Resenha Da Era Dos Extremos

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Talvez o maior mérito do livro A era dos extremos de

Hobsbawm seja transmitir uma forte impressão do tamanho da catástrofe


humana que foi o século XX. Catástrofe em relação às mortandades
gigantescas, sem equiparação possível com qualquer período histórico
anterior. Catástrofe em relação à desvalorização do indivíduo, ao qual,
durante longos momentos do século, foram negados todos os direitos
humanos e civis, que haviam sido arduamente conquistados durante o
‘longo século’ precedente: 1789-1914.

Aliás, a impressão de catástrofe é forte justamente porque o


período histórico anterior se marcara em todas as mentes como o século
que colocara a idéia do progresso como inevitabilidade, não só em
termos materiais, mas também em relação ao avanço das liberdades,
apesar das monarquias e das forças conservadoras, que resistiam
tenazmente desde a Revolução Francesa.

Hobsbawm incita à colocação de uma pergunta, que seu livro


não consegue responder: como foi possível chegar a isso? Como foi
possível descer tanto na escala da civilização, apesar de uma vitória tão
gigantesca para as forças progressistas como a Revolução Russa de
1917? Hobsbawm não pretendia mesmo responder a tudo. Mas incitar o
leitor a se fazer perguntas dolorosas já é um mérito inestimável. As
deficiências do livro estão mais no enfoque adotado na abordagem de
alguns temas importantes.

O ano de 1917, explica Hobsbawm, pretendia ser o início da


revolução mundial. E, desse modo, foi visto por milhões de pessoas,
mesmo em países longínquos. Apesar disso, Hobsbawm acha que o
mundo não estava maduro para uma revolução proletária naquele
momento. É possível que seja uma suposição válida; e não é fácil provar
o contrário. Mas cabe perguntar: será que algum dia haverá uma
revolução que atinja imediatamente os principais países do mundo?
Talvez o problema a resolver não seja por que a Revolução de 1917 não
se espalhou imediatamente pelo mundo, mas antes por que a chama da
revolução proletária pôde ser tão rapidamente submergida por uma vaga
reacionária mundial. Vaga que Hobsbawm mostra detalhadamente ser
mais ampla que os movimentos baseados explicitamente no modelo
italiano ou alemão de fascismo.

Em todo o caso, verificou-se concretamente que os


bolcheviques ficaram isolados e encurralados numa revolução nacional,
cuja preocupação passou a ser logo a simples sobrevivência. Fato
consumado. Mas o problema aqui é que Hobsbawm faz uma ligação
direta entre a sobrevivência da Revolução Russa e a sobrevivência de
uma unidade política abrangendo todo o antigo Império Russo. Essa
ligação só teria sentido na perspectiva de uma "revolução socialista num
só país", caso em que o tamanho do país é uma questão vital.
Hobsbawm, porém, parece não acreditar na viabilidade da revolução
socialista só na Rússia.

Então seria o caso de fazer a distinção necessária: revolução


mundial e sobrevivência da unidade do Império ex-czarista eram coisas
diferentes e mesmo contrárias. Aliás, o governo bolchevique, em sua
primeira fase, não pretendia impor-se sobre todo o ex-Império. Nessa
fase é que foram concedidas, sem conflito, as independências da
Finlândia, da Polônia e dos Estados Bálticos, todos anteriormente
províncias do Império Russo. Nenhum desses novos países declarou-se
socialista. Nem por isso, o governo bolchevique se achou na obrigação
de impedir sua independência.

Não perceber a contradição entre revolução e império faz


Hobsbwam valorizar a disciplina bolchevique de modo acrítico,
misturando disciplina consciente e arregimentação cega, além de atribuir
aos bolcheviques, objetivos que estes não se davam antes de 1921.
Manter o Império havia sido objetivo central do czar e da impotente
burguesia russa (impotente em parte porque se submetia ao czar e por
amor ao Império), não era objetivo dos revolucionários.

Sem perceber isso, não dá para entender como foi possível


que, após uma revolução da importância da de 1917, que despertou na
humanidade as imensas esperanças descritas por Hobsbawm no capítulo
doze, tenha sido imediatamente seguida do mais profundo retrocesso
político do século. Apenas a não-extensão da Revolução Russa não é
suficiente para explicar isso. A Revolução Francesa terminou militarmente
derrotada. Nem por isso deixou de exercer influências libertárias que as
próprias monarquias contra-revolucionárias tiveram que levar em conta
para sobreviver.

