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A INCONSTITUCIONALIDADE DO INQUÉRITO PENAL Nº. 4.781/STF:


INQUÉRITO CONTRA “FAKE NEWS” ENVOLVENDO MINISTROS DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Laryssa Gonçalves Benevides1, Vânio Soares Guimarães2

Resumo

A finalidade proposta neste artigo é a verificação da inconstitucionalidade do Inquérito Penal


nº 4.781/STF frente ao sistema penal acusatório e a competência privativa do Ministério
Público para promover a ação penal pública, ambos previstos na Constituição Federal. A
prerrogativa de instauração de inquérito pelo Poder Judiciário está prevista no art. 43 do
Regimento Interno do STF, no qual o seu presidente fundamentou-se para a abertura do
inquérito com o propósito de apurar “fake news” que envolviam seus ministros. Todavia, é
necessário que o crime tenha ocorrido na sede do Tribunal e que se direcione àquele sujeito à
jurisdição da Corte Suprema, requisitos esses inexistentes no procedimento investigatório em
comento. A ausência de conhecimento e parecer da Procuradoria-Geral da República do
inquérito e da deliberação de medidas cautelares fere o ordenamento jurídico. O processo
penal brasileiro é assentado nas garantias individuais, nos direitos fundamentais e nos
princípios, todos de observância obrigatória e assegurados pela Lei Maior. O Inquérito Penal
nº 4.781 confronta essas premissas, a legislação e a própria Constituição Federal, abrindo
espaço para uma inconstitucionalidade material, ferindo a titularidade penal do Ministério
Público (MP), pendendo para um sistema processual penal inquisitivo e instaurando um
tribunal de exceção.

Palavras-chave: Inconstitucionalidade material. Inquérito penal. Sistema processual penal


acusatório. “Fake news”.

1 Introdução

O objeto do presente trabalho diz respeito à inconstitucionalidade do Inquérito Penal


nº. 4.781, instaurado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o qual nomeou o
Ministro Alexandre de Moraes como seu relator, com o escopo de averiguar crimes
relacionados às notícias fraudulentas, “fake news”, propelidas em direção aos ministros da
Corte Suprema.

1
Acadêmica do 10º período do Curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos de Teófilo
Otoni/MG - UNIPAC. E-mail: laryssabene@hotmail.com.
2
Professor Orientador. Graduado em Direito pela Faculdade Santo Agostinho - FADISA. Pós-graduado em
Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera - UNIDERP. Professor no curso de Direito da Faculdade
Presidente Antônio Carlos de Teófilo Otoni/MG – UNIPAC. Mestrando em Ciências das Religiões - temática
esfera pública e religiões, pela Faculdade Unida de Vitória. E-mail: vanio.guimaraes@trf1.jus.br.
2

O problema alvitrado consiste na análise da inconstitucionalidade do inquérito penal


supramencionado, considerando a legislação pátria, as perspectivas do Supremo Tribunal
Federal, bem como da Procuradoria-Geral da República (PGR).
“Ab initio”, aborda-se a vertente do STF que alicerçou-se nos arts. 43 e ss. do seu
Regimento Interno para a instauração do inquérito, o qual prevê a possibilidade de instituição
de inquérito quando houver “infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal” e “se
envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”3, tendo em vista a publicidade de
matérias, comentários e notícias que atingiram a honra e a segurança do Supremo,
determinando, ainda, o cumprimento de medidas cautelares, dentre elas a censura de matérias
do site O Antagonista e da revista Crusoé.
Lado outro, na segunda linha a se explanar, destaca-se que PGR requereu vista do
procedimento investigatório e, com a ausência de remessa, aduziu a sua inconstitucionalidade
por ultrajar a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), o sistema processual
penal adotado na Carta Magna de 1988, isto é, o sistema penal acusatório, os direitos e os
princípios constitucionais, haja vista que o STF figurou como um juiz inquisidor.
Nesse contexto, o objetivo deste artigo é minuciar o referido inquérito e o
posicionamento da PGR quanto à sua instauração, esteando no ordenamento jurídico, para a
análise e a demonstração de sua inconstitucionalidade material.

2 Sistemas Processuais Penais

A pretensão punitiva do Estado limita-se às garantias individuais e fundamentais, bem


como à realização de um processo regular, insculpidas na Constituição da República
Federativa do Brasil, fundando-se em um sistema que obedece a tais premissas para a
efetivação da persecução criminal. Nesse prisma, mister se faz a distinção dos sistemas
processuais penais, a saber: inquisitorial, acusatório e misto.
O sistema inquisitorial, que remota ao Direito Canônico, surgiu no século XIII,
disseminou-se pela Europa e vigorou até o século XVIII, caracterizando-se pela aglutinação,
unicamente no magistrado, denominado juiz inquisidor, das funções de acusar, defender e
julgar.
O juiz, nesse sistema, é o gestor das provas, podendo, livremente e “ex officio”,
ordenar a coleção de elementos probatórios, tanto na fase investigativa como na fase

