2024
V.17
História da
Historiografia
International Journal of Theory
and History of Historiography
ISSN 1983-9928
Dossiê
Tradições, temporalidade e narrativa na
historiografia chinesa
Dossier | Traditions, temporality, and narrative in chinese historiography
D
Dossiê
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Novas Perspectivas para a Historiografia da
China Antiga
New Perspectives for the Historiography of Ancient China
André da Silva Bueno
orientalismo@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-4479-4407
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de História,
Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 17, e2104, p. 1-17, 2024. ISSN 1983-9928 DOI: https://doi.org/10.15848/hh.v17.2104
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Dossiê
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Resumo
O presente artigo tem por objetivo apresentar um panorama atualizado sobre as novas perspectivas historiográficas
acerca dos estudos da Antiguidade chinesa desenvolvidos na China continental. Para a consecução deste trabalho,
iremos apresentar uma breve trajetória histórica da historiografia chinesa, introduzindo rapidamente as tradições
pré-republicanas (1912); em seguida, analisaremos a historiografia moderna sob o influxo das teorias ocidentais e do
Marxismo-Maoísmo; por fim, analisaremos o projeto da escola da Crítica da Historiografia Chinesa Antiga (Zhongguo
Gudai Shixue Piping 中国古代史学 批评), e alguns dos seus desdobramentos no panorama intelectual da China atual.
Palavras-chave
China Antiga. Historiografia Chinesa. História da Historiografia.
Abstract
This article aims to present an updated overview of the new historiographical perspectives on Chinese antiquity studies
developed in mainland China. For the accomplishment of this work, we will present a brief historical trajectory of Chinese
historiography, quickly introducing the pre-republican traditions (1912); then we will analyze modern historiography
under the influence of Western theories and Marxism-Maoism; finally, we will analyze the project of the Critique of Ancient
Chinese Historiography (Zhongguo Gudai Shixue Piping 中国古代史学 批评) school, and some of its developments in
the intellectual panorama of current China.
Keywords
Ancient China. Chinese Historiography. Historiography History.
Hist. Historiogr., Ouro Preto, v. 17, e2104, p. 1-17, 2024. ISSN 1983-9928 DOI: https://doi.org/10.15848/hh.v17.2104
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Introdução
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onhecemos pouco, no Brasil, acerca das produções chinesas sobre sua própria
antiguidade. Contando uma história milenar, que remonta diretamente as suas
eras neolíticas, a China representa um desafio epistemológico para a historiografia
ocidental, possuindo uma tradição própria e original, e um conceitual teórico que reclama um
exame mais aprofundado. No presente texto, iremos discutir alguns aspectos da historiografia
chinesa mais recente sobre os estudos em Antiguidade, suas principais escolas e metodologias,
e ao final, iremos analisar a proposta teórica mais recente de Qu Lindong 瞿林东, a ‘Crítica da
Historiografia Chinesa antiga’ (Zhongguo Gudai Shixue Piping中国古代史学 批评). Nosso escopo
aqui não é fazer uma apresentação das cronologias dinásticas ou uma introdução à história
da China, mas nos deteremos diretamente no trabalho dos pesquisadores contemporâneos que
revisitaram as tradições historiográficas chinesas e a partir delas, propuseram novas formas de
leitura sobre o passado.
Para tanto, iremos realizar o seguinte percurso: inicialmente, abrimos o texto com
uma breve apresentação sobre as características gerais da historiografia chinesa tradicional;
em seguida, discutiremos as principais escolas do período republicano chinês até 1949, quando
a ascensão do Comunismo iria reorientar o trabalho da pesquisa histórica chinesa; por fim,
iremos apresentar a citada escola da ‘Critica da historiografia chinesa antiga’, uma das principais
tendências nos estudos sobre Antiguidade na China atual. Note-se que, para efeito de construção
desse trabalho, nos detivemos nas discussões historiográficas na China continental, tendo em
vista que é nesse espaço geográfico e acadêmico que as pesquisas sobre Antiguidade tem se
desenvolvido, graças às descobertas arqueológicas, textuais e patrimoniais.
Uma visão geral de historiografia tradicional chinesa pré-republicana
A produção historiográfica chinesa é seguramente uma das mais antigas do mundo,
e encontra poucos paralelos. Os chineses produziram ininterruptamente documentos históricos
organizados cronologicamente desde o terceiro milênio AEC, a partir de uma estrutura linguística
utilizada até os dias de hoje – por analogia, seria como se os egípcios ainda escrevessem em
hieróglifos, ou os iraquianos em cuneiformes. Essa produção teve profundas implicações no
imaginário chinês sobre o papel da História (Shi 史) em sua civilização. Os registros históricos
desenvolveram-se a partir de um fim político e cultural, servindo como alicerce textual da
noção de uma cultura sínica. Os chineses não se viam necessariamente articulados por uma
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Novas Perspectivas para a Historiografia da China Antiga
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religiosidade, mas pela noção de ancestralidade, que era fundamentada em Rituais e/ou práticas
culturais (Li礼) e pela continuidade histórica provida pela sucessão das dinastias e soberanos
antigos. Isso determinaria uma série de implicações conceituais que fariam com que a escrita
historiográfica chinesa ganhasse contornos próprios, promovendo debates efetivamente
milenares sobre o passado e as teorias de construção histórica. As conquistas chinesas nesse
campo foram extensas, e com fins introdutórios iremos brevemente apresentar algumas
considerações que possam nos guiar no entendimento dessa profícua tradição historiográfica.
