A experiência em formação
The experience in training
Maria da ConCeição Passeggi*
RESUMO – Focaliza-se as narrativas autobiográficas como prática pedagógica, com o objetivo de refletir
sobre a ressignificação da experiência, no contexto da formação de formadores. Inicialmente, expõem-se
alguns recortes históricos para definir a noção de experiência e pontuar aproximações sobre sua fluidez e
impermanência, a partir dos estudos de Dilthey, Gadamer, Jay e Ricoeur. Apresenta-se, em seguida, o grupo
reflexivo como dispositivo de formação de formadores e discutem-se as diferentes etapas do seu funcionamento
nos ateliês de escrita autobiográfica, que constituem a parte prática de uma disciplina teórica sobre pesquisa
(auto)biográfica, na pós-graduação. Finalmente, traz-se nosso entendimento sobre os vínculos que se entretecem
entre linguagem, reflexividade biográfica e consciência histórica, nas narrativas de si. Nas considerações
em aberto, problematiza-se o lugar da escrita autobiográfica como prática de formação na modernidade
avançada.
Palavras-chave – reflexividade; narrativas autobiográficas; ressignificação da experiência; formação
ABSTRACT – We will lay our emphasis about autobiographical narratives as pedagogical practice in order
to think on the redefinition of experience in the training of trainers context. We bring, first, some historical
analysis to define the notion of experience and to punctuate approaches about its fluidity and impermanence,
from studies of Dilthey, Gadamer, Jay and Ricoeur. Next, we will present the reflexive group, as a device to
train trainers, and we will discuss the different stages of its operation in the studios of autobiographical writing,
which is the practical part of a theoretical course on (auto) biographical research, in graduate school. Finally,
we bring our understanding about the links that are interwoven between language, biographical reflexivity and
historical awareness, in the narratives of one´s self. In the open considerations, we will discuss the place of
autobiographical writing as practical training in advanced modernity.
Keywords – reflexivity; autobiographical narratives; reframing of the experience; training
À guisa de introdução
Lo que somos es la elaboración narrativa (particular,
contingente, abierta, interminable) de la historia de
nuestras vidas, de quién somos en relación a lo que
nos pasa (Jorge Larrosa1).
Um dos princípios fundadores das escritas de si
como prática de formação é a dimensão autopoiética2 da
reflexão biográfica. Ao narrar sua própria história, a pessoa
procura dar sentido às suas experiências e, nesse percurso,
constrói outra representação de si: reinventa-se. Como
sugere Larrosa, na epígrafe, somos a narrativa aberta e
contingente da história de nossas vidas, a história de quem
somos em relação ao que nos acontece. Retomamos esse
pensar de Larrosa por nos falar de perto da relação dialética
entre a reinvenção de si e a ressignificação da experiência,
daquilo que nos acontece e que constitui, certamente, um
dos terrenos mais férteis da pesquisa (auto)biográfica em
Educação. No entanto, face à complexidade desses dois
termos – experiência e identidade – e às controvérsias por
eles geradas nas Ciências Humanas e Sociais, a tendência
é fazer recair o foco das investigações sobre um deles,
enquanto o outro se mantém como pano de fundo. Larrosa
aborda a identidade e a experiência em dois textos seminais
– Notas sobre narrativa y identidad (2004) e Notas sobre
a experiência e o saber de experiência (2002) – utilizados
aqui como ponto inicial de nossa reflexão.
∗ Pós-Doutora em Fundamentos da Educação pela Universidade de Nantes e François Rebelais (França) e Professora titular do Centro de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (RN, Brasil). E-mail: <cpasseggi@digizap.com.br>.
Artigo recebido em janeiro e aprovado em março 2011.
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Maria da Conceição Passeggi
No Brasil, as pesquisas educacionais com fontes
autobiográficas têm se voltado mais para as questões
identitárias, notadamente, na formação docente.3 Ainda
são raras aquelas que investigam a ressignificação da
experiência no ato de narrar a própria vida. É sobre essa
última que ousamos apresentar um esboço imperfeito e
lacunar de nossas observações sobre esse assunto, reunindo
fragmentos de nossas atividades de pesquisas e de ensino
com as escritas de si em contexto institucional. A reflexão
decorre do desejo de dar sentido ao fato de solicitar aos
professores a tarefa de narrar sua história de vida e às
suas experiências profissionais. Afinal, o que sabemos
até agora sobre a “ressignificação da experiência” nas
escritas de si como prática pedagógica? Não pretendemos
responder, ainda que parcialmente, a essa questão. Nosso
objetivo é, sobretudo, partilhar inquietações sobre o lugar
central de uma epistemologia da experiência nas escritas
de si, no contexto da formação, que nos ajude a melhor
compreender as narrativas autobiográficas como prática
pedagógica.
O título deste texto – A experiência em formação –
é uma alusão ao jogo de palavras que encontramos em
Histórias de vida em formação.4 A intenção, como já se
pode inferir, é explorar a ambiguidade que ele sugere para
delimitar a noção da experiência ao contexto da formação
e, ao mesmo tempo, chamar a atenção para a fluidez e a
impermanência da experiência narrada e interpretada pela
narrativa. A cada nova versão da história, a experiência
é ressignificada, razão estimulante para a pesquisa
educacional, pois nos conduz a buscar as relações entre
viver e narrar, ação e reflexão, narrativa, linguagem,
reflexividade autobiográfica e consciência histórica.
A nossa reflexão apoia-se em pesquisas conduzidas
nos últimos dez anos sobre as narrativas autobiográficas
(orais e escritas). Os dados empíricos sobre os quais temos
nos debruçado são transcrições da interação em grupos
reflexivos; memoriais autobiográficos (PASSEGGI,
2008); narrativas autobiográficas produzidas em ateliês
de escrita autobiográfica com alunos da pós-graduação;
ensaios autobiográficos (BARBOSA; PASSEGGI, 2009,
2010); portfólios, diários, etc.