Já no caso da Revolução de 1917, ocorre o contrário. Cerca


de dez anos depois desce a mais negra noite de todos os tempos: é
"meia-noite do século", disse Victor Serge, sem que o partido que dirigira
a Revolução Russa tivesse perdido o poder. Alguma coisa de muito
essencial deve ter deixado de funcionar, sob a máscara de uma falsa
continuidade política. E deve ter sido uma reviravolta muito mais grave e
profunda que o Thermidor da Revolução Francesa.

As conseqüências disso se fizeram sentir antes, durante e no


fim da Segunda Guerra Mundial. Hobsbawn descreve os sofrimentos
causados pela Guerra como mero resultado das próprias operações
militares. Mas nem tudo foi resultado inevitável do simples uso do poder
destrutivo disponível na época. Na Primeira Guerra Mundial não se havia
visto ato tão sanguinário como o massacre de quatro mil prisioneiros
poloneses, por ordem de Stalin, em 1940. A Paz de 1945 repetiu as
barbaridades da Paz de Versalhes com aumento, apesar da participação
da potência ‘socialista’ entre os vencedores de 1945.

A maior parte dos deslocamentos de povos no fim da última


guerra foi puro revanchismo, com caráter explícito de limpeza étnica. Por
incrível que pareça, no fim da Primeira Guerra Mundial foi possível ver um
presidente burguês: Woodrow Wilson, dos EUA — ridicularizado por
Lenin —, pregar uma paz sem anexações.

No fim da Segunda Guerra Mundial, não houve voz contra o


revanchismo. Treze milhões de alemães foram expulsos da Europa
oriental e central, com o único objetivo de aumentar o lebensraum eslavo.
Foram expulsos simplesmente pelo fato de serem alemães. É de Stalin a
frase: "Um alemão só é bom, morto". Não disse um nazista. Assim, o que
W. Wilson não havia conseguido em 1919 — ser levado a sério como
campeão da democracia da autodeterminação dos povos — foi
conseguido por Roosevelt e Truman sem muito esforço. Porque estes
tinham em frente, como termo de comparação, a URSS, não mais a
Rússia revolucionária dos tempos de Wilson.

Hobsbawm dá uma grande importância à depressão dos anos


30 como determinante dos rumos políticos da época. A depressão teria
tido um papel decisivo em fazer da democracia "uma planta frágil", em
muitos países. Isso até tem um fundo de verdade. Mas não é possível
entender completamente a fragilidade da democracia no entreguerras
sem lembrar o progressivo afastamento entre luta por liberdades
democráticas e luta pelo socialismo, praticado pela III Internacional desde
o começo.

Essa prática — depois teorizada para justificar o despotismo


stalinista — fez que o segmento importante do movimento operário
deixasse de ser um baluarte contra os movimentos restauracionistas da
ordem social, gerados pelo capitalismo em crise. Antes de 1914, ‘todo’ o
movimento socialista fora também um movimento libertário. Além disso,
para Hobsbawm, o impacto da depressão teria sido a grande força
renovadora das idéias econômicas da época, porque a depressão teria
desacreditado o pensamento econômico clássico, abrindo espaço para as
políticas de regulação do capitalismo posteriores. Especialmente em
razão desse descrédito da ortodoxia econômica, no segundo pós-guerra,
os "formuladores de decisões", como diz Hobsbawm, passaram a ter
preocupações centrais: obter uma distribuição de renda mais igualitária
do que a normalmente ensejada pelo capitalismo ‘puro’ e evitar grandes
níveis de desemprego.

Hobsbawm se deixa levar muito facilmente pela crença na


racionalidade dos "formuladores de decisões" capitalistas. Ele chega a
ponto de chamar de reforma do capitalismo" a adoção das políticas de
pleno emprego e bem-estar social no segundo pós-guerra. Tal ‘reforma’ é
definida por ele como "essencialmente uma espécie de casamento entre
liberalismo econômico e democracia social". Um pouco de resguardo
seria melhor.

Em situações de grande perigo social, os "formuladores de


decisões" instalados no poder tendem fortemente a dividir-se entre dois
tipos básicos de saída, conforme suas inclinações pessoais: partir para o
enfrentamento com os movimentos reivindicatórios ou partir para
concessões. Ora, no fim da Segunda Guerra Mundial, o perigo para o
capitalismo era uma realidade assustadora.

