UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP
Instituto de Ciências Humanas
Curso de Psicologia
BARBARA APARECIDA CARDOSO GOMES
GIOVANA AUGIMERI BARRA
JULIANA PEREIRA DAMASCENO VASQUES
RAFAEL ALVES RODRIGUES
RAFAEL PESSOA LIMA
TRANSGÊNEROS NO MEIO ESPORTIVO
ACEITAÇÃO COMO SERES SOCIAIS
SÃO PAULO
NOVEMBRO 2018
TRANSGÊNEROS NO MEIO ESPORTIVO: ACEITAÇÃO COMO SERES SOCIAIS
Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Paulista - UNIP para a obtenção do bacharelado em Psicologia.
SÃO PAULO
NOVEMBRO 2018
BARBARA APARECIDA CARDOSO GOMES
GIOVANA AUGIMERI BARRA
JULIANA PEREIRA DAMASCENO VASQUES
RAFAEL ALVES RODRIGUES
RAFAEL PESSOA LIMA
Os transgêneros no meio esportivo: aceitação como seres sociais
Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Paulista - UNIP para a obtenção do bacharelado em Psicologia.
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Professora Priscilla Rodrigues
Presidente da banca – Orientador
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Professor
Membro
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Professor
Membro
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Professor
Membro
SÃO PAULO
NOVEMBRO 2018
*Autorizamos a reprodução e a divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo ou pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação da Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Instituto de Ciências Humanas da Universidade Paulista - UNIP
GOMES, B; BARRA, G; VASQUES, J; ALVES, R; PESSOA, R.
Os transgêneros no meio esportivo: aceitação como seres sociais / Orientador Prof. Priscilla Rodrigues – São Paulo, 2018
Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso em Graduação) – Instituto de Ciências Humanas – Universidade Paulista, UNIP.
1. Modernidade. 2. Comportamento. 3. Transgêneros. 4. Cultura. 5. Sociedade 6. Esporte 7. Psicologia Social
“A escuridão não pode expulsar a escuridão, apenas a luz pode fazer isso. O ódio não pode expulsar o ódio, só o amor pode fazer isso.”
Martin Luther King Jr. (1963)
Agradecimentos
Listar nominalmente as pessoas próximas ou queridas, que mereciam ocupar este nobre espaço, poderia acarretar enormes e brutais injustiças.
Tente você, corajoso leitor, por um momento que seja, elencar numericamente as cinco bandas que mais ama; cinco livros que formaram seu caráter; ou, quem sabe, cinco pessoas que não acreditaram que você poderia chegar tão longe...
Raríssimas exceções, você jamais conseguiria fazê-lo – muito menos de forma perpétua. Uma vez seres em constantes transformações, todos os dias, quem pode assegurar que uma nova melodia ou leitura não o conquistem para sempre na próxima semana? Quem sabe esta mesma, à qual você acaba de começar?
Entretanto, alguns grupos ou coletivos, para além de inspiradores, merecem nossa menção honrosa, absoluto carinho e respeito. Assim como a comunidade que nos estimulou a concluir este trabalho de pesquisa: a cada dia - desde a nossa difícil decisão de prosseguir -, um passo delicado e importante para alcançar esta que consideramos, certamente, a maior conquista de nossas vidas. E que, acima de tudo, poderá ser de suma importância na vida de muito mais gente, uma vez que inédita e absolutamente contemporânea.
Um alerta imprescindível: não espere de nós, prezadíssimo leitor, um agradecimento convencional ou formal: a coevidade e urgência deste que é um convite para o debate ao tema exige que sejamos, inclusive na presente e tradicional página, quem realmente somos.
Assim como esta população, nosso objeto de estudo, que nos motivou e estimula, todos os dias, por mais entendimento, respeito, dignidade e, acima de tudo, verdade.
De todo o coração:
Barbara Aparecida Cardoso Gomes agradece: Agradeço aos que co-construíram, me descontruíram e reconstruíram até aqui.
Aos facilitadores que me promovem como ser social, aos que me afetam, ensinam e também que dialogam, assim como meus queridos docentes e os participantes desta pesquisa.
À família sempre presente, sempre torcendo. À ternura da mainha, das vovós, tias, irmãos, dinda e a sabedoria do pai, que precisou partir tão cedo, mas deixou muito dele em mim.
Aos amigos e companheiros desta pesquisa, e também aos de “caminhada” que são protagonistas em minhas vivências, repletas de ciladas, mas com muitas risadas e superações promovidas por eles (Dani “magrela”, Andrea “Déia”, Beta Nogueira, Monique “Greg”, Ronaldo Sagara, Leticia Lima e Aline Cardoso)
Agradeço com muita paixão, amor e admiração meu companheiro de vida, Bruno Lima Menezes, minha eterna inspiração de sentidos.
Giovana Augimeri Barra agradece: Quero agradecer, em primeiro lugar, à minha força maior, pela coragem, força e determinação concedidas durante toda esta longa caminhada. Аоs meus pais, que cоm muito carinho, apoio, paciência e incentivo nãо mediram esforços para quе еu chegasse аté esta etapa dе minha vida. A todos оs professores dо curso, quе foram tãо importantes nа minha vida acadêmica. E aos meus amigos do grupo, que caminharam junto comigo ao longo do curso e contribuíram para a conclusão deste trabalho tão importante.
Juliana Pereira Damasceno Vasques agradece: ao coletivo de mestres que a emocionaram por cinco longos anos. À família, sempre presente (mamãe, papai, irmãos, vovó, vovô) – e que realmente acredita na lenda de que ela é inteligente. Aos colegas jornalistas – e que sempre o serão. A Luís Fernando Rodrigues Cesarotti - que não cumpriu o combinado da matrícula. À Karla Pradella Rodrigues Trevisan e Dr. Guilherme Scandiucci, seus psicólogos favoritos. E, especialmente, a Eduardo Gomes Vasques, todo amor e devoção, por tantos renascimentos. Todos eles. Todos os dias.
Rafael Alves Rodrigues agradece: Agradeço aos amigos que conheci nesta caminhada de cinco anos, estes que tiveram paciência, atenção e não desistiram de mim, me ensinando, re-ensinando e re-lembrando valores e sentimentos que regem nossa vida como seres humanos.
Rafael Pessoa Lima agradece: Agradeço aos meus amigos de grupo, que tanto me ensinaram na pesquisa deste tema. Aos professores e entrevistados, que se envolveram no tema e aos meus pais, meus primeiros professores que nunca desistiram de mim e de minha educação.
Resumo
Este presente trabalho tem como objetivo abordar, por meio de uma perspectiva psicológica, a inserção de transgêneros no meio esportivo, como seres sociais. No decorrer de nossa pesquisa, enfrentamos algumas dificuldades relacionadas à disponibilidade de dados sobre o tema pesquisado - o que nos impossibilitou uma extrapolação dos mesmos.
Ressaltamos, inclusive, a escassa e ainda carente referência bibliográfica brasileira - a temática trabalhada é por demais recente, no que se refere ao campo acadêmico.
Além disso, o posicionamento de alguns profissionais - em especial sobre as questões fisiológicas - apresenta-se como inconclusiva, já que as poucas pesquisas aplicadas não apresentaram resultados objetivos. Ou seja: os poucos dados coletados em entrevistas e depoimentos estão muito mais embasados em visões pessoais.
A busca de sujeitos de pesquisa, ou seja, transgêneros, também apresentou obstáculos, ao longo deste projeto, devido à indisponibilidade – e até mesmo desconfiança – dos personagens abordados.
Todos os resultados apontados nesta presente pesquisa podem ser interpretados, portanto, como um ponto de partida para uma discussão interdisciplinar respaldada pela inclusão deste coletivo e sua consequente afirmação como seres sociais – uma vez que entendemos o significado de “transgênero” como uma condição humana, e não, de fato, “ideológica”.
Abstract
This work aims to approach, through a psychological perspective, the insertion of transgender in the sports environment, as social beings. In the course of our research, we faced some difficulties related to the availability of data on the researched topic - which made it impossible for them to be extrapolated.
We also emphasize the scarce and still lacking Brazilian bibliographical references - the thematic is too recent, as far as the academic field is concerned.
In addition, the positioning of some professionals - especially on physiological issues - is inconclusive, since the few applied researches did not present objective results. The few data collected in interviews and testimonies are much more grounded in personal visions.
The search for research subjects, the transgenders, also presented obstacles, throughout this project, due to the unavailability - and even mistrust - of the characters addressed.
All the results pointed out in this present research can therefore be interpreted as a starting point for an interdisciplinary discussion supported by the inclusion of this group and your affirmation as a social being - once we understand the meaning of "transgender" as a human condition, and not, in fact, "ideological."
Sumário
1. Introdução 11
2. Capítulo I – Sexualidade e Preconceito 16
2.1. Das Origens do Preconceito e da falta de informação 18
2.2. Da falta de conhecimento da causa 19
2.3. Da falta de conhecimento dos próprios indivíduos e sua constituição 20
2.4. Das origens da sexualidade 28
3. Capítulo II – Esporte e História 34
3.1. Práticas amadoras e profissionais 36
3.2. Condições para atuação profissional do atleta e a realidade 37
3.3. Desenvolvimento físico 40
4. Capítulo III – Esporte e Política 47
4.1. Uma construção social (e mercadológica) sobre ídolos do Esporte 49
4.2. Esporte como Política Social 51
5. Capítulo IV – A transexualidade no Esporte 53
5.1. O pioneirismo de Tiffany Abreu 53
5.2. Polêmica, desconhecimento e preconceito 55
5.3. Aspectos científicos 58
5.4. Medicina, Esporte e Psicologia 59
6. Capítulo V – Pesquisa e Procedimentos 61
6.1 Discussões e Resultados 61
6.2. Extrapolação/Amostragem 62
6.3. Multiplicidade de Expressões 62
6.4. Preconceito/Discriminação 63
6.5. Inclusão 64
6.6. Vantagem 65
7. Considerações Finais 69
8. Referência 72
Introdução
No vasto campo da identificação sexual, o sentido de gênero pode ser definido, segundo ANJOS (2000), como uma relação estabelecida a partir da percepção social das diferenças biológicas entre os sexos (Scott, 1995). Podemos reconhecer, ou mesmo assimilar, grupos distintos e suas condições - que podem variar de acordo com a identificação com outro sexo biológico e suas disposições afetivas, psicológicas e sociais. Tais identificações estão baseadas em oposições sociais, onde predominantemente são classificadas como masculino/feminino (ANJOS, 2000).
Especialmente um grupo - dentro dos espectros supracitados - é o de transexuais: indivíduos que não se identificam com o gênero determinado socialmente, por meio do seu sexo biológico, e se alinham às características atribuídas ao sexo oposto. Em alguns casos, muitos destes indivíduos promovem alterações cirúrgicas, utilizam vestimentas e adotam posturas e expressões similares ao gênero com o qual se identificam – e não o de nascimento. A discussão sobre os motivos que levam um indivíduo a se identificar como pertencente ao gênero oposto ao pré-determinado por seu sexo biológico ainda não encontrou por si um denominador comum. Porém, algumas hipóteses já começam a ganhar força e concordância entre cientistas e pesquisadores. Alguns estudos indicam que a junção de fatores biológicos, como diferenças anatômicas no cérebro, pode causar a identificação entre os gêneros. Além disso, fatores hormonais e de criação do indivíduo também podem atuar em conjunto. (ATHAYDE, 2001).
Os estudos de gênero suscitaram classificações para os manuais de saúde mental, como o DSM IV e V. O primeiro, atribui aos próprios indivíduos as mudanças de gênero, o que poderia levar a interpretações baseadas em uma total responsabilidade do sujeito. Já o segundo, subentende que o meio também tem participação no desenvolvimento desta característica, o que o levou a adotar o termo “disforia de gênero”.
Para a American Psychological Association (APA), identidade é o senso que um indivíduo tem de si próprio, definido por: (A) um grupo de características físicas e psicológicas que não é totalmente compartilhado com outra pessoa e (B) uma gama de afiliações sociais. A identidade envolve, também, um senso de continuidade: o sentimento de que hoje somos a mesma pessoa que éramos ontem ou no ano passado (a despeito de mudanças físicas ou de outras naturezas). Este senso é derivado de nossas sensações corporais, nossa imagem do corpo e o sentimento de que nossas memórias, objetivos, valores e experiências pertencem a nós. É também denominada como identidade pessoal. Em desenvolvimento cognitivo, por exemplo, é a consciência de que um objeto permanece o mesmo, ainda que sofra muitas transformações.
Contudo, a definição oficial aparentemente estática ganha outros contornos, quando o assunto é gênero. Neste caso, falamos sobre o reconhecimento de que é masculino ou feminino e a internalização desse conhecimento no conceito de si mesmo. E esta noção de masculinidade ou feminilidade geralmente resulta de uma combinação de influências biológicas e também psíquicas, incluindo os efeitos ambientais da família e das atitudes culturais.
O principal fator biológico é a influência do cromossomo Y na produção de hormônios masculinos, à qual parece afetar o desenvolvimento cerebral, resultando - em tese - em um comportamento masculino. A identidade de gênero feminina é o estado que resulta - igualmente, em tese - da ausência dessa influência do cromossomo Y.
Porém, como sabemos, não há um fator determinante para esta máxima: é possível haver um estado de incerteza sobre um determinado papel social ou grupal, ou seja: um comportamento que a APA classifica como papel de gênero, em que um homem ou uma mulher associam-se ou identificam-se com o gênero oposto.
O psicanalista alemão Erik Erikson (1902-1994) já estudava, em meados da década de 1940, as questões de identidade e papéis sociais. A ele associa-se a famosa expressão "crise de identidade" e é também dele a teoria dos Oito Estágios do Desenvolvimento do Ciclo de Vida. De acordo com o especialista – conhecido como um discípulo de Dra. Anna Freud -, durante a adolescência, ou quinto estágio psicossocial, o indivíduo pode experimentar uma espécie de moratória psicossocial, um determinado período de tempo que permite a experimentação com diferentes papéis sociais. Este sujeito poderá experimentar diferentes papéis e se identificar com grupos diferentes, antes de formar uma identidade positiva coesa que lhe permita contribuir para a sociedade. Alternativamente, ainda segundo Erikson, ele também pode se identificar com grupos alheios para formar uma identidade negativa ou pode permanecer confuso, sobre seu senso de identidade - condição que Erikson chama de difusão.
Há que se destacar, igualmente, os conceitos também presentes nos livros didáticos, como constância de forma ou gênero, consistência de gênero ou, até mesmo nos dias de hoje, de transtorno da identidade de gênero ou a utilização do sufixo "ismo".
O transgênero é, ainda hoje para as entidades maiores da Psicologia, o “ter” ou relativo a identidades de gênero, que diferem de papéis de gênero e sexo biológico culturalmente determinados. O estado transgênero inclui transexualidade, algumas formas de travestilidade e intersexualidade. Esses estados, ainda segundo a APA, não devem ser confundidos com orientação sexual-afetiva voltada ao mesmo sexo.
Nas crianças, descreve a APA, o transtorno se manifesta como aversão aos aspectos físicos de seu sexo e rejeição dos papéis de gênero tradicionais. Em adolescentes e adultos, como a crença persistente de que se nasceu com o sexo “errado” e a preocupação em alterar os próprios caracteres sexuais primários (órgãos sexuais) e secundários (sistema reprodutor). Já a categoria transtorno da identidade de gênero, sem outra especificação, é utilizada para classificar, entre outros, disforia de gênero relacionada à intersexualidade ou comportamento de vestir-se com roupas do sexo oposto ligados ao estresse ou à preocupação com castração ou penectomia (retirada cirúrgica do pênis).
A perspectiva que aponta para um resultado multifatorial é recente e ainda confrontada. A transgeneridade foi patologizada como um transtorno de identidade até o lançamento do DSM V, ou seja, ano corrente de 2013. A condição do sujeito transexual, até então, era definida como algo digno de um lugar à margem da sociedade, uma identidade anormal que constitui uma demanda para a normatização. Estas condutas eram, inclusive, incentivadas para os profissionais da saúde mental, por meio do guia da linguagem universal destes profissionais, ou seja, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) - que na sua quarta revisão, em 1994, mantinha o transtorno de identidade de gênero sob o código internacional de doenças (CID.10): F64.
O DSM IV, para além disso, apresenta notórios critérios de cunho social, ou seja, parece ter sido construído culturalmente, como é possível notar:
(3) preferências intensas e persistentes por papéis do sexo oposto em brincadeiras de faz-de-conta, ou fantasias persistentes acerca de ser do sexo oposto.
(4) intenso desejo de participar em jogos e passatempos estereotípicos do sexo oposto.
