Emblemas Medievais - Revista de História

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4/8/2014

Emblemas medievais - Revista de Histria

Emblemas medievais
Cores e figuras usadas para identificar os reis portugueses acabaram herdadas pelo
Brasil
Miguel Metelo de Seixas
1/2/2014

Ao contemplar uma bandeira, quem sabe dizer ao certo o que se esconde por trs de suas cores e figuras?
Carregada de significado, ela uma representao grfica de dinastias, instituies, territrios ou ideais
que desperta associaes afetivas intensas: ideia de ptria, nao, Estado, ideologia. E, claro, a certa
noo de histria, sobretudo de histria nacional.
H um ramo da Histria que se dedica especificamente ao estudo desses smbolos: a herldica. Foi um
conhecimento criado na Idade Mdia, em uma sociedade quase totalmente iletrada, em que pessoas e
instituies recorriam sobretudo a sinais grficos para se autorrepresentarem e para comunicarem a sua
identidade. Tais sinais surgiram nos campos de batalha, onde os combatentes, escondidos por pesadas
armaduras, precisavam ostentar smbolos que os identificassem nos confrontos. Chamados de armas ou
brases, esses smbolos eram pintados nos escudos, nos capacetes, nas vestes, nas bandeiras, em todos os
lugares em que pudessem ser avistados por amigos e inimigos.
A origem militar da herldica ditou algumas das suas caractersticas essenciais. Tinham de ser smbolos
simples, fceis de reconhecer. Da a simplicidade dos emblemas, a quantidade reduzida e a estilizao das
figuras, o acentuado contraste cromtico e a limitao do nmero de cores possveis (s sete: prata,
ouro, vermelho, azul, verde, negro e prpura). As razes para a escolha destas cores so complexas e
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esto relacionadas com heranas culturais por vezes bastante remotas e at com questes tecnolgicas,
levando-se em conta existncia, custo e qualidade dos corantes.
Construiu-se um sistema complexo,
mas coerente, cuja organizao ficou a cargo de especialistas a servio de reis e de grandes senhores: os
oficiais de armas. Entre suas funes, estavam a organizao de cerimnias da corte (incluindo, em
Portugal, a aclamao solene dos reis), a realizao de festas e de torneios (nos quais eram
simultaneamente comentadores, fiscais e juzes), a conduo de embaixadas oficiais ou de misses
secretas junto a potncias estrangeiras. Em suma, eram um misto de chefes de protocolo, mestres-salas,
diplomatas, espies, jornalistas, juzes e locutores esportivos. Verdadeiros especialistas medievais em
imagem e comunicao.
Os oficiais de armas reuniam os escudos usados por cavaleiros e instituies, pintando-os em manuscritos
chamados armoriais. Eles tambm trataram de estabelecer o conjunto de regras que deviam presidir a
escolha das armas, seu uso, suas formas de alterao e de transmisso. Assim surgiram os tratados de
armaria.
Em Portugal, a herldica surgiu na segunda metade do sculo XII, quase ao mesmo tempo em que o reino
independente era formado por D. Afonso Henriques (c. 1109-1185). Os primeiros reis criaram armas para
sua identificao: num fundo de prata, dispuseram cinco pequenos escudos (escudetes) de azul em cruz,
sendo cada escudete carregado de rodelas de prata (besantes). Em referncia ao nmero de cinco e
disposio em cruz, essas armas ficaram conhecidas como quinas.
Alm de exibidas nas vestes civis e militares, as quinas passaram a identificar simbolicamente, em
bandeiras, a presena do soberano nos castelos, nos palcios, nas cidades ou nos navios que lhe
pertenciam. Por extenso, no eram apenas as armas do rei em exerccio, mas de todos os que sucediam
uns aos outros no trono, ou seja, da dinastia rgia e, de forma ainda mais abstrata, do prprio reino.
A tradio desde cedo atribuiu um simbolismo messinico a essas armas, relacionando-as com a batalha de
Ourique, travada por D. Afonso Henriques em 1139. Na vspera do decisivo confronto contra um exrcito
muulmano muito mais poderoso, o primeiro rei de Portugal teria ficado de viglia, aparecendo-lhe ento
Cristo a garantir a vitria e a fundao de um novo reino. As quinas teriam sido dadas a D. Afonso em
sinal dessa aliana divina, por lembrarem a cruz onde Cristo padecera sua Paixo. A batalha do dia
seguinte foi vencida e os soldados aclamaram D. Afonso como rei. Assim nascia, miticamente, o reino de
Portugal, em indissolvel associao com as suas armas.
Quando o Brasil foi descoberto pelos portugueses em 1500, era importante apropriar-se simbolicamente do
novo territrio em nome de Portugal. Para isso, era preciso disseminar a representao das armas reais:
foram implantados padres de pedra em pontos estratgicos, bandeiras flutuavam sobre fortes e
povoaes, todos aqueles que exerciam algum tipo de autoridade usavam objetos decorados com as
quinas. As armas reais portuguesas estavam nas moedas em circulao, nos pelourinhos onde se exercia a
justia, nas fachadas dos edifcios legislativos.
Mas os reis da dinastia de Avis queriam exprimir mais do que a noo abstrata do reino. Desde o princpio
do sculo XV, tambm faziam representar o seu exerccio pessoal do poder. Para esse efeito,
completavam as armas reais com um smbolo prprio, individual, a que se chamava empresa. No caso do
rei D. Manuel que governou na poca do Descobrimento do Brasil a sua empresa era a esfera armilar,
uma representao do universo, com a Terra no centro e crculos concntricos em redor, unidos pela linha
do zodaco. Exprimia a ideia de um imprio que se estendia pelo mundo afora.
s armas reais e esfera armilar juntou-se ainda um terceiro smbolo: a cruz da Ordem Militar de Cristo,
de que D. Manuel era governador. Assim se completava a mensagem simblica de apropriao das terras
descobertas e conquistadas pelos portugueses em nome da Coroa, do rei D. Manuel e da Cristandade.
Essa trade de smbolos reais (quinas, esfera, cruz) foi implantada em todos os recantos do mundo a que
os portugueses chegaram.
Na cartografia, o Brasil era tambm identificado por smbolos que procuravam caracterizar aquele
territrio, inspirando-se nos vrios nomes que lhe foram dados: papagaios (em referncia Terra dos
Papagaios), rvores (alusivas ao pau-brasil) ou um cruzeiro (pela denominao de Terra de Santa Cruz).
Durante muito tempo assistiu-se a uma luta entre o smbolo da rvore e o da cruz o que correspondia
hesitao entre os dois nomes de batismo da nova terra. O abandono da cruz em favor do pau-brasil foi
mal visto por representar a troca de um smbolo sagrado por um mero objeto comercial e ainda por cima
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etimologicamente relacionado com o vermelho, brasil, cor de conotaes infernais.