Organizamos nossa exposição em três partes. Em
primeiro lugar, procuramos aproximações entre recortes
históricos da noção de experiência para pensar modos de
compreender e ressignificar a experiência nas práticas de
formação. Em seguida, apresentamos nossa experiência
com os grupos reflexivos como espaço-tempo propício a
partilhar, refletir e ressigificar as experiências com o outro,
no processo de formação de formadores. Finalmente,
intentamos identificar elos entre linguagem, reflexividade
e consciência histórica, antes de tecermos considerações,
em aberto, sobre a experiência narrada e interpretada pela
narrativa na formação docente.
Desejamos reconhecer nossas dívidas para com os
autores5 que nos inspiram e para com os pesquisadores
do GRIFAR6, com quem aprendemos a cada dia.
Parafraseando Larrosa (2004, p. 12), agradecemos a Maria
Helena Menna Barreto Abrahão por nos deixar colocar
este texto na boa companhia de outros e dos autores que
fazem parte deste dossiê.
1 a experiência em formação:
compreender|ressignificar a
experiência vivida
Para mim o importante é compreender. Para mim,
escrever é uma questão de procurar essa compreensão,
parte do processo de compreender (Hannah Arendt7).
Se as palavras não são apenas uma representação da
realidade, mas uma forma de construir uma realidade
humana, ou de humanizar a realidade transformando-a em discurso, propomo-nos a começar pela etimologia do termo experiência, que evoca sua natureza
cambiante e sua estreita relação com a formação humana.
O termo experiência, como se sabe, deriva do latim
experientia/ae e remete à “prova, ensaio, tentativa”,8 o que
implica da parte do sujeito a capacidade de entendimento,
julgamento, avaliação do que acontece e do que lhe
acontece. Larrosa (2002) e Martin Jay (2009) lembram
a associação entre experiência e perigo, na medida em
que “provar” (expereri) contém a mesma raiz (per) de
“perigo” (periculum). Mas, foi a partir da reflexão sobre os
termos Erlebnis e Erfahrung, equivalentes de experiência
em alemão, que começamos a dar uma atenção especial à
ressignificação da experiência e a melhor problematizá-la
em nossos estudos.
Erlebnis traduz-se, geralmente, por ‘experiência
vivida’ ou ‘vivência’, entendida como uma experiência
mais imediata, pré-reflexiva e pessoal; Erfahrung associase a impressões sensoriais e ao entendimento cognitivo,
que integra a experiência num todo narrativo e num
processo de aprendizagem. A palavra Erfahrung compõese de Farht (viagem) e pode ser associada a Gefahr
(perigo). Nesse sentido, ela remete a uma temporalidade
longa e sugere a ideia de aventura. Com base nessas
duas noções, a experiência significa ter vivido os riscos
do perigo, ter a eles sobrevivido e aprendido algo no
encontro com o perigo: ex, em experientia, significa
“saída de”. A associação entre viagem e perigo, como
afirma Jay (2009, p. 27), ativa o vínculo entre memória
e experiência e induz a crença de que “a experiência
acumulada é capaz de produzir um tipo de saber, que
somente se alcança no final da viagem”. Por extensão, a
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compreensão da experiência vivida só se atingiria no final
da existência, quando cessa para o sujeito a possibilidade
de ressignificar sua experiência.
Wilhelm Dilthey (1833-1911), que fará da autobiografia o modelo hermenêutico das ciências do
espírito,9 reconceitualiza a noção de vivência – Erlebnis
– para desenvolver sua proposta de consciência histórica.
Para nossos estudos e atividades de formação, a noção de
consciência histórica é fundamental para compreendermos
a experiência em formação. Entendemos que ela só se
justifica se permitir à pessoa que narra compreender a
historicidade de suas aprendizagens e construir uma
imagem de si como sujeito histórico, situado em seu
tempo. O que chama atenção no pensamento de Dilthey
é a atualidade de sua percepção sobre a reflexividade.
Para o autor, ela é imanente à vida; ela está lá, antes de
qualquer objetivação científica, racional: “O saber está aí,
unido à vivência sem intervenção da reflexão”. Ou seja, o
processo reflexivo de autorregulação (social) é imanente
à experiência vivida. Dilthey se opõe tanto a uma visão
subjetivista (romântica ou estética) da experiência quanto
a uma percepção puramente racional da experiência,
associada a uma visada experimental. Entre o subjetivismo
e o racionalismo, Dilthey situará a consciência histórica, a
qual, afirma Gadamer (1997),
[...] não é a expressão imediata da realidade vital como
era a consciência antes de elevar-se vitoriosamente
a uma consciência histórica. [...]. Pelo contrário
reconhece-se numa relação reflexiva consigo mesma
e com a tradição na qual se encontra. Compreende a si
mesma a partir de sua história. A consciência histórica
é uma forma de autoconhecimento (GADAMER,
1997, p. 316) [grifos do autor].
A consciência da realidade imediata adquire uma
nova significação quando ela situa-se para além da
apropriação ingênua das tradições, costumes, habitus.
Se concordarmos com Dilthey, não há possibilidade de
o indivíduo escapar da sua condição social, pois ele se
eleva acima de sua particularidade “Na linguagem, nos
costumes, nas formas jurídicas” (GADAMER, 1997,
p. 317). Como isso acontece? Entendemos que quando
Dilthey se refere ao saber que provém da experiência
vivida – Erlebnis, adota o princípio da hermenêutica,
o qual exige, por exemplo, que a experiência seja
compreendida a partir de si própria e não de critérios
que lhes são estranhos. Ela deve ser situada no contexto
imediato das tradições, que por sua vez se amplia em
círculos cada vez mais amplos para se estender à totalidade
histórica, até atingir um conhecimento histórico universal.