Diferentemente do que ocorrera na vez anterior, nenhum país


em guerra da Europa ocidental, exceto a Grã-Bretanha, conseguira
manter de pé o aparelho de Estado capitalista. Todos os demais países
beligerantes emergiram da Guerra com aparelhos de Estado
improvisados, em que se misturavam instituições criadas pela resistência
antifascista e instituições de emergência criadas pelos exércitos de
ocupação. Em várias regiões, houve ‘zonas liberadas’ por partisans antes
da chegada dos exércitos regulares. Tentar impor soluções capitalistas
ortodoxas naquela parte da Europa, naquela época, seria realmente
demência suicidária.

Razão pela qual todos os economistas com a tarefa de se


dirigir ao grande público viraram subitamente humanistas sensíveis. Para
explicar suas mudanças de opinião, economistas antes conhecidos como
empedernidos mastigadores de ‘fatores de produção’, passaram a falar
nas tristes recordações da Grande Depressão. Mas as tristes
recordações não explicavam tudo.

Hobsbawn observa, pertinentemente, que os resultados da


Segunda Guerra Mundial retiraram a extrema-direita do cenário político
por um bom tempo. No fim da Guerra, só os "formuladores de decisões"
dispostos a fazer concessões tinham voz e audiência. É isso que mais
explica por que foi tão fácil fabricar um pacto aceitável para trabalhadores
e patrões, então alçados à categoria nova de ‘parceiros sociais’.

Chamar essas concessões de "reformas do capitalismo"


exagera seu alcance e objetivos. As políticas de bem-estar social e pleno
emprego do segundo pós-guerra foram uma resposta adequada a uma
situação política em que o sistema capitalista se encontrava
extremamente fragilizado na Europa ocidental, ao passo que a oriental
estava ocupada pela URSS.
Mas mesmo nos EUA, cujo governo do Partido Democrata
terminara a Guerra prestigiado, não havia condições de ignorar as
esperanças da enorme massa mobilizada para a Guerra e que retornava
buscando o ‘mundo melhor’ que a propaganda oficial prometera durante
todo o conflito. Por outro lado, em termos econômicos, na Europa, partia-
se de infra-estruturas destruídas, com os trabalhadores e toda a classe
média, baixa e alta, reduzidos às rações alimentares distribuídas pelo
Exército dos EUA. Quer dizer: as possibilidades de investimento eram
aparentemente infinitas, com grande espaço para uma distribuição mais
igualitária de rendimentos, sem renúncia a lucros.

Hoje se pode ver que aquilo não era exatamente uma reforma
do capitalismo porque assim que aquelas condições anormais deixaram
de existir, o estado de bem-estar começou a ser atacado. E já nos anos
80, todos os economistas com clientes importantes voltaram aos mesmos
cacoetes clássicos dos anos 20 e 30. Eles simplesmente voltaram a seu
estado normal. Porque os Estados capitalistas estão agora firmes; e os
"formuladores de decisões", no momento, não estão conseguindo
enxergar a menor nuvem negra no horizonte à esquerda.

Talvez o pecado mais grave do livro seja a falta de conclusões


convincentes sobre o "socialismo real" e o colapso da URSS. Sem
dúvida, é bastante boa a comparação que Hobsbawm faz entre a URSS e
China, assim como sua percepção de que o Estado burocrático chinês se
mantém porque lançou suas reformas sobre uma população
majoritariamente camponesa. Mesmo assim, não é o caso de deixar
passar sem retoque a opinião da mídia, impressionada com a aparente
estabilidade do regime chinês. E quanto às reformas de Gorbachev, a
conclusão de que: "A URSS sob Gorbachev caiu nesse poço em
expansão entre a glasnost e a perestroika", é muito pouco para explicar
um colapso fragoroso que, por incrível que pareça, apenas cinco anos
antes estava fora de qualquer previsão, mesmo por parte de seus mais
ferrenhos adversários.

Não há como fugir a impressão de que, a respeito da URSS,


viveu-se um equívoco universal durante decênios. Seria preciso pelo
menos tentar uma explicação que começasse a abordar esse equívoco,
partilhado pela direita e pela esquerda, quanto ao caráter e, sobretudo, à
viabilidade do "socialismo real".

Em certo ponto do livro, Hobsbawm parece reconhecer que o


regime soviético era inviável: "A tentativa de construir o socialismo
produziu conquistas notáveis — não menos a capacidade de derrotar a
Alemanha na Segunda Guerra Mundial —, mas a um custo enorme e
inteiramente intolerável, e daquilo que acabou se revelando uma
economia sem saída."

