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Resumo: O presente artigo procura analisar o Direito do Comércio Internacional, as suas fontes e origem no contexto da antiga e nova concepção de Lex Mercatoria. O artigo situa a Lex Mercatoria como um sistema jurídico autónomo, transnacional e autorreferencial e explora as diversas manifestações da Lex Mercatoria no âmbito do Direito Comercial Internacional em diversos ramos do Direito como o Direito da Informática, Direito dos Petróleos e o Direito Desportivo entre outros exemplos. Palavras-chave: Lex Mercatoria, Direito do Comércio Internacional, Contratos Internacionais, Convenção de Viena sobre Contratos Internacionais, Lex Electronica, Lex Petrolea, Lex Sportiva. Abstract: This article analyses International Commercial Law, its sources and origin in the context of the old and the new conception of Lex Mercatoria. This article places Lex Mercatoria as an autonomous, transnational and self-referential legal system and explores the different manifestations of Lex Mercatoria in the context of International Commercial Law in different areas of Law such as Information Technology Law (Lex Electronica), Oil and Gas Law (Lex Petrolea) and Sports Law (Lex Sportiva) among other examples. Keywords: Lex Mercatoria, International Commercial (Business) Law, International Contracts, Vienna Convention on the International Sales of Goods, Lex Electronica, Lex Petrolea and Lex Sportiva

Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria1 International Business Law: The Resurgence of the new Lex Mercatoria FLÁVIO INOCÊNCIO 2 Resumo: O presente artigo procura analisar o Direito do Comércio Internacional, as suas fontes e origem no contexto da antiga e nova concepção de Lex Mercatoria. O artigo situa a Lex Mercatoria como um sistema jurídico autónomo, transnacional e autorreferencial e explora as diversas manifestações da Lex Mercatoria no âmbito do Direito Comercial Internacional em diversos ramos do Direito como o Direito da Informática, Direito dos Petróleos e o Direito Desportivo entre outros exemplos. Palavras-chave: Lex Mercatoria, Direito do Comércio Internacional, Contratos Internacionais, Convenção de Viena sobre Contratos Internacionais, Lex Electronica, Lex Petrolea, Lex Sportiva. Abstract: This article analyses International Commercial Law, its sources and origin in the context of the old and the new conception of Lex Mercatoria. This article places Lex Mercatoria as an autonomous, transnational and self-referential legal system and explores the different manifestations of Lex Mercatoria in the context of International Commercial Law in different areas of Law such as Information Technology Law (Lex Electronica), Oil and Gas Law (Lex Petrolea) and Sports Law (Lex Sportiva) among other examples. Entregue: 4.3.2017; aprovado: 5.6.2017. Professor na Universidade de Coventry e Agostinho Neto e investigador do CEDIS. Este texto serviu de apoio para os meus alunos de Direito do Comércio Internacional na Universidade Metodista de Angola (UMA) nos anos lectivos de 2013 e 2014. A eles, obrigado por tudo. O texto foi preparado com base na ortografia vigente em Angola. 1 2 ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 50 | Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria Keywords: Lex Mercatoria, International Commercial (Business) Law, International Contracts, Vienna Convention on the International Sales of Goods, Lex Electronica, Lex Petrolea and Lex Sportiva. 1. Introdução O Direito do Comércio Internacional (DCI) não pode ser confundido com o Direito Internacional Económico que regula o Direito Internacional Público relativo à aos mecanismos de integração regional e integração económica multilateral como a Organização Mundial do Comércio (OMC). Também não deve ser confundido com o Direito do Internacional Privado, cujo objectivo é a determinar as normas de conflito aplicáveis à uma situação jurídica internacional. O Direito do Comércio Internacional enquanto disciplina estuda as normas, princípios, práticas, usos e costumes do Direito Comercial nas relações jurídicas entre pessoas colectivas ou singulares quando haja um elemento de conexão internacional3. O Direito do Comércio Internacional é assim o estudo da nova Lex Mercatoria (Ius Mercatorum)4 entendida como um “Direito Mercantil” de natureza autónoma aplicável à situações jurídicas plurilocalizadas. Para Lima Pinheiro, a Lex Mercatoria “é todo o Direito material especial do comércio internacional dotado de um certo grau de uniformidade internacional ou uma ordem jurídica autónoma do comércio internacional caracterizada por certos processos específicos de formação das suas normas”5 3 A conexão internacional deve ser entendida no conceito de “situação internacional” que é “a relação que, por alguns dos seus elementos ou por algumas das suas circunstâncias, se encontra em contacto com mais do que uma ordem jurídica e que, por isso mesmo, se desenvolve dentro do âmbito de eficácia possível de várias ordens jurídicas”, Maria Helena Brito, A Representação nos Contratos Internacionais, Coimbra: Almedina, 1999, p. 581 4 António Menezes Cordeiro, Direito Comercial, Coimbra: Almedina, 2012, p. 185-186. A Lex Mercatoria pode ser traduzida simplesmente por Direito Comercial ou Direito Mercantil. 5 Luís de Lima Pinheiro, Contrato de Empreendimento Comum (Joint Venture) em Direito Internacional Privado, Coimbra: Almedina, 2003, p.854. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 Flávio Inocêncio | 51 A emergência do Direito do Comércio Internacional como um verdadeiro Direito autónomo constitui a concretização da “face privada” dos actores privados no Comércio Internacional no contexto da Globalização por oposição à “face pública” do Direito Internacional Económico que trata das relações económicas entre os Estados e da liberalização do comércio. 1.1. Fontes do Direito do Comércio Internacional O Direito do Comércio Internacional enquanto Direito Transnacional possui várias fontes que derivam da sua autonomia enquanto Direito não Estadual, frequentemente não sendo vinculativo para as Partes mas tendo a natureza de “soft law” 6. As fontes do Direito do Comércio Internacional têm uma natureza diversa e heterogénea7 e podemos identificar uma lista não exaustiva8 de fontes não estaduais, contendo: 6 O conceito de “Soft Law” tem a sua origem no Direito Internacional Público e designam um “conjunto de regras e normas jurídicas sem carácter vinculativo” como as Resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas, Andrew T. Guzman and Timothy L. Meyer, International Soft Law, Journal of Legal Analysis, Vol. 2, N,1, 2010. 