A questão que supostamente não se colocava para
Dilthey era saber se a finitude da compreensão humana
poderia alcançar a totalidade histórica. Seu esforço não
ia nesse sentido, mas naquele de dotar a compreensão do
mundo, da experiência, do outro, de um ponto de vista
histórico, “a fim de aprender a elevar-se para além dos
preconceitos do próprio presente” (GADAMER, 1997,
p. 302). Essa é uma lição que retivemos de seus ensinamentos.
Os (pre)conceitos que guiam nossa ação no mundo
e que foram construídos na interação com tradições herdadas e reconstituídas povoam nossa existência de dilemas, de sentimentos de inadequação e/ou
de adequação aos ambientes sociais e criam zonas de
conforto e/ou de desconforto. Se somos filhos de nosso
tempo, mais do que filhos de nossos pais, a ressignificação da experiência vivida, durante a formação,
implicaria encontrar na reflexão biográfica marcas da
historicidade do eu para ir além da imediatez do nosso
tempo e compreender o mundo, ao nos compreender:
Por que penso desse modo sobre mim mesmo e sobre a
vida?10
A leitura dos textos de Ricoeur (1986, 1990, 1994) tem
nos ajudado a aprofundar a reflexão sobre a compreensão
da consciência histórica, que emerge no ato de dar sentido à experiência vivida. Ricoeur (1986, p. 113 e seg.)
acrescenta à perspectiva de Dilthey a função hermenêutica
do distanciamento na produção da narrativa. Para o autor,
o texto escrito, diríamos ainda, transcrito, videogravado,
produz o distanciamento na relação consigo e com o
outro. Um acontecimento banal ou uma situação extrema
podem ser narrados segundo critérios sociais, morais,
políticos, religiosos, psicanalíticos, etc., de acordo com
a intencionalidade da pessoa que narra e do contexto no
qual narra. O que importa, para Ricoeur, é focalizar a
mediação da escrita como processo de distanciamento,
a fim de compreender a experiência. É o que nos diz
Hannah Arendt (2008, p. 33), quando afirma que escreve
para compreender: “Escrevi o livro [Rahel Varnhagen,
1974], pensando: ‘quero compreender’.”
Entre um acontecimento e sua significação, intervém
o processo de dar sentido ao que aconteceu ou ao que
está acontecendo. A experiência, em nosso entendimento,
constitui-se nessa relação entre o que nos acontece e a
significação que atribuímos ao que nos afetou. Isso se
faz mediante o ato de dizer, de narrar, (re)interpretar. As
“vidas”, nos diz Bruner (1995, p. 142), são textos sujeitos
a “revisão, exegese, reinterpretação e assim por diante”.
Ao reinterpretar a vida, não se nega um “texto” anterior,
mas sua interpretação. Se os acontecimentos são fugitivos,
e arredias suas interpretações, por que há experiências que
nos enclausuram e outras que nos empurram para novas
aventuras?
É sobre o processo de partilhar a experiência vivida
e as diferentes etapas de sua ressignificação, em grupos
reflexivos, que nos ocuparemos agora.
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2 grupo reflexivo: a experiência
partilhada na mediação biográfica
O mundo não é humano por ser feito de seres humanos,
nem se torna assim somente porque a voz humana nele
ressoa, mas apenas quando se transforma em objeto
do discurso... Nós humanizamos o que se passa no
mundo e em nós mesmos apenas falando sobre isso, e
no curso desse ato aprendemos a ser humanos (Hannah
Arendt11).
Nas pesquisas educacionais, duas noções de grupo
vêm se tornando cada vez mais frequentes: o grupo
focal, descrito por Gatti (2005), e o grupo de discussão,
apresentado por Weller (2006). De modo muito
esquemático, nessas duas noções, a interação social no
grupo é entendida como um método de pesquisa para a
construção de dados empíricos, com vistas à compreensão
de um questionamento, ou de um tema, colocado pela
pesquisa. A partir da análise das falas dos participantes,
investigam-se opiniões, crenças, valores, representações
(sociais, coletivas, individuais) expressas ou tácitas sobre
a questão investigada, com a finalidade de produção do
conhecimento.
Fomos elaborando a noção de grupo reflexivo e de
mediação biográfica (PASSEGI, 2006, 2009) a partir
de uma perspectiva multirreferencial. A complexidade
da situação de interação no grupo e das condições de
escrita autobiográfica, em contexto institucional, levounos a compor, gradualmente, um quadro teórico com
múltiplas referências. Partimos da literatura sobre as
histórias de vida em formação, no domínio da formação
de adultos, que trabalha a ideia de co-construção
do sentido entre o formador, o grupo e a pessoa em
formação. Dominicé (2000) sugere a noção de biografia
educativa e não de autobiografia educativa, sustentando
que a estreita colaboração entre os membros do grupo
tornaria inadequado o prefixo auto. Em Sociologia,
inspiramo-nos nos estudos de Franco Ferrarotti (2010)
sobre o grupo, numa abordagem crítica das histórias de
vida. A proposta de Wolfgang Wagner (1998), de quem
retomamos o conceito de grupo reflexivo, no âmbito da
psicologia social, ajudou-nos a refletir sobre a noção de
pertencimento e de uma atitude reflexiva que se encontra
no cerne das práticas de formação mediante o uso de
narrativas. No pensamento de Vygotsky (1989, 2000),
encontramos respaldo para distinguir dois aspectos da
mediação biográfica: a mediação semiótica, realizada por
meio da linguagem e da mediação social, que diz respeito
à relação com o outro e consigo mesmo, como ser social.
Seguiram-se aos estudos de Vygotsky, os trabalhos de
Bruner (1995, 1997, 2005), na perspectiva da psicologia
sociocultural, assim como os de Bronckart (2002) e de
Yves Clot (2006), sendo este último o mais próximo da
teorização das condições do trabalho na vida adulta. A
perspectiva vygotskiana é aprofundada com os trabalhos
de Bakhtin (1985, 1992) sobre a interação verbal, as
noções de gêneros do discurso e de dialogismo, no
domínio da filosofia da linguagem. Essas são referências
gerais às quais continuam se agregando outras que nos
permitem compreender o traçado do caminho.