As "conquistas notáveis", no caso, estão todas ligadas à


industrialização da URSS, que chegou a alçar-se à condição de segunda
potência industrial do mundo, partindo praticamente do zero no fim da
Guerra Civil, em 1920. Entretanto, o fato de que essa industrialização
terminou num beco sem saída recoloca o problema do valor do método
escolhido ou de algum equívoco fundamental que deve ter havido em
suas origens; ou surgido em algum ponto de sua edificação.

Para tentar uma primeira resposta, poder-se-ia inquirir se uma


industrialização obtida a chicote pode ter vida longa. O senso comum já é
suficiente para suspeitar que o chicote não é bom instrumento para
desenvolver a criatividade. O chicote pôde fazer a URSS alcançar
momentaneamente o Ocidente, mas não ultrapassá-lo. A coerção
desmesurada já continha os germens da estagnação tecnológica que
levaria a URSS ao impasse mais tarde. Isso pode ser afirmado, mesmo
que se queira aceitar o chicote como "motor" válido para a construção de
algum "socialismo" monástico de baixo consumo. De qualquer maneira,
no caso da URSS real, interessa ressaltar que o resultado alcançado foi
provisório. Sua industrialização avançava inexoravelmente para um beco
sem saída.

No entanto, apesar de reconhecer que o resultado final da


industrialização stalinista foi a "economia sem saída", Hobsbawm
mantém-se apegado à idéia de que a URSS não teria outro caminho a
seguir nos anos 20-30: "Qualquer política rápida de modernização da
URSS, nas circunstâncias da época, tinha que ser implacável e, porque
imposta contra o grosso do povo, impondo-lhe sérios sacrifícios,
coercitiva em certa medida."

A própria frase — "política (...) coercitiva em certa medida"—


deixa no ar uma questão: em que medida? Aquela medida de coerção foi
correta? Mais lógico, à luz do que Hobsbawm sabe hoje, seria dizer que
talvez alguma coerção fosse inevitável "nas circunstâncias da época",
porém a coerção stalinista provou ser incompatível com uma
industrialização inovadora e sustentável a longo prazo. Ou, até mesmo,
poderia continuar achando que, em 1929, não houvesse um caminho
muito diferente à disposição de Stalin, mas para ser coerente com sua
própria conclusão final sobre a economia soviética, Hobsbawm deveria
também lembrar que o governo da URSS tinha que encontrar um meio de
dispensar a coerção "contra o grosso do povo", o mais cedo possível, se
quisesse manter a economia viável.

Sobra a impressão de que, a respeito da URSS, o arrazoado


de Hobsbawm é, em parte, emotivo. Isso transparece mais fortemente na
convalidação implícita das palavras de Oskar Lange em seu leito de
morte: "Havia uma alternativa para a corrida indiscriminada, brutal,
basicamente não planejada, ao primeiro plano qüinqüenal?. Gostaria de
dizer que havia, mas não posso."

Hobsbawm parece não se dar conta que Oskar Lange, um


defensor da economia planificada, morreu em 1965, ou seja, morreu a
tempo de levar consigo suas convicções intactas. Os que morreram ou
vieram a morrer depois de 1991 não têm mais esse privilégio, a não ser
que, de 1989 em diante, tenham passado a circular de olhos vendados.

Além do mais, já antes do desabamento da URSS, surgiram


novas informações sobre os anos 30, que O. Lange não chegou a
conhecer. Informações que Hobsbawm mostra ter, ao sugerir
veladamente que, somente para o Segundo Plano Qüinqüenal (1933-
1937), poder-se-ia fazer uma estimativa de 16,7 milhões de mortos,
vítimas da fome e da repressão. Isso é inferido da constatação do
decréscimo da população da URSS no período do plano; informação
classificada como secreta em 1938. Quer dizer: Stalin proibiu a
divulgação das estatísticas demográficas do Segundo Plano Qüinqüenal
porque estas depunham contra sua "vitória econômica".

As informações que se têm hoje sobre os anos 30 são


arrasadoras. Mesmo continuando a aceitar que a URSS não poderia
dispensar a imposição de sacrifícios ao povo naquela época, sobra base
mais que suficiente para afirmar, em 1990, que aquela coerção foi de
eficácia imediata altamente duvidosa, além de comprovadamente nefasta
para o desenvolvimento futuro da URSS.