7 Para uma lista da das diversas fontes da Lex Mercatoria, ver, JH Dalhuisen, Legal Orders and their Manifestation: The Operation of the International Commercial and Financial Legal Order and its Lex Mercatoria, Berkeley Journal of International Law, Vol.24, Iss.4, 2006, p.180. Ver também, Lima Pinheiro, op. cit., p. 860. 8 Mustilll apresenta a seguinte lista das fontes da Lex Mercatoria: a) Public International Law. b) Uniform Laws c) The General Principles of Law d) The Rules of International Organisations. e) Customs and usages f) Standard Form Contracts g) Reporting of Arbitral Awards Michael Mustill, The New Lex Mercatoria: The First Twenty-Five Years, Arbitration International, 1986, p. 109. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 52 | Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria 1) Princípios Gerais do Direito9 no Comércio Internacional, como os Princípios do Direito dos Contratos Comerciais Internacionais da UNIDROIT10. 2) Modelos Contratuais (Contratos-tipo), Cláusulas Contratuais Gerais como os INCOTERMS11 de organizações como a Câmara de Comércio Internacional12 3) Leis Modelo como a Lei Modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional13 (CNUDI) relativa à arbitragem internacional. 4) Usos, Práticas e Costumes no Comércio Internacional. 5) Tratados Internacionais que regulam contratos como a Convenção de Viena das Nações Unidas para o Contrato de Compra e Venda Internacional de 198014. 6) Jurisprudência Arbitral, considerando a importância das decisões de Tribunais Arbitrais Internacionais na Lex Mercatoria15. Os Princípios Gerais do Direito fazem parte da nova Lex Mercatoria como a Pacta Sunt Servanda, o Princípio da Boa Fé (Bona Fides), Rebus Sic Stantibus, entre outros. 10 “Principles for International Commercial Contracts” (“PICC”) do Instituto Internacional para Unificação do Direito Privado (“International Institute for the Unification of Private Law”). Estes princípios têm uma natureza não vinculativa e constituem uma codificação das regras, práticas e usos no Direito do Comércio Internacional e são amplamente utilizados nas arbitragens internacionais, Anna Veneziano, The Soft Law Approach to Unification of International Commercial Contract Law: Future Perspectives in Light’s of UNIDROIT’s Experience, Villanova Law Review, Vol. 58, 2013, p.525. 11 Os Incoterms são cláusulas contratuais gerais desenvolvidas pela Câmara de Comércio Internacional e amplamente utilizadas em contratos de compra e venda internacional . 12 International Chamber of Commerce (ICC). 13 United Nations Commission on International Trade – UNCITRAL. 14 Vienna Convention on International Sale of Goods – CISG promovida pela UNCITRAL. Uma das fontes mais importantes da Lex Mercatoria é a Convenção de Viena sobre Contratos Internacionais de 1980 e que visa harmonizar regras internacionais sobre o contrato de compra e venda internacional de mercadorias e constitui uma das principais fontes. No caso de Angola, o País não é signatário da Convenção de Viena sobre Contratos Internacionais. As vantagens da adesão são enormes. Resta saber se o País irá num futuro próximo aderir à Convenção. 15 A jurisprudência em geral da arbitragem institucionalizada e arbitragem ad hoc em vários fóruns como o Permanent Court of Arbitration da International Chamber of 9 ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 Flávio Inocêncio | 53 7) Doutrina (De eminentes autores de Direito do Comércio Internacional). Poderá haver outras fontes de Direito do Comércio Internacional para além da lista que enunciamos e o Direito Estadual é também considerado uma fonte secundária da Lex Mercatoria. 2. Breve excurso histórico sobre a evolução da Lex Mercatoria O Direito do Comércio Internacional tem as suas origens na Lex Mercatoria que surgiu na Idade Média nas transacções comerciais entre os comerciantes Europeus. Apesar da Lex Mercatoria constituir um ramo do Direito dotado de autonomia, não havia uniformidade na sua aplicação no continente Europeu, como afirma Mitchell: Apesar de ser vago, o Direito Mercantil existia. Em todo País Comercial na Europa, havia normas e doutrinas jurídicas para os comerciantes e para as transacções comerciais que eram consideradas pelos comerciantes e juristas como um Direito distinto do Direito comum de um País (“Common Law of the Land”)16. 2.1. A origem da Lex Mercatoria na Idade Média A Lex Mercatoria, foi desenvolvida como um ramo do Direito autónomo entre os comerciantes do Continente Europeu e era produzido voluntariamente e de forma espontânea entre os comerciantes europeus num contexto de pluralismo jurídico com a presença de Direito local, Direito consuetudinário de origem germânica e o Direito Romano (“Ius Commune”)17. Commerce, London Court of International Arbitration (LCIA), Stockholm Chamber of Commerce, entre outros 16 W. Mitchell, An Essay on the Early History of the Law Merchant, Cambridge: Cambridge at University Press, 1904, p.8-9. 17 Para uma perspectiva do Direito Privado nesse contexto, Ernst Rabel, Private Laws of Western Civilization, Louisiana Law Review, Vol. 10, Number 1, 1949. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 54 | Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria A Lex Mercatoria favorecia a equidade nas disputas entre comerciantes e o princípio da não discriminação entre comerciantes locais e estrangeiros, assim como a aplicação de princípios como o da boa fé na resolução de disputas entre os comerciantes18 e os vários costumes19 e usos que se foram desenvolvendo nas praças comerciais (feiras medievais) do continente Europeu no período em causa. A Lex Mercatoria não pode ser dissociada do Ius Commune20 que coexista com vários sistemas jurídicos locais de natureza costumeira e legislativa21 num contexto de pluralismo jurídico. O texto de Ius Commune mais utilizado na Idade Média era o Corpus Iuris Civilis22 que foi uma compilação23 de Direito Romano clássico por orientação do Imperador Bizantino, Justiniano I. Em sumário, a Lex Mercatoria na Idade Média tinha as seguintes características24: 18 Alec Stone Sweet, The New Lex Mercatoria and Transnational Governance, Journal of European Public Policy, Vol. 15, 2006, p. 629. 