3
Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf>. Acesso
em: 03 de agosto de 2019.
3

processual, desobrigado de requisição por parte da defesa ou da acusação. Assim, o


magistrado podia sentenciar da forma que bem entendesse, com base nas provas que ele
mesmo colhesse, mas tendo a legislação como preceito.
A centralização das funções processuais em uma única figura afasta absolutamente a
imparcialidade, o contraditório e a ampla defesa, infringe a CRFB e a Convenção Americana
dos Direitos Humanos (CADH, art. 8º, nº. 1), sendo que o acusado era considerado como uma
simples peça e não como sujeito de direito, de forma que poderia ser torturado para obter-se a
confissão, alicerçando-se no princípio da verdade real. Ainda, o processo era, em regra,
escrito e sigiloso (LIMA, 2016).
No sistema acusatório, originário do Direito Grego, há a separação das funções
processuais de acusar, defender e julgar em três pessoas distintas, sendo respaldado na
equidade, na imparcialidade, na presunção de inocência, no contraditório e na ampla defesa. O
processo é público e oral, faz-se o interrogatório do réu e a oitiva das testemunhas, as partes
que colacionam as provas ao juiz, ressaltando que cabe exclusivamente aos litigantes a
produção de material probatório, incumbindo ao magistrado à imposição de regras para
assegurar os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, a
isonomia entre as partes e os direitos e liberdades fundamentais ao acusado que passa a ser
reconhecido como sujeito de direito.
Destarte, as partes do processo litigam com equidade e submetem-se ao julgamento do
magistrado, que deve prolatar o seu parecer de modo imparcial, embasando a premissa:
“judicium est actus trium personarum” (LIMA, 2016)4.
Com efeito, o juiz, através do livre convencimento motivado, é quem julga a ação e
não o calha a função de gestor de provas, exceto quando fomentado na fase investigatória,
entendendo necessário para tanto, e na fase processual em que poderá requerer a produção
probatória de ofício, mas desde que subsidiariamente (LIMA, 2016).
O sistema misto ou francês, como destaca Távora (2016), surgiu no século XIX com o
“Code d’Instruction Criminelle”5 francês de 1808, após a Revolução Francesa, reunindo os
dois sistemas supradescritos, dessa forma, é dividido em duas fases: a inquisitorial, sem o
contraditório e a ampla defesa, escrita, sigilosa, que almeja a reunião de elementos quanto à
autoria e à materialidade do delito; e a fase acusatória, edificada na publicidade, na oralidade,
no contraditório e na ampla defesa, na qual o acusador apresenta a acusação, o réu a sua
defesa e o juiz decide o litígio.

4
Judicium est actus trium personarum significa que “a existência de um processo depende de três pessoas”.
5
Code d’Instruction Criminelle traduz-se em “Código de Instrução Criminal”.
4

Segundo Távora (2016), a doutrina, em parte, considera esse sistema como inquisitivo-
garantista, haja vista que respeita as garantias constitucionais e, concomitantemente, atribui ao
juiz a função de gestor das provas. Dito isso, a persecução é dividida nas fases de investigação
preliminar, dirigida pela autoridade policial judiciária, de instrução processual e de
julgamento, presididas pelo magistrado.
A legislação pátria, anteriormente a Constituição Federal de 1988, adotava o sistema
inquisitorial, de forma que no Código de Processo Penal de 1941 (CPP), conforme menciona
Távora (2016, p. 24), “preponderava a ideia que colocava o juiz em uma posição
hierarquicamente superior às partes da relação jurídica processual, como uma espécie de
super-parte, sem cautelas para preservar eficazmente sua imparcialidade”.
Entretanto, o CPP sofreu algumas reformas e com a entrada em vigor da Carta Magna
de 1988 o processo penal brasileiro passou a adotar o sistema acusatório, vez que a CRFB
(art.129, I) preconiza que compete privativamente ao Ministério Público a promoção da ação
penal pública, bem como o CPP (art. 155) prevê que o juiz constituirá a sua convicção por
meio da livre apreciação de provas, isto é, pelo livre convencimento motivado, sendo vedado
fundar-se unicamente em elementos de informação.
Urge enfatizar que “a legislação processual penal ainda não foi atualizada pelo
Congresso Nacional de modo a compatibilizar-se integralmente com este novo sistema,
embora algumas mudanças pontuais tenham sido feitas na lei ordinária”6.
Outrossim, é de bom alvitre salientar que:

não adotamos o sistema acusatório puro, e sim o não ortodoxo, pois o magistrado
não é um espectador estático na persecução, tendo, ainda que excepcionalmente,
iniciativa probatória, e podendo, de outra banda, conceder habeas corpus de ofício e
decretar prisão preventiva, bem como ordenar e modificar medidas cautelares. É
essa também a linha expressamente afirmada pela relatoria da Comissão do Projeto
de Código de Processo Penal, sugerindo uma leitura não radical do princípio
acusatório. (TÁVORA, 2016, p.25)

Por consequência, extrai-se do acima colacionado a posição ativa do magistrado na


persecução criminal desde a fase investigatória, atuando, primordialmente, para assegurar
uma correta e eficiente produção de provas, tendo iniciativa probatória, porém, dentro dos
limites legais e de maneira excepcional.