Ao verbete "transtorno de identidade de gênero", atribui-se, ao DSM-IV-TR, transtorno caracterizado por perturbação ou enfraquecimento clinicamente significativo do funcionamento devido à identificação com o gênero oposto (um desejo de ser ou real insistência de que se é do sexo oposto) e persistente desconforto oriundo da crença de que nosso gênero ou sexo é inadequado para nosso verdadeiro self. O transtorno se distingue da simples insatisfação ou inconformidade com os papéis de gênero.
Porém, neste mesmo documento, não encontramos explanações que enfatizassem, à época, os chamados critérios de papéis de gêneros, sendo estes desenvolvidos através do contexto do sujeito. Profissionais da saúde podiam, então, fortalecer seu viés patologizador, ao diagnosticar o transtorno dismórfico corporal - condição na qual o indivíduo sofre com uma característica corporal que considera defeito - no sujeito que buscava, por sua vez, a chamada redesignação sexual.
A moralidade rígida acaba então por promover a patologização da transexualidade, permeada, por vezes, por construções visivelmente religiosas, preconceituosas e/ou gregárias.
Note-se, porém, já no DSM V, a perspectiva do sujeito em um viés mais aproximado do “holístico”, numa introdução mais próxima da atualidade, o gênero e seus papéis:
Diferenças de gênero são variações que resultam tanto do sexo biológico como da auto representação do indivíduo, que inclui consequências psicológicas, comportamentais e sociais do gênero percebido. O termo diferenças de gênero é utilizado no DSM-5 porque, com mais frequência, as diferenças entre homens e mulheres são o resultado tanto do sexo biológico quanto da auto representação individual. Contudo, algumas diferenças baseiam-se apenas no sexo biológico.
O DSM V já apresenta uma compreensão de que o sexo biológico é uma das características que constroem um gênero e, portanto, retira o transtorno da identidade do indivíduo e caracteriza a disforia de gênero, condição na qual o sujeito “apresenta um descontentamento emocional/cognitivo com o gênero designado.” (DSM V, pág. 451).
Esta perspectiva, entretanto, embora mais abrangente, ainda é considerada patologizadora, pois mantém critérios sociais como classificações diagnósticas, impulsionando o início das discussões sociais e militantes sobre o tema.
Tais debates levantaram formas alternativas para repensar o gênero. Uma destas correntes é a teoria Queer, que trabalha a visão de gênero como uma construção histórica e cultural. Partindo deste pressuposto, os papeis de gênero ganham traços mais dinâmicos, uma vez que cada período histórico apresenta suas próprias definições acerca dos temas que envolvem o ser e a condição humana. Segundo BUTLER (APUD SILVA, 2018), uma das teóricas e pesquisadoras mais influentes do século 21, no que diz respeito ao tema:
Deste modo, de acordo com Butler, gênero corresponde a uma construção histórica e cultural, é uma ilusão socialmente criada e que enquadra as pessoas em uma ou outra possibilidade preestabelecida. O gênero se refere ao desempenho de um papel que não “existe” em si, mas que somente foi inventado.
Esta visão menos determinada e mais abrangente corrobora a própria identidade transgênero, pois parte de uma visão mais fluida e que permite a existência e o reconhecimento de outras formas de expressão sexual que vão além do tradicional binarismo homem/mulher.
A teoria Queer, no entanto, apresenta um enfoque exclusivamente social no gênero, não se aprofundando em questões fisiológicas e biológicas, que também são fundamentais para a discussão deste tema.
Apenas como um dado de atualização importante: a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou, no dia 18 de junho de 2018, a transexualidade da lista de doenças mentais, na nova versão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), divulgada na presente data. Permaneceu em registro o termo “incongruência de gênero”, uma vez que a entidade compreende que os cuidados de saúde destinados à esta população serão priorizados, se esta condição ainda estiver na CID. Refugou, entretanto, a caracterização como transtorno ou doença mental, pois compreende a existência de “claras e suficientes evidências científicas” para sua revisão e retirada, como tal, da classificação estatística.
Capítulo I – Sexualidade e Preconceito
A temática da sexualidade e seus desdobramentos sempre foi vista, em nossa sociedade, como algo a ser controlado desde a infância, seguindo como base o que é normal ou anormal. Crianças começam a ser modeladas, logo em seus primeiros anos de vida e, quando apresentam traços que possam fugir de um padrão pré-estabelecido, acabam sendo punidas.
Entre alguns exemplos comuns, meninos abraçando outros meninos, um beijo em outro colega, brincadeiras consideradas “deste ou daquele” gênero específico. Isto nos faz pensar que a sexualidade na infância causa medos que geram ações de repressão. Ceccarelli (2000) aponta este tópico e nos desafia com uma pergunta: “Por que o sexual desperta tanto terror podendo, às vezes, gerar atitudes absurdamente repressivas?”.
FOUCAULT (2014) fala sobre a sexualidade das crianças como algo “inexistente” e, bem por isso, digno de interdição, proibição, punição. Para ele, pais tapam seus ouvidos e fecham seus olhos para quaisquer manifestações, impondo um silêncio classificado por ele como “geral e aplicado”.
(..) a repressão funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio, afirmação de inexistência e, consequentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem para saber. Assim marcharia, com sua lógica capenga, a hipocrisia de nossas sociedades burguesas.
Este terror pode ser causado pelas evidentes mudanças contemporâneas e suas novas constituições de indivíduos, onde o assunto e toda sua compreensão tornou-se emergente.
Entretanto, estes novos olhares voltados para a discussão não são facilmente aceitos por boa parcela da sociedade, que acaba por reprimir o surgimento de novos movimentos - que vão de encontro ao entendimento sobre a própria sexualidade, bem como às novas perspectivas de ver e entender tais fenômenos. Ceccarelli (2000) decorre sobre essa mudança de época:
[...] por um lado, temos a repressão sexual que por variar segundo a cultura, a época, os costumes e os valores, pode ser alterada; por outro lado, temos o recalcamento da sexualidade, movimento constitutivo do psiquismo e condição própria para a existência da civilização.
O tabu sobre a sexualidade surgiu paralelamente às religiões - sendo a católica e a evangélica as grandes protagonistas. Antes deste marco, relações homoafetivas eram comuns, com o objetivo de passar o conhecimento para os mais novos, junto das práticas sexuais (FERREIRA, G., AGUINSKY B., 2013, p. 224). Entretanto, com o surgimento destas doutrinas, o ato sexual deixou de conter em seu teor uma forma de prazer e passou a ter, como objetivo único, a procriação.
Conforme FERREIRA, G., AGUINSKY B. (apud Trevisan 2004, p. 19), a ideia do prazer e a prática do sexo com o mesmo sexo carrega também, para além de outros fatores, um teor moral e capitalista:
Além de ser inútil para a reprodução da espécie, a prática homossexual solaparia a família (em cujo seio se geram os novos consumidores) e seus padrões ideológicos (cuja ordem é consumir). [...] o vácuo político ideológico, a crise do capitalismo e a recrudescência dos credos religiosos institucionalizados criaram terreno fértil para as execrações morais, insufladas agora por um milenarismo de olho no capital.
FOUCAULT (2014) inicia seu estudo sobre a história da sexualidade com uma consideração de caráter filosófico que pode nos esclarecer, em parte, as questões acerca do conformismo e da hipocrisia que estão diretamente ligadas às políticas e religiões arraigadas em nossa civilização. Para ele, o único lugar reconhecido como utilitário e fecundo em nossa sociedade é, de fato, o quarto dos pais. Os demais são típicos de decoro, vergonha e fora do chamado “status quo”.
O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não possui eira nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio. Não somente não existe, como não deve existir e à menor manifestação fá-lo-ão desaparecer – sejam atos ou palavras.
O que é novo, inédito, nos assusta, atinge e causa a sensação de total desproteção. Porém, em contraposição à nossa postura defensiva e tradicional, LINS (2012) explica que o sexo, aos poucos, vem perdendo a visão moralista que predominou sobre ele ao longo de nossa história. A consensualidade, o fator de equilíbrio e outros conceitos já reforçados por W. Reich, no início do século 20, têm se tornado cada vez mais presentes. Entretanto, a autora reforça que a acessibilidade ainda está longe de significar total libertação em nossos novos tempos.
Estamos acostumados a usar, no presente, modelos do passado. Entretanto, isso se torna cada vez menos possível. O ser humano começa a se libertar das sujeições que o limitam há cinco mil anos, desde o surgimento do patriarcado, cuja história se confunde com a própria história da nossa civilização. Seu tempo entre nós é tão longo que nossa forma de sentir e pensar foi considerada parte da natureza humana.
Segundo a autora, a chamada ideologia patriarcal - que se tornou nossa identidade por muitos anos – colocou homens e mulheres em batalha e situação de oposição, o que permitiu a dominação e submissão de ambos os gêneros. Eles não podem falhar, elas abrem mão de sua autonomia e ganham status de inferiores. E somente há cerca de 40 anos, o patriarcado começa, enfim, a perder suas bases, com o avanço tecnológico que, supostamente, eliminou a divisão sexual das tarefas.
Das Origens do Preconceito e da falta de informação
Um dos movimentos que vem ganhando força, junto ao feminista - que lutou e continua batalhando por direitos de escolha e equidade de gênero -, é o gay. Tal desenvolvimento de ações passa a ganhar força e determinado espaço de manifestação no início da década de 1990, conforme Bozon (2004, p. 86):
A divulgação de experiências vividas até então clandestinamente tem um duplo sentido político: favorecer a tomada de consciência e ampliação do movimento e lutar contra as múltiplas discriminações sofridas pelos homossexuais.
Para os movimentos em defesa da sexualidade e questões de gênero, o combate ao preconceito só poderá se concretizar por meio de informação, das defesas expressas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e também no combate à prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, orientação sexual, condição física, mental ou de qualquer outra natureza.
Iran Giusti, organizador e fundador da Casa Um, uma república cultural e de acolhimento à população LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queers, Intersexuais, Assexuais e demais denominações e apoiadores), prepara-se todo último domingo do mês para explicar, a uma horda de centenas de pessoas, o que faz a instituição, a quem acolhe e, principalmente, quem é a população alvo. O ano é 2018, mas Giusti ainda se arma de um flipboard de papel e caneta piloto para reconstituir, passo a passo, como chegamos até aqui.
Para o ativista, informar, explicar, milhares de vezes se necessário, é fundamental no processo lento de combate ao desconhecimento da população em relação à causa. E, mensalmente, faz seu ritual sem nenhum microfone ou ajuda tecnológica para tentar disseminar a cultura e as questões de identificação deste coletivo que, para além das constantes negativas da sociedade, ainda sofre com a falta de informação.
Da falta de conhecimento da causa
É de conhecimento geral que nossa existência possui uma base biológica, que implica na intervenção de dois sexos: macho e fêmea. Entretanto, o que nos faz e nos constitui, afinal, em seres sociais? Baseados neste contexto, entendemos que o conceito de gênero e sua relevância é parte essencial para a compreensão de nossa sociedade atual, em suas mais diferentes nuances – e não somente para determinados grupos.
E cada ser social representa, sobremaneira, uma contribuição na produção e reprodução da existência dos indivíduos. Entretanto, ao não se enxergar ou não se reconhecer em nenhum grupo, círculo, conceito ou critério, este mesmo sujeito está fadado a determinado rótulo pré-concebido por outrem, perdendo, entre outros aspectos, autoestima, identidade e, acima de tudo, perspectivas e direitos, do ponto de vista legal.
Em SILVA (2018), numa análise baseada na obra de Judith Butler, encontramos que “o corpo importa enquanto parte de uma situação histórica na qual ele se efetiva, e ‘situação histórica’ não pode ser abordada como ontologia. Portanto, Butler não nega que, na prática, existam pessoas que vivem sob as condições que a sociedade atribui às identidades que impõe às pessoas; o que Butler não aceita – e nesse sentido, a acompanhamos – é que essas condições, que são socialmente construídas, sejam abordadas no âmbito teórico como se fossem verdades ideais”.
Em outras palavras, limitar existências apenas a seu sexo biológico e sua forma de reprodução é, sob nosso entender, minimizar a importância, ignorar os direitos humanos e legais de boa parcela da população mundial, bem como excluir indivíduos por meio de um critério obsoleto e que precisa ser revisto, nos tempos de hoje.
Há mais de três décadas, FREIRE (1987) reforçava esta ideia e fazia sua crítica sobre insatisfações sociais e tomadas de consciência. Para além disso, também acrescentava em sua análise a nossa “ingenuidade” em dividir de forma “simplista” as relações entre oprimidos e opressores e todas as suas contradições. Segundo o autor, mais do que ativismo puro e simples, trata-se, outrossim, de ação e transformação.
Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Não há uma sem a outra, que não podem ser dicotomizadas (...). Este fazer a opressão real ainda mais opressora, acrescentando-lhe a consciência da opressão, a que Marx se refere, corresponde à relação dialética subjetividade-objetividade. Somente na sua solidariedade, em que o sujeito constitui com o objetivo uma unidade dialética, é possível a práxis autêntica. A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição oprimido-opressor.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1987. Pg 21.
Em suma, “estilizamos” o assunto de acordo com nossas próprias crenças e influências e não buscamos informações e caminhos que possam nos conduzir, de fato, a uma observação mais atenta sobre a subjetividade destes indivíduos, até para uma melhor compreensão da nossa sociedade. E isto será efetivamente demonstrado no bloco a seguir.
Da falta de conhecimento dos próprios indivíduos e sua constituição
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define sexualidade como “uma energia que nos motiva para encontrar amor, contato, ternura e intimidade; ela integra-se no modo como sentimos, movemos, tocamos e somos tocados, é ser-se sensual e ao mesmo tempo ser-se sexual. A sexualidade influencia pensamentos, sentimentos, ações e interações e, por isso, também a nossa saúde física e mental”.
Entretanto, conforme encontramos em CAMARGO, NETO (2017), “limitar a definição de que a sexualidade se associa a apenas a sexo biológico e reprodução, como já previa Foucault, não exprime o que são os conceitos atuais, mais abrangentes e inclusivos. Robert Stoller, no livro Sex and Gender, introduziu a palavra gênero para criar um critério diferente do termo sexo, que estava tão somente ligado às condições biológicas. Gênero foi incluído no conceito amplo de sexualidade com mais intensidade a partir da década de 1980, estimulado pelos movimentos sociais feministas. A palavra gênero expandiu a possibilidade dos papéis sociais e a aplicabilidade na relação entre a expressão de gênero feminino e gênero masculino, reforçando a subjetividade de cada ser humano na maneira de expressar sua sexualidade”.
Ainda sobre gênero e identificação, Joan Scott APUD CAMARGO, NETO (2017), afirmou que “existem vários aspectos ligados aos indivíduos e que são constituídos por diferenças percebidas pelas relações sociais entre os sexos, sendo uma maneira inicial de identificar-se. A autora conceituou que o gênero é constituído por quatro elementos que se correlacionam. São eles: os símbolos (nossas expressões sociais e caracterização); os conceitos normativos (que definem como devemos interpretar esses símbolos impostos por influências e doutrinas, sejam elas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas); a representação binária dos gêneros (que reconhece o sexo como influente na sexualidade humana, mas não como o único determinante no gênero escolhido pelo indivíduo); e a identidade subjetiva (que está diretamente ligada às discussões sobre os termos gênero e sexo, evidenciando as diferenças aplicadas)”.
Judith Butler vai além, ao iniciar uma discussão crítica que ampliará os conceitos sobre as relações afetivas binárias, gênero e sexo, homem e mulher e principalmente o sujeito e o outro, trazendo os aspectos subjetivos e de identidade da afetividade. “Em suma, gênero é a estilização repetida do corpo, um composto de ações que sofrem mudanças no decorrer da vida do indivíduo, que pode ter diversas identidades, não estando somente relacionadas às prevalências sexuais, o que vem aumentar ainda mais as influências recebidas, com enfoque nas questões emocionais de um ser humano”.
De forma bastante resumida, baseados em nossas pesquisas, poderíamos assim constituir a identidade social dos sujeitos: sexo biológico, identidade de gênero, expressão de gênero e orientação afetivo-sexual.
Entretanto, para nossa surpresa, ao realizamos uma pequena amostragem entre uma determinada população, com aparente acesso à comunicação e à informação, percebemos uma preocupante distância em relação a estas identidades – inclusive às suas próprias.