19 O costume tem dois elementos: a prática reiterada (corpus) e a convicção de obrigatoriedade (animus opinio vel necesssitatis), os usos são apenas práticas reiteradas, faltando a convicção de obrigatoriedade. 20 O Ius Commune era o Direito Comum Europeu da Idade Média cujas origens remontam ao Direito Romano. 21 Sulun Gucer, Lex Mercatoria in International Arbitration, Ankara Review, 1, 2009, p. 31. 22 O Corpus Iuris Civilis foi aprovado entre 533 e 534 e estava inicialmente estava dividido em Três Partes: A primeira continha o Digesto (“Digesta”) que continha os escritos dos grandes juristas clássicos Romanos como Ulpiano e Paulus, os Institutos (“Institutiones”) e o Código (“Codex”). O Corpus Iuris Civilis foi redescoberto na Idade Média, principalmente a partir do Século XI e passou a ser utilizado como fonte de argumentos e de Direito no continente Europeu, ver Peter Stein, Roman Law in European History, Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 32-45. 23 A Compilação é a mera recolha de textos jurídicos num documento único, sem qualquer pretensão de sistematização ou de ordenação e por isso não pode ser confundida com a Codificação. 24 Armin von Bogdandy and Sergio Dellavalle, The Lex Mercatoria of Systems Theory: Localisation, Reconstruction and Criticism from a Public Law Perspective, Transnational Legal Theory, Vol. 4, N.1, 2012, p.64-68. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 Flávio Inocêncio | 55 1) Direito aplicável aos comerciantes em virtude do seu estatuto pessoal25 nas transaccões internacionais e não tinha qualquer elemento de conexão com o Direito dos Estados/ Reinos (era parte do pluralismo jurídico existente durante o período). 2) Direito espontâneo baseado em usos, práticas e costumes mercantis que foi parcialmente codificado em instrumentos de negociação (Títulos de crédito, por exemplo) dos comerciantes. Essencialmente a Lex Mercatoria derivava dos usos e costumes mercantis nas feiras medievais anuais26. 3) Os comerciantes eram os “juízes do sistema”. A aplicação da Lex Mercatoria não era confiada aos Tribunais eclesiásticos ou dos diversos Reinos ou cidades onde se realizavam as feiras. 4) O processo de aplicação da Lex Mercatoria era rápido e informal27. 5) O princípio regulador da resolução de conflitos era a equidade (justiça) nas disputas entre comerciantes28. Embora a Lex Mercatoria tenha tido as características acima referidas, existem cada vez mais autores que refutam a natureza voluntária, espontânea e universal da Lex Mercatoria29 e como afirma Bogdandy e Dellavale: “a Lex Mercatoria era essencialmente um corpus iuris dotado de relevância prática”30. A Lex Mercatoria teve um carácter quase universal no espaço jurídico Europeu até o Século XVII, altura em que em começa a ser W. Mitchell, op. cit., p. 25. “O Direito Comercial era acima de tudo Direito consuetudinário”, W. Mitchell, op. cit., p.10. 27 W. Mitchell, op. cit., p. 12-13. 28 “Ex aequeo et Bono”, W. Mitchell, op. cit., p. 16. Mitchell também faz referencia ao carácter transnacional da Lex Mercatoria como um das suas características essenciais, W. Mitchell, op. cit., p. 20-21. 29 Para uma descrição do Direito Comercial na época, Emily Kadens, The Myth of Customary Law Merchant, Texas Law Review, Vol. 90, 2012. 30 Bogdandy and Dellavale, op. cit., p. 65. 25 26 ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 56 | Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria incorporada gradualmente no Direito dos Estados através da codificação, conferindo jurisdição aos Tribunais dos Estados31. A progressiva centralização do poder político no moderno Estado territorial (Estado – Nação) depois da Paz de Vestefália32 deu origem à uma visão positivista do Direito em que o único Direito legítimo era o Direito emanado pelo Estado, o que foi o caso do Direito Comercial onde os Estados fomentaram de forma progressiva a unificação do Direito Comercial nos seus territórios. A unificação do Direito Comercial no território do Estado-Nação foi uma consequência do racionalismo científico que começou com o período Iluminista e resultou no movimento da Codificação de toda a legislação e do Direito em geral (incluindo os usos e costumes) de acordo com conceitos jurídicos pré-concebidos. Esta nova concepção do Direito de natureza “voluntarista” surge em virtude da ideia de que o Direito deveria reflectir a “vontade” do homem livre idealizado pelo Iluminismo que era o homem da burguesia e não do homem comum33. Posto isto, importa referir que a codificação implica “a substituição do direito tradicional por um Direito sistematizado e compreensivo, planeado de forma consciente numa ordem racional”34. O processo de Codificação começa com o Código Civil de Napoleão de 1804 elaborado apenas em quatro meses por uma Comissão composta por quatro eminentes juristas entre os quais Portalis35. Todavia, importa referir que o Código Civil de Napoleão fez uso do trabalho preliminar do célebre 31 Peter Mazzacano, The Lex Mercatoria as Autonomous Law, Comparative Research in Law & Political Economy (CLPE), Vol 04, N.06, 2008, disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1137629 (último acesso 30/01/2017). 32 A Paz de Vestefália foi alcançada 1648 e encerrou a guerra dos 30 anos no continente Europeu e estabeleceu um sistema internacional que consagra o Estado-Nação como comunidade política primordial no continente Europeu. 33 Por exemplo, essa foi a visão “burguesa” dos autores do Code Civil francês de 1804, K., Zweigert, H. Kotz,, An Introduction to Comparative Law, Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 93. 34 K., Zweigert, H. Kotz, op. cit., p. 135-136. 35 K., Zweigert, H. Kotz, op. cit., p. 82. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 Flávio Inocêncio | 57 jurista Francês Robert Joseph Pothier36 em que sistematizou o Direito Francês desse período de acordo com conceitos pré-estabelecidos37. O Código Civil teve uma abrangência continental em virtude da expansão militar Francesa e dos ideais Iluministas e Revolucionários concretizados pela expansão Francesa no continente Europeu38. Foi o Código Civil que deu origem ao nosso sistema jurídico que pertence a família Românico-Germânica ou continental Europeia, também conhecida como Civil Law39. O surgimento dos Códigos Comerciais Oitocentistas reflecte este movimento de centralização do Direito Comercial no Estado-Nação, que consistiu na “nacionalização” da Lex Mercatoria por parte do Direito estadual que incorpora este “Ius Mercatorum”. À semelhança do Código Civil, o Código Comercial (Code de Commerce) de Napoleão de 1807 é um exemplo claro desse processo de codificação e de nacionalização do Direito Comercial e a sua influência no panorama jurídico Europeu é enorme nos vários Códigos Comerciais que lhe sucederam40 incluindo o Código Comercial que hoje vigora em Angola, o Código Comercial de Veiga Beirão de 188841. 2.2. A Nova Lex Mercatoria Uma concepção puramente positivista do Direito não pode ser aceitar a existência e autonomia ainda que parcial da nova Lex Mercatoria, uma vez que para o positivismo jurídico, o único sistema jurídico legítimo, é o sistema jurídico Estadual de onde derivam validamente todas outras normas jurídicas em função da dele derivam as Pothier viveu entre 1699 e 1772. Peter Stein, op. cit., 114-115. 38 K., Zweigert, H. Kotz, op. cit., p. 101. 39 A outra grande família do Direito é constituída pelo Direito Anglo-saxónico ou “Common Law”, Robert Cooter, and Thomas Ulen, Law and Economics, Third Edition, Reading: Addison Wesley Longman Inc., 2000, p. 58-61. 40 António Menezes Cordeiro, op. cit., p. 59-77. 41 António Menezes Cordeiro, op. cit., p. 101-105 36 37 ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 58 | Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria “Grundnorm”42 e por essa razão, para esta perspectiva, o Direito das transacções comerciais internacionais é sempre o Direito dos Estados com os seus tribunais como o fórum competente43. A emergência da nova Lex Mercatoria contraria esta visão unitária do Direito que não aceita outras ordens normativas para além da ordem normativa Estadual e desafia a visão positivista do Direito que coloca em posição secundária os usos e costumes no Direito Comércio Internacional44. Uma das funções essenciais da nova Lex Mercatoria é garantir a uniformidade da aplicação do Direito Transnacional, considerando que não existe no sistema internacional um legislador mundial, por essa razão, a Lex Mercatoria permite as partes terem uma opção de um Direito Transnacional evitando assim o recurso ao Direito nacional que pode não ser do seu interesse45. Importa também referir que a nova Lex Mercatoria é um Direito auto-referencial, o que significa que não necessita da ordem jurídica estadual para a sua validade e eficácia e para autores como Gunther Teubner que escrevem na perspectiva da Teoria dos Sistemas46, a Lex Mercatoria é um exemplo acabado de Direito sem necessidade do Estado e o seu fundamento não deriva da teoria tradicional das fontes do Direito que lhe nega juridicidade, mas sim de uma concepção de fontes do direito baseada na ideia de que a criação do Direito deriva de um processo descentralizado e não hierárquico com várias entidades criadores de normas jurídicas para além do Estado47. Esse Direito torna-se Direito positivo e objectivo e como escreve Teubner: 42 A “Grundnorm” é a Norma Fundamental da qual derivam todas as regras jurídicas, foi postulada pelo Jurista Austríaco Hans Kelsen na sua obra Teoria Pura do Direito. 43 Friedrich K. Juenger, The Lex Mercatoria and Private International Law, Louisiana Law Review, Vol. 60, Number 4, 2000, p. 1135-1136. 44 Gunther Teubner, Global Bukowina: Legal Pluralism in the World Society in: Gunther Teubner (ed.), Global Law Without a State, Brookfield: Dartmouth, 1997. 45 C., Windbichler, Lex Mercatoria in: Neil J. Smelser (Editor), James D. Wright (Editor), Paul B. Baltes (Editor , International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences, Oxford: Elsevier, 2001, p. 46 Inaugurada por Niklas Luhman. 47 Gunther Teubner, Breaking Frames, Economic Globalization and the Emergence of Lex Mercatoria, European Journal of Social Theory, Vol.5, Issue 2, 2002, p.206-207. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 Flávio Inocêncio | 59 Sem dúvida, a Lex Mercatoria e outras formas jurídicas pós-modernas criam uma situação paradoxa, uma vez que quebram o velho paradigma do Direito, isto é, a relação estável entre a legislação e adjudicação numa escala global48. A nova concepção do Direito abarca uma visão pluralista do Direito em que se preconiza a existência de diversas ordens normativas e os métodos de harmonização das mesmas e a nova Lex Mercatoria deriva do processo de criação de um Direito por entidades privadas que não os Estados ou necessariamente entidades de natureza pública como Organizações Internacionais, como afirma Cooter: “o novo Direito Mercantil emerge fora do aparelho de criação de Direito do Estado”49. A nova Lex Mercatoria também coloca em causa a noção de que a resolução de conflitos comerciais internacionais deve ser reservada de forma exclusiva aos tribunais estaduais, uma vez que nos conflitos comerciais internacionais, o método mais comum de resolução de litígios é o da Arbitragem internacional50 e estima-se que mais de 90% dos contratos comerciais internacionais incluam convenções ou cláusulas arbitrais51. A nova Lex Mercatoria pode ser considerada como “Direito Transnacional”, uma vez que é um Direito que não tem depende da ordem jurídica estadual para a sua existência. Esta tese é conhecida como “purista” ou “autonomista” e para esses autores, a Lex Mercatoria não tem qualquer relação com as ordens jurídicas dos Estados sendo um verdadeiro Direito autónomo sem qualquer referência ao Direito Estadual. Gunther Teubner, Breaking Frames, Economic Globalization and the Emergence of Lex Mercatoria, op. cit., p. 209. 49 Robert D. Cooter, Decentralized Law for a Complex Economy: The Structural Approach to Adjudicating the New Law Merchant, University of Pennsylvania Law Review, Vol. 144, 1996, p. 1647. 50 A arbitragem comercial internacional tornou-se a norma nos contratos comerciais internacionais, Margaret L. Moses, The Principles and Practices of International Commercial Arbitration, Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 1. 51 Antunes, José A. Engrácia, Direito dos Contratos Comerciais, Coimbra: Almedina, 2009, p. 335. 