6
Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340066163&ext=.pdf>. Acesso em:
23 de julho de 2019.
5

3 Inquérito Penal nº. 4.781/STF

O Supremo Tribunal Federal ratificou sua jurisprudência nas sessões de 13 e 14 de


março de 2019, no sentido de que os crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro, conexos
aos crimes eleitorais, são de competência da Justiça Eleitoral. O Ministério Público criticou e
se opôs ao entendimento firmado, considerando como desfavorável à operação Lava Jato,
bem como os membros da Corte e a Ordem de Advogados do Brasil (OAB).
Essa decisão propiciou reprovações e culminou em postagens negativas, abalizadas
como “fake news”, à Corte do Supremo, “verbi gratia” a necessidade de intervenção e de
fechamento do STF.
À vista disso, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro José Antônio Dias
Toffoli, por meio da Portaria GP nº 69, de 14 de março de 2019, instaurou, de ofício, o
Inquérito Penal nº. 4.781 para a apuração de ameaças, “fake news”, que ultrajam a probidade
e a segurança do STF e de seus integrantes, instituindo o Ministro Alexandre de Moraes como
relator.
Veja-se a portaria:

O PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no uso de suas


atribuições que lhe confere o Regimento Interno,
CONSIDERANDO que velar pela intangibilidade das prerrogativas do Supremo
Tribunal Federal e dos seus membros é atribuição regimental do Presidente da Corte
(RISTF, art. 13, I);
CONSIDERANDO a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações
caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e
injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal
Federal, de seus membros e familiares,
RESOLVE, nos termos do art. 43 e seguintes do Regimento Interno, instaurar
inquérito para apuração dos fatos e infrações correspondentes, em toda a sua
dimensão,
Designo para a condução do feito o eminente Ministro Alexandre de Moraes, que
poderá requerer à Presidência a estrutura material e de pessoal necessária para a
respectiva condução7.

O Presidente da Corte Suprema, motivado no fato de que a liberdade de expressão,


assegurada pela Constituição Federal, é um dos sustentáculos do Regime Democrático de
Direito, possibilitando a manifestação diversa de opiniões, ideias e pensamentos, mas que,
todavia, não pode ser extrapolada, posto que não configura um direito absoluto e limita-se a
um ponto que não calunie, difame ou injurie outrem, instaurou o inquérito nº 4.781,
respaldado no art. 43 do Regimento Interno do STF (RISTF), “ipsis litteris”:

7
Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/INQ4781.pdf>. Acesso em: 02 de agosto de 2019.
6

Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o


Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua
jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.
§ 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou
requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente.
§ 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores do
Tribunal.8

O Ministro Alexandre de Moraes9 compreende cada Ministro como uma sede do STF
e sustenta que a matéria desse procedimento investigatório consiste na apuração dos crimes
supradescritos na portaria, isso

quando houver relação com a dignidade dos Ministros, inclusive com a apuração do
vazamento de informações e documentos sigilosos, com o intuito de atribuir e/ou
insinuar a prática de atos ilícitos por membros da Suprema Corte, por parte daqueles
que tem o dever legal de preservar o sigilo; e a verificação da existência de
esquemas de financiamento e divulgação em massa nas redes sociais, com o intuito
de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Poder Judiciário e ao Estado
de Direito.

Através de uma ordem judicial, o Ministro Relator estabeleceu o cumprimento de


medidas cautelares, vedando a subsistência de matérias jornalísticas, sem a manifestação
prévia do Ministério Público e da Procuradora-Geral da República, bem como ordenando a
retirada dessas do material vinculativo de publicidade e determinando a expedição de
mandados de busca e apreensão, “vide”:

DETERMINO que o site O Antagonista e a revista Cruzoé retirem, imediatamente,


dos respectivos ambientes virtuais a matéria intitulada “O amigo do amigo de meu
pai” e todas as postagens subsequentes que tratem sobre o assunto, sob pena de
multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais), cujo prazo será contado a partir da
intimação dos responsáveis10.

O termo “amigo do amigo de meu pai”, segundo os esclarecimentos de Marcelo Bahia


Odebrecht11, refere-se ao Ministro Dias Toffoli e a expressão “amigo de meu pai” a Luiz
Inácio Lula da Silva. As matérias publicadas sobre esse tema propeliram ofensas ao
Presidente do STF, conforme menciona Alexandre de Moraes na decisão de censura ao site O
Antagonista e à revista Crusoé, esteando-se, para a deliberação da referida ordem judicial, na
justificativa de que

8
Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf>. Acesso
em: 03 de agosto de 2019.
9
Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/alexandre-rejeita-arquivamento.pdf>. Acesso em: 06 de agosto
de 2019.
10
Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-
content/uploads/sites/41/2019/04/report-26.pdf> Acesso em: 08 de agosto de 2019.
11
Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-
content/uploads/sites/41/2019/04/Amigo-do-amigo-do-meu-pai.pdf> Acesso em: 09 de agosto de 2019.
7

a plena proteção constitucional da exteriorização da opinião (aspecto positivo) não


significa a impossibilidade posterior de análise e responsabilização por eventuais
informações injuriosas, difamantes, mentirosas e em relação a eventuais danos
materiais e morais, pois os direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à própria
imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana,
salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas12.

