Uma Saga Familiar e PDF
Uma Saga Familiar e PDF
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Abstract: The paper presents an approach about the novel Yaka, from the
Angolan writer Pepetela, in which, through de articulation between Literature
and History, the novelist interlaces the individual Semedo’s family story with the
political and social development of Angola, in a period that starts in 1890 and
extending to 1975. Through a typical literary representation of a traditional
historical novel, the author recovers the historical uniqueness of a time crossed
by several historical and political crises caused by economical factors as well as
constant conflicts between Portuguese settlers and native Angolans. Using the
familiar sagas a narrative strategy, Pepetela performs an analysis of colonial
society and revisits the history of the country, giving voice to what has been
silenced and obscured by the official Portuguese historiography.
Keywords: Literature and History, Family Saga, Historical Novel
1 Este texto é parte integrante de um dos capítulos da tese de doutorado intitulada Sagas familiares
e narrativas de fundação engajadas de Erico Verissimo e Pepetela, defendida em abril de 2013 na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).
2 Professor Doutor da Faculdade de Telêmaco Borba (FATEB)/PR: donizeth.santos@hotmail.com.
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Considerações iniciais
3 Aqui vale lembrar que embora Pepetela seja o principal representante da narrativa de fundação
angolana, ele não foi o primeiro escritor a cultivar esse gênero em Angola. Esse posto cabe a
Manuel Pedro Pacavira que em 1979 publicou Nzinga Mbandi, um romance sobre a história da
lendária rainha Nzinga.
Essa crônica de guerra e de dois povos é, por seu turno, uma crô-
nica familiar. Histórias de família já tinham sido matéria de epo-
peias, mas Ésquilo procede à articulação fundamental: a história
do Átridas fica imbricada à história da própria Grécia, pois, se o
conflito entre Atreu e Tiestes têm causas internas — a rivalidade
dos irmãos, o adultério e o crime —, os atritos vivenciados entre
seus respectivos descendentes — Menelau e Agamêmnon, de um
lado; Agamêmnon e Egisto, de outro — não podem ser dissocia-
dos de um plano mais geral, de natureza política e militar.
[...]
A tragédia de Ésquilo ata a saga familiar à história política de
uma cidade-Estado, unidade administrativa fundamental con-
forme o modelo de governo adotado pelos gregos no século V
a.C, quando a Orestéia foi apresentada ao público ateniense pela
primeira vez. (ZILBERMAN, 2004, p. 146)
Yaka segue o modelo grego de saga familiar pelo fato de ter o seu prin-
cipal núcleo narrativo centralizado na história dos Semedo, uma família
Organon, Porto Alegre, v. 29, n. 57, p. 135-156, jul/dez. 2014.
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nana. Ofélia tinha um filho, Chico, que veio com a mãe. Agora
deve ter também vinte anos. Alexandre Semedo tinha um único
bisneto, o pequeno Joel, que dormia lá em cima à espera que os
pais o levassem para casa. (PEPETELA, 1998, p. 263)
Depois dessa reflexão feita por Alexandre Semedo em 1961, a sua família é
aumentada através do nascimento de mais quatro bisnetos: Eusébio e Sandra,
filhos de Xandinho e Alice; e Demóstenes e Aristóteles, filhos de Chico e Sónia.
A utilização da saga familiar como estratégia narrativa permite a Pepe-
tela entrelaçar a história da família fictícia à história do desenvolvimento
da cidade de Benguela e de Angola, de modo a realizar uma análise da
sociedade colonial, ao mesmo tempo em que faz uma releitura da história
do país, dando voz a tudo aquilo que foi silenciado e obscurecido pela his-
toriografia oficial portuguesa. Para tanto, Pepetela se apropriou de matéria
de extração histórica tanto angolana quanto portuguesa e mundial5.
Da matéria de extração histórica angolana presente em Yaka podemos
citar as diversas revoltas dos nativos africanos (Revolta do Bailundo, Guer-
ra preta do Amboim e Revolta dos Seles), o movimento de ocupação das
terras do interior de Angola feito pelos portugueses a partir do Conferência
de Berlim (1884-1885), a construção da ferrovia Lobito-Huambo, a guerra
de libertação nacional, os acontecimentos às vésperas da independência
e a guerra contra os sul-africanos. Quanto à matéria de extração históri-
ca portuguesa, há referências a vários acontecimentos históricos, como o
Ultimato Inglês (1890), a crise da monarquia, a proclamação da república,
a ascensão de António Salazar ao poder e a Revolução dos Cravos. Em re-
lação à história mundial, há referências às duas grandes guerras mundiais.