Em torno do século 6 AEC, Confúcio (Kongzi 孔子,551-479 AEC) realizou a primeira
revisão historiográfica das produções chinesas, reeditando antigos textos clássicos, elaborando
uma gramatologia histórica na crônica das Primaveras e Outonos (Chunqiu 春秋) e definindo alguns
pressupostos metodológicos sobre os quais os historiadores trabalhariam. Fundamentalmente,
Confúcio propunha que a pesquisa histórica era uma reconstituição possível, mas nunca perfeita e
completa (muitas fontes já haviam se perdido em sua época), bem como a linguagem possuía um
papel importante na compreensão etimológica das palavras e ideias. Sendo a escrita chinesa um
conjunto Logográfico de signos, o estudo das palavras e do seu significado revelava importantes
mudanças históricas e conceituais, que permitiam inferir transformações nos padrões culturais de
uma época (Bueno, 2015a).
Com base nas evidências disponíveis, o historiador deveria então articular o registro
à reflexão imaginada, propondo um modelo. Pode-se dizer que essa conquista epistêmica
foi crucial para equilibrar a noção de uma ‘verdade histórica’ - um objetivo pretendido,
mas conscientemente pouco alcançável. Assumia-se que o valor do discurso se afirmava quanto
mais as evidências pudessem comprová-lo de maneira coerente (Bueno, 2013).
Autores como Hanfei韩非(280-233 AEC, in Bueno 2015b) e Liu Xiang刘向(77-6 AEC
in Bueno 2021) tiraram partido dessas premissas, mostrando que o uso do passado estava
intimamente ligado a projetos políticos de afirmação ou renovação cultural, e que por essa razão,
a história tornar-se-ia inevitavelmente um campo de disputas contínuo. Provavelmente foram
essas experiências que levaram Sima Qian司马迁(145-86 AEC) a reformular a escrita
historiográfica, delimitando temas e objetos com fins didáticos e éticos. Sua obra, o Shiji史记,
seria um marco na historiografia chinesa, orientando os campos de investigação, métodos e
teorias básicas de pesquisa. O sucesso póstumo da obra de Sima Qian estimulou o Estado imperial
chinês a criar uma agência especial, destinada à produção de histórias oficiais (Zhengshi 正史).
Essas histórias oficiais pretendiam impor uma narrativa oficial sobre os acontecimentos
passados, justificando as autoridades políticas do presente; contudo, elas estimularam o surgimento
de uma tradição crítica de oposição extremamente rica, criando um contraponto importante nas leituras
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históricas sobre a China. Essa literatura ‘alternativa’ (Bieshi 別史) realizou diversas experimentações
críticas, propondo interpretações diversas para problemas de análise documental, conceito de
tempo e espaço, desconstrução da ideia de ‘verdade’, uso da linguagem e da construção narrativa,
entre outras (Richter, 1987). Apesar disso, as narrativas históricas chinesas eram sinocentradas,
ou seja, tinham preocupações e/ou visões globais relativamente limitadas, e o impacto da
presença europeia depois do século 19 causou uma forte impressão na intelectualidade chinesa.
As narrativas sobre o passado, até então o alicerce da continuidade da civilização
chinesa, pareciam não mais adequar-se a ideia de sujeição internacional imposta pela presença
imperialista ocidental. Ademais, a última dinastia vigente, Qing 清 (1644-1912), tinha origem
estrangeira (Manchu), e impusera como doutrina oficial uma versão arcaizante das teorias da
‘Escola Acadêmica’ (Rujia 儒家, conhecida no Ocidente como ‘Confucionismo’), construindo uma
burocracia áulica, corrupta, conteudista, conservadora e reacionária, que era excelente em servir
ao Estado, mas péssima em estimular o dinamismo social e econômico do país. Isso fica claro nos
registros imperiais, cada vez mais laudatórios e alheios à realidade circundante, em uma crise
crescente que terminaria por derrubar Qing em 1912 (Bueno, 2022).
Nesse contexto, uma sensação de atraso cultural e tecnológico tomou conta dos
pensadores chineses, que se viram pressionados a repensar suas concepções históricas e
buscar explicações (ou mesmo, propor soluções) a esse contexto paradigmático. Pensadores
como Kang Youwei康有为(1858-1927) ainda tentaram revigorar o movimento acadêmico a
partir de reinterpretações atualizadas das ideias confucionistas, propondo novas concepções
universalizantes das tradições chinesas (Goossaert, 2021). Sua teoria da ‘Grande Comunidade’
(Datong 大同) pretendia, por exemplo, que as crises chinesas se tratavam de um período
de transição histórica antes da China voltar a inserir-se no contexto global e obter um novo
protagonismo – segundo Kang, essas ideias já haviam sido propostas por Confúcio desde a
Antiguidade, e precisavam ser recuperadas no século 20 como uma saída para os dilemas da
nova civilização chinesa (Bueno, 2011:36-39). As tensões da época acabaram por atropelar essa
proposta (assim como outras), e a China embarcaria na experiência republicana disposta a renovar
por completo sua tradição historiográfica.