Nessa linha, a Procuradoria-Geral da República13 noticiou que

ao contrário do que afirma o site O Antagonista, a Procuradoria-Geral da República


(PGR) não recebeu nem da força tarefa Lava Jato no Paraná e nem do delegado que
preside o inquérito 1365/2015 qualquer informação que teria sido entregue pelo
colaborador Marcelo Odebrecht em que ele afirma que a descrição “amigo do amigo
de meu pai” refere-se ao presidente do Supremo Tribunal federal (STF), Dias
Toffoli.

Essa declaração embasou o entendimento do Ministro relator do inquérito penal nº.


4.781, no sentido de que as publicações tratavam-se de “fake news”, por serem falsas,
segundo Alexandre de Moraes, as alegações de envolvimento irregular do Presidente do
Supremo, Dias Toffoli.
A 2ª Câmara de Coordenação e Revisão da PGR requereu ao Ministro Alexandre de
Moraes que a remetesse os autos do inquérito judicial para a verificação da “ocorrência de
justa causa para a instauração de persecução criminal” 14, alegando que o prosseguimento das
investigações poderia violar a Constituição Federal e a Lei Complementar n º 75/93, posto
que é necessária a atuação do Ministério Público no processo investigatório, de acordo com o
determinado na Carta Magna e no ordenamento jurídico.
Ademais, em continuidade, a PGR evidenciou que o inquérito criminal deve passar
pelo crivo do MP, para que esse proceda com a efetivação de suas funções indelegáveis,
estabelecidas na legislação vigente, bem como que “membros do Ministério Publico só
podem ser investigados, em aspecto criminal, pelo próprio Ministério Publico, em face de sua
autonomia funcional, como previsto em suas leis orgânicas, e considerando a prerrogativa de
foro, nos exatos termos da Constituição Federal”15.
A Procuradora-Geral da República, Raquel Elias Ferreira Dodge, com a falta de envio
do inquérito ao MP após a realização do requerimento supramencionado, manifestou-se à
Corte ordenando o arquivamento do inquérito nº 4.781 sob o fundamento de que, com a

12
Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-
content/uploads/sites/41/2019/04/report-26.pdf> Acesso em: 08 de agosto de 2019.
13
“Ibidem”.
14
Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/coordenacao/notas-tecnicas-para-processos-
legislativos/inquerito-fake-news-contra-ministros-do-stf-pgr-00133880-2019.pdf/view> Acesso em: 09 de agosto
de 2019.
15
“Ibidem”.
8

Constituição Federal de 1988, o Brasil adotou o sistema acusatório, sobrevindo ao sistema


inquisitivo anteriormente aplicado, e que este inquérito é antagônico ao sistema penal
brasileiro por infringir a separação das funções de julgar, acusar e defender, base do sistema
acusatório.
Além disso, a instauração do procedimento investigatório em comento, segundo
Dodge, viola os direitos e as garantias fundamentais, bem como os princípios constitucionais,
todos de observância e de emprego obrigatório, como expressa o art. 5º, §2º da CRFB.
Dessarte, há notório ultraje ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, à
imparcialidade e à isonomia, o que se opõe ao encargo do Poder Judiciário de zelar pela
inviolabilidade da Carta Magna e pela simetria entre os poderes, de forma que o Juiz assegura
o respeito aos direitos fundamentais e delibera sobre diligências, sob sua reserva de jurisdição,
na fase investigativa, e o titular da ação penal é quem conduz a investigação criminal.
Acrescenta, ainda, que a Portaria GP nº 69, que nomeou o relator, mas não identificou
quem são os investigados e quais os crimes fraudulentos praticados, feriu o princípio da livre
distribuição e o preceito do juiz natural, impossibilitando que o inquérito fosse encaminhado e
analisado pelo MP, e ressaltando que as ações e diligências ordenadas no inquérito são
inconstitucionais e atingem negativamente o sistema penal acusatório.
Assim, segundo a Procuradora-Geral da República16,

a portaria de instauração do Inquérito 4781 não se refere a indício que defina a


competência do Supremo Tribunal Federal para instaurar e supervisionar a
investigação, pois não aventou a possibilidade de envolvimento de pessoa com foro
por prerrogativa de função no STF; nem se refere a ato que pudesse ser
correlacionado ou ser resultante do exercício de suas funções.

Destaca Dodge17 que “o ordenamento jurídico vigente não prevê a hipótese de o


mesmo juiz que entende que um fato é criminoso determinar a instauração da investigação e
designar o responsável por essa investigação”.
Em contrapartida, Alexandre de Moraes entende a manifestação da PGR como um
“pedido genérico de arquivamento”18 e refuta a alegação de que somente o Ministério Público
pode requisitar uma investigação, uma vez que o MP, com a adoção do sistema acusatório, é o
titular privativo da ação penal pública, contudo, as perquirições criminais são de competência,
quanto à condução, da Polícia Judiciária, precisamente do delegado, salvo a hipótese do art.

