Cesário Verde Impressionismo
Cesário Verde Impressionismo
Cesário Verde Impressionismo
(2002) —, pintor contemporâneo nascido em 1952 que, embora de uma época diferente
da de Cesário Verde (que viveu somente no século XIX), apresenta uma visão surrealista
com traços distópicos, através da metamorfose entre o real e o imaginário, bastante
semelhante à de Cesário.
No entanto, note-se que nem toda a cidade de Yerka está irremediavelmente destruída.
De facto, o pintor polaco apresenta uma cidade sobretudo rica e grandiosa, ostentando o
seu poder arquitetónico numa corrida em direção ao céu inatingível, apenas para depois
pousar em solo firme. Em “Num Bairro Moderno”, Cesário também apresenta uma visão
alegre da cidade (ainda que se sinta doente — “com as tonturas de uma apoplexia” —,
aspeto sempre presente na sua poesia), transfigurando o que há em seu redor de forma
um tanto brincalhona, nomeadamente através de comparações e metáforas entre uma
mulher e os seus frutos e vegetais (“Descobria / Uma cabeça numa melancia, / E nuns
repolhos seios injetados”).
A semelhança mais interessante entre estas duas obras é o facto de ambas remeterem
para um sentimento de mal-estar, algo vulgar nos poemas de Cesário. No poema o sujeito
poético faz alusões constantes à sua doença enquanto caminha pela cidade. Inicialmente,
“O gás extravasado” enjoa-o e, já na segunda parte deste poema, o sujeito pensa ter “um
aneurisma” tal como na pintura, onde podemos ver em primeiro plano um cipreste,
árvore que é associada à morte em diversas culturas europeias. Quanto ao pintor desta
obra estava internado num hospício quando a realizou, que nos confirma o estado de
moléstia pela qual Van Gogh também estava a passar.
Existe também um contraste entre estas duas obras tendo em conta o tempo e o cenário.
No poema, o sujeito poético está “Nas nossas ruas, ao anoitecer,”, enquanto a pintura
representa a vista sobre a janela de um hospício ao amanhecer. Adicionalmente, nos
versos de Cesário Verde o céu é caracterizado como escuro e com nuvens (“O céu parece
baixo e de neblina,”), ao contrário do que podemos observar na pintura em que o céu está
estrelado, ideia reforçada pelo título da mesma (“A noite estrelada”), permitindo ao
observador deduzir que se trata de uma noite calma, sem nuvens. Seguidamente,
podemos inferir que o eu do poema está a vaguear por uma cidade e relata o que observa,
tendo por isso uma perspetiva dinâmica sobre a cidade, enquanto o pintor tem uma vista
estática sobre o cenário, pois não consegue sair do quarto em que está internado.
Podemos concluir que a obra artística realizada por este pintor holandês e os versos
escritos por Cesário podem ser relacionados, mesmo se os seus autores estavam então
em contextos bastante diferentes.
A obra «De sterrennacht [A Noite Estrelada]» (1889), arquitetada pelo célebre pintor
holandês Vincent Van Gogh, denota múltiplos aspetos passíveis de equiparação com
a poesia de Cesário Verde, espelhando características comuns e distintas dos dois
artistas.
A tela descreve a paisagem que se avistava da janela do quarto do pintor no hospício que
habitou no final da vida, o que indicia a instabilidade mental de Van Gogh, que sofria de
depressão e surtos psicóticos. Adivinha-se que a saúde do poeta português se deteriorava
progressivamente, como ficou expresso em diversas ocasiões pelo «eu», que se lhe
assemelha, por exemplo em «Num Bairro Moderno», onde confessa sentir
frequentemente as «tonturas d’uma apoplexia» (v. 15).
Escolhi este quadro de Édouard Manet – «Les Bulles de savon [As bolas de sabão]»
(1867) para o confrontar com os aspetos das obras literárias de Cesário Verde, visto que
ambos os artistas foram incompreendidos para a época, sendo Cesário criticado por suas
obras descritivas – o que não cativou o público –, e Manet, por suas técnicas e por os
temas abordados em suas telas estarem, para a opinião pública, fora das convenções,
ganhando reconhecimento popular apenas depois de tempos – no caso de Cesário,
apenas após a sua morte.
O aspeto que, para mim, se torna mais evidente da semelhança entre o poeta e o pintor
é a representação de um momento banal, do quotidiano. Manet, no quadro escolhido,
retrata o seu filho de maneira simples, tal como Cesário relata e descreve os ambientes,
as pessoas que lhe prendem a atenção e os seus movimentos ao longo da narrativa, como
comprovam inúmeros versos de «Num bairro moderno», como «E eu, apesar do sol,
examinei-a;» (v. 21), e de «O Sentimento dum Ocidental», como «O céu parece baixo e
de neblina» (v. 5).
