Sakhon Nakhon aos 35
anos de idade. Apesar do PCT tratar Jit como um membro pleno depois de sua
morte, sabe-se que ele nunca chegou a ser filiado, o que só veio a ocorrer
retroativamente, quando o partido queria surfar na onda de sua imensa
popularidade. Jit tinha um estilo de vida insubmisso, o que o levou a entrar em
choque com o PCT ainda quando estava na prisão. Udom Sisuwan, principal
líder do PCT nessa época, gostava de manter os mais jovens sob sua tutela,
no velho sistema tailandês de senioridade, onde os mais velhos mandam e os
mais novos obedecem. Jit não era o tipo que obedecia facilmente. Além do
problema hierárquico, Jit também discordava de Udom ideologicamente. Seu
่ องขึน้
livro Chomna Sakdina Thai se opunha a ideias do livro de Udom, ไทยกึงเมื
(“Tailândia, uma semicolônia”). [REYNOLDS 1987, pp.37-38].
A causa de sua morte ainda é motivo de especulação até hoje. Alguns relatos
apontam que ele foi morto por aldeões influenciados pela tática de contrainsurgência criada pelos franceses na Indochina e depois desenvolvida pelos
estadunidenses no Vietnã. Tailandeses que estudaram no exterior contam
96
histórias de um homem que teria confessado dar o tiro fatal em Jit e que teria
recebido de presente do governo estadunidense uma viagem para o Havaí.
Uma das versões mais famosas de sua morte é a de que ele estava com fome
e pediu arroz para uma senhora aldeã, que o denunciou para o chefe da aldeia.
Essa versão aumentou ainda mais a popularidade de Jit na geração de 70, pois
solidificou a imagem de um herói que depositava fé no povo, perdendo a sua
vida por confiar na honestidade do povo simples. [REYNOLDS 1987, pp. 3840].
Jit e a Arte pela Vida
Jit foi “redescoberto” nos anos 70 por alunos de um clube literário da
Universidade Thammasat, que encontraram um volume de Sila Pheua Chiwit
Sila Pheua Prachachon (Arte pela vida, Arte pelo povo) na biblioteca da
instituição. Inicialmente eles não conseguiram identificar o autor, que assinou a
obra sob um pseudônimo [REYNOLDS 1987, p.39]. Entretanto, a partir desse
momento, Jit se tornou uma celebridade, primeiro entre os progressistas
(comunistas ou não), e mais recentemente, entre conservadores e
monarquistas [PIYADA 2018, p.115].
A obra Sila Pheua Chiwit Sila Pheua Prachachon, respondia aos anseios dos
escritores e artistas progressistas da Tailândia dos anos 70. Apesar do termo
“Arte pela vida” se originar com o poeta Atsani Phonlajan (1918-87), foi Jit
quem consolidou esse movimento artístico no imaginário popular. O autor
tailandês foi bastante influenciado pela obra “O que é arte?” de Tolstói,
segundo a qual o artista deve fazer uma arte que coloca o povo no centro
[RUENRUTHAI 2000, p.93]. A arte que serve ao povo, segundo Jit, é “aquela
que desperta o povo para a realidade objetiva da vida, impulsionando uma
reviravolta em suas vidas” [THANAPOL 2011, p.56]. Jit costumava utilizar a
metáfora da lança e do lampião para se explicar. Dizia ele que a lança serviria
“para ferir os inimigos do povo – os inimigos que tornam suas vidas miseráveis”
enquanto a lâmpada ajuda a guiar o povo a melhores condições ao revelar as
causas da exploração social e como subvertê-las [THANAPOL 2011, p.56].
Segundo Jit, uma Literatura para Vida deveria seguir quatro princípios: “1)
revelar a feiura da vida real; 2) revelar a origem dessa feiura; 3) revelar as
maneiras de transformar essa feiura em beleza; 4) revelar exemplos da beleza
da vida vindoura” [RUENRUTHAI 2000, p.94]. Essa formulação em quatro
etapas parece ser uma clara referência às Quatro Nobres Verdades do
Budismo, numa reinterpretação marxista.
As Quatro Nobres Verdades se referem ao desejo de Buda de eliminar o
sofrimento mental e interromper o ciclo de renascimentos. De acordo com o
Buda, a felicidade é sempre temporária e impermanente (primeira verdade), e a
impermanência da felicidade é causada pelo incessante desejo da mente que
nunca pode ser saciado (segunda nobre verdade). O Buda, portanto, propõe
que seria possível encontrar um estado de bem-estar genuíno se o desejo
insaciável fosse eliminado (terceira nobre verdade) e o caminho budista seria o
97
tratamento para alcançar esse objetivo (quarta nobre verdade) [PAYUTTO
2019, pp.1455-57]. Essa técnica do Buda se assemelha ao procedimento de
um médico, onde primeiro verificam-se os sintomas (insatisfação e sofrimento),
depois propõe-se um diagnóstico (o desejo insaciável causa a doença da
mente), seguido da proposta de tratamento (eliminar a causa da doença
através do caminho budista). Jit aceita a abordagem filosófica pragmática do
budismo, mas desloca o foco da mente para a matéria. Ele propõe uma arte
popular que faça pela condição material do povo o que o budismo propõe ser
feito no plano mental/espiritual. O artista deve, portanto, tal qual o Buda e a
medicina, procurar dar um diagnóstico sobre a origem dos males e propor um
tratamento, um antídoto para eles.