As novas escolas historiográficas republicanas
Os movimentos de renovação cultural na China tomaram grande força após a
proclamação de república em 1912, e possuíam uma forte inspiração em teorias importadas
do Ocidente. O ‘Movimento da Nova Cultura’ (Xin Wenhua Yundong 新文化运动, ref. 1915) e
‘Movimento Quatro de Maio’ (Wusi Yundong 五四运动 ref. 1919) buscaram ambos modernizarem
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a intelectualidade chinesa a partir de conceitos importados como democracia, ciência, capitalismo
e comunismo, pragmatismo, entre outros. Muitas dessas ideias eram debatidas de forma
fragmentária, e filtradas numa perspectiva nativista, mas contribuíram decisivamente para uma
mudança nos paradigmas historiográficos tradicionais, formando escolas e grupos de pesquisa
que propuseram novas interpretações sobre o passado chinês.
Uma das escolas que obteve mais destaque nesse contexto foi a ‘Xin Shixue’ 新史学
(‘Nova Historiografia’, 1902), fundada por Liang Qichao 梁启超 (1873-1929), que pretendia rediscutir
o passado em novas perspectivas. Liang acreditava que uma inspiração mais segura para a leitura
da história antiga da China era a teoria do desenvolvimento histórico Hegeliano, conjugado ao uso
interdisciplinar de várias ciências combinadas para a construção de um cenário histórico mais
completo (e Liang antecipava aqui em décadas os avanços da Escola dos Annales), buscando
entender como os movimentos filosóficos e intelectuais orientaram a evolução das sociedades.
Assim, a história da China precisava, antes de tudo, ser ajustada a uma cronologia mundial sincrônica,
estabelecendo corretamente seus eventos e períodos históricos, e conectando-a a uma possível
origem Mesoriental. Ao invés de simplesmente contestar o passado, ou presumir a inviabilidade
da documentação chinesa, a Nova Historiografia desejava atrelar a escrita historiográfica chinesa
a padrões ocidentalizados, pautando-se, porém, em uma análise científica e filosófica de suas
fontes antigas. A releitura dos clássicos chineses, provida por uma grade de leitura historiográfica
europeia, poderia dar uma nova dimensão para a história chinesa (Liang, 2014).
Em sentido diverso desse, a escola ‘Yigupai’ 疑古派, que pode ser traduzida
aproximadamente como ‘Escola Cética sobre a Antiguidade’, seguiu uma tendência radicalmente
oposta. Fundada por Hu Shi胡适(1891-1962), Gu Jiegang 顾颉刚(1893-1980) e Fu Sinian
傅斯年 (1896-1950), e intimamente ligada ao Movimento da Nova Cultura, a Yigupai propunha
uma desconstrução total das narrativas tradicionais chinesas, defendendo uma ampla, extensa
e profunda crítica aos textos antigos. Para esse grupo, todos os documentos clássicos estavam
imersos em equívocos de datação, de verificação de evidências e de narrativas fantasiosas,
mas não históricas. De fato, Hu e Gu reinterpretavam as fontes chinesas através da metodologia
da crítica literária, verificando contradições, construções problemáticas, comparando passagens
textuais, e decretando possíveis falseabilidades na estrutura dos textos e da cronologia
(Hou, 1997; Chen, 1999). Na comparação textual, a Yigupai não se distanciava muito dos antigos
historiadores chineses, mas suas conclusões eram radicalmente diferentes. Em passagens
documentais coincidentes, onde os tradicionalistas entendiam a comprovação de um evento com
certa diversidade interpretativa por parte dos autores, a Yigupai entendia que esses pontos de
vista diferentes convergiam para improbabilidade da ocorrência – o que eles entendiam, segundo
um critério de ‘verdade histórica’ Rankeano, ser o indício de uma falsificação. Assim, eventos
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históricos, personagens e passagens inteiras foram sistematicamente debatidos e refutados,
postulando uma possível ininteligibilidade sobre grande parte do passado e, principalmente,
sobre a Antiguidade. Em sua coleção de sete volumes intitulada Gushi Bian 古史辨 (‘Debates
sobre História Antiga’, 1926-1941), Gu organizou uma desconstrução geral da história antiga
chinesa, desde suas narrativas e mitos fundadores. Em seu ponto de vista – e isso pode parecer
paradoxal – foi o falseamento sobre o passado que levara ao enfraquecimento do sentimento
de Sinidade, e somente uma revisão completa da história poderia efetivamente contribuir para a
construção de um novo sentimento nacional chinês (Lin, 2005).