Além disso, ambos os artistas gostavam de deixar transparecer o amor em suas obras. O
poeta português, como uma característica fiel de seus poemas, descreve a sensualidade,
a elegância e a paixão que nutre pelas mulheres que avista, como está ilustrado em «A
débil», em versos como «E pus-me a olhar, vexado e suspirando, / O teu corpo que pulsa,
alegre e brando.» (vv. 15-16). Manet, por sua vez, aludia em suas obras ao amor paterno,
distinguindo-se de Cesário neste pormenor, mesmo que ambos representem uma forma
de amor; por várias vezes, o pintor representou o seu filho, Léon Leenhof, tal como nos
mostra na tela escolhida.
Utilizo este quadro de Van Gogh, intitulado de “A Noite Estrelada” (1889), um dos mais
conhecidos do pintor, tratando-se da vista de um dos quartos do hospício de Saint-Rémy-
de-Provence. Atualmente, encontra-se no Museum of Modern Art, em Nova Iorque.
O contexto no qual a pintura foi realizada remete muito para o estilo de Cesário Verde,
um poeta que escolhia muitas vezes escrever sobre um sujeito poético que se sente
constantemente doente e à beira da loucura (“Que mortifica e deixa umas loucuras
mansas” — “O Sentimento dum Ocidental”, II, v. 2). Para além disso, a escolha por parte
do impressionista de cores mais escuras para transmitir uma sensação mais sombria
lembra o sentimento traduzido no poema “O Sentimento dum Ocidental”, que se passa
maioritariamente de noite, numa cidade que sufoca e pressiona o sujeito poético devido
à escuridão e melancolia que se fazem sentir até no ar (“Nas nossas ruas, ao anoitecer, /
Há tal soturnidade, há tal melancolia”, I, vv. 1-2).
Tanto neste quadro de Van Gogh como na maioria da poesia de Cesário Verde, é
necessário compreender-se a dualidade de sensações presente: ora sombrias, tóxicas e
esmagadoras, ora luminosas, puras e a incitarem a esperança.
Na sua aguarela, Leonel Borrela mostra o seu estilo característico. Nesta obra de 2011,
é possível observar “Mombeja, concelho de Beja. Vista da estrada de santa Vitória”, e é a
própria localização que serve de título à aguarela, tal como este pintor nos habituou.
Se, por um lado, Cesário Verde apresentava uma variabilidade entre a narração dos
grandes centros populacionais e a aldeia, Borrela pintava maioritariamente as paisagens
calmas e serenas do nosso Alentejo. Contudo, apresenta no seu portfólio uma ou outra
obra da capital portuguesa e do Porto. Durante a sua vida, tal como Cesário Verde,
Borrela não obteve o reconhecimento merecido. Apesar da qualidade das suas obras, do
trabalho contínuo na área da pintura e da tentativa constante de melhoria, Borrela
morreu, em 2017, sem grande popularidade. Talvez agora, à semelhança de Cesário,
comece a ter a devida atenção por parte dos grandes apreciadores de pintura.
Neste quadro, o sujeito poético encontrar-se-ia na estrofe VI, onde procura voltar para
onde iniciara a aventura campina com a prima. Utilizando as palavras de Cesário, “Numa
colina brilha um lugar caiado” (v. 30). Nestes tons quentes de Borrela, observamos o
lugar retratado em “De Verão”, lugar caiado que se representa por um longo campo,
onde, ao longe, se pode observar a cidade. Para melhorar a situação, é representada uma
árvore que seria ideal para o sujeito estar com a prima a observar esta paisagem, visto
que haveria sombra neste dia tão quente — “arrimada ao cabo da sombrinha” (v. 27). As
terras aqui, já estão ceifadas, tal como no poema cesariano — “O sol abrasa as terras já
ceifadas” (v. 37) — sendo reforçada a ideia de uma tarde que, apesar de longa, se
apresenta bastante quente. Era ainda aqui, em “Mombeja, concelho de Beja. Vista da
estrada de santa Vitória”, que a prima, representada no poema de Cesário, daria a
“pernada cósmica” (v. 45), admirada por seu primo. Esta pintura de Borrela serviria
ainda para o cenário onde o longo carreiro de formigas passaria, elemento fundamental
nesta obra do “pintor de palavras”. Neste quadro, é ainda possível acompanhar o
desenvolvimento tratado na estrofe XV, onde o poeta descreve, tal como é habitual, as
características paisagísticas observadas.
Leonel Borrela e Cesário Verde apresentam pontos comuns nas suas obras. Talvez esta
pintura fosse a representação gráfica deste poema de Cesário, se este, em vez de pintor
de palavras, fosse pintor de quadros. Enfim, duas grandes pessoas, um pintor e um
escritor que marcarão para sempre a história nacional.
“Campo de trigo com corvos” (1890), do pintor Vincent Van Gogh, foi um quadro que
eu tive o prazer de ver com os meus próprios olhos no Museu Van Gogh, em Amesterdão,
na Holanda. Desde então, este quadro ficou-me preso na memória. A decisão de o utilizar
neste trabalho talvez tenha sido afetada por essa razão.
O meu primeiro contacto com a obra trouxe-me interrogações como: para onde é que
vai aquele caminho? porque é que há corvos? Ganhei um súbito fascínio por este quadro
e, depois, descobri que ele refletia o estado mental do pintor nos seus últimos dias, o
medo de perder a lucidez e o medo de deixar a vida para trás.