48 ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 60 | Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria Para uma segunda corrente doutrinária, a Lex Mercatoria combina elementos do Direito nacional dos Estados e do Direito Transnacional, esta tese é conhecida como “integracionista”52. Os debates sobre a natureza jurídica da Lex Mercatoria concentram-se na autonomia relativa da Lex Mercatoria em relação ao Direito dos Estados. O estudo da nova Lex Mercatoria foi inaugurado por Clive Schmitthoff53 que tinha uma concepção mais integracionista da Lex Mercatoria e por Berthold Goldman54 que tinha uma visão mais autónoma da Lex Mercatoria, insistindo no carácter não nacional da mesma55. Para Berthold Goldman, considerado um dos “fundadores” dos estudos relativos à nova Lex Mercatoria , esta constitui-se como uma ordem jurídica autónoma que não necessita da ordem jurídica estadual para a sua legitimação e validade, uma vez que a Lex Mercatoria é composta por normas jurídicas acessíveis dotadas de generalidade e previsibilidade que emanam de uma autoridade (de tribunais arbitrais) e por isso gozam de juridicidade56. Apesar da importância que a nova Lex Mercatoria tem nas transacções comerciais, esta não pode ser totalmente autónoma da ordem jurídica estadual, uma vez que depende do Direito estadual para a sua eficácia, substância e implementação. Independentemente da posição que se adoptar sobre a natureza jurídica da Lex Mercatoria, é necessário partir de uma definição de Lex Mercatoria que seja ampla o suficiente a fim de incorporar as inúmeras fontes do Direito do Comércio Internacional57. Nikitas E. Hatzimihail, The Many Lives – And Faces – Of Lex Mercatoria: History as Genealogy in International Business Law, Law and Contemporary Problems, Vol.71, Number 3, 2008, p. 171. 53 Clive Schmitthoff, The Unification of the Law of International Trade, Journal of Business Law, 1968 in: Clive Schmitthoff’s Select Essays on International Trade Law, London: Graham & Trotman, 1988. 54 Berthold Goldman, Nouvelles Réflexions sur la Lex Mercatoria, in: Festschrift Pierre Lalive, Basel, Frankfurt a.M. 1993. 55 Nikitas E. Hatzimihail, op. cit., p. 174. 56 Berthold Goldman, op. cit., p. 248-250. 57 Michael Frischkorn, Definitions of the Lex Mercatoria and the Effects of Codifications on the Lex Mercatoria’s Flexibility, European Journal of Law Reform, Vol. VII, 2006, p. 334. 52 ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 Flávio Inocêncio | 61 A nova Lex Mercatoria “deve ser compreendida no seu sentido pleno. A lex mercatoria pode ser costumeira, convencional, não-convencional, contratual, codificada, não codificada, ou pode derivar dos princípios gerais do direito ou dos usos do comércio”58. Em sumário, a nova Lex Mercatoria enquanto sistema jurídico caracteriza-se por ser: I. Direito autónomo aplicável à situações jurídicas internacionais. II. Direito Transnacional que não deriva dos instrumentos legislativos do Estados mas um Direito criado por várias entidades criadores de normas, usos e práticas aplicáveis ao comércio internacional. III. Direito Comercial Internacional com fontes de natureza diversa e heterogénea para além do Estado59. IV. Direito flexível e informal. V. Direito cujo método de resolução de disputas por excelência é Arbitragem Internacional60. VI. Direito auto-referencial com normas de reconhecimento que não derivam do Direito Estadual. Nessa perspectiva, a nova Lex Mercatoria é um Direito autónomo com regras de reconhecimento e validade própria, sem necessariamente terem como referência o Direito dos Estados61. A Lex Mercatoria é uma realidade no comércio internacional, embora o seu conteúdo seja alvo de disputa por parte da doutrina, por 58 Abul F. M. Maniruzzaman, The Lex Mercatoria and International Contracts: A Challenge for International Commercial Arbitration?, American University Law Review, Vol. 14, Issue 3, 1999, p. 669. 59 A Lex Mercatoria é definida acima de tudo pela diversidade das suas fontes e não necessariamente pelo seu conteúdo, Emmanuel Gaillard, Transnational Law: A Legal System or a Method of Decision Making? Arbitration International, Vol. 17, Number 1, 2001, p. 61-62. 60 Cristián Gimenez Corte, Lex Mercatoria, International Arbitration and Independent Guarantees: Transnational Law and How Nation States Lost the Monopoly of Legitimate Enforcement, Transnational Legal Theory, Vol. 3, N,4, 2012, p. 356 e ss.. 61 Klaus Peter Berger, The Creeping Codification of the New Lex Mercatoria, Kluwer Law International, 2010, p. 61-64. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 62 | Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria isso deve-se entender também a Lex Mercatoria como um método62 de um sistema jurídico completo para além do Estado e como afirma Ralf Michaels: “existe agora um corpo considerável de regras jurídicas e procedimentos adjudicatórios fora do Estado que representa um desafio para concepções do Direito baseadas no Estado”63 . Para Clive Schmitthoff: “O moderno direito mercantil é inteiramente sem precedentes no seu carácter e constitui uma fuga do conceito tradicional do Direito. Tradicionalmente o Direito é produto do desenvolvimento histórico, económico e desenvolvimento político de uma nação.64 2.2.1. A Lex Mercatoria e o Pluralismo Jurídico Importa referir que a realidade da Lex Mercatoria enquanto sistema jurídico autónomo transnacional de regras de Direito Comercial Internacional deve ser reconhecida e estudada, sendo um corpo autónomo de regras e princípios jurídicos sem necessariamente uma referência ao Direito Comercial do Estados. Os críticos da autonomia da nova Lex Mercatoria em relação ao Direito Estadual apontam para relação intrínseca entre a ordem jurídica da Lex Mercatoria e a ordem jurídica Estadual e ao facto da criação do Direito por particulares depender do legislador nacional65. Esta crítica deriva de uma concepção positivista do Direito que apenas considera como Direito aquele que é criado pelo Estado e pelos seus órgãos. Para além disso, a ideia da Lex Mercatoria como um Direito auto-referencial é problemática por causa da falta de mecanismos próprios da sua aplicação66. 62 Para esta visão mais pragmática da Lex Mercatoria, Emmanuel Gaillard, Thirty Years of Lex Mercatoria: Towards the Selective Application of Transnational Rules, ICSID Review – Foreign Investment Law Journal, Vol. 10, 1995, p. 224. 