Curiosamente, ambas as escolas também defendiam o uso de uma nova ciência
que acabaria sendo responsável pela sua derrocada; a Arqueologia. Os chineses haviam
desenvolvido formas básicas de investigação sobre a cultura material, mas que respondiam em
grande parte à arte e ao colecionismo, não se descolando da textualidade. A arqueologia, feita a
maneira ocidental, representava um novo meio de conhecimento sobre o passado que poderia
justificar as posições defendidas tanto pela ‘Xin Shixue’ e pela ‘Yigupai’, formando um novo
corpo de evidências sobre o passado que servisse de alternativa a literatura clássica. Em 1921,
o pesquisador sueco Johan Gunnar Andersson (1874-1960) realizou uma série de escavações
no país, sendo responsável pela descoberta da cultura neolítica de Yangshao 仰韶 (1921) e
iniciando o treinamento de acadêmicos chineses nas técnicas arqueológicas mais recentes.
Ao mesmo tempo, Liji李济(1896-1979) realizava sua formação em arqueologia nos Estados
Unidos, retornando alguns anos depois para difundir os novos conhecimentos e estabelecer
missões arqueológicas pelo país (Clayton, 2008). Em 1929, Li iria descobrir vários sítios
ligados à dinastia Shang 商 (1600-1046 AEC), e o trabalho combinado desses especialistas iria
comprovar que muitas afirmações presentes nos textos clássicos estavam corretas. A cultura
material revelava gradualmente que os antigos documentos não eram versões fantasiosas
sobre episódios históricos inexistentes, ao contrário: as antigas dinastias começavam a emergir
do chão, e seus personagens apareciam com os nomes gravados nos mais diversos materiais.
Os textos, portanto, podiam não se mostrar totalmente corretos, mas estavam em grande
parte ligados a episódios reais. Do mesmo modo, a cultura chinesa começava a dar sinais de
originalidade, o que questionava diretamente as hipóteses que conectavam o surgimento da
China ao mundo mesopotâmico.
Com a difusão da arqueologia, a escola ‘Yigupai’ perdeu muito de sua força, e na década
de 1940 era considerada uma tendência já superada (Zhang, 2018); quanto às ideias de Liang
Qichao, elas continuaram a ser aproveitadas nas tentativas de adequar a cronologia chinesa a
uma história global, mas iriam ser em grande medida desvalorizadas frente a adoção de um novo
modelo historiográfico baseado no Marxismo.
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Novas Perspectivas para a Historiografia da China Antiga
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Novo modelo historiográfico marxista
Depois de 1949, a China continental tornou-se uma república de orientação comunista,
o que teve implicações diretas na produção historiográfica. Além da adoção das teorias marxistas,
um exacerbado tom nacionalista foi impresso na escrita das obras históricas, cumprindo a
agenda política de um novo projeto cultural para o país. A revisão do passado – realizada em
julgamentos históricos que readequavam os personagens em função das causas modernas –
determinou uma série de novas interpretações e modelos sobre o passado. Um dos fundadores
da Yigupai, Gu Jiegang, acabaria sendo preso por refutar o passado de forma generalizada, o que
mostra o nível de politização que envolvia a academia.
As experiências com as teorias ocidentais haviam feito os pensadores chineses
desenvolverem uma relação complexa com os estudos da Antiguidade. Se por um lado eles
tentavam atender as demandas de uma ciência histórica nos moldes marxistas, por outro,
se sentiam pouco confortáveis em abrir mão da herança que brotava abundantemente do chão
graças aos esforços dos arqueólogos. Depois da década de 1950, a China seria palco de algumas
das descobertas mais espetaculares do século 20. Vários sítios pré-históricos, que comprovavam
a originalidade da cultura chinesa, foram desencavados ao longo desse período, como
Longshan龙山 (1950), Banpo 半坡 (1953), Erlitou二里头 (1959) e a capital da dinastia Xia 夏
(em Yanshi 偃师, 1959). Após um breve interregno causado pelos anos mais conflituosos da
‘Revolução Cultural’ (Wenhua Dageming 文化大革命, entre 1966-1971), as explorações foram
retomadas, com toda uma cultura material inédita sendo revelada. É o caso dos textos e múmias
encontradas em Mawangdui 马王堆 (1972-74), e a descoberta sensacional, em 1974, da tumba
de Qinshi Huang 秦始皇, imperador da dinastia Qin 秦 (221-206 AEC), monumento até então
considerado uma lenda – em grande parte, por conta da descrição de Sima Qian, que aos olhos
modernos parecia exagerada ou fantasiosa. O mausoléu megalômano indicava, mais uma vez,
que os textos históricos chineses não poderiam de forma alguma ser menosprezados.
Situações como essa levaram os intelectuais chineses a desenvolverem, gradualmente,
um conjunto de teorias próprias, que equilibravam as ideias marxistas com as especificidades
da cultura chinesa, aliadas a interpretações e lavra própria de Mao Zedong sobre o comunismo
e história. A tendência dessas novas elaborações era de tentar adequar o desenvolvimento
histórico da China as fases descritas por Marx, o que gerava certos conflitos epistêmicos.
Essa civilização não conhecera a escravidão em larga escala, como no mundo mediterrânico;
por outro lado, os chineses vivenciaram um sistema político, social e econômico muito similar ao
que foi classificado de ‘Feudalismo’ (em chinês, Fengjian 封建) no período da dinastia Zhou 周
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(1045-221 AEC), ou seja, muito antes da Europa. Além disso, com explicar o desenvolvimento
econômico pré-industrial (característico da fase mercantilista) numa sociedade imperial?