Apresentamos, em grandes linhas, nossa experiência
com grupos reflexivos, adquirida nos ateliês de escrita
autobiográfica, os quais foram realizados na pósgraduação em Educação,12 como parte prática da disciplina teórica sobre a pesquisa (auto)biográfica. Essas
disciplinas são a base para a formação de pesquisadores
nessa área e, ao mesmo tempo, para sua formação
enquanto formadores no acompanhamento das escritas
de si como prática pedagógica. O trabalho se desenvolve
durante um semestre letivo e tem por objetivo levar o pósgraduando a vivenciar a situação de escrita em contexto
institucional para melhor compreender como se dá consigo
o processo dialético da ressignificação da experiência e da
reinvenção de si. Estimamos que a reflexão com o grupo
sobre a experiência vivida permite experienciar questões
de ordem afetiva, cognitiva, sociocultual, que vão além
daquelas de caráter puramente teórico e metodológico,
discutidas na disciplina.
O grupo reflexivo demarca-se das noções de grupo
focal e de grupo de discussão por três razões fundamentais.
Em primeiro lugar, não se trata de um método de
pesquisa, mas de uma prática de formação. O que nele
se fala, ou se cala, não visa ao interesse do pesquisador,
mas, primordialmente, ao da pessoa em formação e,
posteriormente, do grupo que aprende com a história do
outro. Em segundo lugar, os participantes (professores,
pesquisadores, formadores em formação) reconhecem
seu pertencimento a esse grupo social, assim como o seu
engajamento num projeto comum: partilhar com o outro
a experiência vivida para compreender a si mesmo e ao
outro como sujeitos históricos. Finalmente, o grupo se
realiza em contexto institucional e é acompanhado por um
formador, que zela pelos princípios éticos e deontológicos
das práticas de reflexão autobiográfica. Esse terceiro
aspecto implica uma continuidade do relacionamento
entre pares durante o tempo de formação, que, muitas
vezes, prolonga-se para além do espaço institucional.
O trabalho apoia-se nos objetivos e princípios éticos
descritos na Carta da ASIHVIF-RBE,13 por nós adaptados
ao contexto da formação pós-graduada. Esses princípios
podem ser ampliados segundo o desejo do grupo. O
primeiro princípio é o da liberdade para falar, ou não,
de si, permanecer, ou não, no grupo. Para Pineau e Le
Grand (2007), trata-se de um princípio epistemopolítico,
uma vez que ele visa a evitar o uso indevido das escritas
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de si por instâncias mais preocupadas com o processo
de (con)formação dos participantes do que com a sua
emancipação. Essa noção é aqui entendida com Alheit e
Dausien (2006, p. 178), enquanto “liberdade biográfica de
planejamento e de engajamento social dos indivíduos”.
O segundo princípio é o de conviviabilidade, o qual
se baseia na ajuda mútua, ancorada na adoção de uma
atitude de simpatia tanto pela experiência do outro,
quanto por suas próprias experiências, com o objetivo
de melhor compreender a si mesmo e ao outro, evitandose qualquer atitude de julgamento. O terceiro princípio
é o de confidencialidade, sobre o qual não precisamos
nos deter, apenas firma-se um pacto ético de sigilo
quanto ao que é dito no grupo. O quarto princípio é o
de autenticidade nos relatos e na escrita de si. O grupo
não busca uma verdade escondida, já que, desde o
início, sabe-se que não há história antes de ser narrada.
Entende com Arendt (2008) que humanizamos o que se
passa no mundo e em nós mesmos apenas falando sobre
isso, e no curso desse ato aprendemos a ser humanos. O
compromisso de cada um no grupo e do grupo com todos
é ajudar(se) a compreender a si mesmo em processo de
(trans)formação, permanecendo atento ao modo como o
ato de narrar ressignifica sua experiência e como, uma vez
ressignificada, incide sobre a reinvenção de si. O quinto
princípio é o de direito à autoria do que foi escrito ou,
eventualmente, transcrito, videogravado. Os participantes
têm o direito de guardar para si suas narrativas e de
reescrever eventuais transcrições de sua fala. O sexto
princípio concerne à formação do formador. Trata-se de
uma exigência ética e experiencial que o formador tenha
vivenciado no processo de formação mediante a escrita
autobiográfica, para melhor desempenhar o processo de
mediação e de acompanhamento. O sétimo princípio é o de
contratualização entre os pares, com base nos princípios
acima descritos e/ou acrescentados pelo grupo. O contrato
pode ser formal ou informal.
Tais princípios são exigências observadas na pósgraduação, na formação de formadores, com as histórias
de vida como dispositivo pedagógico, e pelos nossos
formadores.
Os ateliês de escrita autobiográfica compreendem
cinco etapas que se sucedem ao longo do semestre. O
momento inicial diz respeito aos primeiros contatos entre
os membros do grupo, a elaboração do contrato entre
pares, além do contrato didático com o formador. Nesse
momento, todas as etapas são explicitadas, com vistas
a auxiliar o participante a tomar a decisão de participar
ou não do grupo. Sua permanência implica engajar-se a
adotar uma atitude reflexiva sobre si mesmo e sobre o
que vai aprendendo durante a realização do ateliê. No
final do semestre, deve realizar um trabalho acadêmico,
sistematizando o desenrolar do processo de ressignifica-
ção da experiência e a forma como incide sobre a reinvenção de si. Trata-se de uma maneira de teorizar a
formação com as escritas de si.
Após, seguem-se as três unidades de trabalho que
constituem o desenrolar propriamente dito da mediação
biográfica, apresentadas ao grupo e discutidas em sala de
aula para eventuais ajustes. Cada unidade parte de uma
pergunta indutora para mobilizar o avanço da reflexão.
