Texto e Estrutura em Menina e Moca de Bernardim Ribeiro
Texto e Estrutura em Menina e Moca de Bernardim Ribeiro
Texto e Estrutura em Menina e Moca de Bernardim Ribeiro
OS ENIGMAS TEXTUAIS
1
Vid. María Rosa Alvarez Sellers, "Menina e Moça de Bernardim Ribeiro: a questão do género",
(2000: 156-164).
418 M A R Í A R O S A A L V A R E Z SELLERS
que era casado em segredo, ambas atribuídas a Cristóvão Falcão2. Esta edição não
se divide em capítulos, mas às vezes os parágrafos iniciam-se com letras
maiúsculas sem um tamanho uniforme.
Em 1557, André de Burgos edita em Évora Menina e Moça com diferenças
notáveis em relação à primeira. O título é agora Primeira e segunda parte do
livro chamado As Saudades, e o texto divide-se em duas partes e por capítulos,
mas além de múltiplas variantes, acrescentam-se quarenta e um novos capítulos
cuja atribuição a Bernardim se considera duvidosa. Ambas edições coincidem nos
capítulos um a trinta e um da Primeira Parte e nos capítulos um a dezassete da
Segunda Parte, pelo que o acrescentado eborense se reduz aos capítulos dezoito a
cinquenta e oito da Segunda Parte.
Excepto esta edição, todas as testemunhas conservadas do século XVI
apresentam uma lição comum: o manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa
-também chamado "manuscrito Asensio"- datado entre 1543 e 15463, a edição de
Ferrara de 1554, a edição de Colónia de 1559 -feita por Birckman seguindo a de
Ferrara4- e o manuscrito da Biblioteca da Real Academia de la Historia de
Madrid, do último terço do século5, nenhuma delas -incluindo a edição de
Évora-, supostamente da responsabilidade de Bernardim6.
Esta peculiaridade dividiu a opinião da crítica a respeito do possível carácter
apócrifo do acrescentado eborense:
a) Teófilo Braga -a quem devemos a confusão entre parte acrescentada (ou
acrescentado eborense) e Segunda Parte de Évora porque não pôde consultar
directamente a edição de Ferrara-, na primeira edição do seu estudo sobre Ribeiro
2
A portada diz: História de Menina e Moça... agora de novo estampada e con summa deligencia
emendada -o que fez investigar a D. Carolina Michaèlis sobre a existência de uma edição anterior. A
sua conclusão foi que "a edição de Ferrara é realmente edição-príncipe da Menina e moça" (1923: 76).
3
O manuscrito foi descoberto por Eugenio Asensio e José V. de Pina e conserva-se na Biblioteca
Nacional de Lisboa com a cota Res. 11353. O texto do romance ocupa os primeiros trinta e quatro
fólios. Eugenio Asensio (1957 e 1974) data a composição da obra entre 1530-1540, e o manuscrito
entre 1543 e 1546. Ε Aníbal Pinto de Castro (1986: 164) situa-a por volta de 1543: "Como o seu
generoso possuidor já referiu [p. 200J, a data do manuscrito deve situar-se à roda de 1543, visto que,
na sua última folha útil deparamos com duas notas (da mesma letra do resto da cópia) acerca do
falecimento de Rui de Sá Pereira e do bispo de Coimbra, D. Jorge de Almeida, respectivamente a 26 e
24 de Julho desse ano".
4 "A ed. de Colónia segue a de Ferrara, embora apresente, em relação a ela, numerosas se bem que
irrelevantes alterações gráficas e algumas modificações do texto visivelmente destinadas a atenuar a
heterodoxia do fatalismo bernardiniano, pouco consentânea com os escrúpulos da censura. Importante
no campo da história das ideias, revela-se por isso sem interesse de maior no mero plano da crítica
textual" (Aníbal Pinto de Castro, 1986: 168).
5
"De letra da segunda metade do século XVI ou, mais provavelmente, do seu último quartel" segundo
Aníbal Pinto de Castro (1986: 165), embora Eugenio Asensio (1957, nota 3) ache que foi copiado por
volta de 1560.
6
"não há dúvida de que nenhum dos textos impressos é da sua responsabilidade. Ε o mesmo se pode
dizer dos manuscritos." Aníbal Pinto de Castro (1986: 170).
Texto e estrutura em Menina e moça de Bernardim Ribeiro 419
(1872) considera apócrifa toda a Segunda Parte, mas quando o reeditou (1897),
escolhe o de Évora como único texto autêntico, já que precisa do acrescentado
para completar a sua interpretação anagramática da obra. Seguindo a opinião
inicial de Teófilo, José Pessanha assinala as grandes diferenças entre ambas as
partes, que o conduzem a considerá-las escritas por diferente mão, e em 1891
edita a obra eliminando toda a Segunda Parte, e o mesmo fará Delfim Guimarães
em 1905.