A saída encontrada foi criar interpretações próprias, que usavam os conceitos marxistas
num lógica particular. De modo a justificar o atraso tecnológico chinês frente o mundo no
século 19 e 20, os pensadores chineses defenderam que desde a Antiguidade existiria na China
um ‘Feudalismo escravagista imperial’, ou seja, que a sociedade chinesa vivenciara um regime
imperial dominado por uma burocracia feudalizada e que mantinha a sociedade em um regime
de escravidão não declarado (os ‘súditos’ não seriam servos, mas ‘escravos’ mascarados).
Para um pesquisador marxista ocidental mais conservador, essas afirmações causariam espanto;
mas para os chineses, elas pareciam responder ao malabarismo teórico necessário a inserir a
China na história do mundo marxista. Essas ideias foram exaustivamente discutidas por grandes
nomes da intelectualidade chinesa, como Guo Moruo 郭沫若 (1892-1972) e Bai Shouyi 白寿彝
(1909-2000), e promovidas dentro de coleções históricas oficiais, com destaque para a História
Geral da China (Zhongguo Tongshi 中国通史, 12 vols.), cuja versão definitiva foi publicada em
1999 e congregava cinquenta anos de pesquisas e remodelações teóricas.
Contudo, após a morte de Mao Zedong em 1976, e o período de longas e graduais
reformas empreendidas ao longo dos anos de 1980 e 1990, as orientações estritamente
marxistas começaram a ser questionadas, buscando-se alternativas para uma escrita histórica
menos ideológica (ou mais afastada das orientações de Estado) (Hermman, 1991; Bueno, 2016).
Trabalhos como o de Feng Tianyu 冯天瑜 (2014) desmontaram o construto conceitual do
‘Feudalismo escravagista imperial’, mostrando uma nova liberdade acadêmica para criticar as
publicações oficiais. Por outro lado, António Carvalho (2017) apontou, acertadamente, que se a
abertura de novas perspectivas de estudo permitiu o flerte com diversas teorias (novas ou antigas),
por outro, deixou um espaço vago, que coloca em questão o próprio ofício do historiador na China.
Afinal, qual será a função do escritor de história nessa nova sociedade? Qual seu papel político
e intelectual? Embora Carvalho detenha-se em discussões sobre a historiografia moderna,
o problema estende-se as produções sobre a Antiguidade chinesa. Que teorias, que métodos usar
para reconstruir o passado chinês? A partir de qual agenda (e há uma?) se devem nortear as
construções historiográficas sobre o passado - o que pode implicar em movimentos tradicionalistas
ou combinados? A seguir, veremos algumas respostas a esse problema.
A nova escola da ‘Crítica da Historiografia Chinesa Antiga’
Ao longo dos anos de 1980-1990, uma série de estudos tentou dar conta do vácuo
teórico-metodológico em relação à historiografia sobre a China antiga. Os trabalhos de
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Zhu Jieqin 朱杰勤 (1980), Li Zongtong 李宗侗 (1984), Gao Guokang 高国抗 (1984),
Tao Maobing 陶懋炳 (1987) e Bai Yun 白云 (1998) destacaram-se como obras de renovação
na análise crítica sobre o tema, mas basicamente atendiam a um mesmo roteiro; faziam uma
apresentação da escrita histórica desde a Antiguidade, seus principais autores e ideias,
e encerravam suas apresentações na dinastia Qing (variando entre 1840, com a Guerra do Ópio,
ou 1912, de acordo com cada um dos autores). Suas discussões acerca dos conceitos chineses
tentavam eventualmente relacioná-los com congêneres ocidentais, mas propunham uma
originalidade por parte dos autores clássicos, na perspectiva da formação de uma tradição chinesa
própria; por fim, variavam na sua relação com os discursos marxistas chineses, ressaltando
pontualmente questões como a importância da participação popular na construção da história,
a atitude crítica de certos autores da Antiguidade e a dimensão interrelacional passado-presente
que conectava a concepção de Estado-Nação com a Etno-civilização chinesa. A par do trabalho
de Baiyun, considerado um pioneiro em uma ‘crítica sobre a historiografia’ com base em leituras
textuais comparativas - empregando aí um termo que se tornará importante, como veremos
adiante (Wang e Li, 2013) - de fato, todos os autores da época tendiam a considerar que ideias
fundamentais do marxismo integravam o escopo da cultura chinesa, e Liu Danian 刘大年
(2000:429) chegou a afirmar que ‘o pensamento materialista dialético sempre foi bem conhecido,
e naturalmente, sua forma original é uma tradição chinesa’. Todavia, essa hibridização conceitual,
se permitia um uso mais amplo das teorias, não respondia ainda a uma reformulação sobre
os meios de investigação sobre o passado, e a Antiguidade continuava a constituir um espaço
complexo de investigação e formação de discurso.