Para avançar um pouco mais nas nossas percepções sobre o tema, diante da notória carência de referências, produzimos uma rápida pesquisa. Nada de metodologias científicas estabelecidas ou comprovadas academicamente. Procuramos realizar, por meio de grupos de WhatsApp – uma das plataformas mais conhecidas e utilizadas por brasileiros atualmente, com cerca de 120 milhões de usuários no país – uma espécie de enquete que pudesse nos nortear para, efetivamente, dar prosseguimento ao trabalho de pesquisa – de forma mais verdadeira, concreta e conectada em relação ao autoconhecimento e à identificação ligada às questões da sexualidade de pessoas dos mais diferentes perfis. Isso nos garantiria, apesar da urgência, um retrato mais atualizado do que queríamos descobrir, em linhas gerais.
Também optamos por não limitar recortes socioeconômicos, educacionais, étnicos ou de faixa etária. Como características relevantes, podemos destacar que os respondentes possuíam entre 23 e 69 anos e são origenários ou vivem em diferentes regiões do Brasil, com rendas médias que variam entre um e acima de cinco salários mínimos. Consideramos importante, para a comprovação ou negação de algumas das hipóteses, tal diversidade de perfis para que conseguíssemos captar o olhar de uma camada bastante ampla e que perpassasse por todos os espectros de formação e construção social.
E, justamente para avaliar o nível e o conhecimento real sobre o tema e todas as suas nuances, os questionamentos foram feitos de maneira aberta, isto é, não havia nenhuma múltipla escolha ou opção para que pudessem escolher como resposta. Ao todo, participaram do nosso breve levantamento uma pequena amostra de 62 pessoas entre os sexos biológicos identificados, com sobreposição de mulheres sobre homens.
Entretanto, identificamos um contraponto na pesquisa: ao mesmo tempo em que as respostas circundam dentro de um universo com expressões bastante objetivas, mesmo com um questionário aberto, demonstram também uma variedade interessante de respostas que, por fim, nos apontaram alguns caminhos.
A divisão ficou da seguinte forma:
Sexo biológico
Dados
Feminino
56%
Masculino
44%
Amostra total
62
Esta mesma divisão, por uma questão semântica e de identificação, foi utilizada para observar o comportamento e a percepção geral das pessoas sobre a supracitada classificação proposta.
Quando olhamos para o universo feminino de respondentes, temos as seguintes respostas.
Respostas
Feminino/a
Fêmea
Mulher
Seu sexo biológico
29
4
2
Respostas
Feminino/a
Cis/Cisgênero
Mulher
Sua identidade de gênero
24
4
7
Respostas
Feminino/a
Cis
Mulher
Não binária
Menina
Sua expressão de gênero
27
1
5
1
1
Respostas
Hetero sexual
Homossexual
Bissexual
Feminina
Masculina
Gay
Lésbica
Hetero flexível
MSM
Sua orientação afetivo-sexual
25
1
3
1
1
1
1
1
1
Até mesmo em uma questão que, em tese, deveria ter uma resposta bastante simples e objetiva, que se refere ao sexo biológico, encontramos algumas respostas para além do feminino, como fêmea ou mulher. O mesmo ocorre com identidade de gênero que, inclusive, vai além. Pouquíssimas pessoas conseguem identificar ou sabem exatamente o que significa Cis ou Cisgênero.
O tema se complexifica ainda mais quando avançamos sobre as questões ligadas à expressão de gênero e orientação afetivo-sexual. O espectro de possibilidades se amplia e há muita confusão sobre uma definição objetiva e clara na resposta. Muitos dos participantes ficaram perdidos, outros apenas queriam “acertar”, alguns admitiram “colar” a respostas dos colegas e outros ainda, seguem, com dúvidas, especialmente no quesito bissexual, mulheres que fazem sexo com mulheres (MSM) ou curiosas/os.
Encontramos, inclusive, conflitos entre pessoas que acreditam que orientação sexual é aquela que se busca no parceiro. Apesar das respostas, uma quantidade representativa de mulheres consegue direcionar ou, ao menos, vê com mais nitidez a questão da orientação, tamanho o volume de respostas heterossexual, homossexual ou bissexual.
Já no caso masculino, encontramos padrões bastante parecidos. Ao avaliarmos as respostas:
Respostas
Masculino
Menino
Seu sexo biológico
96%
4%
Respostas
Masculino/a
Macho
Homem
Sua identidade de gênero
25
1
1
Respostas
Masculino/a
Homem
Cis
Não sabe
Sua expressão de gênero
22
3
1
1
Respostas
Heterossexual
Homossexual
Bissexual
Busca mulheres
Sua orientação afetivo-sexual
19
5
1
1
Vemos – assim como algumas pessoas do sexo biológico feminino se apresentaram como fêmeas – a utilização do termo “macho” em um caso. Vale ressaltar que “Cis” também apareceu, no questionamento sobre identidade de gênero. Da mesma forma, muitos dos respondentes que se classificam como masculinos no sexo biológico, também se mostraram confusos em relação ao assunto.
Das origens da sexualidade
LINS (2014) relata que o homem de Cro-Magnon, primeiro representante do Homo Sapiens no Paleolítico superior, era forte, vivia da caça e da coleta de alimentos e dependia da parceria com as mulheres para sobreviver. Ainda havia um grande temor sobre os mistérios da vida e da morte e o vínculo entre sexo e procriação ainda era totalmente desconhecido. A fertilidade era uma característica exclusivamente feminina. Arqueólogos já encontraram quase 200 estátuas que, segundo eles, testemunharam o culto à fecundação – nenhuma delas é capaz de representar o ato sexual ou qualquer sinal de erotismo.
Nestes tempos remotíssimos, mulheres eram retratadas como deusas, eram poderosas no imaginário da época por seu poder de fertilidade. Assim como elas, animais e plantas também assumiam formas variadas de um deus politeísta e transcendente. E, a partir do momento em que o homem, já no período Neolítico, descobre que também é responsável pela fertilidade e fecundação, automaticamente mulheres perdem sua importância nas culturas – já agrícolas e pastoris, à época. Passam, então, a serem encaradas como objetos, mercadorias, e as Deusas são, gradativamente, destituídas de poder.
Um dado bastante curioso sobre o período, ainda de acordo com LINS, pode nos oferecer uma reflexão mais ampla sobre como chegamos à pós-modernidade com mudanças apenas relativas em nosso comportamento e percepção sobre o mundo: um estudo atual de 853 culturas apontou que apenas 16% são monogâmicas. Ou seja: 84% das sociedades humanas permitem aos homens possuir mais de uma esposa de cada vez. É justamente, portanto, quando surge a noção de casal, de coparticipação, com o filho não mais ligado de forma exclusiva à sua mãe, a mulher perde seu poder de Deusa e, consequentemente, a sua liberdade sexual. E o culto ao falo, ao masculino, ao viril assume uma posição preponderante, que se desdobraria de formas pouco amistosas, ao longo da história.
A diferença entre sexo biológico e identificação de gênero pode causar dificuldades, incertezas e até mesmo inquietações de ordem moral para o indivíduo, na vida em sociedade: a dúvida e o desafio da auto aceitação são apenas os primeiros passos. Só então, inicia-se o processo, que pode ser o mais doloroso e delicado de suas vidas: a difícil batalha por aceitação e inserção em um círculo social repleto de pré-conceitos enfincados. O corpo se define não só por sua constituição, mas por todo o seu entorno e experiências sociais e culturais: não pode ser delimitado pelo que é e, como ocorre frequentemente, enquadrado como adequado ou não. A formação de uma identidade passa pela constante troca com o Outro. É importante, como diz SANTOS (2014), que a rede social do transgênero o acolha e o respeite, em sua identificação. Isso permitirá um desenvolvimento mais propício da sua verdadeira identidade sexual e do cumprimento de seu papel social na comunidade em que vive. Entende-se que há distinções entre sexo biológico, identidade de gênero, expressão de gênero e a orientação afetivo-sexual. Estes fatores podem causar dificuldades para a auto aceitação e a adequação do transgênero ao seu meio social, ao desenvolver um papel que não está “de acordo” com seu papel designado.
Na sociedade contemporânea, a escola é uma das primeiras oportunidades de socialização do indivíduo. Sendo assim, a escola é um vetor dessa inclusão (ou exclusão). Para indivíduos considerados fora do padrão, os ambientes - invariavelmente constituídos por homens, brancos, heterossexuais, burgueses e cristãos -, acabam por se consolidar em um poderoso isolador social. A escola é, portanto, o primeiro contato com diversas disciplinas e discussões críticas que acabarão por despertar interesses em suas carreiras como adultos.
Baseando nosso estudo especificamente na área do esporte, a relação dos transgêneros com a ciência da Educação Física (a porta de entrada neste universo, para muitos atletas) merece atenção - não apenas do ponto de vista do aluno, mas também do ponto de vista acadêmico. Muitas diretrizes partem de órgãos estaduais, para que se discuta nos ciclos de educação básica as questões relativas ao gênero, inclusive com foco no universo trans. Porém, muitas barreiras conservadoras impedem que o avanço necessário possa ocorrer nesta questão. Sensibilizar profissionais da área de educação pode ser uma forma de iniciar um movimento em cadeia, capaz de oferecer novas possibilidades de acesso a diferentes áreas de atuação para transgêneros - inclusive no esporte.
A utilização do chamado “nome social”, o constrangimento dos colegas e a proibição da utilização do banheiro são apenas alguns dos exemplos simples, ainda dos primeiros anos de vida escolar destes indivíduos, que podem nos levar a reflexões mais profundas sobre a temática: as diversas barreiras encontradas, ainda em fase de desenvolvimento psicossocial, faz com que muitas crianças trans abandonem os estudos. Em um estudo de 2016, pesquisadores entrevistaram educadores transgêneros e colheram algumas de suas vivências em aulas de educação física, no período escolar ou superior. Alguns relatos demonstram a exclusão: eles decidiam não participar por frequente constrangimento de colegas ou por falta de interesse próprio.
A diversidade dos relatos aponta para um fato: a escola, que deveria congregar, acaba por reforçar a exclusão e, nas atividades físicas, esse movimento é ainda mais evidente: a separação binária e os jogos para meninas e meninos são alguns dos obstáculos para o acesso. Para além disso, a criação destas visíveis barreiras para os considerados oprimidos inicia, no grupo opressor, um processo cíclico de validação e de comportamento adequado – que nunca se encerra.
Do ponto de vista psicológico, esta segunda etapa é a que causa mais traumas a estes grupos, visto que passam, então, a serem marginalizados sob uma outra série de falaciosas justificativas: imorais, confusos, pecadores e, porque não dizer, “doentes em busca de tratamento”, como sugeriu em 2017 a liminar concedida pelo juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara do Distrito Federal, que torna legalmente possível que psicólogos ofereçam as chamadas psicoterapias de reversão sexual – mais popularmente chamadas de “cura gay”. Esta constante busca da sociedade por inviabilizar a expressão destes grupos torna, ainda mais importante, a construção de uma rede social que possa amparar e dar suporte a estes indivíduos, sem invalidar a sua natureza.
Diversos órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicaram notas de repúdio à medida. Desde 1999, por meio de uma resolução publicada pelo CFP, o oferecimento de terapias de reversão sexual é proibido, principalmente, pela falta de evidências científicas que demonstrem sua eficácia. O Conselho Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais/Travestis (LGBT), em nota, também expressou sua preocupação com a falta de evidências que justifiquem tais tratamentos:
é importante destacar que a Resolução 1/99 do Conselho Federal de Psicologia não visa cercear a atuação profissional de psicólogos e psicólogas, uma vez que não impede o atendimento, tampouco proíbe o profissional de acolher o paciente que chega ao hospital, ao consultório, ao posto de saúde ou a qualquer outro espaço de atuação profissional. A Resolução visa evitar que pacientes sejam submetidos a uma terapia experimental, sem comprovação de efetividade científica e que agrava sentimentos de baixa autoestima, depressão e angústia, colocando em risco a vida do paciente.
A principal orientação do Conselho não é recusar pacientes que busquem auxílio terapêutico, por queixa manifesta de angústias para com a sua sexualidade. O que deve ser trabalhado pelo psicólogo, longe de uma mudança de comportamento, é a busca pelo entendimento e aceitação da própria sexualidade. É necessário, outrossim, que a classe profissional proponha formas de encarar o preconceito gerado e retroalimentado pela sociedade, sendo esta discriminação – e não sua identificação de gênero - a principal causa de sua angústia.
Porém, bem distante do ambiente “protegido” das instituições, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, segundo levantamento feito pela Organização Não Governamental Transgender Europe. Ironicamente, é também um dos países que mais consome pornografia transexual - os próprios sites de conteúdo pornográfico apresentam seus números de acesso. Essa relação contraditória nos leva a mais uma e complexa questão: o preconceito e a discriminação vislumbram uma espécie de ambiguidade, na temática da transexualidade. Carmita Abdo, coordenadora de pesquisas do Hospital das Clínicas comentou em reportagem recente que, embora haja ódio e preconceito, o indivíduo pode também sentir uma espécie de atração. Este sentimento dúbio e inconsistente pode causar um grande desconforto que, levado a extremos, pode acarretar na agressão de pessoas transexuais, como se o ato fosse capaz de diminuir tal incômodo. (GERMANO, 2017). Velada sob uma falsa ideia de democracia e moralidade, a sociedade brasileira, em geral, tenta esmorecer ou ignorar este grupo, numa movimentação de aparente “efeito cascata”, que se inicia bem no centro de quem deveria, teoricamente, proteger esses cidadãos – o Estado. Percebe-se que, assim como a própria sociedade, a Nação e suas leis possuem um caráter dualista, pois, ao mesmo tempo em que cria medidas para fomentar o respeito a estes grupos, perpetua a violência simbólica e configura-se como o primeiro opressor de toda a cadeia. Os constantes ataques a estes grupos - até mesmo pelas Instituições que deveriam garantir sua liberdade e segurança -, legitima a ideia de que essas pessoas são invisíveis e podem ser descartadas, apenas por uma orientação sexual que diverge de um padrão normativo, estabelecido e sedimentado.
Em estudo realizado com 16 travestis no município de Cajazeiras, sertão do Estado da Paraíba, o perfil da violência que estes grupos sofrem foi parcialmente categorizado, assim como a evidência das conclusões: as agressões ocorrem sempre em ambientes familiares, nas ruas e em ambientes profissionais. Além disso, a pesquisa, embora de pequena amostragem, também levanta a preocupante ideia de que a agressão ao transgênero possa estar ligada a outros tipos de preconceitos contra liberdades individuais e etnias. Esta junção de pensamentos é, de certa forma, processada pelo agressor, que tenta eliminar, por meio da vítima, tudo aquilo que julga inadequado para a sociedade. O estudo também revelou que a maioria dos entrevistados (91,96%) já foi vítima de abusos verbais, 33% já haviam sofrido violência física, em maior parte praticada por vizinhos ou desconhecidos. Os membros familiares aparecem em segundo lugar. (SILVA, 2016).
Além disso, a dificuldade de inserção no mercado de trabalho e no acesso a direitos básicos leva este coletivo, em muitos casos, à execução de práticas marginalizadas e estereotipadas, para assegurar a sua sobrevivência. Os ramos reservados (e, aparentemente possíveis) aos transexuais estão voltados para os mercados da prostituição, estética, entre outros. (RONDAS e MACHADO, 2015). Isso se deve, principalmente, à constante discriminação que estas pessoas sofrem ainda em processo de escolarização - o que os fazem evitar estes ambientes, limitando assim a sua formação intelectual. A falta de estudo, aliada ao preconceito no mercado de trabalho, diminui, consideravelmente, as chances do grupo de obterem vagas de trabalho ditas como convencionais. No mesmo estudo dos autores supracitados, doze travestis relataram as dificuldades para conseguir empregos formais - boa parte dos cargos foram conseguidos apenas com indicações e com a ajuda de entidades ligadas à causa LGBT. Apenas dois casos foram relatados como busca independente (concurso público e anúncio no jornal).
E mesmo que já inseridos no mercado mais formalizado, a luta pela aceitação e o desenvolvimento ainda enfrentam dificuldades. Os entrevistados relatam, por exemplo, não enxergarem possibilidades de crescimento ou reconhecimento pela função desempenhada. Embora empregados, ganham salários baixos, são constrangidos com brincadeiras, boicotes, ameaças e comentários acerca de sua sexualidade, além de possuírem rotinas estafantes de trabalho e com acúmulo de funções.