A confusão entre parte acrescentada e Segunda Parte da edição de Évora
desfaz-se quando em 1923 A. Braamcamp Freire e Carolina Michaëlis publicam a
edição de Ferrara, mas ainda estará presente nos juízos críticos de alguns autores,
caso de Costa Pimpão (1941), que na sua defesa do carácter bucólico e
sentimental do romance, continua a pôr em causa toda a Segunda Parte.
Herculano de Carvalho (1973: 15), Teresa Amado7 e Hélder Macedo8 consideram
de Ribeiro só o publicado em 1554, e Aquilino Ribeiro9 e João Gaspar Simões
(1987: 101) duvidam também da autenticidade do acrescentado eborense. Aníbal
Pinto de Castro (1986: 170-71) prefere não "retomar a velha questão da sua
7
"Considero pouco convincentes todas as opiniões que admitem a autenticidade de alguns dos 41
capítulos dessa parte da edição de Évora. A melhor qualidade —ou mais aceitável— de alguns desses
trechos pode simplesmente explicar-se pela autoria dum continuador mais hábil ou mais atento" (1984:
15).
8
O que, no entanto, se pode saber é que a continuação da obra como trazida pela edição de Évora
(também a única que divide o texto em duas partes e em capítulos) não é convincente como tendo
saído da mesma pena que escreveu tudo o que a precede. Dadas as suas notórias incongruências em
relação à matéria narrativa anterior (troca de personagens de pai e filho, reaparecimento de uma
personagem que morrera no início do livro, etc.) e, salvo algumas passagens mais cuidadas, a sua
desastrada inconsistência com o estilo e o espírito do texto, comum a todas as versões conhecidas,
pode-se afirmar sem receio de errar que essa continuação é apócrifa" (1999: 21-22).
Macedo, no entanto, mudou de opinião, pois num estudo anterior considerava escrito por Bernardim o
texto completo, dirigido à comunidade judaica: "Por tudo isso, talvez não seja totalmente absurdo
sugerir que Bernardim tenha deliberadamente acrescentado à novela o início de uma falsa continuação
—que ao mesmo tempo servisse o seu significado— como um disfarce estrutural. Tornando dessa
maneira a sua circulação em Portugal mais fácil e menos perigosa, tal disfarce no entanto não
confundiria quem tivesse a informação ideológica necessária para compreender o seu significado ou
seja, o público a quem se dirigia" (4977:106-107).
No prólogo à sua edição da obra (1999: 22, nota) indica que a "falsa continuação" poderia ter sido
acrescentada pelo editor de Évora: "A possibilidade de que André de Burgos tenha usado uma falsa
continuação como neutralização retrospectiva do que, no texto de Bernardim, pudesse haver de
ofensivo para a censura inquisitorial, não deve, quanto a mim, ser excluída".
9
"A partir do capítulo XVII, exclusive, da nossa edição, houve concurso de segundos. Estamos
plenamente de acordo com Delfim Guimarães no que respeita a esse particular. (...) A partir da
divisória traçada pela edição de Ferrara, nem o estilo, nem o quilate, nem o toque, nem o carácter, nem
a vascularização espiritual subjectiva, nem os módulos léxicos são os mesmos que se nos deparam
atrás. Aquilo é outro metal e forjou-o outro homem. Salta aos olhos do entendimento. Depois, ainda a
parte final deve ser lavra de terceira pessoa, sobrevindo de qualquer modo para rematar, tão diferente
se mostra em estilo e no próprio desenrolamento da acção" (1982: XIII-XV).
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apocrifîa" e pensa que a parte acrescentada por André de Burgos deveria ser
editada em apêndice, como faz Dorothée Grokenberger (1947)10.
Os autores citados consideram apócrifo o acrescentado eborense devido à sua
aparição numa única testemunha e às incoerências temáticas, à mudança de tom e
às diferenças de estilo que apresenta relativamente ao resto da novela.
b) Em oposição, Menéndez Pelayo11, António José Saraiva (1990), António
Salgado Júnior (1940)12, Hernâni Cidade13 ou Antonio Gallego Morell14,
consideram de Bernardim muitos momentos da Segunda Parte, pertençam ou não
ao acrescentado eborense, e não rejeitam completamente a reimpressão de André
de Burgos, que declara no prólogo que viu o original completo15.