Nesse ínterim, em meados dos anos de 1990, surge uma das figuras centrais na revolução
dos estudos sobre Antiguidade chinesa, o professor Qu Lindong 瞿林东 – hoje, a principal
referência teórica e metodológica nesse campo. Qu foi um dos mais destacados alunos de
Bai Shouyi (Qu, 2012), estando próximo, constantemente, das discussões teóricas que norteavam
o desenvolvimento da historiografia chinesa. Quando se transferiu para a Universidade Normal de
Beijing, encontrou ali um espaço propício ao desenvolvimento de suas pesquisas nesse campo.
A universidade já contava com uma disciplina específica, ‘Estudos sobre História da China Antiga’
(Zhongguo Gudai Shixue 中国古代史学), que congregava muitos dos pesquisadores envolvidos
nas discussões sobre o futuro da historiografia chinesa (Zhao, Chen e Wang, 2002). Qu encontrou
ali um ambiente profícuo para o desenvolvimento de sua visão historiográfica própria, que ele
chamaria de ‘Crítica da Historiografia Chinesa antiga’ (Zhongguo Gudai Shixue Piping中国古
代史学批评), um projeto para articular, de forma inovadora, a leitura sobre o passado chinês
com um método de interpretação que conjugasse os elementos da tradição com uma releitura
conceitualmente contemporânea da história da China. Em uma série de trabalhos, Qu Lindong
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iria explanar sobre sua proposta, que culminaria em 2020 com o lançamento da coleção de sete
volumes História da crítica historiográfica chinesa antiga (Zhongguo Gudai Shixue Pipingshi 中国
古代史学批评史) uma obra marcante nos estudos sobre a China imperial (Qu, 2020).
O centro teórico da proposta de Qu está no uso do termo ‘Crítica da Historiografia’
(Shixue Piping); em sua visão, os conceitos historiográficos são produzidos de acordo
com as posições e projetos intelectuais de uma época, e são visto no presente como parte
de uma estrutura de desenvolvimento do pensamento histórico. Somente uma avaliação
crítica dos materiais historiográficos, de uma perspectiva teórica e comparada, poderia então
ajudar a esclarecer os possíveis modelos explicativos sobre a Antiguidade. Por essa razão,
todo o olhar sobre o passado é um projeção advinda do momento atual; mas no caso chinês,
ela inevitavelmente incorpora as camadas de pensamento criadas e recriada no âmbito
da cultura tradicional, o que faz com que haja um jogo de projeção passado-presente nas
elaborações teóricas atuais.
Para resolver esse dilema, Qu propôs que elementos tradicionais na história chinesa
(como é o caso, por exemplo, do arranjo cronológico dinástico), deveriam ser criticados a luz de uma
reinterpretação crítica das próprias expressões da historiografia chinesa antiga. Ou seja: as fases
históricas devem ser rearrumadas de acordo com os escritos historiográficos, que produzem visões
alternativas as histórias oficiais, revelando suas descontinuidades e tensões. Ao mesmo tempo,
admite-se que as versões produzidas sobre eventos ou personagens, mesmo sendo construtos
históricos, passam a ser as narrativas formadoras do imaginário a partir de um determinado
momento histórico, devendo ser consideradas como válidas. Nesse sentido, a colaboração da
arqueologia e da etimologia são cruciais para mostrar que a articulação dos discursos e das
narrativas se dá em um plano de escolhas e programas culturais, cujas orientações terminam por
definir as escolhas feitas no passado. Um exemplo disso é a descoberta, em Mawangdui 馬王堆,
de uma versão do texto de Laozi 老子(séc. 6 AEC) em que a ordem dos capítulos apresenta-se
inversa, e o livro se chamava Dedaojing 德道經, e não Daodejing 道德經 como ficou classicamente
conhecido (Henricks, 1992). No escopo teórico de Qu, a descoberta do texto é importantíssima
para mostrar a diversidade de pensamento no séc. 1 EC durante o período Han 漢; mas não é
relevante tendo em vista que a formação do cânone clássico daoísta definiu a forma do livro
como Daodejing, tornando-a a versão dominante, e por conseguinte, formadora dessa escola de
pensamento. Esse trabalho foi feito por críticos e pensadores do passado, e a partir dessa leitura
que foram construídas nossas interpretações; consequentemente, tentar contestar a valia de uma
tradição em função de suas variantes é algo que exigiria extrema cautela, podendo caracterizar o
desejo de projetar, sobre o passado, as pretensões políticas e intelectuais do presente.