Nessa questão da suposta necessidade histórica do


stalinismo, talvez melhor seja deixar falar Moshe Lewin que, já em 1965,
escreveu um artigo para a revista Soviet Studies, na qualonde, após
descrever detalhadamente a enorme perda de energia humana e de
meios materiais gerada pelos zigue-zagues desastrosos de Stalin durante
a coletivização da agricultura, conclui: "Se é certo que a industrialização
devia acarretar mudanças profundas no campo, é falso, a nosso ver,
imaginar que tais mudanças só poderiam ser feitas através daquela
coletivização que a Rússia experimentou. Por que fazer do kolkhoz a
única forma de exploração coletiva, quando as estruturas aldeãs
sugeriam outras soluções? (...) Pretender que a liquidação da esquerda,
adepta entusiasta da coletivização e da política antikulak fosse uma pré-
condição capital da industrialização futura e que essa liquidação devesse
ser feita por um Stalin que, nessa época (1928-1929), sequer refletira
sobre o que seria uma política futura, significa sustentar uma teoria bem
estranha. Só é possível subscrevê-la aceitando outra teoria igualmente
bizarra, que consiste em apresentar Stalin como um "deus ex-machina",
como o único homem no Partido capaz de transformar a Rússia em país
industrial."

Paralelamente a sua apreciação sobre a economia da URSS,


Hobsbawm vai passando uma idéia, igualmente afetada por seus
sentimentos pessoais, sobre a legitimidade dos Estados erguidos em
nome do "socialismo real". Os acontecimentos espetaculares do fim dos
anos 80 e início dos 90 na Europa oriental e na URSS dão larga margem
a um questionamento da própria legitimidade dos regimes instaurados
nessa parte do mundo.

A respeito da Europa oriental, Hobsbawm nota que as


burocracias desses países procuraram retirar-se do poder discretamente
(exceto na Romênia) "porque tinham visivelmente perdido a justificativa
que mantivera seus quadros comunistas no passado". A justificativa, no
caso, era o "socialismo real", que só funcionava sob a tutela da URSS.
Quando esta acabou, deu uma epidemia de amnésia na Europa oriental.
De repente, seus governantes não se lembravam mais de como tinham
ido parar ali.

Para a URSS, a opinião de Hobsbawm é diferente: "Ao


contrário de muitos estrangeiros, todos os russos sabiam bastante bem
quanto sofrimento lhes coubera e ainda lhes cabia (em 1953). Contudo,
em certo sentido, pelo simples fato de ser um governante forte e legítimo
das terras russas e delas um modernizador, ele (Stalin) representava
alguma coisa deles próprios."

Depois de confundir sobrevivência da revolução com


sobrevivência do Império Russo, Hobsbawm só podia confundir
conformismo do povo com legitimidade de Estado stalinista.

A legitimidade do Estado soviético nasceu e ficou ligada até o


fim a seus laços com a Revolução de Outubro. Esses laços deixaram de
ter realidade efetiva já nos anos 20, porém todos os burocratas que
liquidaram as esperanças de Outubro tinham consciência de que a
legitimidade de sua dominação dependia daqueles laços. Por isso,
mantiveram a farsa do "socialismo" enquanto puderam. Quando não
puderam mais, foi um salve-se quem puder.

Diante de todos os acontecimentos dos anos 80 e 90, pode-se


afirmar que a brutalidade aparentemente absurda de Stalin decorria, em
parte, de sua legitimidade precária. Só partindo dessa premissa se pode
começar uma discussão séria sobre as hecatombes de Stalin, superando
a mera lamentação humanitária, assim como o conformismo com a
suposta inevitabilidade de um regime "implacável" naquela época e lugar.
Somente um regime de legitimidade precária pode desabar da
noite para o dia sem que se manifestem forças sociais significativas em
sua defesa. O grande argumento histórico pró-Stalin (lembrado por
Hobsbawm) foi sua vitória sobre Hitler. De fato, foi a vitória sobre os
nazistas que deu à burocracia do Kremlin a autoridade que lhe permitiu
prolongar seu regime até o fim dos anos 80. Entretanto, uma olhada mais
detalhada nos grandes fatos históricos é indispensável, para quem não
quer se contentar com panegíricos.

A agressão hitleriana mostrou, desde seu primeiro momento,


uma face brutalmente racista e antieslava (não só anticomunista), que
tornou impossível qualquer movimento de simpatia em relação aos
invasores por parte dos povos da Europa soviética, exceto de alguns,
não-eslavos, da área do Cáucaso. É inegável que o extremo
reacionarismo do comando nazista foi um fator favorável a Stalin; do
mesmo modo que o extremo reacionarismo dos "brancos" na época da
Guerra Civil (1918-1920) fora um fator favorável aos bolcheviques.