Nesta perspectiva, uma das argumentações mais recentes e inovadoras é a de
Juan Carrasco:
a) O acrescentado eborense acolhe dois textos claramente autónomos16.
1) Caps. XVIII-XXIV da Segunda Parte.
2) Caps. XXV-LVIII da Segunda Parte.
10
"nenhuma solução pode ser aceite como definitiva e inabalável por falta de dados seguros"
(Grokenberger, 1947: XXII).
11
"Las Saudades de Bernaldim Ribeiro, en todas las ediciones, excepto la primera y rarísima de
Ferrara de 1554, y la moderna del señor Pesanha, lleva una continuación que hoy la mayor parte de los
críticos convienen en desechar como apócrifa, aunque a mi ver contiene algunos trozos auténticos. De
todos modos, la obra personal y exquisita de Bernaldim Ribeiro son los treinta y un capítulos de la
primera parte" (1961: 223).
12
Considera de Bernardim até o capítulo XXV da Segunda Parte.
13
"É fácil de conceber -e talvez fosse possível demonstrar, dentro dos limites permitidos por urna
análise estilística- que, de entre os capítulos considerados apócrifos, bastante pertencerá a Bernardim"
(1984: 193, nota).
14
"Al problema bibliográfico que la producción literaria de Ribeiro plantea se suma ahora un nuevo
aspecto que han de tener necesariamente en cuenta los futuros editores de Menina e Moça: la
necesidad de aceptar como texto base el del manuscrito de Madrid, aceptando, a su vez, la segunda
parte de la novela, si no totalmente escrita por Ribeiro, al menos planeada y en gran parte esbozada
por él y dada a conocer por Andrés de Burgos en 1557" (I960: 35-36).
Ε mantém esta opinião na sua edição da obra (1992: 19).
15
Eugenio Asensio pensa que a edição de Évora "ha sido demasiado maltratada" (1974: 203), já que
"¿quién sabe si fue el primer engañado?" (1974: 204), mas depois assinala: "Sobre la autenticidad de
la continuación evorense, mal puede haber contienda. Es un pastiche que al final ni siquiera consigue
remedar al modelo" (1974: 208).
16
"El primero comienza donde acaba la lección común de la obra, ocupando los capítulos XVIII al
XXIV de la Segunda Parte, y da continuidad coherente al hilo narrativo llevado hasta ese momento,
pero no llega hasta su final, pues en el capítulo XXIV se interrumpe nuevamente la narración
quedando inconclusa. El segundo texto ocupa los capítulos XXV al LVIII de la Segunda Parte y nos
muestra una narración totalmente incoherente tanto con el primer texto del añadido como con la parte
común a todos los testimonios de la obra. Se trata, en realidad, de un relato diferente de la misma
materia, donde se conservan algunos personajes (Lamentor, Bimarder/Narbindel, etc.), otros se
sustituyen (el segundo amigo no es Avalor, sino Tasbião, cuya historia nada tiene que ver con el
anterior) y otros son nuevos. Este relato diferente tiene un marcado carácter caballeresco, al contrario
que la parte común de la obra, y le falta toda la parte inicial" (1998:28-29).
Texto e estrutura em Menina e moça de Bernardim Ribeiro 421
ESTRUTURA Ε SIGNIFICAÇÃO
17
Gallego Morell (1992: 20-21) inclui Menina e Moça entre os romances de "género abierto": "Es
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exacto aplicar a todo este tipo de novelas el término de géneros abiertos, pero quizá sea algo
aventurado caracterizarlas como puras creaciones españolas, limitando esta técnica a la novela pastoril
y a la picaresca".
18
As histórias de Binmarder e Avalor são: "um caso de piedade amorosa e um caso de timidez de
amante" (s.d.: 14).
19
Histórias que "se mudam de umas a outras, ambíguas e sem remate" (1987: 102).
20
Γ) Lamentor e Belisa, 2") Aónia e Narbindel, 3a) a história da Ama, 4*) a história de Arima, assim
como as de Avalor, Cruéicia e o resto de personagens. "Tal como no romance de cavalarias, rosários
de episódios tirados de sucessivas «gavetas», na novela de Bernardim Ribeiro, quanto a nós, não há
um Decameron sentimental, mas um romance, diríamos melhor uma novela, moldada na técnica à
tiroirs consagrada pela novelística cavaleiresca da Península" (1987: 104).
21
"Grande parte da peculiaridade da Menina e Moça radica-se no mistério que envolve a pessoa do
seu autor", indica Simões (1987: 85).