16
Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340066163&ext=.pdf>. Acesso em:
23 de julho de 2019.
17
“Ibidem”.
18
Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/alexandre-rejeita-arquivamento.pdf>. Acesso em: 06 de agosto
de 2019.
9

43 do Regimento Interno do STF supradita, na qual o Presidente do Supremo poderá instaurar


o inquérito ou delegar essa prerrogativa a algum Ministro.
Desse modo, é explícita a distinção, conforme expressa o Relator, entre a autoria da
ação penal pública e o procedimento investigatório, alicerçando-se em precedentes do STF
que ratificam a possibilidade de instauração de inquérito não somente pelo Ministério Público.
Por sua vez, a Rede Sustentabilidade, propôs a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF), com fulcro nos arts. 102, § 1º e 103, inciso VIII, ambos da
Constituição Federal, cumulados com o art. 2º da Lei nº 9.882/1999 e suas disposições, ante a
Portaria GP nº 69, de 14 de março de 2019 que instaurou o Inquérito nº 4781 no STF,
explicitando todos os requisitos necessários à sua interposição.
A primeira premissa, com supedâneo no art. 1º da Lei 9.882/2019, consiste no “ato do
poder público”, referindo-se à Portaria, que originou o Inquérito Penal, elaborada pelo
Presidente do Supremo Tribunal Federal.
O segundo requisito, previsto no mesmo diploma legal, diz respeito à “lesão a preceito
fundamental”, salientando que não há definição legal ou constitucional de preceito
fundamental, contudo, a jurisprudência e a doutrina já firmaram o entendimento de que
traduz-se ao que é vital para o Estado, isto é, “nos objetivos fundamentais da República e nos
direitos e garantias fundamentais” 19.
Por consequência, a referida investigação criminal ultraja o devido processo legal, o
direito de não ser submetido a uma investigação revestida de despotismo e autoritarismo e de
não ter sua liberdade pessoal tolida. Assim, o Inquérito em comento, segundo a Rede
Sustentabilidade20, fere preceitos da Carta magna, como:

a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), a prevalência dos direitos humanos
(CF, art. 4º, II), da submissão única e exclusivamente à lei (CF, art. 5º, II), a
impossibilidade de existir juízo ou tribunal de exceção (CF, art. 5º, XXXVII). Ora, a
malsinada Portaria GP nº 69, de 14 de março de 2019, ao instituir investigação
criminal ilegal e inconstitucional, sem fatos específicos e contra pessoas
indeterminadas, viola as garantias mais básicas do Estado Democrático de Direito e
coloca em risco, em potencial, o direito de ir e vir de autoridades dos Três Poderes
da União.

Por fim, a última condição mencionada na ADPF, intentada pelo partido político Rede
Sustentabilidade, é o caráter subsidiário da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (art. 4º, § 1º, da Lei 9.882/99), ou seja, a exigência de utilizá-la somente quando

19
Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/rede-adpf-inquerito-ameacas-ministros.pdf>. Acesso em: 10 de
agosto de 2019.
20
“Ibidem”.
10

não houver outro mecanismo capaz de avaliar e solucionar a lesão à matéria constitucional no
controle de constitucionalidade.
Nesse prisma, a Rede Sustentabilidade 21 aponta que:

na hipótese, inexiste outro instrumento no âmbito da jurisdição constitucional que


possibilite a impugnação da Portaria GP nº 69, de 14 de março de 2019. É que se
trata de ato normativo secundário, contra o qual não cabe o ajuizamento de Ação
Direta de Inconstitucionalidade, na esteira de remansosa jurisprudência do STF.
Ademais, mesmo que estamos a tratar do direito de ir e vir e liberdade de cidadãos e
autoridades, potencialmente tutelável pelo remédio heróico, cabe dizer que tal
instrumento não é suficiente para afastar o cabimento da presente ADPF, em
especial porque não há regramento sobre impetração de habeas corpus contra ato da
Presidência do STF, além de a amplitude e generalidade da Portaria GP nº 69, de 14
de março de 2019, colocar dúvida sobre potenciais investigados.

Em continuidade, aduz que os fatos criminosos não sucederam de práticas na sede ou


dependência do Tribunal, como impõe o art. 43 e ss. do Regimento Interno do STF, bem
como que não foram cometidos por agentes submetidos à alçada do STF. Além disso, o
Inquérito 4.781 ultraja a competência do MP e a segmentação dos poderes e os fatos
delituosos não foram precisados.

4 A Inconstitucionalidade do Inquérito Penal nº. 4.781/STF: Inquérito contra “fake


news” envolvendo Ministros do Supremo Tribunal Federal

“O Processo”, obra de autoria de Franz Kafka, relata que o bancário Josef K., ao
despertar de uma manhã, foi preso sem ter conhecimento das razões e submetido a um
processo longo, sigiloso, por um delito não especificado, sendo impossibilitado de defender-
se. Esse livro censura ferrenhamente o abuso de autoridade do Poder Judiciário. (KAFKA,
2005).
O Inquérito 4.781 consolida a crítica de Franz Kafka supradita, dado que a sua portaria
de instauração não especifica os fatos (delimitação objetiva) e nem define quais são os
cidadãos que estão sendo investigados (delimitação subjetiva), além de não citar artigos da
legislação penal pátria e de revestir-se de arbitrariedade.
A inexistência da delimitação objetiva infringe o dogma constitucional da legalidade
estrita, que, consoante Ferrajoli (2002, p. 31),

é proposto como uma técnica legislativa específica, dirigida a excluir, conquanto


arbitrárias e discriminatórias, as convenções penais referidas não a fatos, mas

21
Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/rede-adpf-inquerito-ameacas-ministros.pdf>. Acesso em: 10 de
agosto de 2019.
11

diretamente a pessoas e, portanto, com caráter "constitutivo" e não "regulamentar"


daquilo que é punível: como as normas que, em terríveis ordenamentos passados,
perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os subversivos e os inimigos do povo;
como as que ainda existem em nosso ordenamento, que perseguem os
"desocupados" e os "vagabundos", os "propensos a delinqüir", os "dedicados a
tráficos ilícitos", os "socialmente perigosos" e outros semelhantes.