63 Ralf Michaels, The True Lex Mercatoria: Law Beyond the State, Indiana Journal of Global Legal Studies, Vol. 14, N.2, 2007, p.460. 64 Clive Schmitthoff, p. 211. 65 Luís de Lima Pinheiro, op. cit., p. 907-8. 66 Bogdandy e Dellavale, op. cit., p.77-88. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 Flávio Inocêncio | 63 Importa referir que uma concepção monista e hierárquica do Direito hoje está ultrapassada e há poucos autores que a defendam, porque a realidade social reconhece dentro do Estado uma pluralidade de comunidades sociais e políticas que criam Direito e no plano internacional, existem entidades que são criadoras de Direito como as Organizações Internacionais, em suma, há Direito para além do Estado criado fora do Estado67. Importa referir que a Lex Mercatoria, tem de ser vista sob o prisma do pluralismo jurídico que consiste no fenómeno da coexistência de várias ordens normativas com as suas regras fundamentais ou “Grundnorms”68 em determinados “espaços jurídicos” territoriais ou deslocalizados, como escreve Berman: “O Direito não reside unicamente nos comandos coercivos de um poder soberano. O Direito é construído constantemente pela concorrência dessas várias comunidades geradoras de normas”69. Na concepção pluralista do Direito, as várias ordens normativas estão numa relação de coexistência que não se baseia numa concepção hierárquica do Direito mas sim numa noção de “reconhecimento mútuo”. A Lex Mercatoria enquanto ordem normativa, ainda que imperfeita deve ser considerada como uma ordem jurídica autónoma da ordem jurídica oriunda dos Estados, embora dependa do Direito Estadual para o seu reconhecimento e execução, uma vez que não há tribunais internacionais que possam executar sentenças arbitrais internacionais sem a participação da ordem jurídica estadual e dos seus tribunais70. Mesmo numa concepção positivista do Direito, no plano interno, há um conjunto de entidades que têm competência para criar normas jurídicas, entidades essas reconhecidas pelo Estado como as Associações Profissionais (Por exemplo, as Ordens Profissionais como as Ordens do Médicos e a Ordem dos Advogados) e as Associações Desportivas (por exemplo, as Associações Desportivas) e no plano internacional, Organizações Internacionais e Supranacionais como a Organização Mundial do Comércio, a Organização das Nações Unidas e a União Europeia entre outras. 68 Os sistemas jurídicos autónomos têm sempre as suas “regras de reconhecimento” (“rules of recognition”), para utilizar a expressão de Herbert Hart, The Concept of Law, Oxford: Oxford University Press, 1997. 69 Paul Schiff Berman, Global Legal Pluralism, Southern California Law Review, Vol.80, 2007, p. 1157-1158. 70 Luís de Lima Pinheiro, op. cit., p. 911. 67 ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 64 | Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria Considerando a diversidade das fontes da Lex Mercatoria, esta deve ser entendida como um sistema jurídico autónomo e flexível que pode regular directamente as relações jurídicas das partes71 sem recurso ao Direito Estadual mediado por Tribunais Estaduais e o recurso às regras de conflitos de Direito Internacional Privado72. Para autores como Ralf Michaels, a Lex Mercatoria é “uma amálgama entre o público e privado, Direito e Instituições Estaduais e não-Estaduais”73. Os benefícios da nova Lex Mercatoria tem de considerar os custos de transacção do Direito Transnacional, considerando a necessidade de encontrar regras aplicáveis à situações jurídicas, num mundo com uma enorme diversidade de sistemas jurídicos com diferentes regras de Direito substantivo74. Por isso, a nova Lex Mercatoria não é tanto um mecanismo de harmonizar as diferentes legislações nacionais dos Estados mas sim uma forma de “providenciar uma base estável e uniforme para o comércio”75. Podemos assim afirmar que a Lex Mercatoria é acima de tudo “um Direito autónomo dos contratos do comércio internacional”76 e não regula tanto questões como os pressupostos de formação do consentimento, aos requisitos de validade do objecto e do fim do contrato e Giuditta Cordero Moss, International Contracts between Common Law and Civil Law: Is Non-State Law to be Preferred? The Difficulty of Interpreting Legal Standards Such as Good Faith, Global Jurist, Vol.7, Issue 1, 2007, p. 24. 72 Não podemos nunca confundir a questão da Lei aplicável (ou Direito aplicável) num contrato com a questão do Tribunal competente para decidir acerca do mérito da causa, isto porque o método de resolução de disputas primordial é o da Arbitragem Internacional, sabendo que as partes têm liberdade de escolha na da Lei Aplicável ao contrato e o da Tribunal competente para decidir acerca, Luís de Lima Pinheiro, op. cit., p. 1020-1022 73 Ralf Michaels Dreaming Law without the State: Scholarship on Autonomous International Arbitration as Utopian Literature, London Review of International Law, Vol.1, Issue 1, 2013, p. 41. 74 E está relacionado com o fenómeno de “forum shopping”, Filip de Ly , Sources of International Sales Law: An Ecletic Model, Journal of Law and Commerce, Vol. 25, N.1, 2005-2006, p. 1-2. 75 Sandeep Gopalan, Transitional Commercial Law: The Way Forward, American University International Law Review, Vol. 18, Issue 4, 2003, p. 810. 76 Luís de Lima Pinheiro, op. cit., p. 1020. 71 ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 Flávio Inocêncio | 65 ao poder de representação e nesses casos há uma conexão entre a Lex Mercatoria e o Direito Estadual77. Lex Petrolea Com o desenvolvimento do Comércio Internacional, desenvolveu-se um Direito autónomo no sector do Petróleos e do Gás Natural derivado da Lex Mercatoria, designado por alguns autores como Lex Petrolea78. A Lex Petrolea tem sido desenvolvida pelas Empresas multinacionais do sector Petrolífero e do Gás Natural, uma vez que actuam à escala global e nas vários sectores de actividade, principalmente no Upstream79 . No sector petrolífero verifica-se uma uniformização de contratos-modelo de entidades privadas como a Associação Internacional dos Negociadores de Petróleo80, criando um ramo do Direito aplicável ao sector petrolífero internacional, considerando a diversidade de sociedades comerciais que actuam no sector tem uma abrangência global. Lex Electronica81 Alguns autores têm promovido a ideia de Lex Elecronica como uma subespécie de Lex Mercatoria para as transacções electrónicas na Luís de Lima Pinheiro, op. cit., p. 862-864. Dário Moura Vicente, Arbitragem Petrolífera in: Dário Moura Vicente (Coordenador), Direito dos Petróleos, Uma Perspectiva Lusófona, Coimbra: Almedina, 2013, p.120. 