Devido às constantes dificuldades apresentadas para conseguirem empregos ou manterem-se nestes, muitos indivíduos procuram a prostituição como caminho. Acabam por tomar a decisão por encontrarem melhores ganhos financeiros, visto que o cuidado estético demanda gastos altos. Além disso, algumas entrevistadas pelos pesquisadores se queixaram do fato dos trabalhos formais exigirem mudanças em suas características físicas, para se tornarem mais bem aceitas. Uma delas, inclusive, resume a opinião das colegas: “Se você não abrir mão de alguma coisa, da sua vaidade, do seu estilo, você não consegue. Tem que abrir mão de alguma coisa e elas não querem abrir”. De fato, a escolha de abrir mão da identidade pessoal por um ambiente, em boa parte, hostil, com poucos ganhos financeiros, permite uma compreensão clara sobre o fato de transexuais optarem pela prostituição como “meio de vida”.
O resultado de uma análise rápida deste ambiente em que tais grupos estão expostos é de uma generalização hipersexualidada e enganosa: o transgênero é apenas visto e resumido como “um homem querendo ser mulher ou vice-versa”, e não como um indivíduo dotado de sonhos, paixões, dúvidas e todas as características que permeiam a psique de qualquer ser humano. Partindo desta premissa, este presente estudo de grupo poderá trazer novas contribuições para as inadiáveis questões da inserção, aceitação e respeito aos sujeitos e, principalmente, para a discussão urgente da diversidade. Em um momento delicado, de notáveis tentativas de silenciamento a estes grupos, acreditamos que a produção acadêmica deve aprofundar a discussão, dando voz à esta população como forma de resposta e, principalmente, proteção de suas individualidades, singularidades e direitos.
Delineando, por fim, o objeto de estudo, decidiu-se por aprofundar as pesquisas em uma estrutura específica: como os transexuais se inserem e (sobre) vivem no esporte?
Capítulo II – Esporte e História
VAMPLEW (2013) afirma, em seu artigo científico para a Revista Tempo, que não existem verdades absolutas quando tratamos de História do Esporte. Segundo ele, o assunto é um terreno bastante contestado e que depende de variantes bastante importantes, para ser avaliado ao longo do tempo: perspectivas políticas, sociais, além da subjetividade que pode afetar diretamente sua abordagem e narrativa.
A escola da educação física, por exemplo, focava mais seus estudos no desenvolvimento de esportes específicos, enquanto que a da história discutia como os esportes se encaixavam na sociedade. Entretanto, não existe, segundo o autor, algum marco fundador que poderia demarcar, efetivamente, o início de tudo.
Já em TUBINO (2010), podemos encontrar um ponto de partida para o que chamamos de "atividades esportivas". Para ele, a história do esporte pode ser dividida e contada a partir do seguinte cronograma:
● Esporte Antigo: até a primeira metade do século XIX
● Esporte Moderno: de 1820 a 1980
● Esporte Contemporâneo: de 1980 em diante
Na Antiguidade, de acordo com o autor, as práticas esportivas eram bastante diferentes do formato atual, conceituadas como práticas pré-esportivas. Algumas delas eram consideradas úteis para a sobrevivência do homem, como a corrida e a caça. Já outras poderiam ser classificadas como uma verdadeira preparação para guerras, como a esgrima e as lutas.
Muitas dessas chamadas práticas pré-esportivas do Esporte Antigo desapareceram com o tempo. Outras se transformaram em Esportes Autótonos ou “esportes puros”, que continuaram a ser praticados ao longo do tempo sem receber influências de outras culturas. Quando os Esportes Autótonos permanecem como prática, mas com modificações de outras culturas, geralmente de nações colonizadoras, passam a ser chamados Esportes ou Jogos Tradicionais (TUBINO, 2010, p.21).
Mesmo com as dificuldades de definições exatas sobre o início do fenômeno esporte, são os jogos gregos, de acordo com Tubino, as legítimas primeiras manifestações esportivas. Eram “festas populares, religiosas, verdadeiras cerimônias pan-helênicas, cujos participantes eram as cidades gregas” (TUBINO, 2010, p. 22).
Como exemplo dos Jogos Gregos, pode-se citar os Jogos Fúnebres, os Jogos Píticos, os Jogos Ístmicos, as Panatenéias, outros Jogos e principalmente os Jogos Olímpicos da Antiguidade. Os Jogos Olímpicos da Antiguidade, principal manifestação esportiva do período, eram celebrados em Olímpia, Élida, num bosque sagrado chamado “Altis”, em homenagem a Zeus Horquios, a cada quatro anos. Esses Jogos eram anunciados pelos arautos e desenvolvidos pelos helenoices. As principais provas eram: corrida de estádio, corrida do duplo estádio, corrida de fundo, luta, pentatlo, corrida das quadrigas, pancrácio, corrida de cavalos montados, corrida com armas, corrida de bigas, pugilato e outras.
Com a ascensão da civilização romana, o esporte em seu conhecido formato, entra em franca decadência, e dá lugar a chamados Jogos Circenses, competições públicas que em nada se assemelham aos antigos e tradicionais preceitos helênicos. E, com o passar dos anos, especialmente nos séculos 18 e 19, as disputas passam a contar também com apostas do público expectador, conferindo um patamar agressivo às competições.
Somente em 1820, o esporte começa a tomar a forma atualmente conhecida, a partir da codificação de regras e competições realizada pelo inglês Thomas Arnold, mais conhecido como "o pai do esporte moderno". E a iniciativa tomou de vez o impulso necessário com a restauração dos Jogos Olímpicos por Pierre de Coubertin, em 1896 (Atenas). O reinício do movimento olímpico consolidou o Esporte e ainda trouxe o segundo suporte da Ética esportiva: o Fair-play.
O Barão de Coubertin era um historiador e pedagogo francês. Estudou Arte, Filosofia e Direito em Sorbonne - onde mais tarde, também por sua iniciativa, nasceria o Comitê Olímpico Internacional (COI), durante um congresso. Filho de artistas, cresceu num ambiente aristocrático e aparentemente moderno. Entretanto, mesmo com suas contribuições reconhecidamente valiosas, era contra a participação feminina nas disputas olímpicas.
Para que tenhamos uma ideia do sexismo imperante à época, no ano de 1900, apenas 11 mulheres compunham o elenco olímpico de todas as delegações: seis tenistas e cinco golfistas. E mesmo com a resistência feminina presente e a evidente necessidade de equalização, o reinventor dos Jogos não se furtou em pedir demissão do COI - que ele mesmo criou - na abertura das Olimpíadas de Amsterdã, em 1928. O motivo: considerava que a participação de mulheres nos Jogos era uma "traição ao ideal olímpico". Em 2016, no evento esportivo realizado no Rio de Janeiro, a população feminina nas competições chegou a 45%.
É importante salientar que o machismo no esporte não foi, de fato, inventado pelo barão francês. Mulheres casadas que fossem flagradas assistindo aos Jogos Olímpicos na Grécia Antiga, por exemplo, eram condenadas à morte. Todos os 295 atletas da primeira Olimpíada da Era Moderna, em 1896, eram homens. E quem se atreveu a desrespeitar as regras, precisou reunir muitas forças para entrar para a História: a grega Melpomene, por exemplo, inscreveu-se para participar da maratona olímpica de 1896. Sua inscrição foi recusada, mas ela decidiu correr por conta própria. Começou a prova alguns minutos depois dos homens, foi vaiada pelo público, parou por 10 minutos para descansar e beber água. Mesmo assim, depois de recomposta, chegou a ultrapassar muitos adversários. Proibida de entrar no estádio, deu sua última volta histórica contornando a arena, pelo lado de fora.
Práticas amadoras e profissionais
A prática de atividades físicas é recomendada para a vida saudável dos indivíduos. Aliada a uma boa alimentação e ao não consumo de drogas e abuso de bebidas alcóolicas, as expectativas de vida são maiores em pessoas que mantém rotinas regulares de exercícios, sejam atividades em grupo ou individuais.
Toda movimentação dos músculos, e que tem um caráter voltado à manutenção da qualidade de vida com aspectos preventivos (evitar doenças do coração, diabetes, obesidade, hipertensão, entre outros), pode ser enquadrada na definição de atividade física.
Além disso, é importante citar que, atualmente, o sedentarismo é um hábito de grande extensão na vida moderna. Muitos assuntos são resolvidos apenas diante de uma tela de computador e o trabalho, sentado diante de uma mesa, é uma realidade comum para a maioria da população. Isso tem trazido inúmeros problemas de saúde e de grande incidência. Segundo estudos do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, 29,4% das mortes no país são causadas por doenças cardiovasculares. A obesidade atinge 18,9% da população brasileira - ou um a cada cinco brasileiros - segundo dados do Ministério da Saúde. Para além dos benefícios físicos, a atividade física diminui a ansiedade e também contribui para o equilíbrio psicológico humano.
A prática pode ser executada por objetivos dos mais diversos, seja pela supracitada manutenção da saúde, seja pela qualidade e obtenção de boas performances. A partir deste segundo item, já podemos nos referir a uma prática esportiva como atividade física. Vale salientar que, apesar de buscar melhoras em seu desempenho, o indivíduo, muitas vezes, não tem o propósito de construir uma carreira profissional, na determinada atividade.
Além de saudável, esta rotina funciona como uma porta de entrada para a possibilidade de ascensão social. E esta ascensão está relacionada à mudança do caráter amador para o profissional. Para isso, há uma série de padrões e normas que os atletas devem cumprir para exercerem suas práticas como profissão.
Condições para atuação profissional do atleta e a realidade
Para caracterizar sua prática física como uma atividade profissional, o atleta deve filiar-se a uma entidade desportiva e sua categoria. Firma-se, então, um contrato de trabalho para regularizar sua atuação, estabelecendo assim o chamado vínculo empregatício. O contrato contém obrigações por parte da organização, como contratante, e do atleta, como contratado. Por exemplo: o que deve ser feito, em caso de rescisão unilateral, início e término da sua vigência, desistência ou descumprimento por uma das partes. Estando sob os regimes da CLT, o atleta terá respaldo jurídico, como em qualquer outra categoria trabalhista.
São obrigações da entidade a formalização do contrato com o atleta, o oferecimento de estruturas para a prática do esporte e a realização de exames periódicos de saúde e antidoping. Além disso, a entidade deve contratar uma seguradora para garantir proteção em caso de acidentes. Tal seguradora deve oferecer uma remuneração compatível com o ganho formal do atleta, caso este fique impossibilitado de competir em decorrência de um acidente, conforme a lei 12.395 de 2011.
O atleta, por sua vez, precisa cumprir com as regras estabelecidas de treinos, estágios e outros aprimoramentos, para a melhor execução de suas técnicas. Deve auto preservar-se, em termos físicos e psicológicos, garantido estar em boas condições para as competições e exercitar a sua prática de acordo com as regras da entidade, visando sempre os princípios disciplinares e éticos.
O atleta não se enquadrará como profissional caso componha ligas esportivas escolares, militares e seja menor de dezesseis anos.
Neste modelo, o atleta está sujeito às legislações trabalhistas comuns e também fica sob as condições específicas de atuação em sua modalidade. Usemos de exemplo, o futebol. Todos os contratos firmados entre as entidades e os atletas são pré-determinados. A associação define um prazo de validade, que não pode ser inferior a três meses, nem superior a cinco anos. As outras modalidades não são obrigadas a realizarem modelos contratuais pré-estabelecidos.
Vale ressaltar que os atletas maiores de quatorze anos e menores de vinte anos podem receber bolsas das respectivas entidades, desde que seja estabelecido que o caráter desta bolsa será de aprendizagem, excluindo o vínculo empregatício entre as partes. Ao completar dezesseis anos, porém, o atleta já pode ter o primeiro contrato de trabalho formal, desde que sua duração não ultrapasse cinco anos.
O atleta de futebol masculino mais bem remunerado e reconhecido do País, em tese, possuiria o aparente apoio das federações esportivas ligados à sua modalidade, bem como associações e a própria legislação brasileira trabalhando em seu favor. Mesmo com todas as peculiaridades, ainda é nos gramados que ainda podemos verificar e refletir os contratos mais formais - e também de valores mais exorbitantes - frente a todas as demais modalidades esportivas praticadas hoje no Brasil, seja entre homens ou mulheres.
Como exemplo emblemático, as chamadas "Lei Zico" e "Lei Pelé" que, em tempos distintos, fundamentaram e organizaram diferentes e importantes regulamentações no que se refere ao chamado Direito Desportivo.
A Lei nº 8.672/93, chamada de ‘Lei Zico’, instituiu normas gerais sobre desporto. A presente lei tem como característica a descentralização de poder com a redução significativa da interferência estatal, a moralização, a liberdade e a democracia (EZEBELLA, 2006).
Embora tenha sido a precursora, no que se refere aos primeiros passos pela democratização das leis do futebol no Brasil, ela deixou seu legado e muitos espaços abertos para discussão e aprofundamento do tópico, ao longo dos anos.
A Lei foi sucedida e deu nome a um outro grande atleta brasileiro. A Lei nº 9.615/98, revogou a Lei nº 8.672/93. Desde a sua promulgação da Lei nº 9.615/98, a chamada ‘Lei Pelé’, foi alvo de inúmeras críticas e exaustivos debates, pois seu texto apresentou inovações notáveis e que mexiam diretamente com as tratativas entre atletas e seus clubes. Entretanto, o ponto mais importante, e que aqui destaca-se, é justamente o fim do ‘passe’ do jogador de futebol. As mudanças e alterações foram inevitáveis, especialmente por meio de lobby da chamada "cartolagem brasileira" - o grupo da elite que comanda o futebol nacional e está à frente das agremiações. A primeira revogação data dos anos de 2000.
Mesmo com as aparentes mudanças e os chamados "novos tempos" relacionados aos contratos dos atletas da bola, na prática, pouca coisa mudou. Os clubes continuaram ditando as regras, deixando de pagar uma série de benefícios e direitos dos jogadores, bem como negociando transmissões com as emissoras de TV sem tratar do âmbito do direito de imagem dos atletas. Em outras palavras, o contrato era assinado pelos dirigentes sem que isso fosse participado à base. Resultado: cargas exaustivas de trabalho, uso indevido das imagens de jogos e seus protagonistas e mínima ou quase nenhuma negociação em relação às férias, dias de descanso e demais tratativas aparentemente comuns a trabalhadores dos mais diferentes setores.
Em 2013, uma associação foi criada para dar voz a estes trabalhadores do esporte. O Bom Senso F.C. foi criado com a ideia de debater e estudar melhores condições para os atletas de futebol no Brasil e era encabeçado pelos próprios jogadores - muitos deles aderiram à causa, naquela época. Foi o primeiro movimento na história do futebol brasileiro a transmitir mensagens e alegações diretamente aos dirigentes, sem intermediários como empresários ou agentes. Críticas públicas também foram dirigidas à Confederação Brasileira de Futebol, por não se posicionar em favor dos atletas e por estar, acima de tudo, envolvida em esquemas escandalosos de corrupção. Tudo era discutido e acordado de forma transparente e aberta. Ou deveria ser.
Foram inúmeras as manifestações em campo dos, pelo menos 75 jogadores/fundadores da associação, até a extinção do movimento, em 2016.
As críticas se baseavam na "manipulação da opinião pública" pelos atletas, segundo os detratores. Até mesmo ex-jogadores de futebol declararam desconfiança em relação ao Bom Senso F.C., por suas "exigências exageradas" - o tricampeão mundial Carlos Alberto Torres (1944-2016) foi um deles.
Há que se concluir que, apesar das tentativas de avanço neste sentido, nem mesmo no futebol conseguiu dar um passo à frente, no que diz respeito a contratos de trabalho e acordos bilaterais consensuais. O negócio jurídico, que determina acordos, vontades e deveria prever também rompimentos, ainda está longe de ser uma realidade, dentro do âmbito esportivo nacional.
Se o próprio futebol já apresenta, de forma bastante clara, esta dificuldade de articulação, podemos imaginar o encaixe de outras modalidades esportivas menos prestigiadas e, principalmente, ainda menos rentáveis para Comitês, Organizações e Federações em geral.
Desenvolvimento físico
No decorrer desta pesquisa, ratificamos o que ouvimos enfaticamente de todos os profissionais da área da saúde: a atividade física traz diversos benefícios e, com o acompanhamento adequado, após avaliações e adaptações para cada organismo, é recomendada com grande frequência. Para FLORINDO (2006) “é atualmente uma das áreas mais importantes para a epidemiologia, quando o enfoque é a prevenção das doenças crônicas não transmissíveis”.
Portanto, ao pensarmos em um sujeito que aperfeiçoa suas performances com um objetivo para além do bem-estar físico e mental, voltadas para um conjunto de regras e diretrizes, como delimitado em práticas esportivas, acreditamos que seu desenvolvimento físico deve necessitar de estruturas e habilidades diferenciadas para o desejado destaque.