Em que pese a Portaria GP nº 69 não definir os fatos concretos que devem ser
investigados, não determinar os sujeitos que praticaram as infrações penais e violar, assim, o
princípio da legalidade estrita, não se faz necessária a delimitação de todos os crimes e
investigados, mas de uma identificação mínima para configurar uma justa causa e não
alicerçar-se em presunções.
O “caput” do art. 43 do RISTF preconiza que o Presidente da Corte Suprema poderá
instaurar o inquérito quando, no crime, estiver implicada “autoridade ou pessoa sujeita à sua
jurisdição”22. Visto que a competência do STF é demarcada no rol taxativo do art.102, I, da
CF e que a portaria não abalizou quais são os investigados, não se pode verificar se
enquadram-se em uma das hipóteses taxadas no artigo em comento, ou seja, se detêm o foro
no Supremo.
Por consequência, resta ausente um importante requisito para a instauração do
inquérito nos termos do art. 43 do RISTF, não se podendo olvidar que a competência do
Supremo Tribunal Federal é positivada na CRFB em “numerus clausus” e não cabe
interpretação extensiva por ato normativo primário ou pelo próprio STF, como ratifica a
jurisprudência pacífica da Corte23:

Trata-se de recurso ordinário interposto contra decisão proferida pelos Ministros da


Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça que negaram provimento ao AgRg
no CC 159.533/MG (págs. 21-28 do documento eletrônico 13). É o relatório
necessário. Decido. Incabível o presente recurso. Isto porque [a] competência
originária do Supremo Tribunal Federal, por qualificar-se como um complexo de
atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional - e ante o regime
de direito estrito a que se acha submetida, não comporta a possibilidade de ser
estendida a situações que extravasem os limites fixados, em numerus clausus, pelo
rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da Constituição da República (Pet 5.068-
AgR/SP, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma). Assim, caberá a este Supremo
Tribunal julgar em recurso ordinário o habeas corpus, o mandado de segurança, o
habeas data e o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais
Superiores, se denegatória a decisão, e o crime político, hipóteses taxativamente
previstas no art. 102, II, da Constituição da República. Na espécie, o recurso
ordinário foi interposto contra decisão que negou provimento a agravo regimental
em Conflito de Competência julgado pelo STJ. Isso posto, nego provimento ao

22
Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf>. Acesso
em: 03 de agosto de 2019.
23
Disponível em: <https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/713068727/peticao-pet-8181-mg-minas-
gerais?ref=serp>. Acesso em: 19 de agosto de 2019.
12

pedido (art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal). Publique-
se. Brasília, 15 de maio de 2019. Ministro Ricardo Lewandowski Relator
(STF - Pet: 8181 MG - MINAS GERAIS, Relator: Min. RICARDO
LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 15/05/2019, Data de Publicação: DJe-104
20/0 5/2019).

Infere-se, ante o exposto, que esse procedimento investigatório concebeu um Tribunal


de Exceção, proibido no ordenamento jurídico, especificamente no art. 5º, XXXVII da CF,
posto que induz uma investigação de qualquer pessoa que atingiu a honra e a segurança do
STF, inclusive aquela não prevista no art. 102, I, “b”, da CRFB, bem como por nomear um
Ministro específico para coordená-lo, ultrajando o princípio da imparcialidade e a norma do
juiz natural esculpida no art. 5º, LIII, do mesmo diploma legal.
Outro preceito necessário à instauração do inquérito consiste na ocorrência da
“infração à lei penal na sede ou dependências do Tribunal” 24, conforme se extrai dos arts. 43 e
ss. do RISTF que, regimentados pela Resolução nº 564/2015 do Supremo, estabeleceram o
“poder de polícia na sede ou dependências do STF”25.
Logo, afere-se que a Portaria GP 69/2019 exorbita o poder de polícia outorgado ao
STF, uma vez que classifica as infrações como “fake news” que foram praticadas nos espaços
virtuais, fugindo da delimitação: “sede ou dependências do Tribunal”, salientado que cada
Ministro não configura uma sede da Corte Suprema. Nesse viés, corrobora o partido político,
Rede Sustentabilidade26, que:

a Portaria de instauração do inquérito é lacunosa sobre o local onde teriam sido


praticados os supostos fatos criminosos, que também não são específicos. Diversos
veículos de comunicação noticiaram que a investigação criminal tem por foco
mensagens postadas em redes sociais e até em grupos de WhatsApp. Para corroborar
essa informação, a portaria faz referência à "fakenews" que são justamente
difundidas em redes sociais. A utilização do poder de polícia do STF para investigar
eventuais delitos praticados fora da sede ou dependência do STF é totalmente ilegal
- por extrapolar os próprios requisitos do RISTF c/c Resolução nº 564/2015 - e
inconstitucional - por violar o sistema acusatório.