Agora, olhamos para a pintura de Van Gogh e não vemos quotidiano nem pessoas nem
uma imagem realística, mas podemos ver as sensações deixadas pelo pintor, os campos
de trigo e o seu fulminante amarelo representando a batalha que o pintor trava para não
perder a sua sanidade, os corvos e o céu negro, representando o mau presságio, um alerta
de que algo terrível estaria para ocorrer. No poema “O Sentimento dum Ocidental”,
Cesário Verde dá-nos nos primeiros versos um vislumbre da cidade lisboeta (“O céu
parece baixo e de neblina […] Toldam-se duma cor monótona e londrina”), a
caracterização reflete o seu próprio estado de espirito, reflete os seus sentimentos de
profunda tristeza e agonia. Um sinal para uma futura tragédia (“O gás extravasado enjoa-
me, perturba”).
Podemos dizer que visualizar os poemas de Cesário Verde (aqueles que se focam mais no
quotidiano) é olhar para esta pintura (e outras) de Van Gogh com uma lupa, focando e
vendo todos os minúsculos detalhes. É como dizer que olhar para esta pintura de Van
Gogh é olhar de longe para a imagem construída a partir de alguns dos poemas de Cesário
Verde: não se veem todos os pormenores, mas sentimos o lugar representado na imagem,
é como abrir uma janela num dia de sol e sentir o calor na cara.
Por último, podemos ver que na pintura apresentada existe um caminho que aponta para
meio do campo de trigo. Talvez seja um sinal de aceitação, um sinal de que o sujeito já
tinha caminhado tudo o que o podia caminhar. Podemos ver algo relativamente parecido
nos poemas de Cesário Verde onde, ocasionalmente, aparecem indícios da doença que o
consome, por um lado aceitando o seu destino, mas, por outro lado, não parando de
escrever, de representar o mundo a seu modo, com as suas letras e palavras.
Escolhi o quadro “A separação” (1896), de Edvard Munch, pintor que, apesar de seguir
uma corrente artística diferente da de Cesário Verde (Munch seguia o Expressionismo e
Cesário Verde, o Impressionismo), tem como ele um passado cheio de mortes de
familiares e enfermidades, expressando assim a suas angústias, desespero e os próprios
sintomas sofridos nas suas obras.
Neste quadro é possível observar uma figura feminina que pode ser ligada a um elemento
característico da poesia de Cesário Verde, a imagem da rapariga pura, descrita no poema
“A Débil” como “bela, frágil, assustada”. Esta figura destaca-se nas pinceladas de Munch
com as suas cores claras e brilhantes, vestido branco e proximidade da água,
características que remetem para a pureza, no fundo negro e sombrio, tal como a “débil”
se destacava, já que não pertencia ao ambiente da “Babel tão velha e corruptora” nem à
“turba ruidosa, negra, espessa”.
No lado oposto ao da figura feminina está representado um homem, de costas para ela e
virado para quem observa, que faz lembrar o sujeito poético na poesia de Cesário Verde.
Este tem o desejo de proteger a rapariga da cidade já descrita como decadente,
corruptora, mas não o consegue pois está integrado ele mesmo na paisagem citadina,
“sentado à mesa de um café devasso”. Neste verso recorre-se à hipálage, pois atribuiu-se
ao espaço uma característica que possivelmente será do sujeito poético. Na tela, vê-se
também a impossibilidade da ligação do sujeito masculino ao feminino, ele apresenta-se
com uma postura curvada, com vergonha, ar acabrunhado e impotente.
Se olharmos com atenção para o rosto desta figura masculina, nos seus traços pintados
podemos ver representadas as emoções que o “eu” poético apresenta no início de outros
dois poemas de Cesário Verde: Em “O sentimento de um ocidental”, “Há tal soturnidade,
há tal melancolia / (...) / Despertam-me um desejo absurdo de sofrer”; e, no poema “Um
bairro moderno”, “com as tonturas de uma apoplexia”.
Em todo o lado esquerdo da imagem domina uma cor branca, intensa e translúcida que
faz lembrar um outro poema de Cesário Verde, Cristalizações, quando descreve de forma
impressionista “uma imensa claridade crua”. No quadro também existe, apesar das duas
figuras principais captarem mais atenção e a paisagem se encontrar distante, um
apontamento que remete para a natureza, as folhas de árvores alaranjadas. Estas podem
ser associadas à fuga mental de Cesário Verde para o campo, como acontece no poema
“Num Bairro Moderno” (“Que no xadrez marmóreo d’uma escada, / Como um retalho de
horta aglomerada, / Pousara, ajoelhando, a sua giga.”), quando a cidade, associada à
miséria, morte e degradação, causava claustrofobia.
Assim, é possível encontrar duas partes perfeitamente distintas na tela, uma é clara e
representa a saúde, limpidez e pureza; a outra é escura, e por sua vez, representa a
desilusão, o lado mais sombrio da vida. Estes dois polos lembram as oposições presentes
em Cesário Verde, nomeadamente, o ambiente saudável e pleno de vida, associado ao
campo, que contrasta com o espaço soturno, insalubre, mortífero da cidade, descrito em
“O sentimento de um ocidental”: “E eu sonho a Cólera, imagino a Febre, / Nesta
acumulação de corpos enfezados”.