A condição humana é pressuposta por interações entre o sujeito e o seu contexto, situação que se observa não só na formação de personalidade e condutas, como também na constituição do corpo. Cada movimento voluntário que atinge o objetivo almejado foi aperfeiçoado por meio da repetição, isto é, um entorno promovendo a chance para que tal movimento aconteça - seja por incentivo, prazer ou necessidade. Antes de considerar movimentos aperfeiçoados, como o desempenho valorizado já mencionado, é importante considerar as etapas anteriores – afinal, a complexidade provém da aprendizagem, dentre outras etapas.
RÉ (2011) considera as características biológicas através do ambiente que o sujeito está inserido e cada fase com suas especificidades para uma função ideal. Sua pesquisa tem o respaldo dos ciclos desde o nascimento até a puberdade, sendo todas as fases de importante contribuição. Em suas palavras, “para o processo de aquisição de habilidades e capacidades motoras, inerentes ao esporte”.
GUEDES (2011) esclarece a complexidade e a singularidade que compõem todo o processo de crescimento, maturação e desenvolvimento do ser humano, que são processos diferentes, porém indissociáveis - principalmente até a fase adulta jovem, que se caracteriza pelos primeiros 20 anos. Isso inclui, portanto, uma grande interferência em questões afetivas, sociais e motoras, e recebe total influência do meio em que o indivíduo está inserido durante toda a sua vida e à forma como ele é influenciado - por exemplo, com a alimentação, exercícios, estímulos, patologias e etc. Pode-se afirmar que o crescimento é composto por elementos biológicos quantitativos, que é o crescimento celular e dimensional do corpo em fator do tempo, e o desenvolvimento e maturação por elementos qualitativos, que são mais abrangentes - desde o crescimento físico, até o amadurecimento das funções e diferentes órgãos e sistemas. É uma interligação dos aspectos individuais de cada um com o meio, que inclui também aspectos socioculturais e genéticos e, por isso, não pode ser entendida considerando apenas aspectos biológicos e/ou ambientais.
Em vista, pode-se então realizar um acompanhamento e medição de indicadores associados ao crescimento, com a antropometria, para auxiliar na identificação de fatores que, de alguma forma, prejudiquem o crescimento físico ou causem disfunções à saúde ou ao crescimento do indivíduo. Para a Organização Mundial da Saúde, níveis de crescimento físico de jovens podem ser considerados importantes indicadores de saúde e qualidade de vida individual e coletiva de uma comunidade (WHO, 1995).
Caso haja comparação entre os gêneros masculino e feminino, o desempenho motor sofre pouca ou nenhuma diferença durante a infância (até os dez anos). Portanto, desde que o indivíduo apresente crescimento e maturação de acordo com o esperado para sua faixa etária, a inclinação ao esporte é estimulada pelo contexto cultural. Neste período compreendido até os dez anos, ocorrem três fases. (RÉ 2011)
Do nascimento até os três anos, o bebê parte de reflexos para movimentos voluntários, que lhe permitem uma pequena liberdade ao andar, perceber e interagir com objetos. Estas atividades vão de acordo com o crescimento e maturação de estruturas cerebrais. RÉ (2011) afirma:
a curva neural apresenta uma evolução (dimensional e funcional) extremamente rápida no início da vida, de modo que por volta dos três anos de idade o cérebro e as estruturas relacionadas já atingiram aproximadamente 70% do seu tamanho na idade adulta.
O início da vida humana é privilegiado fisiologicamente devido ao seu potencial estrutural. Portanto, cabe aos cuidadores direcionar as atividades e sua complexidade, de acordo com os limites orgânicos e cognitivos. A motricidade com um bom estímulo estabelece contexto para o bebê ensaiar a possibilidade de existência, pois é através dos movimentos e o feedback do ambiente que ocorre o contato com as esferas que trazem o cognitivo, emocional e o social.
Portanto, essa etapa pode ser considerada importante tanto para a geração de futuros atletas como para a formação de cidadãos que utilizam o esporte/atividade física apenas como ferramenta de educação, integração social, lazer, entretenimento e promoção da saúde (RÉ 2011).
A infância proporciona a adequação com maior facilidade devido ao início de desenvolvimento, momento no qual a plasticidade predomina e o engajamento com as atividades propostas no ambiente pode ocorrer de maneira mais efetiva do que a que encontramos da puberdade em diante, visto que estas etapas posteriores abrangem uma personalidade e a autonomia - isto é, o acúmulo de experiências e seus significados direcionam as disposições do sujeito. Entende-se que a avaliação e acompanhamento do desempenho motor são de suma importância até a adolescência (GUEDES 2011). A variedade de possibilidades para um bom desempenho, no decorrer da vida, deve ser apresentada o mais imediato que a cognição e motricidade permitirem, zelando pelas devidas complexidades, de acordo com a fase e a história do indivíduo.
Aproximadamente do terceiro ano de vida em diante, a criança pode ser exposta a atividades que refinem suas características iniciadas anteriormente como sua coordenação, cognição, força, velocidade e resistência (RÉ 2011).
É recomendável que esses indicativos sejam feitos o mais precocemente possível, para acompanhar o processo, até que o corpo alcance o máximo do seu potencial de desenvolvimento. Esse acompanhamento após vida adulta não é completamente desconsiderado, porém, oferece informações bem mais limitadas e de menor aplicabilidade.
Nesta perspectiva interacionista (possibilidades do ambiente e indivíduo), acessamos a questão social do desenvolvimento e, consequentemente, a probabilidade de adesão às práticas esportivas e evolução de desempenho. Embora o Estado tenha se voltado a isso, este é um movimento recente: somente a partir de 2011, o projeto de lei da senadora Marisa Serrano foi aprovado. Ele dispõe sobre a prática de iniciação esportiva nas escolas públicas, portanto, a educação, como reprodutora do sistema de classes, perpetua vantagens aos privilegiados. A iniciação esportiva é uma possibilidade de melhor qualidade em instituições privadas.
Projeto de Lei do Senado n° 514, de 2009 Altera a Lei nº 11.438, de 29 de dezembro de 2006, que "dispõe sobre incentivos e benefícios para fomentar as atividades de caráter desportivo e dá outras providências", de forma a que seja dada preferência a projetos vinculados a escolas de educação básica das redes públicas de ensino. (SENADO FEDERAL 2011)
Dentre os ciclos vitais, a puberdade é um ponto crucial no desenvolvimento físico de um atleta. É um período fisiológico acompanhado pela adolescência, sendo esta considerada uma construção social, na qual se nota a formação de uma identidade e tentativas, como se fossem ensaios, de autonomia e liberdade. Este momento traz novas formas de relações, visto que o acúmulo de experiências e suas introjeções, que até então tendiam a ocorrer de maneira mais fluída, começam a ser questionadas. É um momento de negociações através de modos de ser. Este adolescente possui novos pares, que podem suscitar novas aspirações colocando em xeque o sentido das experiências promovidas pelos cuidadores. Caso este adolescente encontre sentido no desempenho esportivo, embasado pelas etapas anteriores, encontrará na puberdade “alterações morfológicas e funcionais que interferem diretamente no envolvimento e na capacidade do desempenho esportivo” (RÉ 2011).
Embora estejamos falando sobre desenvolvimento biológico, isto é, características esperadas e pré-determinadas, novamente contamos com as variações individuais. A partir dos 11 anos e até os 16, ocorrem mudanças promovidas pelo aumento de produção de testosterona (sexo masculino) e pelos estrógenos (com ênfase no estradiol, no sexo feminino). Estes hormônios delimitam diferenças no desempenho masculino e feminino. O aumento da produção de testosterona reforça o ganho de massa muscular, aumento de função metabólica e, consequentemente, de força, velocidade e resistência. Quanto ao perfil hormonal feminino, ocorre o processo inverso, pois não há estimulação para características consideradas vantagens em atividades esportivas, mas sim, contribuição prioritária no desenvolvimento dos órgãos sexuais secundários e os fenótipos validados como femininos. A puberdade engloba um período de aproximadamente seis anos, com tais alterações ocorrendo de maneira precoce para alguns e tardia para outros. Portanto, vantagens e desvantagens esportivas são analisadas individualmente. (RÉ 2011).
Para GUEDES (2011), existe a idade cronológica - os anos de vida, desde o nascimento até o presente momento -, onde são esperadas ocorrências de características maturacionais específicas e idade biológica - o que corresponde ao estágio em que se encontram determinados indicadores biológicos medidos pela análise comparativa entre características quantitativas e qualitativas observadas no jovem, sobre o indicador biológico considerado, bem como as mesmas características maturacionais específicas, esperadas em cada idade cronológica, para esse mesmo indicador biológico. Caso a idade cronológica seja inferior a biológica, considera-se que o jovem apresenta estágio maturacional avançado; caso seja o inverso, estágio maturacional tardio. O esperado é que a idade cronológica seja coincidente com a idade esperada, para a devida ocorrência do fenômeno biológico.
Segundo Cameron (1998), para medição da idade biológica, são considerados fatores como: idade de erupção permanente dos dentes temporários e permanentes; idade de aparecimento das características sexuais secundárias; idade de ossificação e fusões epifisiais e idade de alcance de diferentes proporções em relação à estatura adulta.
Assim como a maioria dos repertórios, habilidades e inclinações, não é possível generalizar causas específicas de bom desempenho em atividades esportivas, a ponto de transcender para a categoria de destaque e trilhar uma carreira. Entende-se, portanto, como uma possibilidade multifatorial, ou seja: o desenvolvimento físico é essencial para tal. Do nascimento à puberdade, é possível obter dados de ganho de peso, curva de crescimento, motricidade e estruturas cognitivas, musculares e hormonais, que contribuem para o alto rendimento em atividades esportivas. Portanto, só é possível avaliar vantagens e desvantagens pontuais por meio de coleta de dados, em pesquisas longitudinais e contextualizadas - de preferência, de cunho biopsicossocial.
Pressupomos que o aprofundamento em pesquisas que se desenvolvem em longo prazo traga maior assertividade sobre as categorias, principalmente em relação aos gêneros e, consequentemente, ao espaço do transgênero, visto que, mesmo sem a redesignação sexual, há um novo perfil hormonal que pode proporcionar perdas de capacidades, a ponto de destacar as habilidades. Isto é, a mulher transgênero pode precisar readaptar-se ao seu novo perfil metabólico, sendo que a mulher cis gênero pode possuir habilidades refinadas o suficiente para um mesmo (ou até superior) desempenho que o corpo da mulher transgênero, mesmo com a permanência de algumas conquistas oriundas da testosterona e com a reavaliação de sua performance. Enquanto não extrapolamos de forma mais embasada esta possibilidade, é possível classificarmos algumas capacidades.
Os modelos de classificação das capacidades motoras se dividem basicamente em dois segmentos, constituídos pelo conjunto de aptidões condicionantes, que se caracterizam como atributos associados à resistência; força e velocidade, que apresentam as características da ação muscular; a disponibilidade de energia biológica e as condições orgânicas do jovem. Já a segunda parte é composta pelas capacidades motoras coordenativas e processos de controle motor - responsável pela organização e execução dos movimentos. Esse monitoramento deve ser diferenciado dos componentes de aptidão física, relacionados à saúde e ao desempenho atlético (GUEDES 2011).
Tais aptidões são medidas por uma bateria de testes motores com o objetivo de obter informações do tipo quantitativo e que possam propiciar comparações entre jovens, com o propósito de identificar comportamentos relacionados aos aspectos de conduta e solicitação motora. Cada um deles apresenta informações com relação a determinados grupos de fatores associados e se constituirá, portanto, em uma unidade independente, dentro das demais capacidades motoras.
Todos os testes possuem critérios de segurança, que englobam a exigência do mínimo de equipamentos e de segurança contra acidentes, administração dos testes, tempo para recuperação, consideração a respeito do sexo e faixa etária. Contudo, podem ocorrer fatores que comprometam a realização das baterias em razão de dependerem de um protocolo com que os testes são administrados e, considerando que seus idealizadores introduzem diferentes procedimentos na administração de alguns deles, há dificuldade ou até impossibilidade de realização de comparações entre seus resultados. Outro fator de destaque está na diferença cultural entre os povos.
Feita a análise e interpretação dos resultados dos testes, deve-se considerar que os resultados por critério, de um mesmo valor, produzidos por um mesmo jovem em um mesmo momento, podem receber julgamentos diferentes, se analisados frente a uma ou a outra proposta de ponto de corte - até então, se desconhece qualquer validação dos pontos de corte sugeridos.
Saúde vai muito além do “não estar doente”: envolve toda uma questão de bom estado e bem-estar, que é evidenciado por meio de atitudes, comportamentos e sintomas. Junte-se a isso informações referentes ao crescimento físico, maturação biológica e desempenho motor como indicadores importantes para a constatação de saúde dos jovens.
Capítulo III – Esporte e Política
A decisão de levar uma carreira esportiva é um grande passo na vida de um atleta. Assim como qualquer outro movimento de profissionalizar uma atividade, ela traz novos desafios que a prática, apenas enquanto manutenção de saúde, não costuma trazer. A obtenção da performance está repleta de conceitos – e até lugares comuns -, muitos deles relacionados à superação de obstáculos, quebra de limites e, de maneira mais abstrata, às possibilidades de atuação que seres humanos podem desenvolver.
Um conjunto de responsabilidades se forma, então, nos “ombros” de um atleta. Agora, ele(a) não é apenas uma pessoa em busca de qualidade de vida: ele almeja a perfeição na execução de seus movimentos ou a excelência conjunta de um trabalho de equipe. Para este objetivo ser alcançado, inúmeros esforços são realizados: treinos intensos, não utilizar substâncias tóxicas ou consumir álcool, além da luta diária na busca de patrocínio - principalmente em modalidades e categorias menos prestigiadas -, e a obtenção de bolsas do Estado que possam custear seus equipamentos, transporte, entre outros. Muitos não trabalham de maneira formal e, assim, podem se dedicar inteiramente à rotina de treinos, eventos e campeonatos.
O Esporte é definido pela Constituição Brasileira de 1988 como um setor estratégico e o lazer como um direito (SILVA, BORGES, AMARAL) sendo, assim, um dever do Estado garantir subsídios para seu desenvolvimento e proporcionar políticas públicas para seu acesso. Por esta ótica, fica evidente o papel transformador do esporte na vida do indivíduo.
O patrocínio de um atleta pode ser definido de duas maneiras: por meio da iniciativa privada ou por programas governamentais. O primeiro método é gerido pelo Ministério do Esporte (ME) – que poderá ser extinto em 2019, segundo informações divulgadas pela própria equipe ministerial do presidente eleito em 2018, Jair Messias Bolsonaro -, e consiste na concessão de uma bolsa (Bolsa Atleta), de acordo com as categorias dos competidores. O benefício varia de R$370,00 até R$15.000. Para serem contemplados, os atletas devem conquistar até a terceira colocação em competições de sua modalidade, além de terem vínculo com alguma associação do esporte em específico. Para estudantes, a matrícula em alguma instituição também deve ser informada no momento de cadastro, que é feito anualmente, e uma seleção de atletas é realizada pelo governo.
No final no ano de 2017, porém, uma estimativa de corte de 87% na pasta, efetuada pelo governo Michel Temer, suscitou dúvidas sobre a viabilidade da bolsa e de outros programas relacionados ao esporte. A previsão era de R$163 milhões para 2018, ante R$ 1.245 milhões em 2017. Já as estimativas de corte para o Bolsa Atleta pairavam em 50%, o que levaria a uma necessidade de adequar a concessão do benefício e até realizar cortes em atletas já contemplados. Além disso, o gasto imobilizaria outras medidas do próprio Ministério para promoção e manutenção do Esporte no país. Porém no mês de novembro, em matéria veiculada pelo Estadão, o ministro responsável pela pasta, Leonardo Picciani, afirmou que negociaria um orçamento mais expressivo para 2018 – o que não se concretizou. Ainda é desconhecido o destino do projeto Bolsa Atleta, uma vez que a mesma pasta deverá ser extinta na nova gestão.
O Ministério da Defesa também possui programas para Atletas de Alto Rendimento e seleciona, por meio de um edital específico, os esportistas para ingressarem na carreira militar. Os selecionados passam por rotinas militares como treinamentos de tiro e sobrevivência, além de praticarem suas rotinas contando com a estrutura do Exército para suas competições. Além do edital específico, o programa conta também com profissionais de carreira exclusivos do Exército e que possuem interesse e aptidão em competir em modalidades olímpicas. Segundo o site do Governo Federal, os atletas militares foram responsáveis por 68% das medalhas de ouro nas Olímpiadas de 2016, no Rio de Janeiro, e contou com a presença de 145 atletas advindos do Exército.