A primeira – unidade de implicação – toma como base
a questão: Que experiências marcaram a minha vida
intelectual e profissional? Esse momento caracteriza-se
pela rememoração aleatória dos fatos, acontecimentos,
pessoas, lugares, tempos, espaços significativos para a
formação. Todas as evocações são lançadas e aceitas,
evitando-se qualquer tipo de direcionamento. Já se inicia
aqui o processo de escrita da história, a qual pode, ou não,
ser lida no grupo. Essa unidade corresponde à dimensão
iniciática da mediação biográfica, assim denominada em
alusão ao ritual de ingresso na experiência da reflexão
sobre si mesmo e à adesão ao trabalho comum, questões
decisivas para a constituição do grupo reflexivo. Josso,
em seu livro Experiência de vida e formação (2010,
p. 216), refere-se às experiências fundadoras como
acontecimentos, cuja carga emocional deixa um ‘traço’
ou mesmo um traumatismo. Nesse primeiro momento,
temos observado que as lembranças da escola, do primeiro
emprego ou das primeiras aulas são evocadas; em sua
maioria, constituem-se em experiências fundadoras, as
quais abrem espaços para o trabalho de compreensão de
como elas afetaram a pessoa que narra e a que a escuta.
Na segunda unidade, reflete-se sobre as experiências
evocadas (ou escritas) anteriormente, de forma aleatória. A pergunta indutora é a seguinte: “O que essas
experiências fizeram comigo?”. É o momento em que
o grupo procura compreender diante do outro e de si
mesmo os dilemas, conflitos ou certezas que perpassaram
ou ainda perpassam suas experiências profissionais e
intelectuais e que pontuam sua trajetória profissional.
A noção de compreensão é central nessa unidade.
Como já mencionamos, se Dilthey defende a ideia de
uma reflexividade imanente à experiência vivida, para
Ricoeur (1986) a mediação da narrativa é constitutiva
da reflexividade. É na construção de um enredo para a
história que se dá forma à experiência, que ela adquire
sentido, é ressignificada. O objetivo dessa unidade é
proceder à construção do enredo da história, alternando
a sucessão ou a simultaneidade dos acontecimentos nos
tempos presente, passado, futuro. O papel do grupo
é ajudar o outro a encontrar nexos entre experiências
e espaços sociais, entre a temporalidade subjetiva e
o tempo histórico, para compreender sentimentos de
(in)adequação social ou intelectual face às tradições do
seu grupo familiar, institucional, etc. O que provocou
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a adesão às tradições ou, ao contrário, levou a pessoa a
revoltar-se contra elas?
Um caso exemplar de narrativa reflexiva é a que faz
Pierre Bourdieu (2004) em seu livro Esquisse pour une
auto-analyse (Esboço de autoanálise). Para Bourdieu,
cuja crítica à “ilusão biográfica” é bastante conhecida,
compreender seria compreender, primeiramente, o campo
com o qual e contra qual nos formamos. Por isso, escolhe
iniciar seu livro14 escrevendo sobre si mesmo como
aluno da Escola Normal Superior em Filosofia, situada
no topo da hierarquia escolar, na França dos anos 1950.
A análise retoma os “ritos institucionais” que permitiam
o ingresso do aluno na “tribo dos filósofos”, dominada
por uma “solidariedade enraizada na imagem do grupo
como imagem encantada de si mesmo”. Ao longo do
livro, podemos observar como ocorre o exercício de
reflexividade na análise de suas experiências enquanto
pesquisador e como explicita “objetivamente” sua
“conversão” e os vínculos que o levaram, em sua
carreira universitária, a passar da filosofia à sociologia
e, mais precisamente, à sociologia rural. O exercício de
reflexividade na compreensão da experiência vivida é
central nessa segunda unidade. Nesse sentido, podemos
distinguir o retorno sobre si enquanto uma intervenção
educativa das práticas psicanalíticas ou ficcionais. Esse
segundo momento corresponde à dimensão maiêutica
da mediação biográfica, por sua mirada heurística:
compreender a experiência vivida significa compreender
a si mesmo como agente e paciente de sua história. Esse
é o passo decisivo para ressignificá-la na etapa seguinte
do ateliê de mediação biográfica.
A terceira unidade parte da pergunta: “O que faço
agora com o que isso me fez?” Nesse terceiro momento,
o trabalho de escrita da história de vida profissional e
intelectual está em fase de conclusão, ou já está concluído,
para alguns. O grupo trabalha sobre o texto escrito. O
narrador é o primeiro leitor do texto; é quem realiza uma
leitura crítica de sua narrativa, avalia a maneira como
expressa a compreensão de suas experiências profissionais
e intelectuais, como elas foram narradas e reinterpretadas.
Nesse momento, trata-se ainda de tomar a decisão de
tornar pública, ou não, a sua história. O exercício de
reflexividade autobiográfica sobre as vivências implica,
para Josso (2010), aprender a descobrir os pressupostos
cognitivos das nossas interpretações, bem como encontrar
uma forma adequada, ou privilegiada, para dizer ou
escrever nossa história. A vivência, segundo a autora
(2010), adquire o status de experiência formadora em
função do saber que resulta dessa reflexão sobre nosso
modo de simbolizar o que nos aconteceu e como a
experiência nos afetou.
Na terceira unidade, não é raro se fazer referência à
escrita autobiográfica como uma viagem15 em torno de
si mesmo, de volta ao passado, de projeção no devir...