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Segundo Qu Lindong (2011:45), a compreensão da dinâmica dessas relações
estruturais históricas, que determina as possibilidades de interpretar os conceitos e ideias de
uma época, está organizada em um conjunto de nove tópicos principais, presentes na literatura
historiográfica chinesa desde a época de Sima Qian, e desenvolvidos gradualmente por outros
autores ao longo do tempo, que seriam;
1) A relação entre o Céu e os seres (ou, a relação da busca harmônica entre Ecologia
e Humanidade);
2) A relação Antigo-Moderno, buscando entender as dicotomias na relação
intertemporal dos contextos e da história em camadas (e como desdobramento,
a percepção do que pode ser anacronismo ou não);
3) O papel do Estado na produção histórica, como um gerenciador de produções e
ideias oficiais, e coo norte para a crítica histórica alternativa;
4) A Etnohistória e conceito de nação, ou, de como a historiografia chinesa cumpriu
a ideia de construir a noção de civilização chinesa a partir da noção étnica e de
formação de governo imperial;
5) A estrutura monárquica burocrática como forma de governança política e centro da
organização social e econômica da China;
6) Controle do calendário e do ritmo da vida; administração e manipulação do tempo e
da ordenação da vida social;
7) Aprofundamento no ambiente geográfico e social, que concebem as dimensões de
uma sinosfera de influência;
8) Teoria da regulação cíclica do poder, através da relação yin-yang (a existência
do sistema político-social acompanha o ritmo natural do mundo da mutação,
e é concebido pela alternância de movimento de ascensão e decadência dos
corpos políticos, expressos pelas dinastias);
9) Uso pedagógico, didático e ético dos materiais históricos; utilização dos conteúdos
(eventos, personagens, tratados) como modelos exemplares do passado.
A partir desses nove tópicos (ou ‘grandes áreas’ da história antiga), a historiografia chinesa
teria se desenvolvido investindo alternadamente na exploração de cada um desses campos,
reelaborando-as conceitualmente, em épocas e cenários diversos. Assim, historiadores como
Liu Zhiji刘知几(661-721) trabalharam na escrita histórica, pensando nas técnicas de verificação
de dados e redação conceitual; já Sima Guang 司马光 (1019-1086) propôs a existência de
descontinuidades temporais, geográficas e sociais na formação da civilização chinesa, expondo
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que os ciclos dinásticos das histórias-modelo representavam versões de discursos políticos,
mas não congregavam efetivamente os materiais disponíveis nas fontes. Esses dois autores
são apenas exemplos de uma constelação de pesquisadores históricos que a tradição chinesa
conheceu, que desenvolveram aspectos conceituais de um ou mais desses tópicos, e que compõe
um quadro profícuo de conteúdos para a compreensão da Antiguidade (Qu, 2005).
O lançamento da coleção História da crítica historiográfica chinesa antiga 中国古代
史学批评史, organizada e dirigida por Qu, concretizou sua proposta como um influente norte
teórico na academia. Envolvendo vários autores na exploração da ‘crítica da historiografia
chinesa antiga’, Qu apresenta um extenso prefácio, no primeiro volume, que sintetiza esses
conceitos, e norteia a crítica sobre o desenvolvimento histórico da historiografia chinesa.
Um dos elementos fundamentais nesses discursos é, novamente, a retomada da concepção de
autenticidade da tradição chinesa, e de como ela deve ser contraposta as teorias e metodologias
ocidentais como uma forma válida de escrita histórica. Esse trabalho tem servido continuamente
como uma nova e poderosa influência sobre as produções historiográficas atuais, constituindo
uma baliza para formação dos estudos sobre a Antiguidade. A coleção tem servido como uma
referência teórica e metodológica sobre o estudo da Antiguidade, e foi distribuída pelo governo
para uma ampla rede universitária dentro do país.
Os desdobramentos da proposta de Qu Lindong têm sido percebidos sensivelmente nas
novas produções sobre Antiguidade Chinesa (Li, 2021), sendo base tanto para a escrita de livros
didáticos como para discussões teóricas mais elaboradas, que dialogam diretamente com a relação
entre conceitos e os topoi centrais da escrita historiográfica do passado. Novamente, dentro de um
quadro bastante extenso de produções multifacetadas, podemos citar apenas alguns exemplos
de pesquisas recentes que estão diretamente ligadas às ideias da ‘crítica da historiografia chinesa
antiga’, e que expressam a renovação das produções históricas sobre Antiguidade.
Já em 2012, Yan Jing 阎静 rediscutia o papel dos historiadores na construção de uma
nova escrita sobre o passado, afirmando que nesse novo contexto teórico-metodológico, haveria
inicialmente ‘três caminhos para o desenvolvimento da crítica histórica: a compreensão da escrita e
das responsabilidades do historiador, a função social da historiografia e a compreensão da relação
entre o desenvolvimento da historiografia e as mudanças dos tempos’ (2012:64). Embora básica,
essa definição tentava descolar a atuação do historiador como agente do Estado ou formador
ideológico, empregando a ideia da ‘crítica’ (Piping) como uma forma instrumental válida para
o desenvolvimento da pesquisa. Yan retomaria o tema em 2021, explorando as fontes da crítica
historiográfica chinesa antiga ao participar no primeiro volume da coleção organizada por Qu Lindong.
Lei Jiali 雷家骥 (2018) produziu uma síntese da história da historiografia chinesa antiga
baseada nos princípios da escola de Qu, lançado seu volume dois anos antes da coleção organizada
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pelo autor; já Liu Kaijun 刘开军 publicou um bem recebido estudo sobre ‘A Definição e Implicações
dos Conceitos da Historiografia Chinesa Antiga e a Construção do Discurso Historiográfico’ 中国
古代史学概念的界定, 意蕴及其与史学话语的建构 (2020), no qual esclarecia como os autores
antigos buscavam precisar seus conceitos por quatro meios básicos, que seriam a definição
direta, o contorno por características gerais, uso de exemplos e construção de analogias, sendo
o aparecimento e a aplicação desses mesmos conceitos inseparáveis do contexto histórico de
produção e da função intelectual e social dos seus elaboradores. No caso chinês, isso representa
uma questão bastante complexa e específica, que diz respeito não somente a como os conceitos
surgiram, mas se modificaram (ou não) ao longo do processo de transformações históricas e
culturais da civilização.