79 O Upstream inclui as fases de prospecção, exploração e produção de Petróleo. 80 A Association of International Petroleum Negotiators (AIPN) é responsável por vários modelos contratuais amplamente utilizados na indústria petrolífera, ver: https://www.aipn.org/ (último acesso 30/01/2017). 81 Também designada por Lex Informatica, ver: Aron Mefford, Lex Informatica: Foundations of Law on the Internet, Indiana Journal of Global Legal Studies, Vol. 5, Issue 2, 1997. 77 78 ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 66 | Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria Internet82. O comércio electrónico é uma das áreas do Direito onde se verifica uma grande expansão de fontes normativas que fazem parte da Lex Mercatoria que têm origem em entidades diversas de natureza privada e pública83. Considerando que o advento da Internet vem reconfigurar a autoridade jurídica do Estado e revelou as insuficiências do Direito Estadual na regulação adequada da Internet considerando que as fronteiras do Ciberespaço não correspondem às fronteiras dos Estados e à sua jurisdição legal e por essa razão, para alguns autores, a Lex Electronica deve regular o regime do Ciberespaço em conjunto com a ordem jurídica dos Estados84. Por essa razão, desenvolveu-se um novo Direito parte da Lex Mercatoria a fim de regular o comércio electrónico entre pessoas jurídicas (colectivas) de jurisdições diferentes ou quando haja um elemento de conexão internacional nas relações jurídicas que se estabelecem na Internet85. Lex Sportiva Pode ser considerada como uma subespécie da Lex Mercatoria definida como o ramo do Direito aplicável ao Desporto Internacional regulado pelas regras desportivas das Instituições Desportivas Mundiais como o Comité Olímpico Internacional, Federações Desportivas Internacionais dos vários desportos. 82 Thomas Schultz, Carving Up the Internet: Jurisdiction, Legal Orders and Private/Public International Law Interface, The European Journal of International Law, Vol.19, n. 4, 2009, p. 803. 83 Sobre a possibilidade da Lex Mercatoria ser aplicável.l à licenças de Software de fonte aberta (“Open Source Software”), considerando que a Lex Mercatoria é uma ordem jurídica que é a autónoma, universal e espontânea, Fabrizio Marrella and Christopher Yoo, Is Open Source Softwate the new Lex Mercatoria? Virginia Journal of International Law, Vol. 47, 2007, p.820-824. 84 Aron Mefford, op. cit., p. 222 85 Não tem de haver necessariamente uma transacção comercial para haver necessidade de regulação da Internet. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 Flávio Inocêncio | 67 As fontes da Lex Sportiva são da mais variada natureza e integram um conjunto de regras fragmentadas e heterógenas desde o Direito Estadual que regula as Associações e Federações Desportivas nacionais e internacionais, incluindo instrumentos jurídicos produzidos por Organizações Internacionais86. O Tribunal de Arbitragem para o Desporto87 tem sido uma das entidades mais prolíficas no desenvolvimento desta subespécie de Lex Mercatoria que é designada por Lex Sportiva enquanto Direito que descreve “os princípios e regras desenvolvidas e aplicadas pelas instituições desportivas”88. 2.3. O Desenvolvimento da nova Lex Mercatoria A nova Lex Mercatoria tem sido desenvolvida por vários actores89 no plano internacional para além do Estados, incluindo Organizações Internacionais, Câmaras de Comércio e actores privados em geral. Um dos actores mais importantes no desenvolvimento do Direito do Comércio Internacional é o Instituto para a Unificação do Direito Privado Internacional, mais conhecido pelo acrónimo UNIDROIT, baseado em Roma, criado em 1926 como um órgão auxiliar da Liga das Nações a fim de promover a unificação do Direito Privado entre os Estados Membros. O UNIDROIT é uma Organização Internacional cujos membros são Estados90. O UNIDROIT é responsável por vários instrumentos jurídicos que fazem parte da Lex Mercatoria, incluindo os Princípios UNIDROIT Relativos aos Contratos Comerciais Interna- Para mais informação, ver: Lorenzo Casini,, The Making of a Lex Sportiva by the Court of Arbitration for Sport, German Law Journal, Vol. 12, N.5, 2011. 87 Court of Arbitration for Sport. É um exemplo de arbitragem institucionalizada no Direito do Desporto Internacional, para mais informação ver: http://www.tas-cas.org (último acesso 30/01/2017). 88 Lorenzo Casini, op. cit., p. 1320. 89 Ralf Michaels designa esses actores como “Agências Formuladoras” (“Formulating Agencies”), Ralf Michaels, op. cit., p. 457. 90 Para mais informação, ver: http://www.unidroit.org/about-unidroit/overview (último acesso 30/01/2017). 86 ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 68 | Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria cionais, que foram criados pela primeira vez em 1994, sendo a última versão de 201091. Outro actor importante na criação e desenvolvimento é a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comércio Internacional criada em 1966 (CNUDI, também conhecida pela sua designação em Inglês – UNCITRAL92), que é um órgão das Nações Unidas e tem sido responsável por vários instrumentos jurídicos que são fonte do Direito do Comércio Internacional, incluindo a Convenção de Viena sobre o Contrato de Compra e Venda Internacional de 198093. A Câmara de Comércio Internacional (CCI) mais conhecida por ICC (International Chamber of Commerce94), é uma Organização de natureza privada criada em 1919 baseada em Paris, França responsável pela criação de inúmeros instrumentos utilizados no Comércio Internacional incluindo os Termos do Comércio Internacional mais conhecidos por INCOTERMS amplamente utilizados no Comércio Internacional assim como as “Regras e Usos Uniformes Relativos aos Créditos Documentários”95. A Câmara de Comércio Internacional também é responsável por um dos mecanismos mais importantes de arbitragem institucionalizada no Direito do Comércio Internacional através de um dos seus órgãos que é o Tribunal Internacional de Arbitragem96. Os Princípios UNIDROIT Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais estão disponíveis em: http://www.unidroit.org/instruments/commercial-contracts/ unidroit-principles-2010 (último acesso 30/01/2017). Para uma versão Portuguesa: http://cisg7.institut-e-business.de/pdf/gesetze/PortuguesScan.pdf (último acesso 8/03/2014). 