Essa unidade corresponde à dimensão hermenêutica da
mediação biográfica e baseia-se na capacidade humana
de tirar lições da experiência, situando o saber que dela
decorre numa perspectiva histórica, para melhor conhecerse como sujeito histórico. Essa é uma das conclusões
de Larrosa (2002, p. 25) como primeira nota sobre a
experiência: “A experiência e o saber que dela deriva
são o que nos permite apropriamo-nos de nossa própria
vida”. A lição adquirida da experiência dessa travessia
é compreender-se como um si mesmo transformado ou,
como diria Ricoeur (1990), como um si mesmo refletido,
mediante a narrativa autobiográfica. Também, não é raro
que a escrita se conclua pelo desejo de que sua história
sirva a outrem. É por esse “lugar comum”16 que Bourdieu
também conclui a narrativa de sua trajetória acadêmica.
E nada me deixaria mais feliz do que ter conseguido
fazer com que alguns de meus leitores ou leitoras
reconheçam suas experiências, suas dificuldades, suas
interrogações, seus sofrimentos etc., nos meus e que
eles tirem dessa identificação realista, que é totalmente
o oposto de uma projeção exaltada, modos de fazer e
de viver um pouquinho melhor o que eles vivem e o
que eles fazem (BOURDIEU, 2004, p. 142) [tradução
nossa].
Do ponto de vista da escrita propriamente dita, as três
unidades se esboçam como passos da tríplice mimese,
sugerida por Ricoeur (1994), e sobre a qual já discutimos
em outro texto.17 As três unidades correspondem,
respectivamente, às mimeses I, II e III, compreendendo
a pré-figuração, a figuração e a refiguração do tempo
e da consciência histórica. As experiências evocadas
de forma aleatória na primeira unidade articulam-se no
enredo da história, na segunda, e são reinterpretadas na
terceira, graças ao distanciamento permitido pelo texto e
pelo mundo humano construído no texto.
O momento final do ateliê é dedicado à produção
do conhecimento adquirido sobre o processo de
acompanhamento da escrita de si. Trata-se de refletir
sobre a experiência de tomar a si mesmo como objeto
de reflexão, de expor sua história e de formar-se com a
história do outro. Como dissemos anteriormente, esse
trabalho de reflexão final é desde o início colocado no
contrato do grupo reflexivo. Ele será objeto do trabalho
final a ser, ou não, lido no grupo e considerado como
requisito parcial para a avaliação da disciplina.
A ideia de educação ao longo da vida, que marcou,
no final do século XX, o surgimento de uma nova ordem
educativa, só se justifica, como constata Alheit (2006, p.
183), mediante uma transformação profunda da qualidade
do processo de aprendizagem. A questão central da
pedagogia deslocou-se, desde então, dos ‘métodos
Educação, Porto Alegre, v. 34, n. 2, p. 147-156, maio/ago. 2011
153
A experiência em formação
eficazes’ para focalizar ambientes de aprendizagem mais
propícios à formação. A reflexão biográfica e as situações
de interação no grupo reflexivo têm se apresentado como
espaços-tempos geradores de aprendizagens que partem
da vida, do saber da experiência vivida, e retornam
sobre si mesmo como um novo alento para a vida. Elas
são suficientemente distantes das práticas usuais de
formação, para oferecerem oportunidades de tomada de
consciência, potencializarem aberturas, interrogações e
transformações.
O processo de reflexão biográfica em grupos reflexivos
situa o coletivo no seio de uma prática individual e o
indivíduo no seio de uma prática coletiva, em que se
alternam a escrita de si (autobiografia) e a compreensão
de si pela história do outro (heterobiografia).
3 consciência histórica, linguagem,
reflexividade biográfica
Quanto mais formos capazes de dar conta a nós
mesmos e aos outros da experiência vivida, mais ela é
vivida conscientemente (Lev Vygostki18).
A situação de formação de professores coloca face a
face dois adultos. Como já afirmava Mucchielli (1981, p. 9),
nos anos 1970, enquanto não se aprofundar a especificidade
dessa situação, as consequências serão entristecedoras.
Para Boutinet e Dominicé (2009, p. 12-13), já não se pode
definir a adultez em termos de estabilidade ou maturidade,
como se fazia em meados do século XX, nem tão pouco
valorizar um estado de permanente inacabamento, que
se instalou a partir dos anos 1970. Esses dois modelos
de vida adulta são considerados obsoletos pelos autores.
O novo modelo que tenta se impor, atualmente, é, para
eles, “o do adulto plural” em busca de unidade. O adulto
vive em espaços cada vez mais complexos, nos quais é
convidado a “se dizer” e a demonstrar o que adquiriu com
a experiência. Ter experiência, pensar sobre a experiência,
fazer experiência, são expressões que se encontram no
centro das preocupações da vida adulta. Yves Clot (2006,
p. 12), no campo da psicologia do trabalho, sugere
justamente que o trabalho, enquanto atividade humana,
“não é uma atividade entre outras”. O trabalho exerce na
vida pessoal do adulto uma função psicológica específica
que incide sobre sua subjetividade e a necessidade de
encontrar, mesmo provisoriamente, unidade e coerência.
Nesse sentido, justifica-se o fato de se ancorar a formação
nas experiências profissionais e oferecer condições
institucionais para refletir sobre elas.
Não é sem razão que a noção de consciência vem,
atualmente, tornando-se uma temática importante em
psicologia, na perspectiva histórico-cultural, como
afirmam Bronckart (2002) e Clot (2002). Ela nos
ajuda a conceitualizar o processo de ressignificação da
experiência que se opera pela narrativa, durante e pela
mediação biográfica. Para Clot (2002, p. 23), “[...] a
subjetividade e o inconsciente, longe de ser ocupações
ocasionais, encontravam-se no centro das preocupações
de Vygotski”. Sabemos que toda a obra de Vygotsky pode
ser considerada como uma tentativa de não simplificar
esse problema, uma vez que considerava que o destino
da psicologia dependia da maneira como se resolveria a
questão do psiquismo, do consciente e do inconsciente
(VYGOTSKY, 2002, p. 96-97).