Todas as experiências deÉdouard Manet à procura de um espaço pictórico culminam
nesta obra-mestra, exibida com grande êxito no Salão de 1882 ― “O bar do Folies-
Bergère".
Optei por analisar o quadro "Terraço do Café à Noite" (1888), de Vincent van Gogh.
Van Gogh, pintor conhecido por todos nós, não teve uma vida fácil. Sofreu de depressão
e solidão, refugiando-se nas suas pinturas. É assim, repleto de tristeza e de melancolia,
que imagino o sujeito poético da maioria dos poemas de Cesário Verde.
Neste quadro, Van Gogh quis representar a noite sem utilizar tinta preta. Quando o
terminou, mostrou ao seu irmão, dizendo-lhe: "Aqui está um quadro noturno sem ter
usado tinta preta, somente maravilhosos azuis, violetas e verdes."
É assim que interpreto os poemas de Cesário Verde. Em "O Sentimento dum Ocidental",
o poeta torna os aspetos típicos de uma cidade que, aos olhos da maioria, são admiráveis,
numa ideia má, de sofrimento, de solidão, de melancolia e de opressão (“Na parte que
abateu no terremoto, / Muram-me as construções retas, iguais, crescidas; / Afrontam-
me, no resto, as íngremes subidas, / E os sinos dum tanger monástico e devoto.”, vv. 17-
20)
Na obra de Van Gogh, é representada a cidade com o que tem de mais importante. É
representado o céu estrelado, na época típico de Lisboa, a movimentação nas ruas
embora seja de noite, as luzes vindas das janelas e do café. Nos seus poemas, Cesário
Verde também remete para esses aspetos da cidade mas fazendo-os muito mais
depreciativos: "O céu parece baixo e de neblina"(v. 5), "E os edifícios, com as chaminés e
a turba / Toldam-se de uma cor monótona e londrina", (vv. 7-8).
Apesar da sua vida complicada, nesta obra, Vincent Van Gogh esforça-se por transmitir
otimismo. Já Cesário Verde, que também passou por momentos difíceis, mostra-se
sempre pessimista, sem qualquer fé, sem qualquer esperança.
Assim, podemos estabelecer uma relação de oposição entre a pintura de Vincent Van
Gogh e a abordagem de Cesário Verde em relação à cidade. Enquanto na pintura
predomina a liberdade, a felicidade e o otimismo, nos poemas de Cesário são evidentes
os sentimentos de solidão, sofrimento, mágoa e aprisionamento.
A pintura "Blackman Street, London" (1885), de John Atkinson Grimshaw, que foi
feita apenas um ano antes da morte de Cesário Verde, parece ilustrar tudo o que o grande
poeta português sente em relação à cidade.
No poema autobiográfico "Nós", Cesário Verde mostra a sua preferência pelo campo,
vendo a cidade como um sinónimo de doença e morte ("a Febre e o Cólera também
andaram na cidade", v. 2) e como uma personificação da ausência de amor e de vida,
enquanto que o campo aparece associado à liberdade, à felicidade e à vida ("E o campo,
desde então, segundo o que me lembro, é todo o meu amor de todos estes anos", vv. 25-
26).
Uma das principais inspirações para este poema, foi a morte da sua irmã e do seu irmão
devido à tuberculose, Quando voltaram para a cidade após a fuga para o campo, "sucedeu
uma cruel desdita (III, v. 3), um deles "caiu, de súbito, doente" (III, v. 4), "Uma
tuberculose abria-lhe cavernas" (III, v. 5), "E, sem querer, aflito e atônito, morreu!" (III,
v. 12). Esta morte ocorre apenas quando estão na cidade, estando, assim, associada à
morte.
Também no poema "O Sentimento dum Ocidental", o poeta português revela que a
cidade desperta nele "um desejo absurdo de sofrer" (v. 4) pois, tal como na pintura, "o
céu parece baixo e de neblina", "os edifícios, com as chaminés, e a turba toldam-se duma
cor monótona e londrina" e "o gás extravasado" enjoa-o e perturba-o (vv. 5-8).
Em suma, existe uma relação entre a pintura de John Atkinson Grimshaw e a poesia de
Cesário Verde, pois ambas retratam uma cidade doentia, opressiva e entediante, como
uma "Babel tão velha e corruptora" (v. 7).
Aproveito este quadro de René Magritte – «Le fils de l’homme [O Filho do Homem]»
(1964) –, pintor belga, nascido em 1898, ainda no século de Cesário Verde (1855). René
Magritte foi conhecido como um dos pintores surrealistas mais bem-sucedidos do século
XX.
René Magritte, um pouco como Cesário Verde, era conhecido pelas suas obras metódicas
e relacionadas com a sociedade. Esta obra, à primeira vista, parece simples, tal como
muitos poemas de O livro de Cesário Verde onde o vocabulário utilizado é simples e
recorrente nos nossos dias, e, no entanto, se bem analisado, podemos concluir que pode
ser confusa e desconcertante a sua compreensão.