92 http://www.uncitral.org/uncitral/en/index.html (último acesso 30/01/2017). 93 A Convenção de Viena sobre o Contrato de Compra e Venda Internacional está disponível em: http://www.uncitral.org/pdf/english/texts/sales/cisg/V1056997-CISGe-book.pdf (último acesso 30/01/2017). 94 Para mais informações sobre a Câmara de Comércio Internacional: http://www. iccwbo.org/ (último acesso 30/01/2017). 95 “Uniform Customs and Practice for Documentary Credit” da Câmara de Comércio Internacional sendo a última versão de 2007 com a designação UCP 600, disponível em: http://store.iccwbo.org/users-handbook-for-documentary-credits-under-ucp-600 (último acesso 30/01/2017). Ver, José A. Engrácia Antunes, op. cit., p. 514. 96 Ver: http://www.iccwbo.org/about-icc/organization/dispute-resolution-services/ icc-international-court-of-arbitration/ (último acesso 30/01/2017). 91 ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 Flávio Inocêncio | 69 Para além dos órgãos mencionados existem várias entidades responsáveis pelo desenvolvimento da nova Lex Mercatoria a nível regional como Organizações regionais e especializadas e digno de nota os esforços da Organização para a Harmonização em África do Direito Comercial, também conhecida pelo seu acrónimo OHADA97 que conta com 17 Estados Membros da África Ocidental e que desenvolveu vários instrumentos no âmbito do Direito do Comércio Internacional incluindo o Acto Uniforme para o Direito Comercial98. A nova Lex Mercatoria também inclui várias entidades que criam Códigos de Conduta que também são fonte da nova Lex Mercatoria, um exemplo é são as recomendações da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) com as “Directrizes para as Empresas Multinacionais”99 ou as recomendações da Organização Internacional das Comissões dos Valores Mobiliários100 acerca dos “Princípios e Objectivos da Regulação dos Valores Mobiliários”101 e são um exemplo de auto-regulação no sector financeiro102. A Câmara de Comércio Internacional também desenvolveu regras sobre Arbitragem institucionalizada, ver: http://www.iccwbo.org/products-and-services/arbitration-and-adr/arbitration/icc-rules-of-arbitration/ (último acesso 30/01/2017). 97 Em Francês, : Organisation pour la Harmonisation en Afrique du Droit des Afaires (OHADA), para mais informações, ver: http://www.ohada.com/ (último acesso 30/01/2017). 98 Disponível em: http://www.ohada.com/actes-uniformes/11/uniform-act-relating-to-general-commercial-law.html (último acesso 30/01/2017). Claire Moore Dickersorn, OHADA’s Proposed Uniform Act On Contract Law, Formal Law for the Informal Sector, European Journal of Law Reform, Vol. 13, 2011. 99 “OECD Guidelines for Multinational Enterprises”. 2011, disponível em: http:// www.oecd.org/daf/inv/mne/48004323.pdf (último acesso 30/01/2017). 100 “International Organization of Securities Commission”, que integra as Agências (Comissões) reguladoras dos mercados de Créditos e Valores mobiliários, ver: http://www.iosco.org/ (último acesso 30/01/2017). 101 “Objectives and Principles of Securities Regulation”, disponível em: http:// www.iosco.org/library/pubdocs/pdf/IOSCOPD154.pdf (último acesso 30/01/2017). 102 Cally Jordan,, International Financial Standards and the Explanatory Force of the New Lex Mercatoria, Centre for Transnational Legal Studies, Research Paper, N.12-120, 2012, p. 21. ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 70 | Direito do Comércio Internacional: a Emergência da Nova Lex Mercatoria Ainda no sector financeiro, a Associação Internacional dos Derivativos e Swaps103 é responsável por um modelo contratual para transacções financeiras de derivativos, o ISDA Master Agreement. O Código Mundial de Conduta Anti-Doping104 desenvolvido pela Agência Mundial Anti-Doping105, é um exemplo dessa nova Lex Mercatoria (Lex Sportiva) aplicável ao Desporto Internacional. Um exemplo desse desenvolvimento da nova Lex Mercatoria por actores privados foi a “Comissão Lando106 que preparou os “Princípios Europeus do Direito dos Contratos”107 inspirados pela Convenção de Viena sobre o Contrato de Compra e Venda Internacional e pelos Princípios UNIDROIT relativos ao Contratos Comerciais Internacionais108. Os Princípios Europeus do Direito dos Contratos representam “a consolidação escrita do núcleo comum das tradições jurídicas nacionais acerca dos contratos (PECL) e da chamada Lex Mercatoria, isto é, de todas as práticas legais que se estabeleceram no comércio internacional (PICC)”109. Considerações Finais A globalização e a expansão da contratação comercial internacional revelam a progressiva importância da Lex Mercatoria como um ramo do Direito autónomo que disciplina relações jurídicas privadas internacionais e cujas fontes não são necessariamente estaduais. Essas International Association for Swaps and Derivatives, disponível em: http:// www2.isda.org/ (último acesso 30/01/2017). 104 World Anti-Doping Code está disponível em: https://www.wada-ama.org/en/ what-we-do/the-code (último acesso 30/01/2017). 105 World Anti-Doping Agency, para mais informação, ver: http://www.wada-ama.org/ (último acesso 14/03/2014). 106 Por referência ao chefe da Comissão Ole Lando, 107 “Principles of European Contract Law” (PECL), disponíveis em: http://www. jus.uio.no/lm/eu.contract.principles.parts.1.to.3.2002/ (último acesso 30/01/2017). Ver Yehuda Adar and, Pietro Sirena Principles and Rules in the Emerging European Contract Law: From the PECL to the CESL, and Beyond, European Review of Contract Law, Vol. 9, Issue 1, 2013. 108 Luís de Lima Pinheiro, op. cit., p. 898-903. 109 Yehuda Adar, and, Pietro Sirena, op. cit., p. 28. 103 ReDiLP – Revista do Direito de Língua Portuguesa, n.° 10 (julho / dezembro de 2017): 00-00 Flávio Inocêncio | 71 fontes incluem, princípios gerais de Direito, contratos modelo, Leis modelo, usos e práticas do comércio internacional, Tratados internacionais, jurisprudência arbitral. Essas fontes são desenvolvidas por vários actores (as “agências formuladoras”) como a Câmara de Comércio Internacional, o Instituto para a Unificação do Direito Privado e a Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional. 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