Noutro sentido, Zhu Luchuan 朱露川 (2020) propôs uma análise histórica de como foi
o desenvolvimento estilístico, etimológico e estrutural das narrativas (Xushi 叙事), e de como
elas foram empregadas na elaboração dos sistemas discursivos historiográficos, revelando suas
intencionalidades e agendas; e Wang Gaoxin 汪高鑫 e Wang Zengxiang 汪增相 (2021) realizaram
um destacado estudo sobre o problema da busca da ‘verdade’ (Zheli 真理) na Antiguidade chinesa,
revelando as tensões entre a confiança conservadora nos registros históricos e a consciência
intelectual crítica, que compreendia como tais escritos foram produzidos a partir de modelos ou
propostas sobre o passado, colocando em questão a própria questão da veracidade como uma
consideração interpretativa.
Estes exemplos mostram que as propostas da ‘Crítica da historiografia chinesa antiga’
tem se disseminado rápida e profundamente na academia chinesa, representando um novo
paradigma para a condução dos estudos sobre o passado. Qu Lindong continua ativo, produzindo
novos escritos, conduzindo pesquisas e congregando estudiosos que tornam essa escola a
principal tendência nos estudos sobre Antiguidade chinesa, e que representa tanto um desafio
em termos epistêmicos quanto valoriza a herança tradicional chinesa, recolocando-a como uma
produção fundamental na historia da historiografia mundial.
Conclusões
A análise das escolas historiográficas sobre a China antiga aqui abordadas nos revela
a complexidade e os desafios enfrentados pela intelectualidade chinesa frente às mudanças
políticas e culturais de seu país, notadamente nos séculos 20 e 21. Tendo vivenciado um
conturbado contexto de transformações, nas quais as teorias estrangeiras desempenharam um
importante papel frente aos estudos tradicionais, os pensadores chineses buscaram proporcionar
respostas sobre seu próprio passado contemplando sua inserção em uma nova perspectiva
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cultural e científica global. Se nos primeiros momentos a crítica historiográfica marcou a revisão
geral sobre as tradições, analisando-as por meio das teorias histórico-filosóficas hegelianas na
‘Nova Historiografia’ de Liang Qichao, ou investindo em uma desconstrução radical como na
‘Escola Cética sobre a Antiguidade’, o advento do Marxismo (e posteriormente, do Maoísmo)
imprimiu novas possibilidades interpretativas sobre o passado chinês, gradualmente recuperando
suas heranças históricas, resignificando seu patrimônio intelectual autóctone e por fim,
reelaborando as narrativas historiográficas chinesas á luz de novas teorias que pretendem
conciliar saberes tradicionais e ideias importadas. Nesse sentido, o surgimento de movimentos
como a ‘Crítica da Historiografia chinesa antiga’ representa uma importante tendência intelectual
no estudo da historiografia e da Antiguidade chinesa, ressignificando suas narrativas fundadoras
e sua metodologia de escrita e produção a partir de novas concepções, que conjugam elementos
e ideias do pensamento tradicional com ferramentas e concepções mais recentes das ciências
históricas mundiais. Tais considerações permitem vislumbrar um quadro de produção histórica
original, que pode contribuir significativamente para ampliar nossas perspectivas sobre o campo
dos estudos historiográficos.
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INFORMAÇÕES ADICIONAIS
Biografia profissional:
André Bueno é Prof. Adj. de História Oriental da UERJ; membro e diretor da seção brasileira da Alaada - Associação Latino
Americana de Estudos Asiáticos; membro da Rede Iberoamericana de Sinologia [Ribsi]; membro da Rede Brasileira de Sinologia
[RBChina]; membro do International Research Group for Culture and Dialogue IRGCD]; membro da International Confucian
Association; Pesquisador da Biblioteca Nacional [2018-2019]; membro da Red Sinolatina [Costa Rica] e da Red ALC-China
[México], e diretor do Projeto Orientalismo [UERJ].
Endereço para correspondência:
UERJ- Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier 524 9º andar sala 9029A Campus Maracanã,
Rio de Janeiro, RJ, CEP 20550-013
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Financiamento:
Não se aplica.
Conflito de interesse:
Nenhum conflito de interesse foi declarado.
Aprovação no comitê de ética:
Não se aplica.
Modalidade de avaliação
Duplo-cega por pares.
Preprint
O artigo não é um preprint.
Disponibilidade de dados de pesquisa e outros materiais
Os conteúdos subjacentes ao artigo estão nele contidos.
Editores responsáveis
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Histórico de avaliação
Data de submissão: 27 de março de 2023
Data de alteração: 07 de agosto de 2023
Data de aprovação: 25 de dezembro de 2023
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