Convém ressaltar que, como preceitua o art. 129, VII, da CF, compete ao Ministério
Público realizar o “controle externo da atividade policial”, nos termos da Lei Complementar
75/93, em todo inquérito.
O Inquérito Penal nº 4.781 é evidentemente inconstitucional, pois viola o art. 129, I, da
Constituição Federal, que prevê: “são funções institucionais do Ministério Público: I -

24
Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf>. Acesso
em: 03 de agosto de 2019.
25
Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/rede-adpf-inquerito-ameacas-ministros.pdf>. Acesso em: 10 de
agosto de 2019.
26
“Ibidem”.
13

promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”, bem como o sistema penal
acusatório adotado pela Carta Magna. Trata-se, assim, de inconstitucionalidade material, que,
conforme Barroso, “apud” Lenza (2018, p. 263):

expressa uma incompatibilidade de conteúdo, substantiva entre a lei ou ato


normativo e a Constituição. Pode traduzir-se no confronto com uma regra
constitucional — e.g., a fixação da remuneração de uma categoria de servidores
públicos acima do limite constitucional (art. 37, XI) — ou com um princípio
constitucional, como no caso de lei que restrinja ilegitimamente a participação de
candidatos em concurso público, em razão do sexo ou idade (arts. 5.º, caput, e 3.º,
IV), em desarmonia com o mandamento da isonomia.

Acrescenta Lenza (2018, p. 263) que:

o vício material (de conteúdo, substancial ou doutrinário) diz respeito


à“matéria”, ao conteúdo do ato normativo. Assim, aquele ato normativo que
afrontar qualquer preceito ou princípio da Lei Maior deverá ser declarado
inconstitucional, por possuir um vício material. Não nos interessa saber aqui o
procedimento de elaboração da espécie normativa, mas, de fato, o seu conteúdo.

A titularidade privativa da ação penal pública, com supedâneo no art. 129 da CF, é do
Ministério Público, como mencionado, incumbindo ao magistrado julgar a ação e não
conduzir o inquérito. A exceção que concede ao STF a prerrogativa de instaurar a inquérito
está prevista no art. 43 do RISTF, entretanto, o Inquérito Penal nº 4.781 não respeita os
requisitos necessários a sua instauração como já explanado acima.
Registre-se que a competência do STF é fixada, com base na Constituição, “tendo em
conta o foro dos investigados e não o foro das vítimas de ato criminoso, ou seja, a
competência do STF não é definida em função do fato de os membros dessa Corte serem
eventuais vítima de fato criminoso”27. Assim, posto a incompetência do Supremo Tribunal
Federal para instaurar o inquérito em estudo, assenta o § 2º do art. 2º, da Resolução nº
564/201528 que:

Art. 2º. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o


Presidente instaurará inquérito se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua
jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro.
[...]
§ 2º Nas demais hipóteses, o Presidente poderá requisitar a instauração de inquérito
à autoridade competente.

27
Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340066163&ext=.pdf>. Acesso em:
23 de julho de 2019.
28
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/ARQUIVO/NORMA/RESOLUCAO564-2015.PDF>. Acesso em: 19 de
agosto de 2019.
14

A Lei Complementar 75/93 (art. 38, II), expressa, ainda, que compete ao MPF a
função de “requisitar diligências investigatórias e instauração de inquérito policial, podendo
acompanhá-los e apresentar provas”. Além disso, o Presidente do Supremo não remeteu,
preliminarmente, o inquérito à PGR para que consignasse o seu parecer, regra determinada
pelo o art. 46 da mesma lei, “vide”: “incumbe ao Procurador-Geral da República exercer as
funções do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal, manifestando-se
previamente em todos os processos de sua competência”.
Outrossim, o Ministro Alexandre de Moraes ordenou o cumprimento de medidas
cautelares no Inquérito penal nº 4.781, como a censura à revista Crusoé e ao site O
Antagonista, bem como a expedição de mandados de busca e apreensão, ausente qualquer
atuação da PGR. Isso, segundo a Procuradora-Geral da República29,

significa que o próprio Ministro Relator avaliou a pertinência dessas medidas


para investigação. Em seguida, tal qual determina o art. 74 do RISTF, esse
mesmo Ministro julgará o resultado da investigação, materializado na peça
acus atória. Aqui, um agravante: além de investigador e julgador, o Ministro
Relator do Inquérito 4781 é vítima dos fatos investigados – que seriam ofensivos à
“honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e
familiares”. Não há como imaginar situação mais comprometedora da
imparcialidade e neutralidade dos julgadores – princípios constitucionais que
inspiram o sistema acusatório.