Pelo fato de traçar um grande painel histórico, de 1890 a 1975, e de
se utilizar de uma família totalmente fictícia para a análise dos aconteci-
mentos históricos abordados, mostrando como essas personagens foram
afetadas e como reagiram a determinados acontecimentos históricos, en-
quanto que as personagens históricas como Silva Porto, Mutu-ya-Kevela,
Ndunduma e Antonio Salazar apenas são mencionadas no romance, com-
pondo o pano de fundo da narrativa, Yaka possui em grande parte de sua
extensão uma forma de representação literária característica do romance
histórico tradicional, pois recupera a singularidade histórica de uma época
5 Por “matéria de extração histórica” entendemos “a matéria objeto de alguma forma de
registro documental, escrito ou não, de que resulta permanecer na memória coletiva de uma
determinada comunidade. A matéria de extração histórica, para merecer tal designativo, deve
apresentar satisfatório grau de familiaridade para um leitor medianamente informado e poder
ser recuperada mediante processo alusivo” (BASTOS, 2000, p.9).
nos que viveram essa experiência. Ele deve fazer com que o lei-
tor aprenda as razões sociais e humanas que fizeram com que os
homens daquele tempo e daquele espaço pensassem, sentissem e
agissem da forma como o fizeram. (WEINHARDT, 1995, p. 53)
Era cena cada vez mais frequente. Como não haveria de beber,
Yaka? A lojeca todo o dia, a aturar negros beberrões que o único
português que sabiam era para encomendar vinho. A casa, onde
a mulher não o acompanhava nos sonhos. Os amigos da taber-
na, onde era preciso cuidado a discutir, pois ameaçavam-no com
Capangombe. Os livros lidos e relidos. Acho que nunca foi dado
a mulheres, não ouvi uma só estória sobre ele. Se ainda fosse ca-
tólico, ao menos teria Deus. Sim, compreendo-o bem. Benguela
era uma vilória sem nada. A partir das oito da noite, as pessoas
fechavam-se em casa com medo dos mundombes. Volta e meia
havia uma notícia aterradora: que iam atacar o Dombe, que ti-
nha havido tiros na Catumbela, que escravos se tinham revoltado,
etc. E todos os meses havia qualquer levantamento dos arredores.
Como não havia de beber? Que mais tinha para esquecer? Res-
Organon, Porto Alegre, v. 29, n. 57, p. 135-156, jul/dez. 2014.
Yaka, de Pepetela: uma saga familiar e uma releitura... 145
Desse modo, são revelados o preconceito que os colonos nutriam pelo na-
tivo africano e o medo constante que eles tinham das revoltas levantadas pelos
povos que viviam nas regiões próximas a Benguela. Em relação ao preconceito,
é necessário lembrar, com Albert Memmi (1967), que a justificativa feita pelo
colonizador para legitimar o domínio e a expoliação dos colonizados e suas
terras era de que eles eram seres inferiores por essência: preguiçosos, incapa-
zes, indolentes, ingratos, desleais e desonestos; e, com Frantz Fanon (1979) de
que para as nações colonialistas em África todo o vasto continente africano era
habitado por selvagens, cheios de superstições e fanatismo, e, por essa razão,
eles estavam fadados ao desprezo e à maldição de Deus.
Assim, dentro do romance, a relação entre nativos e colonos vai ser
permeada pelo preconceito, o medo, a exploração econômica e a violência
física, de modo que a narrativa será conduzida pelas revoltas que vão ocor-
rendo a partir de 1890 até culminar no movimento revolucionário de 1961.
Nesse sentido, vejamos um trecho em que é narrado o início da revolta dos
bailundos que instala um verdadeiro pânico na população de Benguela:
residência de dois altares feita de madeira e que na época era um dos sím-
bolos do poder colonial português em Angola. A aquisição o promoveu à
categoria de comerciante com loja e casa própria.
Considerações finais
É o fim, pensou ele, já sem forças para o dizer em voz alta. Devo
fazer o balanço da minha vida. [...] Só tenho que fazer a das per-
das. Uma família a que dei origem, hoje espalhada pelo mundo.
Só Joel e Chico sobraram. E Joel talvez agora já esteja morto,
sem sepultura. É importante estar sem sepultura? Gostaria de
levar a enterrar esse menino que descobri no fim da vida. E fui
egoísta e ia dizer-lho, quando me alegrei que fosse lutar. Ia fazer
o que nunca fui capaz de fazer, ele ia redimir-me. É sempre as-
sim, descobre-se demasiado tarde. Não deixará traço no mun-
do. Nem o sapalalo. Não foi ele que o construiu, mas deixei-o
apodrecer, já saí pó por todos os lados, basta uma explosão aqui
perto para ele desabar. Nada, não deixa nada atrás dele. A socie-
dade será outra nesta terra, nem vestígios registará na História.
A História guarda os feitos de heróis, na medida que interessam
às forças vitoriosas da época. Não são os seus vestígios que a
nova sociedade vai querer na História. Um colono a mais. Para
esquecer. A culpa foi minha? Tinha sido apenas o mexilhão da
história, uma bimba que se afogou porque duas vagas chocaram
exactamente sobre ela.
[...]
A terra que a boca de Alexandre Semedo morde lhe sabe bem. É
o cheiro do barro molhado pelo orvalho de madrugada e o som
longínquo de badalos de vacas na vastidão do Mundo. Leva esse
sabor e cheiro de terra molhada para cima da pitangueira, onde
fica a balouçar, para sempre. (PEPETELA, 1998, p. 393-395)
BIBLIOGRAFIA