A meu ver, o aspeto que se salienta mais na pintura «Le fils de l'homme [O Filho do
Homem]» é a maçã que se encontra defronte da figura representada na pintura que, pelo
facto de se tratar de um autorretrato, é o próprio autor da pintura. Este traço
característico da pintura poderá ser entendido de diversas maneiras: uma delas é que o
autor esconde a sua identidade do mundo, talvez por medo, receio, ou então, por não
querer ser igual ao resto da sociedade. Por outro lado, o autor quer demonstrar o desejo
humano de ver o que está escondido por trás do visível, surgindo assim um conflito entre
o visível que está oculto e o visível que está presente.
Esta característica da pintura de René Magritte pode ser comparada com o estilo de
Cesário Verde que, na sua obra, efetuava constantes caracterizações do que o rodeava.
Em «Num Bairro Moderno», o sujeito poético compara uma paisagem rural a uma figura
feminina, utilizando diversos alimentos como frutas, vegetais (“E entre as hortaliças,
túmido, fragrante, como d’alguém que tudo aquilo jante, surge um melão, que me
lembrou um ventre.”) como elementos comparativos a partes do corpo da figura
feminina, expressando-se, desta forma, algum comportamento obsceno.
Outro fator interessante nesta pintura é que o braço esquerdo do autor está ao contrário
em relação ao resto do corpo. Com este indício o autor da pintura pretende demonstrar
a dualidade, o mistério do que observamos, havendo diversas formas de interpretar o
observado. Existem sempre diferentes versões do que nos rodeia de pessoa para pessoa,
nunca havendo, assim, uma única versão correta.
No Livro de Cesário Verde existe também uma dualidade, um binómio entre cidade e
campo e o que caracteriza cada um. No campo, o sujeito poético encontra um lugar de
refúgio, de vitalidade, de saúde e fertilidade. Em «Num Bairro Moderno» é visível um
exemplo destas características: “Pelos jardins estancam-se as nascentes, e fere a vista,
com brancuras quentes, a larga rua macadamizada.” Na cidade, o sujeito poético mostra
ao leitor um local de agitação, de progresso, mas também de opressão social, de
melancolia, de doença, de morbidez e de aprisionamento (“Nas nossas ruas, ao anoitecer,
há tal soturnidade, há tal melancolia, que as sombras, o bulício, o Tejo, as maresias
despertam-me um desejo absurdo de sofrer”).
Para concluir, tanto na pintura de René Magritte como, na obraO Livro de Cesário Verde,
é percetível como a questão social influência o homem e a sua ação, causando-lhe
preocupação e revolta.
Por observação da pintura, podemos deduzir que estamos perante uma cidade muito
movimentada. Vemos muitas pessoas a passear, algumas entretendo-se no mercado,
outras simplesmente a conviverem, algo que desperta um sentimento de felicidade. Na
maior parte dos poemas de Cesário em que se trata da cidade, isto não acontece, como
é,sobretudo, o caso de “O Sentimento dum Ocidental”. Neste poema, percebemos que a
rua não é tão movimentada, talvez por já ser de noite, mas o poeta transmite-nos que a
cidade desperta nele “um desejo absurdo de sofrer”. Isto é algo comum nos textos do
poeta, em que quase sempre o eu se mostra muito negativo, algo que se deve muito à
desumanidade existente nos lugares por onde Cesário passa e ao facto de estarmos “ao
anoitecer”.
Enquanto que através da análise do quadro de Bernardo Bellotto ficamos com uma
perspectiva fixa da cidade de Viena, através dos poemas de Cesário Verde é-nos dada
uma perspectiva caleidoscópica. Por um lado, enquanto paisagem física, a cidade remete
para a morte, para a moleza como evidenciam referências a ruas delimitadas por vários
edifícios, por eventos como “batem carros de aluguer”. Por outro lado, enquanto espaço
onde habita a sociedade, a cidade é descrita como palco de variedade social (”as
burguesinhas do catolicismo”, “as floristas”, “as varinas”). Esta duas características
referidas não parecem estar presentes no quadro do pintor, pois aí não parece haver
variedade social e a cidade remete para a felicidade e a tranquilidade apenas.
É possível observar que na obra de arte do pintor italiano estão representadas mulheres
do povo. Isto é algo que também acontece nos poemas de Cesário em que certas
mulheres também pertenciam a esta classe social. Contudo, em alguns poemas de
Cesário, o sujeito poético elogia a mulher desconsiderando-se a si mesmo. Tome-se,
como exemplo, o poema “ A Débil”. Nos instantes iniciais, o sujeito poético começa por
descrever-se a si como “ feio, sólido, leal” e descreve a mulher como “ bela, frágil,
assustada”, elogios que se complementam.
São estas diferenças nas artes que permitem que estas evoluam e é algo positivo ver que
existem diferentes pontos de vista e diferentes maneiras de representar realidades
aproximáveis.