Em pesquisa de 2016, feita com 349 atletas pela Folha de São Paulo, 47,8% declararam patrocínio de empresas privadas. O objetivo principal destas empresas consiste em visibilidade e uma forma de atingir o público que acompanha as modalidades. Porém, um dos questionamentos da iniciativa privada é, justamente, a dúvida sobre como é destinado o valor investido, quando as associações esportivas das modalidades o recebem. Além disso, o patrocínio privado, geralmente, é feito apenas para esportes de grande visibilidade nacional, como o futebol, o que impede que outras categorias possam desenvolver-se com o apoio financeiro necessário.
Uma construção social (e mercadológica) sobre ídolos do Esporte
Performance e boa execução são exigências profissionais da vida moderna que “rondam” a vida de todos os indivíduos. No entanto, o atleta profissional convive com essa demanda de uma maneira muito particular – e muito mais frequente. Ser um bom atleta consiste em uma permanente superação individual e do oponente, para além da constante observação e cobrança.
Tal status é decorrente de inúmeros fatores: conquistas de resultados, presença em competições de elite, popularidade na mídia (CAPRARO, SCHELIGA, CAVICCHIOLI e MEZZADRI, 2011). Este conjunto de critérios reforça o imaginário coletivo de um atleta tido como herói, uma figura idealizada que realiza grandes feitos, viaja por todo o mundo e retorna à sua Nação para desfrutar da glória. (RUBIO 2001, apud CAPRARO, SCHELIGA, CAVICCHIOLI e MEZZADRI, 2011). Esta visão desperta grande interesse de empresas que podem, dessa forma, viabilizar suas marcas ao carisma e à fantasia criada sobre tais representações humanas de sucesso e vitória.
Simbolicamente, sua popularidade ou fracasso também reflete em sua equipe, delegação, povo e País. Um exemplo notável foi a final de basquetebol masculino, nos Jogos Olímpicos de 1972. No auge da Guerra Fria, a União Soviética e os Estados Unidos enfrentaram-se em um jogo historicamente marcado por polêmicas – o país Europeu saiu como vencedor. Em um período marcado por constantes demonstrações de potencial - e disputas políticas -, a vitória olímpica também não seria limitada apenas à superioridade esportiva, mas também econômica, política e ideológica.
Este ganho simbólico é um dos maiores diferenciais da prática de atividades físicas, enquanto ofício. O atleta deixa de ser um indivíduo para representar um conjunto de valores abstratos (glória, força, habilidade, ideologia, economia, sociedade). Sua individualidade é fundida com toda a bagagem que carrega e a oscilação entre suas vitórias e perdas pessoais em competições reflete diretamente neste coletivo de valores - e em como eles serão associados pela massa que o segue. A questão publicitária não é a única: a representatividade social destes atletas seja, talvez, o grande fator desta discussão. Embora subvertidos pelas marcas empresariais, tais valores de glória, vitória e superação são atemporais. Afinal, a admiração dos romanos pelos gladiadores na Idade Antiga é muito similar à nossa admiração por nossos atletas contemporâneos, para ficar em apenas um exemplo.
Ayrton Senna na Fórmula 1 – embora muitos especialistas não considerem o automobilismo uma modalidade esportiva -, Oscar e Hortência no basquete, Ronaldo, Neymar e Marta no futebol. A excelência e sucesso destes atletas mostram e inspiram a uma massa de indivíduos à busca de um sucesso pessoal, independente da fama estar ou não ligada exatamente ao esporte. O principal benefício do fenômeno observado é uma tomada da consciência de ser, onde se torna “possível” que um indivíduo aparentemente comum seja capaz de realizar aquilo que deseja.
Um exemplo desta tomada de consciência é o atleta Roger Bannister. O tempo mais breve que um ser humano poderia correr uma milha era de 4 minutos e um segundo, e cogitava-se a ideia de ser impossível chegar a uma marca menor, por conta dos limites biológicos. Porém, em 1954, Bannister conseguiu o feito em 3 minutos e 59 segundos. Após este recorde, seu feito começou a ser alcançado por outros maratonistas (o primeiro em 46 dias) e mais de doze corredores quebraram a mesma marca, ainda em 1954. Em 1999, já era de 3 minutos e 43 segundos. Ou seja: a ideia de ser possível percorrer uma milha em tão pouco tempo foi se tornando algo mais crível e outros maratonistas puderam, então, realizar o mesmo feito. O exemplo de um indivíduo, em sua posição de liderança, foi suficiente para inspirar todo um grupo a se superar.
A atuação de atletas transgêneros pode ser baseada na mesma argumentação supracitada. Sua representatividade, hoje pequena e reduzida a setores marginalizados, pode começar a se expandir para locais antes pouco vistos ou almejados pelo próprio grupo LGBT. As questões biológicas, ainda em discussão, são de suma importância e, caso haja um entendimento concreto acerca deste assunto na própria comunidade científica, a atuação deste coletivo pode se tornar ainda mais forte, organizada e presente – inclusive no meio olímpico.
No cenário atual, a prática de atividades físicas transforma-se em assunto de grande relevância, justamente porque o Esporte não é responsável apenas por um adequado funcionamento das funções corporais e uma ferramenta para uma boa qualidade de vida: ele também possui um forte caráter social e de afirmação da cidadania, da inclusão de indivíduos e grupos que estão à margem da sociedade ou isolados por ela (VIANNA, LOVISOLO, 2009).
Esporte como Política Social
Esporte pode ser, também, um ato político, sob nosso entendimento. Em 1936, por exemplo, a Alemanha sediou os Jogos Olímpicos de Verão, uma das edições mais notáveis do evento. Convém ressaltar que o mundo estava a três anos de presenciar um dos maiores conflitos de sua História: A Segunda Guerra Mundial. Naquele ano, o País já havia iniciado as formações das bases do Nazismo de Adolf Hitler, sendo um dos seus pilares a suposta superioridade da chamada “raça ariana” sobre as demais etnias. Neste contexto, os Jogos Olímpicos serviriam como uma forma de assegurar tal grandiosidade.
Jesse Owens, entretanto, venceria a prova de atletismo, uma das mais tradicionais do evento, levando a medalha de ouro. Owens era um atleta negro - e venceu, inclusive, de um alemão na categoria. Apesar de não se contrapor abertamente, a mensagem simbólica de sua vitória, em uma nação que começara a ser norteada por ideologias fascistas, seria lembrada muito tempo depois – e até os dias de hoje.
Em 1968, os Estados Unidos passavam por um grande debate acerca do racismo e da luta pelos direitos civis por meio de nomes como Malcolm X, Martin Luther King e o grupo Panteras Negras, entre outros, o que levaria os olhos e a atenção de todo o mundo para um suposto acesso de oportunidades, principalmente para os negros, na chamada “Terra da Liberdade”. E é neste contexto que as Olimpíadas do México foram realizadas, naquele mesmo ano.
Tommie Smith e John Carlos, dois atletas negros, ganharam a prova de atletismo, garantindo as medalhas e ouro e bronze na mesma competição. No momento da execução do Hino Nacional no pódio, os dois ergueram suas mãos com os punhos cerrados, cobertos por uma luva preta - em uma alusão ao movimento dos Panteras Negras, grupo que lutava junto aos líderes civis contra o racismo sofrido pelos negros nos E.U.A. O gesto simbólico, segundo CORAL (2017), deu grande visibilidade mundial à luta contra o racismo e às pautas dos Panteras Negras.
Exemplos como estes demonstram como o esporte não pode ser tomado apenas como uma competição para se definir desempenho, força ou agilidade: ele é, também, uma pulsação que carrega o sacrifício para se chegar a uma elite física e, acima de tudo, para a transmissão de mensagens sociais. Ao longo da história, são inúmeros os casos de preconceito e discriminação vividos por atletas que integravam grupos diversos. E sua ascensão é mais uma forma de motivar a sociedade para um franco debate que aborde não somente a questão das oportunidades para minorias, em todos os setores, bem como conceder-lhes o direito verdadeiro de existirem e pertencerem como sujeitos – transformando, sobremaneira, também o Esporte como ferramenta de reflexão e mudança.
Capítulo IV – A transexualidade no Esporte
Nossa pesquisa se debruça sobre um tema aparentemente novo e com um “sem número” de questões ainda em aberto: a inserção de atletas transgêneros nas categorias em que se identificam.
E nesta discussão, a pergunta que nos tira da popular zona de conforto é: se esporte representa, em tese, inserção e política, mas ainda é marcado por manifestações de racismo e preconceito – por cor de pele ou orientação sexual -, como lidaremos, afinal, com esta população? Uma categoria específica para estes atletas solucionaria o debate ou seria só mais um método de exclusão institucionalizada destes indivíduos?
O pioneirismo de Tiffany Abreu
Desde 2017, a atleta brasileira Tiffany Abreu tem sido o “centro” desta discussão, que divide sociedade, especialistas e pesquisadores. É válido ressaltar que, neste caso, muitos estudos acerca das vantagens que atletas podem ter devido às constituições biológicas do denominado sexo primário ainda estão em seu início - o que traz mais um elemento para esta questão. Um outro dado importante a ser considerado: Tiffany realizou sua transição (ou operação de mudança de sexo biológico) em 2013, quando, cientificamente, seu desenvolvimento fisiológico já estava totalmente constituído.
Nascida no berço de uma família em condição de vulnerabilidade social de Goiânia, em 20 de outubro de 1984 - sob o registro civil Rodrigo Pereira de Abreu -, a jogadora cresceu em uma pequena cidade do interior do Estado do Pará, na Região Norte do Brasil. De acordo com seus próprios relatos para diferentes veículos de comunicação – a quem concedeu entrevistas diversas, desde a sua volta ao Brasil, após temporada na 2ª divisão do vôlei feminino italiano -, não conheceu o pai e teve de ajudar a família desde muito jovem: é a mais nova de sete irmãos. Sem nenhum apoio financeiro, foi por meio do voleibol, e de suas naturais habilidades com a bola, que Tiffany encontrou a chance de realizar “o maior sonho da vida”: o de se tornar “uma mulher por completo”. Mudou-se então de cidade em busca de trabalho e dinheiro para fazer a desejada transição de gênero por sentir-se “inadequada em um corpo que parecia não ser o seu”, de acordo com entrevista concedida ao programa televisivo Globo Esporte, também em janeiro deste ano.
Ainda com a identidade de registro, defendeu uma equipe de vôlei masculino na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, entre 2010 e 2011.
De acordo com reportagem do portal especializado “Toque de Bola”, publicada em 18 de janeiro de 2018, seu então treinador, hoje dirigente do clube, Maurício Bara Filho lembra com entusiasmo sobre a atuação de Tiffany, ainda constituída como Rodrigo, no time que chegou a garantir uma vaga na Superliga Nacional de Voleibol Masculino. “Não só jogou como foi o oposto titular que levou o time para a Superliga, com uma participação extremamente significativa. Foi o maior pontuador da equipe na Superliga B, que à época, era a Liga Nacional. Jogou dois anos aqui. Um cara que ajudou demais o projeto.” Antes de partir para a Europa, em busca dos processos de transição de gênero, ainda defendeu uma equipe pequena em Foz do Iguaçu, região Sul do País.
Também segundo a atleta, ao mudar-se de país para realizar a cirurgia e todos os demais procedimentos clínicos subsequentes, não imaginou que voltaria às quadras. Entretanto, no dia 10 de dezembro de 2017, entrou ao final do primeiro set defendendo a equipe do Bauru, time do interior de São Paulo – que anunciou, de forma contundente, a volta de Tiffany ao Brasil e sua estreia na Superliga Nacional, por meio das mídias sociais. Tal momento, aparentemente inexpressivo para uns, transformou-se em um marco histórico – tanto do ponto de vista esportivo como, e principalmente, científico e social: pela primeira vez, uma atleta transexual efetivamente atuava no Brasil.
A chegada de Tiffany a uma liga de atletas de ponta do 2º esporte mais popular do País suscitou, imediatamente, uma série de discussões e debates – dentro e fora das quadras. E seu desempenho inicial (média de 23 pontos por jogo, com destaque para o alto rendimento no ataque) também: pelo fato de sua constituição física e hormonal já estar completamente formada, a atleta – e consequentemente, a sua equipe - poderia ter vantagens, jogando em uma liga feminina. E mesmo com todo o amparo do Comitê Olímpico Internacional (COI), que afirma não ser necessária nem mesma a cirurgia de mudança de sexo para disputar competições femininas, sua chegada – e permanência, uma vez que ela ainda defende o clube na temporada 2018/2019 – ainda gera uma série de dúvidas e questionamentos em todas as instâncias sociais, desde a comunidade acadêmica, seus próprios companheiros de quadra e a sociedade em geral.
Procurada por nossa equipe de pesquisadores por três vezes, ao longo de 2018 - e durante a realização da presente pesquisa -, a atleta Tiffany Abreu não quis atender às nossas solicitações de entrevista, mesmo as tendo concedido para inúmeros veículos de comunicação. Como pedidos de desculpas, transmitidos pela equipe de comunicação do Vôlei Bauru via telefone, a jogadora afirmou que estava em uma “cansativa rotina de treinos, já havia falado muito sobre sua condição para a imprensa brasileira e estava se preparando devidamente para a carreira política, não podendo contribuir assim com nosso trabalho de pesquisa”.
Tiffany disputou as eleições de 2018 para uma vaga ao cargo de Deputada Estadual por São Paulo, pelo MDB. Não conseguiu a quantidade suficiente de votos.
Polêmica, desconhecimento e preconceito
De acordo com o COI, uma jogadora de vôlei feminino precisa apresentar um nível de testosterona abaixo de 10 nanomols por litro de sangue. Tiffany tem apenas 0,2 nanomol, é testada regularmente de acordo com o Sesi Bauru e está dentro do regulamento imposto pela entidade máxima para a modalidade. Entretanto, a inserção de Tiffany na elite do esporte nacional não é apenas uma reflexão de conceitos biológicos, mas um real convite ao debate sobre a inclusão do público LGBT em espaços que lhe são – e continuam sendo - frequentemente negados.
A população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais/Travestis, Queers, Intersexuais e Assexuados (LGBTQIA+), como já é de nosso conhecimento e conforme explanação em capítulos anteriores, apresenta uma maior possibilidade de ser destinada à execução de serviços marginalizados, além de obter poucas possibilidades de ascensão social. Sutilmente, o acesso destas pessoas a outras formas de trabalho é tolhido já desde a educação formal, banindo-os e levando-os a uma marginalidade imposta por preconceitos e visões pessoais de moralidade - um ciclo que é alimentado há décadas no país e também ao redor do mundo. O surgimento de uma atleta trans, portanto, é também uma forma de afirmação desta minoria sobre suas inúmeras possibilidades de existência e atuação e que, assim como em qualquer outro ambiente, exige – e tem direitos – à espaço, representação e pertencimento.
No entanto, à medida em que cresce o número de transgêneros em diferentes atividades dentro da sociedade brasileira, o assunto ainda é motivo de debate sobre a inserção destes sujeitos especificamente em modalidades esportivas, em virtude de sua condição física. A discussão, rica e vasta, passa por uma série de questionamentos que vão desde as questões genéticas até à intolerância.
Recentemente, a decisão do COI de 2015 permitiu que atletas que ainda não fossem operados, por exemplo, competissem nas Olímpiadas de 2016, realizadas na cidade do Rio de Janeiro. Tal medida foi considerada, por muitos, como um enorme avanço – até então, a única forma de transgêneros competirem era por meio da comprovação de cirurgias de transição e procedimentos hormonais. E isso só foi efetivamente permitido pela entidade em 2004.
Separamos neste espaço algumas entrevistas de profissionais, alguns em evidência no cenário do voleibol nacional, concedidas à TV Globo no início de 2018, logo após a estreia de Tiffany.
“Aline, central do Brasília, e Malu, oposta do mesmo time, enfrentaram Tifanny na última semana, onde ela marcou 24 pontos na vitória por três sets a um de Bauru.
- O ataque dela é forte sim, é pesado, mas a Tandara [maior atacante brasileira da atualidade] também ataca pesado, ataca forte. Ela também erra, também larga. Ela se sobressai? Sobressai sim. Mas eu não achei tudo isso que todo mundo fala. Ela recebe noventa bolas por jogo, é normal ela fazer trinta pontos. Vamos ver os confrontos contra os times grandes, contra o Rio, contra o Praia. Porque daqui a pouco esses times vão começar também a parar o ataque dela – afirmou Aline.
- Eu realmente acho que ela é uma atacante muito forte que se sobressai em alguns momentos. Não sei se tem a ver porque foi homem ou não foi, não sei. Até nem gosto de falar muito porque quem liberou é que tem que segurar esse rojão aí – destacou Malu.
Paulo de Tarso, técnico do Pinheiros também se manifestou sobre o assunto.