O enigma colocado por Vygotsky é o que faz avançar
a reflexão. Para o autor, a consciência não existe como
um estado mental, ou seja, separada de sua relação com
o real. É somente em movimento que a consciência
mostra o que ela é. Arrancá-la do real seria provocar sua
destruição. Ela se apaga, perde a capacidade de se ampliar
e morre como consciência. A questão central consistia em
estudar não a consciência em si, “mas de fazê-la ‘viver’
para estudá-la”. Mas como vive a consciência? Todos
nós conhecemos a tese de Vygotsky (1989, p. 30) sobre
a linguagem e sua função socializadora e planejadora:
“A história do processo de internalização da fala social
é também a história da socialização do intelecto prático
da criança”. Com a ajuda da palavra, a criança exerce o
controle sobre a ação.
Vygotsky e Bakhtin concordam num ponto comum:
a importância da objetivação do pensamento mediante o
uso da linguagem. A expressão, uma vez pronunciada,
[...] exerce um efeito reversivo sobre a atividade
mental: ela põe-se então a estruturar a vida interior,
a dar-lhe uma expressão ainda mais definida e mais
estável. Essa ação reversível da expressão bem formada
sobre a atividade mental (isto é, a expressão interior)
tem uma importância enorme que deve ser considerada
(BAKHTIN; VOLOCHINOV, 1985, p. 118).
É nesse sentido que as escritas de si são formadoras.
Vygotsky (2002, p. 78) alinhava-se a esse ponto de vista
quando afirmava que “quanto mais formos capazes de dar
conta a nós mesmos e aos outros da experiência vivida,
mais ela é vivida conscientemente”.
Convém salientar aqui a coerência entre a noção de
reflexividade autobiográfica, entendida como o retorno
sobre si mesmo, para tirar lições de vida, e a noção de
formação. Para Gadamer (1997, p. 44-55), na tradição
alemã, a “formação” (Bildung) consiste numa elevação
do ser singular, que se desprende de si para alcançar a
consciência histórica, ou seja, para se manter aberto ao
diferente, a outros pontos de vista menos individuais e
mais universais. Assim, entendemos as lições de Dilthey
sobre a experiência e a construção de uma consciência
histórica.
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154
Maria da Conceição Passeggi
Nessa mesma direção, Fabre (1994, p. 160) define
a formação como o processo histórico pelo qual a
consciência, criticando suas representações mediante a
narrativa, atribui-se uma unidade e alcança o universal.
A ressignificação da experiência, que se faz no retorno
sobre si mesmo, implica o distanciamento de nós
mesmos e a possibilidade de nos vermos como os outros
nos veem, o que também implica contradições, crises,
rejeição, desejos de reconhecimento, dilemas... Mas, se
assim não fosse, como poderíamos ancorar a formação
no processo de ressignificação da experiência vivida? Se
não entrássemos em contradição com a interpretação dada
anteriormente a nossas experiências, como poderíamos
ir além da nossa singularidade e permanecermos abertos
para o diferente?
A formação, quando adota a mirada reflexiva sobre
a experiência vivida, em nenhum momento, deve ser
entendida como uma (trans)formação sem crises. Ela
adota, ao contrário, na perspectiva dialética, uma dimensão
histórica, em franca ruptura com os ideais iluministas,
que estimavam um aperfeiçoamento linear, progressivo e
a-histórico do desenvolvimento humano. Do ponto de vista
psicológico da construção da subjetividade, as escritas
autobiográficas mostram justamente à pessoa que narra
essa descontinuidade, as rupturas, a imprevisibilidade,
o fortuito e o papel das contingências como aspectos
determinantes da experiência humana.
4 em aberto: da libertação À
injunção biográfica
[...] subestimar a sabedoria que resulta necessariamente
da experiência sociocultural é, ao mesmo tempo,
um erro científico e a expressão inequívoca de uma
ideologia elitista (Paulo Freire19).
O posicionamento de Freire a favor do conhecimento
que resulta da experiência, expresso na epígrafe, ajudanos a retomar a polêmica gerada por uma ideologia
elitista da ciência, que desde sempre desconfiou do
saber da experiência, supostamente enclausurada na
singularidade do eu. Larrosa (2002, p. 20), em suas
notas sobre a experiência, reitera a perspectiva política e
crítica do par teoria|prática quando afirma “que é somente
nessa perspectiva que tem sentido a palavra “reflexão”
e a “expressão reflexão emancipadora”. O legado da
dimensão epistemológica e política do pensamento de
Freire contra a neutralidade científica em Educação
fez do seu pensamento, segundo Dominicé (2000,
2009), uma das correntes inspiradoras do movimento
das histórias de vida em formação, que, por sua vez,
prolongou, ao seu modo, uma pedagogia centrada na
liberdade do sujeito aprendente, na intenção de valorar
o saber e o poder pensar sobre si como prática libertadora.
A intenção “militante” dos anos 1970-1980 tendeu,
no entanto, a se arrefecer nos anos subsequentes. O que
era uma prática de liberdade e uma força de mobilização
dos “esquecidos” da história (pensemos também aqui
nos professores) foi sendo recuperado pela sociedade da
informação e do conhecimento, enquanto um imperativo
socioprofissional. As noções de emancipação, de libertação, de autonomia e mesmo de identidade foram se
esvaziando diante da perda de referência e da diluição dos
padrões tradicionais ancorados nas tradições herdadas. A
condição biográfica, da qual nos fala Delory-Momberger
(2009), na modernidade avançada, decorre do imperativo
de dizer quem somos para nossas instituições e de
explicitar para elas nosso projeto de vida profissional.20
A capacidade de biografização torna-se, então, um
instrumento e um dos critérios de ação social. O paradoxo
histórico é que esse imperativo acompanha justamente a
perda de referência social nas instituições tradicionais. O
indivíduo deve assumir a tarefa de se reinventar a cada
dia, diante das mais inesperadas situações, criadas pela
mobilidade social, os processos intensos de deslocalização
e os efeitos da informatização.