Na segunda metade do sculo XVII, o oficial de armas Francisco Coelho registrou no seu armorial Thezouro
da Nobreza, hoje conservado no Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, as primeiras armas atribudas ao
Estado do Brasil: um escudo com uma rvore encimada por uma cruz. O smbolo pago tornava-se sinal
divino. As armas da rvore-cruz, contudo, no foram usadas pelas autoridades oficiais, que preferiram
continuar recorrendo trade quina-esfera-cruz.
A permanncia da corte portuguesa no Rio de Janeiro, a partir de 1808, veio alterar a situao. Depois da
morte da rainha D. Maria I, em 1816, D. Joo VI decidiu elevar o Brasil categoria de reino, em paridade
com Portugal e com os Algarves de aqum e de alm-mar. Com essa alterao do seu estatuto poltico, o
Brasil, enfim, foi dotado de armas prprias em 13 de maio daquele ano. O novo reino era simbolizado por
um escudo azul, com uma esfera armilar de ouro.
Ao mesmo tempo, inspirando-se no modelo britnico, D. Joo VI articulava os trs reinos numa unio
dinstica. O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves recebeu de imediato expresso herldica: Portugal
representado pelo escudo das quinas; Algarves pela bordadura de castelos, que as rodeavam; e o Brasil por
um escudo redondo, com as suas armas prprias, ou seja, um escudo redondo azul com uma esfera
armilar de ouro, colocado por baixo do outro. Sobre o conjunto destes trs elementos, era representada a
coroa real.
O resultado era expressivo: o velho conjunto das armas reais luso-algarvias assentava sobre o escudo
brasileiro. O papel do Brasil, portanto, era interpretado como um sustentculo da monarquia portuguesa
renovada. Mas tudo sob a coroa real, pois era a dinastia que conferia unidade ao conjunto.
Estas armas foram usadas no Brasil at a Independncia, em 1822. Em Portugal, vigoraram at a morte
de D. Joo VI, em 1826, mas continuaram influenciando a emblemtica do Imprio, e at mesmo a da
Repblica do Brasil. Sinal de que os simbolismos originais cunhados sculos antes j se perdiam de vista.

Miguel Metelo de Seixas pesquisador da Universidade Nova de Lisboa e autor de Herldica,


representao do poder e memria da nao (Universidade Lusada Editora, 2011).

Saiba mais - Bibliografia

LUZ, Milton. Histria dos Smbolos Nacionais. Braslia: Senado Federal, 2005.
PAO DARCOS, Isabel & SEIXAS, Miguel Metelo de. Bandeiras de Portugal. Lisboa: Santa Maria de Belm,
2004.
PASTOUREAU, Michel. Dicionrio das Cores do Nosso Tempo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997.

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