22
A questão da interpretação de Menina e Moça como um roman à clef (ox tratada em: María Rosa
Texto e estrutura em Menina e moça de Bernardim Ribeiro 423
Alvarez Sellers, "Caminos físicos y sentimentales en Menina e Moça de Bernardim Ribeiro", palestra
apresentada no "V Congreso Internacional sobre Caminería Hispánica" (Valencia, 17-22 de Julho de
2000), (2002: 631-648). Nesse texto estabelecíamos a relação entre o carácter errante das personagens
e o seu possível significado metafórico referido à comunidade judaica, mas por consistir o presente
artigo, como indicámos, num "estado da questão", reproduzimo-la aqui para dar uma imagem
completa das opiniões existentes à volta da estrutura da novela de Bernardim.
23
Segundo Herculano de Carvalho (1973: 5) e Aníbal Pinto de Castro (1986: 170), embora J. G.
Simões (1987: 86) fale de 1552, e também A. Gallego Morell: "parece que murió hacia 1552, desde
luego con anterioridad a 1554, año en que se publican sus obras sin la menor intervención del poeta"
(1992: 14).
24
Teresa Amado (1984: 24), qualifica de "processo de «banalização» da Menina e Moça" as
tentativas de decifrar chaves ocultas no texto.
424 M A R Í A R O S A A L V A R E Z SELLERS
25
O mesmo acontece no argumento da Diana de Jorge de Montemayor: "Y de aqui comiença el
primer libro y en los demás hallarán muy diversas hystorias, de casos que verdaderamente an
sucedido, aunque van disfraçados debaxo de nombres y estilo pastoril".
Segundo Menéndez Pelayo (1961: 270) e Jean Subirats (1968), nela podemos perceber os reflexos da
festa e da vida da Corte, concretamente das festas celebradas em Binche (22-31 de Agosto de 1549)
organizadas pela regente María de Hungría para honrar o Príncipe D. Felipe. Este artigo é citado por
Maxime Chevalier: "encierra La Diana un sistema de alusiones, difícil de descifrar para nosotros, pero
que resultaría inmediatamente claro para los cortesanos de Felipe II en 1559" (p. 45) e que constituiria
uma das razões do seu sucesso.
26
Citado por João Gaspar Simões (1987: 87). A. Gallego Morell (1992: 24) supõe que "Belisa"
poderia ser a dama portuguesa Isabel de Freire, amada de Garcilaso, pois ambas morrem de parto em
terra estranha.
Segundo Juan Carrasco (1999, nota 40: 338): "El nombre BIMARDER o BINMARDER es un
anagrama de BERNARDIM (de la misma manera que NARBINDEL lo es de BERNALDIM). Posee,
además, un significado simbólico que se nos explica en la obra: el protagonista adopta este nombre de
la expresión "vim-me arder" pronunciada a la gallega (con betacismo y sin vocales nasales), es decir,
Bimarder es "el que vino a quemarse" (de amores). Por su parte, AVALOR parece ser anagrama de
ALVARO (aunque no sabemos cuál era la referencia real de este tal caballero Alvaro en la Lisboa de
su tiempo). Posee, además, por proximidad fonética, su propio significado simbólico: AVALOR = HÁ
VALOR (el que posee valor, como corresponde a quien no abandona nunca su condición de valiente
caballero). Algo parecido ocurre con el personaje LAMENTOR (el doliente, el que se lamenta)".
27
Talvez porque ocultava figuras de sangue real: "Transformada em roman à clef, o livro das
Saudades de Bernardim Ribeiro, que assim passou a chamar se depois que se editou em Évora em
1645 (a primeira edição foi feita em Ferrara pelos Usque, em 1554, e a segunda, já em Portugal, por
André de Burgos, três anos depois), proibido pela Inquisição em 1581, segundo alguns por isso
mesmo, por ser um roman à cleft estarem envolvidas nele figuras de sangue real, não tarda a ver-se
rodeado de um mistério que mais agrava a sua natural singularidade" (J. Gaspar Simões, 1987: 86-87).
"La Inquisición de Portugal la prohibió en 1581, acaso por las alusiones que en ella veían los
contemporáneos, pues de otro modo no se comprende tal rigor, con una obra tan honesta e inocente"
(Menéndez Pelayo, 1961: 224).
28
"as sugestões da origem judaica de Bernardim trazidas pela pouca evidência externa até agora
encontrada não seriam, no entanto, conclusivas sem a corroboração das evidências integradas na sua
obra" (H. Macedo, 1977: 82).
Bernardim seria um judeu convertido ao cristianismo e, posteriormente, reconvertido ao judaísmo. Cf.
Hélder Macedo (1999: 35).