- O que a gente quer é que seja analisado porque existe uma diferença. Só isso. Ninguém é contra, ninguém é transfóbico, ninguém é homofóbico, ninguém é absolutamente nada disso. Pelo contrário, eu sou solidário a todo o trabalho que ela teve pra chegar ao lugar que ela conquistou.
Paulo Coco, técnico do Praia Clube, líder da Superliga feminina, entende que a regulamentação de atletas transexuais precisa ser revista.
- A minha opinião é que os órgãos que regulamentam o esporte, no caso o Comitê Olímpico Internacional e a Federação Internacional, acredito que devam rever, discutir mais essa normatização. Pelo que eu tenho acompanhado, informações de especialistas na área médica esportiva, fisiologistas, não é simplesmente o fato do controle hormonal, em cima de taxas de testosterona, que colocaria um transexual em condições de igualdade de mulheres.”
Apesar da delicadeza do debate, o avanço, aos poucos, acontece. O principal é que tais grupos começam a ganhar visibilidade em outros círculos - muitos dos quais ainda eram inexpressivos ou até mesmos inexistentes. A inserção de transgêneros no esporte pode contribuir para que o mundo em sociedade transforme seu olhar para uma outra e nova forma de existir, de estar no mundo, de compreender condições, desejos, decisões e, principalmente, respeitá-los por isso. Além disso, como supracitado, Athayde (2001) considera que esta construção de uma rede de apoio, por meio da visibilidade, auxilia o transgênero – e toda uma população de diferentes identificações - em seu pleno desenvolvimento e inserção social.
A decisão do COI surpreendeu a comunidade esportiva e à sociedade em geral, mas é inegável também que tal medida já mostra seus reflexos. Em 2015, por exemplo, a Reunião de Consenso sobre mudança de sexo e Hiperandrogismo, realizada nos Estados Unidos - e baseada nas diretrizes já estabelecidas pela NCAA (Associação Atlética Universitária Nacional) - deu passos importantes e pioneiros, sobre as regras específicas da identificação sexual dos competidores. O avanço se dá ao considerarmos que os termos vigentes desde 2004 e, neles, pessoas que já tivessem passado por cirurgia de mudança de sexo (redesignação sexual) e que fossem reconhecidas legalmente em seus países como transexuais poderiam competir - enorme passo para a comunidade e, principalmente, para nosso entendimento como nova formação de sociedade.
Aspectos científicos
Mas afinal, no que consiste o conceito “esporte” e por que decidimos estudar e abordar este tema por um viés mais específico? De acordo com MELLO (2010), em artigo para a Revista Brasileira de Ciência do Esporte, podemos identificar duas grandes tendências no que se refere ao tema: a) propugna-se que a manifestação esportiva já existia na Antiguidade, sendo perceptível em jogos que eram praticados por chineses, egípcios, gregos, romanos, entre outros; b) procura-se entendê-lo como um fenômeno moderno, que, mesmo apresentando similaridades técnicas com antigas manifestações culturais, possui sentidos e significados bastante diferenciados daqueles jogos “pré-esportivos”. Já FONSECA (1997) afirma que, paralelamente ao desenvolvimento somático, advindo da prática esportiva, efetua-se o psicológico, havendo sempre uma interação entre ambos.
Em seu trabalho sobre a psicologia e o esporte, RUBIO (1999) diz que, implicada em seus primórdios com aspectos mais biológicos, hoje, a Psicologia do Esporte vem estudando e atuando em situações que envolvem motivação, personalidade, agressão e violência, liderança, dinâmica de grupo, bem-estar de atletas, caracterizando-se como um espaço onde o enfoque social, educacional e clínico se complementam.
No quesito genético, o principal fator de debate é a diferença anatômica que existem entre homens e mulheres. A produção de hormônios como a testosterona influencia, por exemplo, o desenvolvimento muscular. Isso poderia gerar situações desiguais de competição onde há atletas transgêneros. Muitos questionam se é leal a disputa entre uma mulher cis e uma mulher trans que, em geral e também no caso de Tiffany, passa pelo processo da puberdade ainda como sujeito do sexo masculino que, em tese, leva vantagens anatômicas e fisiológicas sobre as do feminino, independente da questão hormonal, segundo especialistas.
Muitos médicos consideram, inclusive, que ainda não foi encontrada uma resposta definitiva para o tema. E, apesar do avanço nas regras, hoje os competidores ainda são obrigados a provar seus níveis de reposição hormonal. Em competições femininas, por exemplo, o índice de testosterona da atleta não pode estar maior que 10mol/L, nos 12 meses anteriores à competição.
O psiquiatra e coordenador do ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), Alexandre Saadeh, se posiciona em relação às discussões biotípicas e genéticas essenciais para a questão. A afirmação é a de que as mulheres trans possuem vantagens corporais, porém, é também importante contextualizar a história de vida da mulher em questão: “O uso constante de hormônios femininos e medicamentos antiandrogênicos, porém, vai mudar todos esses parâmetros, levando-os para padrões femininos.” SAADEH (2018)
Nota-se a importância de fomentar discussões e pesquisas sobre o tema, pois, profissionais da medicina já ampliam o seu olhar para além da ciência biológica e determinista, favorecendo uma visão holística do sujeito transgênero, a fim de promover a quebra do preconceito.
Saadeh propõe uma conduta que foge da rigidez de questões biológicas ao afirmar que “quando uma dessas atletas está em quadra, não é um homem que saca, ataca ou defende, mas uma mulher que venceu muitas barreiras para estar ali.”
Medicina, Esporte e Psicologia
A introdução da ciência psicológica no esporte não é exatamente uma novidade - muitos atribuem a junção dessas áreas de conhecimento à contratação de profissionais da área de saúde mental pelos times do futebol, em meados dos anos 90.
Entretanto, há um contexto de aprimoramento, o que denota força e intersecção entre os campos. A Psicologia do Esporte é considerada uma das subáreas que compõem as chamadas Ciências do Esporte. Para além dela, a Medicina, a Biomecânica, a História, a Sociologia, a Pedagogia e a Filosofia do Esporte. Porém, só foi reconhecida como uma especialidade da psicologia pela American Psychological Association (APA) em 1986.
RUBIO (2000) reforça que as áreas de atuação dos profissionais, bem como as delimitações de campo, variam geograficamente. O trabalho desenvolvido por profissionais norte-americanos, no leste europeu e no Brasil, por exemplo, possuem características peculiares, como na intervenção profissional, e que vêm se expandindo com o passar dos anos em riqueza de possibilidades.
Segundo a especialista, a planificação do trabalho psicológico não somente facilita a execução de planos de preparação psicológica, como também ajuda a prevenir estados físicos e mentais indesejáveis à saúde do atleta, como a situação de supertreinamento, por exemplo, ou mesmo uma sequência de resultados insatisfatórios, que causam estresse.
Os índices obtidos durante a análise de determinado tipo de esporte podem ser ordenados graficamente em um psicograma esportivo com as seguintes características:
Manifestação das propriedades fundamentais do sistema nervoso: força, equilíbrio e mobilidade dos processos nervosos
Orientação da personalidade: necessidades, interesses, atitude em relação ao trabalho, o estudo, o esporte, os motivos que levaram à prática esportiva
Traços de caráter: sentido de coletividade, disciplina, iniciativa, relações com o grupo
Manifestações emocionais: intensidade, atitude diante dos êxitos e fracassos na prática, explosões emocionais em treinamentos e competições
Dinâmica do desenvolvimento das principais funções psíquicas, segundo dados de medidas experimentais especiais: tempo de reação, percepção motora, excitabilidade do sistema vestibular, intensidade e estabilidade dos processos de atenção e reações emocionais.
RUBIO (2000), Psicologia do Esporte, pg. 160
Mesmo com todas as presentes avaliações e cuidados, o que nenhum programa de avaliação psicoesportiva previu - nem mesmo a classe médica ou sequer as entidades esportivas internacionais - foi o movimento que se consolida de atletas transexuais, de altíssimo rendimento, que também desejam ocupar seu lugar. Almejam ser escalados, reconhecidos, baterem seus próprios recordes - sejam numéricos, em suas respectivas modalidades, sejam da superação mais notável para o momento que atravessamos: a social.
Capítulo V – Pesquisa e Procedimentos
Para as pesquisas de campo e entrevistas, utilizamos um questionário estruturado, além de um termo de consentimento livre e esclarecido, impresso e assinado, como um registro que pode ser sempre retomado para dirimir dúvidas e auxiliar na solução de questões que possam vir a surgir no decorrer da investigação. Por mais relevante e significativa que uma pesquisa possa ser, a segurança do grupo pesquisador e dos respondentes também deve ser preservada.
Nossa proposta foi entrevistar, por diferentes meios, entre 10 e 15 pessoas, incluindo profissionais do esporte, atletas, treinadores, jornalistas, executivos de comitês nacionais e internacionais, médicos, estudiosos e ativistas. Um questionário foi aplicado pessoalmente entre as fontes supracitadas para facilitar o contato e protocolar as respostas de forma a computá-las em amostragem, ao final dos depoimentos.
O Procedimento dividiu-se em duas etapas, sendo elas:
A) Quantitativo: mensuração dos dados através de um questionário aplicado em profissionais da área do esporte, saúde e atletas e transgêneros, para construção e análise dos dados.
B) Qualitativa: interpretação e contextualização dos resultados obtidos
Discussões e Resultados
Durante nossas entrevistas, enfrentamos dificuldades de agendamento e conclusões das mesmas. Sendo assim, em nosso projeto de pesquisa, realizamos entrevistas com profissionais da área do esporte, terapeutas sexuais, médicos especializados em terapias de redesignação sexual e próprios transgêneros para entendermos como eles se posicionam nesta questão. Sendo um de nossos objetivos a identificação da situação dos transgêneros no meio esportivo, buscamos entender com estes profissionais como isso tem acontecido para que pudéssemos refletir, de uma maneira mais assertiva, sobre a inclusão de transgêneros nos esportes de alto rendimento.
6.2. Extrapolação/Amostragem
A primeira questão apresentada foi a dificuldade de amostragem, já que a comunidade trans dentro do esporte mostra-se quase nula. A dificuldade de encontrar sujeitos que estivessem no processo de transição e que possuíssem o desejo de seguir carreira dentro do esporte de alto rendimento, como atletas profissionais, podem ser explicadas pela falta de interesse das instituições d a comunidade médica acerca deste tema.
Em outras palavras, a amostragem de atletas transgêneros é virtuosamente ínfima, o que impede um estudo mais aprofundado de como as performances destes atletas estão sendo influenciadas pela sua condição. Isso posto, é também importante ressaltar a dificuldade da comunidade médica em chegar a um consenso ou um fato acerca deste assunto, já que não é possível realizar uma extrapolação de dados de acordo com as pesquisas. Este ponto foi expresso pelo médico T.:
[...] você não tem número para extrapolar [...]. Você tem transexuais que representam 0,35% da população. Não é? Este número existe. Desses quantos são homens ou mulheres e quantos vão querer passar? Então, uma fração desses vão querer passar pelo processo de transformação. Alguns vão operar, outros vão só tomar hormônios e alguns não vão fazer nada, só vão trocar de roupa e vão estar bem com isso.
6.3. Multiplicidade de Expressões
Os transgêneros, ao se afirmarem como tais sujeitos, podem recorrer a métodos variados para concluir a sua transição. Ainda sublinhado no trecho acima pelo Dr. T., podem optar pela terapia hormonal, cirurgia de redesignação sexual ou ambos. Além disso, cita pessoas que optam apenas pelo uso de vestimentas relacionados ao gênero que se identificam.
Com essa diversidade, as organizações do esporte precisam abrir espaço para debates sobre qual método será utilizado como critério normativo de inserção dos atletas transgêneros nesta comunidade. Atualmente, o COI determina a terapia hormonal como elemento necessário para que atletas pleiteiem vagas nas ligas dos gêneros com os quais se identificam. A escolha deste método não traria, então, uma nova demanda? Haveria, portanto, uma segregação com indivíduos que optam por outros métodos, mas ainda assim, expressam o desejo em competir em esportes de alto rendimento?
6.4. Preconceito/Discriminação
Devido às dificuldades no estabelecimento de um parâmetro científico, os entrevistados alegam que a discussão se torna uma questão muito mais política e social - o que se relaciona diretamente com as questões do preconceito e a dificuldade da sociedade em aceitar estas pessoas. Além disso, pela falta de estudos científicos conclusivos, qualquer afirmação pode carregar consigo um viés ideológico, relacionado ao fato de ser “a favor ou contra”, do que, necessariamente, uma apresentação de argumentos válidos e estruturais.
Pudemos perceber, também, que faz-se necessário envolver a sociedade nesta discussão, já que manuais como o DSM e outros já orientam médicos e profissionais no sentido de que a homossexualidade e a transexualidade são, e apenas isso, condições dos indivíduos. Sendo assim, a aceitação dos transgêneros nos meios esportivos passa, antes, pela quebra de preconceitos. A transgênero T. corrobora com a necessidade da ênfase no trabalho dos profissionais da saúde e também envolvidos com paradigmas sociais, como psicólogos e cientistas sociais, para a quebra de preconceitos que são naturalizados na sociedade vigente.
[Sic] Acho que, independente de estudo a pessoa, por exemplo, no campo profissional, ela tem que ser vista como profissional, tem que ver se ela é boa, antes de colocar o trans na frente.
T. traz a sua percepção sobre o meio esportivo, construído como mais um espaço de expressão de preconceito e discriminação. Embora não tenha vivências neste meio, exemplifica com a história de uma colega, que é atleta de voleibol. Ela entende que, se profissionais veem a possibilidade da inclusão, como no caso da Tiffany, é importante que haja mais espaço para obtenção de recursos que ampliem esta inclusão no esporte.
[Sic] Eu acho que principalmente dentro do esporte ainda há muito preconceito porque ainda é um campo muito dominado pelos homens, né? Pelo machismo. Por mais que tenham mulheres e tudo mais, mesmo assim é um campo muito machista. E, eu acho que isso é um preconceito, a aceitação. Aí entra a questão da força, que ainda é muito questionado, eu ainda não me aprofundei muito, mas eu vi que o caso da Tifanny as pessoas indagaram muito isso “ela tem força de homem”. Muitas mulheres que usam esteroides do mesmo jeito que uma mulher transexual toma hormônio e fica atrofiada, uma mulher que toma hormônio masculino, ela fica mais avantajada que as outras. Então, isso é relativo. E aí que nem ela fez, ela pode jogar, ela foi aprovada e tudo mais e realmente foi medida a força dela e realmente, não sei se tem dados que comprovam isso, mas ela passou da mesma força que nem as outras meninas. E eu tenho uma colega que joga num time de vôlei e ela joga no time masculino, ela não pode jogar junto, ela já participou de campeonato em que ela jogava no time masculino.
6.5. Inclusão
A inclusão foi um tema onde os entrevistados apresentaram diferentes visões. Para F., terapeuta sexual e biólogo, o assunto apresentou evoluções ao longo do tempo:
[Sic] E eu passei por uma experiência em uma das escolas que eu dou aula e foi muito legal. Já tinha acabado o conteúdo, eles estavam lá conversando, aí eu vi que tinha um menino que é super afeminado e, quer dizer, tem esse estereótipo que evitaria o contato com outros meninos e ele tava lá conversando com mais dois meninos que, aparentemente, eram heteros e mais duas meninas. Aí eu me aproximei pois fiquei curioso, né, porque ele estava incluído ali naquele grupo, pensei o que eles estavam conversando porque pra eles de certa forma permitirem, os heteros, permitirem essa inclusão, eu pensei qual seria o assunto e eu fiquei muito surpreso que o assunto era sobre pegação, era ficar. Quer dizer, porque eu imagino que se eles estão conversando entre eles, é um assunto que não dá pra fugir, tipo um trabalho da escola, então precisa conversar, mas não.. eles estavam conversando... e aí um dos meninos perguntou para o gay: “Mas me conta aí, quem você pegaria na escola?” E eu achei aquilo fantástico porque, o que eu entendi daquela conversa: uma naturalização.
F. mostra um discurso otimista e percebe que os jovens estão mais receptivos a aceitarem as diferentes formas de sexualidade. O terapeuta acredita que, para que essa naturalização seja ainda mais frequente, a divulgação de informações e pesquisas deve ser feita, o que melhora a inclusão destes grupos nos meios sociais:
[Sic] Então eu acho que a forma que a gente pode trabalhar é divulgando essas informações, o TCC de vocês, por exemplo, não dá pra escrever TCCs, teses, monografias e deixar engavetado, então a gente tem que mostrar isso porque tem muita gente falando besteira, muita gente no youtube, nos blogs, no goggle, escreve o que quer, no facebook , sai publicando um monte de besteira, e a gente que sabe o que está falando, a gente não fala e deixa de se colocar.