Assim, dado que o MP é o titular privativo da ação penal pública (art. 129, I, CF),
calha-o o poder de solicitar medidas cautelares na persecução penal, afrontado, a decisão do
Ministro Relator, a Lei maior e a imparcialidade, pendendo para uma sentença contaminada e
que não assegura a justiça.
A ofensa ao sistema penal acusatório, aderido pela Constituição Federal, do Inquérito
Penal nº 4.781, é indubitável, haja vista que o STF revestiu-se da função de um juiz
inquisidor, já que instaurou o procedimento investigatório, está conduzindo-o e, ainda,
determinou o cumprimento de medidas cautelares¸ afrontando todas as premissas que
fundamentam esse sistema, o que resultará, com o prosseguimento desse inquérito, em um
julgamento parcial, sem atenção aos princípios constitucionais, à própria Carta Magna e ao
ordenamento jurídico.
Nesse diapasão, aborda Lopes Jr. (2016, p. 42):

o processo penal acusatório caracteriza-se, portanto, pela clara separação entre juiz e
partes, que assim deve se manter ao longo de todo o processo [...] para garantia da

29
Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340066163&ext=.pdf>. Acesso em:
23 de julho de 2019.
15

imparcialidade (juiz que vai atrás da prova está contaminado) [...] e efetivação do
contraditório. A posição do julgador é fundada no ne procedat iudex ex officio,
cabendo às partes, portanto, a iniciativa não apenas inicial, mas ao longo de toda a
produção da prova. É absolutamente incompatível com o sistema acusatório
(também violando o contraditório e fulminando com a imparcialidade) a prática de
6atos de caráter probatório ou persecutório por parte do juiz [...]. Entendemos que a
Constituição demarca o modelo acusatório, pois desenha claramente o núcleo desse
sistema ao afirmar que a acusação incumbe ao Ministério Público (art. 129),
exigindo a separação das funções de acusar e julgar (e assim deve ser mantido ao
longo de todo o processo) e, principalmente, ao definir as regras do devido processo
no art. 5º, especialmente na garantia do juiz natural (e imparcial, por elementar), e
também inciso LV, ao fincar pé na exigência do contraditório.

Destarte, há inconstitucionalidade nomoestática, tendo em vista que fere, diretamente,


tanto a Lei Maior (art. 129, I, da CF – “numerus clausus”) como o preceito constitucional do
sistema penal acusatório e os princípios constitucionais do devido processo legal, da
imparcialidade, do juiz natural, da isonomia, do contraditório e da ampla defesa.

5 Considerações Finais

Uma exceção em que o Poder Judiciário pode abrir um inquérito é a prevista no art. 43
do Regimento Interno do STF, sendo essa previsão legal o suporte da instauração do Inquérito
Penal nº 4.781. Contudo, não se afere os pressupostos preconizados nesse dispositivo legal, ou
seja, a concretização do crime na “sede ou dependência do Tribunal” e contra “autoridade ou
pessoa sujeita à sua jurisdição”30, porquanto as infrações penais foram praticadas na internet e
a Portaria GP nº 69/2019 não especifica quais são os crimes e os cidadãos que estão sendo
investigados.
Além de menosprezar os requisitos supraditos, o inquérito em estudo ofende o sistema
processual penal acusatório, assegurado pela Constituição Federal de 1988, já que aglutinou
as funções de acusar, defender e julgar no magistrado, típico do sistema inquisitorial, bem
como inobservou a regra do juiz natural, pendendo para um tribunal de exceção, proibido na
legislação vigente.
Assim, razão assiste à PGR quanto à inconstitucionalidade do Inquérito nº 4.781
depois de observado a afronta à separação dos poderes, aos princípios do devido processo
legal, da imparcialidade, do contraditório e da ampla defesa e à necessidade de participação
do Ministério Público nesse procedimento investigatório.

30
Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf>. Acesso
em: 03 de agosto de 2019.
16

Depreende-se inegavelmente a inconstitucionalidade material do inquérito, ultrajando


a competência privativa do MP para promovê-lo e os princípios constitucionais. Assim, o
progresso do inquérito pode resultar em um julgamento completamente contaminado.

Abstract

The purpose proposed in this article is to verify the unconstitutionality of Criminal Inquiry
No. 4,781 / STF against the accusatory criminal system and the private competence of the
Public Prosecution Service to promote public criminal action, both provided for in the Federal
Constitution. The prerogative of opening of inquiry by the Judiciary Power is foreseen in art.
43 of the Rules of Procedure of the Supreme Court, in which its president based himself on
the opening of the inquiry with the purpose of investigating “fake news” involving his
ministers. However, it is necessary that the crime occurred at the seat of the Court and is
directed at that subject to the jurisdiction of the Supreme Court, which are not required in the
investigative procedure under consideration. The lack of knowledge and opinion of the
Attorney General's Office of the investigation and the deliberation of precautionary measures
hurts the legal system. The Brazilian criminal process is based on individual guarantees,
fundamental rights and principles, all of which are mandatory and guaranteed by the Major
Law. Criminal Inquiry No. 4,781 confronts these premises, the legislation and the Federal
Constitution itself, making room for material unconstitutionality, injuring the prosecution of
the Public Prosecution Service (MP), pending for an inquisitive criminal procedural system
and establishing an exceptional court.

Keywords: Material unconstitutionality. Criminal Inquiry. Accusatory criminal procedural


system. Fake news.

REFERÊNCIAS

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