Texto e estrutura em Menina e moça de Bernardim Ribeiro 425
29
Cf. José Teixeira Rego (1931: 57-69 e 70-79). Bernardim seria Leão Hebreu, autor dos Diálogos de
amor.
30
"A compreensão da presença da Menina e da Dona no vale como a de duas almas a caminho de
redenção ao mesmo tempo confirma o significado simbólico da viagem que para lá fizeram Arima e
Avalor, e é por ela confirmado. A Menina e a Dona ouvem e contam histórias cujo valor espiritual é a
preparação para a «morte» que é a redenção final da alma. Ε afinal é também isso o que faz Avalor
depois de passar o rio da morte" (H. Macedo, 1977: 112).
31
"À luz das complexas convergências ideológicas que caracterizaram esta época em Portugal, é de
encarar a hipótese de a ortodoxia portuguesa se ter visto a braços com uma ameaça mais iminente do
que as «heresias» protestantes: a presença viva de diversas correntes espirituais de origem interna, com
elementos «heréticos» semelhantes, e tendendo para uma síntese susceptível de uma sistematização
equivalente à dos movimentos reformistas estrangeiros, no primeiro terço do Século XVI —ou seja,
precisamente quando a monarquia portuguesa, abandonando a sua política de integração pacífica,
sentiu a necessidade de instaurar a Inquisição" (H. Macedo, 1977: 133).
32
"Hélder Macedo creyó hallar la clave en el judaísmo, el Zóhar, las persecuciones. Con objeto de
confirmar y afianzar su hipótesis, descuidó el campo de la crítica literaria, que es lo suyo, para
aventurarse en el de la historia. Llevó, me temo, a la historia de la cultura religiosa, filosófica y
política una excesiva intrepidez para la conjetura —o mejor, para levantar conjetura sobre conjetura—
que raya en la licencia poética" (Eugenio Asensio, 1978: 62).
33
"Eu próprio, numa investigação de que publiquei as primeiras conclusões em 1972 e que
posteriormente amplifiquei em forma de livro, tendo começado por deliberadamente fazer tabula rasa
de tudo o que até então tinha sido escrito sobre Bernardim e partir apenas de uma leitura «inocente» da
sua obra, fui levado a encontrar na cabala uma hipótese de interpretação global da Menina e Moça.
Continuo a considerar válido o essencial desse trabalho, para o qual remeto o leitor, embora ele
beneficiasse de alguns deslocamentos de ênfase tornados necessários por investigações subsequentes
que, na medida do possível, procurei reflectir aqui" (Hélder Macedo, 1999: 38-39).
34
Que faz difícil "não ver uma interpretação da Menina e Moça, posterior ao meu estudo e às críticas
de Eugenio Asensio, como uma parábola cristã das errâncias da alma pelo mundo, qualquer coisa de
uma tentativa de neutralização ortodoxa retrospectiva" (1999: 54).
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35
Nas suas obras aparecem duas fontes, uma cristã e outra judia, que constituem a herança dos
conversos peninsulares; a poesia e a pintura dedicadas à Virgem Maria, mãe e viúva, e o choro de
Jerusalém nas "Lamentaciones" pelo seu abandono, a sua desolação e o seu desespero perante o exílio.
36
Pois o exílio espiritual -ao qual os judeus deram uma tradução histórica encontrando talvez a
maneira de materializar uma reminiscência ancestral de nomadismo comum a toda a humanidade- é
uma experiência da que participam todos os misticismos, incluindo o cristão, e tem encontrado
representação em obras de várias procedências teóricas (Cf. 1984:46).
37
"a Menina e Moça não é obra duma escrita «romanesca» no sentido em que o romance seja arte
representativa, mas sim duma escrita em que domina o estilo que poderia chamar-se «transfigurativo»
porque produz a imagem invisível —psíquica, espiritual— dum real que aparentemente pinta, ou,
inversamente, transforma em história, pessoas e coisas, os objectos espirituais a que efectivamente se
refere" (Teresa Amado, 1984: 33).
Texto e estrutura em Menina e moça de Bernardim Ribeiro 427
BIBLIOGRAFÍA
38
Menina e Moça configura-se como uma espécie de "tragédia cósmica" que a romancista compara à
representada por Miguel Angelo no tecto da Capela Sistina: "A novela de Bernardim, tal como a obra
da Sistina, não pode ser lida como história moral -é uma tragédia cósmica. Acidentes, diálogos,
presenças mudas, tempo e paisagem, tudo está sujeito a uma rotação sem desenlace e que é o discurso
do inacabado" (Agustina Bessa Luís, 1984: 15).
428 MARÍA ROSA ALVAREZ SELLERS