Levando em conta essa proposta, Jit irá desferir uma crítica ferrenha aos temas
e pontos de vista predominantes na literatura siamesa/tailandesa até o começo
dos anos de 1930. Dominada por poemas aristocráticos, essa antiga literatura
foi acusada por Jit de excluir o povo. O gênero Rueang Chakchak Wongwong
(contos populares sobre personagens da realeza de um passado imaginário),
por exemplo, foi classificado por ele como um instrumento da elite governante
para fazer lavagem cerebral no povo e reforçar o sistema Sakdina (termo
tailandês geralmente traduzido como “feudalismo”). De acordo com Jit, esses
contos comumente retratavam a elite governante através de personagens
formosos e talentosos, ao mesmo tempo em que os pobres eram vilões ou
palhaços. Pessoas boas eram aquelas que eram leais à classe dominante
[THANAPOL 2011, p.57].
Apesar de suas críticas ao Sakdina e à sua arte, Jit acreditava que ele e seus
contemporâneos não estavam inventando a Arte pela Vida. Essa perspectiva
teria existido em todos os períodos da história, mesmo que fosse minoritária.
Havia, por exemplo, os poemas atribuídos ao poeta Si Prat no período
Ayuthaya, e a peça teatral Raden Lan Dai (ระเด่นลันได) de Phra Mahamontri no
período inicial de Bangkok. Essas obras refletiriam, segundo Jit, o espírito de
luta das pessoas comuns [THANAPOL 2011, p.57]. Em outras palavras, eram
obras onde os protagonistas eram plebeus que enfrentavam dilemas do povo e
venciam obstáculos que só afligiam os mais pobres. Jit, portanto, entende a
Arte pela Vida como um movimento ao mesmo tempo inovador e tradicional,
rompendo com o Sakdina, mas honrando obras artísticas do passado que não
estavam completamente pactuadas com ele.
As músicas de Jit e seu atual legado disputado
De todos os legados artísticos de Jit, as músicas são as mais populares.
Através de um processo semelhante ao que ocorreu com Che Guevara no
Ocidente, Jit foi lentamente incorporado ao discurso dominante [THIKAN 2012].
Hoje, suas populares canções são cantadas por diferentes grupos políticos
durante protestos e manifestações, inclusive por monarquistas, mesmo Jit
sendo contra essa forma de governo [PIYADA 2018, p.115]. Sendo uma
personalidade pop, Jit surge com diferentes faces em diferentes contextos.
Para estudantes de literatura, ele é um teórico da arte; para historiadores, fonte
98
de pesquisa sobre o período absolutista; para estudiosos da língua tailandesa,
um grande filologista. E para o público em geral, ele é o autor de músicas que
inspiram a lutar, seja qual for a sua ideologia política.
Muita gente não conhece com precisão a que se referem as letras de suas
canções. Seng Dao Heng Satha (แสงดาวแห่งศรทั ธา) ou “Luz Estelar da Fé”, por
exemplo, fala sobre a certeza de Jit que a prisão não seria capaz de deter o
brilho da estrela, numa referência à estrela usada como símbolo do movimento
comunista [ATIPHOB 2013, pp.184-187]. Na canção อาณาจักรแห่งความรัก (Reino
do Amor), por exemplo, fala não do amor romântico, mas do amor das classes
subalternizadas. O verso diz:
“o amor verdadeiro do coração se espalha pelo céu, tal qual um pássaro
voando. O reino do amor se estende ao povo (...) Nenhuma vida é inútil. Fique;
espere pelo brilhante futuro. Espalhe o amor, agora limitado, para os corações
daqueles que sofrem por toda a terra”.
Jit morreu jovem sem ver a Tailândia progredir para uma sociedade mais livre.
Até hoje governada total ou parcialmente por militares, o país asiático viu
diversos golpes de Estado ao longo das últimas décadas, mas viu também
muitos protestos e resistências a esses golpes. Jit continua inspirando esses
movimentos, a despeito das tentativas de diluírem seu histórico revolucionário
e radical. A maior prova disso vem não só da sua persistente influência
intelectual, mas do seu túmulo. Para os habitantes da vila onde ele foi morto, Jit
se tornou uma espécie de santo, recendo orações e preces de pessoas simples
que sonham com uma vida melhor [PIYADA 2018, p.116]. Décadas depois de
morto, Jit finalmente penetrou fundo, mesmo que de uma forma que ele não
previu, no coração do povo tailandês.
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(UFF) e professor do Departamento de Estudos Latino-Americanos da
Universidade Thammasat, na Tailândia.
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