Para a realização deste trabalho, chamou-me à atenção a terceira versão de uma série de
pinturas a óleo, feita entre 1890 e 1895 pelo pintor Paul Cézanne, conhecida como “Os
Jogadores de Cartas”. Esta tela, pintada em 1892, encontra-se atualmente no Museu de
Orsay em Paris, sendo considerado pela ARTnews uma das obras de arte mais valiosas,
pois o quadro foi vendido, em 2011, por um valor estimado de 190 milhões de euros, à
família real do Qatar.
No quadro a óleo que escolhi, tal como na poesia de Cesário Verde, é possível verificar
certos detalhes, que resultam da observação e do estudo, possivelmente realizado por
Cézanne, do comportamento de indivíduos que têm como passatempo jogar às cartas. O
foco do quadro são os dois indivíduos que, tal como o título da série de telas nos indica,
se encontram a jogar às cartas. Se observado com atenção, é possível visualizar também
pequenos detalhes como, por exemplo, a atenção que os dois homens demonstram em
relação ao seu confronto ou, até mesmo, o tipo de traje que estão a vestir, que
corresponde ao tipo de roupas utilizadas nos finais do século XIX (em França, onde
nasceu o pintor). Paul Cézanne, tal como Cesário Verde, também reparava em pequenos
pormenores irrelevantes, como sucede com o cigarro, seguro entre os lábios de um dos
jogadores, com a pequena toalha que cobre a pequena mesa onde os personagens da
pintura apoiam os antebraços ou, até mesmo, na garrafa, quase impercetível, vista
mesmo no centro da pintura, apesar de ser um dos elementos mais afastados no pequeno
espaço onde decorre o jogo.
Assim, com estas características, como os pequenos detalhes, a expressão realista e clara
e a transformação do real e do usual em arte tão valiosa, podemos concluir que tanto
Cesário Verde como Paul Cézanne são dois artistas de áreas diferentes, poesia e pintura,
respetivamente, que conseguem observar e transmitir a realidade de uma forma muito
particular.
Para já, há que destacar que Cesário Verde possui um género de poesia muito
característico. A mesma é muito recheada de detalhes; predominam cenários urbanos;
com linguagem moderna; em muitos poemas seus os problemas da sociedade são
expostos, como o esforço no trabalho (“Cristalizações” – “De cócoras, em linha os
calceteiros, / Com lentidão, terrosos e grosseiros, / Calçam e lado a lado a longa rua,“ ;
“Num bairro moderno” – “Bóiam aromas, fumos de cozinha;/Com o cabaz às costas, e
vergando, / Sobem padeiros, claros de farinha;/E às portas, uma ou outra campainha /
Toca, frenética, de vez em quando.“), a doença (“Contrariedades” – “Uma infeliz, sem
peito, os dois pulmões doentes; / Sofre faltas de ar, morreram-lhe os parentes“ ), a
injustiça social, entre muitas outras características. A poesia de Cesário Verde está muito
baseada na transmissão de sentimentos para quem a interpreta. Muitas vezes são os
sentimentos mais delicados, como a tristeza, mágoa, desgosto, sofrimento, amargura,
que nos tocam e fazem com que ganhemos o gosto pela sua poesia.
O pintor italiano Caravaggio, que viveu entre 1571 e 1610, foi reconhecido pelo seu
excelente, expressivo e profissional trabalho. Expressava a arte barroca nas suas pinturas
que ficaram famosas pelo grande contraste que conseguia entre a luz e a sombra. A sua
célebre pintura “Narcissus” (1599) mostra isso mesmo, um grande contraste entre uma
imagem e a sua respetiva sombra que, neste caso, é um homem – aparentemente da corte
– que se debruça sobre uma poça ou, talvez, um pequeno lago; e o que nós conseguimos
observar claramente, para além de todas as sombras feitas pelo mesmo, é a sua reflexão
na água.
Decidi comparar esta belíssima pintura com a poesia de Cesário Verde, pois ambas
expressam diversos sentimentos muitas das vezes em comum. Enquanto, na pintura, a
personagem revela uma expressão profunda, triste, de sofrimento ou revolta talvez, no
poema “Contrariedades” o poeta refere alguns momentos em que podemos observar
esses sentimentos, como “Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,”, “Que mau humor!
Rasguei uma epopeia morta”. No poema “Cinismos”, também podemos observar alguns
desses casos, como “Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário / E desvendar-lhe a vida, o
mundo, o gozo,”, “Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso, / Os pegos abismais da minha
vida, / E hei de olhá-la dum modo tão nervoso,”. No caso deste poema, o último verso
acaba por ser uma certa ironia da parte do poeta (“E eu hei de, então, soltar uma risada.”),
como se, depois de todo o desmoronamento, ele ainda conseguisse rir sobre os destroços.
Cesário e Caravaggio conseguem ainda dar vida à sua arte (neste caso, poesia e pintura,
repetivamente) e fazer penetrar sentimentos no espectador. Quem observa/lê consegue,
a partir da sua arte, imaginar ou criar uma história composta. Por exemplo, no poema
“Impossível”, a partir de um verso (“Unir as nossas mãos, eternamente,”), podemos
imaginar diversos acontecimentos, desde momentos mais simples até aos mais
complexos.