Em outra entrevista, Dra. K. reforçou a necessidade de propor uma reflexão sobre como incluir o grupo de transgêneros nas categorias olímpicas.
[Sic] O tema é muito mal visto, porque, eu acho assim, que talvez, eu até entendo, sabia? Porque assim, é uma área humana que funcionou sempre de uma maneira tão regrada com isso que ninguém quer sair da zona de conforto. Mais fácil excluir essas pessoas, que ainda são pessoas que tem pouca força social, do que se disponibilizar e rever paradigmas. Porque pra incluir as pessoas, pra incluir de verdade, tem que rever paradigmas que estão muito arregrados. Porque assim, de verdade, acho super louvável colocar parâmetros, que nem eles fizeram agora antes das olimpíadas do Rio de Janeiro pra incluir atletas trans e tal, desenhar parâmetros, o nível de testosterona, mas isso não tem embasamento cientifico! Isso assim, as pessoas acham que é isso.
Dra. K. chama a atenção para a “pouca força social” destes grupos, isto é, embora esta parcela da população exista, não consegue pressionar instituições para que revejam suas posições e proponham maneiras de inclui-los - o que perpetua o ciclo de exclusão. A doutora também ressalta a necessidade de que formadores de opinião, como psicólogos, sociólogos, profissionais da área da saúde e pessoas engajadas nas lutas sociais deste grupo, trabalhem a desconstrução destes preconceitos na sociedade para que a minoria composta de transgêneros comece a ter mais autonomia e possa, de fato, ser incluída em espaços onde não podem, ainda, atuar com liberdade.
A doutora K. também aponta para uma “preguiça” da comunidade científica em realizar os estudos em torno deste assunto. Na opinião da entrevistada, cientistas devem começar a estudar as diferenças “óbvias” para que se entenda melhor como estas impactam na performance destes atletas:
[...] porque até acho que as pessoas têm preguiça de estudar aquilo que já muito obvio no ver, entendeu? Mas eu acho que a gente tem que estudar pra saber, primeiro o quão elas são relevantes de fato, né? [...]
6.6. Vantagem
Diferenças entre equipes são elementos comuns nas competições:
[Sic] K: Nos jogos da copa do mundo qual foi a seleção que era muito mais rápida que a seleção brasileira? Não me lembro, mas eu olhei aquele raio do jogo e via bolas altas e as brasileiras não jogavam nem perto do raio daquela bola, e porque isso não é considerado injusto?
R: Porque acho que nesse ponto a gente percebe ser mais uma questão de estratégia, parece. A média é mais alta, então estrategicamente vamos explorar a questão mais alta e quem tem uma estatura mais baixa talvez aproveite mais a questão da velocidade e do arranque
K: Mas tem jogador de basquete que é são muito maiores que os outros, porque não é considerado vantagem?
De fato, a estratégia de muitos times é explorar diferenças que tragam vantagens ao passo que tentam diminuir o alcance das desvantagens na performance do grupo:
Os exemplos apontados pela doutora deixam um tom provocativo: porque tais diferenças são tratadas como táticas e não como vantagens indevidas no meio esportivo? A competição, na essência, é uma exploração de vantagens em detrimento do que o grupo oponente apresenta. Sendo assim, a prevalência de vantagens é um fator que mobiliza a dinâmica do jogo, definindo um vencedor.
Para os esportes em grupo, a Dra. K. sugere competições com equipes mistas, porém admite que na esfera dos esportes individuais, ainda não há uma definição clara sobre o que fazer:
[Sic] K: Não sei... Eu fico pensando, as vezes eu estou dirigindo ou na minha casa e penso “puts, não tem uma proposta pra esse negócio”. Talvez essa seja a resposta, misturar tudo. Isso fica muito mais difícil em esporte individual, por exemplo, lançamento de dardo, existem algumas diferenças biológicas que ninguém explora, quando fala nesse assunto todo mundo explora a questão de massa muscular, de altura e de massa óssea, mas tem outras questões, por exemplo débito cardíaco, função cardiorrespiratória, homem funciona de uma maneira muito mais eficiente de um ponto de vista cardiorrespiratório diante de exercício do que mulher, por conta do débito cardíaco muito maior
Para o professor C., preparador físico e docente do curso de educação física da Universidade Nove de Julho (UNINOVE), atualmente existe uma maior aceitação dos transgêneros, porém, como preparador físico, sinaliza que é necessário verificar se não há “favorecimento”. O professor percebe o meio do esporte como binário, isto é, fisiologicamente determinado, necessitando assim da divisão pelo sexo de nascimento, masculino ou feminino. Ele também afirma que ainda não temos recursos para mensurar as vantagens em relação à força e velocidade que um sujeito que se desenvolveu biologicamente masculino possui, mesmo se houver a transição. Porém, ele percebe um avanço, embora acredite que ainda seja necessário desenvolver mais pesquisas:
[Sic] C: A ciência tem que falar, porém a ciência demora, né? Ela não vai falar “em três meses termina isso”. Quantos atletas, jogadores tem no mundo? Terão que ser estudados e deles levantar estatísticas, dados biológicos. Então tudo isso tem que ser feito e eu acredito que, vamos dizer, esse processo tá sendo muito mais tranquilamente aceito pela sociedade em modo geral, do que dez ou vinte anos.
De acordo com sua experiência e pesquisas, a performance não deve ser vista como uma característica que possa impactar a diminuição de favorecimentos, pois o rendimento ainda está atrelado à potência muscular, como exemplifica:
[Sic] B: Mas assim professor, o senhor entende de tática, técnica e tudo mais, a performance, o desenvolvimento de uma habilidade não compensaria de alguma forma? Facilitaria?
C: Não, porque quando eu penso em potência muscular, força muscular o homem possui uma possibilidade maior de rendimento e se você pegar os esportes, vou pegar um claro, natação e atletismo, os recordes de lançamento de peso, masculino e feminino, são muito diferentes. E o masculino tem 7kg, feminino tem 5kg e mesmo assim não conseguem chegar próximo do recorde masculino. Não existe uma limitação fisiológica, isso é tudo fisiológico, mas precisa saber o quanto disso impacta naquela que vai ser mulher, vamos chamar de nova mulher, quanto que isso impacto, como seria? A habilidade motora ela é inerente, posso desenvolver no masculino e feminino igual, o rendimento dela a performance é diferente. É isso que precisa ser estudado com maior profundidade, porque os casos vêm surgindo cada vez mais.
Entretanto, o professor acredita que a questão cultural deve ser trabalhada em conjunto com os dados científicos. Em sua perspectiva, o meio esportivo é preconceituoso porque a cultura latina é patriarcal, sendo este um fator importante.
Entende-se que a “preguiça” supracitada por Dra K. pode ter influência da questão cultural, ainda amparada pela discriminação, como apontou o levantamento bibliográfico e também os sujeitos entrevistados. Para encontrar possibilidades de compensar as vantagens proporcionadas pelo desenvolvimento biológico masculino, é necessário partir deste fato e encontrar novos recursos. O professor explica:
[Sic] C: Vou dizer bem uma coisa, a habilidade independe da força, potência, velocidade.
B: Tá.
C: A habilidade adquire. Você pode ter 90 anos eu vou te ensinar a fazer um corte por cima. Mas com 90 anos, mesmo que você treinar o corte por cima, você não vai ter a mesma realização técnica, tática e física de alguém que tem 25. Ou seja, você mulher, vai aprender a mesma corte que um homem, mas na execução, durante uma partida, você não vai conseguir muito próximo do que o masculino faz, mesmo tendo o mesmo nível de tratamento técnico, físico, por questões físicas e biológicas.
Podemos entender que há um cenário melhor, do que há uma década, para o desenvolvimento de pesquisas que vão além da discussão envolta pelos quesitos habilidade, potência e velocidade. Porém, o profissional ratificou a necessidade de um empenho multidisciplinar para a inclusão social e consequentemente para a inclusão esportiva.
O preparador físico de um grande clube de São Paulo, L, 42 anos, disse que alguns atletas podem se utilizar da transição de gênero para ter rendimentos mais interessantes. E que qualquer indução hormonal ou por substância química, para ele, é considerado doping.
[Sic] L: Michael Phelps, na Olimpíada, foi doping. Não importa se para mais ou para menos. Atletas paraolímpicos que se utilizam de próteses ultra tecnológicas para provas rápidas em pista também podem ser considerados nesta categoria. Mas o fato é que o vôlei feminino pode pagar mais que o masculino. E muitas vezes, essa transição pode interessar financeiramente. Acho que este fenômeno se deve, também, pela ascensão de homossexuais no esporte. E isso ainda será muito discutido, possivelmente. Muitos deles entram na Justiça comum para conseguir o direito de jogar. Não há nenhuma comprovação biológica disso. Penso que criar uma liga especial possa solucionar este problema.
No contexto das entrevistas, os participantes apresentaram pontos de vista que se cruzam. Ressaltaram a impossibilidade de afirmar ou refutar, por meio de dados científicos, a inclusão ou exclusão dos transgêneros em esportes de elite, devido à falta de extrapolação de dados. Entretanto, o COI sinalizou que tal cenário é possível, pois definiu parâmetros para a inclusão destes atletas. Portanto há, outrossim, aspectos a serem trabalhados por meio de pesquisas científicas, buscando elucidar a questão.
Os entrevistados também enfatizaram a necessidade da discussão do tema voltar-se para as bases da sociedade. Citam, geralmente, que o preconceito sofrido por trans constitui-se como uma das maiores barreiras para a inclusão dos mesmos. A visão dos entrevistados corrobora os estudos mostrando a prevalência de diferentes tipos de violência, geralmente motivados por preconceitos. (SILVA; RONDAS e MACHADO; 2016;2015).
Os participantes, ao menos em sua maioria, também defenderam a necessidade da inclusão em diferentes círculos sociais. Segundo RONDAS e MACHADO (2015), o estereótipo de pessoas trans está relacionado a outros meios de trabalho. Sendo assim, a inclusão defendida pelos entrevistados pode se tornar um caminho para descontruir o que já é pré-concebido e fornecer novos caminhos de existência e afirmação para estes grupos - sendo o esporte de elite apenas mais um deles.
Dra. K trouxe um ponto de interesse em sua argumentação, ao defender a naturalização das vantagens inerentes de competidores, já que é a partir destas diferenças que atletas e grupos criam estratégias para vencer adversários. Geralmente, as vantagens são exploradas e aprimoradas para que, por meio delas, o time possa chegar às vitórias. O desenvolvimento, segundo RÉ (2011) apresenta, naturalmente, diferenças nos gêneros feminino e masculino. De fato, vantagens estão presentes nos atletas e grupos, mas para se entender a profundidade dos efeitos causados por elas, ainda assim haverá a necessidade de outros estudos multidisciplinares, como o presente.
Considerações Finais
Ao designar tão contemporânea e valiosa temática - seja para o campo da ciência moderna, seja para os estudos psíquicos dos chamados “transtornos de identidade de gênero -, jamais poderíamos imaginar a dimensão e o volume de análises que poderíamos (e deveríamos) considerar, ao transcrever esta presente obra.
A discussão, que teria força e argumentos suficientes para suportar e manter-se por horas, dias, meses, passa por tantos e variados fatores e debates que mal poderíamos imaginar o tamanho, a grandiosidade, a importância do estudo aqui apresentado. Principalmente, por sua função pretensamente esclarecedora e, de certa forma, inédita.
Em pleno ano decorrido de 2018, não conseguimos encontrar, de fato, uma bibliografia norteadora, sequer uma base contumaz para seguirmos em frente com nossas pesquisas de forma segura e linear. Tudo foi praticamente tateado, explorado – por vezes, escavado -, de forma a não ferir suscetibilidades, não agir de forma precipitada ou mesmo preconceituosa, inclusive de nossa parte, qualquer que fosse o grupo entrevistado ou interpelado.
E, por fim, de maneira portentosa, acabamos por descobrir que, de fato, a questão da transexualidade – seja no esporte ou mesmo em qualquer área de atuação profissional – vem carregada de estigmas até mesmo entre nós, profissionais da saúde mental. Nosso coletivo que, pretensamente, costuma carregar consigo até uma certa altivez e imodéstia, no sentido de entender absolutamente tudo o que se passa na complexa e indescritível mente humana.
Em nossas longas e exaustivas jornadas de reflexão sobre o tema – em que, em nosso amadorismo de estudantes, queríamos encontrar uma “solução” a qualquer custo para a hipótese aqui levantada -, lembramo-nos muito de um livreto de CALLIGARIS (2008).
Nele, o psicoterapeuta e psicanalista nos lembra que para exercer tal profissão com excelência, é preciso, antes de tudo, “despir-se” de princípios preestabelecidos, afinal neles inclusive residem a complexidade da própria vida da qual se trata. E tal revelação já diz muito sobre uma das principais e indispensáveis características de que um profissional desta qualidade precisa, metafórica e literalmente alimentar-se.
Uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o mínimo possível de preconceito. Você pode ter crenças e convicções.
Aliás, é ótimo que as tenha, mas, se essas convicções acarretam aprovação ou desaprovações morais preconcebidas das condutas humanas, sua chance
de ser um bom psicoterapeuta é muito reduzida, para não dizer nula.
CALLIGARIS, Contardo. Cartas a um jovem terapeuta. Campus, 2018. Pg 12.
Sim, éramos nós. Uma equipe de colegas e companheiros repletos de dúvidas, crenças ambientais e históricas, um bando de curiosos e absolutamente amadores na tal variedade da experiência humana, em todos os seus aspectos. Verdadeiros marginais, como cita o próprio autor, tanto da medicina, quanto das ciências sociais e da saúde.
O que estava bem diante dos nossos olhos, entretanto, e que demoramos uns bons meses para concluirmos juntos, é que só trataríamos tal tema com a dignidade e o compromisso que ele merece se fizéssemos uma verdadeira viagem por diferentes ciências, linguagens, sentidos e, acima de tudo, olhares.
É impossível perpassar por todo o movimento LGBTQI+ sem considerar a semiótica, a sociologia, a filosofia, a comunicação, a educação e, principalmente, a história. Ignorar estes fatores reduz severamente o impacto deste estudo, bem como contribui, de forma irresponsável para a disseminação do preconceito, do desrespeito e da falta de informação, apenas desacelerando os tantos avanços e direitos construídos e conquistados em sociedade, nos últimos anos, no tocante ao empoderamento e do reconhecimento da população que tratamos.
Este presente trabalho é nossa forma de contribuição para a abertura do debate, tanto no meio acadêmico, quanto para a sociedade atual e as futuras gerações – que precisarão encarar e discutir as questões apresentadas, de forma frontal.
Desejamos, com esta discussão e pesquisa, elaborar uma proposta ligada a um protocolo de inclusão que, mesmo complexo e não bem delimitado, merece ser rastreado, discutido e, acima de tudo, articulado em sociedade, para além das concepções teóricas.
Acreditamos que, em poucos anos, teremos um próximo problema que se apresenta neste novo cenário. Um agrupamento considerável de indivíduos que, em mais algumas décadas, precisará estar integrado, incorporado às diferentes camadas sociais e que deixará de ser apenas uma problemática nos tratados de Psicologia e outras ciências sociais e humanas. É nosso intuito contribuir, de forma construtiva, com o debate e ajudar a promover a transformação e a desconstrução em torno do tema.
Por fim, concluímos que não há uma resposta definitiva, um epílogo – especialmente para a discussão que, somente agora, começa a tomar corpo e forma, em diferentes setores da sociedade.
Descobrimos que a temática, mais ampla que o imaginado ou previsto, extrapola os caminhos trilhados pela ciência psicológica e precisará congregar também - para além da compreensão e lida do presente fenômeno - as comunidades médicas, sócio-históricas, jurídicas e demais ciências que, acima de tudo, busquem não somente um suposto êxito em sua conclusão, que já se demonstra inexata, mas principalmente trabalhem juntas no sentido de dirimir preconceitos de toda espécie no âmbito do desporto e, por consequência, na sociedade proibitiva e limitadora, que ainda causa impedimentos e barreiras severas aos sujeitos a quem esse estudo foi destinado e dedicado.
A estabilidade das instituições pode depender de ordem e valores, mas necessita de adaptações aos tempos que vivemos, onde as tão aclamadas justiça e igualdade também são consequências e produto das diferenças naturais dos indivíduos e onde suas singularidades são respeitadas - em detrimento de uma utópica coesão social para atingir, outrossim, o multiculturalismo e a liberdade.
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