O racismo antieslavo do comando nazista facilitou a


aglutinação dos russos, ucranianos e bielo-russos em torno do único
Estado que parecia capaz de salvá-los da aniquilação completa. Stalin
mobilizou o povo fazendo apelo basicamente ao patriotismo. Os operários
escreviam sobre os tanques, antes de remetê-los ao front: za rodinu (pela
pátria). Se Stalin tivesse tentado mobilizar o povo pelo "socialismo" dos
Planos Qüinqüenais, certamente ter-se-a desastrado.

Não por acaso, o nome oficial da Segunda Guerra Mundial na


URSS era ‘Grande Guerra Patriótica’. E assim a Guerra foi entendida pelo
povo. Isso permite qualificar a legitimidade ganha pelo regime com a
vitória sobre a agressão nazista. O regime legitimou-se como defesa
eficaz dos povos eslavos contra agressores externos. Quer dizer: obteve
um novo tipo de legitimidade, mais restrito. Nem antes, nem durante, nem
depois da Guerra, o "socialismo" de Stalin foi sentido como aceitável e
legítimo pelos povos da URSS, eslavos ou não.

O próprio Hobsbawm ressalta o apoliticismo extremo do povo


nos países do "socialismo real". Ora, o apoliticismo na URSS tinha um
significado especial. Era o único país do mundo que não podia ter um
povo apolítico. Porque era o único que tinha como meta oficial ‘elevar o
nível de consciência política da população’, para isso restringindo a
propaganda religiosa e instituindo um certo ‘marxismo’ como matéria
obrigatória em todos os níveis de ensino. Sob tal ordenamento da vida
cultural, o profundo apoliticismo do povo soviético valia como uma
rejeição maciça do regime.

Então, as conclusões devem ser tiradas: o Estado soviético


conseguiu legitimar-se? Sim. Porém, em primeiro lugar, conseguiu-o
somente depois da Segunda Guerra Mundial e não para todos os povos
da URSS; em segundo lugar, essa legitimidade parcial e diferente da
pretendida originalmente não dizia respeito ao "socialismo real".

Diga-se de passagem, mesmo pretendendo que o apoliticismo


do povo soviético não seria evidência suficiente da legitimidade precária
de seu Estado, as reações nacionalistas que se seguiram ao
desmoronamento do regime não deixariam margem a dúvidas: ao
primeiro abalo da capacidade repressiva do Estado soviético (em
particular a desarticulação da KGB, vitimada pela glasnost), a ‘União’
entrou em rápida dissolução, inclusive a união ‘interna’ da Rússia.

No final do livro, Hobsbawm descreve a crise da própria


economia capitalista. Ao lado de muita informação importante, Hobsbawm
tira algumas conclusões temerárias. Como, por exemplo: "O triunfalismo
neoliberal não sobreviveu aos reveses do início dos anos 90". É muito
otimismo de Hosbsbawm achar que o neoliberalismo se encontre abalado
em virtude dos sofrimentos que esteja causando à humanidade a partir
dos anos 80.

Infelizmente, a história não é um sistema de reflexos sociais


perseguindo o caminho do menor sofrimento. Se fosse assim, não se
teria conseguido descer aos abismos de repressão sanguinária atingidos
durante o ‘breve século XX’.

Sem dúvida, é absolutamente verdadeira a exposição do que


Hobsbawm considera uma depressão econômica comparável à dos anos
30, hoje se estendendo em graus diversos no mundo inteiro. Entretanto,
Hobsbawm subestima a capacidade de cinismo dos economistas com
acesso ao poder e à grande mídia. Para eles, o que está ocorrendo é
apenas um processo "inevitável" de adaptação à "globalização
econômica". O sofrimento dos seres humanos não é parâmetro de
avaliação dos resultados das políticas decididas pelos clientes desses
economistas. E vai continuar sendo assim, enquanto reações sociais de
grande envergadura não obriguem os "formuladores de decisões" a
reverem seus parâmetros.

Todas as ressalvas acima não impedem que o livro de


Hobsbawm mereça ser lido com atenção. Vale um bom curso de História.
Mas mesmo os melhores cursos de História têm lições que devem ser
recebidas "cum grano salis".

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