Opto por este óleo do notório pintor romântico Caspar David Friedrich — «Wanderer
above the Sea of Fog [Caminhante sobre o Mar de Névoa]» —, que nasceu em 1776 e
faleceu em 1840, quinze anos antes do nascimento de Cesário Verde. Ambos os artistas
experimentaram a perda e a doença. Tanto um como o outro viu irmãos perecer,
acabando também por sucumbir lentamente. O português rendeu-se à tuberculose, o
alemão sobreviveu a um AVC, para se ver esmorecer aos poucos depois.
Um aspeto que valerá a pena acentuar é a orientação vertical do quadro, que acaba por
remeter para um homem digno e íntegro. Apesar de não conseguirmos ver a sua cara,
devido à sua postura, podemos assumir que a majestosa, porém equilibrada, paisagem
faz germinar no homem, que está totalmente envolvido no sublime cenário, sentimentos
síncronos de espanto e satisfação. David Friedrich ocultou propositadamente a cara do
elegante burguês para que o público pudesse partilhar a sua perspetiva de vida — a
solitude, emparelhada com a Natureza, concede-nos concretização física e espiritual.
Também na poesia de Cesário, ainda que mais subtilmente, o campo, contraposto à
cidade, é esboçado como um lugar que confere vida e harmonia e sara as feridas causadas
pela cidade. Em «Nós», o sujeito lírico evoca as suas memórias campestres, enaltecendo
o cenário rústico — «Ah! que aspetos benignos e rurais / Nesta localidade tudo tinha»
(II, vv.73-74) — e refutando a essência perversa e corruptora da cidade —, referindo-se
aos produtos fabricados e a comuns elementos característicos da regeneração citadina
lisboeta («Extensões Carboníferas», «Fundas Galerias», «Fábricas a Vapor») como
«falso[s]» e «maquinal[ais]» (II, vv. 169), «Sem vida, como um círculo ou um quadrado,
/ Com essa perfeição do fabricado, / Sem o ritmo do vivo e do real!» (II, vv. 170-172).
Outro traço distintivo dos versos do poeta português que podemos ver delineado na tela
de Caspar é a diferenciação das classes sociais. Em «Cristalizações», o «eu» descreve a
agitação citadina e associa-a à desigualdade que vem a molestar os pobres trabalhadores
— «Homens de carga! / Assim as bestas vão curvadas! / Que vida tão custosa! Que
diabo!» —, ficando frustrado com a vida dura que os trabalhadores levam.
Contrariamente, o homem retratado na pintura de Caspar David Friedrich pertence,
claramente, à burguesia (aparece-nos com elementos característicos da
classe bourgeoise da época [1818] — um sofisticado fato e uma requintada bengala), —;
no entanto, o que Caspar pretende transmitir é que, quando perante a imensidão da
Natureza, o estatuto social desvanece-se e o homem rende-se à sua grandiosidade e
magnificência. A vasta paisagem alude à divindade da Natureza e ao facto de que,
independentemente das nossas ambições, seremos sempre excedidos por ela.
Deparo-me com uma pintura magnífica, “Pferd im Landshaft” (1910), de Franz Marc,
que nasceu em 1880 e faleceu em 1916, com apenas trinta e seis anos. Esta obra tem a
particularidade de poder transmitir diversas sensações, de pessoa para pessoa, o que, na
verdade, se pode relacionar com a escrita de Cesário Verde.
Para além do enorme cavalo, está representado, num plano posterior, o que parece ser
um campo ao ar livre, por diversas cores, transmitindo-nos várias sensações.
A um primeiro olhar, o quadro transmite-me calma pois reparo num cavalo que mostra
ser animal amigo do ser humano, e também num campo, que me transmite uma certa
leveza consequente dos ares que por ali correm. Contudo, ao olhar para o imenso amarelo
e o pouco de vermelho ali presentes, sinto um ambiente pesado e seco: o calor está
presente, bem como um ar difícil de respirar.
Em “De tarde” acontece o mesmo. Cesário Verde tem como objetivo passar diferentes
sensações, seguindo uma poesia descritiva, referenciando cores e formas. Neste poema,
o sujeito poético está num pic-nic, ação que decorre no campo, como acontecia no quadro
de Franz Marc. Também presente neste encontro está um elemento feminino
referenciado no poema (“Foi quando tu, descendo de um burrico”), por quem o poeta
cria alguma proximidade (“Pouco depois, em cima duns penhascos, / Nós acampámos ,
inda o sol se via”), podendo deduzir-se que o “eu” sente-se atraído por este elemento
feminino, que também podemos ver nos primeiros versos (“Houve uma coisa
simplesmente bela / E que, sem ter história nem grandeza, / Em todo o caso dava uma
aguarela”), fazendo-se uma associação às artes plásticas, o que em Cesário Verde sucede
constantemente.
Em Cesário Verde, as diferentes sensações (tato, visão, paladar) multiplicam-se, tal como
no quadro de Franz Marc.