Para Rustin (2006), as teorias contemporâneas de
individualização avançam de tal forma que a sociedade
moderna confere uma nova importância aos indivíduos
e à sua história. Nessa nova ordem “individualista”,
a “reflexividade” representa uma perspectiva real de
emancipação humana. Há os que se alinham ao otimismo
das soluções biográficas para as questões coletivas e os
que desconfiam do individualismo exacerbado e da aflição
permanente de se produzir a si mesmo, indefinidamente.
O paradoxo histórico lembrado por Rustin (2006)
repousa numa contradição. Desde o final do século 16,
a cultura ocidental “inventou” o “indivíduo”. Enquanto
as diversas formas culturais (literatura, religião, filosofia,
cinema, etc.) trabalharam, nos últimos séculos, com
registros biográficos, as ciências sociais, a maior parte
do tempo, afastaram as biografias de seu campo de
interesse. A sociedade biográfica concebida como a soma
de biografias individuais que compõem “a gigantesca, a
desmesurada, a imensa biblioteca do existir humano”,
como diria Saramago (2008), carece de pesquisas que
se voltem para o ato de construir-se, construindo sua
biografia. Não é, portanto, sem razão, que as noções
de consciência, reflexividade biográfica, aprendizagem
biográfica e experiência tendem a ocupar, a cada dia, mais
espaço nas ciências humanas e sociais.
Desejamos finalizar reformulando a questão inicial:
Afinal, o que significa, hoje, solicitar, ou entregar,
aos professores a tarefa de narrar sua história de
vida e ressignificar suas experiências profissionais e
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155
A experiência em formação
intelectuais? Somente na perspectiva de que a reflexividade
autobiográfica propicia a quem narra a possibilidade de
abertura para novas experiência é que podemos acatar a
ideia da experiência em formação no seu duplo sentido:
o de prática formadora e o de reelaboração permanente. As metáforas de Zygmunt Bauman – Amor líquido,
Medo líquido, Modernidade líquida – autorizam-nos a
pensar em experiência líquida como modo de concebê-la, em contínua formação e em contraposição a qualquer idéia de rigidez, de cristalização ou de enclausuramento do sujeito na experiência vivida e ressignificada.
Também, temos de ter o cuidado de evitar o retorno à
concepção de enclausuramento da experiência no sujeito.
A fluidez da experiência afiança a relativa invenção
do ser.
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notas
1
2
Jorge Larrosa, 2006, p. 20.
Autopoiese – do grego (autos), “próprio”; (poiésis), criação, invenção,
produção. Neologismo criado por Humberto Maturana e Francisco
Varela, nos anos 1970, para designar a capacidade dos seres vivos de
produzirem a si próprios. O termo passou em seguida para as ciências
sociais e humanas para se referir à capacidade humana de se autorregular,
autoadequar, autoinventar.
3 Os estudos recentes de Marli André (2009) e de Maria Stephanou (2008),
realizados a partir de resumos de dissertações e teses defendidas, entre
1990 e 2006, revelam o deslocamento dos temas de pesquisas para a
questão identitária, desde os anos 2000.
4 Denominação do movimento socioeducativo das Histórias de vida em
formação, iniciado nos anos 1980, cujos pioneiros mais conhecidos entre
nós são Gaston Pineau (França e Canadá), Pierre Dominicé, Matthias
Finger, M.-C. Josso (Suíça), Guy de Villers (Bélgica), António Nóvoa
(Portugal).
5 A nossa reflexão sobre noção de experiência é devedora da leitura do livro
Cantos de experiência: variaciones modernas sobre un tema universal,
de Martin Jay (2009), no qual o historiador retraça o percurso dessa
noção desde a antiguidade clássica aos pós-estruturalistas franceses,
assim como de nossas incursões no pensamento de Gadamer (1997) em
Verdade e método I. Insistimos em sinalizar que nossa reflexão só pode
ser igualmente entendida como variações, aproximações em torno do
tema, etc.
6 Grupo Interdisciplinar de Pesquisa, Formação, AutoBiografia e Representações – UFRN|CNPq.
7 Hannah Arendt, 2008, p. 33.
8 Houaiss, versão eletrônica.
9 Cf. Delory-Momberger, 2004, p.150 e seguintes.
10 Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo. É o que
recomenda o preceito de Delfos, em sua atualidade secular e universal.
Devemos situar-nos em nosso tempo para compreendermos os segredos
do mundo que, hoje, rodeia-nos; sondarmos as crenças atuais para
compreendermos a gênese de seus mitos e de seus ritos.
11 Hannah Arendt, citado por Bauman, 2004, p. 177.
12 Programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte.
13 Livret de présentation, 2005, p. 14-17. ASIHVIF-REB: Association
Internacinale des Histoires de Vie e Formation et de la Recherche
Biographique en Education. <http://www.asihvif.com>.
14 Esboço de uma auto-análise constitui uma versão reelaborada do último
capítulo do livro “Sciences de la science et reflexivité” (2001), no qual
Bourdieu enfrenta o desafio do exercício de reflexividade sobre sua
trajetória acadêmica, como garantia de que a reflexividade, que praticou
em sociologia enquanto um instrumento de cientificidade, poderia se
aplicar no retorno objetivo sobre si mesmo, com a mesma preocupação
de verdade científica.
15 Discutimos sobre essas imagens em Passeggi, 2009.
16 Lugar comum é aqui entendido como um traço universal da escrita
de si.
17 Passeggi, 2009.
18 Lev S. Vygotsky, 2002, p. 78.
19 Paulo Freire, 1992, p. 85.
20 Lembramos a prática institucional dos memoriais autobiográficos como
requisito parcial de avaliação em concurso público e avanço na carreira
universitária, nas instituições de ensino superior no país.
Educação, Porto Alegre, v. 34, n. 2, p. 147-156, maio/ago. 2011