Podemos encontrar referências ao tato na segunda estrofe (“Foste colher (…)”), na quarta
estrofe (“Mas, todo púrpuro a sair da renda”). O paladar também é referenciado na
terceira estrofe (“E pão de ló molhado em malvasia”). E, por último, temos a visão, que é
a sensação mais mencionada neste poema (“A um granzoal azul grão-de-bico”; “Um
ramalhete rubro de papoulas”).
Em suma, o poema “De tarde”, de Cesário Verde, tem semelhanças com a pintura “Pferd
im Landshaft”, de Franz Marc, na medida em que ambas as obras apelam às diversas
sensações.
A pintura aproveitada é uma representação perfeita da forma como Cesário Verde reflete
o mundo em poema, feita por Georges-Pierre Seurat. “Un dimanche après-midi à l'Île
de la Grande Jatte” foi pintado na capital da moda e arte no século XIX, Paris, durante
os anos 1884-1886.
Cesário Verde e Georges Seurat convergem na realidade que ambos refletem, como uma
tarde da classe alta num ambiente natural, por uma transfiguração do universo, num
cenário melancólico, que é dado a conhecer através de um olhar seletivo, assim subjetivo,
mas com uma certa abulia, com o sentimento de um cidadão ocidental.
A poesia de Cesário aproxima-se da pintura e creio que, por vezes, pode ser relacionada
com a obra de Edvard Munch e, em particular, com o quadro “Trabalhadores a
caminho de casa” (“Arbeidere på hjemvei”), de 1913. É certo que, através do seu
emblemático “O Grito”, Munch conseguiu veicular como ninguém a angústia de existir,
mas, em “Trabalhadores a caminho de casa”, Munch parece pintar a “tal soturnidade” e
a “tal melancolia” que Cesário descobre e canta epicamente enquanto deambula pela sua
“triste cidade” em “O Sentimento dum Ocidental”.
A poesia e a pintura são formas por excelência de transmitir não apenas emoções, mas
também ideias. Munch pinta a marcha, tão inexorável quanto gloriosa, dos
trabalhadores. Estão cansados, mas unidos. Têm postura ereta e punhos cerrados. Vão
a caminho da conquista de melhores de condições de vida.
Tanto o pintor norueguês como o poeta português levam a sua admiração pelos
trabalhadores ao ponto de se identificarem com eles. Munch via-se como um dos
trabalhadores de casaco azul, seguindo o líder de casaco vermelho – o seu amigo e
filósofo anarquista Hans Jaeger. Cesário, igualmente subtil, utiliza os seus alexandrinos
no poema intitulado “Em Petiz” para equiparar “operários […] de olhar rebelde e louco”
a “artistas”.
Por fim, gostava de salientar como a indefinição do traço e dos contornos de Munch e as
transparências a que recorre se aproximam das impressões transmitidas pelos versos de
Cesário. Tanto um como outro pretendem transmitir de uma forma quase
cinematográfica a sensação de movimento.
Cesário “Pinto[u] quadros por letras” (“Nós”). Decerto teria transformado em poema
“Trabalhadores a caminho de casa” pela melancolia e pela visão do mundo que o poeta
de Lisboa tanto apreciava.
Quando observei “Boulevard Montmartre: Foggy Morning[Boulevard Montmartre:
Manhã Nebulosa]” pela primeira vez, a realidade captada por Camille Pissarro, em
1897, levou-me, instintivamente, às deambulações do sujeito poético de Cesário Verde.
O pintor francês transpôs para a sua tela a simplicidade de um momento quotidiano tal
como o poeta português fez nos seus poemas. Era na banalidade que Cesário encontrava
o ponto de partida para a sua poesia, refletindo e transfigurando a realidade através da
visão e dos sentimentos do errante sujeito poético face ao que o rodeava.
No óleo de Pissarro predominam cores escuras e os jogos de luz e sombra envolvem quem
o observa no ambiente de que se revestia a rua oitocentista no instante capturado pelo
pintor. A captação fiel da luz que incidia nos objetos é característica de Pissarro e dos
pintores impressionistas da sua época, sendo essencial à sua perceção. Em Cesário Verde
a luz aparece também como fator determinante, trazendo vida e cor em “Num Bairro
Moderno” (“E fere a vista com brancuras quentes”, “À luz do sol, o colorista”) e, pela
ausência, a tristeza e a doença em “O Sentimento dum Ocidental”.
Tal como as ruas por onde vagueia o “eu” em “O Sentimento dum Ocidental”, o Boulevard
Montmartre surge-nos moderno, soturno e claustrofóbico: “O céu parece baixo e de
neblina” (v. 5), “e os edifícios com as chaminés e a turba / Toldam-se de uma cor
monótona e londrina” (vv. 7-8), suscitando as mesmas sensações melancólicas. No
sujeito poético de Cesário, sempre marcado pela doença (“com as tonturas duma
apoplexia”, v. 15 de “Num Bairro Moderno”), despertaria “um desejo absurdo de sofrer”
e certamente que a Pissarro também não trouxe emoções ligeiras, confinado ao mesmo
panorama durante um longo período de tempo devido a uma complicação na visão que
o forçou a proteger-se dos efeitos nocivos da luz solar.